Design & Identidade

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“As letras têm alma. Sentem. Palpitam. Estão vivas, porque nós, quando as desenhamos, escrevemos ou lemos, lhes damos alento. Pobre do designer que pense que as letras são coisas mortas! Se aceitarmos esta metáfora, todos os signos de escrita da história humana sentem verdadeiramente o instinto da rebelião.“ COSTA, JOAN 3



DESIGN & IDENTIDADE BRUNO ALMEIDA



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PREFÁCIO BRUNO ALMEIDA

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O ESTADO DO DESIGN JOSÉ BÁRTOLO

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A IGREJA SIZA VIERA

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HISTÓRIA DO CINEMA PORTUGUÊS ALVES COSTA

ANO ZERO PARA O DESIGN HEITOR ALVELOS

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MANUEL DE OLIVEIRA ALVES COSTA

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THERE IS SUCH A THING AS SOCIETY ANDREW HOWARD

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AULA MIGUEL CARVALHAIS

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PARA QUE SERVE O DESIGN GRÁFICO? ALICE TWEMLOW


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DINO DOS SANTOS

ARQUITECTURA RECOMBINANTE BENJAMIM BRATTON

TIPOGRAFICAMENTE

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ARTE CAPITAL

AS CORES DA COR CRISTINA PINHEIRO

ANDREW HOWARD 165

O TREINO FERNANDO JOSÉ PEREIRA

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DESIGN E EMOÇÃO EDUARDO AIRES

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PROJECTOS, ESPAÇOS, VIVÊNCIAS R2

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CONVERGÊNCIA ENTRE SONS E IMAGENS LUISA RIBAS

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O CIRURGIÃO INGLÊS EDUARDO CÔRTE-REAL


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FRANCISCO PROVIDÊNCIA CADERNOS DO DESIGN

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DESIGN E IDENTIDADE ANA RUTH CESÁRIO & SUSANA FERREIRA

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MOLDANDO AS COISAS MIGUEL CARVALHAIS

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SOBRE PLASTICIDADE MIGUEL LEAL

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MODINHAS MÁRIO MOURA


TÍTULO DESIGN & IDENTIDADE PESQUISA BRUNO ALMEIDA 1ª EDIÇÃO PORTO, ABRIL 2010 PUBLICADO POR BRUNO ALMEIDA MORADA RUA FONTE DE BAIXO, 4505-686 CALDAS DE SÃO JORGE ORIENTAÇÃO RUI MENDONÇA TRABALHO REALIZADO NO ÂMBITO DA DISCIPLINA DESIGN II, FBAUP WEBSITE WWW.BRUNOALMEIDADESIGN.PT.VU wEMAIL BRUNOALMEIDADESIGN@GMAIL.COM DESIGN GRÁFICO BRUNO ALMEIDA IMPRESSÃO NORCÓPIA TIRAGEM 1 EXEMPLAR


PREFÁCIO

BRUNO ALMEIDA 2010

Nascido a vinte e quatro de agosto do mil novecentos e oitenta e nove, na pacata freguesia de Caldas de São Jorge, eu, Bruno Filipe Pereira de Almeida, filho de Fernando Gomes de Almeida e Maria Magalhães Pereira, venho por este meio tornar pública uma obra que me caracteriza, quer do ponto de vista pessoal, quer do ponto de vista existencial. Nesta espécie de auto-caracterização textual, procurei reunir uma basta colectânea de textos, de diferentes temas e autores nos quais estivessem patentes algumas das premissas pelas quais diariamente me guio. Neste contexto surge”Design & Identidade. Design – o termo deriva, originalmente, de designare, palavra em latim, sendo mais tarde adaptado para o inglês design. Denomina-se design qualquer processo técnico e criativo relacionado à configuração, concepção, elaboração e especificação de um artefato. Esse processo normalmente é orientado por uma intenção ou objetivo, ou para a solução de um problema. Identidade – é o conjunto de caracteres próprios e exclusivos com os quais se podem diferenciar pessoas, animais, plantas e objetos inanimados uns dos outros, quer diante do conjunto das diversidades, quer ante seus semelhantes. Ao longo da obra serão abordadas diversas questões directa ou inderectamente ligadas ao Design, uma vez que essa é uma das áreas pela qual me interesso mais afincadamente.

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O ESTADO DO DESIGN

REFLEXÕES SOBRE TEORIA DO DESIGN EM PORTUGAL JOSÉ BÁRTOLO 2006

UM

A introdução do design em Portugal e, bem vistas as coisas, a sua gradual consolidação faz-se a pretexto de outra coisa, isto é, o design não é afirmado como disciplina autónoma, território definido (ou pelo menos polemicamente definível) considerado em si mesmo, mas como um meio de afirmação de uma outra coisa. Na interessante entrevista que António Sena da Silva deu ao Jornal Expresso em Agosto de 1994 o, então, presidente do Centro Português de Design afirmava que o esforço de afirmação do design nos anos 60 foi desenvolvido assumindo-se o design como “pretexto de interdisciplinaridade”. Um campo interdisciplinar não é uma disciplina, é uma zona de trocas, no interior da qual não se trata de conjugar, nem tão pouco de confrontar disciplinas autónomas, mas de produzir conhecimentos novos a partir dos níveis de organização da estrutura de cada disciplina e do jogo transaccional dos fluxos que as atravessam. Mais, importa lembrar que tratando-se, a interdisciplinaridade, de uma prática flutuante, ela só poderá ser garantida a partir da sólida definição dos campos disciplinares autónomos que, tal prática, irá percorrer.

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O denvolvimento do design a pretexto da introdução de procedimentos interdisciplinares, sendo anterior à clara definição do design enquanto campo disciplinar, não só condiciona essa definição como, definitivamente, fragiliza qualquer experiência interdisciplinar que além ou aquém do design o queira envolver. Os últimos quarenta anos manifestam essa fragilidade de base que condicionou quer o desenvolvimento de práticas sustentadas, quer a construção de uma teoria crítica capaz de pensar o design português. Em relação ao difícil desenvolvimento de práticas sustentadas (expressão que tende para a redundância mas que deveria expressar, muito simplesmente, a existência de uma teoria e de uma prática capazes de autonomizar o design), a resposta procurou ser dada através de uma orientação redutoramente economicista do design, aliás, bem expressa por Sena da Silva e continuada na gestão de José Pedro Martins Barata e de Pedro Brandão. Além do mais, esta politica de mercado que se pretendia orientadora do design, revelava uma absoluta ausência de interdisciplinaridade, na qual o design era quase sempre associado à produção industrial, e, simplistamente, tomado como “alavanca” para a modernização. Em relação à insípida construção de uma plataforma que permitisse a exposição, comunicação e reflexão sobre o design, nenhuma resposta foi sequer esboçada. Na verdade, o desenvolvimento do mercado de design possibilitou o crescimento quantitativo de clientes e estúdios mas o correspondente desenvolvimento de uma prática de projecto integrada não se fazia acompanhar do necessário, desenvolvimento de experiências de projectos menos dependentes do mercado e, por isso, potencialmente mais críticos e criativos, não se fazia acompanhar, também, do desenvolvimento de meios de divulgação e exposição, de espaços e eventos para a discussão do design, de produção teórica sobre a disciplina.

“Se desde o início dos anos 90 se ia afirmando que o design está na moda , se os cursos proliferavam, e o mercado, efectivamente reagia, a verdade é que esse crescimento foi sendo dado de forma desequilibrada.” 2


Se, em consonância com uma maior aposta na formação em design desenvolvida por várias escolas superiores (e aqui encontramos experiências bem sucedidas de ensino privado em Portugal), a partir de meados dos anos 80 foi-se dando a afirmação de uma série de novas empresas (como a Novodesign e a Protodesign), se a comunicação se actualiza e se introduzem novas linguagens (como Cayatte, Jorge Silva ou a Arte Final mas, sobretudo, como Ricardo Mealha ou a Flúor), se manifestam clientes culturais – Gulbenkian, Serralves, Museu do Chiado, Companhia Nacional de Bailado, Moda Lisboa ou Centro Português de Fotografia – que permitem uma outra gestão de clientes capaz de garantir a qualidade das propostas (o trabalho de Sebastião Rodrigues para a Gulbenkian ou, mais recentemente, o de trabalho de Andrew Howard para o CPF e o de João Faria para o Teatro Nacional de S. João são a este título reveladores), se o design se especializa (aparecendo excelentes designers de tipos como Mário Feliciano, Dino Santos ou, recentemente, Ricardo Santos), a verdade é que o enquadramento do design em Portugal continua a manifestar uma incrível pobreza editorial (Os Cadernos do CPD foram sempre vazios, experiências generalistas como a Page de João Tovar acabaram por fracassar, os casos mais interessantes eram experiências demasiado low-budget – como a Bíblia ou a OP – para se não confinarem a franjas muito reduzidas de público), os eventos de design continuam a ser uma raridade (o USER organizado em 2003 pelo CPD confirma-se como excepção na regra de invisibilidade que marca as acções do Centro; as bienais organizadas pela Experimentadesign, marcando definitivamente uma viragem na visibilidade do design em Portugal, surgem muito centralizadas em Lisboa e apresentam essa limitação flagrante de não serem capazes de produzir meios – Catálogos, Publicações críticas, Vídeos – de memória, ficando, assim, cada bienal confinada a um acontecimento trendy e efémero), o design continua a não ter exposição (o Museu do Design do CCB reduz-se a uma colecção de mobiliário dos anos 60/70 útil sobretudo para dar a conhecer as experiências dos radicals; os grandes museus como a Gulbenkain ou Serralves insistem no ignorar do design), tudo isto tem como súmula esperada a inexistência de pensamento teórico sobre o design – o que é, facilmente comprovado, através da ignorância a que as, pouquíssimas, excepções (Andrew Howard, Mário Moura e, numa orientação mais ligada à cibercultura, Bragança de Miranda e Teresa Cruz) são votadas – a inexistência de curadores, de críticos (estranha a ausência de crítica que mereceram as recentes exposições Catalysts e Roma Publications), de escritores e de leitores.

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DOIS

Entre as características que tendemos a atribuir à condição pósmoderna, destaca-se uma erosão acentuada da distinção (e através dela da relação) entre “teoria” e “prática”. O pensamento pós-moderno esforçou-se por nos incutir que toda a teoria é uma prática, que a prática não cessa de ser teorizada e de produzir implicações teóricas, que uma e outra se contaminam até à indistinção. A erosão da distinção entre teoria e prática é, por sua vez, um manifestação sintomática do esbatimento de fronteiras que delineavam disciplinas, práticas e discursos. Deste forma, nos melhores casos, as disciplinas autónomas desterritorializam-se dando lugar a campos interdisciplinares e, nos piores casos, o esbatimento das linhas de definição dá-se mesmo antes dessa definição disciplinar ter ocorrido. Foi, como anotámos, o caso do design em Portugal. 3

Num excelente artigo Nigel Witheley escreve que, se é simplista afirmar que a distinção entre teoria e prática já não existe. Segundo Witheley a relação entre teoria e prática deixa-se, actualmente, traduzir por dois modelos: um modelo de fusão em que os dois pólos são amalgamados, perdendo existência autónoma; e um modelo de continuidade que admite a interpenetração entre teoria e prática mas que admite, também, a existência de objectos e de abordagens específicas de um e de outro pólo. O modelo de fusão, apressadamente adoptado por muitas escolas e autores, não permite o confronto objectivo do designer com as duas exigências-chave que se lhe deveriam colocar: a exigência de uma prática socialmente eficaz e a exigência de uma capacidade de reflexão cultural que lhe permita definir o porquê e o como da sua acção. A exigência de uma definição de competências do designer poucas vezes se colocou entre nós, o que se compreende face à própria indefinição disciplinar a que o design em Portugal está ancorado. Assim, torna-se fundamental a afirmação quer positiva (o esclarecimento das prioridades, do posicionamento social, das possíveis abordagens ideológicas e utópicas do design), quer negativa (através da saudável diferenciação das competências do designer relativamente ao arquitecto, ao engenheiro, ao publicitário, ao marketteer) do espaço próprio que a disciplina ocupa, na certeza de que os valores da disciplina não são alienáveis aos valores dos seus profissionais, ou seja, importa perceber o que o design é e não aquilo que ele vai sendo.

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Certo é que a interrelação crescente entre teoria e prática tem produzido, entre outros, o mérito de fazer passar à história um antiintelectualismo básico que dominava muitas escolas e instituições de design. O design era, então, pensado como uma mera questão de funcionalidade utilitária em relação à qual todo o esforço de conceptualização seria uma perda de tempo. Hoje percebe-se o tempo que se perdeu graças a este pensamento tão redutor. Tal pensamento (apoiado numa interpretação tosca do funcionalismo da Bauhaus) é, segundo Nigel Witheley, a expressão do design formalizado, um dos quatro modelos identificados por este autor. Os outros modelos seriam: o “Designer teorizado”, modelo oposto ao anterior, e onde se procura pensar e orientar o design a partir de autores (Heidegger, Derrida, Foucault) conceitos e modelos que lhe são exteriores, o design é, assim, anulado da sua dimensão prática e teorizado em campo alheio; o “designer politizado”, cujas origens estão das ideias do construtivismo e produtivismo Russo pós-1917, actualizado pelo situacionismo dos anos 60, pela acção directa dos Atelier Populaire ou, nos dias de hoje, dos Adbusters. Pese embora os seus méritos, este modelo apenas será interessante na medida em que preconize uma possibilidade e não a única possibilidade de um designer orientar o seu trabalho; o “designer consumista”, modelo hoje dominante que passa a ideia de que só há design na medida em que há cliente e, que o design é exclusivamente um instrumento do mercado. O lado teórico deste modelo tende a ignorar análises históricas ou ideológicas, substituindo-as por metodologias básicas de gestão e marketing; o “designer tecnológico” modelo associado ao anterior, faz corresponder qualidade a actualidade. O fundamental é estar up-to-date com a tecnologia mesmo que a capacidade de a pensar e de a usar possa ser limitada. Um bom exemplo desta mentalidade é dado por uma obra de Cedric Price intitulada “A tecnologia é a resposta…qual era mesmo a pergunta?”; a estes modelos Witheley propunha um outro, o “designer valorizado”, o qual só se poderá impôr na sequência de uma reflexão séria sobre os valores a partir dos quais a prática projectual e o trabalho teórico em design se desenvolvem.

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TRÊS

Mesmo não havendo produção teórica própria, os agentes de design em Portugal (designers, professores e alunos de design) vão revelando um gradual interesse pelas reflexões que o criticismo projectual mais recente tem vindo a construir. Não é difícil fazer um rápido estado da arte que nos permita mapear o criticismo contemporâneo. Através de autores como Ken Garland, Katherine Mccoy, Ellen Lupton, Steven Heller, Rick Poynor, Max Bruinsma ou Teal Triggs; a partir de revista como a Eye, de blogs como o Design Observer, de estruturas como os Cactus Network ou a Adbusters, de instituições como a AIGA ou Mediametic, torna-se relativamente fácil reconstruir questões e propostas que vão sendo lançadas ao design num momento particularmente sensível da sua história, na medida em que se vai verificando não só uma transformação interna no design (provocada pela evolução das ideologias e das tecnologias, de onde resultam novos procedimentos e a gradual imposição de uma nova agenda de trabalho na qual as questões ecológicas, sociais e politicas são prementes) mas uma transformação do seu enquadramento quer socio-cultural, quer económico. Ao olharmos para a história do design gráfico é possível identificarmos duas linhas demarcadas que estruturam a sua evolução: uma dessas linhas leva-nos ao desenvolvimento de formas de comunicação orientadas para e pelo mercado (a publicidade e o marketing), a outra linha conduz-nos a formas de comunicação culturais e politicas tendo como referentes os cidadãos e não apenas os consumidores. A teoria crítica do design distingue-as falando em design de rectaguarda e design de vanguarda, o que se diferencia é, afinal, uma dupla possibilidade de posicionamento cultural e de orientação disciplinar que tendemos a identificar falando nos artistas e nos designers como agentes de uma cultura dominante (promovendo continuidades, legitimando um determinado status quo) e como agentes de contra-cultura. Sabemos que os conceitos de “vanguarda” e “retaguarda” se tornaram, nos últimos 30 anos não apenas difusos como, muitas vezes, rever4 síveis. Os códigos fundamentais de uma cultura, códigos políticos, sem dúvida, mas, essencialmente códigos semióticos – aqueles que regem a linguagem dessa cultura, os esquemas perceptivos, os seus operadores epistémicos (crenças, evidências, cientificidades), os seus discursos, os seus valores, as suas técnicas, a hierarquia das suas práticas – fixam, desde o início, para cada indivíduo, para cada objecto, para cada linguagem as ordens empíricas que o designam e ordenam.

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O contexto da indústria cultural contemporânea que, nos anos 70 surge definitivamente implementado, gerou formas de integração dos agentes de vanguarda no interior das estruturas de retaguarda, impondo o controlo destas sobre aqueles, reflexo da afirmação de uma vanguarda permanente, sinal da ausência de uma distinção autêntica entre discursos e práticas ideológicas legitimantes e discursos e práticas utópicas fraccionantes. A publicação, no final da década de 90, do manifesto First Things 5 First (escrito e inicialmente por Ken Garland e inicialmente publicado em 1964) veio-o trazer o tema da responsabilidade social dos artistas e dos designers, de novo, para o centro do debate alimentando quer um 6

significativo corpus teórico quer um, não menos importante, desencadear de acções (exposições, conferências, intervenções públicas). Um dos melhores comentários críticos ao manifesto First Things 7 First é-nos dado por Rick Poynor segundo o qual “a distinção crítica desenvolvida pelo manifesto é aquela que diferencia o design enquanto comunicação e o design enquanto persuasão (procurando aliciá-las para 8 o consumo)”. A distinção possibilita o envolvimento de uma reflexão sobre o agir comunicativo e sobre a ética da comunicação que deverá estar associada ao design. É conhecida a afirmação de Katherine Mccoy – “Design is not a neutral value-process” – chamando-nos a atenção da dimensão política ínsita ao projecto de design. A comunicação utópica (por oposição à “comunicação ideológica” no sentido ricoeuriano) associa ao design uma tensão de transformação social e cultural inalienável. Steven Heller em “The Graphic Intervention” tece-nos o “estado da arte” relativamente à prática do design entendendo-o como “acção socialmente eficaz”. Steven Heller, um dos teóricos de referência sobre a dimensão crítica do design, desen9 volve no seu artigo “Grafic Intervencion” uma excelente introdução ao modo como, crescentemente, o designer vai sendo chamado a assumirse como um agente activo de modificação socio-cultural. A história do Design mostra-nos que esta atitude socialmente empenhada não é um exclusivo do nosso tempo, basta pensar no trabalho do designer alemão John Hartfield nos anos 20-30, na obra de Herb Lubalin, na acção política directa dos Atelier Populaire ou dos contemporâneos Adbusters ou Cactus Network. Dentro desta linha de pensamento, teoricamente construída por autores como Heller, Ellen Lupton ou Max Bruinsma (que juntamente com Erik Adiggaard comissariou para a ExperimentaDesign a exposição Catalysts), somos confrontados com uma série de temas – a crise das ideologias, os efeitos da globalização,

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a indefinição de um sistema de valores do design – que só muito pontualmente (como alguns textos de Mário Moura) têm merecido entre nós alguma atenção. Neste artigo deixamos, em esboço, algumas reflexões, com a intenção de procurar contrariar alguma indefinição acerca do design e uma apatia em relação ao esforço de contrariar tal indefinição: O designer é um agente activo de construção cultural, não há neutralidade em design na medida em que em que as escolhas que fazemos e as mensagens que passamos serão um elemento constitutivo de uma realidade cultural pública. Neste sentido, as escolhas que fazemos, os códigos visuais e verbais que utilizamos, as mensagens que compomos, os poderes que servimos, devem ser geridos com intencionalidade e rigor crítico. Qualquer construção cultural tem consequências políticas na medida em que as nossas mensagens terão uma dimensão pública, influenciando opiniões, veiculando valores, condicionando, directa ou indirectamente, comportamentos e mentalidades. Os designers têm uma responsabilidade social, política e cultural perante aqueles com os quais comunicam. A criatividade em design deve ser entendida como uma experiência colectiva, é “acumulativa”, caso contrário de nada vale; os objectos visuais não são o produto do génio criativo individual, mas um contributo para um ambiente visual colectivo: desafiando, adaptando, sublinhando, opondo, desenvolvendo. O designer trabalha em diálogo, com outros designers, com outros acontecimentos, com livros, com sites, com pessoas. Uma acção cultural positiva, proactiva, é aquela em que a acção funciona como catalisador, reflectindo criticamente sobre os valores e as estruturas existentes; Os agentes culturais devem reagir à banalização cultural, banalização essa que está directamente ligada à transformação da cultura em espectáculo e em mercadoria, “coisa” feita para entreter e consumir (ligada ao consumo lúdico). O sistema capitalista ao tornar a cultura “acrítica” elimina, assim, uma ferramenta capaz de equilibrar e corrigir as deficiências sociais, consequentemente a liberdade de acesso, de comunicação, de expressão e de pensamento, fica, assim, condicionada, os direitos e deveres sociais restringidos à sua mínima parcela de direitos e deveres do consumidor. A cultura é, por natureza, assimétrica, marcada por dualidades: produtor/produtor, dominante/minoritário, alta/baixa a evolução e o enriquecimento cultural depende da comunicação entre pólos, do pluralismo social. A ausência de criticismo gera falsas consensualidades

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que empobrecem o regime cultural; A força motriz de uma cultura, não reside no capital, mas nas relações sociais, o triunfo do mercado global torna essas relações mais escassas, mais frágeis, mais desequilibradas, por isso a importância de movimentos sociais e de grupos de cidadãos é hoje crescente. Nesta síntese encontramos linhas de orientação teórica que podem ajudar a compreender as possibilidades de desenvolvimento de um design realista, que assumindo a não-neutralidade da comunicação, procure definir alicerces conceptuais e políticas de acção visando associar valores às mensagens. Na certeza de que a comunicação é acção e de que o design pressupõe sempre a acção socialmente eficaz. Torna-se, cada vez mais, urgente que muitas destas questões sejam actualizadas face à realidade portuguesa. Torna-se, afinal, necessário, ainda, juntar peças para consolidar, em Portugal, o design como um campo disciplinar autónomo – com a sua história, com as suas marcas, com as suas dinâmicas teórico-práticas, os seus espaços e os seus agentes – para que, então, solidamente se promova a interdisciplinaridade.•

1. Leiam-se, a título de exemplo, os artigos do então presidente da republica Jorge Sampaio ou do, então, ministro da economia Augusto Mateus publicados nos Cadernos de Design, 15/16. 2. A este título, interessa recordar as palavras inteligentes escritas por Beatriz Vidal em 1997: “A palavra design invadiu o nosso quotidiano sobretudo através das mensagens publicitárias. A falta de rigor, o sentido promocional, regra geral associado ao “styling” mais do que à consciência do projecto subjacente ao conceito

de design, presta-se a uma série de equívocos.”, Beatriz Vidal, “Que fazer com este selo?”, in Cadernos de Design, 15/16, pág. 27. 3. Nigel Whiteley, “The valorized designer”. 4. A ideia desta reversibilidade pode ser ilustrada pela exposição de design Underground goes Mainstream comissariada pela designer holandesa Renny Ramakers para o Museu de Arte Contemporânea de Roterdão em 1984. 5. O designer inglês Ken Garland é um dos nomes chave para a

compreensão das possibilidades de utilização das ferramentas do design gráfico na construção de um discurso social e politico. Para um melhor conhecimento do seu trabalho leia-se o seu The Word in your eye, University of Reading, Reading, 1992. 6. Veja-se, por exemplo, Steven Heller, The Graphic Design Reader, Allworth Press, New York, 2002. 7. Rick Poynor, “First things first revisited”, in Emigre, Nº 51 8. Idem, Ibidem, pág. 2 9. Disponível on-line em www. thypotheque.com


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A IGREJA ÁLVARO SIZA IMAGINAR A EVIDÊNCIA SIZA VIERA 2000

A igreja para marco de canaveses, é só uma parte de um conjunto religioso que prevê ainda um auditório, a escola de catequese e a habitação para o pároco. A visita ao local pré-escolhido tinha-me perturbado profundamente: era um local dificílimo, com grandes diferenças de cota, sobranceiro a uma estrada com muito tráfego. Como se não bastasse, aquela zona estava marcada por edifícios de péssima qualidade. A igreja articula-se em dois níveis: um superior, da assembleia, e um inferior, da capela mortuária. Como mostram os percursos de acesso às duas cotas, trata-se de espaços com características decisivamente diferentes. A capela mortuária é quase a fundação da própria igreja: cria uma cota estável, fixa, para que a igreja possa apoiar-se. Além disso, com os seus muros de granito e o claustro, estabelece a distância em relação à estrada. Esta plataforma habitada devia portanto surgir como uma “natureza construída”. Mas é muito importante também a colocação, defronte do acesso principal, do centro paroquial e da residência do pároco.

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Estes volumes definem um grande “U” que se contrapõe ao pequeno “u” formado pelas duas torres, a do campanário e a do baptistério. Cria-se, assim, o espaço necessário para o grande volume vertical da fachada. Ao mesmo tempo, toma-se possível uma relação com as construções de pequena escala que circundam esta acrópole. Fica, assim, demarcado o adro. A referência inicial foi uma construção pré-existente, uma residência para a terceira idade, de uma arquitectura correcta e ordenada, situada na cota superior da escarpa e com uma extensão muito significativa em relação à estrada. A partir deste novo nível, tudo o resto se foi articulando, reagindo à complexidade das construções existentes e permitindo finalmente a criação de um adro, aberto sobre o belíssimo vale de Marco de Canaveses. Esperemos que novas construções não se venham a encostar às péssimas que já lá existem e se mantenha a abertura sobre o vale, que é essencial. A própria grande porta da igreja, com os seus dez metros de altura, tem razão de existir exactamente em relação a esta vastíssima vista. A entrada faz-se, normalmente, através de uma porta de vidro, debaixo da torre da direita, enquanto a porta grande só é aberta em circunstâncias especiais. Depois do movimento lateral de entrada, tem-se a percepção de uma janela baixa e comprida, do lado direito, que permite ainda a vista para o exterior. Naquele instante, não se sente a luz difusa que chega das altas aberturas na parede curva e inclinada, à esquerda: vêem-se, ainda e imediatamente, o vale e as construções em frente. A janela contradiz o ambiente de recolhimento a que estamos habituados numa igreja e por este motivo gerou polémicas. O mesmo se deu com a colocação da estátua da Virgem, que é quase tão alta como os fiéis e não está assente em pedestal. Todavia curiosamente, um teólogo, muito estimado no Porto elogiou o respeito pelos actuais princípios da liturgia, que acentuam a função de mediação da Virgem entre Deus e os homens e por consequência entre os homens. De facto a estátua da Nossa Senhora tem uma posição intermédia: colocada na extremidade da janela e sujeita a uma luz muito intensa, introduz ao espaço do altar, que quem entra não nota imediatamente. Três degraus elevam o plano da celebração, que conclui com duas portas, pelas quais entra uma luz clara, filtrada por uma alta chaminé. Esta disposição dialoga com o banho de luz sobre as formas curvas dos limites laterais da abside e sobre o espaço da igreja em geral. A iluminação natural varia com o tempo, dependendo da posição do Sol, e vai desde a projecção do desenho do raio de luz até à ao silêncio da aspersão: um grande intervalo, rigoroso e palpável. A montagem de todos os elemen-

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tos é, evidentemente, coerente. Todavia esta ordem, caracterizada por algumas contradições existentes e desejadas, foi construída de maneira lenta e laboriosa. Não houve ideias pré-definidas, dadas a priori. Aquilo que é agora legível é o resultado da decantação de determinadas reflexões sobre o espaço, hoje tão difícil, da igreja. Esta dificuldade é devida a uma série de importantes alterações na liturgia: pense-se na celebração da missa, que agora encontra o sacerdote virado para a assembleia e já não de costas. Uma tal mudança transforma por completo o carácter da celebração e anula o sentido de organização espacial tradicional, nas suas várias formas e na sua lenta e permanente evolução. Ao mesmo tempo, esta nova condição não justifica a interpretação da igreja como auditório. A quase totalidade dos projectos recentes não aprofunda devidamente este aspecto. Era indispensável, por conseguinte, uma reflexão sobre as novas condições, poderíamos dizer funcionais, do espaço da igreja. E no entanto as discussões com os teólogos puseram em evidência a contradição que envolve hoje as diversas interpretações. Tratase, por isso, de um programa instável, ainda por resolver. Todavia era evidente a necessidade de criar uma projecção do celebrante, uma comunhão com a assembleia, sem que, inevitavelmente, se criasse aquela distância própria de qualquer auditório. Por esta razão propus, para a abside, curvaturas já não côncavas mas antes convexas. E também neste caso não se trata de uma ideia pré-concebida, imediatamente derivada da variação da liturgia: é uma intuição, nascida de uma série de exigências, entre as quais a necessidade de conservar a relação entre os objectos e os movimentos que fazem parte da celebração. No espaço em volta do altar existe uma série de elementos que participam no ritual: o ambão, o próprio altar, o sacrário, as cadeiras dos celebrantes e a cruz, os quais lentamente tomaram corpo e definiram depois o espaço, no respeito pelos movimentos, pré-estabelecidos, da missa. Assim a igreja adquiriu forma como uma escultura em negativo, na qual se foram estabelecendo relações de continuidade e de tensão entre as várias partes. O traçado do percurso que, no piso inferior, liga o exterior à capela mortuária é o resultado do estudo daquilo que acontece nestes espaços. Foi determinante, na realidade, o conhecimento do significado do funeral na região do Minho. Quando visitei o maravilhoso cemitério crematório do arquitecto holandês Pieter Oud, tive a possibilidade de assistir a uma cerimónia fúnebre. Verifiquei que a atmosfera e a relação das pessoas são decisivamente diferentes do que acontece em Portugal. Aqui, durante o funeral, a família e os amigos íntimos estão muito

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próximos do defunto, enquanto muitas outras pessoas, vizinhos e conhecidos, seguem a uma certa distância, naturalmente com menor dor e emoção. Tomou-se por isso necessária uma sequência de espaços com características diferentes. E também por esta razão pensei num claustro, em que as pessoas vão fumar, conversar ou eventualmente, por que não, tratar de negócios: é uma maneira de reagir àquele relativo desconforto determinado pelo encontro, tão directo, com o problema da morte. Esta reacção à dor não se encontra, por exemplo, nos funerais na Holanda, durante os quais domina o silêncio total. Ao claustro segue-se uma primeira galeria, bastante ampla, marcada logo após a porta de entrada, pela parede curva que desce da abside. Poucos metros depois abre-se, à esquerda, uma outra galeria que tem, no fundo, uma janela vertical de onde se pode ver novamente a estrada. Não sei qual a conexão entre esta janela e a janela horizontal do nível superior, mas creio que a posição vertical da que está em baixo, no embasamento é devida à procura da sensação necessária do peso, da gravidade. O percurso termina na capela mortuária, que comunica com a primeira galeria graças a uma janela horizontal. As pessoas que estão no interior têm, por isso, a percepção das que entram ou saem, exactamente como sucede no nível superior, onde os crentes dispõem da presença da estrada. Depois, ainda na capela mortuária, a chaminé de luz, que sobre o altar, no nível superior, termina aqui com uma abertura que permite a vista do claustro. Regressa-se então, uma vez mais, ao ponto de partida, com o rumor da água de uma fonte. No pátio impõe-se com relevo particular a presença de uma escada, que conduz de novo ao nível superior. Neste projecto, a unidade é conferida pelos percursos que terminam todos no ponto de partida, circularmente. A sensação final é realmente de um lugar fechado, bem delimitado.

“Sempre me impressionou muito o obsessivo convite à meditação que se sente na maior parte das igrejas.”


Na realidade as aberturas são colocadas frequentemente a uma altura tal que não permite que se olhe para o exterior, ao mesmo tempo que a utilização dos vitrais elimina a continuidade e a transparência. Ao contrário, parece-me que as recentes modificações na liturgia contrastam com esta visão de espaço fechado e segregado. Quando comecei a estudar o programa, depressa compreendi o enorme alcance desta ruptura na continuidade secular da tradição. Todavia parece-me que este aspecto não tem qualquer paralelo na vida real da Igreja, na relação entre a Igreja e a sociedade. Por esta razão, e não obstante as necessárias adaptações, procurei preservar a continuidade com a tradição. Assim, observando atentamente o carácter desta igreja, parece evidente que a sua concepção é substancialmente conservadora. Esta intenção emerge com clareza do desenho da planta que na realidade exprime uma rígida axialidade. Contextualmente, a verticalidade do interior é muito forte. Na realidade, apesar da nave ser de secção quadrada, a articulação de determinados elementos, tais como as duas aberturas por trás do altar, dá o sentido de elevação. Diversas discussões viriam a reforçar esta ideia de continuidade com a espacialidade canónica. De resto, os conselhos dos teólogos foram constantes e determinantes. Assim, por exemplo, o baptistério, inicialmente colocado ao lado do altar, foi posteriormente desviado para perto da entrada, para que anunciasse a presença da assembleia. Além disso, uma vez que o cortejo dos celebrantes tem de percorrer o eixo longitudinal da igreja, tomou-se necessária a presença de uma porta, na parede curva e inclinada. O ritual da celebração exige, evidentemente, determinadas opções no tratamento do espaço e na organização dos percursos. Ao longo de algumas das paredes interiores foi utilizado o azulejo. Era necessário um rodapé resistente, que obviasse aos problemas da limpeza e da manutenção. No primeiro momento eu tinha pensado num revestimento em madeira. Mas esta escolha em breve me pareceu infeliz, pois teria anulado a verticalidade da parede e sobretudo porque a reflexão da luz teria sido inadequada. Pensei então no azulejo que, produzido artesanalmente, conserva uma superfície levemente irregular; isso permite reflexos particulares de luz, enquanto que as juntas, que são deixadas vazias, manifestam uma presença sensível. A continuidade com o reboco e a unidade da cor são cortadas por essa presença e por aqueles reflexos. Numa primeira fase, o azulejo ladeava toda a igreja; depois, quer pela necessidade da parede curva chegar até o solo, quer pela problemática solução do seu contacto com as portas, o seu uso foi limitado. Um dos objectivos de que se não podia abdicar consistia exactamente

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em evitar que os pormenores fossem tão evidentes que competissem com a estrutura do espaço. Trabalhei intensamente na relação, encontro e transição dos materiais. O azulejo tem a função de resolver o problema da continuidade, atenuando as rupturas existentes. A maneira pela qual são ligados estes três materiais – madeira, azulejo e reboco – é muito especial, e provavelmente há coisas, que não posso descrever, que me surgiram da experiência do espaço, durante a construção. Na capela baptismal tenho intenção de desenhar – no interior da parede do acesso – figuras com cerca de seis metros de altura, deformadas segundo a perspectiva. Estas personagens, que em conjunto representam o baptismo de Cristo, são de uma importância decisiva, neste espaço excepcional, alto e estreito, e serão estilizadas de modo a que não resultem excessivas. Terão uma presença muito forte, num azul escuro ou em preto, de modo a ressaltarem no azulejo branco. Já terminei os desenhos, mas não tive coragem de dar início à realização: tenho ainda necessidade de tempo. Os elementos que devem ser desenhados são ainda muitos. A própria cruz só foi colocada depois da inauguração. Numa primeira fase tinha pensado numa cruz em madeira, com um trabalho dos contornos não muito bem definido e com volumes sobrepostos, que sugeriam a figura de Cristo. Depois o desenho passou por muitas outras fases, muito mais simplificadas, para se definir, finalmente, numa cruz em que, no encontro entre vertical e horizontal, na forma da vertical e nas vibrações da madeira, é imediatamente evidente a presença humana. Quero agora revesti-la com uma lâmina de ouro. A cruz foi colocada numa posição atentamente calibrada, próxima do altar, e com os braços que evitam a colocação longitudinal para se encontrarem, variavelmente, com a luz. A lâmina de ouro dará, então, uma maior desmaterialização e, não reivindicando protagonismo, reagirá imprevisivelmente com o espaço. Voltando ao exterior, nota-se uma presença consistente do granito que, nesta região, é um dos elementos mais importantes na paisagem, quer na Natureza quer na construção. Neste projecto, a plataforma em granito surge como contraponto necessário à leveza e à grande concisão geométrica do volume branco. Em algumas horas do dia a igreja quase que se desmaterializa: ora parece desaparecer, ora, noutras ocasiões, sobressai quase que violentamente. Era por isso necessária uma base que a prendesse ao solo. Eu já tinha estado no Peru, onde estudara as construções pré-colombianas, que deixaram evidentemente a marca em certos volumes tão acentuados.•

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IGREJA DE MARCO DE CANAVEZES, SIZA VIERA


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HISTÓRIA DO CINEMA PORTUGUÊS

A INVICTA FILM ALVES COSTA 1978

O CINEMA PORTUGUÊS FEITO POR ESTRANGEIROS

Alfredo Nunes de Matos, tinha criado, em 1910, uma firma, ainda modesta, sob a razão social de Nunes de Matos & C.ª (Invicta Film) para se dedicar à produção de “panorâmicas”, filmes de reportagem e fitas de propaganda industrial. Para operadores chamou Manuel Cardoso, técnico competente que estivera ligado à extinta Portugália-Film, e o aragonês Thomas Mary Rosell, que, além de operador, era também responsável pelos trabalhos laboratoriais. De 1910 a 1917 foram muitas as dezenas de filmes produzidos por esta sociedade. De muitos se conhecem os títulos, embora quase nada reste desse documentarismo em que a firma de Nunes de Matos se especializara. Com enorme sentido de oportunidade, um desses documentários-reportagem incidiu sobre o naufrágio do “Veronese”, que ocorreu frente à Boa Nova (em Leça) na madrugada de 10 de Fevereiro de 1913. O filme tinha uma metragem excepcional para a época (300 metros) e dele foram vendidas para o estrangeiro 108 cópias. De resto, dados os contactos de Nunes de Matos com a “Pathé” e a “Gaumont”, muitos filmes da sua produção foram incluidos nos “jornais de actualidades” dessas casas francesas. Deste modo, correram mundo variadas imagens de aspectos e acontecimentos portugueses.

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Esta firma, que tivera a sua sede no n.º 135 da Rua de Santo Ildefonso, no Porto, instalou-se mais tarde, com um pequeno estúdio e um laboratório, numa dependência do Salão-Jardim Passos Manuel, famosa casa de espectáculos de cinema e music-hall que existiu durante muitos anos no local onde hoje se ergue o Coliseu, a que Alfredo Nunes de Matos estava ligado como orientador e gerente. Entretanto, Nunes de Matos, homem muito activo e empreendedor, ia estudando e amadurecendo um projecto ambicioso: criar no Porto um verdadeiro centro produtor de filmes, com estúdios espaçosos e bem equipados e laboratórios com bom apetrechamento e pessoal técnico devidamente habilitado. Em fins de 1917 decide ir para a frente, encontrando no banqueiro José Augusto Dias o primeiro apoio financeiro. E assim, no dia 22 de Novembro de 1917, constituía-se uma nova sociedade por quotas, com um capital de 150 mil escudos (verba que corresponderia, hoje, a mais de quatro mil contos) que adoptaria a designação de Invicta Film Limitada. Todos os haveres da primitiva firma Nunes de Matos & C.ª (Invicta Film) constituídos por máquinas de filmar, aparelhagem técnica, material eléctrico, móveis e utensílios, assim como uma razoável quantidade de filmes, são adquiridos pela nova empresa para a qual transitam. Alfredo Nunes de Matos ocupa o cargo de gerente-técnico dentro do Conselho de Administração da Sociedade que, por sua vez, contrata para director artístico da empresa Henrique Alegria, homem já ligado a negócios cinematográficos, pois a ele se devem a construção e exploração do cinema Olímpia, do Porto (que ainda existe, mas que à data da sua inauguração, em 18 de Maio de 1912, ostentava o nome pomposo de Olympia-KinemaTeatro). Todo o pessoal técnico da antiga firma de Nunes de Matos passa para a nova sociedade que se encontra, assim, apta a funcionar antes mesmo da construção e equipamento dos projectados Estúdios. Em 1918, Alfredo Nunes de Matos e Henrique Alegria partem para Paris com o encargo de adquirirem o melhor material técnico e contratarem pessoal especializado. Entretanto, tornava-se necessário obter um local para a implantação do novo complexo industrial. Depois de várias pesquisas, foi decidido comprar a Quinta da Prelada, sita ao Carvalhido, no Porto, propriedade da Santa Casa da Misericórdia. A transacção foi feita por 27 161$00 (valor da época). Os terrenos tinham uma área de 50 000 metros quadrados. Em tempos recuados a casa e quinta da Prelada pertenceram à família dos Noronhas, tendo sido reformadas, em 1770, pelo arquitecto italiano Nicolau Nazoni.

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A viagem a França de Nunes de Matos e Henrique Alegria foi coroada do melhor êxito, pois encontram na “Pathé Frères” todo o apoio e colaboração. Dali trazem os planos de construção do futuro estúdio da Invicta Film e um grupo de técnicos experimentados: o operador Albert Durot, o arquitecto-decorador André Lecointre, o chefe de laboratório Georges Coutable, a montadora Valentine Coutable e o realizador George Pallu, que fizera a sua carreira de profissional de cinema no “Film d’Art” e na “Pathé”. Mais tarde, os Coutable seriam substituídos por J. Trobat e Mme. Meunier, que, diga-se de passagem, eram técnicos excelentes, e o operador Durot daria o lugar a Maurice Laumann, um “cameraman” muito competente e que ficou no Porto até depois da extinção da Invicta Film. Com tudo pronto para a grande arrancada começa a construção dos Estúdios e Laboratórios da Prelada, cuja conclusão só se verificaria em 1920. Isto não impediu, no entanto, que a Invicta Film iniciasse, de imediato, a produção de filmes de enredo e longa-metragem. Por contrato com a Casa Pathé, esta então famosa produtora francesa obrigava-se a fornecer o filme virgem necessário, tirar cópias, fornecer material e mesmo fazer a montagem dos negativos. Em meados de Maio de 1918, já quase todos os elementos contratados em França se encontravam no Porto. E, no mês seguinte, iniciava-se a filmagem, sob a direcção de Georges Pallu, de Frei Bonifácio, adaptação de um conto ainda inédito de Júlio Dantas. Em 4 de Outubro de 1918, o filme faz a sua estreia no cinema Olímpia, de Lisboa. Foi seu protagonista o actor Duarte Silva que, por muito tempo, se conservou ao serviço da Invicta Film. O conto tinha bastante humor; Duarte Silva, que se estreava no cinema, fez um excelente papel; a qualidade técnica da fita era, para a época, muito razoável; tudo isto junto granjeou para este Frei Bonifácio cinematográfico um merecido sucesso. Feito em cinco dias, foi uma espécie de prova de capacidade de todos quantos nele intervieram.Começava a era do “cinema português feito por estrangeiros”. Georges Pallu era um homem inteligente e culto, bacharelado em Direito pela Faculdade de Paris. Atraído pelo cinema, ingressou nos quadros do “Film d’Art” onde ganhou grande experiência. Profissional competente, não era, infelizmente, um inovador. Faltava-lhe a chispazinha de gênio de um Louis Delluc, por exemplo. A partir do momento em que cruzou o portão da Quinta da Prelada, Pallu logrou conquistar uma situação privilegiada mantendo com tacto, aprumo e compreensão pelo trabalho alheio uma posição de grande dignidade e de profunda simpatia que lhe granjearia, durante todo o período da sua larga presença entre nós, um ambiente de respeito e de completa adesão”.

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Demonstrada, com Frei Bonifácio, a capacidade dos técnicos contratados em França, a empresa não espera pela construção dos Estúdios e Laboratórios do Carvalhido para prosseguir com a produção de filmes de enredo. É assim que, em princípios de 1919, entra em rodagem uma fita mais ambiciosa, adaptação de um romance muito popular de Manuel Maria Rodrigues: A Rosa do Adro. Pensa-se, na Invicta, que a produção deve apoiar-se na literatura nacional para garantir o êxito comercial dos seus filmes com a popularidade de que gozavam certas obras literárias. Não só obras menores: Eça, Camilo, Júlio Dinis, Abel Botelho, são autores que podem assegurar o interesse do público. “O Primo Basílio”, “Amor de Perdição”, “Os Fidalgos da Casa Mourisca”, “Mulheres da Beira” entram nos projectos de produção da Invicta Film. É certo que, das obras desses romancistas, ficará, na sua transposição para o cinema, pouco mais do que a ilustração, perdendose muito do que representam como pintura e análise de uma sociedade e de uma época. Conserva-se intacto o conflito, mas diluem-se as suas profundas motivações. A obra mais conseguida de George Pallu ainda será Os Fidalgos da Casa Mourisca, de problemática mais simples: embates de sentimentos correlacionados com o confronto da decadência, os preconceitos de casta, o tradicionalismo, e a ociosidade duma aristocracia provinciana a afundar-se, com a emancipação do trabalhador rural, num esboço de luta de classes que já vem adoçada e conciliante desde a obra original. De Camilo ou Eça pouco mais será retido do que a urdidura anedótica de duas das suas obras mais famosas. O que, de resto, voltaria a acontecer mais tarde quando Camilo, Eça e Júlio Dinis foram retomados por realizadores portugueses e quando o cinema tinha já outra maturidade. A Rosa do Adro foi filmado quase totalmente em exteriores. As poucas cenas de interior tiveram de rodar num “plateau” improvisado no SalãoJardim Passos Manuel à falta de instalações apropriadas. Os trabalhos de laboratório foram executados em Paris. Rosa do Adro faria a sua estreia, no Sá da Bandeira, do Porto, em Julho de 1919. Sem soluções de continuidade e no desejo de manter todos os seus sectores em actividade, a Invicta escolhe a peça satírica de Gervásio Lobato, O Comissário de Polícia, para entrar imediatamente em rodagem, enquanto se vão fazendo os trabalhos preparatórios do que viria a ser a super-produção daquela empresa produtora: cuidados trabalhos de adaptação, de escolha de locais, de contratação de artistas, para que as filmagens pudessem iniciar-se (e concluir-se) em 1920. Iria rodar-se Os Fidalgos da Casa Mourisca.

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AMÉLIA REY COLAÇO, ESTÚDIO MÁRIO NOVAIS


Ainda cheguei a ver, já ao abandono, prestes a ser demolido, o grande complexo de que se compunha a Invicta Film. Era a ruína de um sonho. Causava dó... Eis como o descreve Félix Ribeiro, tal como se inaugurou festivamente em princípios de 1920: “O estúdio – teatro de “prise-de-vues” ou de pose, como, ao tempo, era mais conhecido nos países latinos, da França à Itália – constituía uma ampla galeria construída de ferro e vidro, com os seus trinta metros de comprimento por vinte de largo e dezassete de altura, cuja disposição fora estudada de molde a poder ser aproveitada ao máximo a luz natural. Uma das partes laterais do imóvel, a que se encontrava voltada para o Nascente, deslocava-se lateralmente como se se tratasse de um monumental portão. O tecto era, igualmente, constituído por placas de vidro por forma a que a luz, quando necessário, pudesse penetrar no interior. Só mais tarde a luz artificial viria a ser utilizada por meio de baterias suspensas de lâmpadas de vapor de mercúrio e de arcos voltaicos. (...) Ao longo de todo o comprimento do estúdio estava instalada uma ponte rolante que permitia o transporte de grandes cenários e outros materiais, consentindo, ainda, filmagens a partir desse ponto de vista. Fazendo corpo com ele, mas exteriormente, existiam várias dependências: camarins de artistas, camarins para figuração, gabinetes do “metteur-en-scène” e do director artístico, e igualmente, para o decorador. Junto ao estúdio existia uma outra explicação dividida em dois sectores. Num deles estava instalada a central eléctrica, equipada com eficiente material, em que se destacava um motor Wolvering de 80 HP e outro da marca Bacherini, permitindo o fornecimento de energia de 300 ampéres. O outro sector destinava-se à oficina de carpintaria, sala de pintura e à guarda de cenários e adereços. Um Segundo conjunto de edificações situava-se a pequena distância do estúdio: um edifício central de dois pisos ladeado por dois outros, com rés-do-chão e primeiro andar. No do centro situava-se a sala de recepção, a sala de reuniões da Administração, o gabinete do administradordelegado e do gerente-técnico, o escritório geral e a sala de expedição. O edifício da esquerda era ocupado pelo laboratório, equipado com material Pathé, e sala de montagem. No edifício da direita encontravam-se instaladas as secções de “letreiros” (pois era a Invicta que se ocupava da elaboração das legendas em português, ou “letreiros”, como então se lhes chamava, dos filmes estrangeiros que se exibiam em Portugal), a tipografia e, por último, a sala de projecções equipada com um projector de recente modelo da marca Pathé.”

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Os Fidalgos da Casa Mourisca, com exteriores filmados no Alto Minho, no solar conhecido por Torre de Lanhelas, junto da estrada que vai de Caminha para Valença, e na Tapada da Ajuda, foi a primeira produção saída dos novos estúdios. Com dez partes (cerca de 4500 metros) divididas em duas jornadas, o filme apresenta uma grande unidade e uma excelente ambientação, prova dos cuidados de que se revestiu o empreendimento. Da qualidade dos trabalhos laboratoriais fala por si o excelente negativo que, algumas décadas mais tarde, viria a ser descoberto e salvo pelo Cineclube do Porto e hoje se encontra na posse da Cinemateca Nacional. O êxito de Os Fidalgos foi retumbante e invulgar, tanto em Portugal como no Brasil. Ao rigor da encenação juntava-se a boa qualidade da fotografia, devida ao operador Maurice Laumann, recentemente contratado pela Invicta, e um apreciável desempenho de Pato Moniz, Duarte Silva, António Pinheiro, Etelvina Serra, Mário Santos, Erico Braga, Encarnación Fernandez, Salvador Costa, José Silva, Artur Sá e Adelina Fernandes. O reputado actor e encenador António Pinheiro viria, tempos mais tarde, a passar para trás das câmaras, dirigindo a farsa Tinoco em Bolandas (1922) e Tragédia de Amor (1924). Chegados aqui, tudo parecia indicar que iria estabilizar-se uma indústria cinematográfica portuguesa. Até porque, com o exemplo da Invicta Film, outras iniciativas, indo no seu rasto, tomavam vulto em Lisboa, como a seguir se verá. Foi tudo fogo de palha. A Invicta Film duraria apenas mais quatro anos. Desmoronava-se num ápice o que fora um grande e probo esforço. Na altura do lançamento de Os Fidalgos da Casa Mourisca, tudo, porém, parece correr pelo melhor. A produção vai prosseguir imediatamente com o melodrama Amor Fatal e a curta comédia burlesca Barbanegra. Os filmes são fracos. Foi talvez uma maneira de manter uma actividade ininterrupta enquanto tudo se preparava para um empreendimento de maior fôlego: a adaptação ao cinema do romance de Camilo, “Amor de Perdição”, em que trabalhou o jornalista Guedes de Oliveira. George Pallu volta a aplicar a sua proficiência profissional, o seu rigor de encenação, o seu empenho, e o filme estreia-se, com êxito e muitas lágrimas do público, em Novembro de 1921, no cinema Olímpia, do Porto. Amor de Perdição restaura a tradição de qualidade dos filmes da Invicta. Entretanto, chegado ao Porto à procura de trabalho, o realizador italiano Rino Lupo apresentava-se na Invicta Film. É o próprio George Pallu quem aconselha a Administração a confiar ao recém-chegado a realização de Mulheres da Beira, segundo um conto de Abel Botelho. O italiano dirá de si próprio, em entrevista concedida ao “Diário de Lisboa.”

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“Como “metteur-en-scène”, sou um pintor. Deixo accionar livremente toda a minha fantasia, vejo os aspectos e os panoramas, fixo-os e idealizo depois o quadro a reproduzir. Mulheres da Beira será, pois, se me consentem a audácia, um verdadeiro filme de arte, de emoção e de beleza campesina. Dei toda a alma a um assunto português, adaptando-me, quanto pude, aos vossos hábitos, aos vossos costumes e ao vosso sentimento.”

Rino Lupo – romano de nascimento e nómada do cinema, pois exercera a sua profissão de realizador de filmes, sucessivamente, em Paris, em Copenhague, em Moscovo e em Varsóvia deu, de facto, boa conta de si. Mas a Invicta não concorda com os seus métodos de trabalho: improvisação e pouco respeito por planos prévios de trabalho, e rescinde o contrato. George Pallu fica de novo sozinho com dois projectos de responsabilidade nas mãos: a realização de O Destino, com argumento original de Ernesto de Menezes, jornalista e crítico de teatro, e O Primo Basílio, adaptação da obra célebre de Eça de Queirós. A história de O Destino tinha sido imaginada a pensar em Palmira Bastos, destacada figura do teatro português. Pallu esmerou-se na realização e o filme resultou um dos maiores êxitos do cinema português, mantendo-se em cartaz durante largo tempo. Mas da protagonista, o crítico da revista “Porto Cinematográfico” diria: “Palmira Bastos, a quem coube o principal papel, vence com alguma dificuldade as contrariedades de uma primeira apresentação ante a câmara cinematográfica.”Uma coisa não tem nada com outra, mas talvez seja curioso apontar ter Palmira Bastos declarado uma vez detestar Charlot...”

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Quanto a O Primo Basílio, custou alguns amargos de boca à Invicta Film. Contra o filme e contra a empresa produtora levantaram-se tão violentas campanhas em alguns jornais que chegou a pensar-se em desistir da exploração do filme em Portugal. O filme era uma baça ilustração da obra literária, de que só ficou o enredo, rigorosamente respeitado. No entanto tinha qualidades que (tal como aconteceria com uma segunda versão de Amor de Perdição) não foram ultrapassadas quando, anos mais tarde, António Lopes Ribeiro retomaria o mesmo tema, sem garra nem invenção, já o cinema era sonoro... Para essa primeira versão de O Primo Basílio (que tanta puritana celeuma levantou... e eram bem discretas as cenas de amor no “Paraíso”) foram contratados nomes de relevo na cena portuguesa: Ângela Pinto, António Pinheiro, Amélia Rey Colaço, etc. Por desgraça, coube a Robles Monteiro o papel de Basílio, que fez do ardiloso sedutor uma espécie de empenado e deselegante Casanova da Rua dos Correeiros... Em compensação a grande Ângela Pinto encarnou à criada Juliana na perfeição. Tínhamos chegado ao ano de 1922. A nenhum português mordera ainda o bicho do cinema o bastante para se igualar aos estrangeiros aqui chamados. António Pinheiro, essencialmente homem de teatro, não foi além de pisar métodos que já estavam a envelhecer; e Augusto de Lacerda, jornalista e autor teatral, não passou do filme Tempestades da Vida, que realizou para a Invicta pouco depois de António Pinheiro ter dirigido a comédia-farsa Tinoco em Bolandas. O filme de Augusto de Lacerda esteve para se chamar Náufragos da Vida. Presságio? No ano seguinte acentuava-se o declínio da Invicta Film, que se saldaria por um completo afundamento. Em 1923 a Invicta começou a sentir a necessidade de alargar o mercado para os seus filmes. Alias, o cinema tinha andado mais depressa do que os responsáveis pela Invicta supunham. Não só do ponto de vista técnico e artístico, mas também do ponto de vista comercial e industrial. Os filmes da Invicta ressentiam-se da comparação que o público fazia com o cinema que lhe vinha de fora e da concorrência comercial do filme estrangeiro. Assiste-se, então, a algumas transformações: aumento de capital, reapetrechamento técnico e um olho noutros mercados, que se supôs ser possível interessar contratando uma artista francesa. George Pallu vai a Paris e traz de lá Francine Mussey. A gentilsinha actriz não é o remédio de que a Invicta necessita para revolver a grave crise financeira que começa a enfrentar. Num país com um pequeno número de salas de cinema, sem saída fácil para as suas produções e sem possibilidades de expansão para dentro e para for a do país, onde a con-

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corrência é, a todos os níveis, cada vez mais forte; sem qualquer apoio a nível de Estado, que, por sua vez, enfrentava constantes problemas e inquietantes crises económicas e políticas, a Invicta Film, tão modelarmente erguida poucos anos antes, irá soçobrar. Cláudia e Lucros ilícitos (1924), filmes medíocres e incaracterísticos (que se pretendem “modernos”, com a jovem francesinha a dar-lhes um ar de frescura) serão o “canto do cisne” da empresa portuense. De 1925 a 1928, a Invicta, já em vias de liquidação, ainda conservará alguma actividade laboratorial, mas essa mesma (confecção de legendas para os filmes estrangeiros) lhe será arrebatada pela Distribuidora J. Castello Lopes que, para o efeito, montou laboratório próprio, em Lisboa. Até que um dia (2 de Janeiro de 1931) é mesmo o fim. Todos os haveres da firma vão a leilão e o Estúdio, já posto ao abandono após uma última utilização por Rino Lupo para filmar os interiores de José de Telhado, será demolido. Tudo isto, de certo modo, pode parecer paradoxal. Mas já não o parecerá tanto se atentarmos melhor no que se passou (e que, afinal, não serviu de lição na altura nem ao longo do tempo). A derrocada da Invicta Film enraíza na desatenção aos exemplos da História do Cinema. Os fundadores e dirigentes da Invicta Film, ao montarem essa arrojada empresa, com um grande estúdio, óptimo equipamento e eficientes laboratórios, devem ter minimizado a importância da distribuição ou exploração directa da sua produção. Se, paralelamente ao esforço de organização da produção de filmes, tivessem criado um sistema de escoamento (uma rede de cinemas próprios, por todo o país, e agência de vendas em alguns centros estrangeiros), talvez a Invicta tivesse podido evitar a derrocada a breve termo, derrotada pelo fluxo do filme estrangeiro e falta de mercados. Mais do que uma vez, na sua Histoire Générale du Cinéma, George Sadoul aponta a distribuição como condicionante da produção. Isto é: só a eficiência da primeira pode garantir a continuidade da segunda. Por outro lado, os poderes públicos – nem por sua própria iniciativa nem a solicitação instante dos interessados – tão pouco prestaram qualquer auxílio ou protecção à nascente indústria cinematográfica portuguesa. Enquanto a nova indústria procurava desenvolver-se sozinha, o mercado nacional mantinha-se escancarado à inevitável invasão de cinematografias expansionistas e bem organizadas, logo que se apagou o rescaldo da Primeira Grande Guerra. Tardiamente e com uma curtíssima visão das coisas, a primeira “protecção” que o Estado concede ao cinema português vem no decreto de 6 de Maio de 1927: a obrigação de incluir em todos os espectáculos cinematográficos um documentário

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português com a metragem mínima de 100 metros. Como é óbvio, este decreto, que ficou conhecido por “a Lei dos cem metros”, não deu sequer para criar documentaristas e acabou por ser esquecido antes mesmo de ter sido revogado. No futuro, outras leis proteccionistas virão permitir a realização de um certo número de filmes (muitas vezes em pura perda), mas nunca servirão para assegurar e estabilizar uma cinematografia nacional capaz de cumprir uma função socio-cultural. Por outro lado ainda, seguindo uma tradição (Portugal sempre importou técnicos e artistas) a Invicta importou cineastas. Até aqui nada de mal. Só que a empresa não soube renovar os seus quadros. George Pallu era um homem culto, inteligente, honesto, proficiente, mas... fôra formado na escola do “Film d’Art”, quando ainda o cinema era balbuciante como meio de expressão. E se, durante um ano ou dois, os filmes da Invicta puderam pôr-se a par da produção corrente que vinha de fora, em breve ia sobrar-lhes em regionalismo o que lhes faltava em qualidade e invenção formal. Na Invicta, todos pareciam alheios ao desenvolvimento do fenómeno cinematográfico que estava a operar-se por todo o lado... (Manuel de Oliveira ainda andava de bibe). E a situação agravouse quando se deu o enfraquecimento económico (que, por certo, não se venceria mesmo que se tivesse concretizado o projecto de fusão ou cooperação com a Fortuna Film, fundada pela escritora Virginia de Castro e Almeida por volta de 1922, em Lisboa, e produtora de Sereia de Pedra e Os Olhos da Alma, realizados Pelo francês Roger Lion). Bem vistas as coisas – e o caso da Invicta deveria ter-se sempre presente – a decadência e ocaso dos Estúdios da Prelada estavam à vista muito antes do termo da sua existência. Era inevitável.

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OS ANOS TRINTA

O êxito de A Severa serviu de detonador para uma nova “explosão” de cinema português. Os estúdios da Tobis vão crescendo rapidamente. As revistas cinematográficas batem-se pelo renascimento da produção nacional. Nessa altura são a “Invicta-Cine”, o “Cinéfilo”, a “Imagem” e o “Kino”. É neste semanário, fundado por Lopes Ribeiro, em que colaboram regularmente Artur Portela, Norberto Lopes, José Gomes Ferreira, Olavo d’Eça Leal e André Massil, que vamos encontrar uma estatística dos filmes exibidos em Portugal, em 1930, que aponta para uma nítida “colonização” do nosso mercado pela produção americana: 574 filmes contra 143 franceses, 105 alemães, 19 ingleses, 6 russos, 3 dinamarqueses, 2 brasileiros, 2 mexicanos, 1 sueco, 1 austríaco e 1 japonês. Apesar desta importação maciça, o filme português iria ter, então, muito menos dificuldade em chegar ao público do que cinquenta anos mais tarde, atraindo ainda um número muito razoável de espectadores. Isto foi, talvez enganador e distraiu toda a gente da necessidade de se criarem estruturas e medidas proteccionistas que garantissem mercado e estabilidade para a produção nacional. Nos primeiros anos trinta vivia-se uma certa euforia. Enquanto Leitão de Barros pensa num novo filme, gente nova, que traz dos verdes anos um grande entusiasmo cinema, passa decididamente a meter a mão na massa. (Nessa altura ainda sem duplo sentido, muito embora não tarde Leitão de Barros a dizer, na revista “Movimento”, que, em Portugal, as gentes de cinema se dividem em duas categorias: “os que amam e os que mamam...”). É, pois, com entusiasmo que se fazem e se aguardam os dois primeiros filmes sonoros totalmente realizados em Portugal: A Canção de Lisboa, de Cottinelli Telmo, superficial mas graciosa “comédia musical à portuguesa” que traz para o cinema esse espantoso actor que foi António Silva (ao lado da Beatriz Costa, do Vasco Santana e de Teresa Gomes, três grandes e populares figuras do teatro ligeiro); e Gado Bravo, que António Lopes Ribeiro realiza com a colaboração do alemão Max Nossek, alternando alguma coisa boa com muita coisa má, numa historieta inventada por um estrangeiro que arranca com algumas das mais belas imagens do Ribatejo jamais filmadas (a fotografia foi de Heinrich Gartner) e acaba por meter de tudo um bocadinho numa salgalhada de folhetim sentimental, em que os campinos são apenas a nota folclórica... Os dois filmes – ambos estreados em 1934 – foram muito bem acolhidos. Um esperançado optimismo reinava no mundo afecto ao cinema. Cottinelli Telmo não voltaria a filmar. Deixou, no entanto, um modelo de

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comédia (com algumas raízes no Parque Mayer) que, ao longo dos anos, viria a ser retomado com variantes menos felizes, de humor igualmente tranquilizante, assentes no talento e na popularidade de excelentes actores de teatro. De A Canção de Lisboa (em que aparece Manuel de Oliveira num papel secundário) ficou, sobretudo, uma cena de antologia: a eleição de miss costureira na associação recreativa de bairro. Cottinelli Telmo, que foi um dos bons arquitectos do seu tempo, e dirigiu a revista infantil “Abêcêzinho”, faleceu em 18 de Setembro de 1948. Outros nomes vão aparecer. Jorge Brum do Canto, que ensaiara os primeiros passos cinematográficos com duas curtas-metragens “vanguardistas” (A Dança dos Paroxismos e Paisagem), surge em 1935 ao lado de Leitão de Barros numa segunda transposição para o cinema do romance de Júlio Dinis: As Pupilas do Sr. Reitor. Assina a planificação e trabalha nesse filme como assistente de realização. Essa segunda versão das Pupilas é ainda uma ilustração da obra literária, com algumas variantes e fugazes momentos de investigação plástica. Mais uma vez (e não seria a última) a obra literária é pegada pela rama, sem grande inspiração. Outro nome é Chianca de Garcia, recém-conquistado pelo cinema (que chegou a afirmar não ser uma arte), que em 1936 dá o seu grande passo, saltando do incipiente Ver e Amar para O Trevo de 4 Folhas e daí para Aldeia da Roupa Branca (1938), ambos com Beatriz Costa. Musicados e cantados, como era corrente na época, procuram sobretudo o entretenimento do espectador. No entanto, Aldeia da Roupa Branca, com algumas influências, aqui e ali, do cinema americano, apresentase com razoável desembaraço narrativo e uma certa frescura sacudida pelo dramatismo da corrida das carroças. O filme podia ser tomado como uma promessa, mas Chianca de Garcia ficou por aqui. Afirmar-seia muito mais como brilhante cronista do que cineasta. Artur Duarte – homem já calejado no cinema, como actor de papéis secundários, em filmes alemães e filmes portugueses – vem também tentar a sua chance como realizador, trazendo de novo para a tela Os Fidalgos da Casa Mourisca, com muito menos engenho e rigor do que George Pallu nos tempos do cinema mudo. Entretanto, Leitão de Barros faz mais dois filmes: um Bocage, com vistosa mise-en-scène, que inaugura o seu “cinema pseudo-histórico” de grande espectáculo (à escala portuguesa), e uma transigente comédia musical: Maria Papoila, dentro do tolerante “gosto popular”. É do mesmo ano o primeiro filme “político” português, feito mais por oportunismo do que convicção por António Lopes Ribeiro, segundo um “pitoresco” argumento de Jorge Afonso e Baltazar Femandes. Chamou-se ele: Revolução de Maio. Se não me en-

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gano e a convicção não era tão pouca como isso – nessa altura Lopes Ribeiro tinha-se alistado na Legião Portuguesa – então o realizador, ao servir o fascismo, animando uma intentona de folhetim que não tinha nada que ver com a resistência ao regime, serviu-se mal do cinema e mal serviu o que pretendia servir. Mas talvez tenha servido a Lopes Ribeiro para, mais tarde, fazer, com enorme largueza de meios, um fastidioso Feitiço do Império. O que, ambos somados, não deu para um autêntico cinema político de exaltação salazarista e imperialista. O regime não produzia, por aqui, fruto que se espremesse... António Lopes Ribeiro nasceu em 1908. Exerceu o jornalismo e a crítica cinematográfica desde os princípios dos anos vinte. Fundou e dirigiu três revistas de cinema: “Imagem” (1928), “Kino” (1930) e “Animatógrafo” (1933). Realizou oito filmes de longa-metragem e cabazada de documentários de propaganda, dentro do espírito do SNI (isto é: como documentarista “oficial” do regime) e mais uma dezena deles, menos comprometidos, sobre monumentos, artes e indústrias. Durante cerca de três décadas, Lopes Ribeiro estará presente em cada dobrar de esquina do cinema português. Dinâmico, arguto e empreendedor, espelha-se nas suas múltiplas actividades e intervenções, raramente desinteressadas, nem sempre coerentes, muitas vezes contraditórias. (Tão depressa é capaz de deitar foguetes à jovem República espanhola – ver “Kino”, n.º 52 – como dar vivas ao Estado Novo português; exaltar os filmes de Charlot, como desencadear um ataque feroz a Charles Chaplin.) Crítico cinematográfico, cronista, cineasta, produtor de filmes, encenador de teatro, com bedelho metido em (ou por trás de) quase tudo quanto ao cinema em Portugal diz respeito, com uma personalidade complexa e pronta capacidade de acção, António Lopes Ribeiro foi paladino de boas e de más causas. No meio dos seus acertos, desacertos, opções e reviravoltas, nem tudo é de rejeitar de entre tantas coisas em que se meteu. É no conjunto de tudo isso que deverá ser julgado. Retomando um dizer (já aqui citado) de Leitão de Barros, direi que Lopes Ribeiro amou sinceramente o cinema e mamou da teta dele alegremente. Depois de Revolução de Maio e de Feitiço do Império, António Lopes Ribeiro saltou para a comédia satírica (O Pai Tirano, feito, no parecer de Félix Ribeiro, “com malícia, com carinho e bom humor”, numa tentativa de tomar um jeito, menos subtil, à René Clair) e daí passou para as adaptações de obras literárias, trazendo de novo ao écran Camilo, Eça de Queiróz e André Brun. Com algum acerto mas sem grande imaginação recriadora, essas obras balançaram entre, o cine-teatro conscientemente assumido e a ilustração (aliás cuidada) de uma narrativa pré-

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existente. Nos casos de Amor de Perdição (1943) e de O Primo Basílio (1959), os personagens de Camilo e de Eça tomaram configuração física mas perderam densidade humana, social e psicológica. E passou-se por alto pela possibilidade de, pelo menos, esboçar a pintura de uma época e de uma sociedade (o que, de resto, não estava nos propósitos primeiros do realizador). No entanto, os filmes de Lopes Ribeiro – nestas abordagens da Literatura e do Teatro – foram degraus que se procurou franquear, característicos da lenta caminhada duma incipiente cinematografia, mesmo quando aplicado algum cuidado, alguma ambição e boa vontade... Não quero, porém, adiantar-me mais sobre o tempo. Estávamos no fim dos anos trinta. Voltemos lá e retomemos o fio cronológico dos acontecimentos. Por vezes com um só filme de longa-metragem por ano, por vezes com três ou quatro, o cinema português lá vai andando, pé aqui, pé ali, inseguro do futuro que o espera, sem rumo certo a que aproar. É aqui que surge Brum do Canto com A Canção da Terra, cujo lirismo e pureza de meios a tornaram uma película memorável. A propósito deste filme escreveria Nobre: “A austeridade de processos não exclui haver pancadaria a mais e uma canção amena. O lirismo atinge o excesso quando o martírio do Pai é, simbolicamente, coroado por uma auréola. Mas tudo isso é secundário ante a ternura e humanidade com que é visto o povo na sua luta ante a Natureza adversa, no seu amor simples, no seu heroísmo humilde – naquela seca que nos convence, naquela expectativa ante as nuvens que passam, naquele belo e tão enternecido casamento místico e simbólico, com o anel do cajado, ante as ruínas de uma ermida. Há verdade, poesia, sinceridade, dignidade, sem esquecer a linguagem estética duma obra de arte.” (in Singularidades do cinema português). A Canção da Terra parecia continuar uma via apontada por Maria do Mar e a muitos levou a depositar grandes esperanças em Brum do Canto e num cinema que cada vez mais se aproximasse do povo português, de uma realidade bem portuguesa que, através da sua particularidade, atingisse o universal. Mas, “quando lógico parecia deverem os cineastas insistir nessa via (escreveria ainda Roberto Nobre) logo a abandonaram e foram experimentar o enjoativo filme histórico, a comédia mais ou menos americanizada e, no maior número de vezes, com o faduncho e o popular pejorativo”. Em certo momento da história do nosso cinema, os filmes mais prometedores nasceram de um impulso criador, de um entusiasmo sem premeditação, de amor pelo próprio cinema e revelaram boas faculdades dos seus autores. “Mas logo também renunciaram, ne-

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gligentemente, a essas suas boas faculdades.” E cito novamente Roberto Nobre: “A inquietação intelectual descobre os segredos da arte do cinema e só mais tarde o negócio vem aproveitar-se disso. Em Portugal o cinema nasceu ao contrário. Pode mesmo dizer-se que, mesmo antes de haver cinema, houve logo o negócio de se fazer cinema. Nunca houve D. Quixote, mas sempre a sensatez ambiciosa de Sancho. Nunca pretendeu ser um sonhador ingénuo. Quis logo ser prudente, prático e lucrativo.” (Entre parêntesis, direi que D. Quixote acabou por aparecer e se afirmar entre os cineastas portugueses. E estou a pensar, evidentemente, em Manuel de Oliveira). A trajectória de Brum do Canto veio dar razão àquelas palavras de Roberto Nobre. Se exceptuarmos Lobos da Serra (1942), as concessões vão-se acentuando na obra deste cineasta: João Ratão (1940), Fátima, Terra de Fé (1943), Um Homem às Direitas (1944), Ladrão Precisa-se (1946). A sua intuição e as suas reais capacidades “dispersaram-se por experiências em todos os sentidos e as mais perigosas”, dirá ainda Roberto Nobre, “mas permitem-lhe atingir frequentemente bom nível cines tético quando as concessões o não perturbam”. O mal é que o perturbam frequentemente... As concessões e as convicções. O que não retira ao conjunto da sua obra um evidente relevo dentro do cinema português dos anos 40/50. Note-se que, à data de A Canção da Terra (1938), as inquietações e ideias renovadoras que agitam as Artes Plásticas e as Letras não têm reflexo no cinema português. Mas é de assinalar o interesse e a atenção que ao cinema dedicam revistas e jornais como “Presença”, “O Diabo”, “Sol Nascente”, “Seara Nova”. Alguns poetas escrevem mesmo sobre cinema: José Gomes Ferreira, António Botto, José Régio, Adolfo Casais Monteiro (estes dois na “Presença” e na revista cinematográfica portuense “Movimento”, fundada por Armando Vieira Pinto em 1933). Mas os intelectuais não têm força suficiente para imprimirem novos rumos ao cinema nacional, que não se consolida nem como forma de expressão artística nem como indústria, e lá vai seguindo conformado e conformista, quietinho e bem comportado... Mas não tão inocente como isso. Na aparência de querer “não ter nada com a política” (o cinema é para a gente se entreter, rir um pouco, chorar um bocadinho, não é?...) esse cinema, com raras excepções e por muito tempo, irá funcionar perfeitamente dentro da política do regime: espelhar a imagem e os modos que se pretende fazer crer que são os deste bom povo – probrete mas alegrete, sentimental e marialva, com oito séculos de história e um impé-

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rio (a respeitar), conformado e feliz com a sua simplicidade, a sua ração diária de alpista, a festa brava, o fado e o sol sobre o Tejo. E se não dança o vira, vai nas marchas do Santo António, sem complexos, sem inquietações ou angústias, sem interrogações ou revoltas, sem outros problemas senão os que se resolvem com uma conciliação, uma conversão ou um casamento. A censura viria, depois, zelar por que essa imagem não fosse perturbada. No fim dos anos trinta, Manuel de Oliveira estava “arrumado”. Por força de circunstâncias adversas, o cinema português foi desfalcado de obras que poderiam ter ficado como retrato fiel de um povo, de uma época e de determinados extractos sociais. Que seriam, também, obras de investigação formal. Por volta de 1933/34,Manuel de Oliveira chegou a acariciar um grande projecto que esteve a pontos de se concretizar: um documentário de longa-metragem, romanceado, sobre o Vinho do Porto – vasto e imponente fresco da vida rude, ingrata, sem amanhã, dos trabalhadores da região duriense cujo suor e labor de escravos foi enriquecendo produtores, armazenistas, exportadores. Chamar-se-ia Gigantes do Douro. O Instituto do Vinho do Porto devia subsidiá-lo. Mas não gostou da maneira como Manuel de Oliveira abordava o assunto... e roeu a corda já depois de assinado um contrato. Outros filmes se frustraram: Luz, A Mulher que Passa (comédia dramática que seria uma procura de novos meios de expressão cinematográfica com subtis notas de humor e de sátira sobre a burguesia desportiva e boémia do Porto) e Prostituição (filme do underground urbano, inspirado em casos e pessoas verídicos, obra de análise de sentimentos, situações e comportamentos, dentro de uma realidade clandestina: as “casas de passe”, as ruelas suspeitas e a sua vida oculta, os “cabarets”, os bares, tendo por detrás a paisagem humana e social de uma cidade (o Porto) e de uma época. Mas estava escrito: depois do Douro, Faina Fluvial, Manuel de Oliveira teria de esperar dez anos para encontrar uma nova oportunidade de filmar! Surgiu essa oportunidade quando lhe ofereceram os meios materiais para rodar um despretencioso documentário sobre Famalicão, que ele aceitou fazer, sobretudo, pelo gosto de voltar a manejar uma câmara de filmar. Logo a seguir, António Lopes Ribeiro (que tinha criado uma empresa produtora de filmes) oferece-lhe a chance de realizar Aniki-Bóbó, seu primeiro filme de enredo. Verdade se diga, nos meios cinematográficos lisboetas só Lopes Ribeiro “jogaria” na capacidade do jovem cineasta portuense, dando-lhe a mão pela segunda vez, contra a oposição de muita gente. Tinha franqueado o limiar dos anos quarenta, década que viria a dar ao cinema português quarenta e cinco novos filmes e muito pouco cinema...

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Desse período trataremos a seguir. Caracterizam-no alguns filmes, a publicação da Lei n.º 2027, dita de protecção ao cinema nacional, o aumento da repressão sobre o cinema e a eclosão do movimento cineclubista rigorosamente vigiado. A segunda grande Guerra Mundial tinha posto a Europa em fogo. Muitos refugiados passaram por cá em situações dramáticas.Embora não envolvido directamente no conflito, Portugal não deixou de ser afectado por ele. Por aqui andou também a espionagem. Houve as negociatas do volfrâmio. Como vai passando, nos anos 40/50, ao lado dos autênticos sentimentos, das carências e revoltas, dos preconceitos, dos hábitos, das aspirações, dos temores, das fraquezas e heroísmos de que é feita a alma da gente portuguesa; o que levará Luís Neves Real a escrever que “foi nos filmes italianos do após guerra (Dois dias fora da vida e Sonhando pelo caminho) que sentiu perpassar uma forte e inconfundível rajada, meio picaresca meio sentimental, mas digna e sempre humana, de vida portuguesa...” que faltava no cinema português. Manuel de Oliveira virá a ser, até ao princípio dos anos sessenta, um caso isolado e totalmente à parte.

“Um clima de ansiedade e inquietação perturbou-nos muitas vezes. Houve também esperanças que se perderam... O cinema português passou ao lado de tudo isso. Alegremente.“


BEATRIZ COSTA, ESTÚDIO MÁRIO NOVAIS


OS ANOS QUARENTA

Logo nos princípios de 1940 dois nomes novos aparecem no nosso nebuloso horizonte cinematográfico: Adolfo Coelho (Porto de Abrigo) e Armando Miranda (Pão Nosso). Não trazem nada de novo. Adolfo Coelho não volta à longa-metragem e faz muito bem. Pelo contrário, Armando Miranda insiste (para pior) com uma Ave de Arribação (1943), um segundo José do Telhado (1945), Capas Negras (1947), com Amália Rodrigues, e outras fitas que degradam mais do que enriquecem a cinematografia portuguesa. Por seu turno – depois de ter posto a cantar, à Varanda dos Rouxinóis, Madalena Sotto, uma desconhecida menina de Oliveira de Azeméis que do cinema viria a ser catapultada para o teatro, onde fez carreira – Leitão de Barros tenta com Ala-Arriba acercarse de novo da gente do mar. O filme, produzido pela Tobis Portuguesa com subsídio do S. N. I., sai-lhe desarticulado, “com personagens falsas saídas de museu etnográfico”, ilustrando um conflito que escamoteia os problemas reais, quotidianos, dramáticos, prementes, dos pescadores poveiros. O argumento e os diálogos eram de Alfredo Cortez. Os intérpretes foram autênticos pescadores da Póvoa de Varzim. O sentido plástico de Leitão de Barros, o talento do dramaturgo e a autenticidade dos intérpretes não vieram a somar-se naquele resultado que poderia esperar-se. Foi pena. Sempre presente e atento, a António Lopes Ribeiro não escapam as propícias circunstâncias que, devido à guerra mundial, se apresentam para a defesa comercial do filme português, com a menor concorrência estrangeira no mercado nacional. Decididamente põe em execução um projecto de produção contínua de que, a curto intervalo, saem três filmes: O Pai Tirano (1941), O Pátio das Cantigas (1942) e Aniki-Bóbó (1942). O Pai Tirano, realizado por Lopes Ribeiro e O Pátio das Cantigas, realizado por Francisco Ribeiro, duas comédias ligeiras, esquemáticas, com um certo sentido de humor caricatural, apoiavam-se essencialmente na participação de actores com inconfundível personalidade e riqueza de imaginação (Vasco Santana, António Silva, Ribeirinho) colocados em situações que lhes permitiam tirar partido dos frequentes trocadilhos do diálogo. Estas duas comédias inserem-se no que poderíamos chamar “o cinema de bairro”, em tom cor de rosa, que teria muitos continuadores. Assim “se foi inventando (como diz Manuel Pina em O Cinema – Enciclopédia da 7.ª Arte) uma sociedade de gente simples, sã, alegre e trabalhadora, onde as únicas nuvens eram as inevitáveis paixões humanas”. Mais tarde virá juntar-se a esta sociedade uma típica figura: o espertalhão à

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portuguesa, bem disposto, optimista, cheio de recursos, curto de escrúpulos, que não é figura tão de ficção como isso. Existindo de facto e sempre gozando entre nós de simpatias especiais, voltaremos a encontrá-la – já inserida noutro contexto – no cinema moderno. O terceiro filme desta série de “Produções Lopes Ribeiro” coube a Manuel de Oliveira (em que o realizador teve alguma participação financeira nunca recuperada). Foi assim que ele pôde realizar o seu primeiro filme de enredo e longa metragem: Aniki-Bóbó, após dez anos de espera. Inspirado num conto de Rodrigues de Freitas (“Meninos milionários”), Aniki-Bóbó foi rodado quase totalmente em exteriores (na cidade do Porto), tendo à câmara António Mendes, que mais uma vez deu provas da sua extraordinária competência. A fita ficou concluída em fins de 1942. Quando da sua estreia, o realismo poético de Aniki-Bóbó e as subtis intenções do autor não seduziram o público tanto quanto seria lícito esperar. Uma certa dose de incompreensão marcou, também, muitas críticas da época. No entanto, Rui Grácio escreveria (“Horizonte” 13/1/943): “Manuel de Oliveira articulou nesta história alguns dos elementos que constituem parte da vivência psíquica dos garotos daquela idade e daquele viver: o tédio de uma escola arcaica; o medo do polícia; as lendas que envolvem o mistério da morte; o jogo dos polícias e ladrões; o espectáculo sempre novo do comboio que passa. Não se põe o problema da criança. Tarefa difícil. Mais para louvar é a ousadia do cineasta portuense que tem ainda de lutar com a incompreensão de um público pouco disposto a recolher mensagens de ingenuidade e poesia.” Essa incompreensão atinge o desvario na pena do comentarista do jornal “Cidade de Tomar” (24/1/943) que, indignado, escreverá: “A fita é uma infame cilada à inocência das crianças e à imprevidência dos pais. É uma verdadeira monstruosidade.” Fernando Fragoso, na “Vida Mundial” (7/1/943) espelha também a sua mentalidade e a sua cegueira: “Considerei desde logo a história de Aniki- Bóbó anti-comercial e demasiado literária (...) Procuramos convencer M. de O. que a sua história carecia de verdade humana e que, com outro desenvolvimento que unisse aquelas crianças em torno de uma boa acção, lhes faria perder o ar de “Dead End Kids” tripeiros com vantagem para o espectáculo e a acção construtiva de que o filme português não deve alhear-se.” Serão os poetas aqueles que melhor entenderão Aniki-Bóbó. Assim, António Botto escreverá (“Os Sports – 4/1/943): “De uma grande honestidade, com pedaços de límpido cinema, este filme dá o encanto das coisas despretensiosas e belas, no seu aprumo de simplicidade emotiva recortada duma intenção social irónica e popular.” Por seu turno, Adolfo Casais Monteiro terá estas palavras:

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“O caso de Manuel de Oliveira é único na nossa cinematografia. Tem o cinema na medula dos ossos, e o seu silêncio é o preço da autenticidade da sua vocação. Tanto Douro, Faina Fluvial como Aniki-Bóbó nos dão bem a medida dessa vocação e do que o cinema português podia ter ganho caso tivesse sido possível a Manuel de Oliveira exercer uma actividade regular. O seu caso é único porque ele é, até hoje, o único que parte da imagem cinematográfica e não tentou fazer da imagem uma ilustração de ideias “literárias”, vendo ao mesmo tempo no cinema uma forma de comunicação humana.”

Depois de Aniki-Bóbó, o cinema português, durante largos anos, não voltou a ter poesia. Mas voltou, frequentemente, à laracha do Parque Mayer, ao folklore de pacotilha, às lamechices do fado (com fado ou sem ele), à história moralizante e à “reconstituição histórica” (a que os espanhóis chamam com humor “cinema de barbas”). Para Manuel de Oliveira seguiram-se mais 14 anos de inactividade cinematográfica e de esquecimento. O filme viria a ser “ressuscitado” em 1954 pelo Cineclube do Porto e foi, para muitos, uma surpresa. Ali encontraram, com espanto, a antecipação do “realismo mágico” do cinema italiano do após-guerra. O mesmo espanto eu encontrei numa plateia francesa quando o filme foi

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exibido em Nice, numa Semana de Cinema Português ali levada a efeito muito mais tarde. Na altura em que o filme foi “ressuscitado”, Manuel de Oliveira, solicitado a pronunciar-se sobre ele, diria: “Pretendi espelhar nos garotos os problemas do homem, problemas ainda em estado embrionário; pôr em oposição concepções do Bem e do Mal, o ódio e o amor, a amizade e a ingratidão; sugerir o medo da noite e do desconhecido; reflectir a atracção da vida que palpita em todas as coisas à nossa volta, contrastando com a monotonia do que é fechado, limitado por paredes, pela força ou pelo convencionalismo.” Em 1944, Manuel de Oliveira acarinhou ainda o projecto, de fazer um filme que se intitularia Saltimbancos e que seria a pintura dramática e poética do mundo do Circo, visto, também, como o espelho ou o símbolo do mundo sem repouso em que vivemos. O projecto gorouse mais uma vez. Desgostoso, Manuel de Oliveira desviase do cinema e aplica a sua atenção e as suas actividades noutros campos. Entretanto, outros filmes vão aparecendo. O que dá uma certa animação ao nosso panorama cinematográfico. Artur Duarte reaparece com uma comédia: O Costa do Castelo, que é um êxito comercial, e António Lopes Ribeiro apresenta uma nova versão, ilustrativa mas bastante equilibrada, de Amor de Perdição, que, se não fez chorar os espectadores sensíveis tanto como a versão de George Pallu, ainda hoje (verifiquei-o numa reposição recente) exerce certa atracção sobre um público que continua a ser sensível a histórias lineares e românticas que o comovam. Lopes Ribeiro elaborou uma “planificação” muito direitinha, saltou com agilidade alguns escolhos da adaptação e encheu de acção as soluções de continuidade do romance... que ficou um bocado foto-novela, sem ofender Camilo Castelo Branco. Depois de Camilo, Lopes Ribeiro passará para André Brun, realizando (mesmo em cima da peça) A Vizinha do Lado. E enquanto Brum do Canto puxa à lágrima e ao milagre (Fátima, Terra de Fé) e à dignidade (Um Homem às Direitas) – o que não deixa de nos recordar os filmes de Feuillade, para a Gaumont – Artur Duarte prossegue, com A Menina da Rádio, num género que se destina a um razoável sector do público que, hoje, podemos comparar ao que, agora, faz o êxito dos filmes indianos... É a contra com esse público pouco exigente que outras fitas vão formando os degraus da nossa história cinematográfica. Negativos (quase sempre para ela), positivos (as mais das vezes) para os que os fazem, como é o caso de Henrique Campos, que se apresenta com Um Homem do Ribatejo e vai por aí fora em partos sucessivos “para servir o gusto do público com fitas lineares que toda a gente entende” (remoque do cineasta obviamen-

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te endereçado aos que, em 64/66, tiraram o nosso cinema da vil tristeza artística em que se encontrava). Por seu turno, Leitão de Barros – dispondo de meios avultados – realiza Camões (1946), em grande estilo e em dois “tempos”: uma primeira parte desenvolta e movimentada, uma segunda parte majestosa e pesadona – obra irregular e exterior que, na altura, deu ares de coisa importante. Adolfo Casais Monteiro (e volto a citar um poeta) comentaria: “Leitão de Barros veio da pintura para o cinema e não conseguiu, talvez por nem sequer o ter procurado, vencer algumas limitações que daí resultam. Viu sempre os seus filmes como uma sucessão de quadros “bonitos”; falta-lhe primacialmente uma visão cinematográfica. Cada filme seu faz-nos lembrar sempre que ele é um especialista na organização de cortejos... O seu sentido de valores plásticos permite-lhe trabalhar uma matéria já feita, como é o caso de Camões, com relativa felicidade e grande êxito entre o público que se commove com uma história por conta do mito nela contido, sem que de 2

todo em todo lhe pese a ausência de real material cinematográfica.” Outra gente vem tentar a aventura do cinema (entre ela uma mulher: Bárbara Virgínia, com Três Dias sem Deus). Com mais boa vontade do que engenho, à espreita de um êxitozinho de bilheteira, cada um trazendo consigo uma nova frustração. Talvez tenha sido Artur Duarte a averbar melhores resultados junto de um público que deseja essencialmente divertir-se e que ele realmente divertiu com O Costa do Castelo e O Leão da Estrela. Mas, atenção: estas comédias amavelmente satíricas, com momentos bastante divertidos (a que não foi alheia a participação de excelentes actores do Teatro) são obras “acomodadas”. O texto original de O Leão da Estrela, por exemplo, foi despolitizado (como hoje se diria), o que é uma forma de servir uma certa política... ou uma certa estratégia, para estar de bem com os poderes instituídos e a censura. Com data de 18 de Fevereiro de 1948 é promulgada a Lei n.º 2.027, de protecção do cinema nacional. Diz assim o seu Art.º 1.º: “A fim de proteger, coordenar e estimular a produção do cinema nacional e tendo em atenção a sua função social e educativa, assim como os seus aspectos artístico e cultural, é criado o Fundo do cinema nacional.” António Ferro, da sua posição oficial, explicaria, num discurso (que veio a ser contrariado pelas acções que posteriormente se viram), que o Fundo “será para ficar à disposição dos devotos do cinema nacional e não dos seus exploradores”. E diz como e quem pode recorrer a esse Fundo: produtores e realizadores de: “a) filmes regionais ou folclóricos, quando as planificações não sejam mesquinhas, catitas, demasiado vestidas à moda do Minho; b) filmes históricos, porque tal cinema se for elevado nos eleva

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sempre; c) filmes policiais de boa urdidura; d) filmes extraídos de romances ou de peças, conforme o romance ou a peça e conforme a planificação (note-se a ambiguidade desses conforme); e) documentários que se proponham, com boas garantias, filmar certas obras do nosso renascimento ou aspectos das paisagens, cidades e monumentos do nosso país; f) filmes de essência poética; g) filmes do nosso quotidiano”. E mais adiante, no mesmo discurso, António Ferro afirmara: “Não serão filmes de êxito comercial garantido, mas foi para eles, precisamente, que se criou o Fundo Cinematográfico Nacional que os ajudará a travar a batalha necessária, indispensável, para reabilitar o cinema português e elevar o nível do gosto do público.” Logo a seguir, António Ferro lembra os filmes cómicos, que também poderão aspirar a auxílio do Fundo “quando se tratar de comédias amáveis ou até de bons costumes populares, mas não explorem o que há ainda de atrazado, de grosseiro, na vida das nossas ruas ou no porte de certas camadas sociais”, e não incluam “expressões de calão, gostos ou atitudes de bruteza”. Como se vê... por um lado, palavras prometedoras que a realidade não confirmaria (enquanto Manuel de Oliveira via retidos e sem auxílio projectos de filmes como Angélica, filme de essência poética, mas com muitas implicações que não agradaram ao SNI; como Pedro e Inez, filme de carácter histórico, mas fora dos moldes esteriotipados; A Velha Casa, recreação de um romance de Régio; O Bairro de Xangai, filme do quotidiano... num bidonville do Porto, – muito dinheiro foi posto em mãos inábeis para a realização de mistelas de todo o tamanho; e não foi só Manuel de Oliveira a ser desfavorecido: outros o foram também, incluindo alguns dos beneficiados que pagaram com concessões o que receberam em financiamentos...); por outro lado, ausência total de criação de estruturas para garantia de expansão e colocação do produto nacional no mercado interno. Em vez disso, a Lei estabelecia a obrigatoridade de exibição de filmes portugueses de grande metragem “na proporção mínima de uma semana de cinema nacional por cada cinco semanas de cinema estrangeiro, independentemente do número de espectáculos semanais” (...) “na medida em que o número de filmes nacionais o permitir”. (Cap. V – Art. 17.º). Esta disposição nunca foi rigorosamente cumprida e acabou por ser desrespeitada. Nem sequer era realista. No discurso de António Ferro apontam-se os critérios a adoptar para a concessão de subsídios. É de notar o espírito subtilmente restritivo que os deverá informar, traduzido naqueles “conforme”, “com boas garantias”, “desde que”, ou na referência a “comédias amáveis”, a “bons costumes”, etc.

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Quando a Lei baixou à Assembleia, já estava aprovada por Salazar. A Assembleia só tinha que dizer sim, e estava o caso arrumado. Mas deu-se, então, um caso inesperado. Um novo deputado, o Prof. Mendes Correia, julgando ainda que uma Lei posta à apreciação da Assembleia Nacional seria para estudar, discutir e corrigir, procurou documentar-se, consultou várias pessoas ligadas às actividades cinematográficas e foi para S. Bento levanter os seus reparos e expor algumas dúvidas que diversos pontos do diploma lhe suscitavam. Nesse mesmo dia, ou no dia seguinte, logo alguém (A. Lopes Ribeiro sabe quem foi...) procurou o Prof. em casa de seu irmão, onde estava hospedado, com a incumbência de o convencer (primeiro) das qualidades e vantagens da Lei e (em última instância) o avisar de que “Salazar queria a Lei aprovada depressa, melhor seria o Sr. Professor não fazer ondas...”Outro caso típico deu-se a seguir. Roberto Nobre fez e publicou num folheto uma análise desfavorável da Lei. O folheto intitulava-se “O Fundo”. Por ordem do SNI, a Pide “visitou” e vasculhou a residência de Roberto Nobre, sendo o folheto apreendido. Com o tempo veio a verificar-se que a Lei não aproveitou ao cinema nacional.E, com o espírito que acabou por informar a sua aplicação, antes serviu para o afundar... Ao contrário do que António Ferro “profetizara”, no discurso citado. As palavras que referi inseriam-se na alocução que Ferro pronunciou quando da atribuição do prémio do SNI ao filme Camões 8. Quase no final, depois de fazer o elogio do produtor (António Lopes Ribeiro) e do realizador (Leitão de Barros): “dois homens de acção e de espírito que se juntaram para uma grande obra de interesse nacional”, António Ferro aludiria à presença do filme Camões no Festival de Cannes, onde não recebeu prémio nem nada “porque contra ele se levantaram influências dos comunistas... incapazes de compreenderem o nacionalismo elevado e puro, tranquilo e modesto, de certas nações que se contentam consigo próprias e com os seus limites...” Sempre com costas largas, os comunistas. É ainda no ano de 1948 que surge o movimento dos cineclubes. O primeiro (Círculo de Cinema, de Lisboa) foi brutalmente reprimido pela polícia política. Mas o Cineclube do Porto, fundado em 1945, ganha força em 1948 com a entrada, para a sua direcção, logo após a aprovação dos seus estatutos, de Luís Neves Real, Manuel de Azevedo, Gonçalves Lavrador, Henrique Alves Costa, os irmãos Virgílio Pereira, Mário Bonito e José Borrego. Rapidamente o Cineclube do Porto ultrapassa o milhar de sócios e assume um papel de grande relevância. Outros cineclubes vêm formar-se e colocar-se a seu lado: o Clube de Cinema de Coimbra, o Cineclube Universitário, o ABC Cineclube de Lisboa, o Cineclube Imagem. Deles dirá

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Manuel Pina (in O Cinema – Enciclopédia da 7.ª Arte): “Os seus propósitos eram claros: encarando o cinema como uma forma de expressão artística e veículo de ideologias, procuravam, através de uma actividade didáctica – textos, palestras, colóquios – alertar a generalidade do público par o fenómeno cinematográfico, a sua importância, o papel que desempenhava. (...) O movimento rapidamente se estendeu a todo o país, havendo por volta de 1956, mais de 30 cineclubes em actividade. As consequências foram incalculáveis pois surgiram grupos de pessoas profundamente interessadas no cinema, quer como simples espectadores mais exigentes, quer como intervenientes no processo: alguns tornaram-se profissionais, outros abordaram o campo da crítica, outros ainda permaneceram ligados aos cineclubes e aos problemas da difusão do cinema. Face a este crescente interesse, os próprios Distribuidores acabaram por ser solicitados a arriscar exibir filmes até aí impensáveis; a maioria dos jornais diários entregou a sua secção de crítica quer a especialistas, quer a figuras culturalmente representativas. Era uma bola de neve. Quando, a partir de 1958, a repressão maciça se abateu sobre os cineclubes, era já impossível abafar a semente lançada, e o cinema português acabou por reflectir essa circunstância.” Entre os cineastas saídos dos cineclubes (e que fariam nome a partir de 1964) poderemos citar, entre outros, José Fonseca Costa, António Reis, António-Pedro de Vasconcelos, Paulo Rocha. Os cineclubes eram também focos de resistência contra uma política de “neutralização”, desinformação, embrutecimento, despolitização, em que o regime se empenhava para que tudo, tranquila e conformadamente, fosse aceite Segundo as determinações férreas de um homem só. A influênciados cineclubes e, sobretudo, as intervenções atentas ecorajosas do Cineclube do Porto, foram decisivas para alguns grandes passos em frente o cinema português, como essa justamente celebrada “Semana do Porto” (promovida pelo cineclube local) de que resultou a criação do Centro Português de Cinema e o auxílio da Gulbenkian para a produção de alguns filmes independentes e descomprometido que, sem isso, talvez jamais se tivessem realizado. Nos fins da década de quarenta aparecem ao lado de Artur Duarte, Leitão de Barros, Lopes Ribeiro, Brum do Canto, Armando Miranda, Henrique Campos – três ou quatro nomes novos (alguns estrangeiros, como Ladislau Vadja e Eduardo Maroto). Não adiantam grande coisa, mas ajudam a manter a produção de longasmetragens entre os quatro e os sete filmes por ano (seis em 1946, sete em 1947, quatro em 1948, sete em 1949), cada qual representando um empreendimento isolado ou

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uma aventura para que se parte sem meios técnicos e financeiros capazes. Como, nessa altura, ainda o filme português atraía um número razoável de espectadores, às vezes os exibidores davam uma participação financeira (garantida pela receita da exibição do filme na sua sala), o que ajudava a juntar a verba necessária para a produção. Entre os recém-chegados está Perdigão Queiroga. Estreia-se, no filme de enredo, com Fado, História duma Cantadeira, segundo um argumento original de Armando Vieira Pinto. O filme conta com alguns trunfos: fados de Frederico de Freitas, Frederico Valério e Jaime Santos, com versos de José Galhardo e Silva Tavares, e um atractivo conjunto de intérpretes: Amália Rodrigues, Vasco Santana (num papel fora do seu estilo habitual), António Silva, Eugénio Salvador e Virgílio Teixeira. Queiroga revela-se muito mais hábil e (tecnicamente) mais capaz do que um Armando Miranda ou Henrique Campos, mas é um cineasta com limitações culturais e uma concepção de cinema demasiado comercial, circunstâncias que acabarão por tolhê-lo. De tudo isto não deixará dúvidas quando, em 1951, realiza Sonhar é Fácil, segundo um argumento de Leão Penedo, numa aproximação da corrente neo-realista que se verificava na nossa literatura. Sonhar é Fácil “era um bom tema” – escreverá Roberto Nobre – “mas o desencontro entre o que Leão Penedo concebera e que se realizou foi deliberado, pois apenas se quis fazer uma comédia sem compromissos, aproveitando as situações, qualquer outra intenção explícita ou implícita. Se o argumento era de intuito neo-realista, já não o foi a adaptação e, muito menos, a realização de Queiroga, que, evitando embora o “popularuncho” nacional, parece ter visado fazer uma comédia amena, dum burguesismo socializado, à Frank Capra, dispondo, é claro, de meios bem mais precários”. Na direcção de actores, também Queiroga não soube (ou não quis) pedir a António Silva a composição correcta do personagem principal, “que devia ter um fundamento de humanização e de ternura que conseguisse comunicar-nos a soma de poesia que transcende a insensatez, mesmo o ridículo. Isto lhe pedia o argumento, mas não foi isso que lhe pediu o realizador e não foi isso que lhe deu o actor”. (Roberto Nobre). Sonhar é Fácil foi o melhor filme de Queiroga e o limite das suas capacidades. Mais tarde fará umas Pupilas do Sr. Reitor (terceira versão), a cores, muito “folclóricas” e muitíssimo foto-novela, o que, digase de passagem, agradou muito ao S.N.I.... Outro nome que apareceu foi Fernando Garcia, com uma inverosímil história de pescadores, a que chamou Heróis do Mar. Cinco anos mais tarde, de mãos dadas com Domingos de Mascarenhas, que Lopes Ribeiro tinha trazido para a crítica

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cinematográfica, daria cabo de um saboroso conto de Eça de Queiroz: O Cerro dos Enforcados, transformando-o num pastelão à “film d’art” com a agravante (crime premeditado) de trair o humor e o sentido com que Eça o escreveu. A fechar a década de quarenta, vem o grande estenerete de Leitão de Barros com Vendaval Maravilhoso, produção luso-brasileira que custou milhares de contos (o que para a época era coisa de espantar) e ficou a não valer um chavo. Leitão de Barros não soube tratar um assunto tão rico de conteúdo humano como era a biografia do grande poeta Castro Alves e o seu combate à escravatura, que era também um combate à sociedade do seu tempo. Leitão de Barros deixou-se conduzir, mais uma vez, pela tendência simplista para o superficial, o fácil e o pitoresco. Do drama dos escravos o Brasil não soube dar a imagem. O génio, o fogo, a inquietação de Castro Alves aparecem-nos, por sua vez, adocicados e diluídos num filme mal articulado, feito sem génio, sem fogo, sem imaginação. Vendaval Maravilhoso foi o suicídio cinematográfico de Leitão de Barros. O tema era grande de mais para ele: a figura de Castro Alves e a sociedade em que viveu, os problemas sociais do Brasil nos meados do século XIX, o contraste entre o ambiente romântico dos salões burgueses e a economia esclavagista, sobretudo a vida maravilhosa do poetatribuno, de quem Jorge Amado diria ter sido “o mais belo espectáculo de juventude e de génio que os céus da América presenciaram”, eram matéria para cineasta de maior estatura e mais consciente das responsabilidades que assumia. Isto aponta, como exemplo alarmante, Manuel de Azevedo, em Perspectiva do Cinema Português.•

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ANO ZERO PARA O DESIGN TEXTOS.FBA HEITOR ALVELOS 2006

Coloquemos uma simples hipótese, mesmo não nos sendo possível verificá-la por meios quantificáveis em contexto de análise laboratorial. A hipótese de o design poder ter chegado ao fim efectivo da sua vida útil. Falamos de design e logo se torna difícil saber do que falamos. É uma palavra estranha, estrangeira, sem tradução precisa nem concisa, que se pronuncia de modo diferente daquele que se escreve… Design evoca destino e vontade, design é reclamado por muitos e serve outros tantos, palavra transversal nas bocas de políticos e skaters, fala de street culture e Mac e museus como já falou de cartazes de campanha, alta costura, indústrias pesadas, exercícios kitsch e tipografia. É, no final de contas, uma designação que sempre nos escapa, que sempre define algo de muito pouco tangível apesar da sua suposta vocação de pragmatismo. Design é um chavão, um labirinto, um campo minado transformado em salão de baile de acesso livre, a abarrotar, a rebentar pelas costuras de gente que quer entrar, mesmo sem conhecer os anfitriões.

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Falamos de design e logo se torna difícil saber do que falamos. A sua natureza multidisciplinar não é tanto a fonte desta dificuldade, embora muitos preferissem que fosse a multidisciplinaridade a ditar os trajectos sinuosos e involuções inesperadas do design. Seria concerteza um alibi mais digno, mais épico – a obliquidade derivada da complexidade atribui sempre uma aura solene de respeito a um qualquer assunto em causa. E se “complexidade” é o termo por excelência de um início de Século mergulhado em mediação, mitologia, self-publishing e hiper-realidade, o design, como eterno estratega, toma como seu dever pessoal um protagonismo em todas as frentes. Falamos tanto de Design que é verdadeiramente assombrosa a falta de consenso que existe sobre esta designação. A palavra é difícil simplesmente porque todos a parecem usar a propósito de tudo. Graffiti? Design. Arquitectura? Design. Moda? Design. Engenharia de materiais? Design. Publicidade? Design. Girl Bands? Design. Antropologia urbana? Design. Culinária? Design, evidentemente. Activismo ambiental e contra-culturas anti-globalização? Design, naturalmente. Tendo começado por ser vontade de orquestração do quotidiano, o design veio a contaminar todas as esferas da prática humana. Seria possível encontrarmos uma nova designação, uma designação limpa, isenta de história, de peso cultural, social, ideológico, formativo, projectual, isenta de tentação de omnisciência? Mas não será por disseminação vírica que o design perde o seu propósito de existência: esta perda sucederá por via da sua diluição homeopática. Tudo passa a ser uma questão de design: eis a forma mais eficaz de tornar o design irrelevante. De modo recíproco, o design perde o seu propósito de existir porque aquilo que seria o seu território de exclusividade se dilui nas ambições pré-determinadas da tecnologia digital, convidando tudo e todos a participarem de um frisson de autoria. Suprema ironia: o design está hoje, finalmente, supostamente em toda a parte, e no entanto nunca o reconhecemos tão pouco. A Hidra a abater em que o design se tornou é acima de tudo consequência da sua progressiva mediatização: quer enquanto actividade de produção, quer enquanto produto de consumo (porque o design, acima de tudo, comunica-se agora a si próprio), ele perde progressivamente uma relação tangível com o mundo imediato (não-mediado), potenciando a ficção e a especulação que em última instância sustentam as culturas e ideologias de contemporaneidade, independentemente de o seu discurso pretender contestá-las.

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No universo mediado onde a autenticidade é a construção calculada por excelência, o design assume um de três papéis estruturais: ou se compraz no puro exercício estético, vagamente fundamentado na proverbial missão de conferir literacia visual ao mundo; ou se resolve em piloto automático, supostamente isento de ideologia, guiado por targets e estatísticas subscritoras de modelos de entretenimento; ou implode sob as suas construções ideológicas, incapaz de produzir qualquer impacto nos reais campos de batalha senão ao serviço de enormes equívocos que o transcendem por completo (ver o recente Live 8, o modo mais eficaz de entreter a contracultura e evitar o de outro modo inevitável cortejo contracultural de estados de sítio). Quando a ideologia vigente reserva para si mesma a autoria da sua própria resistência, afogada em simulação de intenções, não resta grande margem de manobra ao serviço dos bem-intencionados engenheiros da comunicação. Esta será a maior das razões para a progressiva irrelevância do design: ele é o terreno privilegiado de construção de ficção e simulação, num mundo sedento como nunca de autenticidade. Ele atribui uma face ao inqualificável, torna digerível o teatro do absurdo. E de uma assentada se explicam o segundo e o terceiro papéis estruturais, acima descritos, que hoje restam ao Design. Não de forma tão dramática mas igualmente necessitado de reapreciação surge o primeiro dos papéis estruturais acima enumerados: o Design enquanto agente de literacia visual. A intenção é louvável, mais ainda em contextos que não se movem por factores imediatamente tangíveis ou quantificáveis, mas a tarefa revela-se progressivamente mais desadequada à medida que enveredamos pela primeira década do Século XXI. Se a tentação original do Design foi precisamente a de conferir ordem ao mundo, estruturando a comunicação visual a ele subjacente, e se foi nesta tentação original que o design baseou todos os seus grandes paradigmas, é a sua própria essência que hoje se esboroa na impossibilidade de estruturar um mundo sobre-abundante de comunicação, onde nem os axiomas de causa-efeito possuem já qualquer validade. Se um primeiro momento pós-explosão digital produziu a celebração do vernáculo e da aleatoriedade, numa espécie de psicanálise de um modernismo que afinal de contas se reconhecia como trauma, o momento que se seguiu revelou-se fatal: o design foi liminarmente aniquilado por todas as estéticas de periferia, de subcultura, de activismo e exotismo, todas em sintonia, todas celebrando um gigantesco “tudo é possível” apocalíptico, deixando o design entregue a exercícios retro de um cinismo e de uma inconsequência confrangedores.

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Qual a autoridade que o design pode reclamar para si enquanto se alimenta de estéticas de subcultura autofágica, de mitologias hollywoodescas, de meios hiper-reais? As literacias emergentes na viragem do Século habitam o estado de “sopa primordial”, carecendo de todo o processo sedimentário que lhes permitirá qualquer chance de tradução e sistematização. O design pode tentar abrir caminho, acelerar esse processo, prever possíveis cenários ou mesmo propor-se timidamente contribuir para esse processo de sedimentação e estruturação. Mas a dificuldade de tal contribuição está na possibilidade de as novas literacias nunca virem a sedimentar-se, está na possibilidade de o presente estado transitório passar a ser um estado permanentemente transitório. No outro extremo desta mesma equação, habitamos um país caótico num mundo caótico, onde a ambição estruturante do design é diariamente confrontada com a sua própria falência, incapacidade e desadequação. O que ainda se percebe como vestígio de ambição estruturante é residual e surge caricato, insignificante, sem marca, sem carisma. E se proventura não nos encontramos rodeados de caos, estaremos provavelmente em território “disneyficado”, o que menos ainda se recomendará mas onde, ironicamente, encontraremos um projecto bastante mais sólido de estruturação comunicativa. Localmente, em termos históricos, o design nasceu subsidiário de artes ou de indústrias, tendo-se emancipado por vontades individuais para logo em seguida se submeter ao papel ingrato de agente diluidor de geografia – ou seja, encantou-se com estéticas importadas e proclamou a sua não-identidade, quer pelo pragmatismo de respostas ao status quo que antecedeu o pensar uma infra-estrutura, quer pela promessa de os meios emergentes nos aproximarem finalmente de um mundo sempre distante. Design, enquanto prática, diluiu-se por entre um oceano de outras práticas, fazendo questão de se assumir como o maior dos sindromas de user-friendliness. A sequência de questões na qual estas reflexões desembocam não é, obviamente, uma surpresa, mas muito menos é simples. Ficarão registados alguns pontos de partida, a prosseguir em outros contextos e a partilhar com eventuais interessados: Precisamos de uma nova designação para o design? Será esse o ponto de partida desejado ou inevitável para uma mudança de paradigma? E acima de tudo: como estabelecer um novo e urgente ano zero para o design, honrando em simultâneo toda a História que o nome encerra?

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“Design, enquanto designação, não envelheceu bem. Sente-se ainda herdeiro de paradigmas antigos que têm o seu lugar na História, fruto de supostos axiomas de neutralidade que revelaram ser quase-ideologias, fruto de outras eras que se perdem no tempo à medida que este acelera e se comprime.”

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MANUEL DE OLIVEIRA

A INVICTA FILM ALVES COSTA 1978

A SUA PRIMEIRA OBRA”DOURO, FAINA FLUVIAL”

Era uma vez... Lá para os fins dos anos vinte, António Lopes Ribeiro, que já andava nas lides cinematográficas como crítico de filmes nas páginas do “Diário de Lisboa”, viu por acaso, num laboratório de Lisboa, parte de uma fita que ali fora mandada para revelar. Surpreendido e entusiasmado com o que vira, quis saber de quem era. Disseram-lhe um nome. Era-lhe desconhecido. Deram-lhe uma direcção e um número de telefone. Era no Porto. Procurando contactar o autor do filme, soube que ele chegaria a Lisboa no dia seguinte integrado num grupo de desportistas que vinham participar no Campeonato Nacional de Atletismo. Foi esperá-lo. E assim se deu o encontro entre os dois à saída da gare do Rossio. (Os comboios do Porto ainda não ficavam em Santa Apolónia). Lopes Ribeiro foi direito ao fim. Falou do seu entusiasmo pelo filme e do seu desejo de o incluir no espectáculo cinematográfico que estava a organizar para os participantes do Congresso Internacional da Crítica a realizar, dali a pouco, na cidade de Lisboa. Foi insistente e persuasivo: era preciso, era indispensável, concluir o filme rapidamente.

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O jovem atleta mal podia acreditar no que ouvia. A surpresa intimidava-o. Uma oportunidade destas nunca ele sonhara poder surgir-lhe. No seu foro íntimo, exultava; mas, cauteloso, punha reticências: que ainda havia material por revelar; que a montagem ainda ia levar o seu tempo... Lopes Ribeiro foi teimoso e peremptório: o filme tinha de estar pronto à data do Congresso. E assim entre ambos ficou assente. O filme em questão era Douro, Faina Fluvial.No dia seguinte a excitação do nóvel cineasta comprometeu a actuação do desportista. Incapaz de se concentrar, nunca ele fizera provas tão más. Foi um desastre. Este moço de vinte anos era Manuel de Oliveira. Se o seu nome era ignorado por Lopes Ribeiro e desconhecido nos meios cinematográficos, a verdade é que o não era nos meios desportivos. Também, por essa altura, o automobilismo o apaixonava, tendo vindo mais tarde a participar em corridas internacionais. Marcou destacada presença nas corridas de Vila Real e da Gávea, no Brasil, onde ganhou um dos circuitos. Se abandonou o atletismo quando começou a interessar-se pelo cinema, só abandonaria as corridas de automóveis quando se casou. Entretanto tirou o “brevet” de piloto aviador. Automóveis de corrida e aviões eram, talvez, a alternativa perante as dificuldades que sempre enfrentou para fazer cinema e através dele se exprimir. Voltemos uns anos atrás. Houve em tempos, quase no tôpo da Rua 9 de Julho 4, no Porto, em terreno sobranceiro à rua, um grande palacete meio oculto por duas frondosas tílias. O acesso fazia-se por um largo portão de ferro que abria para uma rampa que levava à moradia e à pequena unidade fabril anexa.Ambas pertenciam a Francisco José de Oliveira, industrial empreendedor a cuja iniciativa se deve a primeira fábrica portuguesa de lâmpadas eléctricas, a primeira fábrica nacional de artigos de malha e o aproveitamento hidro-eléctrico do rio Ave, no Ermal. Terceiro filho desse industrial, foi naquele palacete que, a 10 de Dezembro de 1908, nasceu Manuel de Oliveira, de nome de baptismo Manuel Cândido (Pinto de Oliveira de apelidos). De seu pai herdou, em certo sentido, a imaginação, a persistência e o poder criador. Mas não criou preconceitos de classe, embora fossem um tanto distantes as relações dos trabalhadores com o filho do patrão Seria justamente para o mundo do trabalho na beira-rio que seus olhos iriam voltar-se, fixando em imagens cinematográficas a viva expressão do esforço quotidiano do Homem, irmanado com a máquina e o animal, na árdua faina de ganhar, com autêntico suor, o magro e amargo sustento de cada dia.

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“Manuel de Oliveira foi campeão de salto à vara e, nos espectáculos anuais do Sport Club do Porto, executava, com seu irmão Casimiro, um arriscado número de trapézio voador.”

Como aconteceu com muitos jovens da sua geração, o cinema apaixonou-o desde muito novo. Era uma aventura fascinante a que então se vivia, dia a dia, face ao écran, sem interditos. Primeiro, era o mundo inteiro que se abria na nossa frente, o passado e o presente, o drama e a comédia, o fantástico e o sonho, ali, no rectângulo iluminado das salas escuras dos cinemas onde todas as noites podíamos identificar-nos com os “heróis” das fitas. Depois, era uma nova arte, uma nova forma de expressão que brotava e evoluía vertiginosamente na nossa frente. Aos dezasseis anos, Manuel de Oliveira desejou entrar para o cinema, como actor cómico ou burlesco. Outro qualquer, com a sua bela figura (as mocinhas voltavam-se quando com ele cruzavam na rua) teria desejado ser Rudolfo Valentino ou Ramon Novarro. Na realidade aquele juvenil anseio foi efémero – depressa substituído pelo irresistível desejo de fazer cinema. Por essa altura, Rino Lupo veio para o Porto terminar as filmagens de Fátima Milagrosa. Aqui abriu uma Escola de Actores de Cinema para arranjar algum dinheiro e complacentes figurantes. Manuel de Oliveira foi dos primeiros a inscrever-se (com o pseudónimo de Rudy Oliver... ), menos com a ideia de vir a ser galã de cinema do que a de saber como era o cinema “por dentro”, figurando no filme de Rino Lupo. Por ali nada aprendeu. As lições ia-as recebendo de outro lado, na “universidade do cinema” que, para o aluno atento, eram os écrans do Trindade, do Olímpia, do Passos Manuel e do Salão High-Life: as lições do expressionismo alemão, do realismo de Pabst e Lupu Pick, de alguns vanguardistas franceses, da imensa força dramática de Mãe, de Pudovkine ou da Joana d’Arc, de Dreyer, da violência demolidora de Eric von Stroheim, da inquietante grandeza dos nórdicos Stiller e Sjostrom. Quanto a livros teóricos, sobre linguagem e estética cinematográficas, creio que nunca leu nenhum.

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Um dia, foi isto em 1929, Manuel de Oliveira conseguiu que o pai lhe emprestasse uns escudos e comprou uma máquina de filmar de 35 mm, portátil, com corda para trinta metros de fita. Estava decidido a fazer o seu primeiro filme, cuja ideia tinha longamente amadurecido. O trabalho ribeirinho, as pontes, o bairro do Barredo, o rio, fascinavam-no. Escreveu uma planificação muito pormenorizada para reter no papel o filme que se construía dentro de si. A sugestão da linha mestra viera-lhe de um filme de Ruttmann, Sinfonia duma Capital – 24 horas da vida de uma cidade, que tinha visto tempos antes. Mas o Douro, Faina Fluvial, nasceria como obra autónoma e original. Um crítico italiano, Ugo Csiraghi, escreveria muitos anos mais tarde (“L’Unità”, de 8 de Setembro de 1976): “Nesta curta-metragem, realizada em 1930, há ressonâncias do melhor documentarismo europeu, de Ivens aos soviéticos, de Ruttmann a Grierson, mas revistas e elaboradas com tal força e originalidade que fazem de Manuel de Oliveira um artista que só a si próprio se assemelha.” Manuel de Oliveira não sabia ainda como manejar uma máquina de filmar. Para operador convidou, então, um amigo, António Mendes, guarda-livros de profissão, grande apaixonado por fotografia. E deitaram mãos à obra, aos poucos. Foi um autêntico trabalho de amadores, mas feito com a proficiência de profissionais experimentados. Foi ainda António Mendes – que se revelou um operador excepcional mas nunca quis trocar a estável profissão de guarda livros pela incerta profissionalização cinematográfica – quem revelou uma grande parte do negativo de Douro, Faina Fluvial, servindo-se de meios rudimentares num laboratório improvisado numa das dependências da fábrica dos Oliveiras. A certa altura, a operação revelou-se extremamente difícil, razão pela qual outra parte do filme foi mandada para um laboratório de Lisboa. Muitos anos mais tarde, foi ainda numas dependências da velha casa da Rua 9 de Julho, hoje demolida, que bem equipado com material que mandou vir expressamente de Itália, num momento em que pensou tornar-se autónomo, com a vaga esperança de criar um núcleo de produção onde outros pudessem também vir trabalhar, fugindo, assim, aos altos custos dos laboratórios de Lisboa. Foi lá que ele fez a montagem de Acto da Primavera, O Pão, e Caça (imagem e som). E ali enterrou muito dinheiro em bom material técnico e no isolamento de uma sala para gravações. Tudo seria obrigado a vender num momento difícil da sua vida –que não foi sempre tão “de rosas” como tantas vezes se quer fazer crer... O advento do sonoro tinha acabado de dar-se, mas Douro, Faina Fluvial era ainda um filme mudo e foi assim que foi exibido no Salão Foz, em Lisboa, no decorrer do Congresso Internacional da Crítica. Esta an-

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te-estreia foi um escândalo. Perante a surpresa dos congressistas estrangeiros, os espectadores portugueses, na sua maioria, vaiaram ruidosamente o filme. O tema, o ritmo, a montagem rápida de algumas sequências, irritaram o público. A projecção foi sublinhada por constantes assobios e terminou com uma estrondosa pateada. Ao intervalo e, ainda, já terminado o espectáculo, muitos espectadores e alguns dos críticos portugueses ferviam de indignação: “um sem jeito aquelas imagens vertiginosas! uma vergonha mostrar a estrangeiros aquelas mulheres enfarruscadas, com carretos de carvão à cabeça, de pé descalço... aquelas nojentas vielas do Porto... aqueles prédios leprosos do Barrêdo... “(Parece que ninguém se indignou por existirem aquelas desumanas condições de trabalho dos carregadores do porto... parece que ninguém se indignou por se viver ainda em péssimas condições de habitação e Manuel de Oliveira instalou um pequeno estúdio, muito bem equipado com material que mandou vir expressamente de Itália, num momento em que pensou tornar-se autónomo, com a vaga esperança de criar um núcleo de produção onde outros pudessem também vir trabalhar, fugindo, assim, aos altos custos dos laboratórios de Lisboa. Foi lá que ele fez a montagem de Acto da Primavera, O Pão, e Caça (imagem e som). E ali enterrou muito dinheiro em bom material técnico e no isolamento de uma sala para gravações. Tudo seria obrigado a vender num momento difícil da sua vida – que não foi sempre tão “de rosas” como tantas vezes se quer fazer crer... O advento do sonoro tinha acabado de dar-se, mas Douro, Faina Fluvial era ainda um filme mudo e foi assim que foi exibido no Salão Foz, em Lisboa, no decorrer do Congresso Internacional da Crítica. Esta ante-estreia foi um escândalo. Perante a surpresa dos congressistas estrangeiros, os espectadores portugueses, na sua maioria, vaiaram ruidosamente o filme. O tema, o ritmo, a montagem rápida de algumas sequências, irritaram o público. A projecção foi sublinhada por constantes assobios e terminou com uma estrondosa pateada. Ao intervalo e, ainda, já terminado o espectáculo, muitos espectadores e alguns dos críticos portugueses ferviam de indignação: “um sem jeito aquelas imagens vertiginosas! uma vergonha mostrar a estrangeiros aquelas mulheres enfarruscadas, com carretos de carvão à cabeça, de pé descalço... aquelas nojentas vielas do Porto... aqueles prédios leprosos do Barrêdo... “(Parece que ninguém se indignou por existirem aquelas desumanas condições de trabalho dos carregadores do porto... parece que ninguém se indignou por se viver ainda em péssimas condições de habitação e salubridade no velho, degradado e populoso bairro do Bar-

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rêdo...). Manuel de Oliveira, que ninguém ali conhecia, andava no meio daquela gente. Socavam-lhe os ouvidos os indignados desabafos. E sorria. O sentido do humor foi sempre uma das suas qualidades. Ao contrário das reacções desfavoráveis que o filme tinha levantado entre portugueses, o reputado crítico francês Emille Vuillermoz não tardaria em publicar, no “Temps”, um artigo sobre Douro, Faina Fluvial, em termos muito lisonjeiros. A certo passo desse artigo, escreveria: “Nunca o patético novo da arquitectura do ferro e a poesia eterna da água haviam sido traduzidos com tanta força e inteligência.” (“Le Temps” – 3/10/1931). Depois, veio Avelino de Almeida, quase a medo, contra a maré da generalizada nacional-indignação. Abertamente vieram defender o filme: José Régio, na “Presença”, e Adolfo Casais Monteiro, na revista “Movimento.” a estes dois poetas e a mais meia dúzia de amigos mostrara Manuel de Oliveira o seu filme depois da “corrida” que tinha levado em Lisboa. Destes recebeu, naquela altura, as únicas manifestações de apreço e encorajamento. E a fita voltou para as latas onde ficou “esquecida” por uns anos. Douro, faina fluvial viria finalmente a público, no circuito comercial, por acordo com H. da Costa, para servir de complemento ao filme Gado Bravo, de que aquele ex-distribuidor de filmes era produtor. Foi isso em 1934. O filme tinha sido sonorizado, o que lhe alterou ligeiramente o ritmo. Quando da sua primeira apresentação no Porto, no S. João-Cine, acolheram-no com palmas espontâneas e calorosas. Depois... o tempo foi passando, e Douro, faina fluvial resistiu. O que só acontece com as autênticas obras de arte. Em Douro, faina fluvial Manuel de Oliveira não se limitou a pousar o olhar sobre a vida e a faina ribeirinhas. Na descrição do trabalho e das duras condições de vida dos trabalhadores da beira-rio há implícita uma denúncia. Mas há também um intenso sopro de poesia, a captação de uma profunda palpitação humana. O rio, a ponte, os cais, as ruelas, os negros recantos do Barredo e da Ribeira são o cenário e o lugar onde aqueles homens e mulheres vivem e labutam. Mas o rio, a ponte, os cais, as ruelas, pulsam e vivem também, ao ritmo das horas, tratados por uma câmara inquieta, lúcida, observadora, atenta, respeitadora... que não procura o “pitoresco”, antes dele se esquiva para descobrir e registar uma realidade social. Toda a enorme força de Douro, faina fluvial está nessa realidade colhida ao vivo sem disfarces, “em que a moderna poesia do ferro e do aço, a tonalidade das horas, a alegria e a miséria do homem sócio do animal na luta pelo pão de cada dia – tudo, ao longo de um dia de actividade na margem do Douro, nos é dado com uma verdadeira grandeza” (José Régio).

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Rodrigues de Freitas, colaborador de “Presença” e autor de um conto que serviu de inspiração a Manuel de Oliveira para o Aniki-Bóbó, escreveria na revista “Movimento”: (...) “Nasce o dia e recomeça a faina; tudo ali surge em movimento, no ritmo da azáfama e das horas que vão correndo; o trabalho começou; e cresce e a vida explude em acção, em força e luta; serena chegou a hora do almoço e do descanso – e há como que uma síncope. Depois, de novo a faina volta..., a vida retoma a intensidade das primeiras horas do dia, até que o cansaço chega, os homens vergam e as pernas fraquejam, enquanto que na natureza, à volta, desce a calma e a solidão. O artista-realizador, poeta, vai visualizando os estados de alma, no homem e na natureza; os dois elementos decorrem fundidos, em ritmos correspondentes, em permanente simpatia. Acompanhando-se nas horas que deslizam, a vida do rio e a do homem, penetram-se, completando-se. Douro, faina fluvial aparece-nos assim como um filme de essência profundamente poética, mas não é só isso. O filme abandona aqui e ali aqueles estados de alma de que falei, e aponta, frisa, marca, quase discute, problemas de ordem social. Façam presente, na memória, os paralelos entre o trabalho do homem e o da máquina e veja-se, de facto, se não há ali dialéctica social... Filme de inquietação e significação. Toda a obra que significa é – e Manuel de Oliveira dá-nos uma obra de arte autêntica, pelo mundo de sugestões que provoca, emoções e ideias que desperta. (...) Um filme que vive pelos elementos essenciais da arte: criação e expressão, neste caso, pela sua visão e pela sua montagem.” Por seu turno, na “Presença” o poeta José Régio escreveria: “O Douro é uma pequena obra-prima; é um milagre não só de sensibilidade e inteligência – também de persistência, independência e vontade, dons que tanto nos faltam (...) Precioso como documentário, o Douro excede e em muito o valor de um mero documentário. Nem um documentário se volve em obra de arte senão na medida em que, sem deixar de documentar o que pretende documentar, é, também, documento de um temperamento de artista. Manuel de Oliveira é artista e poeta, no alto sentido em que, afinal, estas duas palavras são sinónimas. E não é tão fácil de ver que era isso o que ainda não aparecera no nosso cinema? Conseguir boas imagens e uma boa montagem Segundo processos mais ou menos conhecidos, em mira a efeitos de agrado mais ou menos seguro, é, talvez, relativamente fácil; porque é questão de aprendizagem e experiência. (...) Mas o que já deixa de ser matéria de aprendizagem para ser manifestação duma vocação própria, é conseguir esse halo poético, o transmitir essa vibração humana, que revelam realmente artista o realizador dum filme. E eis, entre nós, a grande novidade do Douro: ser uma obra de arte.”•

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THERE IS SUCH A THING AS SOCIETY EYE MAGAZINE, ISSUE 13, VOL. 4, ANDREW HOWARD 1994

In 1964, British designer Ken Garland and a group of twenty-one colleagues issued a manifesto entitled“First Things First.” Aimed at fellow graphic designers, it was a succinct and gutsy appeal to reject the“high pitched scream of consumer selling” and omnipotent lure of the advertising industry in favor of what was defined as socially useful graphic design work. The manifesto was reproduced in the publication Modern Publicity, together with an interview in which Garland attempted to defend it to Douglas Haines (described as a creative executive with British agency and marketing specialists Mather and Crowther), who was hostile to the idea that there is anything wrong with the marketplace or that the advertising industry does anything other than a good and necessary job.What makes the manifesto interesting today is the realization that its premises appear as radical now asthey did thirty years ago. And more significantly, the issue it addresses is as unresolved now as it was then. But the manifesto also touches on a dimension that seems to be missing from current debate: a concern with the social function and purpose of graphic design. Discussion in the profession in the mid

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1990s appears to have crystallized into a debate between two schools of thought. On the one hand there is the “new wave” of Macintosh-devoted design, some of which has been produced under the theoretical auspices of poststructuralist analysis and is guided by an exploration of the formal problems of representation and meaning, as in the work of the Cranbrook Academy of Art. Some of its exponents claim that their output represents a new aesthetic; their critics dismiss it as a form of visual pyrotechnics, a lavish aesthetic feast but low on nutritional content. Such critics believe that despite its stated intentions (where there have been intentions to state), this work is aimless and impenetrable. On the other hand, a trend has emerged more recently that claims to seek a new clarity of intention as well as aesthetic. Rick Poynor (Eye, Vol. 3, No. 9) suggests that there is a growing reaction by “design students, teachers, and young professionals” against what are seen as the “excesses” of formal experimentation and in favor of a less ambiguous, more message-related program. In the Netherlands, designers Dingeman Kuilman and Neils Meulman are calling for an approach that is not sophisticated, not technological, and not intellectual, just “basic” (Emigre, No. 25). For some designers, and I would include myself and many of those I class as colleagues here, a search for formal solutions has only ever been a part of, not an alternative to, a longer-term socially and politically influenced project. For us (only an “us” in as much as we have histories and influences in common), to interpret much of what is characterized as “new wave” as playfully self-indulgent is not a refusal to “join in the party,” nor does it signify lack of interest in new technologies and experimentation. Rather, it springs from a continuing interest that goes beyond a search for parts of the design jigsaw, of which formal visual vocabulary is a piece, to an understanding of how the jigsaw fits together. It is perhaps understandable that recent debate has centered on conflicting ideas about what contemporary design should look like and what methods it should employ in order to create understanding: how it should function formally. The impact of computer technology has transformed the nature of the design activity, allowing designers to assume control (competently or not) of many stages in the production process that were traditionally shared among a number of people with different skills and expertise. It has also had a profound effect on aesthetics. The computer makes it possible to construct multifaceted compositions with relative ease and at vastly increased speeds. Its capacity for sampling, duplication, and the integrated assembly of all manner of visual ele-

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ments has given designers the opportunity to view countless variations and to realize more visually complex ideas. Visual, formal possibilities have taken center stage. Discussion of content, apart from as formal exploration, has tended to concentrate on the internal subject matter of individual works. But there is another sort of content in graphic design: its social content as a form of social production. The significance of this lies in the ways in which function influences form and purpose informs content. It suggests that the character of our work is determined by more than our intentions alone, since production processes and the social context within which the work is received have a profound impact in directing, respectively, its aesthetic and the kinds of understanding it is capable of generating. These issues touch on the very definition of graphic design. To see graphic design as a form of social production rather than as individual acts of creativity means recognizing that it is subject to the same economic and ideological forces that shape other forms of human social activity. It means that in order to understand the nature of our activity and to think about its possibilities, we must be able to locate it within a historical context that relates it to economic and political forces. This is (strangely) problematic, as Anne Burdick rightly states (Eye, Vol. 3, No. 9), because “it is considered outside our role to analyze the content of our work in relation to politics, theory, economics, morals, and so on.” But if the present debate is about creating a body of work that is meaningful to people in general, that plays a part in the development of a stimulating visual culture, then it must involve understanding how our culture functions, how it is shaped, and how it shapes our perceptions of ourselves. It means addressing people’s need for a culture in which they can participate actively, for which they can help shape the agenda. It will inevitably involve an analysis of what prevents us from building such a culture. The economic organization of our society depends on the promise of ever-expanding production and the building of markets to absorb that production. We have the means to make goods in sufficient quantity and range to satisfy all our basic needs. But, “goods are no longer sold on the basis that they satisfy a known and voiced human need, but instead demands are developed through ‘research’ and through marketing in order that commodities may be produced to meet them,” explains Owen Kelly (Community,Art, and the State: Storming the Citadels, 1984). Goods are only a means to an end: the production of surplus value. Consequently, “there can be no such thing as sufficient production of any commodity, since there is no such thing as sufficient surplus value.”

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Whether one sees advanced capitalism and the consumer society as good or bad, one cannot ignore the ways they have encroached on previously private areas of consciousness. The building of markets is not a purely economic exercise: it is we, the “citizens” who are the intended markets, and their creation is very much an ideological task. This involves a process, explains Kelly, in which our needs are broken down into smaller and smaller units, “so that they match (and can be met by) the outputs of a profitable production process.” “Thus, for example,” says Kelly, “the desire to avoid giving off offensive odors is redefined as a positive, and normal, desire to achieve ‘personal hygiene,’ and is pictured as a continuous, and inevitable, struggle in which only the deliberately antisocial would refuse to participate.” Convinced of the need to obtain this “personal hygiene,” we are offered our bodies divided into separate marketing zones – underarm, mouth, vagina, feet – within each of which, writes Kelly, “the consumer can be educated to make choices (roll-on or stick, fragrant or natural), and within each of which separate innovations are possible.” This fragmentation of our needs and desires does not operate only in relation to areas of industrialized production. It is paralleled in the operations of the state, from health and medicine to education and leisure, where we are taught to consume professionalized services. In this sense there are no areas of our personal lives that are not subject to the social pressures of the marketplace, wherein decisions that might have been made by consenting citizens are reduced to purchasing choices made by passive consumers. Since the 1950s and 1960s, writers have referred to these encroachments as inducing a state of crisis in personal and cultural life. In addition, the political avenues through which we might expect to control the decisions that govern our lives are severely restricted. Stuart Hall has talked about “a growing gap between where people are politically and the institutions and organizations which express that in a formal political way.” Recent trends reveal a growth in intense pseudoreligious movements, in nationalist and neo-fascist ideas, in young people embracing directly oppositional lifestyles. Few would deny that at the center of this is a search for something meaningful to believe in, a vision of ourselves as empowered human beings able to act upon our needs and desires as we define them. It is crucial that we recognize that there is a direct correspondence between the condition of our culture and the ways we organize the production of materials. The form of economic organization we refer to as

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capitalism ceased long ago to be simply that, and has become a means of organizing the consciousness necessary for that economic system to flourish. As designers whose work is concerned with the expression and exchange of ideas and information and the construction of the visual vocabulary of day-to-day culture, we must establish a perspective on where we fit into this scheme. We must ask in what ways our function helps to organize consciousness. We must also discover to what extent and in what ways the solutions, vocabularies, and dialogues that we are able to conceive and construct are determined for us. The “First Things First” manifesto was an attempt at least to address these issues. Its conclusions, however, fall short of what seems necessary. Written at a time when the high-intensity market was establishing itself at the heart of the design profession in Britain, it was perhaps a last-ditch attempt to hold back the flood of “gimmick merchants, status salesmen, and hidden persuaders” It starts off in a forcible and radical manner. But at the beginning of the fourth paragraph it extinguishes its own flames when it says, “We don’t advocate the abolition of high pressure consumer advertising: this is not feasible” – without making clear whether or not this is perceived as desirable. After its declaration of a rebellion against the techniques and apparatus of high-pressure consumer advertising, there is a trace of retreat here, despite the fact that it would probably be defended as “realism.” Garland echoes this concession in the interview, and the power of his argument is all the less compelling for it. Early on he concurs with Haines that “we are not against advertising as a whole. The techniques of publicity and selling are vital to Western society.” But isn’t that the problem? This allows Haines’s contention that high-pressure advertising and the ideology of the marketplace are healthy and natural to go unchallenged, and leaves an impression that what Garland is arguing for is the same cake, sliced differently. But the logic of the manifesto implies that social and cultural needs are constantly circumvented, if not distorted, by the power of an industry whose primary purpose is to create demand for consumption, regardless of usefulness. Furthermore, that the effect--on young designers in particular-of the absence of an alternative sense of what meaningful work might be is leading to a gradual erosion of enthusiasm and creativity. What is needed is a different cake altogether, but to argue for such a thing is to take a leap into the unknown. The modern advertising industry is the creation of the high-intensity market, and graphic design has always been at the center of its strategy. Its history forms a large part of the

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history of design. To question that industry and the ideology of consumerism it promotes is to question our whole economic organization. It is easier to argue for more of the cake. The manifesto’s concern with purpose and social function should not be confused with a moralizing preoccupation with “politically correct” subject matter. It should not be interpreted as a determinist concern with “the message,” though it does not exclude a commitment to direct (or indirect) political expression. Devotees of the new wave may well demonstrate little interest in the “message as content”approach, perhaps justifiably, when one considers the unbelievably inane work of “cultural groundbreakers”such as Oliviero Toscani and his sponsors, Benetton. “I want to make people think,” says Toscani in an interview in the Independent (December 16,1992). “I want them to remember a name.” Thus social criticism is appropriated in the struggle for brand identification. Most advertising, he tells us, is based on the emotions and has nothing to do with the product. One can only wonder what graveyard crosses during the Gulf War, a ship overflowing with refugees, an electric chair, children in Third World slums, and a nun and priest kissing have to do with expensive, multicolored knitwear? But even these are surpassed by Toscani’s idea for a “fun” campaign about wife-beating for Guinness. What makes Toscani’s ever-so-radical ideas ever so depressing is that his accurate critique of the advertising industry’s effect on our aspirations and self-image appears to be of no help to him in establishing the link between the industry and the economic ideology that spawned it.

“It (the advertising industry) persuades people that they are respected for what they consume, that they are only worth what they possess, says Toscani, angrily upbraiding the industry for corrupting society.”


Whatever his intentions, Toscani’s posters are merely a state-of-theart marketing device masquerading as social conscience. It is extreme arrogance to throw images at people in the belief that they need to be told what issues are of social importance. Radical work is never a question of presenting correct political opinions, but is concerned instead with the nature of the dialogue that is made possible between theauthor and the audience. It is not at all clear, on the other hand, in what sense the approach advocated by Dutch designers Kuilman and Meulman is basic, or what is the meaning and significance of what they have to say. Is this perhaps a private argument between them and the technological, intellectual sophisticates about the most effective formal approach to sell spicy sausage or decorative floor tiles? Or is the liberation from confusion they wish to achieve to be reserved for greater purposes? Appending political messages to work as if forms were empty vessels is simple-minded, and advocacy of “basicness” is meaningless if it is concerned only with the internal logic of design. But does this mean that formal exploration, as content, is the way forward? Writers such as Roland Barthes are said to have been of seminal influence in the development of the work and ideas of at least one agency of the new wave – the Cranbrook Academy of Art. Jeffery Keedy, a former Cranbrook student, says, “It was the poetic aspect of Roland Barthes which attracted me, not the Marxist analysis. After all, we’re designers working in a consumer society, and while social criticism is an interesting idea, I wouldn’t want to put it into practice” (Eye Vol. 1, No.3). Barthes’s work is indeed poetic, which gives it a resonance lacking in much Marxist theory, but to disconnect the critique from the form seems a perverse example of literary raiding. The work of other French writers of the same period, such as the situationist Raoul Vaneigem, is also poetic and also concerned with the decay of personal and cultural life under modern capitalism. His book, The Revolution of Everyday Life deals with the subjugation of our potential to be active, independent-minded, and creative. It is a complex description of our condition, which focuses on the corruption of our desires, dreams, values, and aspirations, and a ferocious social critique. If it is not on the Cranbrook reading list, perhaps it should be. The major artistic movements of this century – the futurists, constructivists, dadaists, surrealists – all had a theory of society that guided their explorations. The exploration of the formal structure of language – its signs, symbols, and how these construct and carry meaning – should be the staple diet of designers.

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Language is a means through which we express our consciousness of ourselves and our relationship to the world; it is our attempts to describe our situation and to think about the future that lead us to search for appropriate vocabularies. Language changes when it is no longer able to express what its users require of it, so unless it is to be of academic interest only, an exploration of language must also take into account the changing consciousness of human beings. It is difficult to comprehend the point of exploring form if it is not related to contemporary problems of vocabulary and the search for meaning. The study of visual form and language is limited if it does not consider the forces of cultural production, which involve a set of social relations between producer and audience. Whether our activity and its products are open and empowering, whether they contribute to the building of a democratic culture, is not dependent only on the content of our work, but also on the productive social relations that affect the nature of the dialogues we are able to construct. A large advertising poster for multicolored knitwear, for instance, is not a dialogue on equal terms, if it is a dialogue at all. It is designedto make an intervention into our consciousness in ways we cannot ignore; it shouts at us so that we may remember a name that will influence our acts of purchasing. It is a form developed for a social context that the audience cannot control. This is what makes it oppressive. No amount of fiddling with the visual forms it employs or the message it carries will transform it into an open-ended product. But the ideology of consumerism is not limited to the world of commerce. Our consciousness is fragmented so that we are better able to consume everything: films, music, fashion, diets, healthcare, education, information, even our own history. This problem cannot be avoided simply by choosing between “good” or “bad” products, or between commercial and noncommercial work, since the nature of the problem is not just consumption but the ordering of our consciousness to become consumers in the first place.Graphic design has a part to play in creating a visual culture that empowers and enlightens, that makes ideas and information accessible and memorable. Many designers may argue that their job is not politics, and they would be right. But this does not prevent us from developing ideas about cultural democracy. We cannot separate our work from the social context in which it is received and from the purpose it serves. If we care about the integrity of our design decisions, we should be concerned that the relations implicit in our communications extend active participation in our culture. If what we are looking for is meaning and significance, then the first step is to ask who controls the work and whose ends does it serve.

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The computer revolution that brought us new aesthetic possibilities has given us other opportunities too. The technological condensing of the production process has the potential to alter our notion of authorship, and with it our aspirations. The technical self-sufficiency the computer has allowed may give us the conceptual space to develop a more complete consideration of our work in relation to the way it is received and the purpose it serves. It may encourage us to initiate more often, and in the process to establish partnerships and collaborations in which design is not simply a means to sell and persuade, but also a means of organizing ideas and finding forms of expression that suit the interests of a more specific audience. The work that flows from such a practice cannot be prescribed. It may or may not be sophisticated, technological, and so on. It will in no way preclude an exploration of the formal representation of language. Its content may be concerned with what it is we are able to think about (subjects), or the ways in which we are able to think (forms). It will recognize that how something is produced and distributed socially carries with it specific relations that affect the dialogue that is possible between author and audience and limit the sort of meanings that can be constructed. Above all, it will acknowledge the link between our choices as designers and the sort of culture we wish to contribute to•

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AULA CARVALHAIS.ORG MIGUEL CARVALHAIS 2002

TEXTO

No princípio tínhamos o texto. E antes deste, a palavra. Quando a escrita surgiu, estava já enraizada uma tradição oral muito forte, que dependia grandemente da codificação da informação em estruturas facilmente memorizáveis tais como os textos poéticos da Grécia antiga ou as canções Aborígenes, que nestes casos constituíam uma vasta enciclopédia cultural, de conduta e de história. Foram criados mitos que permitissem associar às narrativas um nome, uma identidade, para que mesmo que variando os pormenores, se mantivesse o cerne da história e a mensagem primordial não se distorcesse. No Ocidente a assimilação da escrita e a passagem de uma cultura primariamente oral para uma cultura literária foi extraordinariamente lenta. Foi só por volta do Século IV a.C., na época de Platão, que a literacia finalmente triunfou, contra as mais variadas resistências, mas uma vez adoptada a escrita como meio “oficial” de arquivo e transporte de informação, o mundo transformou-se e o conhecimento acelerou. Muitos séculos mais tarde, quando a impressão foi revelada por Gutenberg, o conhecimento literalmente explodiu, propagando-se então a velocidades nunca antes sequer imaginadas…

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Hoje encontramo-nos perante uma (r)evolução semelhante à experimentada no Século IV a.C. ou no Século XV, passível de produzir efeitos tão drásticos na forma como comunicamos e como arquivamos os nossos conhecimentos colectivos e a nossa cultura, eventualmente comparáveis ao salto dado com Gutenberg. Na origem da palavra “texto” está o conceito de tecer. As letras são tecidas em palavras, estas em frases e textos, construindo ideias. Todos os elementos se organizam linearmente, porque estão presos à lógica pelos imperativos da subestructura do discurso, a sintaxe, que mapeia a forma como a mente reconstrói o sentido através da linguagem. Ler é portanto um acto contínuo de tradução em que símbolos visuais são transformados nos seus referentes verbais e estes são por seu turno interpretados. Este é um processo bastante linear em que face a uma matéria textual, o leitor move-se ao longo do livro num eixo temporal e espacial que implica uma ordem constante de procedimentos: o virar das páginas, o movimento descendente de leitura de cada página, etc; em que todos os conteúdos lidos servem de base aos que se lhes seguem no texto. Neste processo é o leitor que se move ao longo do texto e não o texto que se move perante o leitor, porque se bem que o acto da leitura seja dinâmico, o meio textual lido é estático. A movimentação aparente do texto resulta da deslocação do leitor, tal como quando observamos uma paisagem de dentro de um comboio em movimento. Porque é estático, o texto permite que seja o leitor a determinar a sua velocidade de deslocação ao longo do texto, variável em função de factores como a sua compreensão e a concentração, e livre de favorecer o seu impulso associativo pela “conquista” lenta e meditativa de um texto ou de acelerar em leitura “diagonal”. Assim, o processo da leitura resulta num acto essencialmente privado e dificilmente partilhável. Embora a leitura represente um acto de comunicação, os conteúdos passam da privacidade do emissor (escritor) para a privacidade do receptor – podendo ser experimentados de forma diferente por diversos leitores certamente – mas sendo essencialmente os mesmos conteúdos, a mesma mensagem. Uma vez escrito o livro, ele é copiado, reproduzido, mantendo-se uma fidelidade ao texto original tão grande quanto possível. A única adaptação a que um texto pode normalmente ser sujeito em função do(s) seu(s) hipotético(s) leitor(es) é a tradução, apenas quando se pretende que ele seja inteligível para alguém que não comunique na língua em que originalmente foi escrito. Aqui contudo a intenção não é alterar a mensagem para a configurar para um leitor em particular (ou um grupo de leitores) mas sim traduzir a informação, recodificar a mensagem usando um novo código, um novo protocolo de comunicação.

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A leitura é no entanto muito mais do que apenas um processo de interpretação e descodificação, porque muitas vezes ela é acima de tudo uma experiência em que a interpretação é apenas um passo no processo realmente importante: o emotivo. Se pensarmos na famosa distinção feita por McLuhan entre media “quentes” e “frios”, em que os media “quentes” são aqueles que apresentam uma resolução muito elevada e estão “bem cheios” de informação, enquanto os media “frios” seriam experiências numa resolução mais baixa em que o leitor/espectador teria que preencher vazios de informação, o texto, enquanto media poético deverá ser enquadrado na categoria dos media “frios”? Ler é um processo envolvente, em que os espaços deixados em branco pela “frieza” do texto são constantemente preenchidos pelo leitor, em construções mentais ricas em significado paralelo ao texto lido. Quando o processo de interpretação e descodificação se automatiza e se torna rotineiro, o livro torna-se transparente e o leitor “entra” no texto. A leitura é portanto uma experiência, o que nos leva a concluir que o texto é de certa forma performativo, e tal como uma peça musical ou um filme, conduz-nos num processo envolvente de uma forma que se deseja ininterrupta ou pelo menos com um forte grau de continuidade. Em obras de maior dimensão (física, logo também temporal) a estrutura da obra pode-nos conduzir a uma maior ou menor continuidade da leitura. Se se pretende que um conto seja lido “de um fôlego”, e em muitos casos uma pequena novela também, ou em blocos relativamente longos correspondentes aos poucos capítulos em que estará dividida, já um romance mais extenso poderá ser estruturado em mais capítulos, de forma a orientar o ritmo de leitura de uma peça que será à partida impossível de ler continuamente. A certo ponto os capítulos podem ser cada vez mais reduzidos em extensão, propondo uma leitura menos contínua, passível de ser interrompida frequentemente… A estrutura linear do livro nunca é quebrada, mas graças à “frieza” do media, podemos admitir espaços cada vez maiores a requerem um esforço de preenchimento por parte do leitor, apresentando-se o texto apenas como plano de percurso para a experiência emotiva deste. Os livros abordam todos os temas, mas acima de tudo abordam a literatura, num processo auto-referencial em que nenhum texto existe isolado de uma história cultural vastíssima que começou por encontrar os seus primeiros cânones formais há séculos e desde então não deixou de evoluir. O autor confia na erudição cultural do seu leitor, adivinha referências comuns que possam ser identificadas por este e enriquecer, ou completar, a sua experiência de leitura, mas está limitado pelo me-

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dia que escolhe quando pretende que esses elementos intertextuais a uma qualquer linha narrativa seguida sejam algo mais do que apenas referências. É a própria estrutura do media a apelar à continuidade, não só a estrutura do texto como a do suporte que o veicula, o livro, e esta, uma vez quebrada (como na Obra Aberta de Eco, por exemplo), não é de novo reorganizável. Encontramo-nos portanto perante um meio tendencialmente linear, veiculado em suportes também eles mais ou menos lineares, na medida em que sendo organizadores de superfícies impressas, pelo menos dentro de cada uma das superfícies (sejam elas páginas de livros, cartazes ou outros), a linearidade de conteúdos é um dado adquirido. É então certo que podemos dividir um romance, por exemplo, numa série de capítulos mais ou menos extensos, mas depois de definida e fechada (impressa), não podemos alterar a sequência destes capítulos dentro da obra. Não podemos questionar até que ponto pode ou não ser relevante alterar a sequência destes capítulos porque lidando com este media essa questão não é sequer válida porque o media não o permite. Como tal, o autor não o pode fazer sem “saltar” para outro media ou transformar aquele em que trabalha. A necessidade de romper a linearidade inerente ao texto revelou-se cedo e desde cedo vários métodos foram experimentados para transformar o media. Em várias frentes os autores e leitores sentiram as dificuldades impostas pelo limite, e quer na criação artística quer na literatura de pendor mais académico se desenvolveram estratégias diversas tentando encontrar um sistema eficaz. O cruzamento de informação em suportes científicos como as enciclopédias, dicionários ou outros textos técnicos esbarra constantemente nos limites físicos da linearidade, revelando obstáculos à fácil ou rápida circulação pelo texto. Problemas semelhantes surgem na ficção sempre que, e quando um autor tenta desafiar as convenções, nascidas do e com o media. Enquanto os suportes do texto se mantiveram estáticos, apesar de variados, o problema não parecia facilmente resolúvel e as narrativas veiculadas pelo texto, apesar da sua complexidade possível, continuavam presas a sequências predeterminadas e não atingiam ainda a possível não-linearidade de um contador de histórias, encadeando um pequeno conto noutro, ou uma reflexão noutra, em diálogo (interacção) constante com os seus ouvintes. Contudo, ao contrário do texto transmitido oralmente, chegavam mais longe e a mais destinatários mantendo a sua integridade literal, benefício que então compensava largamente qualquer sacrifício necessário.

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HIPER

Em meados do Século XX tornou-se possível estruturar sistemas de informação textual que permitissem a leitura e a escrita em espaços não lineares e de forma não sequencial. Um dos primeiros investigadores a tentar sistematizar este conceito foi Ted Nelson, que criou o termo ainda hoje usado para o designar: hipertexto. Existem actualmente muitos sistemas de hipertexto, implementados das formas mais diversas sobre tecnologias também elas diversas, o que pode criar alguma confusão quando pretendemos perceber o que o hipertexto realmente é. Ted Nelson trabalhou durante anos no desenvolvimento do sistema Xanadu, que ainda não viu a luz do dia, e desde a definição do conceito vários sistemas têm sido experimentados e em alguns casos mesmo comercializados: entre outros os dedicados à criação, edição e leitura de documentos hipertextuais, tais como o SuperCard ou o HyperCard, o SGML e o HTML (Hyper-Text Marked-up Language) ou aqueles que se propondo um âmbito de acção mais alargado, permitem também a criação de hipertextos, tais como o Director (MacroMedia), o Flash ou qualquer outra linguagem de programação usada na preparação de um CD-Rom ou de um jogo electrónico. Muito recentemente foram introduzidos sistemas domésticos não-lineares de gravação e reprodução de vídeo – DVD, Digital Versatile Disc – que vieram abrir também no campo da narrativa videográfica a possibilidade da hiperligação. De uma forma geral, apesar de bastante diversos e de curiosamente nem sempre poderem ser cruzados ou de serem compatíveis, todos os sistemas de hipertexto têm como característica comum a possibilidade de especificar ligações entre diferentes locais de um texto, ou entre um texto e locais de outros textos. Nada de intrinsecamente novo portanto? Uma vez que por exemplo a estrutura da enciclopédia já o permitia, ou também o sistema usado em qualquer livro, de referência a notas de rodapé, notas de texto ou outros livros. Ou pelo contrário algo de inovador porque capaz de transformar o media, criando algo de fundamentalmente novo? O factor tecnológico decisivo para a definição do hipertexto nos termos em que hoje o entendemos foi o surgir de um novo suporte para o texto. Um suporte capaz de registar e arquivar texto, capaz de o dar a ler, mas sobretudo um suporte que não tem que “solidificar” o texto dentro de uma estrutura estática: o computador.

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Num livro (e na generalidade dos suportes), o texto tem que assumir uma dimensão física, não só para ser registado como para posteriormente ser lido. O texto é gravado – riscado, impresso, ou de alguma forma registado – num suporte de arquivo, que é com muito poucas excepções, ou o suporte usado para aceder posteriormente à informação ou a matriz para a múltipla reprodução do suporte comunicacional final. No computador, os suportes de arquivo e de leitura são diferentes, sendo o texto codificado como bits em memória (RAM ou disco), onde é arquivado e recuperado para ser lido num outro suporte: ou o ecran, ou outro qualquer sistema de saída de dados. Ao deixarmos de ter um mesmo suporte para arquivo e leitura, deixamos também de processar o texto como “código-fonte” da informação, usando-o apenas como face visível para nós, agora tornados leitores e escritores de informação binária e não de texto. Como não podemos traduzir directamente zeros e uns em significado lógico, e porque é de zeros e uns que o sistema informático se “alimenta”, temos que confiar a este a tradução da nossa informação textual em códigos simultaneamente muito mais simples e complexos que serão depois retraduzidos para nós, através de um ecran para que a partir daí se possa continuar a desenvolver o processo dinâmico da leitura. Se para o leitor o processo da leitura é inicialmente pouco afectado pela ferramenta/suporte usado para registo do texto, o comportamento do texto é no entanto fundamentalmente alterado, porque também ele passa a ser dinâmico, a partir do momento em que a quantidade de texto “armazenável” excede aquele que seria possível apresentar no ecran ou no interface de output, seja ele qual for. O texto deixa de se fixar visual e fisicamente a um suporte, tendo que “partilhar” este espaço com todo o texto que se lhe segue e antecede: logo, tem que começar a mover-se, a dinamizar-se no tempo, não só lançando a base lógica e narrativa para o texto subsequente, mas tendo que efectivamente libertar o espaço em que se encontra para que este possa ser ocupado por mais texto. O texto deixa de ser sólido e adquire um carácter muito mais fluído enquanto viaja no ecran. Ele movimenta-se ao encontro do leitor, afastando-se depois deste e nunca se fixando. Só quando o leitor dá ordens ao computador para imprimir o texto é que este perde o carácter evanescente, porque neste caso a informação é traduzida de bits para texto e depois é literalmente expulsa do sistema, passando a pertencer à mesma ordem dos textos impressos, estáticos, que exalta a palavra e se fixa na sua permanência, enquanto que o meio informático reduz a mesma a um sinal, a um meio no processo de arquivo e recuperação de informação.

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Quando criamos um texto ou o lemos num ecran de computador, este não se acumula visivelmente, antes faz um contínuo scroll de e para os circuitos da máquina, de e para o sistema. Ao expandir uma estrutura textual linear neste meio, integrando links que a tornem numa estrutura hipertextual, o computador, tendo sempre que enterrar e desenterrar informação do seu espaço de memória, fornece facilmente ajudas mecânicas aos links, não forçando o leitor a folhear – ou percorrer rapidamente todo o texto num ou noutro sentido até encontrar o destino do link – mas folheando o texto por este, indo imediatamente para o destino. O benefício, em termos de velocidade, é imediato. Se expandirmos o sistema podemos facilmente perceber que estes não são os únicos ganhos que alcançamos quando usamos o computador como plataforma para um sistema de hipertexto, uma vez que ao converter a informação textual em muito mais simples impulsos electrónicos ou bits, a poupança de espaço físico daí decorrente permite-nos obter capacidades de arquivo enormes, absolutamente inimagináveis há poucas décadas. Se há doze anos, o meu primeiro computador armazenava a informação num disco duro de 40 MegaBytes, o equivalente a um ou dois milhões de páginas de texto, hoje em dia escrevo este texto num computador com um disco de 40 GigaBytes, mil vezes mais, podendo por isso falar em milhares de milhões de páginas. Como o texto não tem uma permanência física no suporte, também os links nele contidos não são fixos, podendo ser redireccionados, eliminados ou alterados livremente pelo leitor e como o texto não é interpretado como uma massa visual estática mas sim como informação – que friso, é apenas temporária e parcialmente traduzida para texto – torna-se possível usar o computador para tratar o texto como informação: realizando pesquisas por palavras ou termos, alterando ou anotando o texto original, etc. Se ainda expandirmos mais o sistema, de um computador para vários computadores ligados em rede (local ou internet), podemos não só aumentar muito mais a capacidade total de arquivo como também ganhamos a possibilidade de ligar hipertextos em diferentes arquivos remotos, que são assim servidos como uma massa de informação viva e em desenvolvimento constante. O hipertexto fomenta a criação de uma vasta cadeia de links, dentro de um texto ou entre este e vários outros e permite-nos (leitores e escritores) linkar informação de referência ou complementar a informação textual. O sistema torna-se assim radicalmente divergente, interactivo e polivocal, uma vez que faz convergir no mesmo suporte e na mesma narrativa lida uma pluralidade de discursos,

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numa sequência e lógica também definidas pelo leitor. Assim, até certo ponto fornecemos ao leitor a possibilidade de co-escrever o hipertexto, não na medida em que realmente crie novos conteúdos, mas sim porque os reorganiza e selecciona. No espaço da leitura não-sequêncial e não-linear os papéis invertemse radicalmente: os leitores deixam de ser múltiplos e passam a ser únicos, uma vez que cada leitor organiza a sua própria experiência de leitura. O autor deixa de ser único e passa a ser múltiplo, se ainda definível, uma vez que por causa da fluidez da leitura e da partilha do mesmo suporte por vários textos, esbate-se a fronteira entre obras e textos. A fonte tradicional da estrutura perde grande parte do seu principal papel a partir do momento em que abdica de grande parte do controlo sobre esta. Surge-nos aqui um outro aspecto claro da evolução da relação com o texto: a interactividade. O hipertexto é o primeiro media em que esta é realmente clara, directa e imediata. Desde o livro, passando por todos os media surgidos entre final do Século XIX e o Século XX, a passividade era o factor dominante. Talvez por causa da natureza destes media, talvez por causa da sua reprodutibilidade e da forma como os conteúdos eram estruturados de maneira tão estática, os media remetiam o leitor/espectador para uma posição de fruir os conteúdos mas não interferir neles. No hipertexto, esta atitude passiva de leitura continua a ser possível: mantendo a linearidade (a “posição do missionário” da leitura, segundo Steve Birkerts) e apenas interagindo pelos comandos de scroll, que não é nada de muito diferente do virar de página no livro e um acto não de interacção real mas apenas necessário pela possibilidade que o meio continua a fornecer ao leitor de controlar a velocidade de leitura, uma vez que o sistema poderia automaticamente criar um longo e contínuo scroll da totalidade do texto. Contudo, ao integrar links, ao fornecer múltiplos percursos de leitura, a interacção com o media torna-se necessária para que se possa usufruir plenamente do hipertexto. Quando o texto é programado para integrar ramificações mais complexas, o leitor pode esculpi-lo como entender, quebrando narrativas em diversos fragmentos, acabar num de possíveis finais ou mesmo retomar a leitura após o final, ou criar novas janelas que lhe permitam ler paralelamente dois ou mais textos, desenvolvendo sub-narrativas a partir de um determinado ponto no espaço-tempo da leitura do hipertexto, definindo a qualquer passo quanta informação é que quer ou pode ter presente. Será que podemos chamar a isto um acto de hiperleitura?

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“Ao poderem ser movidas livremente num hiperespaço, as palavras podem teoricamente pertencer simultaneamente a sequências narrativas pré-definidas ou marcar o início de outra narrativa ou de sequências expositivas.”

A relação do leitor com o hipertexto é portanto bastante diferente daquela que é desenvolvida com o texto impresso. Não só o novo suporte representa uma modificação na “forma” de ler como na leitura em si mesma. Porque as palavras são diferentes quando impressas ou quando em scroll num ecran de computador. Mesmo que ambos, página e ecran, contenham o mesmo texto, a mesma exacta série de palavras, as suposições a que o seu significado se subordina quando da leitura são completamente diferentes dependendo do suporte em que elas se encontram. A seu tempo veremos que, da mesma forma que a natureza do acto de Olhar, seja para o mundo real seja para a pintura por exemplo, se alterou com a invenção e massificação da fotografia, a relação colectiva com a linguagem e a leitura mudará também necessariamente, à medida que se forem implantando os novos meios de difusão. Veremos como os processos que criamos para servirem as nossas necessidades não só começam a redefinir a nossa experiência como se tornam no nosso novo paradigma cognitivo. Depois de acelerados pelas tecnologias, torna-se difícil até imaginar como se vivia antes delas, antes do fax, do e-mail, dos telefones celulares, das redes informáticas, etc. Quase da mesma forma que o fogo ou a roda alteraram decisivamente a vida da espécie, também o livro a alterou depois. E agora quando alteramos o livro? Será que estaremos agora a acelerar num novo passo evolutivo? Em que sentido a evolução do texto para hipertexto e do livro para hiperlivro, computador, internet, world wide web ou como quer que lhe chamemos quando se chegar a um sistema final, se houver um, irá acelerar o Homem?

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HIPERMEDIA

Tal como o texto veiculado por livros precisa esporadicamente de recorrer a imagens para ilustrar determinados conteúdos ou complementar o discurso principal, o texto digital também precisa a momentos de fazer uso delas e uma vez que as imagens são também passíveis de ser convertidas em bits, transformáveis em informação digital, a sua integração no sistema é apenas mais um passo, quase natural, depois de termos digitalizado o texto e depois de os recursos técnicos terem evoluído ao ponto de suportarem também as imagens. Assim, assistimos no domínio do digital a uma evolução na forma como as imagens são integradas com o texto em documentos hipertextuais. De sistemas em que as imagens tinham limitações ao nível da cor ou da resolução e em que o texto era tratado como uma matéria diferente das imagens – não podendo partilhar os mesmos recursos – evoluímos para uma situação em que as imagens e texto são quase tratadas de igual modo, uma vez que ambas são informação digital. Tanto o texto como as imagens são bits, traduzidos em imagens pelo computador de forma a tornarem-se legíveis para um humano. Se o texto é composto como uma série de unidades (caracteres) que se agrupam em palavras e posteriormente em frases, sendo também assim interpretados pelo computador, as imagens são apenas blocos mais ou menos longos de informação, sem grande sentido para o sistema, e são tratadas como tal. Se estivéssemos a trabalhar um meio analógico, um livro por exemplo, ficaríamos por aqui. O texto e as imagens, ou as imagens e o texto, independentemente da hierarquia de valores. E se quiséssemos ir além dos conteúdos semânticos do texto e da imagem? Como podemos descrever um som ou um movimento, usando apenas palavras e imagens? Como podemos integrar no nosso sistema sons ou imagens em movimento? Exactamente da mesma forma como integramos o texto ou a imagem estática: digitalizando-os. Se expandirmos um pouco mais os recursos técnicos e o volume de dados a processar, lidar com estes meios não se torna (de um ponto de vista técnico) muito diferente do lidar com imagens estáticas ou textos. Naturalmente que estes novos meios (e aqueles que se lhes seguirão) são integrados no sistema, contribuindo para a sua evolução e como tal integrando-se no mesmo. Assim, se o texto era hiperligado a outros textos, pode agora ser hiperligado a imagens, ou a sons, ou a imagens em movimento, da mesma forma que qualquer um destes pode ser hiperligado a texto ou qualquer outro media, bem como surgir numa se-

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quência linear, pré-determinada. Assim, integramos num sistema que começou por ser passivo mas se tornou activo e interactivo, uma série de recursos que trazem também um mais ou menos longo historial de passividade: na rádio, no cinema, na televisão, meios onde tal como no livro, produzia-se um original duplicável e distribuível ou onde uma mesma fonte original era difundida, resultando em múltiplas cópias, e dando assim origem a fenómenos contínuos, ao vivo ou em diferido, mas dependentes de uma difusão, via hertziana ou cabo, que se fosse interrompida “desligava” o meio. Estes meios dinâmicos oferecem acção à assistência, mas devido à sua natureza impedem a interacção da mesma. Se na televisão ou na rádio em directo podemos em alguns casos considerar que uma parte da audiência interfere no desenvolvimento de um programa – participando em votações por exemplo – não podemos deixar de admitir que de facto estes elementos da audiência estão de certa forma interagir com o meio, mas fazem-no a um nível muito limitado, porque interagem em grupo e dessa interacção resulta apenas um resultado, de novo distribuído ao grupo restrito que participou na sua definição e também ao universo mais alargado de todos os espectadores. Quando a participação é feita a nível individual, então quase que não podemos considera-la uma interacção mas sim uma passagem temporária da posição de espectador para a posição de actor ou emissor, devido à enorme desproporção em número entre aquele que age e aqueles que sentem os efeitos dessa acção e também à consciência que este único utilizador tem que momentaneamente altera de facto o seu papel. Ao fim e ao cabo, o maior grau de interacção que podemos ter com um aparelho receptor de televisão ou rádio é o controle que temos sobre essa mesma recepção e a capacidade daí decorrente de fazermos zapping entre várias emissoras. No cinema a interacção é de todo impedida porque a mensagem é não só produzida e distribuída através de cópias múltiplas como posteriormente assistimos colectivamente a cada projecção da película. O que vemos é não só o mesmo que todas as outras dezenas ou centenas de pessoas que se sentam ao mesmo tempo na mesma sala vêm, mas também o mesmo que todos os outros milhares ou milhões de pessoas viram ou verão de futuro em condições muito semelhantes. Tal como o livro, o cinema é um meio de conteúdos estáticos, passíveis apenas de adaptação ou de reconfiguração ao nível da tradução. Para além disto, pela sua escala e pela envolvência sensorial, o cinema é um meio que requer que foquemos a nossa atenção a um nível ainda superior ao necessário durante a leitura, não porque precisemos de

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preencher espaços na informação – porque o cinema é um media muito quente – mas sim porque somos bombardeados de informação visual, sonora e textual (por ordem decrescente de quantidade) com uma velocidade tal que, como dizia Paul Virilio, “o cinema parece requerer a nossa paralisação, não possibilitando qualquer oportunidade de ataque da nossa parte”. Teremos então todos estes media integrados num único suporte: o computador. Este é capaz de transmitir textos e imagens estáticas com a mesma facilidade com que lida com imagens em movimento ou com som, quer como elementos individuais ou conexos, quer como numa sequência de vídeo. Para além desta diversidade, o computador não está limitado nem à informação que contém em si mesmo (como o livro), nem àquela que possa ser lida de suportes móveis (como as bobinas de filme no cinema ou as cassetes no vídeo) e muito menos àquela informação que é difundida (como na televisão ou rádio). O computador é um meio em que qualquer destes meios de distribuição de informação pode ser usado a qualquer altura ou em simultâneo, com a particularidade de que nenhuma da informação veiculada tem de forma alguma um carácter permanente, isto é, nenhuma da informação é sólida, podendo sempre ser reintegrada, recontextualizada ou retrabalhada pelo leitor. O computador é não só instrumento de acesso à informação (e consulta e fruição da mesma) mas também ferramenta de criação de informação tão complexa e diversa como a informação com que lida. Em 1945, Vannevar Bush, num artigo intitulado “As We May Think” falava de um engenho que baptizava provisoriamente de Memex e onde poderiam ser arquivados todos os livros, discos e comunicações que depois seriam consultados com uma velocidade e flexibilidade espantosas devido à mecânica do engenho. Ele idealizava novas formas de enciclopédia, fornecidas de raiz com uma teia de “caminhos” associativos, prontas a ser lançadas no Memex e ampliadas. O computador pessoal de que dispomos hoje em dia ultrapassa até esta ideia do Memex porque ele não é só uma máquina de arquivo em que lançamos os nossos livros ou discos, textos ou sons, mas uma máquina em que também os criamos, uma máquina que nos serve de interface para uma rede de 500 milhões de outras máquinas, partilhando o arquivo destas e não criando apenas um suplemento privado à memória individual (como Vannevar Bush previa) mas até mais do que um suplemento à memória colectiva porque a organiza e a mantém.

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O seu arquivo mnemónico é em parte feito localmente mas em grande parte, e cada vez mais, é partilhado em rede(s). A informação e os conteúdos não se movem de um espaço privado para outro mas são distribuídos permanentemente ao longo de uma rede (network: trabalho/ rede), criando um compromisso intrinsecamente público, nesse circuito de conectividade alargada. Se pensarmos por exemplo na internet, cada computador, sempre que é ligado à rede, partilha com ela recursos, recebendo e enviando informação e cada vez mais dependendo da conexão para desempenhar muitas das tarefas quotidianas, tais como as (óbvias) de comunicação, ou as de manutenção, etc. Assim, os recursos da rede estão sempre presentes, mesmo quando não directamente utilizados na comunicação imediata. Se os recursos mediáticos nos levam inevitavelmente à multidisciplinaridade, os recursos de rede levam-nos de igual forma em direcção a uma outra alteração/evolução do método de trabalho, desta vez em direcção à multi-autoria ou à colaboração: ao networking! Com a criação de mais e mais níveis de ligação e integração, conjugamos cada vez mais e mais variáveis no sistema, aumentando a complexidade aparente da comunicação. Por outro lado, ao colocar nas mãos do leitor o poder decisivo quanto à estrutura dos conteúdos e muitas vezes ao teor dos mesmos, esta complexidade só será presente na medida em que o leitor a admitir. Ao admitir uma não linearidade na leitura, o computador admite também uma escrita não-linear, tendo, inclusivamente sido já muito discutidas as implicações do processador de texto (a meta-ferramenta usada no computador para criar e editar texto) nos imperativos estilísticos do(s) autor(es). Num hipertexto ou hipermedia, a tecnologia permite a criação de peças de autoria múltipla ou até aberta, no sentido em que cada leitor/utilizador da peça, pela sua interacção a vá também criando. Ao dar ao leitor o controle sobre a navegação da peça, é alterado todo o sistema de poder na base do qual temos vindo a construir a experiência literária, não só no livro, mas em todas as artes “literárias” como o teatro, o cinema, etc, porque a relação escritor-leitor que há tanto tempo estava tão bem definida, cai por terra, quando re-escrevemos o contrato.

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GAME ON!

Quando Ted Nelson avançava pela primeira vez com o conceito de HiperTexto e quando várias empresas tentavam tornar os sistema informáticos em algo mais acessível e massificado (criando pela primeira vez o conceito de computador pessoal), surgiram os primeiros jogos de computador. O Pong, desenvolvido pela Atari em 1972, tal como a maior parte dos proto-jogos de computador (Space Invaders, Pac Man, Asteroids, etc) não desenvolvia uma narrativa no sentido clássico do termo, mas permitia que pela interacção, o utilizador prolongasse os seus movimentos para dentro do ecran, para dentro do sistema. Deste modo, foi criado um media profundamente interactivo, base dos sistemas que hoje identificamos como hipermedia interactivo. Quando o utilizador/jogador não só lê, vê e/ou ouve mas também se integra intelectualmente numa acção e começa a fazer parte do “jogo”, mesmo que a narrativa tradicional não exista, o jogador assume o papel de personagem central e cria a sua própria narrativa a partir da experiência que desenvolve. É curioso como tantos jogos lançavam a acção a partir de uma narrativa prévia que era desenvolvida só até ao momento do início da acção do jogo, quase como se o jogador precisasse de um estímulo inicial para interagir com o sistema. Quando a massificação dos jogos de computador começou, em finais de 1970s e década de 1980, talvez se sentisse a necessidade de integrar esses sistemas numa qualquer classe de narrativa mais facilmente aceitável pelo utilizador, porque de certa forma poderia ser estranho lidar com um media que se aproximava fisicamente da televisão, mas que não nos contava uma “história” nos mesmos moldes em que a televisão o fazia. Este aumento do alcance da intervenção do utilizador, ultrapassa a interacção navegacional do hipertexto, isto é, não permite simplesmente que o utilizador defina um percurso ou uma linha narrativa entre múltiplas possíveis, e de certa forma já existentes, mas vai mais longe, quebrando definitivamente a fronteira entre o media e o público, promovendo o utilizador a co-autor, porque personagem da narrativa. Aqui acontece algo mais, também inusitado: o leitor/utilizador “invade” a diégese da peça, quebrando também a fronteira no sentido do leitor para a peça. A diégese é definida (para mantermos termos relativamente simples) como o mundo de uma história, seja esta um livro, um filme ou uma peça. É aquele universo que pertence apenas à história e que é dado a conhecer ao seu público, que se mantem sempre exterior a ela, como observador consciente dessa condição.

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O mundo da diégese é por exemplo aquele que os personagens de uma narrativa percebem como o seu mundo real. Naqueles meios que criam uma diégese literatura, cinema, etc – esta pode esporadicamente ser quebrada, sempre que é introduzido qualquer elemento que ultrapasse a fronteira entre esse mundo e o do leitor ou espectador. Assim, para usar de exemplos simples, uma voz-off num filme, uma legenda, etc, são elementos que por não pertencerem ao “mundo real” das personagens de uma narrativa são percebidos como elementos extra-diegéticos pelo espectador da mesma. Christian Metz defende que no teatro podemos argumentar que não é criada uma diégese porque apesar de a peça ter uma estrutura fixa, a estrutura da representação não o é, podendo o público afectar o que acontece em palco, de certa forma manipulando a sequência de eventos, quando por exemplo ri na altura errada ou prolonga um aplauso. O que dizer então de uma hipernarrativa? No teatro os actores estão conscientes do público, as personagens da peça não o estarão, mas será que o universo onde ambos existem é dissociavel do do público? As personagens teatrais existem enquanto personagens de uma peça que é representada e não têm uma existência comparável à das personagens literárias ou à das personagens de cinema. Numa hipernarrativa, as personagens habitam um mundo diegético, que os utilizadores penetram e cuja sequência de eventos podem afectar. O utilizador é simultaneamente actor, portanto deixa de ser elemento extradiegético e passa a ser um elemento diegético, integrado como está na narrativa e controlando-a dentro dos limites que lhe são definidos, tal como cada personagem de uma narrativa a controla (apesar de controlado pelo autor). Esta é uma posição que podemos considerar delicada por se situar na fronteira da diégese. O público interfere, é certo, mas julgo não estar errado se considerar que o público não tem muitas vezes a consciência do seu papel enquanto tal porque está muito mais focado no seu papel de personagem. Se considerarmos ambientes hipermedia multi-utilizador como por exemplo o HabboHotel ou o Diablo II (para citar apenas dois exemplos), temos hiperespaços habitados por dezenas ou centenas de personagens, muitos deles NPC (Non Playing Characters, portanto automatizados, bots controlados pelo sistema) e muitos outros controlados por jogadores, cada um deles independente. Cada um destes jogadores entra na diégese em contextos diferentes, consciente do seu papel enquanto jogador e interveniente na narrativa, mas não do seu papel enquanto público. O jogador não se predispõe tanto a ver/observar/ler/ouvir mas muito mais a agir/escrever/fazer, ape-

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sar de cumprir todas as funções inicialmente listadas no decurso desta experiência. Ele é parte de um público activo e para ele todos os outros jogadores não são público, mas sim outras personagens com que tem que conviver e interagir no decurso da sua acção. Assim, apesar de quebrada a regra base da não ingerência do público no mundo diegético, a diégese pode ser mantida no hipermédia. Uma vez que não podemos contar com sistemas hipermedia completamente imersivos, que permitam isolar o jogador/utilizador de toda a “realidade” e fazê-lo mergulhar no sistema, filtrando todos os estímulos sensoriais que não aqueles que o sistema pretende passar ao jogador, apenas podemos contar com a concentração do utilizador para criar um filtro a esses estímulos externos. Assim, se um telefone tocar ou se alguém se aproximar e falar ao utilizador, a sua atenção é momentaneamente desviada do foco principal no sistema hipermedia, podendo ou não lá voltar mais tarde. Os recursos técnicos necessários à criação e utilização dos sistemas hipermedia estão em permanente mutação e evolução, de forma que não podemos actualmente prever com elevado grau de precisão em que circunstâncias é que um determinado produto irá ser utilizado. Desde o domicílio ao escritório, à escola ou a locais públicos como um internet café, um comboio ou um avião, os dispositivos informáticos são cada vez mais omnipresentes, tal como os recursos de rede, que para muitas aplicações práticas já nem exigem a existência de um suporte físico. Assim, os sistemas hipermedia, sejam eles informativos, utilitários ou de lazer são cada vez mais parte integrante da nossa experiência quotidiana. Aquilo que a poesia oral era para os gregos antigos, são os livros em geral para nós hoje em dia. Este momento em que vivemos actualmente e a que podemos talvez chamar “proto-electrónico” também requer um esforço de adaptação durante a transição. Contudo esse período não será concerteza de dois séculos porque devido à própria natureza da transmissão electrónica e à velocidade da sociedade contemporânea a transição será acelerada. Será necessário um século? Cinquenta anos? Menos? Contados a partir de quando? Desde o início da década de 1980 com a introdução dos PC, do início dos 1990s com o desenvolvimento dos primeiros CD-Rom ou desde meados dessa década com a massificação da internet? Haverá de facto um período de transição que concluirá na definição de um novo media standartizado tal como o livro ou será que faz também parte da própria natureza do meio continuar num processo evolutivo permanente?

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O computador enquanto meio narrativo, ou o hipermedia enquanto linguagem, estão ainda na infância quando comparados com outros media: o cinema, a televisão, a literatura... Em relação a estes, quase que nos esquecemos muitas vezes que alguém no passado inventou ou descobriu a montagem clássica, o fade in, o fade out e todos aqueles elementos que hoje em dia tomamos como parte da gramática básica de cada um dos meios. De certa forma ainda estamos a aprender e a descobrir como é que podemos contar histórias com o computador, como é que podemos e devemos lidar com os enormes ganhos de lateralidade obtidos pelo cruzamento de tantos meios, de forma a que eles não nos conduzam a perdas na profundidade de cada meio em particular. Estamos ainda a alguma distância de perceber qual o papel que a tecnologia digital terá enquanto redefinidora da linguagem. Tal como a televisão e a rádio nivelaram os padrões de discurso no Século XX, os novos media tecnológicos, ao imprimirem ainda mais velocidade à informação irão conduzir necessariamente a um discurso linguisticamente mais simples? À medida que o media progressivamente encara o texto como apenas informação, será que nós não seremos levados a encarálo da mesma forma? Esta metamorfose pode ser paradoxal: a anterior transição histórica da oralidade para a escrita mudou as regras do procedimento intelectual porque os textos puderam desde então ser transmitidos de mão em mão, anotados e estudados. O conhecimento podiase construir com uma base sólida. A mudança da palavra escrita para a tipografia mecânica e o consequente espalhar da literacia e da educação pelos laicos tornou, segundo se diz, o Iluminismo possível. Hoje em dia, os computadores, que são a apoteose da racionalidade aplicada, estarão a desestabilizar a autoridade da palavra impressa e de certa forma a levar-nos de volta ao processo que caracterizava a oralidade?•

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PARA QUE SERVE O DESIGN GRÁFICO? PARA QUE SERVE O DESIGN GRÁFICO? ALICE TWEMLOW, 2007

Podemos começar por analisar a questão em termos latos. O design gráfico é um tipo de linguagem usada para comunicar. Usamo-la para falar às pessoas sobre coisas que elas querem ou pensam que querem ou que outra pessoa pensa que querem. Mas as coisas não tardam em entrar numa espiral de complexidade. É uma questão interessante mas, em última análise, bastante estranha. Podemos lançar na conversa a expressão “de todo o modo” e a conversa pára abruptamente, ou podemos tentar enumerar cada um dos elementos e efeitos que são gerados pelo design gráfico, para acabarmos com um projecto de catálogo nas mãos, que mais parece saído de uma história de Jorge Luís Borges. Poderíamos fazer uma listagem mais específica de assuntos, por exemplo: serve para vender coisas e ideias para ganhar dinheiro ou para ampliar agendas políticas.

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“O objectivo do design gráfico e comunicar com pessoas: audiências, espectadores, leitores, utilizadores, receptores, visitantes, participantes, interagentes, actores, transeuntes, experimentadores, elementos do publico, comunidades, habitantes, consumidores, assinantes e clientes.”

Mas, nesta altura, podemos tomar consciência de que também serve para criticar esses mesmos comportamentos. Serve para esclarecer as coisas – inclusive para salvar vidas – mas também serve para enriquecer a nossa vida quotidiana pela adição de camadas de complexidade, matiz e subtileza. Serve para ajudar as pessoas a orientarem-se e a compreenderem dados, mas também para as ajudar a perderem-se em ideias novas, narrativas fantásticas ou paisagens e para questionar e contestar as informações que são apresentadas. O design gráfico está enredado em todos os aspectos da vida social. Desde os sinais que mandam parar os condutores das viaturas nos cruzamentos e da etiqueta com os dados nutricionais que mostram claramente ao consumidor a quantidade de colesterol contido em determinados alimentos até à sequência de título que capta graficamente a atmosfera e os temas de um filme para acelerar a suspensão da crença do espectador – é a pura diversidade e penetração dos produtos e resultados do design gráfico – bem como as suas contradições inerentes – que resiste a que fiquem presos numa lista para análise.

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A própria ideia de que o design tem um objectivo ou serve para alguma coisa no contexto da sociedade no início do século XXI é, em certa medida, anacrónica. Parece pertencer a uma era em que a ideologia e as verdades fundamentais eram possíveis e em que se proclamavam manifestos. Nas primeiras décadas do século XX, muitos designers de toda a Europa e mais tarde dos Estados Unidos abraçaram os princípios do modernismo. Sentiam que era sua obrigação – o dever moral – colocar a força do design atrás do impulso para o progresso social e político. Criaram sistemas de comunicação como por exemplo os alfabetos Sans Serif de caixa baixa, na esperança de que fossem universalmente compreendidos, melhorando, por isso, as relações internacionais. Exprimiam-se usando uma linguagem gráfica orientada para o futuro que incluía a fotomontagem, tipofotografias e composição assimétrica, não pela atracção estética destes elementos mas porque estas opções decorriam directamente de um espírito de missão profundamente sentido. Os manifestos, os escritos e a obra destes modernistas definiram um novo e duradouro papel para o design gráfico como medium cuja formação estava ligada às revoluções políticas das primeiras décadas do século XX e como uma ferramenta, cuja finalidade era o progresso social. Durante a Segunda Guerra e o pós-guerra, o design gráfico na Europa e nos E.U.A., pelo menos, tinha um papel claro e premeditado: proporcionar, em benefício dos governos, design para propaganda, camuflagem e informação às forças armadas e aos civis. Na Grã-Bretanha, muitos designers estiveram envolvidos nos vários esforços da nação para reconstruir serviços públicos e melhorar a qualidade de vida. Tom Eckersley, por exemplo – designer britânico que desenhou mapas para a RAF durante a Segunda Guerra– produziu, durante as décadas de 1940 e 1950, numerosos cartazes para a promoção do bem-estar e da segurança dos trabalhadores. F.H.K. Henrion, um designer alemão que emigrou para a Grã-Bretanha em 1939, foi o autor de campanhas sobre a saúde e o racionamento para o Ministério da Informação britânico. E Abram Games, que mais tarde criaria identidades definidoras de uma era para 0 Festival da Grã-Bretanha e para a BBC, desenvolveu a sua capacidade como designer enquanto trabalhava para o Ministério da Guerra, produzindo cartazes para o Auxiliary Training Service (Serviço de Treino de Auxiliares). Entre os mais memoráveis desses cartazes encontra-se Your Talk May Kill Your Comrades (A Tua Conversa Pode Matar Camaradas Teus), que representa a transformação das palavras

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de um soldado que saem em espiral da sua boca aberta para terminarem numa baioneta sangrenta que perfura os corpos de três outros soldados seus camaradas. Nos E.UA, Charles Coiner criou o símbolo da Águia Azul para a National Recovery Administration (Administração da Recuperação Nacional), a agência federal criada durante o mandato do presidente Franklin D. Roosevelt para incentivar a recuperação industrial e combater o desemprego e, durante a Segunda Guerra, criou cartazes através da Office of War Information destinados a aumentar a produtividade laboral e incentivar as poupanças. Esta relação intima entre o design e as políticas socialmente progressivas de governos, serviços públicos e ate das principais empresas da época continuou ate muito depois do fim da guerra. Na actual sociedade descentralizada, a responsabilidade das mudanças sociais e do progresso passou, contudo, a recair sobre os indivíduos e pequenos grupos, entidades sem intuitos lucrativos e publicações. Por conseguinte, as mensagens são mais numerosas e mais complexas. Como é evidente, muitos designers são politicamente motivados e trabalham sob controlo para uma diversidade de causas sociais, mas, como salientou o crítico de design Rick Poynor, “Os designers exprimem inevitavelmente os valores do seu tempo. E os valores actuais não tratam essencialmente de responsabilidade social.” As questões que preocupam os profissionais contemporâneos incluem: manter uma distância desapaixonada e irónica do tema em análise; a celebração de fenómenos como o quotidiano, a ambiguidade, a complexidade e mesmo a ausência. Também é evidente o questionamento espalhafatoso de um modelo de comunicação tradicionalmente reverenciado, no qual o designer assume a posição de autor, disseminador ou gerador de mensagens, sendo a audiência um receptor ou um consumidor passivo de mensagens. Deparamo-nos com design gráfico como grupos – pequenos, como comunidades locais ou grupos com interesses especiais, ou grandes, como populações e consumidores globais. A extensão da interacção dos designers com estas pessoas – as suas audiências – varia de forma impressionante. Alguns não dão a menor importância à audiência e criam o design para si próprios. Uns criam o design para outros designers. Alguns criam o design para servir a concepção que um cliente tem da audiência. Outros descobrem por si próprios quem serão os destinatários do seu trabalho, o que os atrai e por vezes vão mesmo buscar a sua fonte de inspiração e incorporaram-na na obra.•

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DICHO Y ECHO, ISIDRO FERRER


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DINO DOS SANTOS

TIPOGRAFICAMENTE TGM 2006

Dino dos Santos nasceu em 1971, na cidade do Porto. Fiel à suas origens, licenciou-se em Design de Comunicação Visual pela Escola Superior de Artes e Design, Matosinhos, no ano de 1994. É já uma referência internacional do “typeface design made in Portugal”. As suas requintadas fontes mereceram distinções das mais conceituadas instituições – e um crescente número de clientes.

O que o motivou ao mergulho no micro universo tipográfico? DS – Quando comecei a trabalhar, em 1994, existiam muito poucas tipografias disponíveis. O mercado começava a ficar saturado de designers gráficos (que é a minha formação de base) e então enverdei pelo desenho de tipos de letra, uma paixão antiga, mas nunca concretizada. Mas como não havia ninguém para ajudar e ensinar, foi um trabalho muito penoso e duro. É difícil explicar que se desenha letras, porque as pessoas pensam que as letras são coisas que já nasceram desenhadas.

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A DSType tem se caracterizado pela sua flexibilidade no trabalho com as letras. Quais as suas referências e motivações na hora de começar um novo projecto? Procuro um vasto conjunto de referências históricas, principalmente no campo da caligrafia portuguesa e italiana. Por natureza trabalho 12 horas por dia, todos os dias, e geralmente trabalho em diversos tipos em simultâneo e tenho sempre muita pressa para começar novos trabalhos que se irão tornar novos desafios. As referências são inevitáveis e tantas que não há espaço para particularizar, muito embora me tenha apaixonado pela caligrafia portuguesa dos séculos XVIII e XIX, o que se nota em diversos tipos, tais como a Andrade e a Pluma. Entre os tipógrafos da actualidade e suas criações, quais os que você destacaria? A escola holandesa. Qualquer um. Atire uma moeda ao ar e escolha. Como surgiu a oportunidade de distribuir suas fontes pela TypeTrust? Foi um convite do Neil Summerour e do Silas Dilworth para participar neste projecto independente e deveras interessante. Quais os benefícios que as actuais tecnologias têm trazido aos projectos tipográficos? Trazem inúmeros benefícios e algumas dificuldades. A margem de erro diminuiu substancialmente, pois são muito os tipos desenhados actualmente, mas com o OpenType, por exemplo, temos a possibilidade de alargar o raio de acção a diversas línguas. Começamos a entender melhor o modo como diferentes países e diferentes culturas observam o trabalho que realizamos. É deveras difícil mas culturalmente enriquecedor. A DSType desenvolveu alguns projectos comissionados. Quais as suas expectativas em relação a esse tipo de trabalho? Se é difícil explicar às pessoas que desenho letras (que as pessoas pensam que estão desenhadas por natureza) é ainda mais difícil ser pago por isso. Os gabinetes de design são os mais atentos e é geralmente através deles que desenho esses tipos. Mas é um trabalho muito aliciante: os constrangimentos, os prazos, a funcionalidade do projecto tipográfico, são elementos essenciais no nosso trabalho de tipos comissionados.

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Qual a sua metodologia de trabalho? Relaciona tecnologias digitais e analógicas? Claro! Desenho imenso até chegar a uma qualquer conclusão e só depois passo para o FontLab. Quando estou frente ao computador todas as letras já estão desenhadas na minha cabeça. As fontes “Estilo” e “Esta” receberam deferências importantes no meio tipográfico. Qual a importância desse tipo de reconhecimento para a sua consolidação profissional bem como dos seus projectos? Nos meus projectos, honestamente é muito pouco, mas nos meus clientes é enorme. Claro que ganhamos uma outra perspectiva acerca do trabalho que desenvolvemos e é sempre muito bom saber que apreciam o que fazemos com tanto prazer. Referiu a Esta e a Estilo, mas não podemos esquecer a Andrade que ganhou o Creative Review Type Design Awards para o melhor revival. Mais do que o reconhecimento pelo meu trabalho, interessa-me o contributo que poderei dar para a divulgação da cultura tipográfica portuguesa, e nesse sentido este prémio foi muito bom porque trouxe alguma luz sobre o trabalho desse grande professor e calígrafo do século XVIII chamado Manoel de Andrade de Figueiredo. Quando e por que começou a fazer tipografia? Comecei a desenhar tipos de letra, porque desde sempre entendi que a tipografia é um elemento fulcral e diferenciador, no trabalho de qualquer designer gráfico. Os meus colegas de curso estavam mais interessados em conseguir imagens diferentes para os seus trabalhos, no fundo, o natural fascínio de quem em 1992 começa a utilizar o Photoshop. No entanto eu estava mais interessado na versatilidade que o texto permitia, quer enquanto elemento de comunicação escrita, quer como elemento que, organizado de um determinado modo, permitia compor imagens e ideias que iam para além do próprio conteúdo. No entanto existiam poucos tipos de letra disponíveis e por isso comecei a criar os meus próprios tipos. Com o aparecimento do movimento Grunge, os processos passaram a ser mais acelerados, com a destruição dos tipos existentes e a criação de novos tipos sujos partindo de meros esboços. Quando olho para esses trabalhos dos anos 90, pergunto-me muitas vezes o que é que eu andava a fazer.

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O que mais admiro no seu trabalho é a quantidade vs qualidade. É difícil produzir tantas e tão boas fontes? Já desenhei, de facto, bastantes fontes. A produção tipográfica está sempre dependente de um processo de pesquisa, mais ou menos demorado, e que pelas suas características me levam a desenhar grandes famílias. Mas tudo depende das intenções de cada tipo de letra em particular. A família tipográfica Leitura, por exemplo, exigiu de mim muitos meses de trabalho duro, mas tinha que ser assim, uma família muito completa, com diversas características formais, diversos cortes, porque foi desenhada para um mercado muito específico que é o editorial. No fundo era minha intenção cobrir os diversos aspectos do uso tipográfico em situações de grande profusão de elementos de texto. Tenho sempre diversos projectos em andamento. Neste caso, novamente para o mercado editorial. São duas famílias tipográficas, com serif e sem serif, muito extensas e que se encontram numa fase muito delicada, com testes de kerning, impressão em diversos tamanhos e diversas manchas de texto. Do ponto de vista do desenho tipográfico, são muito diferentes da Leitura. Neste caso não pretendo dar a ideia de uma família total, interessa-me muito mais o facto destes novos tipos funcionarem em harmonia, assumindo as suas diferenças elementares. A facilidade com que se divulgam type specimens digitais hoje em dia não contribui para confundir a obra de um type designer? De facto os specimens individuais podem fracturar a obra de um designer, tornando-a dispersa. Por outro lado, os tipos de letra em formato OpenType, possuem tantas características (small caps, ligatures, swashes, etc) e tantos caracteres que penso que é adequado um specimen para explicar devidamente a totalidade das suas características particulares. Neste momento o que eu faço é desenhar um specimen para cada um dos novos tipos de letra, embora no final junte toda a informação num único catálogo impresso Em que estado se encontra a tipografia portuguesa? Em Portugal continuamos a conseguir sentar todos os designers tipográficos numa pequena mesa de café, e isso preocupa-me. Por outro lado, o trabalho que é apresentado é vasto e possuiu enorme qualidade e excelente aceitação no mercado internacional. Nesta perspectiva, Portugal, já não é visto como um país periférico no que diz respeito à produção de tipos de letra, nem poderia, dado que os type designers portugueses têm arrecadado inúmeros prémios internacionais. Contu-

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do, penso que vão começar a aparecer type designers portugueses com maior frequência. O desenho de tipos tem exercido algum fascínio na nova geração de designers que acabou, ou está a acabar, os seus cursos. Ventura é um dos seus mais notáveis trabalhos. No entanto aparentemente não está entre suas dez fontes mais vendidas (conforme lista de MyFonts). Como explica os gostos do mercado? Já não tento explicar. Acontece, e honestamente, não estou muito preocupado, até porque a Ventura é um tipo muito recente. A Ventura é um tipo que, tal como a Andrade, tem como principal objectivo reavivar o trabalho de alguns dos grandes mestres calígrafos portugueses. As vendas começam a aparecer quando os designers percebem as características individuais de um determinado tipo de letra. Se me perguntassem se acreditava que a Estilo iria ter o sucesso que teve, eu diria que não e ainda assim manteve-se nos best-sellers durante largos meses. Nunca sabemos exactamente o que o consumidor pretende, assim só nos resta trabalhar para que o sucesso aconteça. O Que pensaria de um projecto para digitalizar a escrita da Carta de Caminha, que narra o descobrimento do Brasil? Escritas altamente arcaicas deveriam passar por um refinamento contemporâneo, a fim de aumentar sua legibilidade, ou deveriam ser preservadas digitalmente ? Para mim existem sempre duas formas distintas de ver o mesmo problema tipográfico. Se por um lado com a Ventura o objectivo foi desenhar uma fonte fiel ao modelo, seguindo os mesmos passo metodológicos do seu autor original, com a Andrade interessou-me mais o carácter especulativo da tipografia. O mesmo poderia acontecer com a Carta de Caminha, refinando determinados caracteres para a tornar uma fonte mais utilizável, mas provavelmente mantendo alguns dos elementos que caracterizam a caligrafia de Pedro Vaz de Caminha. O mais interessante é que podemos os dois, começar a desenhar um tipo partindo do mesmo local, e ainda assim chegar a conclusões diferentes. Para onde aponta a tipografia nos próximos anos? Qual a sua visão pessoal do futuro da tipografia? Não propriamente. Sei com alguma certeza o que penso vir a fazer, mas em relação à tipografia de um modo geral, e olhando à cena internacional, prefiro esperar para ver o que acontece. Espero contudo que de futuro possamos gozar de uma maior aproximação tipográfica entre Portugal e Brasil e mesmo entre toda a latinidade.•

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AS CORES DA COR ARTECAPITAL CRISTINA PINHEIRO 2008

Habitamos casas com cor, percorremos ruas com cor, vestimos cor, estamos rodeados de objectos coloridos; de tal forma a cor faz parte do nosso ambiente visual, que a vemos, sem muitas vezes repararmos verdadeiramente nela. No entanto, a cor transforma os espaços e a percepção que temos deles, modela a paisagem, transforma a fisionomia das cidades, e faz parte integrante da imagem e da identidade do espaço urbano. No percurso do meu curso de Mestrado em Cor na Arquitectura, (FA. UTL), tivemos que inquirir (sobre cor) alunos dos cursos de Arquitectura e de Design, futuros profissionais que mais tarde iriam aplicar cor nos seus projectos. Foi com alguma surpresa que verificamos a estranheza com que reagiram às questões colocadas. Foi também evidente o quase desconhecimento dos vários aspectos relacionados com a cor e com a sua aplicação prática. E que dizer então dos aspectos muito mais desconhecidos como os efeitos psicofisiológicos da luz e da cor sobre as pessoas... Estávamos a falar de coisas longínquas... e à data (2002) ainda não existia nenhuma disciplina em que se estudasse mais profunda-

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mente a Cor, como penso que agora se faz. Mesmo no IADE, onde já se estudava, embora não numa disciplina autónoma como hoje existe, os alunos inquiridos também não foram muito seguros nas suas respostas. Segundo Harald Küppers (2002), 80% das informações que o ser humano recebe são de natureza visual, e dessas, supõe-se que 40% se referem à cor, o que ajuda a perceber a sua importância, seja como meio 10 portador de informação, seja como manifestação estética. A capacidade de poder compreender o fenómeno da Cor em toda a sua multidisciplinaridade foi talvez a maior riqueza que um percurso deste nível me conseguiu trazer. Em pouco tempo percebemos como a cor era complexa, como havia ainda tanto para aprender, e que noutros países onde há muito se estudava o assunto, existiam grupos e associações que investigavam a cor, e a estudavam em toda a sua multidisciplinaridade (estética, arte, física (luz e radiações coloridas), química e pigmentos, medicina, oftalmologia (mecanismo da visão das cores), ciência, psicologia, filosofia), assim como estudavam as teorias que ao longo dos tempos se foram formulando sobre o assunto. Ainda no curso conheci a obra de Jean-Philippe Lenclos e a sua metodologia, tão pessoal, de recolha de amostras de rochas, de pigmentos e materiais naturais locais, com as cores características da zona onde depois vai desenvolver os seus projectos cromáticos.

“Tal como a pele sobre a ossatura, a cor reveste a ordem racional da estrutura. Por vezes destaca-se com a evidência imediata da percepção, ocultando-a. Outras vezes, pelo contrário, acompanha a estrutura revelando-a. As vicissitudes desta dupla, às vezes harmoniosa outras vezes em desacordo, cruzam toda a história da Arquitectura.” 11


Foi importante também neste percurso, o modo como Frank Manhke nos transmitiu as suas preocupações sobre como a cor afecta os seres humanos, como influencia o funcionamento do nosso organismo, e de como as decisões cromáticas e as próprias cores, podem ser tudo menos neutras. Sempre insistindo que as reacções humanas à cor não mudam nos seus aspectos simbólicos, associativos, emocionais, sinestésicos, fisiológicos, neuropsicológicos, psico-somáticos, de ergonomia visual, etc; que a criação de um bom ambiente e plano cromático é completamente independente das tendências ou das modas que mudam de ano para ano. A cor, sendo uma percepção sensorial causada por certos tipos de luz, é recebida pelo olho, reconhecida e depois interpretada pelo cérebro. Quando os raios luminosos atingem as células da retina geram-se impulsos eléctricos, que são conduzidos através do nervo óptico ao cérebro. Ao activar as ondas cerebrais, afecta as funções do Sistema Nervoso Central que regula a actividade hormonal. Por isso essa energia afecta as funções corporais do mesmo modo que influencia a mente e as emoções, de uma forma positiva ou negativa. Se as cores forem correctamente utilizadas podem influenciar o nosso bem-estar físico e emocional. Este aspecto, entre outros, ainda não é bem compreendido fora das comunidades ligadas à investigação da cor, e é um tema que não está suficientemente divulgado fora desses grupos de interesse. Uma utilização incorrecta e o uso excessivo de cor – que criam ambientes “overstimulated” (excesso de estímulos), com abundância de ruído visual, grande variedade de formas, cores fortes em combinações estranhas, excessivo cromatismo, clima exuberante em espaços densos, contrastes acentuados de matiz e luminosidade – pode provocar efeitos bastante negativos, com consequências físicas, desequilíbrio emocional, excitação, fadiga, falta de concentração, etc. Os contrastes muito acentuados obrigam igualmente o nosso aparelho visual a uma adaptação contínua (dilatação e contracção da pupila), causando desgaste nos músculos da íris e provocando cansaço visual. Cores fortes, demasiados padrões visuais e muita luminosidade, exigem atenção voluntária e involuntária. Ainda segundo a opinião do mesmo autor, os ambientes totalmente acromáticos, (branco e cinzentos) são monótonos e pouco estimulantes e não contribuem para o bem-estar dos utentes. Pelo que a opção do totalmente branco ou apenas de cores ditas neutras, mas que na verdade não o são, são igualmente desaconselháveis quando se pretende um ambiente colorido, mas equilibrado. 12 “Colored doesn’t mean colorful.”

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“A cor é uma percepção sensorial com efeitos simbólicos, associativos, sinestésicos e emocionais.” 13

Então se a cor tem esses efeitos não deveria ser escolhida e aplicada de forma ponderada e com um pouco mais de entendimento de todos os aspectos envolvidos? Sendo óbvio que o tempo de permanência nos diversos espaços é diferente – exteriores urbanos ou interiores (habitação, escolas, local de trabalho, hospitais, restaurantes, espaços comerciais, etc.) – e por isso, também diferente o tempo de exposição aos estímulos coloridos, é importante que essa diferença seja compreendida, e os efeitos da exposição, considerados na altura das decisões cromáticas. Não sou de todo contra o uso de cor, muito pelo contrário, mas penso que deve ser aplicada observando determinados princípios, com um balanço entre cores fortes e mais suaves, com equilíbrio nas proporções das áreas, estudando os contrastes, as diferentes luminosidades, etc. Uma pequena área de cor, não tem o mesmo impacto que a mesma cor aplicada numa fachada de uma torre. Depois de um desafio lançado pelo Doutor Moreira da Silva para reflectirmos sobre a questão – A Cor na Arquitectura: Intervenção de fundo ou de superfície, e da polémica que na altura ainda se arrastava sobre as cores de Chelas, e a suposta rejeição das cores pelos habitantes, comecei a pensar se o argumento então produzido pela Câmara Municipal de Lisboa e publicado no Público, de que “as cores não ajudam à integração dos bairros sociais, antes produzindo o efeito contrário” serviria de justificação para a opção de se repintar tudo de branco; então pareceu-me que a falta de informação sobre o uso da cor não existia só nas populações residentes no bairro. Por outro lado esse “totalmente branco”, também não seria boa opção, pois só por pouco tempo permanece branco; os fungos e as humidades rapidamente se encarregam de o manchar e de o tornar cinzento. Como me disse o pintor Jorge Martins, só existe o branco puro onde há cal e não há poluição. O desejável, seria mesmo encontrar um equilíbrio entre os princípios da unidade e da complexidade, entre a profusão de cores e o branco total, num ambiente em que as populações se sentissem realmente integradas. Segundo Crewdson (1953) a variedade é necessária para atrair e despertar o interesse, assim como a unidade é essencial para criar uma

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impressão favorável e satisfazer a disposição e os desejos, Demasiada variedade cria confusão e é desagradável. Demasiada unidade cria monotonia. Para se conseguir um bom projecto de cor, é necessário saber posicionar-se entre estes dois extremos. 15 “Variety is indeed the spice – and needed substance – of life.” Tal como então supunha, hoje acredito que as cores de Chelas naquelas combinações, são excessivas e que ao fim de algum tempo a convivência com elas se deve tornar um tanto difícil. Esta é uma questão que não consegui averiguar, mas também não era a isso que a minha investigação se propunha responder. “Se a arquitectura deve servir a comunidade, não deveria ser encontrada uma forma de satisfazer tanto as necessidades dos utentes como 16 as preferências estéticas do arquitecto.” Quando chegou finalmente o momento de escolher o tema da Investigação, coloquei-me a questão de como teriam sido escolhidas as cores da arquitectura construída e de como os profissionais em exercício faziam as opões das cores para aplicar aos seus projectos? Interrogueime se seria uma decisão final, tipo operação de cosmética, ou se pelo contrário fazia parte do processo conceptual do projecto. A Investigação acabou por centrar-se nas construções de Habitação Social, e no modo como os seus autores desenvolveram os planos cromáticos, com que critérios as cores foram aplicadas, quando surgiu a opção pela cor, pintada ou do material, etc. Depois de um levantamento exaustivo do que se construiu entre 1933 e 2004 em Lisboa, de um levantamento fotográfico do estado e das cores actuais das construções, foram seleccionados alguns conjuntos arquitectónicos, e entrevistados os seus autores, ou autores do plano cromático (que também não estão aqui todos referidos). A maioria dos documentos, eram a preto e branco, pelo que a cor, na data da construção, em muitos casos não ficou documentada. Dos autores dos conjuntos seleccionados, devo referir que o Arquitecto Tomás Taveira autor do Bairro do Condado, não acedeu ao pedido de entrevista, mas enviou um texto com as suas reflexões sobre cor. O Arquitecto considera que o uso da cor se tem feito “sempre de um modo não racionalizado no sentido científico do termo mas sempre originado por aquilo que apelidamos de emoção e arte. De facto a ideia de que as cidades devem ser Brancas ou ter a cor dos materiais que as constroem foi sempre falsa, dado que não se prova que as pessoas sejam desse modo mais felizes; logo o não uso da cor ou imposição administrativa de uma qualquer não passa de uma prepotência e uma limitação abusiva do trabalho do arquitecto enquanto artista.”

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O pintor Jorge Martins, autor de planos de cor de vários conjuntos, possuía uma boa bibliografia sobre cor na arquitectura e falou com bastante conhecimento sobre vários aspectos da cor; numa atitude de enorme simpatia ofereceu-me uma colecção de esboços de alguns estudos cromáticos que realizou. Foi o mais seguro a falar sobre cor, mas a profissão e a experiência não são alheios a este facto. Sobre se havia “cores de Lisboa” respondeu:

“Há cores suaves, há azuis, amarelos, há realmente uma quantidade de cores, mas a cor de uma cidade, a Cor no singular é uma coisa que deve ser escrita com maiúscula, porque é a resultante de várias outras cores. A Cor de um quadro é uma cor feita de dezenas ou centenas de cores. A Cor de uma cidade ou A Luz de uma cidade também é feita de vários materiais. Não sei qual é a Cor de Lisboa infelizmente não sei. Lisboa não tem uma cor. É uma cidade que se deixou degradar e construir de uma maneira tão caótica, que acaba por não ter uma personalidade.”


O Arquitecto Pedro Sousa Menezes, autor do conjunto da Rua João Nascimento Costa e co-autor do Conjunto Piano no Bairro Marquês de Abrantes, considera o uso de cor em projectos de habitação social uma forma de mostrar que existe uma preocupação de valorizar os espaços para as pessoas, de lhes dar alegria, e de não esconder estas construções. A sua opinião é de que a cor é mais importante na cidade. Quando existe verde à volta, a cor não interessa tanto. De um modo geral não gosta de fundamentar as opções cromáticas, porque considera que “os arquitectos têm autoridade para brincar com a cor”, e de que usam a cor como uma maneira de marcarem a obra, de marcarem uma posição e uma ideia. “Obra que gera polémica fica na memória. A outra desaparece.” O seu primeiro impacto com a cor foi o edifício amarelo da Rua Alexandre Herculano, que na altura deu polémica porque “as pessoas não estavam habituadas.” A cor pode contribuir para que as pessoas gostem do seu bairro e até o preservem. Gostar do sítio onde se mora é fundamental para ajudar a preservar. As pessoas gostam e interessam-se por aquilo que têm. “Mas na Arquitectura, talvez na política também, uma das razões é exactamente poder utilizar os argumentos que se quiser para justificar. Posso usar uma cor para conjugar e posso usar uma cor para contrastar. A minha ideia não é fazer igual.” A cor não lhe é indiferente e hoje em dia preocupa-se mais com a cor do que antes. Um dos conjuntos que me agradou bastante conhecer melhor, foi o da Travessa Sargento Abílio do Arquitecto Paulo Tormenta Pinto, onde a cor não é logo evidente, não envolve os edifícios, aparece apenas quando se entra. De algum modo está contida dentro dos espaços, ainda que exteriores. A referência, foi uma questão de espaço público e privado, e a noção de que cada espaço tem uma caracterização própria. Os espaços contidos pelos blocos poderiam ser considerados como umas grandes salas de estar, ainda que exteriores, (uma sala azul, uma verde, uma vermelha). O Azul é uma clara referência ao Ives Klein, o verde começou por ser uma memória de um verde água da Avenida Paris, e o vermelho era a cor de um edifício da Rua das Trinas de que gostava muito. Segundo este arquitecto “A cor é uma investigação quase pessoal, é uma sensibilidade que se vai desenvolvendo com o passar do tempo, estando a intuição sempre presente. A cor é uma extensão da própria arquitectura, é uma parte fundamental do projecto.” Se nalguns casos concorda que a cor pode assumir um papel efémero, continuando a arquitectura e a cidade a manter a sua presença, noutros casos esta postura não é consensual.

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Duvida até do que pensaria caso mudassem a cor ao seu projecto da Travessa Sargento Abílio. Por outro lado a preocupação de colocar nas fachadas placas com a referência exacta das cores para futuras repinturas, mostra a vontade de que aquele projecto mantenha exactamente aquelas cores e não outras semelhantes. Considera como todos os outros, a opção pelo material como uma opção cromática, acrescentando que “há um refúgio que garante que se corre menos riscos utilizando a cor própria do material, do que escolher uma cor. Escolher uma cor é um projecto. Com a cor consegue-se caracterizar o espaço de uma maneira diferente. Custa o mesmo e já que estamos a falar de coisas pobres, de materiais pobres, com possibilidades limitadas em termos de custo, a cor é um excelente material para isso.” Como pude verificar, a cor resultante de pintura foi a opção mais largamente utilizada e por razões de ordem orçamental, sendo a principal e praticamente única opção de cor, dos primeiros bairros de casas económicas. Hoje, depois de sucessivos restauros e acrescentos, encontramos alguns casos onde já não se reconhece sequer a traça original. A pintura não tem tanta sustentabilidade ao tempo, e com a luz de Lisboa as cores rapidamente atenuam e às vezes quase desaparecem, mas não sendo a opção preferida acabou por ser a mais viável neste tipo de construções, agora chamadas de Habitação de Custos Controlados. As soluções cromáticas resultantes da aplicação de outros revestimentos, tornaram-se mais diversificadas, na medida em que foram sendo utilizados outros materiais como as monomassas, algum azulejo, materiais cerâmicos, terracotas, placas estratificadas de madeira de alta densidade, e de novo o tijolo, com muita frequência, como já tinha acontecido na altura da construção dos Olivais. Curiosamente quase todos os entrevistados referiram que o tijolo é muitas vezes escolhido não só pelas suas características, mas pela sua cor. As opções cromáticas fazem parte do processo conceptual embora em fases distintas do projecto. A opção pelos materiais acontece sempre numa fase mais inicial, enquanto a cor pintada é decidida numa fase mais final, já na execução da obra, não por ser menos importante, mas para ser avaliada com a luz e com a envolvente do local, a várias horas do dia. A envolvência e o espaço circundante são sempre avaliados, de modo que a cor seja aplicada, ou para harmonizar, no sentido de se integrar com as outras cores ou pelo contrário, para destacar fazendo sobressair.

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Muito podia ainda ser dito sobre a cor, e sobre a cor na arquitectura especificamente. Sobre a cor aplicada como revestimento e protecção, ou sobre a cor decorativa dos esgrafitos, e dos trompe-l’œil; sobre a cor própria dos diferentes materiais, sobre as superfícies cortina de vidro ou os revestimentos de azulejos que espelham muitas vezes as cores envolventes. Neste caso as fachadas podem apresentar aspectos interessantes devido à reflexão da luz, tornando-se espelhos dos edifícios frontais ou circundantes. A sua aparência está em permanente mutação, e durante o dia as variações cromáticas estão directamente relacionadas com a oscilação e a intensidade da luz solar. É uma cor imprevisível, por isso é difícil controlar a aparência cromática desses edifícios, mas os efeitos por vezes são surpreendentes. Qualquer projecto cromático deve combinar arte e ciência sem nunca deixar de ter o Homem como o centro da preocupação.•

10. Küppers, H. (1992). Fundamentos de la teoría de los colores. Mexico: Ediciones Gustavo Gilli SA. 11. Paczowski, B. (2001). «Couleur, peau et structure» in L’architecture d’aujourd’hui – Couleur. 334. Maio/Junho 2001.

12. Mahnke, F. (2003). in Lecture: Psycho-physiological effects of color. FAUTL Lisboa. 13. Mahnke, F. (2003). in Lecture: Psycho-physiological effects of color. FAUTL Lisboa. 14. Crewdson (1953), Mahnke, F. (1986). in Color, Environment and

Human Response. New York: John Wiley & Sons. p 26. 15. Mahnke. F. (1996). Color, Environment & Human Response. New York: John Wiley & Sons. 16. Mahnke. F. (1996). Color, Environment & Human Response. New York: John Wiley & Sons.


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DESIGN E EMOÇÃO

TEXTOS.FBA EDUARDO AIRES 2006

Na Sociedade da Informação e do Conhecimento em que vivemos, os nossos sentidos são ininterruptamente aturdidos por uma miríade de imagens, tipografias, símbolos, marcas, logótipos e aplicações multimédia. Daí resulta uma espécie de Babel visual, onde paradoxalmente são poucas as referências que sobrevivem ao filtro da memória e escapam à usura do tempo. Neste contexto, o design, e sobretudo na sua componente Editorial, assume uma importância capital. É indispensável encontrar fórmulas de comunicação visual que, no meio do turbilhão imagético de hoje, sejam capazes de convocar os sentidos. Daqui se infere, muito claramente, que a funcionalidade do objecto gráfico já não é suficiente para o sucesso da mensagem. Para que tal aconteça é necessária a fruição visual desse mesmo objecto gráfico, ou seja, que a forma assuma a mesma importância do conteúdo ou da função.

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Tendo em conta esta premissa, um factor impõe-se como crucial ao desenvolvimento de projectos de design: a emoção. O Homem é um ser eminentemente emotivo, o que implica uma forma de interacção com o mundo que o rodeia mais empírica do que racional. Como refere o neurologista português António Damásio que as emoções são determinantes no processo de tomada das decisões racionais, justamente. Assim sendo, o design tem necessariamente de jogar com as emoções, por vezes provocando uma sucessão de carambolas, tabelas e ricochetes como numa partida de bilhar. Na actividade projectual, a forma já não segue a função, mas sim a emoção. Esta circunstância faz do designer uma espécie de demiurgo que, no âmbito do seu processo criativo, tem de perceber o contexto emocional que rodeia o objecto gráfico para, desta forma, ir ao encontro das expectativas, também elas emocionais, do público a que se dirige esse mesmo objecto. Com a agravante de que ao designer é impossível obliterar as suas próprias emoções, uma vez que estas são inerentes ao processo criativo. Há, portanto, uma tensão emotiva que é necessário gerir, sob pena da comunicação visual revelar-se ineficaz. Não temos qualquer rebuço em encarar o design como uma actividade eminentemente passional. Algo que foge às amarras do racional, do unívoco e, mais ainda, do comercial. Nesse sentido, os projectos assumem-se inequivocamente, como um repositório de emoções. O resultado será a sublimação gráfica de um conjunto de referências estéticas e ideológicas, idiossincrasias e mundividências, valores e conceitos, ideias e sonhos, no âmbito de uma actividade projectual que reputamos de consistente e coerente. O design possui, de facto, esse carácter poroso, na medida em que absorve tudo o que está à sua volta e de tudo se serve para estabelecer uma qualquer ordem visual. Neste sentido, o designer tem tanto de parasita como de altruísta, pois vive à custa do que consegue vampirizar em seu redor mas, ainda assim, é suficientemente generoso para, com maior ou menor eficácia, maior ou menor notoriedade, produzir um determinado estímulo visual. Desta reflexão, poder-se-á pensar, muito legitimamente, que o design resulta de uma certa anarquia criativa, mas trata-se, porém, de um caos controlado. Para lá de todas as considerações estéticas que possam suscitar, os projectos gráficos têm subjacentes metodologias e conceitos específicos. Esta preocupação metodológica e conceptual é, aliás, a válvula de segurança que nos tem permitido evitar o abominável diletantismo criativo.

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Os projectos de design editorial obedecem sempre a um conjunto de etapas lógicas e evolutivas. Mas, tudo começa num pueril exercício: o desenho. E com ele a angústia da folha em branco, que não exaspera apenas os escritores. Todo o processo criativo gráfico se assemelha ao da literatura. O francês Paul Valéry (1871-1945) disse que “o primeiro verso é dado pelos deuses, os restantes são conquistas do poeta.” Assim é também no design. Há como que um espesso nevoeiro inicial, o qual só conseguimos ultrapassar com um “golpe de asa” proporcionado, quem sabe, pelos deuses de que falava Valéry. E é então que na imensa volúpia de imagens, textos e suportes surge um ténue fio condutor, uma longínqua linha de horizonte, um pequeno indício de ordem. Depois, a inspiração dá lugar à transpiração. O esboço primário é redesenhado múltiplas vezes, num estado de quase obsessão criativa, até chegar à desejada solução final. Trata-se, sem dúvida, de um trabalho e de um percurso, no fio da navalha, ao qual só escapamos incólumes graças a um providencial factor: o conceito que enforma a produção do objecto gráfico. A definição do conceito é a etapa mais racional do processo criativo. Estribados na informação recolhida, a montante, junto do proponente do trabalho gráfico, com quem estabelecemos uma dialéctica criativa e transformadora – dar e receber, debater e rebater, propor e executar –, partimos então para um período de reflexão e análise. Nessa altura são digeridas as motivações, objectivos, desejos que nos foram transmitidos, para só depois traduzir esteticamente, através de um conceito, todo esse manancial informativo. E aqui reside o grande fascínio do design. No limiar da solução final, somos invadidos por um sentimento de plenitude, de domínio, que arrosta com todo e qualquer desafio. Temos então a certeza de que as dificuldades inerentes ao projecto foram ultrapassadas, sendo que, com o acumular de experiências, o nosso grau de exigência aumentou, tornando a escada metodológica mais alta e íngreme. Objectivamente não se trata de encontrar uma solução gráfica, mas sim a solução gráfica – aquela que corporiza inteiramente o conceito definido e na qual o designer se projecta. Se assim for, a solução final atinge o que consideramos ser o desígnio máximo do design: garantir ao destinatário do objecto gráfico um módico de conforto visual, uma reciprocidade de afecto. Estamos plenamente convencidos de que, sem um alicerce conceptual, qualquer solução de design é um mero exercício de estilo. Importa, portanto, definir previamente um conjunto de coordenadas estéticas que orientem o desenho e permitam chegar à solução final, criando empatia com o destinatário e ser gratificante para o designer. •

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PROJECTOS, ESPAÇOS, VIVÊNCIAS ARTE CAPITAL R2 2009

PAISAGEM, ENCONTRO, REFERÊNCIA

Já fora de Lisboa, num desvio no caminho, e sem procurarmos nada em concreto, demos com um descampado e duas barracas. Nesse vazio de vegetação, um pai tinha alinhado computadores obsoletos e televisores velhos. Estes formavam uma estação de trabalho com cinco postos, sem possível ligação à corrente eléctrica, para os seus filhos brincarem. Erraticamente, noutro desvio, encontramos um “a” minúsculo à beira da estrada, na realidade uma peça industrial, ali abandonada. Um “a” verdadeiramente gigante para quem compõe diariamente “a”s, com cerca de 9 pontos para texto corrido. Também ele no meio do nada e à beira da estrada, inesperado naquele espaço, um volume contornável, escalável, imponente e bruto. Noutras pesquisas tivemos igual sorte nos achados. Como o que aconteceu numa incursão à morgue de um conhecido hospital nacional. Percorrendo os seus corredores sombrios, entrámos numa das mais sinistras câmaras. Definindo a parede, um quadro de giz pregado para o registo da autópsia e, suspensos, um crucifixo e uma serra eléctrica.

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É nestas paisagens, nem sempre descampadas, que encontramos perguntas e respostas para muitos dos projectos que desenvolvemos. São para nós deliciosos espaços, contentores ocupados que nos alimentam num diálogo entre vernacular, insólito, desordem e rigor, grelha, estrutura. Espaços e experiências que contaminam os nossos projectos e a nossa vida. Espaços habitados, interpretados, acasos, levaram-nos a encontrar preciosidades que coleccionamos quando a escala, o material e a propriedade o permitem.

“Os espaços multiplicaram-se, fragmentaram-se e diversificaram-se. Existem de todos os tamanhos e espécies, para todos os usos e para todas as funções. Viver, é passar de um espaço para outro, tentando o mais possível não esbarrar.”


LETRA, SIGNO, EDIFÍCIO

Adrian Frutiger refere frequentemente a proximidade existente entre a arquitectura e a tipografia. No prefácio do livro sobre a obra do ar17 quitecto Paul Andreu , Frutiger menciona esse tema como recorrente na colaboração de ambos para o projecto do Aeroporto de Charles de Gaulle. O seu é apenas um exemplo da linguagem comum entre tipógra18 fos e arquitectos; como refere Félix Studinka, ambos falam sobre grelhas e estratificação, proporção e estabilidade visível, e como organizar o preto e o branco. Foi também essa proximidade que contribuiu para um I Love Távora inteiramente tipográfico. O evento que publicitou devia o seu nome ao próprio arquitecto Fernando Távora que, enquanto docente, concebeu uma t-shirt com estas palavras para que os seus alunos e outros interessados a adquirissem. No cartaz, recorremos a caracteres e outras peças tipográficas que, como se de edifícios se tratassem, procuram evocar um plano urbanístico onde se pode também ler um coração. No desenvolvimento de símbolos para identidades visuais para arquitectura, tivemos projectos em que utilizamos referências ao edifício. Por mera coincidência, dois deles desenhados pelo arquitecto Álvaro Siza: o Pavilhão de Portugal, para a Trienal de Arquitectura de Lisboa e o Conjunto Habitacional da Bouça no Porto, para o Atelier da Bouça. Na Trienal, partimos da forma do edifício sendo que durante o processo de investigação experimentamos uma aproximação que traduzisse de forma mais literal a “pala” do Pavilhão de Portugal. Contudo, uma maior abstracção revelou-se mais eficaz: a evocação à existência da pala é feita através de um reforço ao braço do “T”, conferindo mais carácter ao símbolo. A forma é um híbrido – parte letra, parte edifício – que nasce de uma sugestão da forma do Pavilhão ao integrar igualmente as letras “T” e “L” de Trienal de Lisboa. A problemática da representação de um edifício em projectos de identidade visual tem particular interesse no caso do Centre Georges 19

Pompidou. O símbolo da instituição, inspirado na fachada do edifício onde se destacam as escadas mecânicas, foi interpretado em 1977 por Jean Widmer. A primeira proposta apresentada – e recusada – não traduzia literalmente os pisos existentes, procurando um equilíbrio próprio. A forma inicial foi então substituída por uma versão menos abstracta do símbolo, reflectindo os cinco pisos reais do edifício.

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ESCALA, REPRODUÇÃO, PROJECTO TÉCNICO

A reprodução de projectos de arquitectura em formatos mais pequenos (como acontece nas publicações) obriga a uma simplificação e um redimensionamento das espessuras das linhas. O desenho técnico do projecto reproduzido num livro chega a sofrer reduções na ordem dos seiscentos por cento. O tratamento do desenho implica que o traço mais fino tenha, para impressão em offset, pelo menos 0.5 pontos, indo até 20 aos 0.4 se for computer to plate. No processo de impressão serigráfica, utilizado para os cartazes de rua, a linha mais fina não poderá ter menos de 0,71 pontos. 21

No catálogo que acompanhava a exposição de Raoul De Keyser reflectimos de uma forma mais incisiva sobre como poderíamos manter uma relação mais próxima entre a real variação das proporções das obras reproduzidas ao longo desta publicação. A amplitude de tamanhos e escalas entre elas impedia uma óbvia redução proporcional. A solução encontrada assentou num agrupamento de obras de acordo com a sua dimensão, tendo cada conjunto uma redução correspondente. Na capa, um pormenor de uma das pinturas é apresentado à escala real. 22 Noutros casos, como no cartaz Boca , procurando um certo efeito de estranheza e simultaneamente de proximidade, ampliámos aproximadamente novecentos por cento a imagem de duas bocas tocando-se levemente. Tanto o conteúdo, como a escala da imagem, reforçaram os diálogos estabelecidos entre esta e a cidade nas paredes, tapumes e janelas cimentadas onde o cartaz foi afixado.

“Aqui, é o contexto que, por oposição, acrescenta significado à imagem.”


EDIFÍCIO, SIGNO, INTERSECÇÃO

Há edifícios que se deixam contaminar literalmente pelo seu conteúdo: o 23

Pato de Long Island é o ex-libris dessa categoria. Outros podem representar para os designers um espaço incontornável na procura de uma marca gráfica, como explica Stefan Sagmeister sobre a imagem que de24 senvolveu para a Casa da Música. Este refere que, por mais que se tentasse afastar do edifício de Koolhaas, todos os seus desenvolvimentos lhe pareciam arbitrários face à forma única deste edifício. Em oposição, a sede da Citröen nos Campos Elísios, projectada por Manuelle Gautrand, é sugerida pela marca gráfica originalmente desenhada por André Citröen. Em alguns casos, a intervenção gráfica num espaço pode ser tão essencial que, sem ela, todo o edifício que o proporciona perderia; um exemplo disso é a Printshop Veenman, projectada por Neutelings Riedijk Architects e com intervenção gráfica de Karel Martens. Tradicionalmente, o designer de comunicação – como refere Ellen 25 Lupton – enquadra os espaços, sítios e objectos e torna-os legíveis, funcionando como mediador. A contribuição actual à reflexão do espaço e da arquitectura por parte de alguns designers esteve patente na ex26 posição Forms of Inquiry, cuja itinerância teve início na Architectural Association em Londres em Outubro de 2007. Entre outras coisas, esta exposição apresentou explorações críticas de vários designers face às 27 problemáticas do espaço e da sua representação. Apesar de desenharmos para diferentes funções, partilhamos a mesma linguagem. É essa linguagem comum que torna possível uma colaboração próxima e um diálogo profundo entre designers e arquitectos. É dela que nasce a discussão sobre o interesse mútuo das duas profissões. E é nos territórios partilhados, assim como nas intersecções do espaço urbano, que juntos abrimos novas perspectivas.

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TIPOGRAFIA, MATÉRIA, TEXTURA

A envolvência impregna o nosso trabalho, opera associações e por vezes faz-nos integrar realidades e objectos, encontros na vida e no projecto, intencionais ou frutos do acaso. Coisas coleccionadas e analisadas, objectos descontextualizados, transformados, ajustados, desviados, alavancas de uma nova abordagem. Procuramos por vezes conferir materialidade à tipografia, a matéria dos espaços e dos objectos que nos rodeiam. No cartaz desenhado para a peça de teatro Molly Bloom de James Joyce, utilizamos tipografia recolhida em diversos tecidos. Recorremos à textura e à forma das letras bordadas para conferir volume às palavras que jorram do interior de Molly. Esta materialidade foi também explorada na série de cartazes desenvolvidos para a divulgação da exposição 28 Reunião de Obra, como derivação do conceito do projecto. Com enfoque na importância da passagem do projecto à execução, a tradução visual do evento no cartaz passou pela utilização dos materiais de construção e o desenho do projecto. Tratando-se de uma série, fez-se o levantamento sistemático de materiais representativos de cada Reunião 29 de Obra, com os quais se procurou construir texto.

“Os projectos constroem-se sobre diálogos permanentes que reenviam sistematicamente ao olhar crítico do outro. Com o conteúdo do projecto como ponto de partida, procuramos traduções com diferentes doses de interpretação, acionalidade e intuição.”


Na instalação que concebemos para a fachada da Ermida Nossa Se30

nhora da Conceição, agora transformada numa pequena galeria, as letras ganham textura; aqui, a tipografia não sugere apenas volume – ela é de facto tridimensional. O conceito desta intervenção centrou-se na anterior função daquele espaço, que passou de local de culto a galeria. Cobrimos a parede da fachada com expressões características de uma oralidade tão religiosa quanto quotidiana, evocações nem sempre conscientes de uma divindade omnisciente e omnipresente. Através desta intervenção, tanto expressões como divindade regressam ao local onde antes convergiram, agora no seu imperecível muro. O 31 acabamento do texto composto no tipo de letra Knockout tem a mesma materialidade da fachada (pintada de branco para o efeito), dando a sensação que o texto, como que empurrado do interior do templo, surge da capela para a rua.•

11. ANDREU, Paul; JODIDIO, Philip; FRUTIGER, Adrian, “A Building, a typeface”, Paul Andreu, Architect, Birkhäuser, 2004, 6-7. 12. STUDINKA, Félix, Poster Collection: Typotecture, Typography as Architectural Imagery. Museum fur Gestaltung Zurich & Lars Muller Publishers, 2002, 5. 13. SMET, Catherine de “Histoire d’un rectangle rayé”, Les Cahiers du Musée national d’art moderne, Édition du Centre Georges Pompidou, 2004, 4-23. 14. Tecnologia de impressão mais moderna que permite passar directamente de um ficheiro criado digitalmente para a impressão da chapa de offset. 15. LOOCK, Raoul De Keyser, Fundação de Serralves, 2005.

16. Cartaz desenhado em 2004 para o Teatro Bruto, com base numa fotografia original de Marco Maurício. 17. VENTURI, Robert; IZENOUR, Steven; BROWN, Denise Scott – Aprendiendo de Las Vegas: El simbolismo olvidado de la forma arquitectónica. 2ª ed. Barcelona: Editorial Gustavo Gili S.A., 1982. 18. RAMALHO, Lizá, “Un logo, des locaux”, Étapes França nº148, 19. LUPTON, Ellen; MILLER, J. Abbott “Critical Wayfinding”, The Edge of the Millennium,. ed. Susan Yelavich. New York: Whitney Library of Design, 1993, 220-232. 20.OWENS, Mark – Forms of Inquiry: The Architecture of Critical Graphic Design. Architectural Association Publications, 2007.

21. Entre os projectos apresentados, destacamos a interpretação gráfica da capela de Notre Dame du Haut de Le Corbusier, por Karel Martens e David Bennewith para a Architectural Association em Londres. 22. Série de exposições realizadas pela Ordem dos Arquitectos Secção Regional Norte. Reunião de Obra nº1 23. À excepção da Reunião de Obra nº1, por se tratar do primeiro evento, recorremos a um elemento generalista. 24. Situada na Travessa Marta Pinto em Lisboa, reabriu como galeria em 2008. 25. Família de tipos desenhada por Hoefler & Frere Jones.


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ARQUITECTURA RECOMBINANTE ARTECAPITAL BENJAMIM BRATTON 2009

A arquitectura recombinante examina o profundo impacto cultural da biotecnologia, incluindo a genética, a genómica e engenharia transgénica, no imaginário da arquitectura. Este breve ensaio cartografa várias posturas éticas e teóricas acerca da questão obscura do design recombinante e procura preparar o terreno para uma arquitectura material, baseada nas complexas tecnologias do ser, do espaço e da matéria. A arquitectura recombinante desencadeia relações alegóricas entre corpo e estrutura, incorporando corpos arquitectónicos e biológicos em interiores e exteriores reversíveis e contínuos, incluindo cyborgs e corpos transgénicos, tessituras celulares generativas, híbridos corpos-arquitectura, habitats replicantes e arquitecturas e materiais de construção geneticamente manipulados. A arquitectura recombinante é múltipla e este ensaio considera-a como inter-relacionável com três temas: a concepção de formas arquitectónicas à imagem de uma realidade corpórea biomórfica e genética, a formação deliberada de recombinações de formas corpóreas e a aplicação de biomateriais produzidos na construção de ambientes dos cor32 pos para os edifícios e vice-versa.

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PROGRAMAS/CORPOS GENÓMICOS

Tecnologias recombinantes (cartografia genómica e terapia genética, nano-biotecnologias, etc.) reconfiguram o nosso corpo como lugar de reprodução, habitação e sensação com características ambulatórias e de devir temporal. Porque estas se coordenam com a arquitectura como escala, abrigo, símbolo e cenário, antecipamos que as tecnologias recombinantes terão impacto na arquitectura de um modo igualmente radical. Precisamente porque o design genómico e transgénico desestabiliza os próprios corpos com os quais habitamos os nossos mundos partilhados, o que passa a ser crucial não é o corpo per se mas antes as instituições sociais, locais e globais, construídas ao longo dos séculos, sobre conceitos que tomam o corpo como referência natural e estável. Como o meio biológico corporal se fragmenta de uma singularidade universal em assemblagem genética, os mundos que definimos através do corpo, tornam-se igualmente desestabilizados e redeterminados por imaginários recombinantes. Qualquer instituição que se baseia em discursos colectivos, é um lugar potencial para uma revolução recombinante (a família, a casa, o estado-nação, o próprio espaço) e isto conduz-nos em várias direcções contraditórias e por vezes perigosas. O século XXI será povoado por crianças genomicamente auto-conscientes/reflexivas que nascem e crescem em corpos que reconhecem como expressões habitáveis de “código biná33 rio”. Estaremos nós a popular os primeiros anos de um século eugénico com uma tenebrosa singularização biotecnológica da humanidade? Estaremos também a participar nos primeiros anos de uma nova sociedade de liberdade biomaterial, uma arquitectura do Eu que permite novas práticas que reflectem um novo desígnio e uma nova expressão corporal? Como alegoria, a viragem genética anima vários projectos de arquitectura contemporânea. Porém, a materialidade táctil e textil, assim como o inconsciente sociocultural em que se baseia qualquer “programa”, dificilmente permite a avaliação do impacto das tecnologias genéticas. A arquitectura recombinante é o re-questionamento radical dos mais fundamentais pressupostos programáticos acerca dos recursos lógicos do espaço construído. Quando quer a arquitectura quer os corpos que a habitam, são eles mesmos orgânicos e inorgânicos, materialmente vivos e não-vivos, quando a natureza dos dois é artificial e artifactual, as premissas iniciais das interacções no espaço e no tempo, são repensadas. Arquitectura genética: biomorfologia algorítmica, a concepção de formas arquitectónicas à imagem de uma realidade corpórea biomórfica e genética.

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O imaginário genético tem-se insinuado na investigação arquitec34

tónica de várias formas e conduz diversas abordagens experimentais. As incursões na arquitectura genética constituem a centralidade epistémica de um corpo agora genomicamente auto-consciente, como um índice metodológico de investigação estrutural. O corpo genético designa e contém formas animadas múltiplas e incoerentes para serem expandidas arquitectonicamente. Assim, a genética e a genómica são consideradas como princípios figurativos que prolongam e transcendem processos puramente biológicos, tornando-os sistemas biotécnicos mais compreensivos. Para Karl Chu, phyla orgânica e inorgânica cruzam-se em horizontes-limite mutuamente constituídos de materialidade informativa. Estas territorializações emergem in vivo através da superfície física da Terra como múltiplas avaliações algorítmicas transversais.

“O espaço genético é o domínio de mundos possíveis, gerados e mitigados através do tempo pelos phylum maquínicos. Esta é a zona de emissão das radiações da descompressão da realidade, uma explosão super-crítica de algoritmos genéticos latentes, com a capacidade de se libertarem para o espaço genético. Não é um receptáculo passivo, mas um espaço evolutivo activo, dotado de propriedades dinâmicas e conhecimento da paisagem epigenética.” 35


De acordo com a teoria do Espaço Hyperzóico de Karl Chu, as leis da 36

física que ordenam o jogo entre genótipo, fenótipo e ambiente, estão em desenvolvimento e são condensações de múltiplas modulações explícitas e virtuais de enunciados genético-algorítmicos. Karl Chu chamalhe a Era Hiperzóica, na qual a informação-como-capital e capital-como-informação se condensam e se descodificam em múltiplas espécies 37 de vida artificial. Manuel De Landa, agora docente na Architecture and Planning Graduate School da Columbia University, cartografa a intra-evolução promíscua da inteligência mecânica, biológica, linguística e geológica através de inúmeros locais de convergência e intensificação. Dentro da história transversal da incorporação de escalas múltiplas, de Manuel de Landa, a arquitectura passa a ser o lugar para a manifestação de múltiplos vectores evolutivos concorrentes: semióticos, militares, meteorológicos e virais. Esta evolução de formas realiza-se através das inter-relações diferenciais de reprodução genética e ambientes dinâmicos. As acções plurais do design situam-se sobre as duas formas de evolução: fomentando a duração de momentos de vida singular e nos limites das trajectórias de impacto que têm no habitat. A história do meio persiste – é traduzida e miniatorizada – quer na assinatura genética da característica pela qual ela selecciona, quer nos corpos-espécie animados por essas mesmas assinaturas genéticas. Este movimento inscreve o mundo material inabitado de acordo com parâmetros de uso, trocas, significado e exagero simbólico. A maneira como uma determinada forma vem a ocupar uma dada posição dentro da rede de acção de agentes humanos e inumanos, do microbial ao continental, e a eventual duração das diversas ocupações traduzem o horizonte arquitectónico do código. Mutação, ruído interior do sinal infogenético, coloca o princípio da variação (inovação) dentro do código bioinfomático que contém sempre a sua própria contradição, a sua própria possibilidade para interacções alternativas ocasionais. Mas qualquer mutação (qualquer inovação) dura apenas o momento em que tem capacidade de mediação, em que pode manter um circuito numa determinada escala ambiental. Para tal, realiza uma transfiguração de valor entre forma-limite corporal e horizonte-limite ambiental, uma reterritorialização das arquitecturas maquínicas da habitabilidade. Isto tem lugar em múltiplas escalas temporais, desde nano-segundos a milénios, e como uma Geologia da Moral fabrica a condição de espaço durável.

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É precisamente na cúspide dessas convergências e divergências que Marcos Novak situa a lógica evolucionária da própria arquitectura. Para Novak, a emergência do digital como espaço soberano constitui uma nova especiação dentro da genealogia da investigação arquitectónica. Longe de ser uma mera ferramenta, a espacialidade digital é um novo corpo, um novo ambiente, uma nova condição das pressões intra- e inter-selecti38 vas, ecto-,exo-,xeno- e alógeno como máquinas-evento arquitectónicas. Construção e hiper-construção tornam-se fenótipos, uma manifestação de forma, concordante com a pressão condicionante de economias transitórias de espaço-habitação. Uma vez que a arquitectura digital constitui um vector da especificação epistemológica, da arquitectura puramente molecular, os processos alogenéticos podem ser antecipados. Modulações de formas sistémicas que emergem na savana digital, serão por sua vez enlaçadas nos corpos hospedeiros da arquitectura física. A condição prévia desta hibridização é a diferenciação evolucionária do digital como um eixo discreto de selecção-forma-código, e a sua capacidade para, por esse meio, gerar mutações imprevistas para serem posteriormente recuperadas.O projecto Embryological House de Greg Lynn, tal como a maioria dos projectos de arquitectura genética, publicamente aceites, reinventa a habitação de acordo com a forma genética como um princípio inicial da animação iterativa;

“Pode-se começar com uma forma primitiva, como um ovo, e desenvolver regras para quebrar a simetria. Esta foi a estratégia que eu adoptei na Embryological House. É concebida como uma forma esférica tosca, com várias linkagens e ligações dos componentes, fixando-se limites máximos e mínimos para cada um desses componentes, e então a interacção de todas essas coisas é o que fornece as infindáveis possibilidades de mutação.” 39


A dupla pele da Embryological House reage e antecipa-se à luz solar e às variações ambientais de acordo com os dados que recebe, ajustando-se. Como um corpo animal, a casa-corpo modela-se a qualquer superfície, e as aberturas arquitectónicas são orifícios reais: a porta é como um esfíncter – “abre e fecha.” Em aspectos fundamentais a Embryological House (e talvez a Arquitectura Genética como um todo, neste momento) permanece demasiado devedora das problemáticas da arquitectura tradicional. Por todos os seus verdadeiros méritos, a Embryological House é um ícone da metáfora genética na arquitectura, e ao ter assinalado formas corporais e morfologias humanas em sistemas edificados, permanece, neste ponto da sua evolução, uma alegoria de processos genéticos. O sistema de habitação assemelha-se ao aparecimento de processos genéticos, o corpo biológico, mas é ele próprio um processo genético? Está por decidir se a Embryological House é ainda arquitectura genética, ou arquitectura acerca da genética. A história de ficção científica em que termina a Embryological House deixa todos os traços de mutação na arquitectura, mas nós, os habitantes corpóreos, queremos também ser parte da mutação! Apesar de tudo, para a arquitectura recombinante, o esplendor do projecto de Greg Lynn será totalmente alcançado quando a Embryological House 40

a) crescer num prato e/ou b) for capaz de se reproduzir sexualmente. Pós-corpos, a formação deliberada de recombinações de formas corpóreas (entidades genómicas na imagem da arquitectura). A arquitectura recombinante é construída a partir destes projectos e pressupõe a sua erudição. Mas nestes casos, em que a arquitectura genética se fundamenta ou recorre à gramática genética no momento de criar arquitectura formal, a arquitectura recombinante olha para o corpo artificialmente projectado (genomicamente, cirurgicamente ou concebido de uma outra forma), como a medida cyborguiana de estrutura e habitante. A tradução do genético em carne, e não apenas em códigos replicantes ou significantes corporais, assenta em precedentes compreensíveis. O corpo é a primeira arquitectura: o habitat que precede a habitação. A arquitectura olha para o corpo pelo seu télos, a sua imagem de singularidade unificada, a sua continuidade histórica. A condição de corporização e o seu material poético de escala, temperatura, solidez e flexibilidade, reprodutibilidade e singularidade, tem fixado a linha do horizonte desde Vitruvio a Virilio.

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Mas os corpos retalhados em componentes sub-variáveis e predisposições estatísticas, são agora imaginados como territórios genómicos, como cidades de eventos-ADN. Corpos, corpos carnosos e viscosos, são agora não apenas a primeira arquitectura, são praticamente a primeira arquitectura digital. O ADN é o código binário: é o principio computacional, e imagem do corpo como um campo infomático mutável. Mas o corpo-como-meio-digital, ainda na base do imaginário arquitectónico, é como qualquer outro meio digital disponível para cortar e colar. Uma arquitectura recombinante concebe o design do ambiente construído de acordo com a tecnologia discursiva do genoma, “ADN faz arquitectura”. As formas corporais que produz são elas próprias arquitectónicas no mais alto grau. Estas manifestações genómicas são como quaisquer outras naturais ocorrências arquitectónicas, incrivelmente perfeitas e também disponíveis para as modificações que o habitar simbólico e prático faz a partir delas. Desde Prometeu ao Rabi Loew e desde Victor Frankenstein a Stan Lee, os criadores de heróis-vilões são signatários da complexa condensação do corpo, biologia, tecnologia e mito, que surgem como ícones 41 quase-humanos de sistemas tecnológicos emergentes. Em 1995, o Dr. Joseph Vacanti, cirurgião de Harvard especializado em transplantes, cultivou uma orelha humana sob a pele de um rato. A orelha fabricada foi 42

posteriormente retirada e o rato sobreviveu. O rato de Vacanti é uma figura genesíaca de uma era de restruturação electiva, na qual corpos são como máquinas e máquinas são como corpos, um mito originário para múltiplas novas práticas de design. Este aterrador ser-objecto transgé43

nico é uma Quimera contemporânea, é parcialmente mágica. A imagem da Orelha Rato é um ícone da engenharia de tecidos radical, da violência criativa da ciência, e do corpo biológico, agora forma arquitectónica recombinante. Por razões tecnológicas e éticas, a derradeira realização da auto-fabricação genómica digital, num nível mecânico primário, o corpo ultramoderno é já uma forma altamente recombinante. Isso é patente mesmo numa leitura apressada de qualquer jornal, dos anúncios das inovadoras cirurgias electivas. A extrema modificação do corpo é decisivamente um discurso e uma prática arquitectónica. É uma renovação deliberada desse primeiro habitat (do Eu), e a produção pública de espaço performativo (do Outro singular). Esta prática cria diversas aparências, cada qual constitui qualitativamente diferentes visões arquitectónicas, umas na direcção de um alien radical, outras em direcção de uma singularidade estandardizada, pensamos por vezes que o que aparenta ser um,

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acaba por se revelar o outro. Desde a moda do piercing até à cirurgia electiva, as economias simbólicas e financeiras das modificações radicais do corpo, são as precursoras de uma potencial era de radical automodificação genómica. Mas onde tatuagens, piercings ou outras modificações mais radicais como implantes ou outras cirurgias plásticas são interessantes pela sua focalização no re-desenho estrutural na carne, é a/o She-Male que decisivamente assinala esta espécie de complexidade Quimérica na qual a arquitectura recombinante sempre gravita. A/o She-Male, é mais do que um refinamento afectivo da forma corporal, ela/e situa a reconfigurabilidade dos elementos estruturais do corpo mais primários e significativos. Para a arquitectura recombinante, a transsexualidade é o elemento-chave. Posiciona a tecno-biologia como uma linguagem estrutural e reflexiva, que pode ser deliberadamente articulada de novas formas. A transsexualidade também complexifica o alibi do funcionalismo que acompanha a pesquisa especulativa dentro das tecnologias recombinantes. As cirurgias não são exactamente um procedimento médico, nem meramente cosmético. Elas são metamorfoses dentro da inovadora liminaridade, e despedaçamentos produtivos dos universalismos categóricos, que determinam arbitrariamente as premissas da arquitectura como corpo, e do corpo 44 como arquitectura. O corpo em volta do qual situamos as premissas da arquitectura recombinante é reconfigurável, mas não necessariamente orgânico. O trabalho de Bruno Latour localiza a produção de agentes estruturais dentro e através de actores humanos e não-humanos. Estes circuitos orgânicos-inorgânicos contextualizam mutuamente e activam-se em performances. Estas redes de actores também assinalam os locais das reviravoltas do desejo, desde formas de investimento orgânicas a inorgânicas e de volta aos orgânicos, da incrementada artificialização do corpo sensual até à sensualização do artefacto antropomórfico. Ou seja, correspondendo à estética-performativa plastificada da reconfiguração cirúrgica, o Eu é a erotização da matéria inorgânica. Esta conversão é também uma de entre novos e confusos eixos de interioridade e exterioridade. Como imaginamos sistemas construtivos, baseados nos termos e nas tecnologias com que entendemos os nossos próprios corpos, como expressões do código genético, e como também imaginamos os nossos corpos como expressões de critérios estético-arquitectónicos, verifica-se uma espécie de canibalização simbólica. O corpo come o espaço, assim como o espaço come o corpo. Este circuito omnívoro será cada vez mais intenso, como nos apercebemos, por razões práticas e afectivas, na arquitectura que se poderá literalmente comer.

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“A arquitectura recombinante redesenha o ambiente construído como e com biomateriais derivados artificiais. Isto é apenas possível porque se entende em primeiro lugar a figura central da biomaterialidade, o organismo habitante como um evento arquitectural. Como sempre, os edifícios tornam-se corpos apenas como os corpos se tornam edifícios. Porque olhamos para a arquitectura como corpos genéticos, olhamos para os corpos genéticos como arquitectura.” 45

Sistemas espaciais genómicos: a aplicação de biomateriais na construção do ambiente (arquitectura como o resultado do design genómico). Com a aplicação na concepção de habitats físicos (e a re-conceptualização do corpo material, agora como uma entidade arquitectónica configurável) de material genético artificialmente produzido, a arquitectura recombinante faz literalmente desaparecer os hiatos entre corpo e arquitectura e assinala a emergência de habitats genómicos artificial/artifactual. Uma crescente biblioteca de biomateriais estruturais, tessituras genéticas e genomicamente concebidas, medidos em nanómetros e quilómetros, são utilizados na medicina, agricultura, para fins militares e até na arte conceptual. A arquitectura recombinante activa estes meios arquitecturais, com a finalidade de os tornar habitats humanos duráveis.

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A premissa da arquitectura recombinante não é apenas os biomateriais artificiais substituírem os materiais tradicionais na formação de programas, espaços e formas tradicionais (caixa, quarto, abrigo, casa). Não se satisfaz com cadeiras biomórficas, ou mesmo cadeiras fabricadas com materiais genomicamente concebidos. A premissa é antes fazer explodir a máquina-de-sentar em novos corpos de narrativa espacial, novos modos de circuitos-habitats, novas questões e não apenas novas perguntas. Esta redefinição de programa “de fora do ADN ” irá indubitavelmente resultar em várias formas reconhecíveis. Edifícios como corpos e o vocabulário da “pele” serão mais pronunciados. Os edifícios, como os corpos, têm orifícios e as materialidades da interiorização/exteriorização deverão igualmente tornar-se mais pronunciadas, mesmo como convenções de corpos-programáticos baseados neles (cozinha/sanitário, por exemplo) sofrem mutações para além do reconhecível. A lenta concepção material de tecidos artificiais é uma prática de longe mais avançada do que muitos leitores da comunidade de arquitectos podem pensar. O alcance e precisão com que estruturas biomateriais podem ser produzidas em laboratório, é espantoso. Em breve, os 46 porcos poderão voar. O Tissue Culture Project fez asas para porcos. Guy Ben-Ary, Ionat Zurr and Oron Catts são artistas genéticos na University of Western Australia em Perth. No ano 2000 retiraram células estaminais do cordão umbilical de um porco e cultivaram-nas dentro de uma rede de biopolímeros. Tal como uma hera que cresce numa gelosia, as células dos porcos cultivadas multiplicaram-se e cresceram ao longo desta estrutura de biopolímeros, a que foi dada a forma de uma pequena asa. As asas de porco serão animadas (ou sacudidas) por tecido muscular oriundo de ratos. A continuação do Tissue Culture Project será fazer crescer um bife num prato a partir de células retiradas de uma ovelha viva. Pretendem comer o bife na proximidade do animal dador. Bem-vindos à cruelty-free meat.

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Se a carne de mamíferos pode ser concebida, desenhada e construída com este nível de precisão, antevemos que aquilo que pode ser fabricado com a dimensão de 5cm por 5cm, pode ser conseguido amanhã com a dimensão de 50cm por 50 cm e depois com 1m por 1m, e até mesmo 100m por 100m. Testemunhamos o dramático início do percurso da carne como estrutura arquitectónica, na qual a matéria corporal interage com sistemas estruturais para criar intrincadas formas materiais. Mas o Tissue Culture Project ainda não usou todos os seus trunfos. Makoto Asashima, do Institute of Medical Technology da Universidade de Tóquio, lidera a equipa que cultiva olhos de rã. Estes são cultivados

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a partir de células estaminais e implantados em rãs bebés cegas, permitindo-lhes ver. As implantadas rãs bebés transformam-se em rãs adultas 48 que conseguem ver com os olhos artificialmente produzidos. Nexia Biotechnologies, no Quebeque, injectou gene de aranha numa cabra, de nome Willow. O leite da Willow será processado para a proteína poder ser utilizada no fabrico de seda. A seda denominada Biosteel é muito mais resistente que o aço, e suporta aproximadamente 21 Kg/cm2. É também 25% mais leve do que os polímeros sintéticos à base de petróleo. Outra vantagem da seda de aranha é ser compatível com o corpo humano. “A seda Biosteel pode ser usada para o fabrico de tendões artificiais, ligamentos e membros mais fortes e duros. O novo material pode também ser utilizado na reparação de tecidos, cicatrização de feridas e para suturas biodegradáveis super finas, utilizadas na cirurgia ocular e na neurocirurgia.” Nexia prevê a produção de grandes quantidades de Biosteel. O material pode ser usado para suturas microscópicas de grande resistência ou para revestimento de aviões, ou ainda no fabrico de vestuário à prova de bala. Biosteel pode igualmente ser utilizada como 49 um material arquitectónico. Projectos como este enriquecem a máquina arquitectónica através da fusão de material genético de diferentes espécies. Este sistema transgénico enquadra os vastos territórios de meios recombinantes na paisagem genética de múltiplas espécies. Até mesmo as incorporações orgânicas e inorgânicas são mutuamente constitutivas, por dentro e através dos estriamentos transversais evolutivos. Máquinas orgânicas e inorgânicas, phyla orgânica e mecânica, são já formas coordenadas em constituição mutuamente coordenada. Assim, a xenotransplantação deve ser entendida não apenas como trangénica mas também trans-phylic. Arquitectura reflexiva manifestase a partir da incorporação contínua de códigos genético-mecânicos 50

destes múltiplos animais-máquinas. Em Janeiro, cientistas da Kinki University cerca de Osaka, anunciaram ter inserido genes de espinafres num porco. Através da inserção do gene FAD2 num óvulo fertilizado de um porco, que posteriormente foi inserido no útero de um porco, os cientistas conseguiram converter cerca de 1/5 dos ácidos gordos em ácidos linoleicos mais saudáveis. A principal vantagem destes porcos, agora transformados em puros porcos-máquinas, é que são alimentos mais saudáveis. A fusão dos códigos animais e vegetais permite a produção de “materiais” combinatórios ra51 dicais, que possam ser comidos, habitados, ou ambos.

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Simulações genómicas e sustentabilidade instrumental: bioética da multiplicação e da singularização. As implicações sociais, culturais e éticas destas questões, levantadas pelo uso de materiais orgânicos vivos, humanos ou mamíferos, como um meio arquitectónico, são extraordinariamente complexas. Esta arquitectura literalmente orgânica pode ser benigna, como a casa vegetal de Paul Laffoley, ou tenebrosa como o abat-jour de pele humana de 52 Buchenwald. Mas o risco de perigo pode dissuadir-nos de activar as tecnologias genómicas e realizar intervenções arquitectónicas potencialmente cruciais. A visão de uma arquitectura verdadeiramente sustentável prolonga a responsabilidade do designer, ao nível da materialidade genética e molecular. Assim sendo, a arquitectura como a organização deliberada da matéria em formas duráveis, tem de considerar a sua perspectiva como responsável por qualquer opção possível pelas ecologias de produção-como-consumo ou consumo-como-produção. Guiados por este princípio, William McDonough e Michael Braungart, explicam como os produtos podem ser desenhados desde o início, para que passado o seu tempo de vida útil, possam ser alimento para qualquer outra coisa nova. Podem ser concebidos como “nutrientes biológicos” que facilmente reentram na água ou no solo sem depositar toxinas e materiais sintéticos, ou que possam ser nutrientes que circulam continuamente como materiais puros e valiosos, dentro do círculo fechado dos ciclos industriais, 53 em vez de serem reciclados em materiais de nível e uso inferior. Simultaneamente à lógica utópica desta visão, é igualmente perigosa a tecnologização da expressão biológica, uma redução no sentido Heidegueriano, do material não apenas em matrizes e ciclos de retenção genético-quimicos, mas em algo artificialmente disponível para o que podemos designar por “atitude pós-natural”, uma redução utilitária da 54

“generosidade do ser”, num instrumento de invenção recombinante. Um dos focos da centralização da arquitectura recombinante no corpo, coloca em primeiro plano o desejo tanto como um mecanismo, como um certificado de qualidade de bom design. Será a arquitectura resultante da erradicação sustentável das despesas do material/simbólico, mais viva, ou apenas mais racional? Depois de Heidegger, Paul Rabinow caracteriza este potencial tardio como algo que tornará todo o mundo como um recurso, uma fonte. Mas a irredutibilidade do afecto, produz finalmente uma redução instrumental, sem dúvida bem intencionada, como no caso de McDonough e Braungart, sempre incompleta, sempre a necessitar de 55 futuros alibis para contornar a excessividade da expressão funcional.

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Anthony Vidler caracteriza o espaço contemporâneo como um estranhamento pós-existencialista, uma inabilidade para estar em casa. O habitante, agora um cyborg sombrio circula de um deslocamento inquietante para outro. Na visão de Vidler, não um, mas vários desarranjos do corpo e do espaço, caracterizam a condição moderna e pós-moderna. É uma questão aberta, se as hiper-integrações recombinanates do corpo-como-estrutura em estrutura-como-corpo são o sinal de uma nova intradependência entre edifício e habitante, originando reintegrações tranformativas do ser e do espaço, terapêuticas ou amorais, ou de 56 algum modo, ambas. Podemos encontrar-nos em habitats recombinantes, simultaneamente mais semelhantes e correspondentes aos nossos corpos sensíveis, mais intimamente incorporados na nossa presença biológica, e também inteiramente irreconhecíveis para nós como arquitectura, abandonados como casas. Como os critérios programáticos são recalibrados de acordo com as suas profundas formas genético-corporais (cozinha como zona de interiorização, quarto de banho como zona de exteriorização, etc.) rompimentos estruturais são inevitáveis. Não mais casas, escritórios, cadeiras, quartos de banho. Em vez disso, impossíveis máquinas espaço/forma que distribuem estes “usos” através de múltiplas superfícies monstruosas, orifícios membranas, redes de circulação e desintoxicação; algumas dentro de nós, outras fora, algumas nascem connosco, outras integramos. Quando a arquitectura se torna genómica, o circuito ecológico entre sistema imunitário humano e o sistema imunitário de um edifício, é de primordial importância. A noção do síndroma do edifício doente origina inimagináveis ramificações éticas. Comer ou não comer a nossa arquitectura, é algo que será interiorizado ao nível micrológico, como o são as viroses, bactérias, doenças de organismos complexos, com os quais temos proximidade. Quando o edifício adoece, adocemos também? É esta a inquietação hipermoderna, segundo Vidler, ou por oposição, uma re-ligação radical com o espaço no seu nível mais fundamental? E se a nossa arquitectura é um outro corpo sensível, com o qual e no qual nós vivemos, passamos os nossos momentos mais íntimos, nos ligamos da forma mais íntima; que tipos de desejo erótico são inevitáveis para os nossos habitats? Iremos nós ter relações sexuais com a nossa arquitectura, e se não, para que é que ela serve?, Será a nossa arquitectura se57 xualmente reprodutível, connosco ou por si só? Quais as variáveis que poderão pressionar a nossa arquitectura para se mover em direcção es58 tratégias partenogénicas?

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As integrações de recombinantes, nano-tecnologias e tecnologias computacionais perversas em híbridos digitais, mecânicos e biotecnológicos, altera radicalmente a nossa percepção do corpo, família, colectivo, espaço, cidade, região e meio ambiente. Como um momento de desfragmentação, esta modernidade tecno-genomica é per se acerca de muito mais do que apenas arquitectura. Estas integrações e desinte59 grações reabrem o Ocode em formas de experimentação radicais ou monstruosas, que nos deixam sem os adequados sistemas de conhecimento para os julgar e sem capacidade de julgar previamente o nosso inevitável envolvimento. Há alguns meses atrás, quando um repórter do New York Times me questionou acerca da diferença ética entre design genómico e eugenia, respondi que “os projectos que singularizam os nossos modelos de beleza, são provavelmente maus e os projectos que multiplicam os nossos modelos de beleza são provavelmente bons.”•

“O bioartista Adam Zaretsky quer crianças de pele azul e, em última análise, não será isto pior do que querer crianças com olhos azuis?”


32. Este ensaio sumariza o programa de pesquisa de um seminário, de que sou professor a decorrer no Verão de 2002, no SCI Arc, The Southern California Institute of Architecture. 33. Infomática genómica como a nova fase do espelho: a teoria formulada por Lacan acerca da fase do espelho, narra a construção do Eu em relação de desenvolvimento com o seu reflexo, a sua inscrição especifica como auto-resposta óptica. 34. Enquanto o nosso momento contemporâneo, no qual a compreensão do corpo e da matéria está a ser redefinida diante de nós, o que é historicamente específico e radicalmente único, é importante entender que o imaginário recombinante é uma avaliação transversal de profundas e variadas histórias reais e imaginárias, cientificas e mitológicas do corpo biológico, como uma máquina híbrida e Quimérica. 35. Ver http://www.azw.at/aust/ soft_structures/allgemein.htm 36. Genótipo: composição genética de um indivíduo. Fenótipo: manifestação de um genótipo. 37. Karl Chu, The Unconscious Destiny of Capital (Architecture In Vitro/ Machinic In Vivo) in Neil Leach, ed. Designing For the Digital World. Wiley-Academy. West Sussex, 2002. pp. 127-133. 38. Ver Mark/Space http:// www.euro.net/mark-space/ GeneticEngineering.html 39. Ver http://www.artbyte.com/ mag/nov_dec_00/lynn_content. shtml e o próximo trabalho de Greg Lynn, Architecture for an Embryologic Housing, Birkhauser Architectural, 2002. 40. Citação de Dery: “At 4:15 A.M., it breathed in. It awoke to the faint burning of a flickering blue light in its gullet and a general feeling of indigestion. It

rested fitfully, as if it had eaten a bad meal the night before, with the persistent feeling that an agitated animal was living in its gut. The irritation of a muffled grinding sound from within itself continued, until it was inevitable that the day would begin in the dark. Its surface began glowing as electrical impulses crisscrossed its skin. Warm water began coursing through the capillary tubes beneath its surface and its body walls began to radiate heat.” 41. Prometeu: herói da mitologia Grega que roubou o fogo para o dar aos homens. Também deu forma aos primeiros humanos a partir do barro. Pausânias descreve as placas que “cheiram como pele humana.” 42. Ver http://www.pbs.org/ saf/1107/features/body.htm 43. Parcialmente mágico e também primordialmente sujo, no sentido dado pela antropologia estruturalista; Ver Mary Douglas, Purity and Danger: An Analysis of Concepts of Pollution and Danger, Routledge, New York and London. 1984. 44. A transexualidade baralha o raciocínio primário e categórico de tal forma, que o próprio poder generativo da “categoria”, como tecnologia de conhecimento, é simultaneamente posto em questão e usado em proveito próprio. 45. O eminente momento da lógica do design pósnatural, inspira contribuições extremamente optimistas e pessimistas. Esta clivagem manifesta-se correntemente na batalha dos best-seler da cultura científica popular, do livro de Gregory Stock, Redesigning Humans: Our Inevitable Genetic FutureHoughton-Mifflin, New York, 2002. 46.Ted Krueger argumenta de forma semelhante na comunicação Heterotic Architecture apresentada na Roy

Ascott’s Center for Advanced Inquiry into the Interactive Arts, Newport, Wales, UK. Em 1998 http://com.uark.edu/~tkrueger/ heterotic/heterotic.html 47. Ver http://www.tca.uwa. edu.au. 48.Artificial Frog Eyes. Ver http:// www.ims.u-tokyo.ac.jp/imswww/ index-e.html 49. Biosteel. Ver Nexia Biotechnoloiges em http://www. nexiabiotech.com/ 50. Ver Manuel De Landa, War in the Age of Intelligent Machines, Zone Press and MIT Press, New York and Cambridge, 1991. 51. Ver Kinki University Faculty of Agriculture at http://www.nara. kindai.ac.jp/ehp/ 52. Ver Paul Laffoley. http://www. disinfo.com/pages/dossier/id231/ pg1/ De Ted Kreuger. 53. Retirado da publicidade do seu próximo livro Cradle to Cradle: Remaking the Way We Make Things, North Point Press, 2002 54. Gail Weiss cartografa esta redução como uma das que apaga a temporalidade, desde o Obody ao organismo à assemblagem genómica. 55. Ver Brian Massumi, The Autonomy of Affect em Parables For the Virtual: Movement, Affect, Simulation, Duke University Press, Durham, NC. 2002. pp. 23-45. 56. Anthony Vidler, The Architectural Uncanny: Essays in the Modern Unhomely, MIT Press, Cambridge. 1992; e Vidler, Warped Space: Art, Architecture and Anxiety in Modern Culture, MIT Press, Cambridge, 2000. 57. Ver http://www.goodvibes. com. 58. Partenogénese: desenvolvimento de um ser vivo a partir de um óvulo não fecundado. 59. Ocode: “An assembly language for a stack-based virtual machine used as the intermediate language of the Cambridge BCPL compiler.”


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ANDREW HOWARD ARTE CAPITAL JOSÉ BÁRTOLO 2008

Andrew Howard é designer gráfico, curador e crítico de design. Vive e trabalha em Portugal desde 1989, onde tem desenvolvido uma colaboração intensa com diversas instituições culturais, entre as quais a Fundação Calouste Gulbenkian, a Fundação de Serralves e o Centro Português de Fotografia, e mantido uma colaboração permanente com a ESAD. O pretexto para esta entrevista é a aproximação do fim da última temporada dos Personal Views um ciclo de conferências sobre design gráfico iniciado em 2003 e que trouxe a Portugal alguns dos mais importantes designers da actualidade. Ao longo da entrevista, Andrew Howard expõe os seus pontos de vista sobre a teoria, a prática e o ensino do design.

É designer gráfico, crítico, curador e professor. A ordem é esta? AH – Eu preferiria evitar identificá-las como se escrevesse uma lista que automaticamente envolve colocá-las por uma determinada ordem. Gosto de considerar todas essas facetas, movendo-me constantemente entre elas. Também não usaria o termo “crítico”, prefiro usar a palavra “escritor” mesmo que não escreva tanto quanto gostaria.

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O que caracteriza a sua “visão pessoal” enquanto designer? Começaria por expressar a minha convicção de que o design gráfico é um processo que se inicia essencialmente a partir da organização das ideias e que culmina no modo como a narrativa visual, que parte dessa organização, é absorvida na nossa cultura visual. O Design não começa quando se recebe o brief porque, enquanto designer, não se inventam os valores, significados, códigos, referências e formas que são as nossas ferramentas de trabalho. Tudo isso chega até nós já construído e a nós cabe-nos reconstruir e transmiti-lo de novo, por vezes com uma nova dimensão e inovação, outras vezes nem tanto. E também este processo não termina quando o trabalho é entregue ao cliente na medida em que esse trabalho cria uma ressonância que radia para além deste contexto estrito, seja reforçando expectativas, normas e formas de diálogo seja iniciando novas formas. Isto é uma descrição do design enquanto projecto colectivo social, no entanto esta dimensão pode ser ou não reconhecida pelos seus intervenientes. É uma descrição que pretende combater noções de génio individual ao mesmo tempo que reforça a ideia do design como uma prática social. Mas o design é fundamentalmente um processo de dar forma e, como Marshall McLuhan escreveu, as sociedades sempre foram moldadas mais pela natureza dos media através dos quais o homem comunica do que pelo conteúdo da comunicação. As relações sociais envolvidas na prática do design gráfico são geralmente expressas em termos de troca comercial entre um prestador de serviços e um cliente. É uma relação social de encomenda e serviço, de incumbência e execução. O Jan van Toorn sugere que a profissão construiu uma acomodação ideológica que a impede de desenvolver uma perspectiva social e política mais intensa. Não questionar as responsabilidades sociais, sublinha Jan van Toorn, implica uma rendição perante esse sector da sociedade na medida em que ele se apossa de todos os meios de sobrevivência, manobrando o design na direcção de uma estética empresarial. Olhando o design gráfico como um processo – uma forma de organização intelectual expressa através de formas visuais e não uma forma particular de comércio – conseguimos envolver inúmeras formas de comunicação gráfica orientadas para as relações e aspirações sociais que são a sua razão de ser.

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Como é que alguém com o perfil e visão do design que acaba de descrever decide vir viver e trabalhar no Porto? Eu visitei Portugal pela primeira vez em 1987. Fui convidado pela Fundação Gulbenkian para dirigir um curso de duas semanas para professores sobre trabalho criativo com crianças e comunidades locais. Isto aconteceu numa altura em que eu ainda era membro de um colectivo multimédia em Londres e o convite surgiu na sequência do trabalho que este colectivo desenvolvia há anos numa área que designamos de “community arts.” Não é fácil explicar a natureza deste colectivo a um público português sem explicar a história das tendências políticas e culturais alternativas no Reino Unido nas décadas de 1970 e 80. Essencialmente, o grupo era parte de uma rede nacional de estruturas independentes empenhadas em desenvolver práticas culturais alternativas e estratégias políticas capazes de as sustentar. Voltei a ser convidado pela Gulbenkian em 1989 e foi nessa ocasião que eu conheci a minha futura mulher. Isto, claro, explica porque escolhi Portugal mas não explica porque deixei a Inglaterra. Viver em Londres é estimulante em muitos aspectos mas nunca senti que fosse o sítio ideal para construir uma família, a não ser que se seja muito rico. Portugal pareceu-me uma escolha interessante mas eu sempre vi esta opção mais como uma mudança de base do que como uma mudança de ambições e objectivos. Que realidade encontrou quando chegou a Portugal? Ao chegar cá, descobri uma prática profissional do design ainda a dar os primeiros passos – no sentido da criação dos chamados cursos universitários. Eu já havia visitado a recém-criada ESAD de Matosinhos, numa altura em que vivia com a minha mulher em Londres e, após algumas visitas e um par de projectos com os alunos, os directores da Escola convidaram-me para leccionar num regime permanente. O estudo da tipografia era virtualmente inexistente e, assim, este tornou-se, obviamente, numa prioridade. Igualmente frágil era o estudo específico da história do design gráfico, sendo vulgar os alunos formaremse sem saberem quem foi o Paul Rand ou mesmo o Sebastião Rodrigues. Em compensação senti, da parte de todos, um entusiasmo genuíno e uma grande vontade de aprender.

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Os Personal Views são hoje uma referência no panorama nacional e internacional, como se conseguiu criar em Portugal, para mais fora de Lisboa e sem apoios sonantes, um ciclo de conferências com esta extensão e importância? Suponho que é o resultado da combinação de três factores: iniciativa, contactos e financiamento. É comum no Reino Unido ter professores visitantes e oradores convidados nas escolas de arte e design. Isso não parecia acontecer aqui o que para mim era estranho. Qualquer escola necessita de confrontar os seus alunos com o maior número de influências possível – como uma panela de cozinha, constantemente a ferver e à qual adicionamos permanentemente novos ingredientes. Não há nenhuma escola no mundo que seja capaz de preparar os seus alunos para enfrentarem todos os possíveis obstáculos com que se irão deparar enquanto profissionais ou que os dote com todo o conhecimento de que necessitam, mas testemunharem pessoalmente o trabalho, experiência e ideias de designers profissionais permite-lhes, pelo menos, atenuar o fosso existente entre o ensino académico e o mundo real, ao mesmo tempo que providencia inspiração útil a ambos os casos. Os Personal Views foram o culminar de uma análise racional que eu comecei a fazer pouco depois de ter chegado à ESAD. Em parte, era uma tentativa de combater um estilo de ensino de design que me parecia excessivamente individual. Comecei por desenvolver projectos colaborativos nos quais convidava pessoas de fora da Escola para participarem na avaliação dos projectos. Isto resulta sempre num estímulo para os estudantes e ajuda-os a construírem o tipo de espírito de grupo que é essencial para o dinamismo de uma escola. A aprendizagem necessita de acontecer num ambiente intenso, muitas vezes imprevisível e capaz de criar uma energia inspiradora. Cabe aos professores contribuírem para isto e não vale de nada queixarem-se do suposto desinteresse dos alunos. Ensinar não tem a ver com regurgitar factos e informação, tem a ver com criar condições para que o processo de aprendizagem e exploração tenha lugar. Simultaneamente, continuei a organizar eventos, sobretudo em torno da tipografia que, como lhe disse, era um território virgem quando cá cheguei. Houve uma semana dedicada à tipografia e uma exposição que contou com as presenças de Jon Wozencroft do Royal College of Arts e Ed Macdonald de St. Martin’ s, de seguida convidei Dave Dabner do LPC (agora LCC), Paul Stiff de Reading, seguiram-se os convites a John McMillan e Mike Hope, cujos contactos obtivera através da minha integração como membro da International Society of Typographic Designers, e

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ainda Chaterine Dixon de St. Martin’ s. Tentei igualmente implementar a prática (e a tradição) de apresentações finais de curso e respectivas publicações mas infelizmente isto parece ter terminado desde que deixei o ensino. Tudo isto eram tentativas de animar o processo de ensino e de criar um ambiente capaz de estimular quer os alunos quer os professores. Mas os ambientes não são meramente intelectuais. Eu sempre acreditei que o ambiente físico reflecte e estimula o ambiente intelectual, daí os esforços de envolver os alunos com o espaço da escola, de os motivar a apresentarem as suas próprias exposições, colocar o trabalho nas paredes era uma importante objectivo, paralelo ao que descrevi antes. Conto-lhe tudo isto por me parecer importante para que se compreenda que os Personal Views não são, longe disso, o resultado de uma espécie de “click”, ideia brilhante, um mega evento criado para ganhar prestígio ou para colocar coisas e pessoas no mapa. De resto, quando os Personal Views se iniciaram, estavam pensados como uma iniciativa pontual especificamente dirigida a alunos finalistas. Em pouco tempo tornouse num evento aberto a um público mais generalizado. É claro que os contactos pessoais que eu tinha, com pessoas do Reino Unido e não só, permitiram-me estabelecer contactos únicos. Eu usei a minha rede de contactos para trazer cá as pessoas. Indiscutivelmente o evento também beneficiou no efeito de “bola de neve”. Todos os oradores expressaram a sua satisfação por terem vindo e participado no evento, em contrapartida eles falaram com outros designers e facultaram-me novos contactos. À medida que a lista de participantes aumentava também aumentava a credibilidade do evento. No terceiro ano a lista dos oradores que já haviam participado era suficiente para persuadir as novas pessoas que eu contactava de que qualquer coisa de interessante estava a acontecer aqui. O evento cresceu de uma forma que eu não podia antecipar. O Ken Garland referiu-se um dia aos Personal Views considerando-os uma enorme conferência internacional de design, que somente acontece em prestações. A determinação da escola em financiar o evento e em dar-me “carte blanche” para o organizar tem sido fundamental. Eles estavam inseguros no início mas perto do fim do segundo ano já me encorajavam empenhadamente para que eu continuasse. E não tem sido barato. Da conta final constarão 45 oradores, por vezes viajando com os seus companheiros. São muitos voos, noites de hotel e refeições. Mais o pagamento que recebem pelo ensaio para a publicação. Eu tenho sérias dúvidas de que uma escola pública tivesse a liberdade financeira ou académica para fazer isto.

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Ao fim de cinco anos e quarenta e uma conferências, que balanço faz destes Personal Views? Tem sido fantástico. E abre uma série de boas possibilidades para o futuro. Mesmo que nem sempre as coisas tenham acontecido conforme planeado. Eu comecei por explorar o que significa ser-se um designer gráfico nos dias de hoje e questionar que tipo de capacidades e conhecimentos requer actualmente a actividade. Ao longo dos anos fui ouvindo os alunos expressarem alguma confusão. Por um lado, o que parece ganhar terreno é uma fusão conceptual, “fashionable”, entre arte e design que, na minha opinião, não é sustentada por nenhuma estratégia cultural ou ambição social, trata-se mais de uma reacção às mudanças. Isto faz com que eu ouça os alunos dizerem como o design seria interessante se não tivessem de trabalhar com os clientes e, ao mesmo tempo, expressarem a necessidade de orientação, de objectivos claros que os guiem e, acima de tudo, o desejo de aprenderem a dominar ferramentas práticas – em oposição à perspectiva de serem continuamente intoxicados por ideias. Estas ideias estavam na base na criação dos Personal Views e eu convidei os oradores a considerarem estas questões numa tentativa de mapear o território do design gráfico contemporâneo. As palestras nunca pretenderam ser palestras “showcase” nas quais as pessoas simplesmente aparecem e mostram o seu trabalho. A verdade é que muitos dos designers que eu convidei têm um estatuto que os coloca num “circuito de top” internacional. São designers que recebem inúmeros convites e por razões práticas compreensíveis, têm apresentações já preparadas que utilizam recorrentemente. Criar uma apresentação específica é um trabalho moroso, isto, de resto, reforça a minha convicção de que o livro, contendo ensaios dos oradores que participaram nos Personal Views, é fundamental para este projecto e irá proporcionar a oportunidade de diversas questões serem abordadas de uma forma mais directa. Os Personal Views confrontaram os alunos a uma grande diversidade de abordagens e possibilidades. Isto contribuiu para o tipo de ambiente criativo e intelectual que eu sempre acreditei ser fundamental e mesmo que esse não fosse um objectivo o evento colocou o Porto no mapa internacional do design. Mas estamos apenas no início. Mais coisas se seguirão e a sua realização será mais fácil graças aos Personal Views.

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No texto que acompanhava as primeiros palestras do ciclo Personal Views, era dito que “De tempos em tempos, as actividades profissionais passam por períodos de auto-avaliação durante os quais aquilo que outrora era concebido como verdadeiro e fundamental se torna objecto de questionação e desafio, um período em que conjuntos de valores divergentes e cânones teóricos respeitantes à actividade entram em competição para serem aceites.” Que referências e valores são estes que se tornaram objecto de questionação no design contemporâneo e que contornos assume hoje essa questionação? O modo como fazemos coisas, as ferramentas que temos ao nosso dispor para criarmos e montarmos comunicações visuais, têm um profundo impacto quanto à natureza das mensagens que podemos construir. No interior do design gráfico, o computador Macintosh e a edição desktop revolucionaram essas ferramentas e, por isso, o modo como os designers trabalham. E como as mudanças no modo como uma linguagem é construída origina mudanças no que pode ser dito – e consequentemente no que é pensado – as pessoas compreendem rapidamente que podem comunicar de formas que não haviam imaginado previamente. Quando isto acontece também começam a questionar o que era suposto dizerem. Isto origina todos os ingredientes necessários a uma crise de identidade. Uma evidente área de interrogações ocorreu no campo da tipografia, uma componente fundamental do design gráfico. Antes do Macintosh, existiam compositores tipográficos sobre cujas competências oficinais os designers eram dependentes. Os designers especificavam como desejavam que a tipografia fosse composta, através de instruções cuidadosas e por vezes elaboradas, esperavam pacientemente a chegada dos bromides antes de colarem as tiras de papel sobre folhas de papel com grelha. A chegada do Macintosh virtualmente acabou com o papel do compositor tipográfico e permitiu que os designers compusessem, arranjassem e projectassem a sua tipografia. Agora a tipografia podia ser esticada, puxada e sobreposta com facilidade e rapidez. O que anteriormente exigia grande perícia e paciência, pode agora ser feito; e, mais significativamente, agora há coisas que podem ser realizadas e que antes dificilmente seriam imaginadas. Como consequência todas as regras e conhecimento convencional sobre o uso da tipografia tornavam-se abertas à reflexão, não apenas a nível técnico mas igualmente quanto a noções de legibilidade e leitura. A estrutura da tipografia enquanto forma visual, enquanto um sistema fixo de signos, enquanto linguagem tornada visível através de estabilizadas hierarquias de organização foi desafiada através de novos modos e métodos tornando possível novas maneiras de fazer.

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Para os designers a tipografia sempre correspondeu a uma área de possibilidades criativas mas, como em todas as coisas, tanto as características técnicas como as físicas condicionam a natureza da nossa interacção. As rígidas propriedades físicas do uso da tipografia necessariamente influenciaram respostas criativas. A tipografia digital não tem propriedades físicas, existe num mundo onde é um traço pixel e o fluxo e fluidez da sua forma é reflectida na nossa imaginação; o modo como concebemos as possibilidades do seu uso e aplicação. Como consequência o ensino da tipografia teve que reavaliar as suas premissas e certezas tanto formal como perceptivamente. Se as mudanças tecnológicas provocaram reflexão sobre o modo de construir formas, também tiveram um impacto no modo como os construtores de formas compreendem e posicionam a sua actividade. Frequentemente utilizo o modo como a linguagem opera, como comparação com as funções do design gráfico. A linguagem permite-nos pensar e partilhar pensamentos com os outros, permite-nos descrever o mundo à nossa volta, permite-nos desenvolver pensamento em acção. E embora possa ser difícil provar que o pensamento é completamente dependente da linguagem, podemos afirmar que o pensamento toma posição através do uso da linguagem e que a nossa compreensão do mundo é condicionada pela linguagem que temos ao nosso dispor. Quer seja falada ou escrita, a linguagem é a ferramenta, o medium, o mecanismo que não só dirige o modo como podemos pensar, mas igualmente as coisas sobre as quais podemos pensar. O processo de construção afecta o construtor do processo. Quando se está envolvido num processo de produção que depende da participação activa de outras pessoas com diversas competências que se integram no processo em momentos distintos, como sucedia no design antes dos computadores, tem-se a sensação de se estar envolvido num processo de colaboração. Como consequência disto também passamos a pensar como alguém envolvido num processo de colaboração, atento à interdependência e responsabilidades partilhadas. Contudo quando se está envolvido num processo de produção no qual, desde a mais simples à mais complexa ferramenta, tem-se o controlo de todas as diferentes e especializadas tarefas, essa possibilidade leva a que se pense de uma forma diferente. Torna-se possível compreender a nossa actividade como um acto isolado de autor. Passamos a ter a noção de um processo mais centralizado, mais independente. E com a mudança de possibilidades surge a mudança de expectativas. Isso originou que os designers questionassem a sua posição dentro da hierarquia de

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produção e criação. Ao resistirem às descrições convencionais dos designers enquanto “auxiliadores” ou “aqueles que resolvem problemas”, substituindo-as pela atitude de simplesmente cumprirem o brief de um cliente, alguns começaram a se descrever como autores de direito próprio, responsabilizando-se tanto da forma como do conteúdo e nesse processo atenuam a distinção entre processo artístico e design. Por isso, a prévia e ortodoxa compreensão do designer enquanto componente neutral que não deixa traços da sua presença também se tornou um valor questionável. Sem dúvida que a formação é o ponto de contacto – e frequentemente o campo de confronto – entre o conhecimento estabelecido, métodos e realidades em mudança. E é no ensino do design que diferentes conjuntos, valores e modelos teóricos competem pela nossa aceitação. A percepção da tipografia e da imagem enquanto componentes que informam e conduzem as mensagens que criamos e as ideias que expressamos, juntamente com a natureza do papel do designer neste processo tem vindo a ser desafiado por desenvolvimentos tecnológicos que tornaram o design um tema com renovado interesse, experimentação e debate. Mas os momentos de transição são sempre acompanhados por dilemas e incertezas. Foi dentro deste pressuposto que os Personal Views e o levantamento de território foram realizados. Os Personal Views iniciam-se a 28 de Fevereiro de 2003 com a presença do designer britânico Ken Garland, o autor da versão de 1964 do Manifesto First Things First que no ano 2000 foi alvo de uma nova versão da qual o Andrew Howard foi um dos subscritores. Com esta escolha o Andrew pretendia definir um objecto de reflexão onde a dimensão social e política do design gráfico era assumidamente central? Em certa medida. Eu pretendi organizar o ciclo de conferências de uma forma em que esta dimensão estivesse implicitamente assumida. Parti do princípio de que todo o design de comunicação envolve a procura de modelos visuais que expressem mensagens, ideias e informação; a escolha de cada imagem, de cada combinação gráfica, de cada solução visual, torna-se um meio de expressar algo, torna-se numa linguagem visual que é parte integrante do nosso diálogo cultural. Esta linguagem que nos rodeia permanentemente é importante quer como ferramenta quer como medium. É um meio de expressar ideias, simultaneamente trivial e profundo, um meio de descrever o nosso conhecimento das coisas que nos rodeiam e é, ainda, um reflexo das alterações das nossas realidades e prioridades.

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Desta forma, a natureza do que é expresso numa comunicação pública, e os interesses que as mensagens servem, é algo que diz respeito a todos nós. Isto sempre me pareceu evidente, daí me parecer estranho quando a dimensão social do design é destacada como se fosse um tema específico de análise, como se se tratasse de um “specialism akin” para a informação gráfica ou o design editorial. Houve, da minha parte, uma intenção deliberada em incluir oradores para os quais isto é um facto adquirido. Não obstante, procurei escolher oradores com um trabalho muito consistente e experiência suficiente que lhes permitisse apresentarem ideias e práticas bem definidas de design. Qual o porquê de apenas terem sido convidados três (ou quatro se incluirmos Robin Fior) designers portugueses (Ricardo Mealha, Henrique Cayatte e Heitor Alvelos)? Houve outros na minha lista. Um declinou, e o outro não respondeu. Mas acima de tudo, eu pretendia encontrar oradores com um corpo sólido de trabalho e experiência e quando os Personal Views se iniciaram não havia muitas pessoas com este perfil para escolher. Desde então, outros designers portugueses se estabeleceram. Em todo o caso, eu nunca estive preocupado em que as conferências fossem geograficamente representativas. Se eu achasse que há uma abordagem ou visão do design especificamente portuguesa talvez tivesse pensado de forma diferente, mas não creio que haja. A imagem gráfica dos Personal Views foi evoluindo com o tempo, o que justificou essa evolução que, ao longo dos cinco anos, parece acompanhar as tendências dentro do design gráfico? Para ser sincero, o design dos materiais gráficos foi ligeiramente acidentado. Eu não previ que as séries durassem tanto quando duraram e o design teve de sofrer adaptações de série para série. Houve um corte definitivo no design dos materiais no terceiro ano quando dois oradores discordaram em ter os seus retratos nos materiais, pelo que tivemos de encontrar uma alternativa. No final da última série dos Personal Views, este ano, a minha intenção é a de produzir 5 cartazes desenhados por cinco designers diferentes, cada um documentado e celebrando um ano de Personal Views. Estes cartazes irão aparecer num “pack” contento um texto geral de apresentação do evento.

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O Andrew dizia que a intenção do First Things First 2000 era a de politizar o discurso e a prática do design. A programação dos Personal Views bem como o seu trabalho de curadoria, nomeadamente a série Idiomas, pretendem apresentar uma “agenda” social e política do design? A “politização do discurso projectual” foi qualquer coisa que eu referi num artigo que escrevi para o número “Design Anarchy” da revista Adbusters. Fi-lo em resposta à insinuação do Rick Poynor de que eu me posicionava num extremo do espectro político e o que expressava a minha visão pessoal e não a visão no manifesto ou dos outros signatários. Eu não estava tanto a defender que os designers devem adoptar uma atitude política mas, antes, que devem reconhecer que a prática do design não é um discurso socialmente neutro. Recordo-me de uma coisa que defendemos no Manifesto Cultura e Democracia1 de 1986, onde afirmávamos que a política e a cultura são formas de descrever a actividade social. Não são actividades separáveis e estanques com as quais nos envolvemos voluntária ou opcionalmente e em relação às quais as pessoas possam ser excluídas ou se possam auto-excluir. Não são algo que possa ser adicionado ou subtraído das relações sociais. Pelo contrário, a política e a cultura são as características definidoras dessas relações. Nesta medida, podemos escolher distanciar o nosso trabalho de design da política mas não podemos remover a política do design. Contudo, existem diversas práticas e abordagens do design e que não seguem a minha orientação pessoal e seria negligente não reflectir essa variedade na escolha dos oradores. Isto não é uma opção diplomática. A verdade é que eu não sou um purista, pelo contrário, não tenho qualquer dificuldade em encontrar mérito nas mais variadas abordagens. Alguns designers são particularmente interessantes pela forma como direccionam as suas capacidades e energias e pela forma como contextualizam a sua própria prática. Outros são fascinantes pela forma como encontram soluções criativas e pelo pensamento crítico que isso envolve. Claro que isto não significa que eles tenham de ser ou uma coisa ou outra.

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O “fenómeno” Personal Views, com o auditório da ESAD invariavelmente lotado e a vinda de público de todos os cantos do país dá-se com a conferência do Neville Brody. Sente que os Personal Views serviram para captar novos públicos de design em Portugal? Honestamente, isso parece-me difícil de afirmar. Junto da comunidade de estudantes de design e junto dos profissionais não há dúvidas de que houve impacto, mas fora deste campo o design, aqui como em muitos outros países, continua a ser um tema com um perfil de público muito circunscrito. Apesar da omnipresença do design na nossa cultura, tornase difícil criar ou manter muito público envolvido. Quando isso acontece é habitualmente por causa de um logo particularmente controverso, como acontece com o logótipo dos Jogos Olímpicos de Londres. O Rick Poynor sugere que isso sucede porque o papel do design gráfico é, na maioria dos casos, o de comunicar rapidamente sem grande ambiguidade; uma interpretação crítica detalhada não é, pura e simplesmente, requerida pelo espectador, particularmente na medida em que a maioria da comunicação visual aponta para uma mais abrangente e mais intensa experiência onde quer que nos encontremos, ou seja, o acontecimento, produto ou produto é usado para comunicar. Rick Poynor chega ao ponto de afirmar que o único espaço do design gráfico em que os espectadores são encarados com um fim em si mesmos é a esfera do design gráfico de autor. O aspecto frustrante disto é que muito do autêntico poder e do significado cultural do design gráfico reside na presença colectiva, um ambiente visual que tem um profundo impacto nas nossas percepções e expectativas. O conteúdo deste ambiente visual –as mensagens que integra e reforça – não é obviamente uma criação do design gráfico mas o design gráfico dá-lhe uma voz, uma expressão que também se torna parte integrante da mensagem. Esta série anuncia-se como a última e, entretanto, anuncia-se também a publicação, em livro, das conferências. Quando é que prevê que o livro seja publicado e o que podemos esperar dessa publicação? A publicação do livro tem sofrido atrasos por diversas razões. Inicialmente, pretendia publicar um livro por ano mas a demora em receber os textos obrigou-me a repensar a ideia. Eu espero receber todos os textos até Setembro e ser capaz de publicar o livro antes do Natal. Os materiais que eu pedi aos oradores para escreverem não são transcrições das suas conversas mas essencialmente ensaios escritos. Desta forma, eu espero que possam cobrir aspectos que, em muitos casos, os oradores não chegaram a abordar nas suas apresentações.

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Recordo-me que, salvo erro na conferência do Rick Poynor, quando questionada a plateia, apenas uns poucos, na altura, conheciam referências como os livros Looking Closer, a revista Eye ou o blogue Design Observer. Na recente conferência do William Drentel e da Jessica Helfand, creio que essas referências eram dominadas pela maioria. O que mudou em termos da Cultura do Design em Portugal entre 2003 e 2008? A internet é aqui, provavelmente, a maior influência. Os alunos passam muito tempo visitando sites de design e blogues. Eles parecem achar que esta é uma forma mais fácil de chegar à informação do que consultar livros – o que é um facto. O Design Observer, por exemplo, cresceu grandemente em influência e tornou-se numa referência central. Em Portugal, blogues de design como o Reactor-Reactor e o do Mário Moura contribuíram igualmente para um maior interesse sobre o design, não apenas como uma opção profissional mas realçado como uma prática criativa que possuí uma história e temas teóricos que se prestam a ser debatidos.•

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O TREINO PEDROTUDELA.ORG FERNANDO JOSÉ PEREIRA 1999

É dado seguro que de um ponto de vista cognitivo, toda a actividade de experimentação encetada pelo ser humano, necessita de treino. Sem a concepção de um programa de treino bem delineado – espécie de projecto – todo o carácter experimental se perde. Poderá parecer paradoxal que uma experiência com limites seja potenciada pelo treino, contudo, existem uma série de relacionamentos exteriores que contribuem de forma decisiva para o resultado final. E estes só se produzem na totalidade se estiverem treinados. O teorema de Godel, (teorema da imperfeição) explica que nenhuma lógica, nenhum conhecimento é integro, mas incompleto, pois baseia-se em elementos que não podem explicar-se senão com o recurso a outros elementos que são alheios ao sistema. A utilização um pouco heterodoxa que aqui se faz desta premissa teórica vem somente corrobar uma constatação prática. Tem sido largamente discutida ao longo do nosso século a questão dos meios e da consequente experimentação, como motor de desenvolvimento de todas as rupturas entretanto registadas. O que queremos

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afirmar é que sempre que se coloca a experimentação como valor essencial do trabalho, ela é assumida de forma biunívoca, isto é, ou uma experimentação baseada na inocência que se afirma como observadora de desenvolvimentos não previamente estabelecidos, ou então baseada na experiência e aqui introduzem-se subrepticiamente as questões anteriormente abordadas. Perante uma intenção experimental baseada em saberes anteriores, coloca-se imediatamente a questão de como fazer e com ela a introdução de funções operativas que passam pela manualidade e pelos conceitos. Estas, basicamente, delimitam o campo de intervenção que será tanto mais alargado quanto maior for o domínio – treino – demonstrado no seu manuseamento. Uma das consequências perversas desta necessidade quase compulsiva de experimentação no campo da arte, prende-se com o reconhecimento de uma sobrevalorização dos meios, a definição intrinsecamente moderna de uma “finalidade sem fins”, uma arte exclusivamente concentrada nos meios. A analogia que se produz entre este preceito e uma tendência clara em direcção a uma postura formalista, aparece como consequência directa de uma relação que se pretendia dialéctica – a experimentação é sempre dialéctica – mas que se afirma como de causa e efeito e por isso reveladora de uma “eficácia” comprometedora: um ensimesmamento baseado na qualidade acima de qualquer suspeita, de quem sabe utilizar os meios sabiamente. É por isso revelador do nosso tempo a existência de uma certa disforia relativamente à experimentação, que coloca a ênfase em outras esferas do processo de produção artística. Introduzimos uma nova noção para a autoria contemporânea: a burocrática. Exactamente aquela que nasce por reacção ao experimentar desenfreado de toda a modernidade. Onde a essência do fazer está claramente colocada em posição de subalternidade e substituída por posicionamentos organizacionais que colocam o artista como uma espécie de gestor self made, arredado da prática experimental – consequentemente destreinado – e imerso numa teia de colaboradores que vão sendo geridos e utilizados consoante as necessidades. Este afastamento colabora directamente para uma cada vez maior homogeneização da produção artística, desta feita, mais interessada nos fins que no carácter experimental dos meios, instituindo-se, como que por inércia, uma falta de curiosidade que se afirma perigosamente consensual. O som seco e temporalmente ritmado de balas a perfurar alvos, expostos como provas visíveis de um qualquer programa de treino (Pedro Tudela, C.A.P.C., 1999) reportam-se directamente a um alertar inconfor-

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mista perante a consensualidade operante. Remetem a discussão, de novo, para a exigência vanguardista da curiosidade e da experimentação como valores fundamentais da prática artística. Colocam, contudo, através da sua tangibilidade tecnológica, novas questões que muito para além de substituir diferendos antigos relativamente ao carácter auto-expressivo e maníaco de muita da arte de passado recente, não só os actualiza cromatizados de novos odores como também os amplifica, através do novo relacionamento “competitivo” que tem de estabelecer com uma realidade imersa na inconsciência deslumbrada perante as chamadas “novas tecnologias”. O crescente envolvimento tecnológico da arte (media art) e dos artistas (new media artist) poderá ser então entendido como um sinal acrescido da inequívoca e continuada teia de cumplicidades (inconscientemente, ou talvez não e tantas vezes negada até aos nossos dias) estabelecida com a chamada indústria da cultura, hoje transfigurada em entertainment digital? Atente-se na profusão desmesurada das chamadas tecnologias multimedia, presentes em qualquer iniciativa que reivindique para si o cunho de modernidade tão apreciado pela legitimidade consumista com que hoje vivemos. Constatamos de imediato que se assiste é a uma vulgarização e massificação de universos preponderantemente desmaterializados, assim transformados em potenciais de lucro de um grande negócio (negação do ócio) que paradoxalmente é a administração de uma dos pilares económicos do sector terciário: o ócio. A segunda constatação parte da revelação de um elevado grau de aderência por parte do público que é levado a participações activas, introduzindo-se desta feita o factor determinante da interactividade e permitindo a transfiguração do anteriormente espectador passivo no agora operador activo. Será, de modo perverso, o realizar profético de que falava Walter Benjamin quando se referia à técnica; a radical passagem de todos à condição de produtores. Alargamento democrático de procedimentos outrora reservados apenas a alguns e agora tornados reflexos tangíveis de uma sociedade que – como afirma Rubert de Ventos na sua obra “Utopias de la sensualidad y metodos del sentido” a propósito da interactividade – coloca a ideia de “obra aberta” no plano da analogia com as técnicas publicitárias e comerciais do “faça você mesmo”. Deparamo-nos, então, com uma paisagem de características iminentemente sensíveis (no sentido da socialização do sensível que Mario Perniola refere) e com códigos simbólicos que concorrem directamente com a produção artística contemporânea.

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Perante este panorama complexo, o som dos tiros que se escutam na galeria (C.A.P.C., Pedro Tudela, 1999) pode potenciar-se como metáfora de negatividade. E, então, partir para o exercício de catarse que é sempre possibilitado pelo recurso à utilização de armas de fogo: o fascínio do poder de destruição. A destruição tantas vezes anunciada pelas vanguardas e sempre falhada aparece aqui, mascarada, como metáfora – como lugar de treino – como work in progress passível de aperfeiçoamento. Nesta nova postura conceptual reside a sua distinção perante a inoperância do passado. Nada nos é proposto como solução, apenas nos é fornecido um caminho possível. Nem mesmo o objectivo é especificado, apenas nos são propostos alguns indícios possíveis e então a metáfora alarga os horizontes de negatividade para um muito mais amplo campo de intervenção. Como afirma o filósofo catalão Santiago Lopez Petit: “El exceso de orden jamás produce miedo, en cambio, el esceso de desorden sí produce miedo.”, esta é por certo uma das certezas da negatividade, a fuga deliberada a um estado de letargia tolerante – indiferença medíocre frente à realidade circundante – que afirma a sua ausência de alternativas (por coincidência com a crise do pensamento crítico) e como tal evita a possibilidade de uma formulação positiva, pois ao apresentar-se assim implicaria a sua imediata desvirtuação. Apêndice sobre a importância do som nas arte visuais contemporâneas Como vimos anteriormente existe uma clara tendência para a introdução do som como elemento preponderante em alguma arte dos nossos dias. Também este assunto merece uma escalpelização, para melhor podermos entender as causas que levam artistas a incorporar e deste modo a hibridizar disciplinarmente os trabalhos que produzem. Em consonância com o exposto atrás ressalva-se a opção fragmentária assumida pelos músicos que introduzem a samplagem como método de trabalho em claro acerto conceptual com o tempo que vivemos. A introdução de metodologias que colocam em risco a autoria e que sobretudo retiram dividendos das possibilidades oferecidas tecnologicamente, interessam de sobremaneira à contemporaneidade nas artes visuais daí que todas estas experiências estejam hoje a ser seguidas de perto e com a máxima atenção pelos artistas. A tecnologia digital vem colocar definitivamente em aberto uma das questões centrais da produção artística desde sempre: o mito da originalidade. Ora através da samplagem conseguem os músicos produzir trabalho esteticamente reconhecido, não estando contudo ligados a uma qualquer espécie de mediação teológica tantas vezes referida como componente fundamental da produção artística.

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“Primeiro arranjo uma série de loops de bateria, corto-lhes pedaços. Arranjo uma tarola, estico-a e tiro apenas o pedaço do meio. Por cima disso ponho-lhe bocados da caixa de ritmos 808, percussão da 727, outros pedaços da 909. Depois faço um riff na fita e construo qualquer coisa para o acompanhar. Enquanto isso está a resultar, tiro de lá o riff original e trabalho no que acabei de fazer e depois tiro esse até ficar de novo com o primeiro e último dos riffs. Trata-se de ver o que encaixa e o que não encaixa.”

A compreensão de uma estética de fragmentação como o “drum n’bass”, nos seus expoentes experimentais mais interessantes, reveste-se de enorme importância para a produção de objectos artísticos que, sem preconceitos de qualquer índole, possam retirar dividendos das potencialidades tecnológicas oferecidas a uma formulação tangível. A radicalização da decomposição sonora (já iniciada, mas limitada por dificuldades técnicas, pelas vanguardas seriais ao longo do nosso século) levada a cabo, permite, em primeiro lugar, uma manipulação dos materiais utilizados como fontes, fazendo-os implodir em fragmentos descodificáveis e tornando possível a sua remontagem como operação estética, já não produtora mas reprodutora, no sentido em que acima de tudo do que se

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trata é de selecção mais do que criação. Esta alteração epistemológica permite toda uma série de combinações possíveis que podem ser aprofundadas de acordo com a vontade fragmentária de cada interveniente. Por outro lado opõe-se decisivamente a uma sociedade que se normaliza a si própria aniquilando paulatinamente todas as possibilidades de diferença – fragmento. Como em qualquer outra área, uma postura céptica pode revelar-se importante para o desenrolar do processo de trabalho. Exemplos recentes levam a pensar que a hibridização de linguagens possibilitada pelo cruzamento sensorial pode resvalar rapidamente para uma inoquidade formatada no gosto maioritário. No cinema, nas artes plásticas e na música revela-se fundamental uma metodologia que transforme apêndices fashion em componentes efectivos. Nada melhor que terminar com as palavras de Antoni Muntadas: os artistas teriam de manter a mesma posição crítica que está na base dos trabalhos mais lúcidos da história da arte; aqueles que se encontram ligados a uma época e a um lugar específicos, em suma a um contexto. Perante a hipótese do virtual: entender este novo espaço; entender as ferramentas e as possibilidades de actuação nesse mesmo espaço e finalmente actuar como cépticos. No sentido em que o teorema foi construido para utilização em sistemas simbólicos. Embora a arte seja um sistema intrinsecamente simbólico, a questão que levantamos prende-se claramente com outras preocupações. O caso paradigmático de todas as experiências de índole surrealista e dada em que os autores intervenientes se constituíram como vertentes “quase” passivas perante o desenrolar contínuo do acaso ou de outras formas radicalizadas de experimentação descontrolada com o recurso a alucinogéneos, etc, retirando desta análise a postura romântica do autor que se afirma apenas como condutor de algo que não consegue controlar, Picasso: “não consigo controlar a minha pintura, ela é que me controla…” Relativamente a este conceito será importante a leitura do texto de Maria Teresa Cruz: “Experiência e experimentação, notas sobre euforia e disforia a respeito da arte e da técnica” in “Real vs. Virtual”. De lá, também, a citação que nos parece adequada ao desenvolvimento da ideia que expressamos no texto: “E, assim, por detrás de uma mais do que compreensível disforia a respeito de alguns dos seus resultados (experimentação e técnica), mas também de uma às vezes inconfessada ou pouco consciencializada euforia pelos seus êxitos, cada um de nós vai partilhando dentro de si, como todos afinal, e talvez com igual ansiedade, um mesmo ocidental e ruminante sentimento de mal estar, precisamente à altura do bem-estar que a época lhe ofe-

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rece”. Nota: os parêntesis e itálico são nossos.A predominância sonora proporcionada pelo constante som dos tiros revela fundamentalmente a opção que alguma arte, hoje, faz em direcção a novos espaços sensíveis até à bem pouco tempo “vedados” conceptualmente às chamadas arte plásticas, e que se afirma reveladora de algum mal estar – talvez como consequência directa de algum esgotamento – relativamente à produção de imagens, mas que possibilita a introdução de formas de actuação que podem colocar-se como importantes num futuro muito próximo, das quais devemos salientar a opção pelo “djaying”. Deve-se salientar que esta presença ausente – conhece-se o efeito dos tiros, ouve-se o seu som, mas não se sabe quem dispara de onde dispara – tem um efeito preceptivo importante. Recordemos o filme de Theo Angelopoulos “O Olhar de Ulisses”, aí talvez o plano mais impressionante seja aquele em que ficamos suspensos perante um écran branco, apenas acompanhados pelo som surdo dos tiros disparados. Não podemos esquecer a filiação histórica de uma obra que recorre ao poder destruidor das armas de fogo, de Burroughs a Burden, passando evidentemente pela acção destruidora do fogo – como elemento per si – da acção levada a cabo por Baldessari ao destruir publicamente, numa fogueira, todo o seu trabalho anterior. A coincidência formal proposta por Pedro Tudela (C.A.P.C., 1999) entre os alvos e as claquetes frequentemente utilizadas pela televisão, indiciam certamente uma direcção. Referimo-nos a posturas que reclamam a originalidade como princípio activo para o desenvolvimento do seu trabalho. Cabe perguntar o que se entende por originalidade, quando assistimos a fenómenos curiosamente desviantes como seja o facto de: “Como conservar el aura del original en una obra que para ser considerada como tal debe proliferar a una escala microindustrial?…La repitición fatal es muchas veces imprescindible para la integración dentro del cuerpo de élite de los artistas internacionales.” (Moraza, 1999). Citado porRui Miguel Abreu num texto publicado na revista “número”. Outono de 1999. No campo do político nada é o que parece ser. A fragmentação se por um lado se afirma como um dos maiores desafios colocados aos teóricos da globalização neo-liberal, radicando rapidamente em fundamentalismos e nacionalismos de variadas ordens, pelo outro potenciada pelo ciber poder multinacional irradia-se largamente na formação de pequenos países dentro de anteriores já pequenos países. Tome-se como exemplo de reflexão o caso recente da Jugoslávia.•

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CONVERGÊNCIA ENTRE SONS E IMAGENS ARTE CAPITAL LUÍSA RIBAS 2009

A ligação entre o mundo sonoro e o visual é actualmente tão próxima e variada que se torna difícil compreender a separação destas esferas no início da era dos media e nas primeiras “apresentações físicas e materiais de imagens e sons”. Apesar da separação entre audio e visual que os media impõem numa fase inicial, qualquer barreira ou dificuldade na sintetização de sons e imagens desaparece contudo no advento da tecnologia digital, flexibilizando as relações “intermedia” entre som e imagem, que os artistas e pioneiros arduamente procuraram.

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A procura de uma correspondência entre os sentidos da visão e audição tem no entanto longos antecedentes, nomeadamente na relação entre as artes visuais e a música, forma artística que no modernismo inicial do século XIX é vista como arte integradora, como base de interacção 62 entre as artes para uma “obra de arte total”, como Wagner a defendeu. . Desde a procura de correspondência entre artes visuais e sonoras, à coexistência de som e imagem num mesmo suporte técnico e à unificação audiovisual digital, salientam-se alguns desenvolvimentos significativos na exploração criativa de relações entre som e imagem como precursões dos discursos audiovisuais emergentes com as tecnologias digitais.

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CORRESPONDÊNCIAS

Exemplos de investigações pioneiras na procura de correspondências que integram som, luz e movimento encontram-se em diversas gerações de artistas que perseguiram a utopia sinestésica e a criação de uma “música ocular”, “cromática”, ou “música para os olhos”. Um grande impulsionador desta tradição artística foi o padre Louis-Bertrand Castel, que no século XIX projecta o “Clavecin Oculaire”, inspirando desenvolvimentos posteriores desta procura de relações entre o visual e o audível. Encontram-se várias referencias desta tradição entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX: as sinfonias de cor e teclados luminosos de Alexander Scriabin, Vladimir Baranoff-Rossiné, Zdenek Pesanek ou Alexander László; os “Synchromismos” de Morgan Russell e Stanton Macdonald-Wright e o “Clavilux” de Thomas Wilfred; os jogos luminosos de Kurt Schwerdtfeger e Ludwig Hirschfeld-Mack; a extensão temporal da pintura de Viking Eggeling e Hans Richter; o investimento não figurativo no cinema de animação dos irmãos Ginanni-Corradini e Léopold Survage que oferece um novo terreno de exploração de “correspondências”(Lista, 2004). Ao longo deste historial de criação em torno da “música visual” identificam-se diferentes preocupações que se prendem com a integração simultânea de som e luz ou com a criação de manifestações visuais por analogia à música. Inúmeros artistas aspiram à concretização de sistemas que incorporem ou produzam som e luz em simultâneo, desenvol63 vendo diversos aparelhos na tradição de Castel. Paralelamente a essa procura de simultaneidade explora-se a indução de uma qualidade musical através de luz ou elementos visuais dinâmicos, segundo manifesta64

ções, por vezes, puramente visuais. Muitos destes aparelhos e instrumentos pretendiam dar resposta a uma situação “performativa”, à articulação de música e imagens em tempo-real, em que a sincronização ou outro tipo de correspondência podia ser controlada, tanto pela intervenção manual, como pela integração de automatismos, tal como é visível nos exemplos das “Musicolour Machines” de Gordon Pask e McKinnon Wood, entre outras experiências desenvolvidas em meados do século XX. Outros artistas procuram essencialmente a modelação da experiência sensível do espectador, através de manifestações visuais acompanhadas ou não por música. Estas obras apresentam-se ao espectador, afastando-se da situação performativa, de que constituem exemplos os estudos fílmicos de Walter Ruttmann, Viking Eggeling e Hans Richter.

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Identificam-se assim duas preocupações essenciais, uma orientada para o desenvolvimento de sistemas e dispositivos de performance, que implicam o corpo e a acção, e outra orientada para a criação de sistemas e dispositivos perceptivos, que modelam a experiência sensível do observador. Uma das questões transversais a esta procura de relações entre som e imagem prende-se com a tentativa de estabelecer uma correspondência “absoluta” entre audição e visão, levando muitos artistas a procurar um fundamento na física ou na psicologia da percepção. No entanto, os sistemas desenvolvidos aproximam-se invariavelmente da subjectividade sinestésica, fazendo com que cada artista desenvolva os seus próprios parâmetros de correspondência sensorial. Estabelecem assim relações tonais (musicais e cromáticas), na tradição de Rimington ou Scriabin, que, tal como Castel, procuravam uma “unidade fundamental”, 65 uma transcendência. A exploração de uma equivalência sensorial ganha relevância no advento da abstracção visual, quando o abandono progressivo da figuração conduz à procura de uma linguagem “universal” da forma abstracta, aproximando a pintura da música. As correspondências sensoriais, como por exemplo Kandisnky e Schoenberg defendem, ou estruturais, como Paul Klee ou Mondrian definem segundo um paralelo que ultrapassa o representacional (Folmer, 2005), antecipam a tendência do cinema abstracto para adoptar “a música como modelo”.

“As artes do espaço e as artes do tempo convergem em novas formas artísticas integradoras, fazendo com que as linguagens estéticas se concentrem sobre os fenómenos perceptivos e sentidos por estes convocados.”


DA CORRESPONDÊNCIA À CONVERGÊNCIA

O início do século XX é particularmente frutuoso em estudos sistemáticos sobre a composição temporal abstracta. A noção de ritmo visual é largamente explorada por analogia a um ritmo musical, preocupação que ganha expressão nas obras de diversos artistas. A técnica do filme começa a proporcionar novas formas de integração da dimensão temporal na pintura. Ruttman proclama, em 1919, a arte da “pintura com o tempo” [Malerei mit Zeit), afirmando a emergência de um novo tipo de artista, que se define entre a pintura e a música. Léopold Survage desenvolve estudos para o “Rythme Coloré” de 1913, como forma de expressão baseada na “cor, movimento e ritmo”. Hans Richter e Viking Eggeling exploram as composições rítmicas visuais baseadas na noção de contraponto e afirmando o uso da música como modelo para o filmeabstracto, de que os trabalhos iniciados em 1921, “Rhythmus 21” e “Diagonal Symphonie”, 66 são exemplo. Oskar Fischinger assume-se como um mestre da forma, durante os anos 30, tendo inventado e refinado inúmeras técnicas de animação (como animação sem câmara ou intervenção directa na película) que vão inspirar artistas como Norman McLaren ou Len Lye. Os desenvolvimentos iniciais do cinema “não objectivo”, abstracto 67 ou “absoluto” contribuem assim para a expansão da linguagem e vocabulário da forma visual dinâmica, essencialmente durante a década de 1920, através de trabalhosas experiências técnicas, numa altura em que a linguagem da montagem cinematográfica estava ainda em definição. Nas primeiras décadas do século XX, o suporte fílmico proporciona uma convergência entre som e imagem, numa fase inicial por analogia e posteriormente pela coexistência, ou fixação de som e imagem num mesmo suporte físico, levantando questões sobre as possibilidades da sinestesia cinematográfica. Nas artes audiovisuais do século XX existe no entanto uma orientação paralela ao tipo de analogia e harmonia que Castel configurava. Essa orientação relaciona-se com a noção de correspondência sensorial: a tentativa de traduzir graficamente o som, de produzir uma marca ou materialização visual do som. Esta perspectiva é derivada da obser68 vação de marcas e vibrações sonoras no final do século XVIII e tornase fundadora de um tipo de exploração estética e técnica com crescente repercussão nos desenvolvimentos artísticos ao longo do século.

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Ao longo do século XIX o registo gráfico do som constituia já objecto de fascínio, segundo o pressuposto de uma tradução directa entre os dois fenómenos. Ganha no entanto nova dimensão e efectivação com as tecnologias eléctricas e media de registo analógico do som, no século XX, nomeadamente com o disco de gramofone, o som óptico do cinema sonoro, o oscilógrafo e o osciloscópio catódico (Lista, 2004). Esta orientação está na génese das explorações intermedia, que se diferenciam da mera coexistência audiovisual, evidenciando a noção de conversão entre som e imagem, segundo uma possível reversibilidade, i.e. a materialização do som em forma visual e o uso destas para produção de fenómenos sonoros. Esta noção de intermedialidade implica a ideia de uma equivalência entre fenómenos, associada à exploração técnica em torno da conversão e ao fascínio da visualização do som.

“A perspectiva de “visualização” do som particulariza a procura de equivalência sensorial em algo que implica a transformação física de um medium no outro através de meios eléctricos.”


TRANSPOSIÇÃO E TRADUÇÃO

No início dos anos 20, a produção de visualizações do som assume nova expressão, nomeadamente com a proposta de uma “escrita sonora” por Moholy-Nagy, que assinala uma visão das possibilidades criativas do disco de fonógrafo e do registo óptico do som: técnicas passíveis de serem usados como instrumentos de “produção” em vez da mera função de 69 reprodução a que tinham sido votadas. Raoul Hausmann, por sua vezdesenvolve uma proposta de tradução de registos visuais, inspirando-se no “optophone” de Fournier d”Albe, de 1912, não como o instrumento protésico que este havia definido mas segundo um uso científico e artístico, reivindicando “a extensão e con70 quista de toda a capacidade sensorial”. O “optophone” serviria essencialmente como uma extensão perceptiva, superando os desfasamentos entre os sentidos, como um “media71

dor cósmico da percepção humana”, uma extensão dos sentidos, essencialmente psicológica, associando-se à tradição de Scriabin, Castel ou Wilfred. Tanto Moholy-Nagy como Hausmann defendem a hipótese de uma nova arte, uma nova sonoridade, musical ou fonética, produzida por processos ópticos, mas enquanto Moholy-Nagy se baseia numa transposição Hausmann baseia-se numa tradução perceptiva. Enfatiza assim uma continuidade entre os processos de conversão dos fenómenos e a tradução dos sentidos, distinguindo-se de todo um contexto de desenvolvimentos anteriores por constituir uma abordagem materialista, en72

videnciando uma dimensão háptica. “Graças à electricidade, (afirma), somos capazes de transformar as emanações hápticas em cores móveis, em sons, em nova música. (…) Precisamos de nos convencer que o sentido do tacto está ligado a todos os outros sentidos, ou antes, que é a 73 base decisiva de todos os sentidos.” Reforça assim o desejo, estimado nas vanguardas do início do século XX, de destituir a prevalência da cultura visual sobre os modos cognitivos oferecidos pelos restantes sentidos, embora se particularize por orientar a sua preocupação estética sobre o processo implicado nesta tradução e não somente os seus “efeitos”. Hausmann centra-se assim sobre o potencial intermedia do aparato técnico como dispositivo de percepção, gravitando em torno da noção de sinestesia, tanto no sentido de uma harmonia entre os sentidos como na antevisão de um “ambiente sensorial” (Lista, 2004) tecnologicamente aumentado, questão que volta a ganhar relevância em meados do século XX.

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RITMO

Nas abordagens fílmicas que aspiram a estabelecer uma continuidade entre o registo visual e o auditivo, o elemento rítmico assume o papel de interface privilegiada como se constata nas experiências de Richter e Eggeling durante os anos 20. O ritmo surge como princípio estruturante exactamente por proporcionar uma sensação temporal que tanto pode ser suscitada em termos visuais como em termos auditivos. É segundo uma perspectiva de “unificação” sensorial que Michel Chion (1998) classifica o ritmo como uma forma de”trans-sensorialidade”, que diferencia da “intersensorialidade” ou do simbolismo que pode regular uma correspondência entre sentidos. Os sentidos são assim considerados como veículos de uma sensação que transcende a sua especificidade. O ritmo pode então considerar-se uma forma de trans-sensorialidade, a mais essencial sengundo Chion, bem como as sensações 74

tácteis, de matéria e textura. Esta abordagem trans-sensorial torna-se útil para a compreensão de formas de articulação entre som e imagem que jogam com uma noção de equivalência sensorial produzida por ambos os estímulos, mas que ao mesmo tempo os transcendem num percepção unificada. A obra de Len Lye “Free Radicals” serve como exemplo desse tipo de articulação de valores rítmicos e tácteis. Através de uma espécie de “inscrição automática” na película por raspagem e da associação a uma música com valores rítmicos e de textura análogos define-se uma afinidade, que não é estabelecida por sincronia mas pela afinidade semantica desses mesmos valores. A exploração deste tipo de afinidade rítmica vai ter alguma continuidade, durante os anos 40 e 50, na articulação de uma linguagem formal abstracta com a música Jazz. Artistas como Harry Smith, John Whitney ou Hy Hirsh, exploram os valores de ritmo ou textura, como valores partilhados pelos diferentes sentidos. Procuram alargar as possibilidades da sinestesia articulando os efeitos visuais e sonoros por 75

intermédio de uma sensação táctil. Estas experiências, pela “liberdade” associativa entre som e imagem dão novamente relevo à improvisação e, consequentemente, à ênfase da dimensão performativa. Em meados do século XX a ideia de uma totalidade sensorial “viva” antecipa assim as práticas dos “live-visuals” tal como se popularizam nos anos 90 em que, como Folmer realça, as conexões entre visuais e música não se baseiam sobre um princípio de transformação técnica mas são essencialmente desenvolvidas pela improvisação e baseadas numa afinidade atmosférica ou expressiva.

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FLICKER

A função da construção técnica na criação de um efeito perceptivo (espacial e temporal) vai ser desenvolvida em torno do aparto cinematográfico ao longo da década de 1960 A visão do cinema como dispositivo de percepção assume particular expressão na exploração do efeito “flicker”. Vários artistas procuram desconstruir e expor a estrutura da experiência cinematográfica, abordando a unidade elementar fílmica (o fotograma) tratada segundo uma série rítmica segundo uma lógica “serialista” e um minimalismo visual. Peter Kubelka faz uso do flicker no seu filme “Arnulf Rainer” (1960) em que, através de uma montagem intermitente de fotogramas brancos e negros, acompanhados por ruído branco e silêncio, unifica visão e audição num único fenómeno perceptivo. Como Florian Cramer (2006) salienta, realçando a relação de analogia com o código binário: “Today, this film reads as an early radical example of digital art in which a binary code functions as both source and visuals, structure and 76 perceivable result.” O efeito flicker revela-se particularmente útil para o questionamento das expectativas perceptivas, nomeadamente no trabalho de Brion Gysin, Tony Conrad e Paul Sharits. O filme de “The Flicker” (1965-66) de Tony Conrad (um ícone do cinema estruturalista nos Estados Unidos) produz um efeito de intermitência, alternando fotogramas brancos e negros, conjugados com um arranjo de frequências sincronizado com a imagem durante a projecção. Conrad elabora um paralelo visual com a harmonia sonora, propondo séries de diferentes ritmos de alternância entre os fotogramas, por analogia à uma estruturação matemática do som derivada do serialismo. Esta alternância produz um efeito estroboscópico e suscita uma impressão cromática de origem fisiológica, transferindo a recepção do estímulo do nível sensorial para o nível neural, como uma espécie de cinema fisiológico. Paul Sharits explora o efeito Flicker em profundidade e usao como princípio de base para o seu trabalho fílmico, nomeadamente em “Shutter interface” (interface obturador) de 1975. Sharits instala uma quadrupla projecção em que o som revela a estrutura da imagem, criando uma intermitência sonora abstracta que se associa à iteração visual. Este trabalho “locacional”, pretende revelar a espacialidade como substancia inerente à experiência cinematográfica, solicitando o envolvimento físico do espectador no dispositivo fílmico e implicando-o na construção perceptiva.

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Sharits põe assim em evidência a construção da ilusão cinemática, revelando a sua materialidade e criando as condições para uma perturbação perceptiva, testando os limiares da percepção e criando “analogias operatórias entre maneiras de ver e ouvir”. (Lista, 2004) As experimentações iniciais com o som óptico anteriormente referidas, tem continuidade durante os anos 1940 segundo uma exploração de novas possibilidades para o som de síntese. Após a popularidade que a obra do canadiano Norman McLaren imprime a este tipo de experimentação, outros artistas, como Mary Ellen Bute ou os irmãos Whitney começam a explorar novos dispositivos tecnológicos para a geração de som e imagem, investindo numa modelação visual do tempo. A série de exercícios fílmicos produzida por John e James Whitney entre 1943-44 apresenta desenvolvimentos notáveis baseados na teoria de composição modernista, com permutações cuidadosamente variadas de formas (Moritz, 1984). Nestes filmes conseguem efeitos inéditos de coincidência entre as percepções auditivas e visuais, bem como um 77 reforço da dimensão espacial sugerida pelo som e imagem. Mary Ellen Bute, por sua vez inicia uma exploração da imagem electrónica usando um osciloscópio catódico para a geração de imagens, como é visível no seu filme “abstronic” (1954). Ben Laposky desenvolve experiências semelhantes no início a década de 1950, os seus “Oscillons”, 78

registando essas “abstracções electrónicas” em filme ou fotografia, Tal como Bute, Laposky alia uma possibilidade técnica à criação estética. Estes artistas procuravam uma harmonia audiovisual, valorizando a dimensão metafórica da associação entre som e imagem sobre o potencial de tradução intermedia. Frequentemente os efeitos visuais estabelecidos por analogia à música eram apresentados noutro medium, como filme ou mesmo registos fotográficos, dissimulando o processo e enfatizando o efeito de harmonia. Em meados da década de 1950 uma nova perspectiva se vai levantar, que tanto implica e enfatiza a dimensão intermedia como invoca a acção do espectador na obra, e de que a exposição “Exposition of music – electronic television”, apresentada por Nam-June Paik, em 1963 na Galeria Parnass, é um marco simbólico. Esta exposição surge como a primeira manifestação evidente de uma viragem, inaugurando o uso da imagem electrónica que deliberadamente exclui a fixação num suporte e desta forma evidencia a tradução intermedia, revelando e expondo os media em que esta se efectiva. O próprio título da exposição é representativo de uma outra viragem, paralela a este desenvolvimento, a transi79 ção de Paik da música electrónica para a imagem electrónica.

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A exposição apresenta uma diversidade de aparelhos electrónicos e instrumentos “modificados”, de forma a que o medium de consumo passivo (televisão, rádio) pudesse incorporar uma participação activa por 80

parte do público. O objectivo essencial de Paik, ao proporcionar a possibilidade de intervenção nestes processos de manipulação, era produzir uma transferência dos conceitos lançados por Cage, em relação à criação sonora, para as artes visuais. Afirma assim a “necessidade” de a nova década da televisão electrónica seguir a passada década da música electrónica, e 81 dos conceitos que lhe são inerentes. “INDETERMINISM and VARIABILITY is the very UNDERDEVELOPED parameter in the optical art, although this has been the central problem 82 in music for the last ten years” Com esta exposição Paik propõe uma interacção entre os diferentes elementos: uma interacção entre som e imagem que se prolongam na interacção do espectador. “In that exhibition the electronic linking of music and picture was demonstrated in a ideal way. On to a surface, (…) in this way one would produce one”s own sounds and musical distortions depending on the scanning speed chosen. Nowadays, we would call it ”interactive technology.” (Daniels, 1992) A primeira geração das experiências vídeo demonstra que, tal como a música instrumental é o modelo operatório do cinema abstracto, o som electrónico foi o modelo operatório do vídeo (Lista, 2004). Paralelamente, as possibillidades de cruzamento do sinal áudio e vídeo segundo uma unidade material (voltagem e frequência) vão dar azo a inúmeras explorações, conceptualmente reforçando a possibilidade de uma interacção integradora dos diferentes estímulos sensoriais. Steven Beck, Jud Yalkut, Steina e Woody Vasulka são, em meados da década de 1960, alguns dos nomes associados à exploração técnica e artística sobre modelos de síntese audio e processos de visualização do som. Steina e Woody Vasulka não só criam imagens vídeo a partir do sinal audio como usam a retroalimentação do vídeo para gerar efeitos audio, dando assim forma à reversibilidade da conversão som/imagem. O vídeo apresenta assim uma vantagem, em relação ao cinema, a flexibilização da possibilidade de materialização da experiência acústica, como uma conversão audio-visual directa, efectivada por meios 83 electrónicos.

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PERCEPÇÃO E INTERACÇÃO

A aspiração a uma sinestesia e correspondência sensorial, e o fascínio pela visualização do som e sua materialização, contribuem para uma renovação das artes visuais ao longo do século XX. Tal como a pintura apoia em paradigmas musicais um desenvolvimento da abstracção, o início do cinema abstracto adopta a música como modelo e, com a coexistência de som e imagem num mesmo suporte, reforça uma convergência das duas modalidades. O confronto formal e estrutural, reforçado pelo cinema, entre os domínios do sonoro e do visual, marca igualmente o desenvolvimento das artes electrónicas em meados do século XX. Neste desenvolvimento dois aspectos relacionados merecem especial atenção, pela forma como se exprimem e repercutem a criação audiovisual. Por uma lado produzem-se obras que procuram estruturar a experiência sensível do espectador, i.e. que se constituem como dispositivos de percepção. Esta vertente ganha particular expressão a nível do aparato cinematográfico, implicando o espectador como “suporte” da construção perceptiva, sendo nele que esta se projecta. Paralelamente, temos a criação de um dispositivo de interacção, com funcionamento análogo ao sistema sensorial e que vai implicar a acção ou actividade do espectador na gestão dessa relação de analogia. Nestas duas vertentes o espectador é integrado na trama constitutiva da obra, tanto passiva como activamente, mas sobretudo implicado numa extensão do sistema sensorial.Assim sendo, a tentativa de tornar perceptível a equivalência entre fenómenos ópticos e sonoros, tal como Raoul Hausmann a prefigura, desenvolve-se num “instrumento orgânico, tanto “analogon” como extensão proprioperceptiva do sistema sensorial” (Lista, 2004), e como uma antevisão do reforço da dimensão háptica, em que o tacto surge como interface comum aos sentidos. Desta forma, define-se uma perspectiva de consideração das explorações dos novos media audiovisuais que reaviva a dimensão háptica. De acordo com Hansen (2004), esta dimensão nova ganha importância na experimentação artística actual, em torno das tecnologias digitais e novos media, pela evidência nos processos sensoriais que geram uma 84 correlação háptica da percepção. “(…) contemporary media art has operated what amounts to a paradigm shift in the very basis of aesthetic culture: a shift from a dominant ocularcentrist aesthetic to a haptic aesthetic rooted in embodied affectivity.”(Hansen, 2004)

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A importância desta dimensão é reforçada por Marcela Lista (2004) fazendo referência a obras contemporâneas que reactivam a dimensão háptica, pela via de percepções trans-sensoriais, como grão, textura e matéria, tal como foram referidas por Chion (1998), como as mais enraizadas numa “memória corporal”. Lista aponta o trabalho de Carsten Ni85

colai sobre as impressões de sinais sonoros inaudíveis, e as pesquisas vídeo do projecto Granular Synthesis, como indicativos dessa tendência, pois utilizam nas suas abordagens audiovisuais o princípio da “impressão” e da síntese sonora e colhem novamente na arte visual uma fenomenologia táctil do som. “In response to the automation of vision – that is, the undisputed superiority of machine over human vision in various contemporary applications – some artists have attempted to solicit an embodied experience that foregrounds the foundation of vision in bodily sense capabilities such as proprioception and tactility and therefore begins the process of developing an affective, haptic correlate of perception. Yet while this historically-contingent practice of experimentation forms an apt response to the contemporary state of computer technology – apt because it pinpoints what remains unique to human perception – this is sure to give way, at some future date, to a new, even more radical experimentation aimed at specifying the human anew in relation to a whole new technical regime and in the very act of “extending” the scope of (human) perception.” (Hansen, 2002)•

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61. Segundo Dieter Daniels que faz igualmente referência à noção de intermedialidade, referindo a forma como a unificação de sons e imagens num mesmo suporte técnico levanta questões estéticas e técnicas sobre as relações entre visão e audição. 62. As ideias sinestésicas de Wagner vão associar-se ao modernismo e abstracção visual, que com a influencia dos estudos da percepção, impulsionam uma série de experiências em torno de correspondências entre audição e visão (John, 2000). 63. Podem constituir exemplos desta tradição os trabalhos desenvolvidos por: Frederic Kastner (pyrophone, 1870), Mary Hallock-Greenewalt (Sarabet, 1919) e Alexander Laszlo. 64. Neste caso encontram-se exemplos como: Thomas Wilfred (Clavilux e a arte Lumia, iniciados em 1919) Fischinger (“Lumigraph (1950)” e estudos com filme). 65. Castel acreditava que tanto a música visível como a música audível, não eram mais que a manifestação, tornada perceptível aos sentidos humanos, da harmonia cósmica. 66. Survage inicia dezenas de estudos em 1912 para o seu filme “rythme coloré” declarando, em 1914, que após a libertação da pintura dos objectos convencionais do mundo exterior se conquista o terreno das formas abstractas. 67. Das diferentes designações a preferência de Fischinger seria “cinema absoluto” em referência à exploração da musicalidade da forma animada na tradição da sinestesia cinemática, estabelecida por Eggeling, Richter ou Ruttmann, com Lichtspiel Opus I. 68. Na génese desta tendência encontram-se experiências como as “Klangfiguren” desenvolvidas por Ernst Florens Friedrich Chladni, que escreve em 1787 um texto sobre “descobertas sobre a teoria do som” descrevendo uma transcrição gráfica do som, que, ao contrário de todas as formas prévias de notação, não era arbitrária. (Levin, 1999). 69. Moholy-Nagy assume que libertando o gramofone da mera

“re-produção” de sons prévios e criando um alfabeto gráfico do som transformaria o gramofone num instrumento que transcende todos os instrumentos usados até então. (Levin, 1999) 70. Citado por Borck (2005), segundo afirmação no manifesto “PRÉsentismus” em 1921, publicado na revista “De Stijl” 71. Em 1936 Hausmann regista uma patente de um “optophone”, não como uma máquina sinestésica, mas como uma aparelho de cálculo óptico. 72. Hausmann põe assim em causa a abordagem materialista do sentido táctil, preconizando o manifesto do “Tactilisme” do futurista Filippo Tommaso Marinetti, que convida à totalização da sinestesia futurista com um teatro táctil. 73. Hausmann, citado em Lista (2004), parte do princípio que os sentidos funcionam de forma compensatória, que se completam mutuamente, e que as possibilidades técnicas podem jogar com este funcionamento numa integração eléctrica dos diferentes sentidos, como uma tradução universal em que estes se hibridizam. 74. Chion refere o ritmo com percepção trans-sensorial de base por se definir ainda num momento pré-natal e portanto ser a mais enraizada no corpo, referindo ainda a dimensão verbal como uma percepção trans-sensorial, bem como algumas percepções de espaço, acrescentando que a visão funciona em certa medida como um tácto à distância. 75. Destacam-se Harry Smith com “Film nº3. Interwoven” (19471948), John Whitney com “Hot House” (1952) e Jim Davis com “Through the looking glass” (1953) ou Hy Hirsh com “Scratch Pad”. 76. Cramer refere-se ao filme de Kubelka como um composição visual impressionante que, ao expor o filme numa grelha revela a qualidade “ausente” do flicker, que quando projectado a usa para produzir uma aproximação de visão e audição. 77. Os irmãos Whitney criam um dispositivo pendular que podia

ser calibrado para a inscrição directa de sons na película, que reproduziriam tons puros. 78. O oscilador permitia, segundo Laposky, uma analogia entre música electrónica e imagem de síntese pois ambos eram criados por formas de onda ou vibrações, afectando respectivamente a visão e audição. (Lista, 2004) 79. Consequentemente Paik aborda a arte vídeo, de que esta exposição é considerada um marco fundador, apesar de ter implicado um trabalho laborioso de “customização”, atendendo a que Paik tinha que criar processos que interferissem com a emissão televisiva pois a tecnologia vídeo ainda não era acessível. 80. Cada um dos doze televisores tinha sido modificado de forma diferente, e alguns jogavam com articulações entre som e imagem. 81. Segundo excerto do texto “Electronic Video Recorder” disponível em Mediaartnet.org 82. Afirmação de Paik sobre os seus trabalhos com aparelhos de televisão, aquando da exposição de televisão experimental em 1963, citado por Daniels (2005). 83. O próprio título da obra “soundprints” (1972) dos Vasulka, evoca as experiências de Chladni, o imaginário e as práticas que puseram em evidência o carácter propriamente físico do som pela sua manifestação táctil: impressão, marca ou inscrição num suporte visual. (Lista, 2004) 84. Hansen defende uma transferência de ênfase na exploração artística em torno dos novos media do registo visual para o afectivo e corpóreo, como uma ênfase sobre os fundamentos corpóreos da visão e enfatização de uma especificidade humana numa era de convergência digital. 85. Considera-se aqui o trabalho de Carsten Nicolai, sobre estruturas visuais criadas por frequências sonoras e/ou sons construídos a partir de formas e padrões visuais, nomeadamente instalações que exploram processos de trandução e os limiares entre as duas dimensões.


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O CIRURGIÃO INGLÊS ARTECAPITAL EDUARDO CÔRTE-REAL 2007

Se, no séc. XVI, Francisco d’Hollanda tivesse escrito em word com corrector ortográfico para português a palavra Desenho, que tão esforçadamente procurava mostrar aos seus leitores, também daria erro. Desenho era uma novidade com cem anos em Itália. Durante esse século (do fim do séc. XIV ao principio do séc. XVI), o disegno de Cennino Cenini, ainda preso à ideia de registo gráfico, veio a englobar o conceito de projecto. As propostas de Hollanda, Vasari e Zuccari, entre outros, de definir Desenho constituíam-no como um vasto sistema que albergava uma multiplicidade de actividades que faziam fé no registo gráfico como modo de atingir o controle formal para os objectos a produzir. Em Espanha, onde a palavra Dibujo se manteve, ao contrário do nosso Debuxo (curioso, debuxo já não se usa mas não aparece sublinhado), o Diseño adquiriu o significado de Design. Tudo se parece jogar entre os prefixos de e di. Disegno Diseño, Desenho, Design, Dessin soam como semelhantes. Design, na enciclopédia britânica é identificado como verbo, assimilado para o inglês médio através do francês. Vamos então, tentar, a partir da tradução de Designo, definir Design.

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DESTACAR

Da experiência de mundo é possível isolar factos, objectos, formas. Antes de qualquer juízo, a nossa atenção pode focalizar-se, hierarquizar o objecto de uma experiência sensível. (Olho para o écran do meu computador esquecido da chuva que cai lá fora, da estante de livros que está à minha direita, da porta aberta do escritório, do ícone que daria inicio a uma tabela de excel, etc). Sendo eu sujeito a estar no tempo e, consequentemente sendo actor, no sentido de praticar acções, poderei categorizar essas acções? Destaco, em primeiro lugar que aquilo que procuramos definir é uma acção humana. Ao colocar esta questão tenho que postular que o humano é actuante. Ou seja, que há um modo de reconhecer o humano que passa pela avaliação do mundo como situação antes e depois do movimento (acção) do humano. Esta premissa geral baseia-se no facto da indissociabilidade do humano e do Tempo que, de uma forma reflexiva, o posiciona. Ao termos inventado a História sabemos que agimos com consequências. Ou sabemos que o modo como construímos mundo depende desse sistema de causalidade. Agimos e temos tempo para observar as consequências das nossas acções. O Humano é, então, a possibilidade de o Tempo poder ser aferido como uma multiplicidade de resultados dos quais apenas um foi concretizado. Isto é, obviamente, a construção humana do tempo e nenhum de nós poderá ter outra visão diferente. Agir comporta participar numa linha definida, apenas porque está definida pela sua visibilidade posterior. O primeiro ponto de vista a partir do qual posso destacar aquilo que procuramos definir é o da Ética. Na construção do Homem moderno, sobretudo a partir de Alberti, os aspectos éticos foram sobrelevados. Na construção do humano como ser que projecta recorrendo à técnica e à arte (seria perigoso falar aqui de Estética), Alberti socorreu-se da Virtude, Virtús dos romanos, Aretê dos gregos. É claro, neste momento, que o primeiro modo de destacar que usarei se prende com a História. Destaco a idade moderna e a idade contemporânea como períodos onde pode ser destacado aquilo que procuramos definir. Os dois mais importantes tratados de Alberti: De Pictura (1435) e De Re Aedificatoria (1443-1452) constituem-se como um manual de construção do homem como ser social mais do que como tratados das disciplinas a que se dedicam. A questão central em De Pictura é a representação. Não a representação arbitrária e sensível mas a representação como resultado da adopção de um processo maquínico indesmentível.

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Ao De Pictura devemos, primeiro, uma definição de Desenho quando Alberti escreve no início: ”Signum hoc loco apello quicquid in superficie ita insit ut possit oculo conspici”. Este signum é traduzido para segno, ao que juntando o prefixo di que indica acção, obtemos disegno. O disegno é, então a acção de produzir sinais – signos. Em segundo lugar, devemos a Alberti a definição e codificação da perspectiva. Embora a ”invenção” perspectiva seja recordada sobretudo pela sua aplicação na Pintura ela comporta mais do que o seu destino pictórico. A perspectiva é a grande máquina do Renascimento porque normaliza a representação. Ao propor um método rigoroso de representação, mais do que obter verosimilhança para as obras pictóricas, a constuzzione legitima alarga a possibilidade de um mundo a haver através da sua visibilidade. As tábuas de Urbino, do círculo de Piero della Francesca exemplificam este processo. Outro facto pertinente é o uso da aparelhagem conceptual da geometria euclidiana. Ponto, recta, plano e volume são os elementos da construção de um edifício abstracto, hipotético – dedutivo que constrói o mundo artificial. A possibilidade do projecto resulta da aceitação de um protocolo com o universo euclidiano como aquele que é logicamente válido para entender o espaço e aquilo que o povoa. Qualquer criação humana visível pode ser descrita à luz daquela aparelhagem conceptual até porque passa a ser feita com o seu concurso. O Trabalho de Alberti abre a porta ao projectista e, sobretudo, ao projectista, que usa recursos gráficos para projectar. Consequentemente destaco de todas as acções humanas, as realizadas desde a idade de Alberti até hoje, que se caracterizam pela ideia de projecto. Dessas destaco, ainda, aquelas que aceitam o registo gráfico como o lugar onde é possível tornar visível o universo euclidiano

“Num dicionário da Internet encontro que Designo, em latim, queria dizer: destacar, designar, descrever e definir.”


DESIGNAR

Se aquilo que foi destacado for suficientemente compacto e repetível como experiência posso atribuir-lhe um nome. Naturalmente que não posso atribuir um nome à experiência de comer pão com queijo e marmelada num fim de tarde de Verão debaixo de uma ramada enquanto os insectos zumbem e os pássaros procuram acomodar-se nas tangerineiras mas posso atribuir o nome queijo que reunirá todas as formas finais de um processo particular de transformar o leite. A possibilidade de designar comporta a possibilidade de operar com conceitos que, ainda que vagos, encontram uma existência provisória num plano lógico. Ao propor um nome para esta acção das outras destacada faço-o recorrendo a uma palavra de uma língua que não é a minha. Ocorre-me o D. Quixote de Mènard do conto de Borges. Mènard, francês, escreveu, nos anos trinta do século XX, um D. Quixote em tudo igual ao de Cervantes. Sem nunca esclarecer se este outro Quixote brotou da imaginação de Mènard ou foi copiado, Borges, alerta-nos para o facto de, por ter sido escrito por um francês em castelhano clássico e no séc. XX, o livro ser em tudo diferente, embora igual. Escolho então Design. Chegada ao inglês provavelmente por via normanda, a palavra terá ganho o seu sentido projectual pleno sobretudo como resultado da querela sobre o Disegno encetada no séc. XVI em Itália. No final do séc. XVI, artistas ingleses como Inigo Jones chegaram viajaram para Itália com propósitos semelhantes aos de Hollanda. A querela sobre o primado das artes tinha-se esbatido dando origem às academias del Disegno de Florença e Roma. Que palavra poderia Inigo Jones trazer para Inglaterra que significasse Disegno? As definições de Disegno de Zuccari, ideólogo da Academia de Roma, aproximam-se de um sentido globalista e divino. Uma palavra inglesa como drawing não poderia abarcar a multiplicidade de actividades que o Disegno englobava. Escolho Design, no início do séc. XXI, porque alguém já o fez. Quase em todos os cantos do mundo, a palavra é reconhecida e é aplicada. Neste processo de aplicação viemos a encontrar-nos com a ruptura da demarcação que tinha feito anteriormente. Uso Design para designar (a aliteração é irresistível) factos, objectos e acções que ultrapassaram o registo gráfico e o universo euclidiano. Podemos dizer que a instabilidade do humano, criada desde o fim das luzes e do início da idade contemporânea e que se inaugura com o Romantismo, com a designação abrangente de Design, que se assume como um grande sistema in-

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terdisciplinar, se pacificará num paradigma semelhante ao criado pelo Desenho para a Idade Moderna. De facto, ao elencarmos, todas as atribuições da palavra Design, reparamos que ela tende a absorver as artes visuais, as engenharias, a arquitectura, a biotecnologia, a ciência, o jogo e, obviamente, a participar decisivamente na criação da cibercultura. Em resumo abrupto, o Design, hoje, participa em qualquer construção de mundo ”artificial” sujeito a uma prefiguração a que chamamos projecto. Aquilo a que posso chamar Design com segurança é todo o processo que produz uma representação de algo a produzir. De certo modo, encontramo-nos no momento em que descobrimos que entre essas ”seis” palavras diferentes há suficientes atributos semelhantes para ”descobrirmos” uma única palavra.

“Certas tribos da floresta amazónica não têm uma palavra para ”verde” mas sim, seis palavras diferentes para seis tons de verde diferentes.”


DESCREVER

Tendo destacado algo passível de ser designado posso descrevê-lo. De certo modo, descrever implica regressar às razões que provocaram o destaque e a designação. Ao descrever percorro os limites do destaque para entrar na justificação da designação. A descrição aceita o destaque como limite do seu desenvolvimento. Descrevemos aquilo que foi destacado precedido da sua designação. No entanto, a descrição exige mais. Exige uma formulação de atributos internos que, ainda que provisoriamente, possam justificar tanto o destaque como a designação. Partindo do destaque, a descrição trata daquilo que é interno ou intrínseco ao destacado/designado. Por outro lado, a descrição de algo designado comporta sempre as limitações do conhecimento sobre aquilo que foi destacado. A descrição de ”Noruega” é praticamente infindável, no entanto posso descrever Noruega como um país, europeu, escandinavo cuja capital é Oslo caracterizado pelos seus fiordes cujo regime é monárquico, etc., etc. Quer isto dizer que entre esta descrição sucinta e o mapa do imperador de Borges, que, desenrolado, cobria exactamente todo o império, há uma multiplicidade infinita de descrições mas que todas dependem do destaque e da possibilidade de designação. Descrever o Design, que, como vimos, designa quase tudo, parece ser tarefa impossível. Descrever pode ter sido tarefa do Desenho, mas foi, sobretudo tarefa da Literatura. Recorro a Italo Calvino e à ”Trilogia dos Nossos Antepassados”. Escrita nos anos cinquenta do séc. XX, esta trilogia é constituída pelos livros: ”O Cavaleiro Inexistente”, ”O Barão Trepador” e ”O Visconde Cortado ao Meio”.

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O CAVALEIRO INEXISTENTE

O Cavaleiro inexistente é apenas constituído pela sua armadura. Externamente aparenta ser humano mas é apenas a sua ”pele” defensiva. Ele simboliza todas as próteses e extensões do humano. Na armadura do cavaleiro estão simbolizados todos os objectos que em contacto ou não com o corpo prolongam as suas capacidades. Esta é uma descrição de Design que evoca o seu primeiro destino associado à segunda revolução industrial sob o império da produção em série e de massa. O cavaleiro inexistente é o Ford T ou o Fiat 600 alinhados na cadeia de montagem, vazios, mas já humanos. (não posso deixar de sentir prazer quando as escovas da lavagem automática percorrem o dorso da minha Peugeot 505 e até um certo arrepio quando passam pelas cicatrizes dos erros de estacionamento). O Design construiu um Homem contemporâneo inexistente sem a sua armadura de extensões. Só a armadura o mantém vivo e consequentemente humano. Os santos e os deuses eram reconhecíveis pelos seus atributos. Na mitologia greco-latina e no conjunto dos santos apostólicos romanos nenhum é, por si só. Um objecto, uma pose, uma indumentária, uma acção culminante são determinantes para a sua representação. A função comunicativa dos objectos que possuímos têm o mesmo valor. Não esqueçamos que as representações dos deuses são realizadas por humanos. Basta pensarmos nos quatro evangelistas, sempre acompanhados dos seus entes de estimação. Não se pretende, consequentemente justificar a construção da armadura do homem contemporâneo com um desejo de divinização, mas sim um desejo de atingir os atributos dos deuses criados pelos homens para os reconhecer. Gregor Samsa, transformado numa enorme barata torna eloquente o cavaleiro inexistente. Intimamente, ainda ele, Gregor Samsa não tem acesso à sua armadura. O conjunto dos objectos e dos espaços que constituíam a sua armadura são-lhe inacessíveis, mais valia que se tivesse tornado incorpóreo como o herói de Calvino. A história de Samsa ilustra quão ajustados ao nosso corpo estão os objectos, quão apertado é o “fato” que julgamos múltiplo e espaçoso. Em Vitruvio encontramos uma possível origem para a história do cavaleiro inexistente e para a incomodidade de Gregor. O conceito de Decor constituinte da categoria Venustas, parte da tríade arquitectónica, postulava que a forma se deveria adequar à função comunicativa do edifício. Este conceito dá origem a duas palavras em português Deco-

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ro e Decoração. Ambas as palavras, no seu uso corrente desvirtuaram a sua origem. No entanto, julgo que o paradigma central do Design industrial ou de Produto é o Decoro. É este decoro que reforça a estreiteza do fato. Os objectos ajustam-se, não só ao corpo, mas sobretudo, ao que pretendemos comunicar. As cavalgadas do marketing e dos targets transportam o cavaleiro inexistente para toda a parte. A múltipla produção de objectos permite que cada um construa a sua armadura, tornando-se cada vez mais invisível substituído pelo sistema de objectos que a si associa. O cavaleiro inexistente simboliza, também, a vaca e o burrinho do presépio do Design: A Ergonomia e a Antropometria. Não é por acaso que a primeira se desenvolve na Guerra e a segunda na criminologia. Poucas actividades humanas esvaziam tanto o humano da sua individualidade. A armadura animada de Calvino é correctamente proporcionada e medida e as articulações permitem-lhe um desempenho ergonómico perfeito. Assim o fazem o Homem Invisível de H.G. Wells, Michael Jackson e Stephen Hawkins que são, afinal, a mesma pessoa e exemplares extremos do que pretendemos descrever.

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O BARÃO TREPADOR

O jovem barão decide, aos doze anos, passar a viver nas árvores e nunca mais por o pé em terra. Assim se passa a sua existência, sempre em contacto com o mundo dos restantes humanos, mas onde os caminhos são mais curtos. Ele é ao mesmo tempo mensageiro e profeta. Na floresta, que cobre grande parte da Europa ele desloca-se na multiplicidade dos ramos onde é sempre possível encontrar uma ligação. Para o Designer o mundo é visto como um incomensurável conjunto de feixes de comunicação. À primeira vista este facto pode parecer resultar da generalização da world wide web. Na verdade, o universo nasceu com o telégrafo e desenvolveu-se com a televisão. A WWW não passa de um telégrafo televisível. A produção de objectos de comunicação e a atribuição de valor comunicacional a objectos é que criou a possibilidade da web. O telégrafo permitiu a globalização de capitais e mercados. A TV permitiu a consolidação do Marketing e da Publicidade. A web não é mais do que a cristalização daquilo que já existia: um fluxo constante de significados no seio do mundo artificial. O Design recria continuamente esses feixes de significados. O projecto conta com eles como parte essencial da sua estratégia. A representação de algo a produzir é, fundamentalmente, a criação de um feixe de significados. O designer opera, assim, num mundo abstracto de ligações comunicacionais que se realizam nos mais insuspeitos sistemas de objectos. A Design, associamos normalmente, a ideia de Inovação. Esta não passa da reconfiguração de sistemas. Ao encontrar um caminho por entre a míriade das ligações possíveis que os ramos das árvores oferecem o Barão Trepador, opera num nível diferente do sistema de objectos vigente a que podemos chamar, genericamente, Tradição. Os seus contactos com o mundo não-projectual são pontuais, interferindo e modificando a Tradição, criando tradições provisórias através dos indícios do seu verdadeiro movimento. Quando se recolhe para as árvores, para o projecto, a visão que retém do mundo embaixo é fragmentada, resultante daquilo que é apenas visível por entre os ramos. Entretanto, o vestígio do resultado da sua aparição, a nova tradição provisória, ganha autonomia e movimenta-se lentamente pelos caminhos da terra. A relação entre o Barão Trepador e os seus conterrâneos é, assim, sempre carregada de surpresas, de novas perplexidades. Embora haja sempre um preço a pagar pelas surpresas o Design encontrou o plano onde operar. O Designer decidiu nunca mais pôr o pé na terra porque não é deste mundo. É do mundo que há–de vir.

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O VISCONDE CORTADO AO MEIO

O visconde, atingido por um tiro de canhão vê-se dividido em duas partes. Esta catastrófica fractura separa-o na metade boa e na metade má. A metade má exerce a sua crueldade no governo do seu senhorio provocando a miséria e o terror dos seus súbditos. A metade boa surge depois. A sua bondade provoca também toda a sorte de acidentes e desgraças. Finalmente, por amor de uma donzela, defrontam-se em duelo. Feridos de morte, são salvos por um cirurgião inglês que os consegue recoser. O Visconde é o Homem da Idade Moderna, inteiro como projecto, na Renascença, que, neste caso, a pouco e pouco se vai separando em Arte e Ciência. O Desenho tinha criado essa bela ilusão de que um homem completo e íntegro dominaria todos os aspectos do seu devir. Os desastres de Leonardo com a sua máquina voadora indiciavam já que ao segredo do voo das aves não se chegava através do Desenho. Por mais que conhecesse pelo desenho o maquinismo de funcionamento da asa, a diferença de pressão entre a face superior e a face inferior (razão da sustentação) não era visível e, consequentemente indesenhável. Mais tarde, a acção conjugada de Lavoisier e Dalton conseguiu reunir a Química, a Matemática e a Física criando um mundo onde o Desenho não podia chegar. No início da Idade Contemporânea, a reacção da Arte surgiu com o Romantismo que desferiu a machadada final separando as duas metades. O artista romântico fechou o seu campo à ciência franzindo o sobrolho às explicações. O início da reunião deu-se através de uma visão do mundo natural que se tornou cultural: a teoria da evolução das espécies. A natureza que tinha sido o referente da harmonia e estabilidade formal passava a significar mutabilidade, transformação, morte e extinção, adaptabilidade. No final do século XIX o evolucionismo tinha já penetrado profundamente na cultura da sociedade da esfera protestante. Em certa medida, reforçava os aspectos do livre arbítrio. Embora arte e ciência não se tivessem recosido, os primeiros passos foram dados. A Bauhaus resulta de duas interpretações da teoria evolucionista. A de Alois Riegl, com a sua Kunstvollen (vontade da arte) e Max Nordau com o seu Enfartung (degeneração) criaram condições para que a Bauhaus surgisse como adopção da primeira e reacção à segunda. Esta reacção comportava sobrelevar os aspectos éticos da produção que através da técnica e da ciência se deviam auto justificar na forma.

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Apesar deste início cada uma das metades seguiu o seu caminho durante o séc. XX, fazendo maldades e bondades mas sempre incompleta, fazendo os súbditos sonhar com a plenitude dos desejos de prosperidade e paz que o jovem visconde inteiro tinha augurado. É sedutor pensar que o cirurgião inglês se chama Design. Parece ser o único capaz de saber tanto da anatomia de uma metade como da outra. Nesta evocação não se pode decidir que é o mau e quem é o bom. Na história de Calvino, o Visconde volta a ser uno e completo embora enriquecido pela experiência do seu tempo de ser dividido.

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DEFINIR

Se o cirurgião é o Design, se o mau e o bom são a ciência e a arte, resta saber quem é a donzela que catalisa a união e, também, quem é o sobrinho narrador. O sobrinho é a História, a contínua possibilidade de construir uma linha temporal através da narrativa. A donzela é o deleite e a possibilidade de perpetuação. É o indefinível presente em cada acção humana. É a possibilidade de uma relação amorosa com o mundo que está para além daquilo que seria plausível pensar. É a Venustas vitruviana, a genitrix, o agente catalisador nas novas formas que buscam o tão indesmentível como inexplicável deleite na reprodução sexuada em que os opostos se misturam. Gerar o novo, ainda que participado pelo antigo, é, ainda, a condição essencial para definir Design.

“O Design é o cirurgião inglês, que, na voz da História, cose pedaços do Homem para que este se possa perpetuar… até nova separação.”


AIGA, STEFAN SAGMEISTER


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FRANCISCO PROVIDÊNCIA

CADERNOS DO DESIGN JMB 2008

Designer de comunicação com especial atenção face ao artesanato, Francisco Providência tem estado ligado a várias iniciativas e projectos que procuram ser artesanato com design ou design com artesanato. Modelou a primeira versão da revista “Mãos”, editada pelo CRAT (Centro Regional de Artes Tradicionais) e comissariou a pioneira exposição “Reinventar a Matéria”. Antes de referir seja o que for, há que afinar termos, para melhor saber do que fala. Assim, Francisco Providência procura a definição dicionarista face à entrevista proposta: “Artesanato s. m. manufactura de objectos com matérias primas da região, produzidos por um ou mais artificies com o auxílio dos seus familiares numa pequena oficina ou na apropria habitação, com o fim de os trocar ou vender; (…) do francês artisinat”. Grosso modo, o artesanato é uma actividade económica, resistente e residual relativamente ao progresso científico e tecnológico, ancestral da sua descendente, a “indústria” Mas pode ser também, design em parceria.

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Quais São as diferenças entre artesão, artista e artífice? FP – Em rigor etimológico quase nenhumas. Artesão, artista e artificie, são evoluções do mesmo radical “arte” (ars, artis) palavra latina para definir habilidade técnica ou conhecimento sobre o fazer. Convirá aprofundar que a romana “ars” tem hoje na Língua Portuguesa os seguintes significados: maneira de ser ou agir, habilidade, talento, arte, ofício, profissão, trabalho ou obra; convergindo portanto, qualidades estéticas, técnicas e éticas. Talvez daqui nos venha a ideia romântica e talvez errada, de que os artistas sejam à priori, seres essencialmente bons. Tomando em com a raiz helénica da cultura ocidental (anterior à latina), percebemos que a origem do conhecimento artístico ocidental, é domínio da poesisa, denominador comum a todas as produções, a todos os “saber fazer” reportando-se ao universo da técnica ( tékhné para os gregos, ars para os romanos ou actualmente arte) como ciência aplicada, que é originalmente a da arte. Apesar de associarmos o artesanato a “artefactos em desuso” e o design a produção industrial, a verdade é que a grande barreira que separa o design do artesanato é o “desenho” – ao contrário do designer, o artesão não tem por método o recurso ao desenho como instrumento de reflexão ou processo mental de projecto, o que potencia menos recursos de simulação, antevisão, cálculo e projecção visual. “ Mas confundir o artesanato com a manufactura é limitar a tarefa do artesão a um fazer técnico, desprovendo-o da capacidade artística de criar emoções”. O “artista”, na origem, é o técnico superiormente qualificado num certo fazer, que é antes de mais um saber. O artífice (também chamado artista em meios mais rurais ou arcaizados), ainda é hoje aquele que domina artesanalmente uma tecnologia, apresentando-se disponível para realizar artefactos segundo uma certa técnica nessa determinada tecnologia; o artesão será uma espécie de artificie com menor repertório, já que domina uma tecnologia totalmente aplicada à produção dos mesmos modelos de artefactos, herdados e repetidos. Hoje, o artesão, está entalado entre a falência do seu ecossistema natural (que atribuía sentido económico à sua estrutura produtiva) e o mercado que lhe é cada vez mais estranho, sofisticado e urbano. Encontra o artesão oportunidade de negócio a vender o pitoresco, mais pelo préstimo funcional, que ele, apesar de tudo, persegue com todo o esforço técnico, propondo com insistência “cangas” transformadas em cabides, ou “pipos” em mesas. A artesania é a especialidade residual do que escapou ao progresso, justificada pela inacessibilidade geográfica, cultural ou económica; são ilhas de cultura em vias de extinção, moribundas. O ac-

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tual poder político, encontra no financiamento directo ou indirecto, através das autarquias com as suas feiras-de-artesanato ou de outros eventos promocionais, o que resta de um mundo passado, sob a justificação política de assim fixar as populações. Trata-se de um modo de perpetuar o que morreu: a cultura local. A cultura local morreu, não porque esteja desadequada ao tempo a ao lugar, mas porque não soube questionar criticamente a sua participação na comunidade, não soube evoluir, não foi capaz de integrar o novo, de agir criticamente. A inoperância do artesanato, dever-se-á talvez à falta de meios críticos, na proporção inversa ao design, cujos recursos técnicos que explora, convergem no pensamento gráfico, o “desenho”. No entanto, convirá esclarecer que o artesanato é o último reduto, ainda que inconsciente disso, de preservação de um valor inestimável, que mais do que a técnica é o da transmissão de uma suposta genuinidade cultural. Na progressão da economia portuguesa, o artífice evoluiu para empresário (pequena ou média empresa familiar que ainda se mantém com caracterização do nosso tecido industrial) e este, respondendo sobretudo às solicitações do mercado estrangeiro, adaptou-se na oferta produtiva em regime de subcontratado, não se autonomizando pelo valor de marca nem pelo valor de produto, mas integrando “em branco” essas marcas comercias. Contrariamente ao fenómeno italiano, em que se reconhece uma continuidade cultural entre a tradição cultural do artesanato e a sofisticação de novos produtos industriais (por exemplo no calçado), em Portugal reconhece-se uma fractura, um hiato de amnésia entre a cultura tradicional e a nova produção industrial descaracterizada. A explicação desta diferença reside no factor desenho (design), ou melhor na falta dele. O desenho, como instrumento de reflexão, faculta ao design os meios da sua autonomia reflexiva, como instrumento, dotando-o de uma consciência sobre o processo, e assim, os meios para criar livremente, isto é, inovando. Os “artistas” (artesãos, artífices, engenheiros, artistas e arquitectos), nascendo de um tronco comum, vão-se especializando no tempo, autonomizando-se nas suas práticas profissionais. O artífice especializa-se por artes, por tecnologias, passando de um nível artesanal (da habilidade) para o nível industrial (da exploração maquinal), ganhando também autonomia intelectual; abre-se a distinção entre artes mecânicas e artes livres, fazendo-se a distinção no séc. XVI (por exemplo na corporação dos ourives) entre o artesão inconsciente que repete mecanicamente o modelo, que desenvolve uma actividade tecnológica – do fazer – e o outro artista, que cria livremente novas propostas – do projectar.

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A primeira divisão dar-se-á pela tomada de consciência, instruída pelo desenho. No séc. XVIII, com a emergência do pensamento científico, nasce uma nova classe de técnicos oriundos dos serviços militares reais: os engenheiros. Os engenheiros são a expressão mais evoluída do artífice, que ganhando consciência sobre o processo, se desvincula do fazer para se concentrar no projectar; ele é o que desenha a máquina que passou a fazer o que antes era feito artesanalmente. Ele é o da optimização dos processos, da funcionalidade da forma, da economia de meios. Também no séc. XVIII aparecem por toda a Europa, as aulas do risco ou do desenho e posteriormente as academias de Belas Artes. Tratamse de escolas para o ensino avançado da arte, então ainda congregando a arquitectura, a escultura e a pintura. As Belas Artes, evoluirão para as artes plásticas no séc. XX, desvinculando-se os artistas da arquitectura e da tutela dos seus patrocinadores religiosos, para se dedicarem sobretudo aos particulares e ao estado (que desenvolveria novas políticas culturais apoiadas por centros culturais e museus), ganhando o estatuto que têm hoje de operadores estéticos. No séc. XIX, a industrialização dos meios de produção deu origem a um ensino técnico de projecto vocacionado para a mecanização. O desenho industrial, entre as artes decorativas beaux-arts e a engenharia mecânica, é ministrado pelo ensino técnico de nível médio e via profissionalizante. Surge então, já em pleno séc. XX, uma nova tipologia de escolas, posicionadas para o nível superior em que o ensino artístico (da consciência estética) se casaria com o ensino técnico (da consciência tecnológica), mas valorizando outros factores éticos (da consciência social); são exemplos a Escola da Bauhaus e Ulm, que mais tarde ou mais cedo contaminariam as Belas-Artes, com o ensino do design. O design, como expressão máxima do desenho, embora para alguns autores localizados no pós 1940 (sob justificação de que só depois dessa data o étimo “design” é divulgado e aceite por todo o mundo, para caracterizar o desenho industrial em que se associa a funcionalidade à beleza), está presente na Europa desde as primeiras aulas do risco, como naquela que existia no Porto e origem remota da Escola das Belas Artes, dedicada ao ensino da arquitectura naval. Em conclusão, diria que a actividade artística (poesis), via para o conhecimento alternativo à ciência (theoria) e à ética (praxis) – segundo Aristóteles –, sofreu ao longo da sua história uma evolução paralela à do próprio conhecimento, atravessando como ele a sucessão sequencial dos seus estádios: o primitivo (do feiticeiro e da unidade animista em que a arte tem tanto de evocação quanto de invocação, o tradicional

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(do artesão e do desenvolvimento técnico artesanal para a produção especializado de artefactos) e o moderno (do engenheiro e da produção industrial, mecânica e automatizada); há quem defenda ainda um quarto estádio pós-moderno, como um novo modelo critico, em que o engenheiro se concilia, por via da acessibilidade digital, com um fazer artesanal, podendo assim desenvolver qualidades poéticas, a que corresponde o paradigma singular do design, Verifica-se portanto uma evolução na história das artes, que vai do técnico generalista e holístico, do “artista”, até a sua segmentação em engenheiro, designer artista, passando pelo artesão e pelo artífice, que por razões histéricas e geográficas ainda se podem encontrar em estado genuíno em lugares cientifica e tecnologicamente mais isolados. Haverá pontos em comum entre artesãos e designers? Hoje, os artesãos sentem-se ameaçados pelos designers que, aliados da indústria, dominaram as suas feiras pela variedade da oferta e pela diminuição do preço; os designers poderiam no entanto constituir um parceiro importante para o artesanato, promovendo a revolução dos seus artefactos e a adequação dos seus produtos às novas necessidades do mercado, sem contudo perder aquilo que tenha de precioso: traços de identidade cultural depurados ao longo de centenas de milhares de anos. A cultura, reconhecida pelas suas expressões, pela forma dos seus objectos, não é estática. Uma cultura tradicional, não evolutiva, está condenada à morte. A cultura é tão dinâmica quanto o processo da sobrevivência humana, em permanente mutação. O artesanato que não percebe isto, já morreu; morreu sobre a forma de bordados arcaisados com um desenho do séc. XVIII que já não é capaz de colher qualquer projecção de identidade em ninguém. Redesenhar o bordado dotandoo do espírito deste tempo, ou transformando-o em suporte de evocações actuais, é dotá-lo de sentido e oportunidade comercial, Embora os artesãos se possam sentir empurrados para o lugar de artífices mecânicos, perdendo a autonomia do desenho ou partilhando-a com os designers, este corte epistemológico na tradição artesanal, poderia constituir-se como experiência esporádica e meio inovador para a sua afirmação económica futura. Julgo que este tipo de “saltos” artificiais na evolução do artesanato não são inéditos. A história do artesanato português, revela certos pólos dinamizadores localizados num tempo e num lugar, como por exemplo o caso de olaria do “figurado de Estremoz”, que pela sua singularidade e beleza denunciam um valor autoral original ainda que hoje se revele muito disseminado na religião.

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O artesanato deve ganhar a capacidade para absorver as vantagens da tecnologia disponível, como fizeram, por exemplo os franceses, com a produção artesanal de bens alimentares, nomeadamente os queijos, ainda que correndo o risco de se transformarem em pequenas industrias. Mas se 0s artesãos se sentem ameaçados pelos designers, também os pequenos industriai – tradicionalmente seus descendentes e constituindo um tecido muito repartido (em pequenas e médias empresas), como é o caso português – sentem-se igualmente desconfortáveis a partilhar os “segred0s do negócio”, que em muitos casos se resumem a um certo artefacto. O poder económico do design e a sua falta de procura pelas indústrias, deu origem em alguns países mais desenvolvidos a uma nova tipologia de artesanato, urbano, em que designers concebem, produzem e distribuem os seus produtos, constituindo por vezes uma exemplaridade criativa notável como é o caso da alemã design-bazar ou da holandesa droog-design. Outras vezes, como se verifica em Espanha (Catalunha), os designers autonomizaram-se gradualmente com valor de marca próprio, passando a explorar o circuito produtivo e comercial das suas criações. Fazendo encomendas às pequenas e médias industrias valencianas como outros clientes tradicionais, passaram a explorar, como eles, esses recursos industriais historicamente dedicados a subcontratação. O que acha que o artesão pode ensinar ao designer? E o designer ao artesão? O artesão pode ensinar ao designer o pragmatismo da sobrevivência e o designer pode ensinar ao artesão as virtudes do desenho, como instrumento de projecto (levantamento, análise, proposta e comunicação). Artesanato e design são associáveis? De que formas? Artesanato e design são associáveis no modelo bauhauseano, em regime de contratação dos serviços, parceria ou coautoria. Uma aliança entre design e artesanato será capaz de resultar em mais valias para os produtos de ambos os domínios? Com que forma? O designer como projectista do design, como operador pelo desenho, tem frequentemente pouca experiência material. O artesão pelo contrário, revela frequentemente uma elevada experiência técnica a par de uma impossibilidade prospectiva na criação de novas respostas. A técnica do artesão foi modernamente substituída pela mecanização mais

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ou menos automática; o simétrico não se verifica, isto é, o desenho do designer não consta que possa ser substituído pela tecnologia. Confrontar o artesão com outros materiais (fita sintética) para integrar as mesmas técnicas (cestaria), ou outras técnicas (colagem em estratos) para os mesmos materiais (fita de madeira), pode introduzir factores de inovação importantes para o desenvolvimento de novos produtos. A distância a que o designer se encontra da produção é vantajosa, ao permitir a análise prospectiva desse fenómeno, mas inconveniente se considerarmos a enorme vantagem criativa que a manipulação directa dos materiais poderá trazer para o domínio da solução projectual. A aliança devera passar pela troca de experiências: o designer a experimentar o artesanato e o artesão a experimentar o desenho. Naturalmente que o artesão, dominando uma informação menos sofisticada, corre sérios riscos de ser controlado pelo designer que o explorara. Parece-lhe que o design deverá interferir no processo do artesanato, ou apenas no processo da sua divulgação e comercialização? Parece-me que o design deverá interferir no processo produtivo do artesanato, introduzindo o desenho como factor de reflexão critica e desenvolvimento inovador dos artefactos. Em termos gerais como lhe parece ser o ponto de vista do designer face ao artesanato? O design é o estado evoluído do artesanato, o designer idem em relação ao artesão; embora se saiba que algumas técnicas do artesão são, por vezes, muito subtis e dificilmente substituíveis pela mecanização. O ponto de vista do designer sobre o artesanato, parece-me ser de curiosidade e observação, perante o manancial desse domínio. As pegas dos designers brasileiros, irmãos Campana, ou as de Nido Camolongo, são um bom exemplo disso. E o ponto de vista do artesanato face ao design? O ponto de vista do artesanato face ao design será o de uma oportunidade e de uma ameaça; o design é a única saída sustentada para o artesanato, alternativa ao kitsh e ao pastiche; correndo o risco de assistir à sua identidade folclórica ser suplantada pelo sucesso do design.•

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DESIGN E IDENTIDADE

ANA RUTH CESÁRIO & SUSANA FERREIRA MANUAL II 2008

Nos dias de hoje, torna-se urgente reflectir sobre as novas características do indivíduo, das comunidades e das sociedades para as quais o designer projecta. Mas, numa altura em todas as identidades são postas em causa, este pode tornar-se um exercício que tem tanto de estimulante como de complexo. E, se nos situarmos no domínio do design urbano e no estudo do espaço que é, no fundo aquilo que mais directa e imediatamente implica no quotidiano das pessoas, esta reflexão é ainda mais pertinente. Torna-se óbvio que não se pode estudar o espaço sem estudar a questão da identidade. Então, como identificar uma pessoa, um colectivo, uma sociedade ou uma cultura numa altura em que tudo é posto em causa e esta em constante mutação? A resposta parece estar na forma de ter em conta todos estes factores, deixando margem para a mudança rápida em que o mundo actual turbilha. E, também, pensar de forma multiculturalo multiculturalismo passou de multiplicidade de culturas a ser; ele próprio, uma cultura. Nas palavras de Filomena Silvano, Antropóloga do Espaço, “o espaço perfeito não consegue produzir uma sociedade perfeita, justamente porque o espaço, por si só, não tem capacidade de produzir social e de produzir cultura.”

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Referem-se as velhas teorias da identidade – do “eu” e do “outro” – para pensar que, sendo o ser humano já tão complexo, falar do “outro” implica cada vez mais falar de si próprio, e vice-versa. Assim como quando se fala de multiculturalismo, nem sempre se está a referir ao “diferente”, ao “estranho”, ou a esse mesmo “outro”. A multi-cultura é, hoje, algo inerente a qualquer pessoa, urbana e cosmopolita, a qualquer cidadão integrado num todo dinâmico. E entenda-se que o termo multiculturalismo cada vez menos se prende com etnias, Ele não significa só multi-etnicidade, mas também uma mistura de culturas que podem ir da geografia até ao género, passando pela condição social, classe ou estilo de vida, As características do multiculturalismo na sociedade contemporânea, apenas diferem das anteriores formas de Multiculturalismo pela movimentação, fácil e rápida, de pessoas e bens, pelas migrações constantes e pela diluição das fronteiras enquanto barreiras, tanto para o prazer e turismo, como para o desprazer e para o desespero.

“A multicultura é, hoje, algo inerente a qualquer pessoa, urbana e cosmopolita, a qualquer cidadão integrado num todo dinâmico. Entenda-se que o termo multiculturalismo cada vez menos se prende com etnias.Ele não significa só multietnicidade, mas também uma mistura de culturas que podem ir da geografia até ao género, passando pela condiqao social, classe ou estilo de vida.”


Na verdade, os conflitos e atritos que hoje associamos ao multiculturalismo não serão, pois, muito diferentes dos que existem entre aldeias vizinhas ou em qualquer outra circunstância em que esteja em causa a ocupação do território e o domínio do espaço – um conflito territorial primária. Teresa Alves reflecte na questão, do ponto de vista da Geografia Humana: “o que as recentes migrações trouxeram de diferente para a sociedade e para a cidade foi um enriquecimento. A troca de experiências de diferentes vivências e de diferentes origens é, por vezes, um processo conflituoso, mas, uma vez ultrapassado esse conflito, passa-se de uma justaposição para uma imbricação extremamente enriquecedora de diferentes experiências culturais, diferentes valores e diferentes maneiras de viver a cidade.” Mas, as diferenças culturais estão (e sempre estiveram) impressas no espaço. Começando pelas diferenças sociais e hierárquicas que são visíveis nas cidades – do gueto ao condomínio fechado. No entanto, a cidade é, por princípio e génese, um núcleo de trocao que faz a cidade é, precisamente, ser o sítio onde nos encontramos com as diferentes: “o espaço público da cidade sé faz sentido quando nós, de facto, nos confrontamos com a diferença, deixando a diferença viver, em coexistência, comunicação e transformação. A cidade não deve permitir a guetização como fechamento e usurpação do espaço público, transformado em espaço privado”, afirma Filomena Silvano. Teresa Alves acrescenta: “o espaço público deve ser pensado precisamente para estimular essa relação convivial. E, assim que os problemas sociais (emprego, integração e educação) estiverem resolvidos, será mais fácil potenciar relações conviviais entre culturas.” Na opinião de Filomena Silvano, já não faz sentido pensar em culturas estáticas, o “multiculturalismo”, para as ciências sociais é “pensado numa história do pensamento das ciências sociais em que já não se acredita em culturas uniformes, nem monolíticas e em que a antropologia em particular trabalha.” No entanto, este tipo de visão redutor da uniformização das culturas, está enraizado nos discursos políticos e mediáticos, o que já não acontece na Antropologia: “portanto, quando se fala em multiculturalismo, para o antropólogo isso implica obviamente todos os processos de hibridação de cultura, porque sobretudo justamente, a própria ideia de multiculturalismo não é independente da ideia de mobilidade e da ideia de globalização.” Quanto mais aumenta a mobilidade dos indivíduos a sua capacidade de um rápido acesso a informação acerca de outros locais e outros indivíduos, mais fácil se torna a troca de elementos culturais.

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Esta antropóloga do espaço acrescenta ainda que “não há uma resposta à pergunta:”O que é que a gente faz com o outro?.” Por vezes faz sentido deixar o outro quietinho – foi sempre a política inglesa -, por vezes faz sentido tentar integrar o outro na República – foi a política francesa –,já percebemos que uns e outros tiveram bons e maus resultados e não é muito fácil dizer se a opção inglesa ou a opção francesa foi a melhor.” E este “outro” é tanto mais estranho quanto se desconhece. Para Teresa Alves “quanto maior for o desconhecimento acerca do outro, maior vai ser a insegurança na aceitação desse estranho.” A partir do momento que quem acolhe esta familiarizado com as culturas estranhas, essas deixam de ser estranhas. É necessário, então haver “uma prática em termos políticos, em termos culturais e termos de cidadania que faça com que as pessoas desde sempre convivam com pessoas de outras culturas ou de outras etnias e as conheçam, o efeito estranheza dilui-se.” Com as novas tecnologias, o nosso mundo tem ficado cada vez mais pequeno, e a informação circula de modo substancialmente mais rápido e quase imediato, podendo ver-se em directo o que se passa do outro lado do mundo. A internet abriu novas formas de comunicação e contacto com o “outro”, o “estranho”. Informação e pessoas circulam a uma velocidade nunca antes vista. São poucos (ou nenhuns) os locais do nosso planeta que não são conhecidos e o acesso a diferentes formas de pensamento, organização social e politica, está disponível. Somos influenciados por outras culturas e pessoas, e acabamos por interiorizar e assimilar alguns aspectos dessas culturas e também deixamos a nossa marca. As diferenças tornam-se mais ténues. O contacto com o estranho na sociedade contemporânea é uma constante com que temos que aprender a viver por um lado porque ela muda muito depressa, por outro lado porque nós próprios nos habituamos a mudar muito depressa. O estranho enquanto o outro deixa de ser um elemento isolado, mas uma constante conforme a mobilidade aumenta. O estranho estará sempre presente e cabe a cada pessoa escolher a forma como lida com as solicitações que as diferentes identidades oferecem.•

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“Mas, as diferenças culturais estão, e sempre estiveram, impressas no espaço. Começando pelas diferenças sociais e hierarquicas que são visíveis Nas cidades, do gueto ao condomínio fechado. No entanto, a cidade é, por princípio e génese, um núcleo de troca, o que faz a cidade é, precisamente, ser o sítio onde nos encontramos com os diferentes.”


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MOLDANDO COISAS CARVALHAIS.ORG MIGUEL CARVALHAIS 2006

Shaping Things, de Bruce Sterling, com design de Lorraine Wild, foi publicado pela MIT Press na série Mediawork, editada por Peter Lunenfeld. Neste livro, não só a escolha da designer como também o trabalho por esta desenvolvido, em perfeita sintonia com o conteúdo do livro, atestam a atenção dada pelo autor ao design e indiciam a relevância que o livro poderá ter para os designers, embora não lhes seja exclusivamente dedicado. Shaping Things apresenta-se como sendo um livro sobre tudo, sobre todas as coisas produzidas, sobre a produção e a compreensão das coisas, em suma, como um livro sobre design. Shaping Things analisa o presente do design e da sociedade mas também o seu futuro. Não tanto aquilo que o futuro nos pode reservar em moldes globais, como Sterling fazia no seu livro anterior, Tomorrow Now, Envisioning the Next Fifty Years (2002), mas aquilo que poderemos esperar de um futuro bastante mais próximo, quase ao virar da esquina e já latente mas ainda pouco discernível nas experiências quotidianas. Sterling escreve sobre o porquê das coisas terem sido como foram, porque são como são e sobre

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aquilo que parecem vir a tornar-se, escreve para os designers e para os pensadores que as entendam ou queiram entender. As “coisas” analisadas por Sterling (things, no original inglês) não são apenas objectos, manufacturados ou não, mas também objectos não necessariamente tangíveis, e é nesse sentido que utilizarei a palavra nesta recensão. O autor parte de um levantamento histórico sucinto, apresentando uma progressão nas classes de coisas e nos tipos específicos de pessoas e sociedades que com elas se relacionaram ao longo dos tempos, apontando posteriormente para a constatação de que estão a surgir novas formas de design e de produção sem precedentes históricos, num momento em que os métodos de fabrico actuais se tornam insustentáveis. Se as sociedades de caçadores-recolectores se baseavam na produção e utilização de artefactos, a dada altura na história – pelo final do império Mongol, de acordo com Sterling – as máquinas começaram a substituir os artefactos, transformando os seus utilizadores em clientes. Muitos anos depois, após a Primeira Guerra Mundial, estes clientes são transformados em consumidores pela evolução das máquinas para produtos, operada pela distribuição, comercialização e manufactura anónima e uniforme. Esta evolução implicou especializações no fabrico e na utilização das coisas, especializações que se agudizaram no momento seguinte (identificado por Sterling como tendo começado em 1989), quando surgiram os gizmos e os consumidores se transformaram em utilizadores-finais na “Nova Desordem Mundial” em que actualmente vivemos. Estes gizmos de que nos fala Sterling, são objectos altamente instáveis, alteráveis pelo utilizador, tremendamente multifuncionais e normalmente programáveis. São também coisas com um período de vida normalmente curto. Os gizmos oferecem tanta funcionalidade que é normalmente mais barato importar novas funcionalidades para o objecto do que seria simplificá-lo. Os gizmos estão também normalmente ligados a fornecedores de serviços por rede e por isso não são apenas objectos mas sim interfaces para a informação. Ao contrário dos artefactos, das máquinas e dos produtos, os gizmos têm suficiente funcionalidade para activamente importunarem os seus utilizadores, requerendo uma interacção extensa e sustentada: upgrades, actualizações, manutenção, plug-ins, plug-outs, mensagens inesperadas, ameaças de segurança, e por aí adiante.Sterling postula que as ferramentas são mais antigas que a linguagem e que se tomarmos a linguagem como característica fundamental na definição do que é ser-se Humano, poderemos estabelecer que se as ferramentas antecedem historicamente o Ser Humano, este será também um produto das ferramentas.

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“Cada tecnosociedade utiliza as suas coisas e avança inexoravelmente em direcção à classe de coisas seguinte.”

A evolução é inevitável mas é importante frisar que as transformações são progressivas e que o advento de cada classe de coisas e de utilizadores não implica o desaparecimento das classes precedentes. A evolução acontece e as pessoas lidam paralelamente com várias classes de coisas, actuando simultaneamente como clientes e consumidores ou como clientes, consumidores e utilizadores-finais, sendo frequente assistir-se a uma hibridação progressiva, tanto das coisas como das pessoas. Contudo, esta simultaneidade não significa que seja possível ou fácil reverter a evolução ou transformação das coisas ao nível da tecnosociedade. De acordo com o autor, cada tecnosociedade começa por utilizar a nova classe de coisas, num regime que podemos denominar de “introdutório” até que eventualmente cruza uma Linha de Não-Retorno e posteriormente uma Linha do Império. A primeira destas fronteiras marca a impossibilidade de retroceder na utilização das novas coisas sem causar uma catástrofe ou mesmo o colapso social. A Linha do Império é uma consequência da primeira e cruza-se quando a tecnosociedade é levada a uma expansão territorial, em busca de matéria-prima, de mercado ou mão de obra, para conseguir manter o status quo alcançado com as novas coisas. Para Sterling, uma das características constantemente incrementada em cada nova classe de coisas é a informação. Dos artefactos aos gizmos, a informação contida em cada coisa e a informação necessária à sua produção ou utilização aumenta de forma progressiva ou mesmo exponencial. Num exercício analítico, podemos já identificar em muitos produtos a existência de informação suficiente para os transformar em gizmos, enquanto que nos gizmos propriamente ditos a informação é uma parte integrante e inseparável da coisa. Aqui encontra-se um dado essencial no livro, para todos aqueles que tradicionalmente não encaram o seu trabalho como dedicado à criação de coisas, ou que possam não estar habituados a situar o seu campo de actividade na criação de objectos mas sim no tratamento da informação nestes objectos: os designers de comunicação. À medida que as coisas evoluem e a sua natureza se transforma, a actividade de todos aqueles que trabalham para as coisas se deverá também necessariamente transformar.

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Na sua nota final ao livro (e não posso deixar de pensar como seria bom se mais livros tivessem direito a uma nota final dos seus designers), Lorraine Wild define os livros como sendo dos poucos objectos que são simultaneamente artefactos, máquinas, produtos e gizmos. Esta hibridação dos livros pode ser encontrada noutras das coisas “tradicionalmente” produzidas pelos designers de comunicação. Aquilo para o que Sterling nos alerta é para a imensidão de novas coisas que se aproximam e que não só também exigirão a atenção dos designers como muito provavelmente revolucionarão a forma como o seu trabalho é desenvolvido. Os gizmos são intrinsecamente comunicantes. Um computador portátil, um PDA ou um telefone móvel, para usar exemplos simples, são muito mais do que produtos de design industrial ou do que máquinas concebidas por engenheiros e designers industriais. Um computador portátil apenas se revela como um gizmo quando é ultrapassado o nível físico do objecto e a coisa é utilizada como uma ferramenta capaz de comunicar com o seu utilizador-final e capaz de processar e sistematizar vastos volumes de informação. Esta característica coloca os designers de comunicação num potencial papel de relevo na concepção e criação de gizmos, elevando-os ao papel de principais agentes activos no mundo tecnosocial. É certo que Sterling menciona genericamente os designers sem distinguir especializações inerentes às suas práticas, mas consegue-se facilmente perceber em que medida é que as valências da comunicação e do design industrial se cruzam e se complementam em cada classe de coisas. Como veremos, nas coisas que Sterling antevê como constituindo a classe dos spimes, um neologismo que Sterling cria para classificar as coisas que evoluirão dos gizmos, o equilíbrio entre especialidades tenderá possivelmente para a valorização futura do design da comunicação. De uma forma geral, se tentarmos sistematizar, veremos que o papel do design de comunicação é progressivamente mais importante na concepção e desenvolvimento das coisas.

“É importante notar que já hoje em dia os designers de comunicação se vêm cada vez mais envolvidos não só na concepção de gizmos mas também na de produtos.”


E não é apenas na comunicação e comercialização destes que acontece esse envolvimento. As coisas transformaram-se, e muitas das coisas que hoje em dia utilizamos e valorizamos são mais do que objectos, ou são realmente novas classes de objectos, em que a informação prevalece sobre a forma ou sobre as funcionalidades derivadas da forma dos objectos. O designer de comunicação, em particular, vive quotidianamente imerso em software, todas as suas principais ferramentas de trabalho são software, umas poucas serão combinações de hardware e software, mas a larga maioria, aquelas que realmente são indispensáveis à sua prática, são do domínio da informação, dos dados e do imaterial. Cada produtor e vendedor de gizmos é também um comprador dos gizmos produzidos por terceiros. Numa economia de gizmos, os clássicos papéis do comprador, vendedor, produtor fundem-se num caldo de informação e é muito fácil arrastar para este ciclo novas pessoas. Neste caldo de informação podemos medir o investimento e o retorno de cada pessoa no mundo gizmoficado em carga cognitiva e em oportunidade. Para participar neste mundo, para poder ser utilizador-final e simultaneamente aproveitar os gizmos, cada pessoa tem que prestar atenção às coisas, tem que pensar sobre as coisas, despendendo um esforço mental mensurável em carga cognitiva. Num mundo de gizmos temos muita informação ao nosso alcance, mas aquilo que não nos é tão facilmente acessível é a capacidade mental para processar e consumir essa informação. O investimento no processamento de qualquer informação é feito a custo da capacidade de permanecermos atentos a outras informações, e obviamente a custo de carga cognitiva para cada um. Os gizmos permitem-nos pensar mais ou menos, dependendo da sua utilização, e igualmente permitem-nos fazer menos ou mais, novamente de acordo com a sua utilização. Com cada novo gizmo utilizado, o investimento mental encontra um paralelo no investimento temporal exigido. O espaço encontrado por cada pessoa para a utilização de novos gizmos é normalmente conseguido a expensas de outras coisas ou acções. O tempo é sempre limitado, por isso haverá sempre algo do que fazemos que terá de ser abandonado no todo ou em parte para dar tempo às novas coisas. Os gizmos exigem o pagamento de um preço em oportunidade para a sua utilização. O esforço em carga cognitiva e os custos em oportunidade inerente à profissão do designer, tornam-no mais apto a trabalhar na criação de coisas do que os demais, para quem o investimento será senão impossível, pelo menos muito difícil. Este investimento para além do minimamente essencial é aquilo que normalmente os designers encaram como

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oportunidades para desenvolverem um bom trabalho (como sendo o objectivo primordial do seu trabalho, aliás). Logo, de acordo com o autor “toda a gente não pode ser designer”, pois não é possível despender quantidades infinitas de oportunidade de cognição. Assim sendo, numa futura tecnosociedade de spimes, os designers não trabalharão apenas para os objectos ou para as pessoas mas antes para as interacções tecnosociais que unem as pessoas e as coisas: trabalharão para os custos em oportunidade e para a carga cognitiva da tecnosociedade. É fácil entender como esta transformação ou evolução no papel do designer, aumentará simultaneamente a complexidade mas também a responsabilidade do seu trabalho, e entender que o design precisará de ferramentas para se tornar representativo. A escolha do termo representativo por Sterling não é inocente, quando postula que nem todos podem ser designers, o autor compara essa possibilidade com a de ser senador ou Presidente de Câmara. Outras profissões poderiam ser referidas se apenas se pretendesse demonstrar a responsabilidade civil e social, mas estas duas pautam-se pela execução de trabalho em nome de terceiros, sendo cargos representativos. Num universo de trabalho cada vez mais colaborativo, a marca do designer tenderá cada vez mais a ser feita sobre trabalho que não foi começado por si nem será provavelmente por si acabado. O trabalho é desenvolvido sobre coisas em curso, coisas adaptáveis, nascidas da informação e passíveis de ser alteradas de acordo com mais informação e muitas vezes personalizadas pelos utilizadores-finais. O design apenas poderá ser representativo se forem desenvolvidas ferramentas para tornar esse processo possível. Processos que permitam a qualquer pessoa o acesso ao design e a percepção facilitada dos seus problemas. Processos transparentes, recíprocos e funcionais. Algumas pistas de como estes processos possam vir a ser desenvolvidos talvez já se consigam vislumbrar na comunidade open-source, em que normalmente o trabalho dos designers de comunicação e de informação é já bastante escrutinado e discutido, mas ainda é demasiado cedo para o poder aferir correctamente. Os spimes que Sterling prevê que venham a ser a classe de objectos pós-gizmos serão objectos manufacturados cujo suporte informacional será tão grande e rico que os levará a serem vistos não tanto como objectos mas sim como materializações de um sistema imaterial. Os spimes começarão como informação e acabarão como informação. Serão desenhados em ecrãs, fabricados com meios digitais e seguidos com precisão no tempo e espaço durante toda a sua existência terrena. Os spimes serão sustentáveis, actualizáveis e melhoráveis, identificáveis unicamen-

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te e produzidos exclusivamente a partir de materiais que poderão ser e que serão retornados à cadeia de produção de futuros spimes. Não só serão potencialmente interactivos como também serão capazes de comunicar entre si e com as pessoas, muito para além do que é já possível com os gizmos. Assim, as pessoas não terão apenas um número maior ou menor de spimes mas sim uma infra-estrutura de spimes com a qual conviverão e na qual viverão, não sendo mais os utilizadores-finais do mundo gizmoficado mas sim domadores ou condutores (wranglers no original inglês), tão complexa será a relação estabelecida com as coisas. Grande parte de Shaping Things é desenvolvida em torno dos spimes, daquilo que já os indicia, de como eles poderão surgir e de como afectarão as tecnosociedades futuras, aquelas em que viveremos muito antes do que provavelmente esperamos.•

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SOBRE PLASTICIDADE VIROSE.PT MIGUEL LEAL 2004

Há termos que de tanto os utilizarmos se esvaziam do seu sentido primeiro para navegarem à deriva, sujeitos às inclemências dos seus usos. Habituámo-nos a designar um determinado conjunto de práticas artísticas como artes plásticas, sem que isso evidencie qualquer especial esclarecimento quanto à natureza daquilo que é nomeado. Uma primeira reconstituição do sentido dessa designação poderá passar pela origem etimológica do termo, desde o primeiro momento, com os gregos, associado ao domínio da estética. Assim, o grego plastikós – relativo às obras em barro e à sua modelação –­ oferecia um entendimento alargado da plástica dos materiais, da sua maleabilidade mas também da sua disponibilidade para tomar forma, ainda que sob permanente contingência. A ideia de um material que se sujeita à modelação (e que a autoriza de um modo completamente distinto de outros materiais mais nobres como a pedra) mas que escapa ao congelamento do molde que permite a fixação das formas é o carácter que parece definir a plasticidade de algumas artes. A plasticidade evoca, então, toda uma perspectiva material, mas também conceptual, dominada pela variabilidade e pela transformação, cujo pano de fundo é essa matéria mole de que a mão humana é o agente metamorfoseador.

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Por outro lado, o facto de as artes plásticas serem sempre designadas no seu plural remete para a divisão moderna entre um plural e um singular das artes, em que a arte no seu singular é sempre definida fora do campo estrito da técnica e as artes, no seu plural, são sempre do domínio mais preciso da técnica. As artes seriam, assim, técnicas e a arte, poética. À pluralidade e abertura ao mundo das primeiras opor-se-ia o ensimesmamento circular da arte, também conhecido por esteticismo. O plural das artes configuraria sempre um face-a-face com a técnica e o seu singular poderia ser entendido como um intraduzível denominador comum. Desse modo, cada uma das artes só seria configurável na pluralidade dos meios que utiliza. Mas as implicações dessa divisão não são assim tão simples e é possível contrapor-lhe um singular plural da arte, enunciado problemático que nos é proposto, por exemplo, por 86 Jean-Luc Nancy.

“Assim, ainda mais do que uma substância, o plástico é a própria ideia da sua transformação infinita; ele é, como o seu nome vulgar o indica, a ubiquidade tornada visível; e é nisso, aliás, que se revela uma matéria miraculosa: o milagre é sempre uma conversão brusca da Natureza. O plástico permaneceu inteiramente impregnado desta admissão: ele é menos um objecto do que o rasto de um movimento.”


Esse singular plural diz-nos que é impossível pensar o abstracto singular da arte sem pensar o seu plural concreto, obrigando a recolocar a fractura entre arte e técnica num plano em que a sua operacionalidade é posta em causa. Se recuperarmos o sentido original da techné, que era para os gregos não apenas o nome para as actividades e competências do artesão, mas também para as artes da mente e as chamadas belasartes, a fractura entre arte e técnica, entre um plural e um singular da arte, deixa de fazer sentido. A techné, no seu esplendor iluminador, como nos recorda Heidde87 ger , pertence ao domínio da poiesis, sendo sobretudo um instrumento 3 de revelação – “a poiesis das belas-artes também se chamava techné” . É antes dessa clivagem interna que deveremos procurar a essência das relações do par arte e técnica, que se atraem e repelem mutuamente como duas velhas amigas. Pois não é a “tecnicidade da arte que desaloja 88 a arte da sua segurança poética”, isto é, do seu repouso esteticizante? E não é a poética da arte que liberta as artes da prisão da técnica? Por isso Nancy pôde afirmar que “o ‘fim da arte’ é sempre o começo da sua 89 pluralidade”, ao que poderíamos acrescentar que o fim das artes, o seu esgotamento técnico, é sempre o contínuo recomeço da arte. Como nos ensinou Benjamin, todas as artes se inscrevem, para o melhor e para o pior, numa época das técnicas. Voltemos agora a essa sugestiva ideia de uma plasticidade inerente à(s) arte(s) para a pensarmos também fora do domínio estético. Ora, se90 gundo Catherine Malabou, a plasticidade pode hoje ser caracterizada como sintoma conceptual, ou então como esquema operatório que tem vindo a ser utilizado cada vez com maior frequência em diversas áreas do conhecimento, não apenas como metáfora mas também, por exemplo, como modelo interpretativo para o funcionamento dos sistemas sociais, das redes neuronais ou dos modelos biológicos em geral. Mas onde é que se encontra o apelo irrecusável da plasticidade como modelo operativo ou de interpretação? Para Malabou, a essência da plasticidade residirá na sua dupla condição substantiva que designa aquilo que é capaz de dar mas também de receber a forma, ou, para sermos mais precisos, no “duplo movimento, contraditório e portanto indissociável, 91

do surgimento e da aniquilação da forma”, tomando assim lugar num entre-dois onde se joga a própria ideia de criação. Mas Catherine Malabou, na sua leitura de Hegel, avança na definição conceptual de plasticidade ligando-a à subjectividade, dependente como está dos processos de auto-determinação, em que “o universal (a substância) e o particular 92 (a autonomia dos acidentes) se informam mutuamente” segundo prin-

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cípios que se aproximam aos mecanismos puramente plásticos de individuação. Desse modo, subjectividade e acidente estariam intimamente ligados, sendo o processo plástico um jogo entre a forma e a sua meta93

morfose que depende do acidente, daquilo que lhe acontece, mas em que à substância é atribuída a capacidade de auto-determinar as suas mutações, de se expor ao que lhe é exterior sem pôr em causa a sua essência, conjugando resistência e fluidez num mesmo golpe. É, pois, nessa recusa da passividade, nessa ideia de que toda a individualidade constrói e recebe simultaneamente a sua própria forma, que se encontra a operatividade e a presença da plasticidade. O conceito moderno de plasticidade – que oscila entre a sua origem estética, muito ligada às características plásticas da matéria e a sua actualização, mais centrada numa significação biológica, de uma plasticidade da própria vida – continua hoje plenamente actual para compreendermos os mecanismos da prática artística, muito particularmente no campo das artes plásticas. Diríamos mesmo que se quiséssemos encontrar, para o território da arte, um termo capaz de fundir estes dois sentidos da plasticidade, poderíamos apenas fazê-lo na hibridez de uma certa bioestética, mecanismo operativo que explica no quadro da plasticidade a relação da substância com o seu acidente. Regressemos ao terreno da estética, para observar que a ideia de plasticidade, mesmo nesse seu sentido mais lato, é impossível de pensar fora da tal relação problemática entre arte e técnica, até porque, como vimos, o ponto de dissolução da arte é também “o ponto de reafirma95 ção da sua independência plástica”, da pluralidade da sua plasticidade sensível. Mas também porque a modernidade e o trajecto da arte no seu singular nos ensinaram que a prática artística foi desenvolvendo, muito para lá dessa plasticidade sensível, uma outra plasticidade a que poderíamos chamar conceptual, e que é nessa dupla face da plasticidade que se situa o plural singular da arte. Esta tensão entre arte e técnica, entre uma arte das finalidades e uma arte dos meios, recoloca a arte muito para lá da mera opção entre os seus fins e os seus meios, situandoa mais precisamente como lugar de uma intensa experimentação. Que essa experimentação só tenha tomado radicalmente conta da arte na era da técnica – e quantas vezes para lá da própria técnica – só confirma a necessidade de repensar a oposição entre meios e fins. A este propósito, Maria Teresa Cruz lembra-nos que “parecendo-se muitas vezes com um ensaio dos meios, o experimentalismo artístico é, na verdade, um en96 saio de finalidades, isto é, um ensaio de liberdade”, destruindo-se assim esse parentesco linear entre técnica e experimentação. Isto porque,

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seguindo ainda o raciocínio de Maria Teresa Cruz, o laboratório moderno da arte fez da totalidade da vida o seu espaço de experimentação e é, de facto, subjectivo. Essa subjectividade desenha um triângulo que tem como vértices três verbos: poder, querer e fazer; isto é, situa-se no centro das tensões volitivas que fazem a plasticidade tal qual a tentámos esquematicamente definir. E se por vezes a arte, pelo menos do modo como nos habituámos a entendê-la desde a modernidade, aparenta virar as costas à técnica para olhar mais atentamente para essa sua ontologia que é antes de mais uma plástica da liberdade, também é verdade que ciclicamente se vê compelida a retornar à técnica. Hoje, num momento em que os dispositivos técnicos tomam iniludivelmente conta da experiência, assistimos mesmo a uma recuperação dessa relação primordial entre arte e técnica – aquela a que Heiddeger aludia – ao ponto de parecer que as questões estéticas da experimentação e da própria plasticidade se voltam de novo para a técnica. O trabalho mais recente de Pedro Tudela encontra-se exactamente no epicentro desta discussão, sobretudo pela forma como tem vindo a manipular a matéria sonora e no modo como esta adquiriu um papel invasor e central em cada uma das suas intervenções. Sendo já longo este trabalho com o som e o seu cruzamento com outras linguagens, parecenos que só nos últimos anos terá adquirido uma autonomia significativa no território das artes plásticas em que Tudela sempre se moveu. De facto, foi já há mais de dez anos, em 1992, que Pedro Tudela apresentou a sua primeira instalação sonora – na exposição “Mute... Life” –, no que era ainda um mero ambiente sonoro para os objectos que se expunham na galeria, e que com eles convivia de forma relativamente autónoma. Ainda assim, logo em 1993, na peça Take a Walk Inside, apresentada na exposição “Tradición, Vanguarda e Modernidade do Século XX Portugués”, que teve lugar no Auditorio de Galicia, em Santiago de Compostela, Pedro Tudela ensaiou a incorporação do som e dos seus mecanismos de reprodução no próprio trabalho. Contudo, foi caso isolado nesses anos e os princípios de relacionamento entre os objectos e o som revelavam ainda uma hierarquia desequilibrada em favor dos primeiros. A divisão entre o trabalho de autor de Pedro Tudela e o trabalho colaborativo na área do som (nessa época partilhado sobretudo com Pedro Almeida e Alex Fernandes) só reforçava essa nítida separação que marcou as várias experiências que continuaram num registo semelhante durante ainda alguns anos. Foi necessário esperar pela exposição “Rastos”, em 1997, para podermos assistir à objectualização do próprio som, integrado de modo inseparável em algumas das peças que

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se expunham. Os sons tornavam-se assim como que prolongamentos das imagens e dos objectos, funcionando num regime de complementaridade, por vezes um pouco descritiva ou mesmo tautológica. Em diversos ensaios que se seguiram, como, por exemplo, na sua intervenção na Faculdade de Farmácia, no contexto da exposição “A experiência do lugar”, este entendimento objectual do som, numa relação directa com os materiais e os acontecimentos dos lugares, foi-se apurando. As peças passaram a incorporar, literalmente, os altifalantes que debitavam o som e deixou de ser possível tratar estas duas instâncias – o objecto material e o som imaterial – como coisas independentes. Desde aí, o som surge no trabalho de Tudela a maioria das vezes como um sublinhado de uma natureza inicial manipulada, mas quase sempre ligado mais directamente a um objecto ou a um acontecimento, e com frequência impregnado de uma espessura metafórica. Na sua proposta para os espaços do Museu de Serralves, Pedro Tudela avança ainda um passo mais, como veremos, neste processo de exploração da plasticidade do som, tratando-o como matéria autónoma, ela mesma criadora de imagens, objectos e trajectos. É surpreendente o número de artistas plásticos que manipulam hoje a matéria sonora, incorporando-a nos seus projectos, editando CDs, actuando como DJs e VJs, transferindo mesmo a sua actividade principal para esse território que até há bem pouco tempo lhes estava vedado pelas regras da especialização técnica.

“No caso particular da utilização do som, a revolução digital e a consequente generalização das ferramentas de computação operaram uma mudança radical que oscila exactamente entre o esvaziamento técnico e a sua recuperação.”


MENTAL RELEASE, TIAGO CAMPEÃ


Haverá razões para esse movimento que se encontram na cada vez maior aproximação entre as várias artes, ou mesmo nas limitações das artes ditas plásticas, que vão requisitando uma atenção a outras linguagens, mas em boa parte essa opção tornou-se possível porque as competências específicas que autorizam o trabalho com o som foram reduzidas a um grau mínimo – pelo menos para a execução de uma série de operações básicas. Esse movimento tem também o seu reverso, com a aproximação às práticas plásticas da arte de muitos emigrados de outros territórios, que exploram o esvaziamento das competências oficinais que estas tradicionalmente requisitavam. Uma parte destes movimentos fica a dever-se a esse esvaziamento técnico da arte e outra, paradoxalmente, à possibilidade de delegar competências na própria técnica. A introdução de interfaces gráficos que permitem a visualização do som contribuiu em grande medida para que os artistas plásticos (treinados mais especificamente para trabalhar no domínio da visualidade) se sintam em casa ao manipular as waves que vêem nos monitores dos seus computadores. A matéria sonora tornou-se, literalmente, visual e são essas representações gráficas que se esticam, encolhem, cortam ou colam para obter os resultados desejados ou mesmo para experimentar as surpresas nas correlações entre os sons e as suas visualizações. As notações da escrita musical convencional nada têm a ver com esta nova realidade, na medida em que as acções sobre essa escrita só se vêem plenamente realizadas com a acção do músico sobre o instrumento, num processo que obedece sempre aos princípios interpretativos da tradução. Já uma acção sobre a visualização gráfica de um som digital implica um reflexo imediato no próprio som. É a existência de um mesmo código, os zeros e uns da computação, 97 que nos leva a pensar que nesses casos a imagem é o som . Por outro lado, as características do digital, que divide a informação em samples, por oposição à organização contínua da informação analógica (embora seja possível encontrar media analógicos que combinam ambas as soluções como é o caso do cinema), facilmente recombináveis e de simples apropriação, potenciaram os princípios reprodutores que tomaram conta do universo da música electrónica e que os artistas plásticos já tinham incorporado há muito, como o prova toda a história da colagem e da montagem. Como a informação digital não é apenas descontínua mas também quantificada, esse cálculo recombinatório ganha proporções completamente novas, tornando-a especialmente plástica. Mas será que o digital coloca as questões da plasticidade de um modo distinto, ou mesmo mais intenso?

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Há, é certo, elementos específicos da informação digital que a tornam uma matéria plástica, como que respondendo na perfeição a esse golpe mágico que Barthes associa a toda a plasticidade e que permite a conversão da matéria, quase a destituindo de corpo, tornada assim essencialmente o rasto de um movimento. Antes de mais, será nessa abstracção pela concentração absoluta na matéria que se encontram os fundamentos da plasticidade do digital. Porém, isso não se faz sem algumas contradições. Segundo Lev Manovich, há cinco princípios que regem os media digitais (ou numéricos, como ele prefere): a representação numérica, a mo98

dularidade, a automação, a variabilidade e a transcodificação. A representação numérica e a transcodificação foram princípios já convocados quando nos referimos ao som digital, suas visualizações e recombinatórias e a variabilidade é também, como vimos, essencial para que possamos falar de uma plasticidade do digital. Já o princípio da modularidade parece colidir com a ideia de plasticidade. Catherine Malabou afirma que “é plástico aquilo que não é modular”, na medida em que a modularidade pressupõe uma arquitectura fixa, 99 afastando-a assim da plasticidade, por exemplo, do pensamento. Por outro lado, as recentes teorias do caos ensinam-nos que a fractalidade também implica um determinado grau de modularidade, só que estruturada exponencialmente e da qual depende a sua variabilidade. Ainda assim, a modularidade, pela descontinuidade que implica, parece romper com a ideia de uma matéria que é capaz de se transformar resistindo, num mesmo movimento de sentido contrário, à sua deformação infinita. Também as ideias de programação e de anulação de uma intencionalidade que estão subjacentes à automação vêm contrariar os princípios volitivos e experimentais que ligámos ao conceito de plasticidade. Contudo, e num novo movimento contraditório, é também esta indiferença em relação ao que de mais humano tem o gesto que permite uma plasticidade em que se delega na máquina, com maior ou menor grau de competência, a decisão experimental. Com o digital, a experimentação passa muitas vezes por deixar a própria máquina experimentar. Esses princípios de contingência e variabilidade do digital são precisamente aquilo que de mais intenso o trabalho de Pedro Tudela partilha com o território da chamada música electrónica, distinguindo-se depois pela atenção à referida objectualização dos sons, umas vezes em maior proximidade com a escultura, outras ainda com modos de funcionamento que evocam uma espacialidade mais plana. Contudo, nesta instalação, intitulada muito simplesmente Sobre, surgem alguns aspectos diferen-

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tes, até porque o som já não habita apenas os objectos ou ocupa estaticamente um espaço, operando antes no campo de uma espacialidade alargada. Os sons tomam efectivamente conta dos nossos trajectos, destruindo em boa medida o carácter descritivo que alguns deles, mesmo manipulados, ainda poderiam transmitir. A exposição, apesar de apresentar um conjunto de peças autonomizáveis, só pode ser entendida como um todo que se percorre, como um alinhamento de trajectos que cada trabalho individual se limita a pontuar. Se desenharmos um esquema que se destaque da planta das salas em que as diversas peças se encaixam, mas mantendo ainda as suas posições relativas, poderemos entender melhor esta construção de um espaço que se oferece ao movimento do nosso corpo. No átrio de entrada encontramos uma teia de cabos de aço que decalca a estrutura da clarabóia do edifício. Os sons (e) que os altifalantes aí suspensos emitem são já o resultado de um reflexo de todos os outros sons que ainda não ouvimos. De facto, o som (e) surge da remistura de (a+b+c+d+e’), dando-nos a ouvir antecipadamente uma versão alterada daquilo que os nossos movimentos ao longo da instalação nos irão oferecer dentro em pouco. O nosso olhar é, entretanto, conduzido por alguns outros cabos de aço até uma janela que se debruça sobre as escadas que dão acesso ao bar do auditório. Essas linhas parecem projectar no plano da janela o próprio som e no vidro colocado nessa abertura encontram-se mesmo dois altifalantes, um virado para o interior e outro para quem se encontra no átrio, que reproduzem por sua vez um som (e’) que é já resultado de um duplo reflexo (eco) com origem na remistura do outro som a que chamámos (e). Com efeito, o som (e) deveria chamar-se (e’’) e o som (e’) poderia tomar também a designação de (e’’’) e assim indefinidamente, isto porque em teoria, e se fosse possível levar ao limite esta reflexividade entre os sons, estes comportar-se-iam como as imagens de dois espelhos colocados frente a frente, espelhando-se mutuamente até à sua própria dissolução. Nas salas interiores, onde se desenvolve o resto da intervenção de Pedro Tudela, temos quatro momentos sonoros – e ainda mais o som designado aqui por (e’) – que pontuam o trajecto do visitante. Os sons (a), (b) e (c) são manipulações e remisturas de captações e apropriações várias, algumas delas nos espaços do Museu; e o som (d) é mero ruído de estática, espécie de resíduo primordial da própria matéria sonora. Todos estes sons reenviam uns para os outros, construindo um trajecto interno, num modelo de auto-referencialidade que é apanágio de todos os sistemas, cuja construção “assenta sobre a sua capacidade de

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‘dialogarem consigo próprios”.

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Mas há também uma série de trajec-

tos externos, menos estáticos, e que dependem de cada visitante e do modo como ele estabelece os seus mapas, extensivos e intensivos, no relacionamento com os sons, as imagens, os objectos e a sua disposição nos espaços. Em cada momento do nosso trajecto os sons recombinam-se em diversas camadas, mais próximas ou mais distantes, mais nítidas ou já em dissolução. Esta contaminação física entre os sons nega qualquer ideia de pureza e autonomia às diferentes peças da exposição. Curiosamente, depois de um primeiro ensaio que estabelece um decalque do espaço em que as peças se encontram instaladas (estamos a pensar na teia de cabos do átrio), é mais um entendimento cartográfico do modo como as diversas partes se relacionam entre si, com o local e 101 com os visitantes, que se acaba por impor. É por isso que aqui a plasticidade de que temos vindo a falar não se esgota na constante manipulação e variabilidade das partes face a um todo que mantém uma certa unidade, mas se prolonga também para os trajectos que lhe são exteriores e que ajudam a construir o corpo desta intervenção tanto quanto os seus trajectos de auto-referencialidade. Em jeito de conclusão e aproveitando o mote dado pelo próprio Pedro Tudela, podemos agora observar mais atentamente a intervenção que ocupa as duas salas do fundo nesta exposição. Chegados à penúltima sala, vemos uma projecção vídeo que preenche toda uma parede, encenando a explosão destrutiva de um plano. Trata-se de uma sequência de imagens em câmara lenta acompanhadas pelos sons (c), descritivos, mas sem um acerto com as imagens, de explosões e vidros quebrados. A abertura que permitiria aceder à última sala encontra-se barrada por um vidro perfurado que deixa ouvir esses outros sons de estática (d) a que já nos referimos. Através do vidro, podemos ver o interior da sala e os despojos da explosão que aí se encontram. Perante esta encenação adivinhamos que o objecto da destruição será uma das paredes escondidas do nosso olhar, devido ao ângulo morto de observação. A opção pelo uso da câmara lenta no vídeo reforça algumas das ideias ligadas à plasticidade que temos vindo a analisar. Com efeito, a imagem em movimento do cinema ou do vídeo, trabalhando no quadro da plasticidade, do seu distanciamento e abstracção face ao real, não deixa de revelar uma intensa dependência óptica do mundo, necessitando por isso de encontrar o seu elemento de variabilidade plástica para dar a ver a espessura da sua própria matéria. E qual é a matéria infinitamente variável do cinema e do vídeo senão o próprio tempo? Como nos lembra Dominique Païni, é o tempo que a imagem em movimento

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manipula a seu bel-prazer. O tempo é moldado de modo particular na montagem, mas é sobretudo nessa operação a que chamamos câmara lenta que podemos encontrar uma das formas mais intensas de dar a ver, nas artes da imagem em movimento, a viscosidade do material. Com a câmara lenta a plasticidade do tempo ganha espessura sensível e os fotogramas tomam uma visibilidade inesperada, o que permite a Païni concluir que com a câmara lenta encontramos uma espécie de consciência plástica do desenrolar das imagens cinematográficas, tornando o 102 próprio tempo numa matéria plástica. Estas últimas salas reforçam, pois, a ideia de que um processo subtractivo pode gerar coisas novas e que para que a matéria evidencie a sua plasticidade é preciso antes de mais dar-lhe espessura. Tal como no vídeo, também no som da última sala somos confrontados com a viscosidade do material. O som que aí se ouve é pura estática, matéria residual ou então o seu estado antes mesmo da modelação. É ainda a parte escondida do som, o fantasma que o assombra e que pode ser originado apenas pelas fugas e imperfeições do processo. Trata-se de uma estética do resíduo que acaba por presidir a boa parte da plasticidade que o digital veio potenciar e que a intervenção destas salas sublinha, revelando a exposição da matéria ao acidente e à contingência, a sua abertura àquilo que lhe acontece. •

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86. Ver Nancy, Jean-Luc, Les Muses, Paris, Galilée, 1994. 87. Ver Heiddeger, Martin, “The Question Concerning Technology” (Die Frage nach der Technik) in The Question Concerning Technology and Other Essays, Nova Iorque, Harper & Row, 1977 88. Ibid., p. 34. 89. Nancy, Jean-Luc, op. cit., p. 66. 90. Ibid. 91. Malabou, Catherine, “Le voue de Plasticité”, in Plasticité, Paris, Léo Scheer, 2000. Ver também o seu livro L’Avenir de Hegel – Plasticité, Temporalité, Dialectique, Paris, Vrin, 1996. 92. Malabou, Catherine, “Le voue de Plasticité”, p. 8.

93. Malabou, Catherine, L’Avenir de Hegel – Plasticité, Temporalité, Dialectique, p. 25. 94. Ibid., pp. 9-10. 95. Nancy, Jean-Luc, op. cit., p. 77. 96. Cruz, Teresa, “Arte e experimentação Tecnociência e os laboratórios da arte”, in A Experiência do Lugar, Porto, Porto 2001, 2001, p. 36. 97. Ver, para uma introdução a estas questões, Abreu, Rui Miguel, “Samplar = a pintar o som”, Número, n.º 4, Lisboa, Ópio – Arte e Cultura, Inverno de 1999, pp. 52-57. 98. Ver Manovich, Lev, The Language of New Media, Cambridge, MIT Press, 2000, pp. 27-48.

99. Ver Malabou, Catherine, “Le voue de Plasticité”, pp.13-14. 100. Malabou, Catherine, “Le voue de Plasticité”, p. 21. 101. Cf. Deleuze, Gilles, “O que nos dizem as crianças”, in Crítica e Clínica, Lisboa, Século XXI, 2000, pp. 87-95 (1993). 102. Para esta questão da plasticidade do cinema face ao ralenti que coloca a sua matéria “entre solidificação e liquefacção”, ver o texto “Ralentir”, de Dominique Païni, incluído no já citado volume Plasticité, dirigido por Catherine Malabou (pp.188-193).


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MODINHAS

RESSABIATOR MÁRIO MOURA 2010

É costume dizer-se que o design gráfico é uma actividade interdisciplinar, mas o que quer isso dizer realmente? Que está aberto a todo o tipo de conhecimentos ou experiências? Esta não é uma resposta particularmente interessante ou esclarecedora, na medida em que dá a entender que o design aceita tudo e todos de braços abertos, enquanto, na verdade, seria talvez mais rigoroso afirmar que escolhe bem os seus aliados, pesando bem o que pode ficar a ganhar com a ligação. Algumas disciplinas são bem-vindas enquanto outras nem por isso – ninguém gosta de ouvir dizer que aquilo que faz tem pontos comuns com o secretariado, por exemplo, mas toda a gente gosta de se associar ao cinema, à fotografia ou à literatura. De qualquer modo, quando o design gráfico se aproxima de outras disciplinas não se pode dizer que se trate de uma escolha consciente mas – correndo o risco de personificar demasiado – de uma atracção à primeira vista, que no primeiro momento parece tão inevitável e absolutamente necessária que muitas vezes só é racionalizada quando as coisas correm mal.

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Por exemplo, houve uma altura em que a fotografia parecia ser aquela “coisa”. Ai do designer que não tivesse a sua máquina ou que não passasse a sua quota parte de tempo na câmara escura. A paixão era tanta que transbordava para o discurso teórico, tornando a fotografia numa analogia universal, uma maneira de falar sobre tudo. Chegou a proporse uma fusão definitiva entre as duas disciplinas, quando Moholy-Nagy, por exemplo, começou a chamar Typophoto ao design. Esta ligação, enquanto durou, pareceu inevitável, necessária, mas foi sustentada em parte por questões tecnológicas, em particular a ideia de fotocomposição, mesmo antes desta ser uma realidade prática. Graças a ela, era possível conceber uma página de forma orgânica sem ser preciso separá-la entre texto e imagem, tal como acontecia com a impressão com tipos de chumbo, onde cada caracter e cada imagem correspondiam a um objecto físico isolado. Com a fotocomposição a página tornava-se num todo. No entanto, a fotocomposição seria ultrapassada pela composição digital e, com o computador pessoal, o exercício do design modificarse-ia dramaticamente, levando a novas alianças interdisciplinares. Traria a ideia do designer como programador, toda a questão dos Novos Media, desde a programação pura e dura até ao VJing. Traria também a ligação entre o design e a música, que iria criar todo um batalhão de designers-DJs ou de músicos mais ou menos experimentais. Há cerca de dez, quinze anos atrás, tudo isto parecia ser o futuro, “a” tendência, mas rápida – e ironicamente – os Novos Media se tornariam datados. Neste momento, todas estas tendências sobrevivem enquanto géneros mais ou menos desenvolvidos dentro da área disciplinar do design, mas a sua filosofia já não é central à sua prática e teoria. Uma das novas atracções do design é a edição independente, descendente próximo da ideia do Designer como Autor, muito em voga no final dos anos 90, mas que, hoje em dia, já parece embaraçosa. Pode-se apreciar a vitalidade actual da edição através do número de mestrados, workshops, exposições e teses dedicadas ao assunto, para não falar das próprias edições e editoras que se multiplicam como coelhos. Talvez se possa argumentar que sempre houve auto-edição ligada ao design, mas não com esta intensidade e escala; basta uma olhadela aos materiais expostos na exposição Kiosk, de Christoph Keller, por exemplo, para nos apercebermos disso. Naturalmente, especulando que existe aqui um padrão, que dentro do design há uma série de tendências que assumem temporariamente o papel de uma vanguarda para depois perderem o seu protagonismo, integrando-se mais ou menos como géneros dentro do corpo da discipli-

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na, podemos antecipar que a edição independente irá perder em breve muita da sua intensidade e protagonismo – que no fim de contas é uma moda. Esta é uma palavra que os designers estranhamente não gostam muito de ouvir. Dizer que algo é uma moda implica uma mania fútil e inconsequente, mas dentro de uma actividade como o design, onde é particularmente importante estar em sintonia com os tempos, não parece uma acusação particularmente justa ou mesmo pertinente. Não me parece que uma coisa seja menos perene ou importante por se tratar de uma moda – de certo modo, a história do design gráfico pode ser lida como apenas um registo de modas e tendências ao longo dos tempos. Mas, apesar da contradição evidente, o termo é usado frequentemente para diminuir pessoas, estilos ou objectos. Pode ser uma maneira de tentar apressar qualquer coisa, no fundo uma maneira de desejar que passe depressa. Isso é bem visível na maneira como Paula Scher, numa entrevista recente (também comentada no Reactor), assume que a ética dentro do design é uma espécie de moda mais ou menos ingénua, mais ou menos nefasta, que seria bom ultrapassar, regressando a uma ética baseada essencialmente em valores económicos (Scher defende que se uma empresa gerar emprego já é socialmente responsável quanto baste). Seria mais realista admitir que existem dentro do design inclinações éticas muito distintas, mesmo antagónicas, que assumem em momentos diferentes o protagonismo. Não se pode dizer que a ética empresarial defendida por Paula Scher seja mais ou menos integral à identidade do design gráfico enquanto disciplina do que a ética defendida no manifesto First Things First, mas a ética em si mesma não é uma moda.•

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