Uma Chama Intensa

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Uma chama

intensa Texto BRUNA CASTELO BRANCO editoria.muito03@grupoatarde.com.br Foto RAPHAEL MÜLLER editoria.fotografia06@grupoatarde.com.br

Os percursos criativos da dançarina e coreógrafa baiana Carmen Paternostro, diretora de mais de 40 espetáculos, sempre marcados pelo diálogo artístico com diversas culturas

Carmen é a atual diretora da Escola de Dança da Ufba

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izem por aí que cada corpo é uma casa. Se for, a casa de Carmen Paternostro dança, rodopia, faz arte. Quando ainda era menina, lá com os seus 16 anos, não imaginava que tocaria a vida – e as plateias – como dançarina, coreógrafa, diretora de mais de 40 espetáculos, pesquisadora e professora da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Naquela época, sequer sabia dançar. O começo foi uma coincidência. Numa consulta de rotina, o médico decidiu que já era hora para ela começar a fazer algum exercício. Sem pensar muito, Carmen escolheu a dança. E, talvez por outra coincidência, era a coreógrafa Lia Robatto quem dava os cursos livres de dança na Escola de Dança da Ufba naqueles dias.“Eumeinscreviparafazerumteste.Chegandolá, elapediuqueeudançassecomoumelemento.Escolhi dançar como uma chama. Mas eu estava muito nervosa, não conseguia ouvir tudo o que ela dizia. Ela disse que, quando eu quisesse parar, era só parar que a música iria parar de tocar. Eu não entendi. E aí comecei a dançar, mas não parei”. Não parou até ir ao chão. E, lembra: naquele dia conheceu a liberdade. “Aquela dança, aquela música… Foi muita adrenalina, eu me surpreendi comigo mesma. Nem eu imaginava que me entregaria daquele jeito”, lembra. Apegou-se às aulas, à dança, à arte, e percebeu que este seria o seu ofício. Logo, decidiu graduar-se em dança. Naquela época, lápelosanos1970,nãoerafácil ser artista – “não que hoje seja”, diz Carmen. Em tempos de ditadura, não se podia canalizar toda a criatividade para a elaboração de textos, de danças, de performances. Tinha que se pensar também em modos de enganar os censores. “Eles assistiam a um ou dois ensaios para ver como seria o espetáculo. Quando eles iam, a gente cortava alguma parte que eles poderiam não entender bem. Depois, ensaiávamos com o texto real”. Entre os militares, diz ela, essa tática era conhecida como “manobra de distração”. (Guarde este termo. Logo voltaremos a ele). Mas ela deu conta. Não teve censura capaz de fazê-la largar os palcos. “A minha geração precisou aprender a lidar com isso, a lidar com a censura, com o diferente. Por isso somos uma geração tão criativa“, diz a artista. A atriz Rita Assemany, que trabalhou com Carmen na década de 1990, no espetáculo Dendê e Dengo, com texto de Aninha Franco, endossa essa percepção. “Com ela, aprendi a cor, o peso, o ritmo das sílabas, das palavras. Carmen, a dançarina, me ensinou a dan-

ARQUIVO PESSOAL


ADENOR GONDIM / ARQUIVO A TARDE

Acima, montagem de Os Negros, de Jean Genet; à esquerda, Carmen Paternostro com o grupo Intercena

MARIA SAMPAIO / ARQUIVO A TARDE

Ao lado, cenas dos espetáculos Dendê e Dengo e Merlin ou A Terra Deserta

çar com as palavras de um texto de teatro. Uma delicadeza rara”. Depois de formada, já como uma bailarina diplomada, fez uma viagem profissional pela Europa, onde trabalhou, pulando de país em país, como dançarina e professora de dança. Na volta, entrou na residência artística do Goethe-Institut Salvador, dirigido por Roland Schaffner, que logo se tornou amigo, namorado e, anos mais tarde, marido de Carmen. Na época, em 1976, ela criou o grupo Intercena, que unia dança, teatro e música. “Na residência, com pessoas de países diferentes, foi uma época muito importante, de muita criação. Quem passasse por ali e quisesse fazer a residência era acolhido”. Foi lá que conheceu o diretor teatral argentino Alberto Ure, que chegou aqui fugido da ditadura do país vizinho. Ele, um especialista em todo tipo de manobras de distração, “já que era o único meio de sobreviver”, destaca Carmen, dirigiu um espetáculo com esse nome. Nos ensaios, propôs aos atores um desafio, de início, um tanto esquisito: recitar uma história de criança. Na segunda rodada, deveriam repetir as palavras, só que sob tortura. “Ele dizia: ‘Fale de novo, mas agora como se alguém estivesse puxando a sua orelha. Depois, puxando o nariz, a perna, os braços’. E assim fizemos”. E era esse o espetáculo. Nas noites de apresentação, em 1977, os rostos confusos do público chegavam até a ser engraçados. “Ninguém entendia aquela maluquice”, brinca ela. “Era uma forma de mostrar que, nas torturas, não importava o que você dissesse. Às vezes, não se tinha o que dizer, e aí se dizia qualquer coisa, só porque era preciso falar. Como recitar uma historinha infantil qualquer”. Eraprecisotantoesforçoecontrolecorporalqueaté os crossfiteiros mais devotados sentiriam uma pon-

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tinha de inveja. “Nós sempre terminávamos a noite cheios de dores, era muito pesado“, lembra. E não é que o médico que a prescreveu a dança como exercício estava certo?

RESPIRAR Antes de fazer qualquer coisa, Carmen para, se integra ao silêncio, aquieta-se. Foi assim antes desta entrevista, ela conta, e é sempre que sente a necessidade de se reconectar às raízes. Nascida na cidadezinha de Belmonte, no sul da Bahia, ela se afeiçoou aos vazios. “A minha infância teve muito disto de estar no mato, de ter sempre um lugarzinho calmo para ir, de poder respirar”. Saber respirar, dizem, é o segredo de todo bom bailarino. Mas, ainda na década de 1970, Carmen era toda agitação. Sem muito pensar, aceitou o convite de Roland Schaffner e foi para a Índia. Lá, morou por quatro anos. E criou muito. De 1979 a 1981, fundou e esteve à frente do Grupo Calcutta Dance Theatre. “Eu levei para lá muito da dança africana, que era chamada de dança folclórica. Tenho a pele mais clara, mas sempre fui ligada à dança negra, aos rituais”. Na Índia, ficou famosa pelas aulas de “dança ocidental”, como chamavam os locais. “Foi muito legal essa mistura. Uma vez, fiz um duo com uma artista indiana. Dancei xaxado, vestindo os sinos de uma dança tradicional de lá”. A vontade de unir culturas marca o trabalho dela. O ator e jornalista Geraldo de Aragão, que atuou em Merlin ou A Terra Deserta, encenada em 1993, nota o quanto esses passeios pelo mundo foram necessários. “Em Merlin, por exemplo, tínhamos coreografias com características afro-brasileiras, indianas, alemãs… Ela tem essa vontade de compartilhar conhecimentos, é bem clara a influência dessas outras culturas”, comenta ele. E as viagens não pararam por aí – e que bom que não. Depois da Índia, foi direto para Belo Horizonte, sempre junto de Schaffner. Lá, na capital de Minas Gerais, tem o orgulho de dizer que deixou um legado. Em 1983, criou o Grupo Pagu Teatro Dança e colaborou com a Fundação Clóvis Salgado. Aliás, firmou tanto o nome em Minas que passou a ser tomada por mineira. “Muita gente aqui em Salvador não sabe que sou baiana. Passei tanto tempo e fiz tanta coisa

«Com ela, aprendi a cor, o peso, o ritmo das sílabas, das palavras. Carmen, a dançarina, me ensinou a dançar com as palavras de um texto de teatro» RITA ASSEMANY, atriz

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em Belo Horizonte que acham que sou mineira”. Mas, uma boa filha sempre retorna à casa. Em Salvador, na década de 1990, Carmen viveu um dos momentos mais vívidos da carreira. Em pouco tempo, estreouDendêeDengo,umafagonacidade daqualsentia tanta falta; também dirigiu e coreografou uma releitura de Merlin, montagem que considera a mais desafiadora até hoje. “Foram oito meses de ensaios. Durante todo esse tempo, os atores foram pagos. Isso é e sempre foi uma coisa muito rara”, afirma Geraldo. Nessetempodedicadoexclusivamenteàarte,“que nunca deu muito dinheiro”, brinca ela, recebeu todo o apoio e cuidado do marido. “Ele me apoiou em tudo, disse para eu me dedicar a isso, me concentrar no meu trabalho artístico. Num Brasil que investe pouco nas artes, com certeza ele foi o meu maior mecenas”. Ao fim desses anos intensos, decidiu, finalmente, pararumpouco.Soubeahoradevoltarrespirar,como fazem as melhores bailarinas. Em 2007, voltou ao início: ao lugar que visitou pela primeira vez aos 16 anos, só por recomendação médica. Emendou o mestrado com o doutorado e, em 2011, já tinha a tese pronta. Estudou a dança expressionista alemã, para onde viajou durante o doutorado. A tese, depois, virou um livro, Da Dança Expressionista Ao Teatro Coreográfico Alemanha e Bahia, publicado pela Edufba. Antes, já havia escrito duas obras sobre o tema. Pouco depois, em 2016, dirigiu Narcissus, seu espetáculo mais recente, sobre tecnologia e exibicionismo. “Fala sobre não conseguir respirar nesse mundo em que tudo acontece muito rápido”. E conta um segredo: planeja reencenar a peça. Se comparar com quando começou, os principais desafios para se fazer teatro, hoje, segundo Carmen, envolvem dinheiro. “O custo para manter os atores é mais alto, e é justo. Nos anos 1970 não tinha cachê, só passou a ter algumas décadas depois”. E também tem os teatros, que cobram para sediar as peças. “A gente passa oito, nove meses ensaiando, produzindo, mas o espetáculo acaba tendo uma carreira curta”. Este ano, ela assume a diretoria da Escola de Dança da UFBa. Para ela, um lugar tão casa quanto o próprio corpo. Diz que, por enquanto, só pensa em concluir e estrear um único espetáculo: as obras da Escola, em andamento há mais de 10 anos. “Por enquanto, é esse espetáculo que eu vou dirigir”. Se cada corpo é uma casa, Carmen mora num museu. Cada obra realizada traz uma história. Para o professor e dançarino Antrifo Sanches, pensar na arte dela é pensar naquilo que não se consegue repetir. “Ela me trouxe imagens que nunca mais vou esquecer”. «

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