A Utopia Original de se Nascer Humano
Joana Andion
O que é de todos
Sou pesada e sei-o
Sou pesada e sei-o
Sobre os meus ombros
Recaem as complexidades do mundo
As incredulidades do ser
Sou pesada e sei-o
A leveza nunca a compreendi
As respostas nunca as achei
Arrasto o dever de ser alguém
Sou pesada e sei-o
Da leveza, só conheço a fugaz
Da calma, a imposta por mim
Pergunto ao peso quando terá fim.
Ser criança e não saber
Ser criança e não saber
O que custam as noites
Em que o sono não vem
E a angústia nos detém
Ser criança e não saber
O que é a consciência
Que vai para além da obediência
Pois agora quem manda somos nós
Ser criança e não saber
O que é a perceção,
De se querer e não poder, De se estar e não viver
Ser criança e não saber
Que os sonhos se vão embora Como o papagaio de papel
Que perdeste a ir para a escola
E com o papagaio, Também desaba a ilusão
De que os avós, Para sempre ficarão
Ser criança e não saber
É a dádiva do ser
Que a vida nos deu a provar
Antes de desaprendermos a sonhar.
Efémero A constatação, De que somos nós, Mais efémeros
Do que o resto do mundo
Pesa como ferro, Que cai sobre
O dedo mindinho
Do pé
A constatação, De que estas escadas, Que desço todos os dias, Ficarão quando já não as descer
De que a minha praia, Todos aqueles grãos de areia,
A rocha onde me sento, Tudo isso, permanecerá
A constatação, De que sou carne, Frágil e sangrável, De que de nenhuns poderes sou dona Sem ser daqueles que não se tocam
Sem ser da virtude de ver o que é belo, E com isso sentir felicidade, Mas só isso
A constatação, De que a chuva que me molha
E a mola do meu cabelo
E a mochila que usei para a escola
Ficam, e eu vou, Vou como quem voa, E desvanece, Como quem é só matéria
A constatação,
De que a música que faço O poema que escrevo Não morrem comigo
Sou eu que vou Que voo, Que já não sou Que sou memória
A constatação,
De que o muro em que me encosto, A linha de comboio que atravesso
E este miradouro,
Que até Lisboa me supera
E viverá mais que eu Sou eu mais efémera que ela Somos nós, Mais efémeros que o resto do mundo,
E tu,
Não sei se mais efémero que eu, Deus queira que não, Que sejamos efémeros os dois, Voemos ao mesmo tempo, Sem superar ninguém, Que o mundo nos supere ao mesmo tempo,
E nos desvaneça em matéria nesse preciso momento.
Liberdade, que privilégio
Hoje, de madrugada
Soa a multidão
Cheira a liberdade
A chuva limpa as ruas com verdade
Ouvem-se as vozes, Em uníssono, Que choram, Pelas memórias atrozes
Hoje, fazemo-nos ouvir
Sabemos onde ir
Ninguém pergunta quem somos
Ninguém sabe de onde vimos
Liberdade, velha amiga
Que nos dignifica
Nos individualiza
Nos dá vida
Liberdade, querida amiga
Sem ti, não era nada
Sem te ver, Cegava
Liberdade,
A ti te canto
Por ti dei a mão
De quem ouvi pranto
Liberdade, que privilégio
Quando te tinha não sabia
Desprezei o que me dizias
Nem sabia por onde ia
Agora, consciente
Liberdade, a ti te devo,
Porque foste a única ciente,
Tudo aquilo que escrevo.
Ego
Ao som de Maria Callas
Retenho o que tenho
Impulsiono o interior das entranhas
Ego, ego, ego, ego, salva-me.
Do latim, eu
De mim, nada?
Alavanca do poder, Motor da consciência, Inimigo da própria casa
Mas o seu mesmíssimo salvador
Do latim, eu
De mim, algo?
Deriva o orgulho
E deriva a chama
E sem ego não me vês
E sem ego não me vejo
Do latim, eu
De mim, tudo
Ego, amigo, inimigo
Luta minha, interna, fria, derradeira, queima Indecifrável o impacto
Desequilíbrio sem tato
Do latim, eu
De mim, o quê?
A dança
Não te soube dar o nó da gravata, Mas a quem pediste alegraste, Com a nostalgia das festas, De se pôr um fato, E ir dançar.
Quem me dera ter sabido, De todas aquelas vezes, Em todos aqueles passos de dança, As saudades que ia ter De meras festas de 18 anos, Com autocarros de volta a Lisboa.
É que agora dançar cansa, E tem que caber na agenda da semana, Já não é a dança espontânea, Agora combinamos ir dançar.
E fazemos check na dança, Riscamos da to do list, O que interessa é riscar.
Alívio – menos uma tarefa.
Não se aproveitam os passos, Para a frente, para o lado, para trás.
Não se ouvem as notas, Dó, ré, mi, fá, sol, lá.
Já nem nos abraçamos, No meio de encontrões suados, Já nem chamamos o amigo que ficou cansado.
Dançar agora é uma task , Daquelas que se fazem com frete, E no fim, com o alívio, “Já dancei, feito, vou descansar”.
A arte Sabes tão bem quanto eu que para sobreviver A arte exagera a realidade das coisas.
O que é de um
Van Gogh portuguêsNinguém conhece ninguém.
G3N15
“Estoy en un sitio que no te llevaría
Aquí nadie está en paz entre estrellas”
Sentido.
Procuro sentido.
São altas as tuas facetas.
De tela feitas, de tinta secas.
Têm cores, as tuas facetas.
Deixaste-te em bonecos,
Cada um, um tu.
Tu, que não conhecia.
Não havia liberdade?
Só entre as estrelas?
Não foi aqui que a viste?
Foi entre as estrelas?
Foi por ser insuportável?
Ou nasceste sabendo o segredo?
Sabias, antes de nós, que não é aqui.
Deixaste-te em tela, para guiar.
Mas tu sabias.
Espalhaste-te, em losangos, cronogramas, linhas tortas, linhas retas, Mas sabias,
O sentido,
Mais do que nós.
Sabias.
Ou não?
Esdrúxula
Hoje acordei esdrúxula porque ontem não me soubeste pontuar.
Um dia Cleópatra, outro patética.
É o destino do sonâmbulo que nos seus pêsames se faz público da própria solidão.
Não sei se foi a física ou se sou mesmo eu que sou uma nódoa, Dá-me apenas náuseas saber que o excêntrico não te encheu as medidas.
Por isso, hoje, apesar de esdrúxula, Espero que amanhã alguém me saiba pontuar.