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Ex-estudante de engenharia, José Angel pretende fazer psicologia

Bem-vindos Texto BRUNA CASTELO BRANCO editoria.muito03@grupoatarde.com.br Foto RAPHAEL MÜLLER editoria.fotografia06@grupoatarde.com.br

Com a crise política e econômica pondo em risco direitos fundamentais dos venezuelanos, a Bahia é um dos destinos de programa federal para os que tentam recomeçar

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esus*, 46, não esquece o dia em que, sem que ninguém lhe obrigasse, abandonou a própria casa, em Caracas, junto com Nellys, a esposa, e o filho de 12 anos, Cheyderfer, e dormiu na rua. Diz que já é acostumado a chorar. Difícil mesmo foi ver o menino e Nellys, que custa a se abater, chorando também. Naquela semana de agosto, atravessaram a fronteira da Venezuela com o Brasil, em Roraima, por três dias seguidos. “Passávamos o dia vendo a documentação, conversando com a polícia para poder ficar aqui”, lembra Jesus. Por segurança, não podiam passar a noite nas ruas de Pacaraima, cidade brasileira mais perto da fronteira. Uma semana antes, em 18 do mesmo mês, brasileiros queimaram os acampamentos, roupas e documentos dos imigrantes que ocupavam as ruas do município de 12 mil habitantes. Aos gritos, 1.200 pessoas foram expulsas do Brasil. Mesmo depois do conflito, a Polícia Federal estima que 600 venezuelanos passam pela mesma fronteira todos os dias atualmente. Este ano, segundo o Alto Comissariado das Nações UnidasparaosRefugiados(Acnur),205.808venezuelanos solicitaram refúgio em toda parte do mundo. Mesmo que 2018 pareça o ano da crise, ela começou a se desenhar em 2014, com a queda do preço do petróleo, que corresponde a 96% das exportações. Naquele ano, o barril, que era vendido a US$ 100 dólares, passou a valer a metade. Num país que pouco produz, a dependência das importações esvaziou os supermercados. Não se encontram itens de higiene pessoal, remédios ou comida. De acordo com a Organização Internacional para as Migrações, ligada à Organização das Nações Unidas (ONU), em 2017, a fome fez a população perder, em média, 11 kg. Mesmo sem conhecer o idioma e, no início, não saber como viver no país novo, Nellys, 43, pensa que ficar na Venezuela era a escolha mais arriscada. Entre os 2,3 milhões de pessoas que, segundo a ONU, deixaram o país estão médicos, enfermeiros, pesquisadores e professores, todos em fuga das crises política, econômica e social. Um levantamento da UniversidadeCatólicaAndrésBelloatestaqueoíndicedepessoas na linha da pobreza, ou seja, que não têm condições de comprar a cesta básica, chegou a 87% em 2017 – 21,6milhõesdehabitantes.Desses,61%vivemnapobreza extrema. Nos últimos meses na Venezuela, Nellys passou a enfrentar filas cada vez maiores para conseguir o remédio de hipertensão de que precisa – até que não conseguiu mais. A decisão de emigrar, conta Jesus, foi definitivamente tomada quando a família recebeu a

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notícia de que Cheyderfer precisaria de uma cirurgia no coração. “Foi pelo meu filho, pelo dia de amanhã. A Venezuela está muito dolorida”, lamenta ele. Depois de um mês e meio num abrigo em Boa Vista, capital de Roraima, Jesus foi selecionado para uma vaga de emprego em Salvador. Junto a outras 27 pessoas, a família fez parte da 14ª etapa do processo de interiorização, coordenado pelo Ministério da Defesa, Forças Armadas e, nessa fase, em parceria com a Associação Voluntários para o Serviço Internacional – Brasil (AVSI). A Bahia é o primeiro estado a participar da nova modalidade do programa que leva os imigrantes para outras partes do Brasil já com a possibilidade de emprego. Em outubro, cinco venezuelanos, incluindo Jesus, Nellys e Cheyderfer, vieram para Salvador. Outros 25 foram para Alagoinhas. De abril para cá, afirma o major Eduardo Milanez, porta-voz da Operação Acolhida, mais de três mil imigrantes se mudaram de Roraima para outros estados brasileiros – e a meta é, até abril de 2019, interiorizar 700 venezuelanos por mês. Há quatro anos, a família nem pensava em emigrar. Sair tornou-se uma ideia depois que a empresa de conserto de eletrodomésticos de Jesus foi saqueada. Mesmo sem ferramentas, preferiu não desistir. Pouco a pouco, comprou novos

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Família de Jesus remonta na nova casa memórias da vida na Venezuela

equipamentos e entrou na instabilidade da vida do trabalhador autônomo. Mas, com uma inflação de 25.000%, não havia mais quem lhe pagasse. “Eu trabalhavacomempresasgrandes,maselascomeçaram a falir, então não tinha mais quem me contratasse”. Nellys, cozinheira, também não tinha mais onde cozinhar – e nem o quê. “Os restaurantes fecharam, não tinha cliente nem comida para fazer”. O dinheiro que ganhavam não era o suficiente para comer. E, ainda que fosse, a comida era racionada. Para entrar nos mercados, Nellys esperava numa fila de quatro a cinco horas. No fim, se sobrasse, voltava para casa com dois pães. Hoje, o salário mínimo do país é de 1.800 bolívares soberanos, cerca de R$ 125. Numa nação faminta, a violência, de acordo com o Observatório Venezuelano de Violência (OVV), está 15 vezes acima da média mundial, com uma taxa de


89 homicídios a cada 100 mil habitantes. Nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, são 45 assassinatos a cada 100 mil pessoas. Mesmo sem pretensão de voltar, Jesus mostra com tristeza uma foto do que sobrou da casa em que vivia. “É tudo o que construímos com muito trabalho, com sacrifício, e não tem mais nada. Deixei uma casa na Venezuela, mas a casa já não está lá”. Todos os móveis, eletrodomésticos, telhas e até partes das paredes foram roubadas. Quem mandou a imagem foi a mãe de Jesus, que continua por lá. Por hora, ele ajuda a família com parte do salário que ganha aqui. Quando pensa no futuro, fala da saúde do filho. A cirurgia de coração já está sendo arranjada, e, com gosto, celebra a nova vida no Brasil. “Viemos para seguir adiante. A melhor forma de agradecer é trabalhando bem”.

SILÊNCIO É preciso coragem para, aos 21 anos, deixar a família e tomar um rumo incerto. José Angel saiu de Carúpano, na costa nordeste da Venezuela, e chegou a Boa Vista com um tio e um primo. Passou dois meses num abrigo até conseguir um trabalho aqui, na área de marketing digital. Guarda lembranças de uma infância florida,

Nellys enfrentou filas de até cinco horas para conseguir dois pães

diferente da vivida pelas crianças venezuelanas de hoje: “Aspessoas saíam, iam afestas, praias,passeavam pelas ruas”. Assim como muitos dos que saíram, não pensa em voltar. Considerou ir ao Peru, onde tem familiares, mas a dificuldade de chegar o impediu. “Vir para o Brasil é mais fácil, mais perto, e também não é muito burocrático para conseguir a documentação, não exige passaporte como o Peru e outros países”. Atualmente, de acordo com dados do Acnur, a Colômbia é o país com o maior número de venezuelanos acolhidos, com 870 mil pessoas. No Brasil, vivem 85.268 nativos da Venezuela. Em Salvador, são cerca de 100. José assistiu à universidade em que estudava engenharia de informática fechar as portas, se acabar, junto com o plano de se formar. Não lembra bem como aconteceu, mas sabe que foi devagar, silencioso.

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Com asaída de grande parte dosalunose professores, não tinha quem ministrasse ou frequentasse as aulas. “Muitosabandonaramosestudosporquenãotinham mais condições financeiras e precisavam trabalhar”. E só mesmo a crise migratória para silenciar a universidade. Antes, quando as aulas ainda aconteciam, garante que os alunos não se sentiam intimidados. “As manifestações de rua eram violentas, tinha repressão, mas na universidade não. No campus, se falava bem e mal de Maduro, tinha liberdade”. Há quatro ou cinco anos, José era um jovem de classe média-alta. A família tinha empresas, casa na Espanha e parentes em Miami. “Com essa situação, perdemos todas as possibilidades de comprar. Mas, diferentemente de muitos na Venezuela, não precisamos viver na rua ou passar por situações perigosas”. Além de estudante de engenharia, ele era youtuber. Desde que saiu de casa, deu um tempo nas filmagens, mas garante que não por muito tempo – só o que for necessário para aprender o novo idioma e arranjar uma câmera melhor do que a do celular. “Era impossível viver uma vida cômoda, mas, graças a Deus, nunca deixei de ter um prato de comida em casa”. É curioso o jeito que encontra para ilustrar o tamanho da crise: com o dinheiro que tinha, não dava para comprar camisas, sapatos, nem mesmo o sanduíche mais simplinho do McDonald’s. “Com o salário todo, só dava para comprar um ou dois pães e uma carrera de ovos”. Na cidade em que morava, andar na rua à noite já não era mais uma opção. Se saísse com celular, era sabendo que seria roubado. Mesmo antes de a crise apertar, lembra, a criminalidade subia. Planejava terminar a faculdade e sair da Venezuela. Equemdiriaque,todomês,Joséprecisariamandar dinheiro para ajudar a família. Em Salvador, já corre atrás de voltar a estudar. Não engenharia de informática, mas o que sempre quis, psicologia. “Só estudei engenharia porque não tinha o curso que eu queria onde morava”, brinca. Espera um dia poder voltar ao país onde nasceu, reencontrar a família, os amigos e as praias Carúpano, que lembram as soteropolitanas. Mas endossa: por enquanto, só vai de visita.

CACHAPAS Um tanto mais adiante, em Alagoinhas, a 124 quilômetros de Salvador, Aviletzi, 34, o marido e os três filhos compartilham um prédio de dois andares com duas famílias de venezuelanos. No município de 122 mil habitantes, alguns dos 25 imigrantes – entre eles, o marido de Aviletzi – trabalham numa fábrica de bebidas. As famílias ainda desempregadas são mantidas pela AVSI, que irá custeá-las por três meses. “Es-

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Aviletzi mora com a família em Alagoinhas: “Aqui as pessoas são muito amáveis”

tamos tentando articular novas oportunidades para a inserção no mercado de trabalho, pois acreditamos que a real integração implica uma forte ligação com o trabalho formal”, diz Fabrizio Pellicelli, presidente da ONG no Brasil. O menino mais velho, Anthonny, 13, desenhava os retratos dos amigos por algumas moedas na escola da cidade de Anzoareguis, onde morava. Jura que levava o dinheiro para ajudar em casa – até que foi perdendo compradores. Conta, num português já muito bom, que muitos tiveram que abandonar a escola por falta da mesma quantidade de moedas. “Não tinha dinheiro para ônibus, comprar um lápis, caderno, farda. A escola deixou a gente usar a farda antiga porque ninguém tinha como comprar”. Mas, ali, naquela casa, ninguém deixa a escola. Os três irmãos foram às aulas até junho deste ano, quando saíram da Venezuela. Anthonny lembra dos amigos emigrados antes dele, que ainda não conseguiu reencontrar. “Sinto falta, mas pelo menos temos Facebook!”. Quando lembra do país natal, a família lembra da fome. Por falta de comida,


Aviletzi perdeu 30 kg em três meses. Trabalhava fazendo roupinhas e bijuterias para meninas. “Onde eu morava, tinha que dormir de dois a três dias na porta do mercado para conseguir comprar alguma coisa, no máximo quatro coisas, um arroz, um macarrão, um açúcar… Não podia comprar frango, era muito custoso”. Tem saudade da gastronomia e mais ainda da época em que podia cozinhar algo, especialmente as cachapas, que lembram panquecas. “Muitos ingredientes não existem em Alagoinhas. Em Roraima tem bastante, venezuelanos comercializam por lá”. Aqui, o menino voltou a sonhar com a arte. “Quero colocá-lo numa aula de desenho”, anuncia a mãe, cheia de orgulho. Nos meses que passaram em Boa Vista, o futuro parecia mais uma ideia distante. Antes de conseguirem vaga num abrigo, dormiram nas ruas da capital por “um mês e 19 dias”, contou Aviletzi. E, lá, viram de tudo. “Muitos brasileiros nos discriminavam. Aqui, em Alagoinhas, não, as pessoas são muito amáveis, atentas. Mas, em Roraima, foi muito forte. Jogavam os carros em cima de nós, tratavam mal. Eu não sabia se queria ficar, sentia muito medo daqueles brasileiros”, narra a matriarca. Das lembranças mais feias, fala de quando tentaram pegar as suas filhas. “Pediram para levar! Para que eudesseasminhas filhas, nãoseiparaquê,nunca vou entender”. Hoje, de acordo com a Polícia Federal, 1.500 imigrantes vivem nas ruas de Roraima. Na porta de casa, o tapetinho de boas-vindas marca a vontade da família de ficar. Não só ficar, mas baixar a guarda, se integrar e viver uma vida diferente. No ano que vem, promete Aviletzi, Anthonny e as duas irmãs estarão na escola. E, dessa vez, não vão faltar materiais didáticos e novas fardas.

Yerili veio grávida para o Brasil com a família e, em Roraima, deu à luz Jesus

em que nasceram, só sentem falta da família e dos amigos que não puderam sair. “Agora estamos aqui, temos tudo aqui, uma nova chance de viver”, diz Carlos. Naquela manhã de sexta-feira, não encontramos o marido de Yerili. Há pouco, ele havia saído de casa para uma entrevista de emprego. Empolgada, ela diz que planeja retomar o trabalho de manicure, ofício que praticava na Venezuela. Até então, não ouviram falar de brasileiros contrários à permanência deles por aqui, masooposto.“Encontramosalgoqueestádesaparecendononossopaís,porcausa da pobreza, da fome: pessoas receptivas e amáveis”, diz Carlos. Os próximos passos ainda são incertos, mas não falta fé. Todos os dias, Carlos sai em busca de trabalho, qualquer que seja. “Faço de tudo, capinei lá em Roraima, tenho força e vontade de trabalhar aqui”. E a maior das esperanças Yerili carrega no braço. O bebê que, sem saber, lhe deu razão para atravessar a fronteira. Nesses tempos tão duros, é difícil acreditar que Deus seja mesmo brasileiro. Mas, Jesus, é. « *Sobrenomes ocultados por recomendação da AVSI

FOTOS: JOÁ SOUZA / AG. A TARDE

MENINO JESUS Yerili,31anos,atravessouafronteiracomumabarriga de sete meses. Teve medo, mas achava que não poderia ser pior do que parir na Venezuela. Junto da família, decidiu que daria à luz no Brasil. Depois de viver na rua por uma semana em Boa Vista, Yerili, pai, mãe, irmão, marido e filha fizeram o caminho de quase todos que chegaram ao Norte do Brasil: foram encaminhados a um abrigo. Ela teve um menino, Jesus, numa maternidade da cidade. “A gente teve medo de sair do país, mas era melhor dormir na rua do que ficar na Venezuela”, diz ela. Mais do que nunca, procura emprego. De cara, Carlos, 69, pai de Yerili, diz que ali não se fala de política. “Esse assunto não nos interessa, já passou”, conclui. Em Alagoinhas, tão longe de Monaras, de onde vieram, o passado morreu. Da terra

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