A Cor em Acção

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VERÓNICA CONTE

A COR EM ACÇÃO

A COR EM ACÇÃO

VERÓNICA CONTE

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Dirigido a artistas, designers, arquitectos, urbanistas, e profissionais que se ocupam da participação, da pintura e do espaço público, A Cor em Acção conta-nos a viagem da investigação sobre processos de pintura participativa ou comunitária. Numa perspectiva crítica inovadora, Verónica Conte – depois de seduzida pela cor emergente em Buenos Aires, Tirana e São Paulo – coloca questões em torno da cor na cidade, articuladas com preocupações sociais e pela procura da correspondência da acção de pintura participativa à realização das necessidades humanas fundamentais. Memórias pessoais e registos de intimidade da experiência vivida com ViverCor Corabitando, para “ver e dar a ver” em São Cristóvão, acompanham o rigor da pesquisa, transparecendo o sonho e utopia da autora, que deixa ao leitor activista um caminho de propostas e recomendações inspiradoras para as suas próprias acções participativas.

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COR EM ACÇÃO VERÓNICA CONTE

Verónica Conte, Lisboa (1977) Depois de um percurso de escola que em tudo a encaminhava para a Engenharia Química, Verónica Conte licenciou-se em Arquitectura Paisagista (Instituto Superior de Agronomia, UTL). O Erasmus na École Nationale Superieure du Paysage de Versailles redireccionou-a nas suas preocupações, da paisagem para com o espaço público, integrando novas práticas na actividade profissional como a performance, a instalação e a cenografia. Pouco depois de terminar o mestrado em Cor na Arquitectura (Faculdade de Arquitectura, UTL o interesse aguçado à cor na cidade levou-a a Buenos Aires, onde realizou levantamentos cromáticos nos bairros de La Boca e Palermo Viejo, em parceria com o Grupo Argentino del Color ao abrigo do Serviço de Voluntariado Europeu. Aí contactou com um novo mundo de possibilidades participativas e uma nova estrutura de pensar, mergulhando apaixonadamente no Doutoramento em Design (Faculdade de Arquitectura, UL e Facultad de Arquitectura, Diseño y Urbanismo, UBA) sob o tema de pinturas participativas. Deste trabalho surgiu a acção ViverCor Corabitando, em Montemor-o-Novo, um voltar a nascer profissional e pessoal espelhado neste livro. Verónica é ainda investigadora efectiva do CIAUD – Centro de Investigação em Arquitectura, Urbanismo e Design, FA e investigadora colaboradora com o CEC – Centro de Estudos Comparatistas, FL, ambos da Universidade de Lisboa.


TÍTULO A Cor em Acção AUTOR Verónica Conte DESIGN GRÁFICO Inês Coimbra e Verónica Conte PAGINAÇÃO Inês Coimbra Editora By the Book, edições especiais Gráfica Real Base Data de impressão 2019 ISBN 978-989-8614-86-5 Depósito legal 457772/19

Edições Especiais, Lda. Rua das Pedreiras, 16-4º 1400-271 Lisboa Portugal t/f: +351.21 361 0997 www.bythebook.pt

Este livro segue a grafia do Acordo Ortográfico de 1945. Todas as traduções presentes no texto são traduções livres da autora. APOIOS


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Nota de Abertura Ainda que a globalização se interponha aos nossos hábitos e às singularidades dos lugares onde vivemos, assistimos também, quiçá como uma forma de resistência, a iniciativas de pintura em espaço público que procuram esse carácter único através da valorização, integração e participação comunitária local. Porém, o que é um meio de dar visibilidade através da cor, uma protecção para um espaço ou comunidade, uma forma de activismo, nem sempre chega a ter tais efeitos, podendo mesmo ocultar consequências inversas como a gentrificação. Então de que falamos quando falamos de participação? Que tipo de intervenções e que processos originam verdadeira participação? O que está para além da participação? Que benefícios e necessidades humanas fundamentais são ou podem ser atendidas com a concretização de acções participativas? Estas são perguntas basilares que alicerçaram a investigação de doutoramento que esteve na origem deste livro. Na senda de responder a estas inquietações pesquisou-se in situ e de forma directa, visitando intervenções, entrevistando especialistas, artistas e associações promotoras. Em Tirana, (Albânia), Greening & Painting da autoria de Edi Rama; em São Paulo (Brasil), Paredes Pinturas de Mônica Nador; e em Buenos Aires (Argentina), Calle Lanín, Partituras Musicales de Marino Santa María, Pintar el Once promovida por La Vereda associação civil, La Villa 20 es una pinturita por Odisseia 20 associação civil, Barracas Pinta Bien por Más Color


associação civil, e ainda Abasto y el fileteado porteño pela associação de moradores Centro de Gestión y Participación Ciudadana nº2 Sur. Depois de analisar processos e efeitos, pôs-se em prática a acção ViverCor Corabitando, em São Cristóvão (Portugal). Aí a participação aconteceu desde o início, da discussão do conceito de intervenção para a pintura até à avaliação, ampliando os efeitos positivos estudados previamente. Foi clara a promoção do desenvolvimento individual e comunitário a par da valorização do Ser, Estar e Fazer, em detrimento do Ter e de uma atitude de consumo. Ao introduzir uma necessidade de pesquisa pessoal, de objectos de afecto e de memória por parte de cada participante, para criar uma mensagem através de um desenho a pintar na fachada residencial, concretizaram-se expressões singulares com e para a comunidade. A avaliação da acção, e o correr do tempo, permitem afirmar que ViverCor Corabitando é uma acção que vê e dá a ver através do encontro de diferentes olhares, tempos e saberes de pessoas distintas, uma proposta na direcção do desenvolvimento para a sustentabilidade. Espera-se que este livro permita apetrechar o leitor para uma reflexão crítica sobre processos participativos, sobre as transformações a que assistimos no espaço público, e que encontre nas descrições processuais e recomendações uma fonte inspiradora para a criação das suas próprias acções participativas.


Prefácio O espaço público é um lugar de inter-relação, sendo possivelmente o espaço de uso mais democrático, que deve ser acessível a TODOS e onde a Cor joga um papel diferenciador e de indiscutível qualidade, caracterizando-o e dando-lhe uma identidade própria, um significado colectivo, acentuando uma perspectiva de multiculturalismo e contribuindo para o que se designa por "topografia cultural". No que respeita à percepção cromática e à memória, a Cor ajuda a uma melhor discriminação de superfícies e espaços, desempenhando um papel central em várias experiências interdisciplinares. O livro A Cor em Acção é uma evidência do pensamento crítico sobre a contemporaneidade e fala-nos sobre a complexa relação entre Cor e ambiente construído, demonstrando, através de uma investigação aplicada, de como o uso da Cor pode contribuir para a qualidade de vida dos moradores de uma cidade, de um bairro, de uma casa, promovendo a inclusão social, a vizinhança e os laços de pertença. A utilização da Cor apoiada por especialistas pode contribuir para o que se designa por "arte pública", uma arte contextual com uma forte participação da comunidade e das pessoas para quem a obra de arte é pretendida, numa perspectiva do que Jane Rendell caracteriza como "prática espacial crítica", onde se transgride o limite da arte e da própria arquitectura, com um forte pendor social mas ao mesmo tempo estético, encorajando práticas criativas


transformadoras de base comunitária, trabalho conceptual e crítico com foco na colaboração, interacção, processo e contexto. Este projecto editorial de Verónica Conte surge na sequência da sua investigação para doutoramento em Design, em que abordou a utilização da Cor em projectos participativos ou comunitários. Trata-se de uma reflexão crítica sobre um tópico que a autora vem investigando há vários anos e sobre o qual detém um conhecimento maior, premiando-nos, assim, com um trabalho de rara beleza, que serve de espelho da sua própria essência, da sua forma de ver e de pensar. Quando em 2009 a autora morou em Buenos Aires, começou um périplo pela temática da Cor, observando quer o impacto que as pinturas murais tinham no espaço urbano e em todos quantos vivenciavam essas manifestações cromáticas, muitas delas incluídas nos chamados graffiti, quer nas coloridas fachadas que proliferam e caracterizam a cidade, como no caso das presentes no bairro de Palermo Viejo. Seguem-se vários outros casos considerados paradigmáticos por Verónica Conte, onde, para além de Buenos Aires, passa por Tirana e São Paulo. Finalmente, a autora pára e demora-se em São Cristóvão, uma aldeia alentejana ainda não descaracterizada, onde coordena o projecto ViverCor – Corabitando, um trabalho de co-design, utilizando metodologias participativas e de inclusividade, sendo o suporte de uma investigação activa, onde pôde experienciar amplas vivências cromáticas, emocionais e afectivas, numa íntima correlação com os habitantes da aldeia, ressaltando aspectos identitários e de memórias individuais e colectivas. Tal como a autora sublinha, ViverCor foi um “promotor múltiplo de potencialidades humanas”. A sua escrita é tão fluída e compreensível, que torna este livro, apesar de apresentar um carácter profundamente incisivo e científico, acessível a todos quantos se interessam por este tema e pretendam aprofundá-lo. É uma brilhante e emotiva recensão crítica sobre o uso da Cor no espaço urbano, que por si só representa um contributo significante para a epistemologia da Cor. Este documento não se esgota na transmissão da informação que revela incursões quer ao nível do plano teorizante mais abstracto, quer ao nível empírico mais pragmático, num confronto directo das dimensões do sentir, do pensar e do fazer. O livro, com uma apresentação e produção gráfica de grande qualidade, apoiada por um inegável rigor editorial, em que o texto, articulado e de fácil leitura, divide generosamente o protagonismo com as fotografias, é, pois, um real contributo investigativo que vem dar corpo a um trabalho sistemático


e cuidado, que tem sido uma aposta da autora na construção de um saber em torno da Cor e da sua aplicação no espaço urbano e na arquitectura, apoiada em metodologias inclusivas e participativas. Espera-se que a autora dê continuidade ao presente trabalho, procurando compreender e responder aos desafios do domínio cada vez mais alargado e rico da temática em foco, despertando capacidades do consciente e do inconsciente, da criatividade e da inovação, sempre dentro de uma perspectiva que se pretende holística. O CIAUD – Centro de Investigação em Arquitectura, Urbanismo e Design, não pode deixar de apoiar a edição deste livro, que irá permitir o conhecimento de inovadoras ferramentas participativas de interacção com as comunidades, criando laços de pertença ainda maiores com o património edificado, material e imaterial, utilizando a Cor como veículo privilegiado de comunicação, acentuando formas e textos que passam a ser memória colectiva do lugar, pertença de todos e para a preservação da qual todos podem contribuir.

Fernando Moreira da Silva Presidente do CIAUD • Centro de Investigação em Arquitectura, Urbanismo e Design • Membro da APCor


Prefácio

Uma casinha construída pelo pai para brincadeiras infantis, dentro da qual três crianças podiam brincar: itinerante, feita de contraplacado, era, toda ela, pintada de telhado vermelho, paredes amarelas, janelas verde-turquesa e cortinas com bolinhas policromáticas… Nenhum outro objecto lhe despertava tanta fantasia, pelo que não era de estranhar que tal recordação emergisse em Buenos Aires, ao reconhecer nos bairros de Palermo Viejo e La Boca as mesmas relações cromáticas impactantes. Começava a viagem que aqui se dá a conhecer. Envolto na dimensão simbólica da casa e na poesia das cores dos lugares do mundo, este livro oferece uma reflexão da investigação feita in loco, na Argentina, Albânia e Brasil, culminando na acção participativa ‘ViverCor Corabitando’, transformadora da aldeia de São Cristóvão. O questionamento inicial dá-se perante as fachadas pintadas de Buenos Aires que pontuam a imagem da cidade em interacção com as estruturas edificadas envolventes, da escala da fachada à escala urbana. Tal como na Albânia e no Brasil, a natureza patrimonial dos materiais locais, os planos cromáticos municipais, os conceitos de reabilitação, a manutenção ou alteração de paletas de cor, as especificidades e as singularidades do espaço construído entrecruzam-se com as motivações dos autores das pinturas. O estabelecimento do ‘espírito do lugar’ resulta das pinturas por ligarem a vivência dos espaços públicos à identidade individual e colectiva, material e imaterial. Mas foi através da pintura de 17 fachadas da aldeia de São Cristóvão que os seus habitantes puderam exprimir o seu potencial criativo em acções geradoras de dinâmicas sociais e culturais complexas que se inscrevem nas áreas do Co-Design e do Design Participativo. O modus operandi encontra-se plasmado nas ‘acções de pintura’, nos caminhos da ‘rota’ de investigação, sustentados em técnicas, estratégias e processos, reflexões e decisões de natureza processual, fazendo da obra uma leitura de referência e testemunhando o desenvolvimento de uma comunidade cujos habitantes, comprometidos e responsáveis, se tornaram autores da transformação, ao pintarem as fachadas. A ‘Aldeia das Pinturas’, agora assim conhecida pelos registos pictóricos e manuscritos, ostenta a inscrição que sintetiza a trajectória pioneira e poética de ‘ViverCor Corabitando’: “Faz-se o caminho, caminhando”. Maria João Durão Coordenadora do Laboratório da Cor e Grupo de Investigação Cor e Luz – Faculdade de Arquitectura, Universidade de Lisboa-CIAUD • Presidente do Arts and Design Study Group – International Colour Association (AIC)


Mapa dos Agradecimentos

em ViverCor Corabitando aos participantes

Adelina Martins • Ana Jorge António Fitas • António Santos Cidália Soeiro • Dília Sequeira Fernando Marques • Henrique Gascón Joaquim Boleto • Joaquim Cabeça Branca Joaquina Boleto • Júlio Jorge Libertino Correia • L­ uís Dinis • Luís Jorge Manuel Vieira • Mª do Carmo Braga Mª Carmo Carvalho • Mª Conceição Jorge Mª Conceição Santos • Mª Eduarda Sá Chaves Rosa Carvalho • Rosa Cunha Rosa Marques • Susana F. Silva Tina Jorge • Virgínia Chorado &

Ao Sérgio Chorado que acompanhou e registou todo o processo de pintura. Aos não participantes entrevistados, e a todos os moradores de São Cristóvão que de alguma forma contribuíram para o desenvolvimento e permanência da acção. &

Ao Dinis Carrilho pelo website www.vivercor.com Oficinas do Convento ONGD: Nélia Martins • Sandra Coelho Tiago Fróis • Virgínia Fróis Câmara Municipal de Montemor-o-Novo: João Marques Paróquia de São Cristóvão • Junta de Freguesia de São Cristóvão: António Fitas, Sérgio Chorado e Vânia Cardoso, pelo apoio a ViverCor desde os seus primeiros passos até à presente publicação.


aos colaboradores e amigos

Aldi Shehaj • André Cascais • Antje Disterheft • Bo Dahlin • Boban Docevski • Carlos Afonso • Carolina Reis • Catarina Cipriano • Cristina Pinheiro • Daniel Melim • Eric Ginestier • Geca Dahlin • • Isabel Gonçalves • Joana Clemente • Joy • Kumar Vanelli • Helena Gomes • Madalena Barata • Maria Luís • Mª João Fonseca • Maria Rogel • Marta Traquino • Miguel, Henrique e Paula Cunhal • Natália Almeida • Paulo T. Silva • Roberto Falanga • Rui Alves • Rui Branco • Mª João Durão Sara Candeias • Siobhan Cronin • Susana Baptista • Susana Pedrosa • Tiago Moura • Verónica Almeida

&

Alejandro Laguna • Cláudio Salvador • Emilia Rabuini • Gian Minelli • Graciela Torres • Henry Nguyen • Leandro Pennella • Maral Kojayan • Naoko Hanamura • Nora Hernandez • Sónia Mendes • Ulises Delle Ville • Vanina Montenegro

&

aos especialistas e impulsionadores entrevistados

Alejandro Abaca • Catarina Clusellas • Daniela Azulay • Diana Goransky • Edi Rama • Esteban Javier Rico • Gonzalo Etchegorry • Horacio Vega • Javier Barilaro • Javier Fernández Castro • Juan Fontana • Julio García • Luis Feldman • Mara Steiner • Maria Luisa Musso • Marino Santa María • Mercedes Di Virgilio • Monica Lacarrieu • Mônica Nador • Paula Siganevich • Rita Molinos • Roberto Lombardi • Veronica García

Jose Luis Caivano

À Fundação para a Ciência e Tecnologia pela bolsa de doutoramento concedida, sem a qual esta investigação não teria sido feita. Aos meus orientadores Mª João Durão (FA-UL) e Jose Luis Caivano (FADU-UBA), ao CIAUD e ao Professor Fernando Moreira da Silva. À Inês Coimbra, inexcedível companheira de edição e incontáveis revisões gráficas. A todos o meu mais genuíno Obrigada.


Sumário p. 15

01. Introdução

p. 17

p. 63

O ponto de partida Sobre a cor na cidade, à procura de um contexto Fazer com os outros: o caminho do Co-Design Desenvolvimento humano: valor base para a acção participativa Necessidades e potencialidades humanas, de que se fala? O que se refere quando se diz Participação? A fachada residencial enquanto lugar para a acção Rota, ferramentas e decisões de percurso Estudo de Casos Investigação Acção Opções para uma (boa) pesquisa participativa Porquê São Cristóvão?

p. 67

02. Intervenções de Pintura em Buenos Aires

p. 69

O contexto, Buenos Aires megacidade La Boca: o bairro da cor reconhecida Calle Lanín | Bairro Barracas (2001 – 2011) Tango Abasto | Bairro Balvanera (2002 – 2005) El Abasto y el fileteado porteño | Bairro Balvanera (2004) Pintar el Once | Bairro Balvanera (2006 – 2009) La Villa 20 es una pinturita | Bairro Villa Lugano (2008) Barracas Pinta Bien | Bairro Barracas (2010) Reflexões e outras questões Objectivos, preocupações e intenções sociais Participação criativa ou de espectador? (Re)criação da identidade e renovação ou actualização da cidade Os processos das intervenções, um primeiro passo ... e ainda sobre as potencialidades e necessidades humanas

p. 19 p. 30 p. 41 p. 45 p. 48 p. 51 p. 54 p. 55 p. 59 p. 62

p. 72 p. 77 p. 85 p. 92 p. 101 p. 111 p. 118 p. 145 p. 145 p. 146 p. 151 p. 154 p. 156


p. p. p. p. p. p. p. p. p. p. p.

163 165 168 170 172 179 187 201 204 213 224

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233 237 241 245 249 253

p. 259 p. 261 p. 268 p. 273 p. 277 p. 279 p. 283 p. 295

03. ViverCor Corabitando ViverCor Corabitando, conceitos São Cristóvão, lugar de acção O Processo em São Cristóvão Apresentação (Outubro – Novembro 2011) Negociação (Dezembro 2011 – Abril 2012) Efectivação (Maio – Julho 2012) Avaliação (Agosto – Setembro de 2012) E depois da acção? Reflexões: ViverCor, uma acção que vê e que dá a ver Reflexões: ViverCor, promotor múltiplo de potencialidades humanas Cadernos de Campo 1 – Ó vida de mil faces transbordantes 2 – O que mais há na terra, é paisagem 3 – Se puderes olhar, vê ... 4 – Adoro o campo, as árvores, as flores 5 – Mais longe, Cristóvão ... 6 – A liberdade começa nas tuas mãos

04. Considerações Finais, Recomendações e Anexos Considerações Finais Recomendações para impulsionadores de acções participativas Anexo I – Greening & Painting | Edi Rama, Tirana Anexo II – Villa 31 Retiro | Gob. Ciudad de Buenos Aires, Buenos Aires Anexo III – Pintar e Cantar dos Reis | Celebração da Epifania, Alenquer Bibliografia e Referências Créditos das Imagens


fachada: membrana, tecido de trocas entre o exterior e o interior. ainda com os passos perdidos e a cabeça nesta ideia aconteceu-me ler, "sem janelas afogamo-nos não pela falta de ventilação mas antes pelo debilitar da nossa imaginação." (Doberti e Giordano, 2006)

e antes de avançar uma pergunta na bagagem: "Será que este caminho tem coração? Se tem, o caminho é bom; Se não tem, não presta" (Castaneda, 1995)

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01 Introdução

O ponto de partida Sobre a cor na cidade, à procura de um contexto Fazer com os outros: o caminho do Co-Design Desenvolvimento humano: valor base para a acção participativa Necessidades e potencialidades humanas, de que se fala? O que se refere quando se diz Participação? A fachada residencial enquanto lugar para a acção Rota, ferramentas e decisões de percurso

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Casinha, Trás-os-Montes, Carrazedo (1984), filme super 8.


O ponto de partida

Talvez as inquietações para os doutoramentos surjam muito antes de nos darmos conta delas. Quando morei em Buenos Aires em 2009, aí deslocada em Serviço de Voluntariado Europeu, a realizar levantamentos cromáticos, 1 observei conjuntos de fachadas pintadas que interrompiam ou pontuavam a imagem da cidade de forma inesperada, para mim surpreendente. Não identificava as pinturas com os incontáveis murais muito presentes na cidade, nem com a linguagem visual do difundido graffiti (considerando que Buenos Aires é uma capital da Street Art onde existem trabalhos de autores tão conhecidos como Banksy e Blu). Estas pinturas não se serviam da parede apenas como suporte, mas antes trabalhavam conjuntamente com os elementos arquitectónicos de cada edifício pintado, prestando uma nova imagem de conjunto à rua ou ao bairro, e contudo, afastavam-se mais ainda da unidade ou harmonia cromática de intervenções segundo critérios de preservação patrimonial ou planos cromáticos de transformação. No bairro de Palermo Viejo pintavam-se as fachadas das casas chorizo, 2 com as cores das marcas que as novas lojas abrigavam (do vermelho ao castanho ou prateado, passando pelo laranja, violeta, verde alface e celeste, entre outras); junto ao mercado Abasto apareciam fachadas inteiramente decoradas com fileteado 3 e algumas empenas cobertas com pinturas pop de um mesmo retrato do cantor Carlos Gardel; numa pequena rua mais esquecida do bairro Barracas um artista plástico havia pintado praticamente todas as fachadas e… poderia seguir enumerando muitas outras pinturas, sem esquecer as do turístico bairro

1 Antes do doutoramento em Design, realizado na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa (FA/UL) em colaboração com a Facultad de Arquitectura Diseño y Urbanismo de la Universidad de Buenos Aires (FADU/UBA), executei levantamentos cromáticos nos bairros de Palermo Viejo e de La Boca através de uma parceria entre o GAC - Grupo Argentino del Color e a Câmara Municipal do Montijo, Portugal, ao abrigo do Serviço de Voluntariado Europeu.

2 Nome dado a casas de habitação (muitas vezes com loja na entrada), desenvolvendo-se ao comprido para dentro do quarteirão, assemelhando-se a planta com um “chouriço”. É uma arquitectura com influência italiana, largamente construída em Buenos Aires no início de século XX e fachada originalmente rebocada a semi-pedra (mistura de cimento com pó de pedra). 3 Arte decorativa que será explicada com mais detalhe no Capítulo II.

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Verónica Conte A Cor em Acção

La Boca, 4 tanto as do visitado Caminito, como as da sua envolvente habitacional mais desconhecida, todas causando questionamentos e interrogações. Estas pinturas traziam algo novo ao meu olhar. Surgiam de forma muito diferente do que tinha estudado até então e, à excepção das lojas do bairro de Palermo Viejo, surpreendiam ainda mais por se localizarem, não poucas vezes, em edifícios de habitação de lugares comummente denominados de carenciados. Voltei a questionar-me sobre a ideia de casa e sua imagem exterior. Recordei recorrentemente o colorido da “casinha”, o primeiro lugar para a fantasia ou para o “quase tudo é possível”, que o meu pai construíra em contraplacado e cores alegres, fazendo felizes as crianças da família (ver Img. 1). Talvez despertada pela inusitada semelhança de cor e liberdade, entre a vulnerável casa de madeira da memória de infância e a imagem destas invulgares fachadas coloridas, que sobressaíam perante o desleixo e a desatenção destinada a grande parte da arquitectura da cidade, emergiu uma vontade de entender o sentido destas pinturas: quem, como e sobretudo com que propósito, tinham sido produzidas as coloridas transformações então observadas nas paredes da capital argentina?

4 Bairro de Buenos Aires conhecido especialmente pela rua Caminito e cor saturada das suas fachadas, aspecto mais desenvolvido no Capítulo II.

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O contexto, Buenos Aires megacidade

Na sua cultura e vivência quotidiana, Buenos Aires apresenta-se ainda hoje como um espaço fugidio, entre o amoroso e o ameaçador, entre o vital e o refractário, entre o convidativo e o expulsivo. Uma sociedade que controla e domestica através do olhar constante do outro e ao mesmo tempo, habitada por personagens marginais que circulam subterrânea e lateralmente. Buenos Aires aparece secreta e alheada, provocando e negando fricções e misturas; um lugar para inventar o nunca visto, mas para o inventar amanhã. Uma malha tecida à superfície que confirma e administra o território e um colectivo de latências menores que sobrevive diferente (Alÿs, 2006, p. 55). "Buenos Aires é como uma mulher: linda e inalcançável" (Lacarrieu & Pallini, 2007, p. 33). Buenos Aires, talvez como todas as cidades, não é fácil de descrever. Depois de um longo período iniciado à data das suas fundações (1536 e 1580) à sombra da sumptuosa capital do Império – Lima, com uma dimensão aproximada a uma aldeia, só na segunda metade do século XIX sai desse adormecimento. Já décadas após a Independência da Argentina, Buenos Aires inicia um rápido crescimento, com a chegada maciça de imigrantes italianos, originando o seu período áureo. Até aos anos 40 do século XX “a cidade transformar-se-á em metrópole internacional, abrindo amplas avenidas e levantando a maior massa de arquitectura moderna que nessas décadas, à excepção de Nova Iorque, nenhuma outra cidade pôde mostrar” (Petrina, 1998, p. 8). Após esse grande desenvolvimento e transformações no decorrer do século passado, moldadas por contextos políticos e económicos diversos, onde se incluem seis golpes de estado, ditaduras militares e uma dramática crise económica à viragem do século XXI, Buenos Aires é hoje a segunda maior cidade da América do Sul (a primeira é São Paulo); uma megacidade com mais de 10 milhões de residentes, fenómeno também relativamente novo à escala mundial (Rao, 2010), em presença de grande número de culturas e contextos sociais, que se estendem por um território de 202 km² de área metropolitana (Dirección General Centro Documental de Información y Archivo Legislativo, 2011). Desde 1983, com a recuperação dos governos democráticos e com mais força na década 69


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Casas chorizo em Palermo Viejo, Buenos Aires (2011). Rua do micro-centro, amanhecer de domingo (2011).

neoliberal de 90 instalou-se um desenvolvimento urbano e territorial permeável à especulação do mercado global, que deixou para trás a lógica do “urbanismo tradicional onde a cidade era o marco referencial” (Welch Guerra, 2005, p. 10). 32 O actual crescimento em sobrecarga e um ritmo de mudança acelerado espelham-se na arquitectura, que se apresenta visualmente retalhada pela mistura de diferentes tipos de construção e publicidade diversa. A par da arquitectura cuidada com influência francesa e italiana de início de século XX, construída sobretudo no centro num contexto de riqueza e prosperidade, hoje envelhecida e com alterações (ver Img. 38–40), encontramos uma arquitectura corrente ou até em alguns casos informal, contribuindo para um espaço de rua frequentemente negligenciado, que ocupa entre 25% a 30% da cidade (Borthagaray, 2010). Longe ficou o cuidado e importância estética dedicada às fachadas, estimulada pelo Prémio Municipal de Fachadas (Garcia Falco, 2002, p. 6) promovido pelo Gobierno de la Ciudad e avaliado pela Societad Central de Arquitectos, entre 1902–1972. A incapacidade do poder local para responder às solicitações e a velocidade de transformação de Buenos Aires são características que fizeram surgir soluções sem planeamento, à margem de regulamentos ou normas estabelecidas pelas autoridades (por isso informais) para resolução de alguns dos seus espaços. O estado partilha assim o seu papel com privados (especialmente interessados no lucro, loteamentos e construção) e com um terceiro sector ou organizações da cidadania constituído por associações de moradores, organizações 70


O contexto, Buenos Aires megacidade

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Cruzamento Av. Del Libertador e Av. Dr. Ramos Mejia, Retiro, Buenos Aires (2011).

não-governamentais, académicos ou ainda artistas que têm vindo a abraçar a tarefa de revitalizar, construir ou dar sentido a espaços cinzentos, e também responder a determinadas necessidades sociais sentidas pelos moradores dos bairros onde se inserem. Com importância crescente, sobretudo desde a segunda metade dos anos 90, e influência activa nos processos de transformação do espaço público (Leveratto, 2005) este terceiro sector actua à escala local – o bairro – território ao qual se atribuem características particulares, únicas para os moradores que as enumeram muitas vezes com orgulho. Max–Neef (1986) observa como Buenos Aires, apesar da sua dimensão, ao ser composta por muitos bairros com identidade própria, mantém uma escala de proximidade, uma dimensão humanizadora que os habitantes tanto apreciam e tentam preservar 33 – um sentimento de bairro traduzido numa acolhedora sensação de afinidade, intimidade e conforto. Foi deste complexo mosaico de escalas, construções e emoções por vezes ambíguas, que se recortaram as intervenções de pintura apresentadas de seguida, também elas à escala do bairro e fruto do trabalho do terceiro sector. (página anterior) Deste tipo de desenvolvimento decorrem os graves problemas do urbanismo actual “suburbanização residencial e funcional, desintegração socioespacial, crise crónica dos centros urbanos, e outros fenómenos com eles relacionados” (Welch Guerra, 2005, p. 9).

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33 Tome-se como exemplo o movimento Palermo Despierta, em defesa da identidade e património do bairro perante a construção em altura, ver www.palermodespierta.blogspot.pt/2008/05/palermo-despierta_20.html

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Verónica Conte A Cor em Acção

La Boca: o bairro da cor reconhecida

Apesar da crescente presença de cor, Buenos Aires persiste imaginada, segundo os habitantes, como uma cidade em vários tons de cinzento, 34 com uma única excepção: Caminito, a rua mais famosa do bairro de La Boca, um ex libris da cidade e também uma das imagens mais divulgadas da Argentina (ver Img. 41, e 21–22, p. 39), como descrevem Lacarrieu & Albuquerque (2007) no seu vasto trabalho sobre imaginários urbanos. Vejamos a referencial história cromática deste bairro. Inicialmente, La Boca era feita de conventillos (cortiços, habitações colectivas) de madeira e chapa sobre as terras inundáveis do Rio Matanza. Eram pintados com as tintas sobrantes das pinturas dos barcos, em tons pouco saturados e combinações espontâneas, seguindo o costume dos emigrantes italianos oriundos da região de Génova. 35 Mais tarde, La Boca e Caminito em particular, muito ficaram a dever, na sua cor, ao trabalho de Benito Quinquela Martín famoso pintor argentino. Quinquela promoveu a cultura cromática através do registo, mas também ao expandir a superfície de trabalho das telas para as fachadas, mobiliário urbano, gruas, barcos e até um eléctrico. Quinquela doou terrenos para a construção de equipamentos locais, 36 estabeleceu a paleta arquitectónica dos mesmos e promoveu critérios cromáticos consistentes (ver Img. 19, p. 38) que foram seguidos por outros proprietários de La Boca na envolvente das intervenções do pintor, como por exemplo Caminito (Rabuini & De Mattiello, 2008). Quinquela foi inovador ao atribuir importância à cor no espaço público, diferenciando e consolidando La Boca enquanto o lugar da cor na cidade. Esta ideia dever-se-á sobretudo ao facto do revestimento tradicional, que cobre a maioria dos edifícios do centro da cidade, ser feito por uma mistura de pó de pedra e cimento denominada semi-pedra ou pedra Paris. Este revestimento, que outrora podia assumir cores ocre pastel, com o tempo e poluição, toma hoje um aspecto pardo acinzentado. 35 Enquanto curiosidade, também em Portugal, em aldeias piscatórias da zona de Santarém, as casas de madeira são pintadas com as cores dos barcos, 34

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resultando numa interessante manifestação cromática. Destaca-se entre as demais a aldeia Palhota. 36 Escola Museu Pedro de Mendonza (1936), Lactário Municipal Jardim Infantil Benito Quinquela Martín (1947), Jardim Infantil nº6 (1948), Escola Técnica de Artes Gráficas Armada Argentina (1950), Hospital Nacional de Odontologia Infantil (1959). Teatro de la Ribera (1970). (Fonte: Emilia Rabuini, Prospecto La Boca. Color de Barrio, s. d.).


La Boca: o bairro da cor reconhecida

Img. 41

Localização de Caminito, Pasaje Garibaldi e Praça Solís em Buenos Aires e La Boca.

Nos últimos anos, a pressão comercial e turística tem conduzido os proprietários dos estabelecimentos de La Boca ao uso publicitário desregrado da cor, e consequente desfazer das propostas de Quinquela, em troca de cores saturadas, brilhantes e desenhos que fragmentam as fachadas segundo uma lógica comercial. As ruas turísticas (onde existe maior policiamento), sobretudo Caminito e quarteirões em redor, estão hoje fortemente transformadas e descaracterizadas (ver Img. 44). Relativamente à intenção original de Quinquela, destaca-se Pasaje Garibaldi (ver Img. 42–43), que recuperou as cores originais após a rigorosa investigação da arquitecta Emilia Rabuini e intervenção de reconversão cromática da mesma autora em colaboração com Nora Seilicovich (2006). 37 Mas à margem da área turística e comercial de La Boca, a motivação para o cuidar da fachada deixado por Quinquela continua a dar os seus frutos. Emilia Rabuini (também ela originária de La Boca) desenvolveu um importante trabalho de investigação sobre a origem das cores de La Boca, analisando em laboratório e comparando exaustivamente, as paletas dos barcos, dos conventillos e das telas de Quinquela. Para saber mais, consultar

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Patrimonial Identity in the Urban Landscape: Color in La Boca (Rabuini & De Mattiello, 2008). Emilia também desenvolveu outros projectos de reconstrução cromática em La Boca. O seu trabalho foi pioneiro por reconhecer a importância e valor histórico do trabalho de Quinquela.

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