Laços de Afeto

Page 1

Ronald e Zenab distribuem quentinhas em Salvador

Laรงos de

afeto

Texto BRUNA CASTELO BRANCO editoria.muito03@grupoatarde.com.br Foto RAUL SPINASSร raul.spinasse@grupoatarde.com.br

Solidariedade inspira rituais natalinos que se aproximam mais do significado da data, que tem a ver com nascimento e, mais que isso: com honrar a vida

16

SALVADOR DOMINGO 23/12/2018

SALVADOR DOMINGO 23/12/2018

17


F

az 13 anos que Zenab Mohamed não passa a noite de Natal com a família. Na vida dela, as manhãs e as tardes de 24 de dezembro são trabalhosas. Acorda, vai ao mercado e compra tanta comida que parece que vai alimentar um exército. Não fossem as caixinhas de panetone, pareceria que ela está estocando alimento. À tarde, junta a família e prepara a ceia – cerca de 300 quentinhas cheias, para sermos mais específicos. Dá trabalho, mas compensa. “É quando fico com eles, nos reunimos para isso”, conta a empresária. À noite, pega o carro e, pelas ruas de Salvador, comemora o Natal com outras famílias. Famílias que, talvez sem ela, nem teriam Natal. “No início, foi difícil para os meus parentes aceitarem que eu não ficaria com eles, mas logo entenderam e me dão todo o apoio”. Desde que começou, o roteiro de Zenab é o mesmo: sai da Barra, onde mora, passa pela Piedade, Pelourinho, Aquidabã, Comércio, Calçada e termina no Largo de Roma. Além de distribuir as quentinhas, passa um tempinho com as pessoas em situação em rua. “Eles já ficam me esperando. Gostam da minha comida porque vem quente. Você tem que ver como as crianças ficam felizes”. E faz questão de fazer pratos que resistam à temperatura ambiente. “É frango, farofa, arroz com passas. Levo algo que, se eles quiserem guardar para o dia seguinte, não vai estragar”. A ideia surgiu num dia em que, enquanto andava na rua, uma criança sem teto lhe pediu água, apenas água. “Não foi comida nem dinheiro. Isso me deixou muito pensativa”, lembra ela. Daí em diante, prometeu a si mesma que, além da ceia de Natal, daria às famílias o que beber. Leva água e refrigerante. Para a sobremesa, deixa um panetone. Para fazer uma festa tão grande, os preparativos começam cedo, assim que um ano novo vem. Os funcionários da gráfica de Zenab já conhecem a regra: toda moeda de R$ 1 deve ser guardada num porquinho. No final, esse dinheiro vai para a compra dos panetones.“Jáaceiaéporminhaconta.Aoinvésdecomprar um presente para mim, faço isso. Meu presente é esse, que estou compartilhando com outras pessoas”. Além das moedas, também junta, ao longo do ano, produtos feitos na gráfica, como camisetas, canecas e bonés. Nos primeiros dias de dezembro, monta kits e distribui para moradores de rua. A missão é árdua, diz Zenab, e ela não daria conta sozinha. Às vezes, convence uns sobrinhos ou amigos a irem junto. “Eles vão sem saber como vai ser, mas depois me agradecem, é uma experiência rica”. Há dois anos, o designer gráfico Ronald Nascimento, que

18

SALVADOR DOMINGO 23/12/2018

BERNARDO COSTA / DIVULGAÇÃO

João e Sellena promovem Natal para comunidade transgênero

trabalha com ela, passou a acompanhá-la na tarefa. No ano passado, lembra que ele e Zenab passaram mal no percurso, mas foram até o fim. “O engraçado é que a gente nem pensou em parar. E foi muito feliz, muito legal”, diz ele. A recepção nas ruas é a maior motivação. “A gente percebe o quanto faz diferença. Uma moça que pegou a quentinha pediu para tirar foto com a gente, brincou, conversou”, lembra Ronald. No roteiro, preocupam-se em confiar e mostrar confiança. “Um menino disse que a mãe não estava se sentindo bem e pediu para levar duas quentinhas. Ele dizia: ‘Não tô mentindo, eu juro, minha mãe tá ali’. Zenab quer que todos os membros da família comam, tanto a ceia quanto o panetone. Cada um ganha o seu”. No final da noite, lá pela madrugada, ela passa na Igreja da Ordem Terceira da Santíssima Trindade, no bairro do Comércio. Lá, vive a Comunidade da Trindade, formada por pessoas em situação de rua. “A festa que eles fazem lá é linda. Quando sobra quentinha, deixo lá para eles”, diz. No final das contas, trata-se mais de afeto do que de comida farta, conclui Zenab. “Ninguém paga isso”.

INCLUÍDOS O Natal dos Incluídos surgiu justamente dessa vontade de ter e compartilhar afeto. Há três anos, o casal João Hugo Cerqueira, produtor e fotógrafo, e Sellena Ramos, estudante, organiza uma festa natalina voltada para a comunidade LGBTQ+, em especial às pessoas transexuais, como eles. “Existem diversas violências no Natal. A transição de gênero é algo mais externo, visível, e muitas famílias simplesmente não aceitam as pessoas por ser quem elas são”, diz João. Sellena, que tem pais evangélicos, não tinha o costume de comemorar a data.


João não tem problemas com a mãe, mas já não tinha mais “paciência de encarar alguns parentes”. Daí veio a ideia de fazer algo novo, aberto a quem mais não se sentisse à vontade de estar com a família de sangue. “Mas tem algumas pessoas que frequentam o nosso Natal e visitam a família também”, lembra ele. Tudo começou em 2016. “A gente nunca quis publicidade,nuncaquisaparecer.PosteisobreoNatalno meu Facebook e logo vieram várias pessoas interessadas.Cadaumlevaumpratoeumabebida.Umas20 pessoas apareceram na primeira edição”, conta João. E é Natal dos Incluídos mesmo, não excluídos. “As pessoas podem não ter vínculo com a família, mas estamos incluindo todo mundo”. No ano passado, esse número dobrou. “Era um entra e sai de gente, uma circulação muito grande, o espaço realmente ficou pequeno. Foi muito doido”, brinca João. A previsão é que, nesta terceira edição, a quantidade de gente seja a mesma – ou até maior. Por isso, o casal transferiu o evento para o Casarão da Diversidade, no Pelourinho. E a festa será grande: vai ter a DJ Tia Carol, karaokê e um bazar. “Estamos juntando roupas para doar. A população trans tem dificuldade de conseguir um trabalho formal e muitas vezesnão tem grana mesmo.O bazar é livre, pode pegar peças que não tem, pegar para alguém que está precisando”, diz ele. Por essa mesma razão, também preferem não fazer amigo-secreto. Já que o objetivo é a inclusão, João e Sellena temem que a obrigatoriedade de levar presente desestimule aqueles que não podem comprá-los. “Pode gerar um constrangimento e é o que não queremos, não faz sentido. Preferimos fazer outras brincadeiras, como cantar. Este ano vamos fazer um The Voice”, diz o fotógrafo. A ideia também é não vincular o encontro a qualquer religião. “É uma confraternização de final de ano que respeita também a diversidade religiosa. Historicamente, LGBTQ’+ são discriminados por algumas religiões, por isso não faria sentido que fosse um encontro religioso. A gente foca mais nessa cultura de se reunir”, diz Sellena. Mas, caso alguém queira fazer uma prece ou alguma manifestação espiritual, também não é problema. “O problema não é ter religião, não é Jesus, o problema é o fã-clube”, brinca João. Além de ceia e música, a festa reserva um momento para o diálogo, discutir sobre o ano que passou e pensar sobre o que está por vir. “Não será um ano fácil, a gente precisa fortalecer ainda mais. O preconceito contra a população trans sempre existiu, mas não é mais velado”, reitera João. “Esse momento é mais é uma troca de saberes mesmo. Nesta época, que prega o amor, a solidariedade, muitas pessoas ficam realmente tristes. A conversa tem esse objetivo

de reduzir esses danos psicológicos. Como a família é a base, a gente acaba construindo a nossa própria família. A gente sabe que, em outros espaços, as pessoas vão estar vulneráveis à violência”. No ano passado, o vendedor Eduardo da Silva não só participou, mas ajudou a arrumar a festa. E, lá, descobriu que as confraternizações de fim de ano podem ser maravilhosas. “Eu me achei no Natal dos Incluídos. Os meus parentes são todos evangélicos. É um dilema isso. A única pessoa trans sou eu, sempre fui o excluído. É muito complicado essa data festiva. João e Sellena, como sempre digo, são a minha família”, comenta ele. Este ano, Eduardo pretende incluir ainda mais pessoas. Assim como Zenab, vai ajudar os que moram nas ruas da cidade. Para a véspera de Natal, planeja distribuir quentinhas e roupas. “Eu sou favelado e faço questão de levantar essa bandeira. Não é porque tenho um pouco mais informação que vou dar as costas”.

ÁRVORE DE MEMÓRIAS A árvore de Natal da família da psicóloga Luciane Oliveira não tem bolas, laços nem Papai Noel de pano pendurado. É uma árvore feita de memórias do mundo inteiro. Cada filho que viaja vai com a incumbência de trazer um novo enfeite, que pode ser qualquer coisa: um chaveiro, uma concha, uma xícara, uma memorabilia qualquer. “Montar essa árvore é montar as nossas histórias. Passei uma semana montando, dá um trabalho. É uma forma de levar as pessoas para esses lugares,

SALVADOR DOMINGO 23/12/2018

19


viajar por essas lembranças, até quem não viajou também”, diz ela. A tradição começou em 2007, depois da morte da mãe. “Ela me pediu para continuar fazendo o nosso Natal”. No mesmo ano, deu uma árvore enorme de presente para o filho, André, a mesma que ela monta edesmontaatéhoje.Tambémnãoabremãodeafesta ser na casa dela. “É a minha referência principal, gosto de ter a minha família dentro de casa, trazendo energia. Essas pessoas confortam a gente”. Outrohábitoé,poucosdiasantesdoNatal,fazerum sarau com amigos, uma média de 35 pessoas: um dia de feijão, música e reunião de pessoas que se gostam. Este ano, a festa aconteceu no dia 22. “A gente tem isso de fazer sarau mesmo, um levar um violão, tocar música. Outro que não sabe tocar, canta. Todos que vêm gostam de música”, conta. A virada de 24 para 25 de dezembro é mais íntima, com familiares. E, numa festa tão cheia de tradições, Luciane se orgulha em dizer que criou a dela própria. Mesmo de folga, não deixa a psicologia de lado: a cada ano, propõe dinâmicas e reflexões. “Escolho um texto com meu filho, André, e a gente faz uma leitura

20

SALVADOR DOMINGO 23/12/2018

Sarau fortalece os vínculos da família de Luciane Oliveira

e trabalha vários temas. Uma vez, trabalhamos a relação entre pedras e pessoas. Levei pedras, cada um escolhia uma e depois relacionava com a própria personalidade, com o ano que estava acabando”. A dinâmica varia. Tem vez que ela leva todos de volta à infância. Pede para que desenhem, recortem papéis em formato de coração, façam colagens, escrevam frases. “Gosto muito dessa brincadeira, é sempre uma surpresa. Colocar as pessoas para fazer o que não fizeram o ano inteiro, recortar, colar. E percebo que é um momento em que todo mundo se une em torno de uma atividade tão simples”. As reações variam também. André lembra que tem quem chore, tem quem ria, e há sempre uma conexão entre os que estão ali. “As pessoas estão acostumadas comojantarcomafamília,masmuitasvezesnãotêmnemmesmooqueconversar. E o que a gente faz está muito relacionado a saber o que o outro está pensando, se tem alguma novidade, se reconectar”. Para Luciane, a beleza de dezembro mora no encontro com o outro, nas experiências compartilhadas e na força das origens. Por isso, faz questão de manter a tradição. “Tem que ter a ver com a origem daquela família, a gente buscou uma maneira própria de fazer. A gente tem um ano tão corrido, não consegue se ver sempre. É um dia para agradecer, chorar um pouco, ser alegre. Acho também que mantenho por causa da minha mãe”. Este ano, a árvore de memórias tem um tema especial. “Nasceu uma pessoa na família. É um marco muito grande, o Natal me lembra um monte de valores que eu acho bonitos, é uma festa linda”, diz Luciane. Nessa casa, o dia 24 vai ser todo sobre nascimento. «


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.