OLHOS DA TERRA ANNE CAROLINE GONÇALVES
OLHOS DA TERRA ANNE CAROLINE GONÇALVES
Copyright © 2017 by Anne Caroline Gonçalves Livro-reportagem apresentado como trabalho de conclusão de curso, uma exigência do Centro de Comunicação e Letras (CCL), para a obtenção do título de bacharel em Jornalismo, da Universidade Presbiteriana Mackenzie Orientação acadêmica Prof. Dr. Rafael Santos Capa, fotos e diagramação Anne Caroline Gonçalves e Bruno Leão
Gonçalves, Anne Caroline Olhos da terra : livro-reportagem / Anne Caroline Gonçalves. – São Paulo : Edição do autor, 2017.
2017 Todos os direitos reservados à Anne Caroline Gonçalves
Dedico cada uma dessas histórias à minha mãe, que em sua luta diária, me ensinou a força das palavras. Agradeço também a cada uma dessas mulheres incríveis, que me permitiram partilhar de suas vidas. E ao Bruno, por acreditar em mim e trilhar este caminho ao meu lado.
Há um momento em que todos os obstáculos são derrubados, todos os conflitos se apartam e à pessoa ocorrem coisas que não tinha sonhado, e então não há na vida nada melhor que escrever. Gabriel García Márquez
Um mundo pelas m찾os Vila dos sinos Frutos da mem처ria M찾e Maria Hist처rias de barro Uma vida em poesia Retratos
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Prefácio
De muitas maneiras, a trajetória do Nordeste se mistura com a história do Brasil. Traços indígenas, africanos e europeus estão presentes na identidade da região e, também, na maneira como enxergamos a cultura do nosso país. Essas particularidades estão sutilmente inseridas em nosso cotidiano e se refletem em como vemos a nós mesmos. Seja pela música, pela literatura ou pela culinária, o Nordeste foi ganhando espaço na cultura nacional e, assim, passou a habitar o imaginário coletivo. Nascia a ideia de um território devastado pela seca, onde o tempo parece não avançar. Surgia um espaço rico em atividades manuais, com casinhas pequenas de lajota; um lugar no qual a agricultura familiar e a criação de animais parecem ser a única fonte de trabalho. Quando paramos para pensar um pouco sobre a região, são esses os elementos que gritam em nossa mente. O rosto de seus habitantes parece fugir, assim como suas histórias e singularidades. Esquecemos os pequenos detalhes cotidianos, que são ao mesmo
tempo tão diferentes e parecidos dos nossos. Apagamos as cores e a vida que reside naquele lugar. É preciso falar sobre o Nordeste. Enxergá-lo com os olhos de quem vive sua realidade todos os dias. Neste livro, convido você a conhecer o Agreste nordestino, região que fica entre a beleza natural e exuberante da Zona da Mata e a seca que invade o Sertão. Os perfis que você irá encontrar nas próximas páginas trazem as memórias de seis mulheres diferentes. Cada uma carrega sua própria história, suas dores e alegrias. Com suas mãos, criam mundos diferentes, vivendo por meio do dia a dia a cultura local. A região, sempre pensada por meio de figuras como os vaqueiros e fazendeiros, é retratada aqui sob o olhar das criadoras de tradições. É no cotidiano dessas mulheres, que cuidam de si e dos outros, que nasce um Agreste pernambucano cheio de vida, cheio de realidade. Nascem as tradições locais e, também, a vida. Mães da terra, dos segredos e das artes. Mães da sua própria cultura.
Um mundo pelas mãos
Um corpo pequeno e delicado é carregado por duas mãos rechonchudas, seguro entre dedos curtos e roliços. Os olhos abrem aos poucos, acostumando-se com a luz; cores e formas confusas tomam sua visão e o choro rompe por todo o ambiente. É assim que começa a vida e, aqui, tem início a nossa história. 15
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O rosto largo de Cícera Maria da Silva já viu mais de mil recém-nascidos chegarem ao mundo. Mãe Tita, como é conhecida em sua vizinhança, dedicou mais da metade de seus 69 anos ao ofício que recebeu como herança de família: ajudar mulheres a dar à luz. A avó de Cícera, Ludovina, encontrou em si este mesmo dom. A família não se lembra bem como aconteceu, mas a senhorinha aprendeu a ocupação observando as antigas parteiras. Estreou com um parto ou dois e, de um dia para o outro, pessoas passaram a bater na porta de sua casa. Moradora do Quilombo de Pé-de-Serra dos Mendes, em Agrestina, começou a realizar os partos de toda a região. Até os senhores de engenho, que moravam atrás das serras onde sua casinha de taipa havia sido construída, procuravam por ela. Ludovina teve duas filhas, ambas batizadas de Maria, nome da mãe de Deus. Maria Delfina seguiu o legado da mãe, enquanto Maria José, mãe de Cícera, dedicou sua vida ao roçado, plantando feijão, milho e macaxeira. Foi com a tia que Cícera descobriu sua vocação, já aos 32 anos de idade. Na época, Delfina estava doente, com muita dor nas costas, e não pode realizar o parto de sua neta. — Ela me chamou e disse: “Ciça, vai fazer o parto dela que eu já não posso mais.” Cícera trabalhava na Unidade de Saúde da Família, 16
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único posto de atendimento presente na comunidade. Cuidava da vacinação das crianças, media a pressão dos pacientes e fazia curativos. Sem nunca ter participado de um procedimento semelhante antes, em um impulso, pegou tesouras, pinças e o que mais pode se lembrar, levando do serviço para casa. Quando chegou, ela encontrou a tia sentada na beira da cama, com as costas curvadas feito uma montanha. Delfina, então, lhe disse: — O minha filha, sente aqui que eu vou lhe ensinar. Ao perceber que a criança estava perto de nascer, Cícera sentiu o coração acelerar e as mãos parecem mais pesadas do que nunca. Sentou-se ao lado da tia e esperou as coordenadas. — Olha, o menino já vem, pega esse pano e apara aqui. — E ele não cai? – Ao se aproximar, a sobrinha notou a cabeça da criança dando os primeiros sinais de que estava prestes a chegar ao mundo, sentindo-se aterrorizada. – Olha praqui, está nascendo! — Não cai não, é assim mesmo, Ciça. Pega o cordão e passa aqui no álcool. – Disse Delfina, referindo-se ao cordão umbilical. Cícera, então, pegou o cordão com toda a rapidez que pode. Seus dedos trêmulos o higienizaram, para que a criança não pegasse nenhum tipo de infecção, 17
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assim como a tia havia lhe explicado. — Você meça a criança dois dedos e amarre o cordão para não sangrar. Depois corte e pronto. – Quando ouviu essas instruções, o medo voltou a lhe abater. Cícera pensava que ao cortar o cordão poderia doer no bebê, machucando-o. Sem ter muito tempo para pensar, ela apenas fez o que a tia lhe indicou. Pronto, o corte estava feito. Delfina levantou-se de súbito e pegou uma cinta, pedindo para que Cícera a banhasse em um pouco de iodo e atasse à criança, no local em que se encontrava o cordão umbilical. Ela obedeceu. Em um ímpeto, tudo havia acabado. O medo lhe escapara, deixando no peito apenas a tranquilidade que o tempo traz às memórias mais agitadas. Assim como a avó, Cícera tomou gosto por partejar, tornando-se conhecida em sua comunidade por cuidar dos recém-nascidos. Uma manhã, enquanto se arrumava para trabalhar no posto de saúde, ouviu baterem à porta de sua casa. Acostumada a ser chamada para cuidar de algum parto nas horas mais improváveis, foi em direção a entrada, arrastando um pé atrás do outro. Ajeitou os óculos de lentes fundas em seu nariz gorducho e abriu a fechadura. A visitante se apresentou como Suely Carvalho, coordenadora da Rede Nacional de Parteiras Tradicionais e fundadora da ONG CAIS do Parto. Com 18
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o apoio da Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco, a Rede Nacional realizava encontros entre as parteiras do país. Suely era a responsável por coordenar os eventos, além de organizar o levantamento e cadastramento das parteiras, incentivando os governos municipais a auxiliá-las e incluí-las em procedimentos hospitalares. Junto de sua ONG, ela também se encarregava por ensinar métodos naturais e tradicionais a essas mulheres. Cícera piscou os olhos algumas vezes para a visitante, enquanto a mulher lhe perguntava se era ela quem tinha cuidando dos nascimentos da região. Mesmo com receio, ela admitiu seu novo ofício e se justificou, dizendo que queria apenas ajudar. Para a sua surpresa, Suely sorriu e, em seguida, a convidou para participar do curso que iria iniciar. — Passei duas semanas em Caruaru, no Hotel Centenário. Seguimos para a Fazenda Nova, que fica ali perto, e depois fomos para o Recife e Olinda... também viajamos para o Amapá, e lá demorou mais porque é longe, né. Foi quase um mês, deixei tudo para trás e fui aprender. As aulas eram ministradas por médicos, índias e parteiras experientes, que sabiam utilizar plantas e outros recursos naturais para ajudar as mães e as crianças. Uma das lembranças mais marcantes é de quando 19
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lhe ensinaram a maneira correta de cuidar do bebê em casos de emergência. Ao explicar o procedimento, lentamente suas pernas deixam de balançar para frente e para trás. O tom de voz abaixa e um som suave sai de sua boca, cantado em sotaque regional. — Se não der tempo de levar para a maternidade, a primeira coisa é pegar o bebê pelos pezinhos. – Explicou ela, unindo o polegar da mão esquerda com o indicador para mostrar a forma correta de segurar os tornozelos da criança. — Aí a gente vê se tem como puxar os braços, estendendo eles com os pés. Quando chega no pescoço é mais difícil, tem que colocar uma luva na mão, procurar a boca e segurar ali para ajudar o bebê. Mesmo conhecendo o procedimento, Cícera sorri aliviada por nunca ter sido necessário usá-lo com alguma de suas pacientes. Já do tempo que passou na capital do Amapá, guardou o uso medicinal de algumas plantas bem conhecidas, como a erva-cidreira. Em seu convívio com as índias, aprendeu que o chá desta folha pode ser usado para banhar a barriga da gestante, quando ela estiver com sete ou oito meses de gravidez. Isso irá ajudar a criança a se deslocar para o lugar certo na hora do parto. Mas, o que considera mais importante na hora de trazer uma criança ao mundo é algo simples, que guarda em segredo: suas orações. 20
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O nome escolhido pela mãe parece ter lhe aproximado ainda mais de sua fé. Ao entrar na casa de Cícera e olhar para a parede próxima da janela, os olhos encontram uma estátua de gesso pálida, com um chapéu preto na cabeça, representando sua intimidade com Padre Cícero. Na estante de marfim, junto da televisão e das fotos de família, duas imagens pequenas de Nossa Senhora Aparecida, rodeadas por terços de tamanhos e cores diferentes, também se destacam. Assim como o dom de partejar, as orações foram passadas de geração em geração pela família de Cícera. Ela costuma sussurra-las ao lado das pacientes, para protegê-las durante o parto e para ajudar a criança a nascer mais rápido. — Uma parteira amiga minha, quando ficou doente, me chamou na sua casa e me deu uma oração. É para quando a pessoa que vai ganhar nenê está sofrendo, aí você coloca no pescoço dela um papel com a prece e vai dizendo as palavras, para Jesus e a Nossa Senhora do Bom Parto ajudar. Com uma risada gostosa, Cícera diz que não pode falar em voz alta suas orações. Afinal, na sala em que conversamos não há nenhuma criança para nascer e as palavras carregam um peso sagrado, compartilhado por aquelas que trazem outros tantos à vida. Mas, ela garante: está tudo guardado na sua cabeça, enraizado em seu cocão velho. 21
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Todo o apreço que Cícera nutre pelo parto natural a fez imaginar como seria quando ela fosse dar à luz. Seu sonho era pegar o próprio filho no colo, descobrir em seu corpo as sensações que via nas pacientes. O destino, porém, reservava algo diferente. Seus dois meninos vieram ao mundo de cesárea. Seja por escolha da paciente ou não, este procedimento é mais comum do que parece. De acordo com dados do Ministério da Saúde, 55% dos partos realizados de 2015 para cá foram cesarianas, enquanto apenas 44% ocorreram de forma natural. No sistema público de saúde o cenário parece se inverter. O número de pacientes que são direcionadas ao parto normal é de 59%, ultrapassando os casos de cesárea. Quando Cícera chegou a maternidade pela primeira vez, estava com 33 anos e logo descobriu que vivia uma gravidez de risco. A enfermeira lhe deu um coquetel hormonal na esperança de ajudar a criança a sair normalmente, mas não teve jeito. Logo o médico entrou na sala e notou: nem mesmo a força descomunal que aquele corpo volumoso exalava seria suficiente. Cícera foi encaminhada para o anestesista e preparada para uma cesariana. Depois que a dor e o susto passaram, veio a felicidade. Ela finalmente segurava em seus braços o menino pequeno e frágil que havia acabado de chegar ao mundo. Seu nome seria Anselmo, assim como o avô 22
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por parte de mãe. Cinco anos mais tarde, chegava o seu segundo filho. Dessa vez, Cícera estava preparada e o receio era menor. Sentia que, independente do que acontecesse, daria tudo certo. Após outra cesárea, veio Adelmo, batizado assim por escolha da madrinha. O tempo fez sua passagem de maneira suave na vida da família. Os filhos, hoje com 34 e 29 anos, se mudaram para Caruaru, onde fizeram suas vidas. Casados, visitam a mãe aos finais de semana, quando almoçam todos juntos, aproveitando a companhia um do outro. A casinha de telha e tijolo em que moravam de baixo do pé de seriguela se mudou para a frente do terreno e esticou, ganhando uma sala de paredes esverdeadas, três quartos e um espaço para uma mesa de seis cadeiras, grande o suficiente para abrigar toda a família. Juntos há 36 anos, Cícera e Manoel compraram o terreno logo que se casaram, prontos para construir um futuro juntos. Os dois se conheceram quando eram crianças, mas não se deram tão bem assim. A primeira vez em que Cícera notou o menino, estava indo buscar milho na plantação da mãe. Ficava em um terreno comunitário mais ao fim da rua. Ela ia sem pressa, com a inchada apoiada nas costas, quando o notou em cima da porteira. Educadamente, pediu para que ele saísse e desse 23
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passagem, mas Manoel apenas a encarou e permaneceu calado. Ela, já sem paciência, empurrou as portinhas de madeira com força, derrubando-o no chão. — Ele correu para casa chorando. Mais tarde, quando eu estava voltando, passei bem longe para fugir dos pais dele. – Lembra ela, olhando de canto para o marido sentado na soleira da porta. E assim seguiu a infância dos dois: um evitando o outro. Ela, com medo que os pais descobrissem a peripécia que aprontara; ele, pelo receio de ser empurrado novamente. Foi necessário que Cícera partisse para o Recife, onde morou e trabalhou na casa de uma família por 11 anos, e retornasse, para que se acertassem. Hoje, os dois dão risada quando se lembram da situação e agradecem a Deus que encontraram um ao outro mais uma vez. A antiga árvore cheia de seriguelas permanece ao fundo do terreno, mas não se encontra só. Agora que estão aposentados, aproveitaram o espaço para plantar feijão de corda e macaxeira, além de levantarem uma casinha para seus quatro cachorros de baixo dos ramos cheios de fruta, onde tudo começou. Ainda hoje, estima-se que existam mais de 60 mil parteiras em atuação no Brasil, localizadas, principalmente, nas regiões Norte e Nordeste. O estado de Pernambuco, onde Cícera morou a vida inteira, apresenta 972 parteiras cadastradas no sistema do gover24
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no. Dentre essas mulheres, 853 realizam procedimentos em casa, com métodos tradicionais. Mesmo assim, de acordo com o Ministério da Saúde, é muito difícil saber quantas parteiras realmente existem por aí, pois muitas não estão registradas nas secretarias estaduais e municipais. Algumas, inclusive, não exercem mais o ofício por conta da idade ou por escolha própria. Única parteira que continua em exercício na região em que mora, Cícera garante: — Pode me procurar de dia ou de noite, a hora que vier eu saio e vou levar na maternidade. Lá, faço as minhas orações, converso e fico alisando a barriguinha... tudo o que minhas pacientes precisarem eu faço. Quem está aqui é Cícera, quem gosta de socorrer as pessoas sou eu. Essa é a minha atividade.
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Vila dos sinos
Os primeiros raios de sol atravessam aos poucos as telhas sem forro da casa amarela. No quintal dos fundos, os galos ainda cantavam quando Quitéria Barbosa e seu marido, José Arnaldo, se levantaram da cama. Ela arrastou o corpo cansado em direção à cozinha, um espaço apertado atrás dos quartos, e come26
çou a preparar a mamadeira de seu neto, Kaio. Enquanto isso, José se encaminhou à lateral do quintal, passando por uma pia abarrotada de louças no fundo da casa, para ajeitar o forno e o carvão, dando início ao trabalho. Todos os dias a família segue essa mesma rotina. Acordam às 05h da manhã, horário em que a filha Luanna e seu marido, Ricardo, saem para trabalhar. Juntos da pequena criança de dois anos, os quatro ocupam os cômodos com móveis de madeira surrados e empilhados lado a lado, além das cadeiras amontoadas de roupas. Quitéria cuida do neto, prepara o almoço, arruma a casa e se encarrega de cuidar das galinhas. É só quando termina os afazeres e Kaio está dormindo que ela, enfim, se junta ao marido na produção dos chocalhos. A pequena Vila de Santa Teresa, onde ela mora desde que se casou com Zé, é a fonte dos apetrechos. Casinhas coloridas, com cadeiras de balanço na frente, rodeadas por árvores com CDs pendurados, abrigam famílias que aprenderam a arte secular com seus antepassados. Maior produtora de chocalhos do Brasil, a pequena comunidade, localizada em Agrestina, tem ajudado a economia local ao produzir os objetos para todas as regiões do país. Famosa pelo pequeno guizo, a cidade recebeu o nome de Terra dos Chocalhos e passou a 27
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usá-lo em eventos culturais, reafirmando essa identidade. Os sinos dourados têm um aspecto enferrujado e brilhoso, com um badalo no meio. Desde a Idade Média, objetos semelhantes são produzidos e colocados no pescoço dos animais para afastar predadores. Além de cumprir essa função, o som dos chocalhos permite que o fazendeiro encontre facilmente todos os membros do rebanho. Não se sabe ao certo como e quando a produção desse objeto começou em Pernambuco, mas a prática foi passando de pai para filho como um símbolo de honra e orgulho. Com o tempo, estabeleceu suas raízes em Santa Teresa, na zona rural da cidade de Agrestina, tornando-se uma espécie de saber local. Ali, quase todos os cento e cinquenta moradores, divididos em aproximadamente dezesseis núcleos familiares, vivem dessa atividade. O ofício é extremamente braçal, demandando força, paciência e tempo. No quintal de fundo das casas, entre as placas de latão e os enormes fornos colados nas paredes, quase sempre se encontram homens trabalhando. As senhoras ficam incumbidas dos cuidados com o lar e a família. Talvez seja por isso que, em toda a vila, apenas cinco mulheres participam das etapas de fabricação do chocalho. Quatro delas entram em cena somente no final da montagem, colocando o travão 28
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para controlar a sonoridade. A única presente durante todo o processo é Quitéria. Filha de um casal de agricultores, a mulher de cabelos negros, rosto queimado de sol e dentes amarelos, sempre esteve envolvida com o trabalho manufatureiro. Nasceu em Barra do Chata, também em Agrestina, onde aprendeu com as tias a tecer redes de dormir e de pescar. Foi aos 11 anos que Quitéria conheceu José Arnaldo. Ela estava no caminho para a igreja, em uma noite de finados, quando viu o garoto espichado que viria a se tornar seu marido. Logo, os dois começaram a namorar e, cinco anos depois, oficializaram a união, se mudando para uma pequena residência na vila em que o esposo nasceu. Zé deixava seu nome de batismo de lado para receber um apelido carinhoso, que apenas ela parece conhecer. Assim, nascia nele o Deca. Em troca, ele a ensinou o trabalho com chocalhos, arte que dominava desde criança. Enquanto Quitéria cuida dos afazeres em casa, Deca começa a dar forma aos sinos. Os toneis de lata, a argila, o carvão e os pedaços de zíper usados na produção encontram-se estocados no canto do quintal, ao lado da fornalha. O material é comprado em Caruaru, sendo levado e distribuído para todo o povoado. Cada quilo de lata sai por R$ 1,00. O primeiro passo é colocar as tampas do tonel 29
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no chão para recortá-las. Em seguida, Zé se agacha, curva a coluna e abaixa a cabeça, assumindo posição semelhante à de uma ave. Com um cinzel arcaico e enferrujado, vai determinando onde martelar, formando figuras triangulares no final do processo. A cena se repete diversas vezes, de maneira automática, só parando quando não há mais tampas para cortar. São por volta de sete horas da manhã quando Zé Arnaldo acende a fornalha pela primeira vez. As tiras de metal são levadas ao fogo para que o material solte a tinta e fique maleável. Dessa vez com a bigorna à sua frente, ele se agacha novamente. Os pedaços de lata, agora com um aspecto acinzentado, são martelados até que se fechem em uma espécie de caixinha, semelhante ao formato de um sino. Zé continua nessa atividade por horas a fio, parando apenas para almoçar. Já Quitéria, segue cuidando do neto. Seus olhos brilham enquanto segura a criança em seu colo e o tempo parece algo distante, quase imperceptível. — Minha filha vive dizendo para mim: “a senhora se entretém com o Kaio e esquece da casa.” Pois eu digo que não estou nem aí. Eu brinco com ele e faço uma coisa. Paro, dou um chamego e faço outra. – Ela conta e beija as bochechas do garoto, fazendo com que ele aperte seus olhos puxados. As tarefas caseiras continuam até o pôr do sol, quando Luanna e o marido retornam para casa, pron30
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tos para jantar com a família. Entre conversas amenas, servem-se de fava, cuscuz e feijão. Algumas vezes Lucas, o filho mais novo de Quitéria e Zé, também aparece junto de sua esposa. À medida que a família vai se retirando para dormir, o verdadeiro trabalho começa. Quase dez quilos de carvão são colocados na fornalha, retomando a montagem do ponto em que paramos. — De dia ninguém aguenta de quentura, por isso a gente só bota os chocalhos de novo no fogo a noite. Aí a produção vai até o dia seguinte. – Explica Quitéria, agradecendo pelos dias em que podem parar com a fabricação e descansar. As próximas etapas são as mais difíceis. Para adquirir som, o metal precisa ser misturado aos pedaços de zíper, que são triturados previamente. Uma a uma, as caixinhas são enchidas com os pedaços minúsculos do material e fechadas com barro. Em seguida, usa-se o barro para circular todos os sinos em uma grande bola que é colocada na fornalha. Lá, permanece entre 35 minutos e uma hora, submetido à temperatura de 700ºC. Quando o processo termina, é necessário muito cuidado para retirar os chocalhos. Uma espécie de espeto é empunhada com cuidado, levando a enorme escultura de barro e metal em direção ao tanque d’água, onde permanece até esfriar. Só então é possível quebrar o barro com o martelo e retirar os sinos. 31
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Agora, com o forno desligado, é só encaixar o badalo em cada um dos chocalhos e eles estão prontos para vender. Os menores, saem por R$ 4,00, enquanto os médios e grandes tem o preço em torno de R$ 5,00. Durante a madrugada, Quitéria e Deca trabalham juntos cortando o maior número de tampas de tonel que conseguem, levando-as ao forno para que fiquem mais flexíveis. Assim, vão deixando acumular material para ser moldado na bigorna logo que o sol nascer. Ao final do dia, cem novos chocalhos estão prontos para serem levados a Caruaru, onde serão vendidos aos coronéis para, depois, seguirem em direção ao pescoço dos gados. — Nos períodos de seca, a gente dá uma parada na produção. Por causa da falta de chuva, os animais ficam fracos, sem ter o que comer direito, aí é difícil precisar dos chocalhos. – Além do uso nos rebanhos, os sinos também são vendidos como um símbolo da cultura nordestina, em lojas de artesanato e artigos de couro. Quando a venda começa a diminuir, a pequena Vila de Santa Teresa para. O barulho das marteladas desaparece e as cadeiras de balanço passam a ser ocupadas durante o dia. Aos 53 anos, Quitéria parece sentir o cansaço que vem com o tempo, assim como o marido, que aos 60 já conta com fios grisalhos no cabelo e na barba. O 32
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trabalho árduo que realizam não parece ajudar o corpo, que reclama ao fim do dia. Por esses motivos, os dois agradecem que os filhos tenham seguido outros caminhos. Luanna trabalha em uma farmácia de manipulação, ajudando a fazer os remédios de acordo com a receita do paciente. Já Lucas, chegou a fazer chocalho com o pai, mas abandonou o ofício para trabalhar em uma loja que vende artigos regionais. Mesmo Quitéria admite que, se tivesse tido a oportunidade de estudar mais, gostaria que seus caminhos fossem outros. Orgulhosa, ela faz questão de ressaltar que estudou até a quinta série e sabe ler e escrever. Na época, ela pensava que isso seria mais do que suficiente para uma mulher do campo. — Quem estudou vai trabalhar em outra coisa, aqui só ficam os mais velhos fazendo chocalho. As gerações são outras... Apontando para o chão, onde o marido continua a martelar os objetos, ela complementa: — Isso aqui é o nosso sustento, mas só traz benefícios enquanto você está com saúde e pode pôr a mão na massa. Quando a pessoa fica doente é difícil que só. Nem a aposentadoria a gente consegue. Porém, os contratempos não são suficientes para tirar o sorriso de seu rosto. Ela caminha pelo quintal, juntando sacolas e mais sacolas com os sinos que produzem. Enquanto tagarela sobre a família, tira al33
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guns de tamanhos variados para mostrar, indicando o brilho da peça e o som. Cada passo necessário para fabricar o objeto é explicado por sua voz rouca. Se a vida fosse outra e o tempo permitisse, Quitéria gostaria de ser médica e se especializar para atender crianças e idosos. Seus olhos focam no rosto de Kaio em seu colo e ela lhe beija as bochechas mais uma vez. — O meu neto é tudo na minha vida. Me traz uma alegria enorme poder cuidar de alguém.
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Frutos da memória
Localizada a 12 quilômetros do centro de Agrestina, a pequena comunidade de Pé-de-Serra dos Mendes é um dos mais de cem remanescentes quilombolas ainda vivos em Pernambuco. Uma pequena placa de madeira, próxima a igreja e a praça, dá boas-vindas aos visitantes. Nela, o desenho de uma mulher carregando uma cesta de castanhas sobre a cabeça, ilustra 35
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a identidade da vila e traz uma das chaves para entender o local. Pé-de-Serra é o lar dos quebradores de castanhas. A parteira Cícera é uma das poucas a não ter relação com a atividade. A algumas ruas de sua porta, um conjunto de casinhas rosa bebê, emendadas uma na outra, chama atenção. O cheiro do fruto queimado guia os visitantes até a última das construções, onde uma espécie de deck é dedicado as diversas etapas do ofício. É ali que Dona Véia trabalhou durante muito tempo. Hoje, é a filha mais nova, Dôra, quem passa as manhãs se dedicando ao derivado do caju. Além dela, só mais uma família ainda se dedica a assar, limpar e comercializar a fruta. Com as constantes secas, foi ficando cada vez mais difícil que as árvores florescessem, levando os produtores locais a buscar caju em estados como o Ceará. O custo de produção ficou mais alto, o que, unido à severidade dos processos, levou muitos a desistirem da ocupação. Logo no começo da rua, um entra e sai de gente chama a atenção para a primeira das casinhas enfileiradas. Uma senhora de corpo miúdo e rosto enrugado, encolhida em um sofá mais ao canto da sala sorri, mesmo com o cansaço estampado em cada parte do seu ser. Lá está Dona Véia. Com 85 anos, Maria Emília da Silva Moura explica que o apelido nada tem a ver com sua idade. Era uma recém-nascida quando os irmãos começaram a 36
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lhe chamar de velha, uma brincadeira por conta da meia dúzia de fios que ela tinha em sua cabeça sempre se encontrarem de pé. O apelido pegou e envelheceu junto dela, levando toda a comunidade a conhecê-la assim. Enquanto come um pedaço generoso de bolo de mandioca, vai colocando em palavras como tudo começou... Era ainda uma menina, com vestido de chita e algumas cartilhas de alfabetização nos braços, quando largou a escola para colher café. Sonhava com uma vida melhor. Desejava que, naquele ano, quando fossem a cidade comprar roupa para as festas de natal e ano novo, pudesse escolher as vestimentas mais bonitas que visse. Havia completado a segunda série quando uma amiga lhe disse que os negócios com o café estavam indo muito bem. Ao ouvir aquilo, Maria Emília, filha de um casal simples de agricultores, não pensou duas vezes. — Setembro e outubro era a época que mais dava café, a gente subia a serra a pé até os sítios e ficava o dia inteiro lá, colhendo. Eu fazia uma mochila com carne de charque, rapadura e farinha, me juntava com os outros e ia embora. Ao revisitar essas memórias, sente o arrependi37
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mento lhe invadir. Gostaria de ter terminado a escola, de ter aproveitado melhor a infância, a adolescência. Mas, pondera ao lembrar que a mãe e o pai não tinham condições de cuidar dos cinco filhos sozinhos. Estava fadada desde cedo a vida no campo. Antes mesmo da cafeicultura, Dona Véia já seguia os passos da mãe. Foi com ela que aprendeu a plantar feijão, milho e mandioca no pedacinho de terra da família. Também foi com ela que aprendeu a partir castanhas. Entre os irmãos, foi a única a herdar o ofício. Quando o pai deixava a casa para cuidar da plantação, levava os outros filhos junto, enquanto Maria Emília ficava observando a mãe cuidar do fruto. Foi assim, só de olhar, que começou. Primeiro, colocavam quilos de castanha no fogo, em uma espécie de forno caseiro, feito com chapas de metal. O fruto ficava lá de oito a dez minutos para liberar a toxina que carrega. Só depois deste processo é que se torna seguro manuseá-lo e comê-lo. Em seguida, o derivado do caju é coberto por uma camada de pó de madeira e cascas de castanhas torradas previamente que enxugam o líquido da casca. A fruta deve ser deixada em um local fresco para resfriar. Com um pilão na mão, Dona Véia sentava-se ao lado da mãe em uma mesa de madeira, batendo no fruto com força suficiente para abrir a casca, mas com cuidado para não machucar a amêndoa. 38
FRUTOS DA MEMÓRIA
Assim seguia por toda a manhã. Mais de cinco quilos de castanhas eram deixados em bandejas para secar ao sol, permanecendo ali por quase uma hora. Hoje, quando a luz do dia não é suficiente para aquecer o fruto, Dôra coloca as amêndoas no micro-ondas, simulando o calor natural. Quando já estão secas, vem a parte mais delicada do trabalho. Com a ponta dos dedos, Dona Véia retira a fina película que protege as amêndoas. Sentada em uma cadeira de madeira com pernas tortas, ela vai despelando uma a uma, calmamente, pelo tempo que for necessário. Maria Emília e a mãe juntavam, então, sacos do produto e rumavam para a feira no centro de Agrestina. Montavam a barraca logo cedo, colocavam as castanhas em copos e ficavam esperando os compradores. — Depois que eu me casei continuei nessa mesma luta. Trabalhava no roçado com o meu marido e partia castanhas também. Fui até os 75 anos nessa vida e só parei por conta das pernas que não aguentaram mais. Juntos há sessenta anos, ela e o marido se conheceram em uma festa. Naturais da comunidade quilombola, estavam acostumados aos pequenos encontros que os moradores faziam nos botequins, se reunindo na rua para conversar, cantar e dançar mazuca. Ela costumava ficar no centro da roda, batendo os pés no 39
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ritmo da música. Foi assim que José a notou pela primeira vez. Os dois engataram a conversar e, mais dia menos dia, se casaram, indo morar no terreno da família de Dona Véia. Na época, sem muito dinheiro para preparar o enxoval, construir a casa e comprar os móveis, os dois tiveram que improvisar. Ela se lembra que havia um colchão com enchimento de capim no chão da sala, onde eles dormiam e recebiam as visitas. Na cozinha, uma mesa de madeira batida e seis tamboretes eram o suficiente para se reunirem no almoço e no jantar. — Quando Zé comprou nosso primeiro armário foi um sucesso! Ninguém tinha essas coisas, só umas prateleiras mesmo, sabe? Era uma novidade na época, hoje chega a ser até engraçado. Com bom humor, ela vai se lembrando, aos poucos, de outros tantos costumes que o tempo mudou. Recorda, inclusive, do dia de seu casamento, quando foi a cavalo para a Paróquia de Santo Antônio, no centro de Agrestina. — As moças iam junto de um rapaz que carrega as malas com as roupas dos noivos e das testemunhas. Quando chegava lá, os cavalos ficavam em uma casa pertinho da igreja e uma mulher vinha ajudar a gente a se arrumar. Zé e Dona Véia moraram trinta e três anos no terreno que ela herdou da família, parte da Fazenda 40
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de Riacho do Gado. Como o fornecimento de água no local era ruim, a família decidiu comprar outro pedaço de chão e construir um novo lar. Da antiga casa, levaram as telhas e os tijolos, deixando apenas a cocheira onde criavam vacas e bezerros. A fileira de casinhas cor-de-rosa começou aos poucos. Primeiro, veio a de Maria Emília, dando início ao conjunto residencial da família. A segunda foi de Geronildo. Ao se casar, o caçula decidiu estabelecer seu lar ao lado da antiga casa da família, colado aos pais. Quando Vera Lúcia, a filha mais velha do casal, voltou de São Paulo divorciada, tomou sua parte no terreno e construiu a terceira casa. Dôra, que é a irmã do meio, herdou a outra ponta do terreno, construindo sua residência por último, junto da estação para trabalhar com as castanhas de caju. Dos três filhos, ela foi a única que herdou a paixão da mãe pela fruta. Dona Véia se lembra de quando a mulher calada de lábios inchados ainda era uma criança e sentava-se ao seu lado, partindo castanhas ainda com a chupeta na boca. Maria para um pouco e senta-se curvada no sofá. Ela lambe os beiços com a língua enquanto pega uma loção de água de colônia, molha a ponta do dedo indicador direito e passa de leve em seu pescoço. Em 41
OLHOS DA TERRA
seguida, fecha o frasco e serve-se com um pouco d’água, pronta para continuar. — Eu costumava ir toda semana para Caruaru, vender castanhas e feijão de corda na feira. Quando era época, eu levava do meu próprio roçado, mas quando não tinha, eu comprava e revendia. Criei meus filhos partindo castanhas e Dôra ia sempre comigo. O quilombo, que ainda hoje encontra-se circundado por uma estrada de mato e terra batida, não contava com nenhum meio de transporte ou carros na época em que Dona Véia era jovem. Ela, então, ia caminhando, enquanto carregava sacos cheios do fruto. Todo final de semana, Maria Emília cortava a serra e ia até Caruaru, onde montava sua barraca para vender os produtos. Demorou alguns anos até que os veículos conseguissem entrar na comunidade, facilitando sua jornada. Fosse a pé, de caminhão, ônibus ou carro, ela seguia até a capital do Agreste sem medo, pronta para vender suas castanhas com um sorriso no rosto. A outra parte da renda da família vinha do trabalho de Zé, que fazia caminho semelhante ao da esposa para cuidar da plantação e dos animais dos grandes fazendeiros da região. Foi assim que o casal viveu até que conseguissem a aposentadoria, podendo sossegar o corpo cansado nos sofás de casa. Mesmo com os cabelos brancos e os movimentos 42
FRUTOS DA MEMÓRIA
lentos por conta da idade, Dona Véia ainda se juntava a filha para tirar a pele das amêndoas até pouco tempo atrás. Porém, em junho do ano passado, o cenário mudou. Maria Emília foi uma das vítimas de chikungunya na região e, desde então, sua dor nas pernas se intensificou. Alguns dias, acorda melhor e senta-se próxima da entrada de casa, esperando os conhecidos passarem para lhe cumprimentar. Porém, nos dias mais difíceis, sente a musculatura das pernas repuxar e um mal-estar tomar conta de seu corpo, não conseguindo sair de cima do sofá. Sem a mãe ao seu lado e sem conseguir despertar interesse em seus dois filhos para trabalhar com o caju, Dôra acabou sozinha na atividade de assar e abrir as castanhas. De terça a sexta-feira, ela acorda cedo e começa o trabalho por volta das 09h da manhã. Coloca as castanhas no forno para assar e espera a casca ficar preta. Depois, retira as amêndoas, limpa a pele delas e segue nesse processo até 12h. Aos sábados, segue o mesmo caminho da mãe, em direção a feira de Caruaru, onde vende um quilo de castanhas por R$ 40,00. Ela, que aprendeu a atividade aos 10 anos, diz que não consegue se imaginar fazendo outra coisa. No quintal de casa, chegou a abrir uma espécie de lanchonete, onde serve pratos de comida e bebi43
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das para conseguir aumentar a renda. Ainda assim, ela afirma que enquanto tiver saúde, vai continuar quebrando castanhas. Enquanto isso, Dona Véia permanece sentada, revivendo na fala suas memórias. Lembra-se da infância, quando corria junto do primo Nezinho, fugindo com a jaca que pegavam no quintal do vizinho. Lembra-se, também, dos tempos em que cozinhava pratos e mais pratos, como presente para festas de casamento e aniversário. No fundo da sala, escondido entre outros tantos quadros, uma foto da mãe, em um sofá de couro, com os cabelos ralos e o rosto pálido descansa na parede. Ela, assim como o pai e os três irmãos de Dona Véia, são agora apenas parte das recordações. Já não se encontram entre nós. — O tempo passa e eu vou ficando aqui só para contar história.
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Mãe Maria
— Diga, dona Maria, vai querer levar o quê? – Perguntou a mulher miúda, de cabelos ralos e feições definidas, ao notar uma senhorinha se aproximando de sua barraca na feira. Não conhecia a compradora, mas, como uma prova de sua simpatia, resolveu apelidá-la mesmo assim. O hábito de chamar desconhecidos por nomes co45
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muns, como João, José, ou Maria, é um sinal de bom humor costumeiro no interior nordestino. A cliente, no entanto, fechou a cara e logo retrucou: — Nossa Senhora, não me fale desse nome horrível. — Pois por que seria horrível? Se eu lhe ofendi a senhora desculpe, viu. — É que eu o detesto mesmo, acho muito sem graça. – Completou a senhora de maneira impaciente, com os braços postos à cintura. Sem entender direito o rumo da conversa, a vendedora rebateu: — Olhe, para começar, Maria é a mãe de Jesus e, em segundo lugar, é o meu nome, não sei porque seria feio. Constrangida pela resposta, a senhorinha arregalou os olhos e abaixou a cabeça. Em seguida, se retirou sem dizer mais nada, deixando Maria, a vendedora, novamente sozinha em sua barraca. Quando criança, Maria Josivan de Oliveira se acostumou a ser chamada de Josivani, apelido pelo qual grande parte de seus familiares e amigos a conhecem até hoje. Foi só aos 9 anos de idade, quando olhou a lista de presença da professora na escola, que descobriu: ela havia sido batizada com a variante masculina Josivan. 46
MÃE MARIA
Ainda menina, foi para casa correndo e avisou a mãe, que logo pegou seu registro de nascimento para checar. Era isso. Haviam errado no cartório e a garota de cabelos cacheados nas pontas tinha em seu segundo nome a grafia dedicada aos homens. Entre os vizinhos, ela é mais conhecida por Tita, mas admite que o peito se enche mesmo de alegria quando alguém chega ao seu portão e chama pela Dona Maria. Esse é o nome pelo qual gostaria de ser lembrada. É o nome da mãe de Jesus, ela repete. O nome daquela que abraça as dores com a voz mansa e a paz nos olhos. Assim como tantas outras mulheres que trabalham na agricultura, a relação de Dona Maria com a terra começou logo cedo. Junto de seus irmãos mais novos, Giovani, Gilmara e Janaina, passou a acompanhar o pai em seu trabalho no campo aos 10 anos de idade. Por volta das 05h da manhã, quando os primeiros raios de sol surgiam no céu, o barulho das enxadas sendo carregadas era o suficiente para acordar as crianças. Os quatro se levantavam e seguiam em direção à cozinha, onde tomavam um gole de café preto e comiam alguma coisinha para enganar o estômago. Dali, a família ia em direção ao plantio, aproveitando as manhãs frescas para trabalhar. Ao meio-dia, as crianças trocavam de roupa, pegavam os livros e caminhavam 47
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para a escola primária, onde ficariam por toda a tarde. Nesse meio tempo, a mãe cuidava da casa e o pai continuava suas atividades no roçado, esperando que os filhos retornassem para o jantar, quando deixariam tudo organizado para recomeçar as atividades no dia seguinte. Descendente de uma família bastante rígida, Maria admite que deve aos pais sua organização detalhada das roupas no varal e da louça dentro dos armários. Mas, também lamenta o que o cuidado em excesso lhe trouxe a longo prazo. Criada em uma casinha às margens da estrada que liga o município de Agrestina às cidades vizinhas, mora até hoje no mesmo bairro. O local recebe o nome de Sítio Saquinho e é conhecido por sua paisagem pacata, com residências humildes, rodeadas por alguns campos e plantações familiares. Quando Josivani terminou o quarto ano no colégio próximo da localidade em que viviam, deveria ser transferida para a região central, onde estudaria até se formar. Isso é comum nas zonas rurais do Nordeste, uma vez que as escolas só têm estrutura e professores suficientes para ensinar o básico aos alunos, acompanhando-os apenas durante o primário. Com o objetivo de proteger os filhos, seu pai não permitia que ela ou os irmãos se aventurassem pelo centro da cidade sozinhos. O medo de que os maus exemplos acabassem por corrompê-los ao ficarem 48
MÃE MARIA
longe de casa, fez com que o pai da menina não permitisse que ela continuasse seus estudos. Com os irmãos, foi a mesma coisa. — Me lembro que ele não deixava nem a gente brincar na rua, com receio que acabássemos por aprontar alguma coisa. Eu chorei de monte, mas não teve jeito... não consegui fazer o quinto ano. – Lembra ela, com um pouco de tristeza na voz. Foi só depois que passaram dos 20 anos que seus irmãos, já adultos, conseguiram concluir os estudos. Viram a oportunidade de resgatar esse antigo sonho quando a família se mudou para a cidade de Barreiros, a cento e treze quilômetros do antigo lar. Nessa época, Maria já estava casada e continuou a morar com o marido em Saquinho, na casa que ele havia construído para os dois. Logo vieram os filhos e a probabilidade de concluir os estudos foi ficando cada vez mais longe. Da sua família, ela é a única que ainda tem a agricultura como ofício. Sua proximidade com a terra é tanta que, mesmo se tivesse concluído a escola, não escolheria outro destino. — Eu ainda queria ser agricultora. Trabalhar com plantio, investir em alguma coisa, quem sabe eu não pudesse estudar sobre isso e ajudar outras pessoas que mexem com a terra? Sempre foi isso o que eu gostei de fazer. Ela e o marido, José Manoel, dividem as tarefas 49
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no campo. Juntos há 23 anos, decidiram oficializar a união após nove meses de namoro. Dona Maria dá uma risada um pouco tímida ao lembrar como as coisas evoluíram rapidamente entre eles. — Eu namorava um outro rapaz e, quando o Zé soube que tínhamos terminado, foi logo largando da namorada dele e veio falar comigo. Depois de dois meses, a gente já estava noivando. A proximidade dos dois existia desde que eram crianças de colo. Primos por parte de mãe, costumavam passar muito tempo juntos, brincando e jogando conversa fora. Aos poucos, foram descobrindo que havia algo a mais na cumplicidade que partilhavam. Ao expor suas memórias, ela admite que, hoje, não se imagina dividindo o dia a dia com mais ninguém. Compreendem os silêncios um do outro, assim como os sentimentos expostos na fala. Enquanto Zé sai para trabalhar, fazendo cocheiras, currais ou reparos elétricos de casa em casa, Maria permanece cuidando do plantio. A rotina é quase a mesma da sua infância. Com 44 anos, ela sente o tempo lhe castigar e as dores no corpo começarem a aparecer, fruto das horas curvadas sobre a terra. Mesmo assim, nada parece impedi-la de levantar logo cedo, colocar um boné surrado na cabeça e caminhar em direção a plantação, hábito que herdou de seus pais. — Quem é do campo não consegue acordar tarde 50
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não! – Brinca – Só faço lavar o rosto e vou embora tirar a ração dos bichos. Quando volto, se estiver com fome, tomo um cafezinho e vou preparar a água para cozinhar, senão, saio direto para cuidar da terra. Ela, que busca um significado especial para cada nome, decidiu batizar seu primogênito de Willames. Já a filha mais nova, foi registrada de Thaynara Josivani, contrariando a vontade da mãe. Seu desejo era que a menina tivesse Maria como segundo nome, mas, por conta de um erro do pai, não foi possível. Dona Maria não estava presente no cartório e Zé não se lembrava qual dos nomes de sua mulher deveria ir para o registro da criança. Arriscou no segundo e acabou errando. Restava a mãe se conformar com a simplória homenagem que lhe fora dedicada. Enquanto fala de seus meninos, os lábios formam um sorriso discreto e os olhos se enchem com uma mistura de carinho, orgulho e preocupação. Ela se sente feliz com os nomes que escolheu. A paixão pelo campo é um dos traços que parece aproximar Willames de seus pais. Aos 22 anos, o rapaz trabalha como técnico em estrada, realizando a pavimentação das vias e, com a ajuda de Zé, construiu uma casinha de alpendre no terreno da família, onde mora com a esposa. Mas é quando chega o período de chuvas, época ideal para o plantio, que tem a oportunidade de fazer aquilo que realmente gosta: mexer 51
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com a terra. Ele aproveita os finais de semana e acompanha a mãe no caminho do roçado, disposto a limpar o terreno e deixá-lo pronto para o cultivo de feijão, mandioca e milho. Já a menina, com seu sorriso infantil e longos cabelos negros, sonha em se tornar professora para trabalhar com os pequenos, ensinando-lhes a ler e escrever. Ela parece ter herdado o jeito manso da mãe, assim como o dom para organização. Seu quarto permanece milimetricamente arrumado, com uma pequena penteadeira ao canto e uma estante cheia de ursinhos ensacados para não acumular pó. Todos alinhados, ao lado da cama intocada, coberta por um mosqueteiro cor-de-rosa. Dona Maria respira fundo, como se buscasse forças em seu interior para falar sobre Thaynara. Olha um pôster da filha, com vestido de gala e uma coroa singela sobre a cabeça, tirada em seu aniversário de 15 anos. — Fizemos um bolinho para ela e tiramos essas fotos... para não passar em branco, né? Mas a gente pensava que ela ia morrer, rapaz, pode perguntar por aí. Com o indicador apontando para o restante das fotos da menina na estante, perto da mesa em que a família faz as refeições, Maria evidencia os nódulos ao redor da clavícula e do pescoço da menina, captados 52
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levemente pelas lentes da câmera. A garota magricela e espichada pesava 34 quilos quando descobriram que estava com câncer, alguns meses antes de seu aniversário. Ela estava com virose, então fomos ao hospital e o doutor notou os primeiros caroços na lateral do pescoço, diagnosticando como caxumba. Thaynara fez o tratamento recomendado por duas semanas, mas, as pequenas bolinhas embaixo de seu queixo se tornavam cada vez mais numerosas. Dona Maria achou melhor levar a filha novamente ao médico, que, dessa vez, pediu uma série de exames e encaminhou a paciente com urgência para o oncologista. Cinco meses se passaram até que o diagnóstico viesse e, para a família, as dificuldades estavam apenas começando; o câncer que Thaynara tinha era de um tipo raro, caracterizado por nódulos benignos que podem surgir em qualquer parte do corpo, principalmente nas axilas, virilha, tórax e pescoço. — Foi muito difícil para mim, ela tinha só 14 anos e seis meses quando o tratamento começou, sabe? Ia aparecendo uns caroços grandes no pescoço, aí começavam a inchar e ficavam pendurados de tão grandes. A medicação ajudava a diminuir, mas o pouquinho que ficava era uma bolinha dura, que só ia embora com cirurgia. – Aos poucos, Maria vai se lembrando e o rosto começa a parecer mais pálido. As mãos se movem sem parar, tentando conter o nervosismo 53
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acumulado em suas memórias. Agora com 18 anos, Thaynara depositou em seus desejos para o futuro a coragem que precisa para enfrentar a doença. Dos quase cinco anos em que está em tratamento, já passou por quatro cirurgias e, na última, quase perdeu sua voz. O nódulo estava muito próximo das cordas vocais e, durante a operação, elas foram atingidas, fazendo com que a menina ficasse quase dois anos sem conseguir falar alto ou gritar. Hoje, ela ainda conta com remédios que a mãe vai buscar mensalmente no Instituto do Câncer do Agreste (ICIA), em Caruaru. Sem dinheiro para a condução e para os médicos, Dona Maria conta com o carro da Secretaria de Saúde da Prefeitura para levá-la até a cidade vizinha. Já os exames e as consultas, são realizados pelo SUS. Além disso, durante todo o tratamento, a menina passou por diversas adaptações, principalmente alimentares. Proibida de tomar café ou chá, sobrou o leite puro para acompanhá-la logo de manhã; a carne de porco foi substituída por frango e, todos os dias, ela toma uma vitamina para não perder peso. Maria faz questão de ressaltar que, mesmo com as dificuldades, sua filha não perde o ânimo. Para este ano, Thaynara conta com uma agenda cheia de metas: quer ajudar a mulher de seu irmão, Willames, a dar aulas de reforço em casa, quer começar um curso de informática ou administração, mas, sobretudo, tem 54
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esperança de que seu tratamento chegue ao fim. A ideia parece acalentar o coração da mãe, que carrega como desejo mais íntimo a alegria de seus filhos. Tempos de chuva O terreno onde ficava a casa em que Maria morou na infância, hoje é o campo onde ela e o filho mantém o roçado. Nos meses de janeiro e fevereiro, ela vai sozinha até a plantação, limpa o mato e afofa a terra, deixando tudo pronto para aguardar a chuva. Quando as primeiras gotas caem do céu, acabando com o período de secas, é chegada a hora. Dona Maria, então, segue em direção ao campo, pronta para dar início ao plantio. Primeiro, ela coloca quatro carocinhos de milho e dois de fava nos buracos feitos previamente, marcando a distância de um metro entre cada um. Aos poucos, vão sendo formadas diversas carreiras de sementes. Entre as fileiras de milho, Maria vai salteando os grãos de feijão de três em três, seguindo a mesma distância dita anteriormente. — O feijão fica bom para colher depois de cinquenta e cinco ou sessenta dias. Agora o milho, é só depois de quatro meses. Eu também planto macaxeira, rama de batata, mandioca e jerimum. Na época de colheita, Maria geralmente arreca55
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da 60 quilos de feijão, o suficiente para a família se alimentar por todo o ano. Ela não costuma vender os frutos de seu trabalho, preferindo dividir com os parentes e vizinhos. Assim, a renda do casal fica por conta dos bicos que Zé realiza e dos R$ 250,00 reais que recebem mensalmente de Bolsa Família. De acordo com a ONU, a cada cem agricultores no Brasil, ao menos treze são mulheres. Muitas aprenderam o ofício desde a infância. Muitas viram na terra a maneira de existir, de criar um lar ou cuidar dos filhos. Dona Maria é uma entre tantas outras marias que carregam consigo a enxada sobre as costas, pronta para o que os primeiros raios de sol têm a trazer: — Quem é da terra é assim, qualquer cantinho é bom para plantar nossas coisinhas.
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Histórias de barro
Um pequeno grupo de mulheres e crianças, agachadas à beira do rio, coleta o barro das margens para levá-lo em direção à suas casas, a bordo do carro de boi. Depois de amassar calmamente a argila, sentam-se no chão, prontas para dar forma ao que antes era apenas lama; cumbucas, panelas e quartilhas vão surgindo aos poucos, modeladas por suas mãos. 57
OLHOS DA TERRA
A tradição de dar vida ao barro trouxe ao município de Caruaru o reconhecimento como o maior centro de arte figurativa das Américas. O costume teve início antes mesmo da cidade existir, herança dos índios Cariris que viveram no território. Caracterizada por um estilo rústico, a louça de cerâmica deste grupo indígena é anterior ao século XVI, mas parece ter ultrapassado os limites do tempo. Ainda hoje, é possível encontrar suas influências em diversos artesãos da região. No começo, o barro era utilizado apenas na fabricação de peças domésticas e somente mulheres participavam do processo. As mães ensinavam logo cedo os filhos e, assim, o ofício era transmitido de geração em geração, enraizando-se no território e na cultura pernambucana. Foi no início dos anos 90 que a família de José Antônio da Silva se mudou para lá, deixando a casinha de Sítio Campos em que moravam. Na época, Zé tinha apenas um ano de idade e sua mãe desejava viver mais perto do Rio Ipojuca, fonte da argila que usava em seus trabalhos. Vitalino Pereira dos Santos fez o mesmo caminho alguns anos depois, em busca de aprimorar suas obras de cerâmica. Aos poucos, os artesãos locais foram deixando de modelar apenas utensílios de cozinha. José Antônio passou a ser Zé Caboclo e Vitalino recebeu o título de mestre. Os dois se juntaram a nomes como Manuel 58
HISTÓRIAS DE BARRO
Eudócio e Galdino, criando no barro cenas do cotidiano nordestino e do folclore regional. Nascia, assim, a vila que hoje é conhecida como Alto do Moura. Localizado a sete quilômetros do centro de Caruaru, às margens da BR 232, o bairro é composto por ruas charmosas de paralelepípedo e casinhas enfileiradas de forma simétrica. Algumas lojinhas e ateliês permanecem abertos o dia todo, prontos para mostrar ao visitante a arte local. Além disso, há museus dedicados aos mestres Galdino e Vitalino que explicam a história do barro e das famílias que deram vida ao lugar. De acordo com o IBGE, hoje o Alto do Moura é o lar de pelo menos mil ceramistas. Cada um vai modelando a argila da maneira que preferir, criando seu estilo e peças: há aqueles que prefiram as grandes bonecas de barro, outros que façam figuras mitológicas. Há os que criam personagens pescando ou cavalgando, os que realizam quadros e, ainda, aqueles que preferem voltar às origens e fazer panelas e botijas. Talvez as peças em miniatura sejam as mais difíceis de achar. Delicadas, incluem muitos detalhes e costumam caber na palma da mão, o que complica a tarefa de modelá-las. Em todo o povoado, há apenas duas mulheres que se especializaram nesse trabalho: as irmãs Socorro e Marliete Rodrigues. Filhas do casal de artistas Zé Caboclo e Celestina, foram criadas ao lado de mais seis irmãos. Juntos, 59
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aprenderam logo cedo a manusear o barro. — Comecei com seis anos de idade e hoje estou com 59... a vida toda trabalhando com isso. A gente via papai fazendo seus bonecos e mamãe as panelinhas que ela tanto adorava, ia aprendendo uma coisinha ali e outra aqui para depois fazer. – Enquanto relembra, Marliete olha para as estantes colocadas nas paredes de seu ateliê, como se procurasse por alguma coisa. Em seguida, ela segue em direção a um armarinho de vidro, no canto oposto à porta, retirando de lá alguns trabalhos de seus pais. Aos poucos, vai mostrando uma ou duas das pequeninas peças de Zé, com personagens de traços grossos e corpulentos, junto das panelas de Celestina, todas coloridas e desenhadas. O barro sempre esteve presente em sua vida. Na infância, ela e as irmãs passavam horas a fio modelando casinhas e panelas para brincar, enquanto assistiam a José Antônio, o mais velho da turma, ir junto do pai à feira de Caruaru para vender seus trabalhos. De vez em quando, Marliete chegava a fazer algumas esculturas e pedir ao irmão que levasse para vender. Seu rosto, desenhado com pequenas sardas de sol, sempre tão sério e concentrado, parece se iluminar enquanto revive esses momentos. Ela sorri ao rever em memórias a sua versão mirim contente com o dinheiro que recebia pelos trabalhos vendidos, já 60
HISTÓRIAS DE BARRO
imaginando como iria gastá-lo em bonecas. Foi a irmã Socorro quem começou com a ideia de fazer miniaturas e, aos poucos, ensinou à caçula aquilo que sabia. Conforme a mais nova ia pegando o jeito, passou a se arriscar em peças ainda menores, de um centímetro ou um centímetro e meio. Algumas permanecem expostas em sua estante, como um conjunto de xícaras tão minúsculo que é quase impossível segurar com os dedos. Às vezes, se aventura em alguns modelos maiores, como a Santa Lusía que descansa em cima da sua mesa de trabalho, esperando pela pintura final. Mas, é nas miniaturas que a sua criatividade se renova. Como essas peças são mais detalhadas e demandam um tempo maior, ajudaram ela a se tornar mais exigente com seu próprio trabalho, descobrindo o que realmente gostava de retratar: cenas do cotidiano. Quando Marliete começou, usava os trabalhos do seu pai de inspiração e, assim, foi descobrindo que gostava de modelar passagens que envolvessem elementos da cultura nordestina e da sua própria história. O processo para chegar a essa resposta foi lento e, ainda hoje, 35 anos após suas primeiras esculturas em miniatura, ela sente que continua a busca para aperfeiçoar seus traços, sempre arriscando técnicas novas. Mesmo quando modela uma cena duas vezes, nunca ficam idênticas. Muda as expressões, as cores, às vezes até a disposição dos elementos, dependendo de como 61
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se sente em relação ao episódio que está retratando enquanto o desenha. Se tiver dúvidas sobre a melhor maneira de esculpir algo, ou precisar de uma opinião, ela segue até o ateliê de sua família, onde os irmãos trabalham. A casa verde, que recebe o nome de Zé Caboclo em homenagem ao pai de Marliete, foi onde ela viveu por muito tempo. Construída pela família quando ela tinha apenas 10 anos, é o lar de muitas de suas recordações. — Na minha vida toda, morei em três casas. Nasci em uma casinha pequena, com um flamboyant na frente. Depois, meu pai conseguiu construir um lugar melhor para a gente e eu só saí de lá quando me casei e vim para cá. Vai fazer uns vinte anos que moro aqui. Ela, que hoje vive sozinha com a irmã Helena, vacila um pouco ao falar sobre seu antigo casamento. A voz, que já é fina e delicada, parece descer algumas oitavas, enquanto um sorriso amargo surge no canto dos lábios. O casal desejava coisas diferentes e, com o passar do tempo, isso foi ficando mais claro. Foram se decepcionando um com o outro, enquanto o brilho do amor se esvaia aos poucos e, após treze anos, acharam melhor se divorciar. Marliete nunca chegou a ter filhos, por mais que desejasse. Canalizou a sua energia e a vontade de cuidar de alguém na mãe, até que essa faleceu, deixando um buraco em sua vida. Vítima de uma pneumonia, Celestina partiu deste mundo em agosto de 2013. Foi 62
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nessa época, também, que a filha mais nova deixou de usar vermelho. — Para mim, as cores que a gente veste dizem muito sobre quem somos. Eu acho que o vermelho tem uma alegria muito forte, é cheio de energia, ativa o astral, sabe? Quando mamãe morreu, a falta que eu sentia dela não me deixava ter essa animação. – Assim, todas as peças de cores vivas de seu guarda-roupa foram aposentadas por quase um ano, até que os sentimentos se acalmassem. O carinho que mantém em seu peito foi, aos poucos, se direcionando ao restante da família. Com trinta e seis sobrinhos e mais dezoito sobrinhos-netos, Marliete passou a ensiná-los como modelar o barro e vê neles os filhos que não teve. Morando junto da irmã Helena, ela não se sente mais só. Durante o dia, as duas se separam para trabalhar e quase não se veem. Leninha permanece sentada em uma banqueta, modelando jogos de panelas de brinquedo em uma tábua velha, uma espécie de mesa improvisada em cima do aparador de mogno. Já Marliete, segue para o pequeno ateliê que montou no espaço onde antes era a área de serviço. Além das prateleiras com esculturas à mostra, o espaço contém uma mesinha velha de madeira com as tintas esmalte sintático, látex, acrílica e plástica, todas aceitas pela cerâmica. Um pote de sorvete guarda pincéis, palitos de dente e espinhos de mandacaru, 63
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usados para fazer os detalhes de cada peça. Ela se acomoda em uma cadeira de estofado azul, em frente a uma mesa de mogno bastante gasta. Uma pequena tábua fica próxima da beirada, esperando que seus dedos curtos e de pele fina comecem a modelar. Marliete permanece horas assim, concentrada no que está fazendo. No chão, dois sacos de argila descansam em sacolas. Um aguardando pelas esculturas maiores, enquanto o outro abriga o material mais denso, especial para miniaturas. Suas mãos pegam o barro delicadamente, massageando para sentir a textura. Em seguida, ela começa a modelar uma florzinha: desenha o caule e, depois, as pétalas. Com menos de 15 minutos, a figura já está pronta, aguardando para ser levada ao forno a lenha. Lá, será levemente queimada para que o barro perca a sua tonalidade marrom, alcançando um aspecto mais avermelhado. Só depois será decorada. Em um estojo de metal, guarda alguns instrumentos que usa para fazer os detalhes de suas figuras. Facas retiradas de pequenos chaveiros que Marliete compra, um pente de boneca e dois carimbos para assinar seu nome: um com mais ou menos três centímetros e, o outro, com um pouco mais de dois. — Gosto muito de deixar o meu nome e o do Alto do Moura nas minhas pecinhas. Quando são pequenas demais, eu escrevo com o próprio espinho de mandacaru, porque os carimbos não pegam. 64
HISTÓRIAS DE BARRO
Entre os trabalhos que deixa expostos, muitos contam momentos de sua infância, como pequenos retratos da família. O seu preferido é um que traz o tio, Manuel Eudócio, ao lado de Zé Caboclo, ambos sentados em uma mesinha de madeira, esculpindo pequenos bonecos de barro. A riqueza de detalhes da imagem é visível. Cada elemento foi pensado por Marliete para retratar as lembranças que guarda dos dois. As mãozinhas desenhadas, segurando o tronco de um boneco de barro, o sorriso no canto dos lábios e as camisas com os botões de cima abertos preenchem as particularidades da cena, como se contasse uma história. — Tem uma calça cinza do meu pai e uma camisa com tonalidade rosada que eu guardei junto com os documentos dele, logo que ele morreu. Quando fui fazer essa peça quis usar as mesmas cores. Entre muitas outras que guarda com carinho, há uma que traz sua mãe dando milho para as galinhas. Uma segunda que apresenta uma senhorinha sentada em um sofá, contando histórias para os netos. Um casal de noivos que fez para presentear dois amigos em seu casamento e uma miniatura da sua avó sentada na feira, vendendo panelinhas de brinquedo. Foram peças como essas, que eternizam o cotidiano do agreste com tanto carinho a partir de lembranças de sua família, que tornaram o trabalho de Marliete conhecido. Seu primeiro prêmio foi na Bienal de 65
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Artes de São Paulo, em 1986, pelo Jogo de Xadrez Nordestino. Na peça, ela substitui o rei e a rainha por Lampião e Maria Bonita, o bispo pelo Padre Cícero e os peões por agricultores. Ela, que já foi convidada para participar de eventos em diversos lugares, como Rio de Janeiro, São Paulo e até mesmo na França, afirma que não tem nada melhor do que ver o Alto do Moura ser reconhecido por meio de suas figuras. A voz se enche de orgulho ao contar que foi convidada para representar a mulher artesã em um evento que trouxe a ex-presidente Dilma Rousseff ao museu do Mestre Vitalino, em 2011. Enquanto procura um álbum de fotografias para mostrar seus registros do encontro, vai falando sobre como se sentiu ao ser convidada, mais uma vez, para representar as artistas de seu bairro ao carregar a tocha olímpica em Caruaru, nas Olimpíadas de 2016. A alegria foi tanta que Marliete chegou a fazer uma escultura sua carregando a tocha, deixando registrado no barro um momento de sua vida que não quer esquecer. Quando abre o primeiro dos álbuns de fotografias, abarrotado de imagens, ela vai mostrando outros tantos trabalhos que já fez. Alguns foram registrados há tanto tempo que é possível ver os reflexos de luz da sua antiga câmera Kodak. É ali, naquelas fotos e nas obras que guarda em seu ateliê que sua vida está escrita. E se depender de 66
HISTÓRIAS DE BARRO
Marliete, assim será até o fim de seus dias. — É muito bom contar pelo barro tudo aquilo que você viveu. Eu sou apaixonada por isso, pelas lembranças da minha família, pelas cenas da região e das pessoas que conheço. O barro é o meu meio de eternizar essas histórias.
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Uma vida em poesia
Eu tenho lido cordéis De histórias que já passaram História que me encantou Que muito me emocionaram Faz lembrar do presente E dos tempos que passaram.
Jayane Santos 68
No centro de Caruaru, camuflado entre as barracas da Feira de Artesanatos do Parque 18 de Maio, um casebre de paredes pintadas feito tijolinhos mantém a porta aberta, em um entra e sai constante de gente. Os visitantes passam por ali em busca de artigos de barro, couro e camisetas com Lampião e Maria Bonita desenhados, sem notar o local com a plaquinha de número 154 à frente. Era ali que uma menininha morena, com duas trancinhas no topo da cabeça, se escondia do resto do mundo, deixando sua bicicleta cor-de-rosa logo na entrada. Jayane Santos tinha seis anos quando viu o Museu do Cordel Olegário Fernandes pela primeira vez. Foi quando tinha essa idade, também, que seu pai sumiu pelo mundo sem dar mais notícias. Aos seis anos eu estive No museu a passear Onde só tinha cordéis E parei para olhar Conhecer toda cultura Daquele lindo lugar
Era uma tarde como outra qualquer quando aconteceu. João Antônio tinha que assinar alguns documentos no cartório da cidade e foi com sua esposa, Josilene, e a filha mais velha, Jayres. 69
OLHOS DA TERRA
Enquanto estavam aguardando na fila, João quis dar uma escapada para comprar cigarros. A esposa lhe acompanhou e a filha permaneceu no cartório, esperando que chegasse a vez de seu pai. Após passar em uma vendinha que ficava próxima e comprar o que queria, João parou à frente do cartório para fumar. Abriu o maço recém adquirido, puxou um cigarro para fora e acendeu-o com o isqueiro, enquanto Josilene se encaminhava para dentro do prédio, procurando pela filha para que trocassem de lugar. Jayres, então, seguiu para encontrar o pai na rua. Mas, quando finalmente passou pelos portões do cartório, não o achou. Voltou para dentro e chamou pela mãe, que se juntou a ela na busca. Os dias seguiram sem nenhuma resposta. Semanas, meses e anos se passaram sem que a família pudesse compreender o que aconteceu. João deixava para trás quatro filhas: Jayres, Joyce, Jayane e Jamyle, a mais nova com apenas seis meses. Na época, a mãe das quatro meninas mantinha uma barraca de miudezas ao lado do Museu do Cordel, na esquina de uma ruazinha estreita e quase sem passagem. Jayane costumava ficar junto da mãe na feira e, de vez em quando, conseguia ouvir o som do pife, misturado a uma cantoria gostosa e palmas ao fundo. A garota, curiosa para saber o que significava tudo 70
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aquilo, seguiu até a fonte do alvoroço, achando a casinha de taipa e paredes amarelas, com uma estante cheia de cordéis. Encontrou poetas declamando seus trabalhos e conversando calorosamente, o que a encantou. Permaneceu ali, de olhos bem abertos, enquanto memorizava cada coisinha que via, mesmo que não entendesse o significado. Os poetas reunidos Com suave simpatia Sempre com muito amor Toda semana eu ia Rever de novo a cultura Que me encheu de alegria
Começou a escapar da loja de sua mãe, um dia após o outro, correndo para o museu. Sentava em um banco surrado de madeira em baixo da janela, escolhia um cordel na estante e lia-o. Quando terminava, selecionava mais um e assim prosseguia até o fim do dia, quando sua mãe vinha lhe chamar para ir embora. — Eu era muito apegada ao meu pai, sabe? Ainda hoje, quando chega o dia dos pais, vem aquela agonia toda, o pensamento fica nele e começa o chororô. O museu me ajudou a esquecer um pouco, espairecer e encontrar algo que eu gosto. O tempo forçou a família a entender que João An71
OLHOS DA TERRA
tônio não estava mais entre eles, mas não facilitou a aceitar. Após anunciarem o sumiço em cartazes, rádio e televisão, sem que nada surtisse efeito, Josilene passou a costurar para fora, contando com a ajuda de sua família para criar as meninas. Ela, que tinha um rosto gorducho, mergulhou em uma depressão, tornando-se abatida e magra. Alguns conhecidos dizem ter visto João por aí, vendendo lanches sobre uma bicicleta, com alguns meninos correndo a sua volta. Outros, afirmam que ele fugiu para viver com uma segunda esposa e filhos. Mesmo seus pais, antigos moradores da zona rural, dizem até hoje que não sabem sobre seu paradeiro. Os olhos vastos de Jayane, cheios de um brilho cor-de-mel, vacilam ao relembrar tudo isso. As mãos correm em direção ao álbum de fotografias da família, procurando por uma foto sua, ainda criança, no museu dedicado a Olegário Fernandes. Imagens suas quando pequena, ao lado dos pais em aniversários e festas de escola passam de relance, enquanto seus dedos longos continuam a virar, foto após foto, prosseguindo na busca. Uma fotografia um pouco gasta, cheia de marca de adesivo e alguns rasgos, chama a atenção. Jayane aparece sorrindo no colo do pai. Ela retira a foto do plástico fino, olha por alguns minutos, guarda novamente e se justifica: está meio acabada porque ficava presa ao caderno da escola, como uma lembrança que 72
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gostaria de fixar para sempre. Mais alguns retratos passam rapidamente até ela encontrar o que queria. Uma menina de camiseta azul, com uma pequena saia rodada rosa claro, aparece em frente a um balcão, com as mãos na cintura e um sorriso de dentes fechados. — Foi Olegário Filho quem revelou essa foto minha no museu e me deu de presente. Guardo com muito carinho até hoje, não gosto que ninguém mexa nela porque tenho medo de perder. – Conta ela, sempre bem-humorada. A garotinha que circulava entre os poetas da região, escrevendo seus próprios versos sentada ali no chão, cresceu. Hoje, aos 16 anos de idade, já publicou seu primeiro cordel e tem um segundo em fase de acabamento, além de muitos outros rabiscados em diversos caderninhos. Onde toca a Banda de Pife Um forró bem gostosinho O povo todo gostando E dançando agarradinho O poeta Paulo Pereira Declamando o passarinho
Foi Olegário Fernandes Filho quem lhe ensinou tudo o que sabe. Carinhosamente chamado pelos 73
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amigos de Olegarinho, é o retrato perfeito de seu progenitor: cabelos calvos, testa larga e rosto comprido. Também é ele o responsável por continuar a obra do pai. A criação do Museu do Cordel era um dos sonhos de Olegário Fernandes da Silva, poeta que se destacou ao retratar o cotidiano do homem nordestino com bom humor, incorporando símbolos da cultura popular e dos homens do campo. Entre os mais de 200 cordéis que escreveu, destacam-se alguns, como A chegada de Lampião no Inferno e O Filho que matou a Mãe sexta-feira da paixão por causa de um pau de macaxeira. Olegarinho tomou como seu destino realizar o desejo do pai. Juntou as antigas máquinas manuais de xilogravura e litogravura, os cordéis escritos pelo pai e por outros poetas, fotografias e recortes de jornal para compor a decoração. Pronto. Assim era inaugurado, em 1999, o Museu do Cordel Olegário Fernandes, que até hoje mantém-se sobre os cuidados da família. É essa atmosfera familiar que será retratada no primeiro cordel de Jayane, um agradecimento composto de rimas e versos de sete sílabas. Minha infância no cordel é uma declaração para o lugar que considera seu verdadeiro lar. Lá se vê tanta beleza
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UMA VIDA EM POESIA
E os poetas com bravura Onde o poeta e o turista Fazem essa mistura
— Quando fiz esse cordel não tinha muita experiência, então fui logo mostrar para o Olegário. Ele, como um pai ou professor que se sente orgulhoso ao ver os resultados do seu aprendiz disse, animadamente: — Eita, que legal! – Olegarinho leu atentamente as estrofes compostas pela menina e logo foi dando algumas dicas. – Olha, esse verso aqui, você pode mudar a última palavra para rimar melhor... E aqui a métrica não está certa, mas se você ajeitar a frase vai caber. Assim, foi ajudando Jayane a melhorar seu texto. Ele apontava as correções necessárias, ela reescrevia e lhe mostrava novamente. Esse vai e vem seguiu até que o texto estivesse finalmente pronto. — Foi Olegário quem me ensinou sobre oração, métrica e rima. Essas três são as regras mais importantes que os cordelistas seguem. Minha mãe se emociona Quando declamo poesia Ela diz: oh minha filha Você me dá alegria
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OLHOS DA TERRA
Que Deus te abençoe Por tanta sabedoria
Enquanto explica, Jayane retira da sua bolsa uma folhinha de caderno um pouco amassada, com uma explicação sucinta dos elementos que considera essenciais para quem quer escrever um cordel. Ela conta que, de vez em quando, os professores pedem para que dê uma aula sobre o assunto na escola e a velha folha de papel vai junto, ajudando a organizar suas ideias. O primeiro passo refere-se ao que os poetas chamam de oração. O conceito é bastante simples: deixar claro, logo na primeira estrofe, o tema sobre o qual está escrevendo, incorporando começo, meio e fim a história. No papelzinho que Jayane carrega, ela define métrica como o ritmo dado as palavras, criando um compasso que ajuda os repentistas a cantarem. Para criar essa fluência, a composição de sete sílabas por verso é a mais comum. Já quando fala em rima, ela é bem prática. Escreveu apenas alguns exemplos de palavras que tenham um final com som parecido, rimando entre si. Uma observação nas costas da folha indica outro passo importante: as estrofes mais comuns são quadra, sextilha, septilha e décima. Sua aula termina com um pedido para que os outros alunos escrevam um cordel de duas estrofes e ela 76
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confessa que se diverte ao lê-los depois. De vez em quando, até pede à professora para levar alguns consigo, guardando de recordação. Depois de escrever sobre as memórias de sua infância, Jayane tem buscado uma identidade própria. Encontrou na música a inspiração para seus próximos poemas. — Gosto muito de escrever romances e também sobre coisas que aconteceram comigo. Escutar música me ajuda a pensar em uma história, às vezes mudo ou acrescento algo, sabe? Em uma pequena agenda que segura nas mãos, escolhe um de seus favoritos para ler. O nome é A Despedida, assim como a música de Geraldo Azevedo que o inspirou. Há muito tempo existia um reinado O homem é Josias e foi bem coroado E por sua rainha ele foi amado.
A voz risonha e infantil que saía de seus lábios parece amadurecer no estante em que as primeiras palavras são ditas. O olhar de menina sede seu lugar a uma Jayane mais madura, que preenche o cômodo de vida. É como se o Museu estivesse cheio de repentistas e poetas mais uma vez, unidos para apreciar a arte um do outro. O rei e sua rainha passeavam em seu jardim
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Josias bem carinhoso pegou uma flor jasmim E foi entregar a ela e Maria falou assim: Obrigada, meu amor, vou te amar até o fim E se eu for embora, se lembre sempre de mim E se acontecer algo, foi Deus quem quis assim
As sílabas declamadas continuavam a ressoar pelo cômodo, agora com certa dificuldade em ocupá-lo por completo. Um ruído crescente se aproximava, rompendo a atmosfera nostálgica e tomando o ambiente para si. Pouco a pouco, a voz de Jayane se misturava ao bater de pregos na parede e uma figura de cabelos brancos com corpo encolhido segurava uma pedra na mão esquerda, usando-a para martelar. — Oi, tudo bem? Eu sou o Joel Borges. Estou chegando aqui com novos trabalhos de xilogravura, trouxe uns quadros e um bocado de coisas minhas. Vou botar aqui na parede, quem quiser olhar... O senhorzinho simpático apresentava uma barba malfeita, já grisalha, e carrega uma mala de couro com seus trabalhos dentro. Jayane, no entanto, sorriu de maneira simpática. Trocou algumas palavras com seu novo conhecido e mergulhou novamente na narrativa que declamava. Para ela, o cordel não é só um meio de propagar antigas cenas do folclore regional. É um caminho de criar histórias cotidianas com elementos atuais. 78
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A garota que viu na poesia uma maneira de escapar de seus problemas, hoje enxerga a responsabilidade de ser cordelista, jovem e mulher como um privilégio. Suas narrativas carregam uma mensagem simples: a arte do cordel é de todos e aquele que deseja fazer poesia só precisa traduzir o que há dentro de si. Olegário Fernandes criou Esse museu para o mundo Os poetas abrilhantaram Esse recinto fecundo Um lugar onde transborda Poesias por segundo
Entre os amigos de ofício, ela recebe o apelido de mamãe. Uma brincadeira com sua idade que expressa todo o carinho e cuidado que tem pelos amigos que o museu lhe presenteou. Mesmo agora, que grande parte dos encontros e eventos entre os cordelistas é realizada na Estação Ferroviária de Caruaru, Jayane admite passar grande parte dos seus dias nos bancos e sofás da casa dedicada a Olegário Fernandes. Quem quiser encontrá-la, é só adentrar. Enquanto ela recolhia suas coisas para ir almoçar, Joel fazia os últimos ajustes em seus trabalhos na parede. Ele deu dois passos para trás, olhou as imagens mais uma vez, colocou o velho chapéu de massa na 79
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cabeça e foi em direção a sua maleta, deixando-a aberta em cima de um banco, com o restante das xilogravuras à mostra. — Fui do tempo do folhete, do romance e do cordel. Tenho que dizer, hoje está uma maravilha! Porque, olhe, uma jovem dessas está divulgando o cordel. Isso é muito importante por conta do que ele é e de onde ele veio. Se não fosse a força dos jovens, ninguém nem saberia o que é. Joel engata uma pequena conversa com Jayane, mostrando alguns de seus próprios cordéis e xilogravuras. Sem nem perceber como, ele conta que uma vez foi convidado para ir a Berlim, ministrar algumas palestras sobre seu trabalho, mas negou veemente. Lá não saberia como pedir um “melhoral” na farmácia caso tivesse dor de cabeça. Para ele, bom mesmo é viver da terra e trabalhar no ateliê que criou em sua casa: simples, mas prazeroso. Da mesma maneira que entrou, Joel foi embora. Deixou para trás seus trabalhos, caso algum visitante olhasse e desejasse comprar. Em seguida, Jayane checa o relógio de seu celular, saindo para procurar sua prima com quem sempre almoça. Minha infância no museu Tem muita história vivida Agradeço aos poetas Por eu ser muito querida
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Eu nunca vou esquecer Dessa graça recebida
A porta se fecha mais uma vez e o silêncio toma o ambiente. O Museu do Cordel Olegário Fernandes encontra-se só mais uma vez, apenas com as memórias que descansam em suas estantes, enquanto aguarda que outras histórias venham lhe acordar.
Trechos retirados dos poemas: Minha infância no cordel e A Despedida, escritos por Jayane Santos.
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