Pioneira Campeã

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SALVADOR DOMINGO 12/8/2018


Texto BRUNA CASTELO BRANCO bruna.araujo@grupoatarde.com.br Foto MARGARIDA NEIDE margarida.neide@grupoatarde.com.br

Primeira goleira da seleção brasileira de futebol feminino, Meg conseguiu driblar com excelência o machismo no esporte

Pioneira

Q campeã

Nos jogos de Atlanta, o Brasil terminou em quarto lugar

uando Meg nasceu, seus pais a chamaram de Margarete. Decisão que não agradou muito ao padre da cidadezinhadeToledo,noParaná,em 1956. No dia do batismo, com os santos todos de testemunha, bateu o pé: “Vai ser Margarida! Margarete parece nome daquelas atrizes estrangeiras”. Como quem registra a criança é a família, não a igreja, findou Margarete mesmo. “Mas você vê que o machismo já estava ali?”, pergunta Meg, já sabendo a resposta. Margarete Maria Pioresan, 62 anos, foi a primeira goleira da seleção brasileira de futebol feminino – que, por sinal, é hepta –, criada em 1988. Mas, lembra, sua história com o esporte veio de antes, bem antes de sequer imaginar que, um dia, atravessaria continentes vestida numa camisa oficial. “Eu cresci em cidade pequena, trepava em árvore, jogava peteca, brincava de bola, nadava nos rios. Eu tinha tudo, preparo físico, corria, pulava”. Nos jogos abertos do Paraná, representando a cidade de Toledo, jogava pingue-pongue,vôlei,basqueteefaziaatletismo.“Quando chegou a idade de sair para estudar, não demorou para que eu escolhesse educação física”. A carreira de Meg – como, para a alegria do padre que rejeitou o seu nome, ela passou a ser chamada – nãocomeçoucomofutebol,mascomohandebol.“Eu descobri esse esporte no curso, antes nem sabia o que era”. Ao conhecê-la, o técnico da faculdade anunciou: “Você vai ser goleira”. A culpa, inicialmente, foi do 1,75 m de altura, 15 cm acima da média da mulher brasileira. “O treinador disse: ‘Você é espevitada, magra e alta, vai para o gol’. Pronto. Comecei como goleira no handebol”. Atuouemseleçõesuniversitáriasatéofimdocurso, quando foi chamada para jogar no Rio de Janeiro. “Já pensou? Aquela pessoinha lá do interior indo para o Rio? E lá fiquei por 35 anos”. Em 1983, viajou para Buenos Aires, Argentina, quando foi campeã pela seleção brasileira de handebol, onde ficou até 1989 – na época, aproveitava as horinhas de sossego para jogar futebol. Começou na areia, no Esporte Clube Radar, da capital fluminense. Entre as poucas fotos do pas-

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ARQUIVO PESSOAL

sado que trouxe na mudança para Salvador, mostra uma em que carrega a taça que conquistou no time. De 1990 a 1992, quando ainda estava na seleção, também jogou no Vasco. Do período em que jogou os dois esportes ao mesmo tempo, guarda a confusão que era trocar um gol pelo outro. “No handebol não podia pular, no futebol eu precisava pular. Era uma maluquice”, brinca. Na praia, as meninas do Radar faziam sucesso – muitos banhistas davam as costas para o mar para assisti-las jogar. “Era uma festa, tinha torcida, muita gente chegava junto, ficava ali até o fim”. Mas, como em todo lugar, especialmente nos espaços ditos masculinos, é comum aparecerem uns maus espíritos determinados a estragar a folia. “Tinham uns que jogavam areia na gente, gritavam para a gente ir lavar louça, que ali não era o nosso lugar, mas isso nunca nos desmotivou. O que a gente fazia era muito mais importante”, relembra. Suzy de Oliveira, 51, que jogou na defesa na seleção junto com Meg, confirma: “Todas nós já passamos por isso. No Brasil, ainda se ouve que futebol é para homens. Antes era pior. Para mudar, é preciso tempo e formação, é uma longa história de preconceitos”.

ATLANTA Quando fez a primeira viagem internacional para jogar futebol, em 1988, Meg planejava deixar o esporte de lado. A convocação foi uma surpresa, mas daquelas não desejadas. O destino, China. “Fui convocada pela Confederação Brasileira de Futebol para um torneio, que seria um treino para o Mundial de 1991, o primeiro oficial”. Voltada inteiramente para o handebol, ela pediu dispensa. “Estava treinando para a Copa da Bulgária de Handebol, não queria me distrair”. Acabou que foi para a disputa, mas com a ideia de que aquela seria a sua última atuação no esporte – até parece. Dois anos depois, foi convocada para o primeiro Mundial e, depois, para o segundo, na Suécia, em 1995. Dessa vez, veio junto uma promessa: “Disseram que aquela Copa era a classificatória para as Olimpíadas em Atlanta, nos Estados Unidos. Para fazer parte, eu precisaria me apresentar para ir treinando. Eu aceitei, é claro”. E assim foi feito. No ano seguinte, aos 40, Meg foi chamada para os Jogos Olímpicos de 1996. “O treinador mandou eu me cuidar, ficar em forma, e eu fiz isso. Quem não quer ir para uma Olimpíada?”. Sem esconder o apego, lembra de cada uma das integrantes do time que diz inesquecível: Marisa, Suzy, Fanta, Elane, Márcia Taffarel, Formiga – jogadora do Paris

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Amistoso contra o Canadá nos EUA, em preparação para as Olimpíadas de Atlanta

Saint-Germain –, Sissi (Nenê), Sônia (Michael Jackson), Pretinha e Roseli. PerderamasemifinalcontraaChinaeoterceirolugarcontraaNoruega.“OBrasil,mesmo sem apoio, diga-se de passagem, conseguiu o quarto lugar. Na semifinal, a sete minutos de terminar o jogo, a China virou. Foi emocionante, porque a gente sabia que tinha talento”. Em relação à falta de apoio, como se cansada de repetir o óbvio, fala sobre a inexistência de patrocínio: “As meninas não podiam jogar o ano inteiro, e nem vamos falar em remuneração. Se hoje é difícil, antes… Fomos pioneiras, abrimos portas, o que é sempre uma luta”. Fora do Brasil, as moças têm outra sorte. “Nos EstadosUnidos existem ligas profissionais. Na Alemanha, elas não precisam sair do país para jogar, lá encontram patrocínio da Mercedes-Benz, Adidas… As nossas atletas com talento estão todas nesses lugares, porque aqui não há espaço. Marta saiu daqui novinha e nunca mais voltou, nem vai voltar. Agora está nos Estados Unidos. O que ela viria fazer aqui?”.

O PAÍS DO FUTEBOL MASCULINO A ex-jogadora do Flamengo de Feira, Dilma Mendes, 55, hoje professora numa escolinha de futebol em Camaçari, recorda os dias em que jogou contra Meg pelo Brasil afora. Como técnica, garante, “há garotas muito boas, mas Meg sempre será a nossa referência”. Costuma se encher de alegria quando uma aluna escolhe ir para o gol, posição pouco atrativa para as crianças. “Ninguém quer ser goleiro, todos querem ser Neymar, Messi e Cristiano Ronaldo. É por isso que é importante


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divulgar Meg, incentivar as meninas a gostarem desse nosso esporte”, opina. Além de colega de profissão, Dilma conta ser uma grande admiradora de Meg. Até hoje, guarda o antigoálbumdefigurinhasdefutebolfemininoelembra que costumava celebrar as que vinham com o rosto da goleira (um adendo: admito que, nessa fase, o que mais me pegou foi a existência de um álbum de futebol feminino). “Tinha álbum, sim! Eu catava logo a figurinha dela, era muito fã, ela é uma jogadora de muita técnica”. Mesmo com tanta bagagem, o futebol nunca botou comida na mesa de Meg – e, ela afirma, de nenhuma das jogadoras do tempo em que estava na seleção. Também formada em fisioterapia, era um emprego trivial, na prefeitura do Rio, que garantia o seu sustento. Enquanto os homens ganhavam – e continuam a ganhar – milhões para jogar, as mulheres, diz ela, mal eram vistas como profissionais. “Não dava para viver dessa profissão, tínhamos que fazer outra coisa. Como formar uma profissional assim? As meninas só podiam treinar nas horas livres”, lamenta.

Suzy e Meg jogaram na primeira seleção brasileira de futebol feminino

A falta de reconhecimento nunca fez, lembra Meg, com que qualquer uma das mulheres jogasse menos. “Alguns jogadores masculinos, quando querem derrubar um técnico, não jogam bem, conseguem derrubar. Percebo que hoje, com os atletas valendomilhões,ointeressedequemjogamuitasvezespodeserapenasfinanceiro”. Mostra dois dedos da mão direita lesionados durante partidas e lembra como foram quebrados. “Senti dor, mas a gente nunca quer deixar o campo”. Da comissão técnica do Vasco, da qual foi membro entre 1999 a 2004, lembra muito bem o dia da chegada de Marta ao clube, “magrelinha e desengonçada”. “Quando ela começou a jogar, ficamos de boca aberta, foi um choque ver o que ela podia fazer”. Lembra também, menos festiva, do que um colega comentou sobre a atuação da atacante: “Se fosse um homem, a gente estava feita”. Há sete anos, depois de trabalhar como comentarista esportiva, professora de educação física em escolas públicas e particulares e de se aposentar na prefeitura, Meg veio para a Bahia. A ideia era descansar do Rio e, comenta, tem conseguido. No apartamento em que mora no Rio Vermelho, além das fotos dos tempos de jogadora,elanãotemumabola–instrumentodetrabalhotãoqueridonopassado. “Eu até gosto de brincar, mas jogar, não mais. Agora eu acompanho pela televisão, mas é cada vexame”, diz, referindo-se à Copa do Mundo de 2018. De volta à saga do batismo com o padre, ela conclui que, mesmo que se chamasse Margarida, provavelmente terminaria com o mesmo apelido. “Teve gente quejámechamoudeMargaridaachandoeraomeunome,éumapelidoqueseusa para os dois”. Seja Margarete, fosse Margarida. No final, sempre será Meg. «

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