A Utopia Original de se Nascer Humano

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A Utopia Original de se Nascer Humano

Joana Andion

A Utopia Original de se Nascer Humano

Joana Andion

de todos Sou pesada e sei-o 8 Ser criança e não saber 9 Efémero 10 Liberdade, que privilégio 12 Ego 13 A dança 14 A arte 15
que é de um Van Gogh português 18 Esdrúxula 19 Candeeiro, luz 20 Ao som do incógnito 21 O homem caras 22 Armário, charriot 23 Dissociação 24 Fogo de vista 25 O abandono triunfal 26 Contrariedades 27 Danúbio de madrugada 28 Contrato 30 Oeste 31 O amor da minha vida 32 Poder 33 Sei eu 34 Verdade 35
O que é
O
Força 36 Minha Lisboa 37 Mulher 38 A cidade está vazia 39 Sem nome I 40 Poeta pateta 41 Enquanto 42 Essa luz 44 Atividade 45 O que não é da Terra Hotel Hollywood 48 A morte agora é doce porque mora lá um amigo 49 Calçada da Graça n.º 1 50 Outubro há de chegar 53 Estrada velha 54 Presença ausente 56
que é do Mundo A Grécia e os gatos 60 Scopello, o começo 61 Siracusa de noite 62 Cefalú de noite 63 Santorini 64 Santola 65
O

O que é de todos

Sou pesada e sei-o

Sou pesada e sei-o

Sobre os meus ombros

Recaem as complexidades do mundo

As incredulidades do ser

Sou pesada e sei-o

A leveza nunca a compreendi

As respostas nunca as achei

Arrasto o dever de ser alguém

Sou pesada e sei-o

Da leveza, só conheço a fugaz

Da calma, a imposta por mim

Pergunto ao peso quando terá fim.

8 | O que é de todos

Ser criança e não saber

Ser criança e não saber

O que custam as noites

Em que o sono não vem

E a angústia nos detém

Ser criança e não saber

O que é a consciência

Que vai para além da obediência

Pois agora quem manda somos nós

Ser criança e não saber

O que é a perceção,

De se querer e não poder, De se estar e não viver

Ser criança e não saber

Que os sonhos se vão embora Como o papagaio de papel

Que perdeste a ir para a escola

E com o papagaio, Também desaba a ilusão

De que os avós, Para sempre ficarão

Ser criança e não saber

É a dádiva do ser

Que a vida nos deu a provar

Antes de desaprendermos a sonhar.

9 | O que é de todos

Efémero A constatação, De que somos nós, Mais efémeros

Do que o resto do mundo

Pesa como ferro, Que cai sobre

O dedo mindinho

Do pé

A constatação, De que estas escadas, Que desço todos os dias, Ficarão quando já não as descer

De que a minha praia, Todos aqueles grãos de areia,

A rocha onde me sento, Tudo isso, permanecerá

A constatação, De que sou carne, Frágil e sangrável, De que de nenhuns poderes sou dona Sem ser daqueles que não se tocam

Sem ser da virtude de ver o que é belo, E com isso sentir felicidade, Mas só isso

A constatação, De que a chuva que me molha

E a mola do meu cabelo

E a mochila que usei para a escola

10 | O que é de todos

Ficam, e eu vou, Vou como quem voa, E desvanece, Como quem é só matéria

A constatação,

De que a música que faço O poema que escrevo Não morrem comigo

Sou eu que vou Que voo, Que já não sou Que sou memória

A constatação,

De que o muro em que me encosto, A linha de comboio que atravesso

E este miradouro,

Que até Lisboa me supera

E viverá mais que eu Sou eu mais efémera que ela Somos nós, Mais efémeros que o resto do mundo,

E tu,

Não sei se mais efémero que eu, Deus queira que não, Que sejamos efémeros os dois, Voemos ao mesmo tempo, Sem superar ninguém, Que o mundo nos supere ao mesmo tempo,

E nos desvaneça em matéria nesse preciso momento.

11 | O que é de todos

Liberdade, que privilégio

Hoje, de madrugada

Soa a multidão

Cheira a liberdade

A chuva limpa as ruas com verdade

Ouvem-se as vozes, Em uníssono, Que choram, Pelas memórias atrozes

Hoje, fazemo-nos ouvir

Sabemos onde ir

Ninguém pergunta quem somos

Ninguém sabe de onde vimos

Liberdade, velha amiga

Que nos dignifica

Nos individualiza

Nos dá vida

Liberdade, querida amiga

Sem ti, não era nada

Sem te ver, Cegava

Liberdade,

A ti te canto

Por ti dei a mão

De quem ouvi pranto

Liberdade, que privilégio

Quando te tinha não sabia

Desprezei o que me dizias

Nem sabia por onde ia

Agora, consciente

Liberdade, a ti te devo,

Porque foste a única ciente,

Tudo aquilo que escrevo.

12 | O que é de todos

Ego

Ao som de Maria Callas

Retenho o que tenho

Impulsiono o interior das entranhas

Ego, ego, ego, ego, salva-me.

Do latim, eu

De mim, nada?

Alavanca do poder, Motor da consciência, Inimigo da própria casa

Mas o seu mesmíssimo salvador

Do latim, eu

De mim, algo?

Deriva o orgulho

E deriva a chama

E sem ego não me vês

E sem ego não me vejo

Do latim, eu

De mim, tudo

Ego, amigo, inimigo

Luta minha, interna, fria, derradeira, queima Indecifrável o impacto

Desequilíbrio sem tato

Do latim, eu

De mim, o quê?

13 | O que é de todos

A dança

Não te soube dar o nó da gravata, Mas a quem pediste alegraste, Com a nostalgia das festas, De se pôr um fato, E ir dançar.

Quem me dera ter sabido, De todas aquelas vezes, Em todos aqueles passos de dança, As saudades que ia ter De meras festas de 18 anos, Com autocarros de volta a Lisboa.

É que agora dançar cansa, E tem que caber na agenda da semana, Já não é a dança espontânea, Agora combinamos ir dançar.

E fazemos check na dança, Riscamos da to do list, O que interessa é riscar.

Alívio – menos uma tarefa.

Não se aproveitam os passos, Para a frente, para o lado, para trás.

Não se ouvem as notas, Dó, ré, mi, fá, sol, lá.

Já nem nos abraçamos, No meio de encontrões suados, Já nem chamamos o amigo que ficou cansado.

Dançar agora é uma task , Daquelas que se fazem com frete, E no fim, com o alívio, “Já dancei, feito, vou descansar”.

14 | O que é de todos

A arte Sabes tão bem quanto eu que para sobreviver A arte exagera a realidade das coisas.

15 | O que é de todos

O que é de um

Ninguém conhece ninguém.

G3N15

“Estoy en un sitio que no te llevaría

Aquí nadie está en paz entre estrellas”

Sentido.

Procuro sentido.

São altas as tuas facetas.

De tela feitas, de tinta secas.

Têm cores, as tuas facetas.

Deixaste-te em bonecos,

Cada um, um tu.

Tu, que não conhecia.

Não havia liberdade?

Só entre as estrelas?

Não foi aqui que a viste?

Foi entre as estrelas?

Foi por ser insuportável?

Ou nasceste sabendo o segredo?

Sabias, antes de nós, que não é aqui.

Deixaste-te em tela, para guiar.

Mas tu sabias.

Espalhaste-te, em losangos, cronogramas, linhas tortas, linhas retas, Mas sabias,

O sentido,

Mais do que nós.

Sabias.

Ou não?

18 | O que é de um

Esdrúxula

Hoje acordei esdrúxula porque ontem não me soubeste pontuar.

Um dia Cleópatra, outro patética.

É o destino do sonâmbulo que nos seus pêsames se faz público da própria solidão.

Não sei se foi a física ou se sou mesmo eu que sou uma nódoa, Dá-me apenas náuseas saber que o excêntrico não te encheu as medidas.

Por isso, hoje, apesar de esdrúxula, Espero que amanhã alguém me saiba pontuar.

19 | O que é de um

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