Doenças, Doentes e Médicos

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Além de nos recordar factos da história recente da Medicina portuguesa, revela-nos a personalidade de um dos seus protagonistas, que tem sabido aliar à competência profissional, a honestidade, o dinamismo, a generosidade e a necessidade de partilha que o transformaram numa figura exemplar de médico e de cidadão. [Do texto de apresentação da obra, Barros Veloso]

UM PERCURSO PELA MEDICINA

Álvaro de Carvalho

É na componente autobiográfica que este livro ganha um interesse maior. Aí estão contidas opiniões, divergências, testemunhos e comentários, suscitados por uma longa experiência.

Doenças, Doentes e Médicos

Um conjunto de textos que sendo autobiográficos, sem nunca se assumirem claramente como tal, são também históricos, técnicos, de opinião e sobretudo o resultado de uma exigência interior de comunicar — a médicos e não médicos — experiências, conhecimentos, problemas não resolvidos e até algumas obsessões.

Doenças Doentes e Médicos UM PERCURSO PELA MEDICINA

Álvaro Carvalho

Álvaro Eiras Carvalho Nasceu em Agosto de 1948 em Mata de Lobos, concelho de Figueira de Castelo Rodrigo. Fez o ensino secundário no Liceu da Guarda e foi estudante de Medicina na Faculdade de Medicina de Lisboa, concluindo a licenciatura em 1975. Iniciou a carreira médica nos Hospitais Civis de Lisboa, especializando-se em Medicina Interna. Após concursos públicos, ocupou vagas dos quadros dos hospitais de Cascais e Hospitais Civis de Lisboa. Em qualquer destas instituições desempenhou cargos de relevo, como o de Director do Serviço de Medicina, Director do Internato Médico e Presidente da Comissão de Ensino do Hospital de Santo António dos Capuchos/Desterro. Em 1992 foi nomeado Director Clínico do Hospital Garcia de Orta, cargo que exerceu durante oito anos, assegurando, em simultâneo, a chefia do Departamento Médico e do Serviço de Medicina. Em 1994, atingiu o topo da carreira médica hospitalar. De 2002 a 2009 foi Presidente do Conselho de Administração do Hospital Garcia de Orta. De 2006 a 2011 foi Professor convidado de Clínica da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Em 2011, responsável clínico dos Serviços Sociais da CGD. Actualmente integra o Conselho Nacional de Ética e Deontologia da OM. É Presidente da Fundação Álvaro de Carvalho. É colaborador do jornal regional Ecos da Marofa. No início da década de 80, e durante 11 anos, teve consultório na sede da Junta de Freguesia de Mata de Lobos, onde fazia com regularidade consultas gratuitas, não só para as pessoas da aldeia, mas também de todo o concelho de Figueira de Castelo Rodrigo e de outros. Autor dos livros Rio De Memórias, com uma edição em língua castelhana, Nas Margens da Medicina, Às Oito Menos um Quarto, Anatomia de um Sequestro e Imperdoável.



AGRADECIMENTOS

A todos os que me auxiliaram a elaborar este livro. Duas referências especiais: meu primo Eurico Carvalho e meu filho Daniel, porque me apresentaram muitas ideias e sugestões, além de me terem ajudado a fazer as necessárias correcções.


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Nota de Apresentação

13

Nota Prévia

21

Introdução

29

Parte I

29

Peste negra

33

Pandemias virais

34

Pneumónica

35

Febre asiática

36 40

Doenças infecciosas

Gripe das aves Amplo leque de infecções

40

Botulismo

41

Cólera

43

Febre-amarela

43

Febre tifóide

45

Gangrena gasosa

47

Gastroenterites

48

Gripe sazonal

50

Lepra

52

Malária

54

Mononucleose infecciosa

55

Tétano

56

Tuberculose

63

Varíola

65

Zoonoses

66

Brucelose

69

Calazar

69

Carbúnculo

71

Febre escaronodular

72

Febre Q

73

Leptospirose

74

Quisto hidático

75

Raiva

76

Toxoplasmose

77

Infecções sexualmente transmissíveis

77

Gonorreia ou blenorragia

78

Cancro mole

79

Infecção por clamídia, tricomoma e cândida


79 79 82

Infecção por HPV Sífilis Doenças infecciosas da criança

82

Difteria

83

Parotidite

84

Poliomielite

85

Rubéola

85

Sarampo

87

Tosse convulsa

87

Varicela

88

Infecções provocadas por bactérias gram-positivas

88

Estafilococo

89

Estreptococo

89

Amigdalite e faringite

89

Escarlatina

90

Febre reumática

90

Coreia de Sydenham

90

Glomerulonefrite

90

Meningococo

92

Pneumococo

93

Infecções por bactérias gram-negativas

94

Infecções emergentes

94

Hepatites

96

Legionela

101

Parte II

101

Primeira metade do século XX

107

Segunda metade do século XX

Um retrato da evolução da Medicina em Portugal

107

A era dos antibióticos

110

Vacinas

112

Melhoria da alimentação e das condições sanitárias de base das populações

113

O internamento nas décadas de 1960 e 1970

122

Resistências bacterianas

125

Avanços em Anestesia e Cirurgia

126

Mudança do paradigma das doenças

135

Tumores

140

Quando o médico adoece


143

Parte III

143

Reformas na saúde

146

Hospitais: o longo e difícil percurso

151

Especialização em Medicina

156

A Revolução de Abril e a saúde

158

Serviço Médico à Periferia

161

Hospitais distritais — outro passo decisivo

167

Parte IV

Política de saúde

A Medicina a partir da década de 1980

167

Novas técnicas de diagnóstico e de terapêutica

174

A importância da Medicina Intensiva

179

Ainda a eutanásia

181

Iatrogenia

185

Sida: impacto médico e social

195

O papel do médico de Medicina Geral e Familiar

198

Cuidados continuados

199

Cirurgia laparoscópica

201

Cirurgia robótica

202

Transplante de órgãos

206

Próteses

209

Parte V

Estrutura e organização hospitalar

211

Gestão de topo

216

Administração hospitalar

220

Direcção clínica

223

Gestão intermédia

225

Departamentação

228

Serviços de urgência

237

Hospitais de dia

241

Comissões hospitalares

244

Internato médico


245

Parte VI

245

Hospitais SA

250

Hospitais EPE

252

Arquitectura do sistema de saúde

261

Parte VII

267

Parte VIII

273

Nota final

275

Anexos

275

A sociedade engripada

278

Um filme já visto

280

Vacinação: é proibido facilitar

282

As batatas: sua importância

285

Úlcera péptica: quando a ciência faz ruir mitos

287

Afinal, o que comer?

290

Correr para onde?

292

Quem defende o doente?

294

Quando se perde a esperança…

296

Que limites?

298

A saúde não deve ser gerida ao ritmo dos ciclos políticos

303

Acidentes de viação: um verdadeiro flagelo

306

As Contas da Saúde

308

Morte anunciada

310

É tempo de acordar

314

Quem nos acode?

317

Haja saúde!

Hospitais-empresas

Operadores privados na saúde Medicina: presente e futuro

Artigos de opinião, reflexões e entrevista



Nota de Apresentação

Só depois de muita hesitação aceitei escrever esta “Nota de Apresentação”. Porquê? Já passaram quase 40 anos desde o dia em que o Álvaro Carvalho foi colocado num velho e inóspito Serviço do Hospital dos Capuchos para trabalhar comigo: ele Interno, eu Assistente Hospitalar. Aquilo que lhe parecia ser na altura o resultado de uma “sorte malvada” iria transformar-se num convívio frutuoso e numa amizade recheada de cumplicidades e convergências, que resistiu ao tempo, aos acidentes de percurso e a um hiato geracional de 20 anos. Entretanto, o Álvaro iria fazer a sua própria carreira como Internista e Director de Hospital. A certa altura, sem que ninguém estivesse à espera, escreveu um livro sobre a aldeia Mata de Lobos, documento etnográfico comovente e riquíssimo acerca da região onde nascera e fora criado. A esta publicação seguiram-se outras, sob a forma de crónicas ou de narrativas baseadas em acontecimentos autênticos, uma das quais eu tive o prazer de prefaciar. Agora, porém, o problema parecia-me ser outro. Porquê? O título Doenças, Doentes e Médicos não enganava ninguém: tratava-se certamente de um livro acerca do universo médico onde ambos nos movimentámos muitos anos, que conhecíamos bem e onde a nossa amizade tomou forma. Amizade certamente má conselheira para aquilo que me era pedido, que exigia distanciamento e neutralidade. Achava eu que o prefácio, a nota de apresentação, ou chamassem-lhe o que quisessem, deveria ser escrito por uma pessoa estranha, vinda de fora e que não tivesse qualquer ideia preconcebida. Mas o Álvaro voltou à carga e foi só então que li o texto do livro. Depois disso, não podia deixar de aceitar o desafio. Porquê?

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Simplesmente, por ter compreendido que, na insistência do Álvaro estava implícita uma mensagem subliminar a dizer-me que ninguém melhor que eu, que o conhecia bem, seria capaz de descodificar e explicar um conjunto de textos, que sendo autobiográficos, sem nunca se assumirem claramente como tal, eram também históricos, técnicos, de opinião e sobretudo o resultado de uma exigência interior de comunicar — a médicos e não médicos — experiências, conhecimentos, problemas não resolvidos e até algumas obsessões. Obsessões, digo bem, como o interesse pela fascinante e perigosa interface colocada entre nós e o mundo dos microrganismos — bactérias, protozoários e vírus — que tem marcado toda a História da Humanidade e que, apesar dos avanços da ciência, aí continua como uma permanente ameaça. Mas, é no componente autobiográfico que este livro ganha um interesse maior. Aí estão contidas opiniões, divergências, testemunhos e comentários, suscitados por uma longa experiência à frente de um hospital de grandes dimensões, que colocaram o Álvaro perante problemas de populações, de corporações e de doentes, muitas vezes no olho do furacão de decisões técnicas e políticas controversas. A riqueza acumulada durante este percurso constitui um vasto conjunto de ensinamentos que não podia guardar só para si e que, como quem cumpre uma obrigação cívica, sentiu que devia divulgar e partilhar com outros. Sem rodriguinhos nem figuras de estilo: com a sinceridade e espontaneidade de quem leva as coisas a sério e com transparência. O livro é, pois, um documento importante. Porquê?

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Porque além de nos recordar factos da história recente da Medicina portuguesa, nos revela a personalidade de um dos seus protagonistas, que tem sabido aliar à competência profissional, a honestidade, o dinamismo, a generosidade e a necessidade de partilha que o transformaram numa figura exemplar de médico e de cidadão. Julgo que esta breve “Apresentação”, ao mesmo tempo que esclarece as minhas hesitações, torna bem claro porque é que a leitura deste livro é obrigatória para quem queira conhecer o percurso e as vicissitudes da nossa assistência médica e das políticas de saúde das últimas décadas. Barros Veloso | Lisboa, 19 de Fevereiro de 2019

Nota : Evidentemente que acho excessivos os elogios que o Álvaro me

dedica na “Nota Prévia”. Mais uma vez fica demonstrado como nestas coisas, a amizade é má conselheira.

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Nota Prévia

Propus-me conceber um retrato da evolução da Medicina ao longo das últimas décadas, para se poder compreender melhor o seu estado actual. Faço-o baseado na minha experiência profissional. Hesitei em meter mãos a esta obra, por admitir que ainda esteja pouco distanciado de alguns dos factos analisados, para os poder julgar com isenção. Apesar disso, acabei por concretizar esta reflexão sobre diversos aspectos da Medicina, provavelmente aqueles que atraíram mais a minha atenção, por boas ou más razões. Embora espere que o livro seja lido por médicos tive a preocupação de, em certa medida, descodificar um pouco a linguagem técnica, porque pretendo chegar ao público em geral. Haverá quem concorde com muitas das opiniões aqui emitidas, enquanto outros discordarão, no todo ou em parte. Neste, como em tantos outros temas, é impossível esperar uma unanimidade, tantas vezes redutora. Nesta perspectiva, o debate de ideias é salutar, enriquecedor e ajuda-nos a aceitar pontos de vista diferentes. Sempre tive em conta que quem espera por consensos difíceis de atingir arrisca-se a não cumprir certas metas estabelecidas. Quando comecei o exercício da minha profissão, a meio dos anos setenta do século XX, a Medicina ainda era muito empírica, porém, dava passos importantes para se libertar desse estigma. Poderíamos referir certas conquistas sectoriais, mas vamos destacar apenas algumas. Desde logo, o papel fundamental que teve a descoberta dos antibióticos e das vacinas para enfrentar as infecções e mudar aspectos importantes da actividade clínica. Estas duas frentes de ataque modificaram radicalmente o panorama das doenças infecciosas que, até então, eram responsáveis por uma mortalidade muito elevada. Nessa época, as técnicas anestésica e cirúrgica também faziam progressos notáveis, permitindo chegar com o bisturi aos locais mais recônditos do corpo humano. Isto foi determinante para curar muitos processos patológicos e melhorar o prognóstico de tantos outros. 13


Claro que esta evolução do conhecimento científico obrigou a uma especialização crescente do médico, a qual aconteceu progressivamente e de uma forma quase insensível. No caso concreto de Portugal, enquanto esta onda de modernização se fazia sentir nos grandes centros urbanos, tudo permanecia como dantes nos meios rurais. No Interior persistiam as grandes carências assistenciais e as assimetrias regionais até se acentuavam. Além da falta de unidades de saúde, rareavam os médicos e os enfermeiros. Face à ausência destes profissionais, as pessoas ficavam à mercê de curiosos, oportunistas, charlatães e de práticas mágico-religiosas. Autodidactas faziam os partos em casa, sem um mínimo de assepsia. Esta prática era uma das principais causas da elevada mortalidade infantil. Em 1974 deu-se a Revolução de Abril. As transformações sociais que originou, conjugadas com o avanço técnico e científico ocorrido nos anos seguintes, viriam alterar a perspectiva da saúde em Portugal. O Serviço Médico à Periferia (SMP), uma medida avulsa tomada para ultrapassar dificuldades conjunturais, sobretudo a acumulação de médicos recém-formados nos hospitais centrais, sem capacidade de resposta para lhes dar a especialização, revelar-se-ia determinante para a concepção e consequente criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS). A especialidade de Medicina Geral e Familiar (MGF) e os novos hospitais, construídos nas capitais de alguns distritos, acabaram por dar o empurrão decisivo para pôr de pé este grande edifício social, considerado por muita gente a maior conquista da democracia. Na década de 1980, a evolução do conhecimento médico foi extraordinária. Num ápice surgiram as variadas técnicas de diagnóstico e de terapêutica, que transformaram profundamente o exercício clínico. Paralelamente, apareceram medicamentos inovadores para as doenças oncológicas, as terapêuticas biológicas, os anti-retrovirais para tratar a sida, entretanto descoberta, e para a hepatite C. Os cuidados intensivos 14


ganhavam terreno e chegavam a várias regiões do país. O transplante de órgãos somava êxitos. A Cirurgia laparoscópica invadia as mais ocultas estruturas corporais. A Genética e a Biologia Molecular revelavam-nos um mundo escondido. Nesta sequência, a especialização médica ganhava força e acelerava o ritmo da diferenciação. Tive o privilégio de ser médico durante este espaço temporal e acompanhar de perto um ciclo evolutivo tão rico e surpreendente. A minha primeira prova de fogo foi o SMP, onde tomei contacto com as carências assistenciais de um concelho do Interior. Depois, continuei a aprendizagem com alguns dos principais actores clínicos, destacando-se nesta galeria figuras proeminentes da Medicina Interna e da Cirurgia Geral, só para mencionar estas duas especialidades básicas. Diversas circunstâncias levaram-me a trabalhar e a conviver de perto com a realidade de hospitais com características diferentes, embora a fase de formação acontecesse nos Hospitais Civis de Lisboa (HCL). Além do Banco do Hospital de São José, conheci outros serviços de urgência — Hospital Distrital de Cascais, Hospital de Santo António dos Capuchos (HSAC) e Hospital Garcia de Orta (HGO). Adquiri experiência em cuidados intensivos, depois de uma permanência na Unidade de Urgência Médica do Hospital de São José (UUM). Dirigi equipas de Banco, serviços de acção médica e departamentos. Integrei muitas comissões hospitalares. Dediquei-me com entusiasmo, e durante muitos anos, ao ensino pré e pós-graduado. Fiz parte de júris de inúmeros concursos de progressão na carreira médica. Num período considerável de tempo fui director clínico e presidente do conselho de administração de um grande hospital, que ajudei a instalar. Nos últimos dez anos cativei algum do meu tempo para o dedicar à escrita. Só um dos livros editados se relaciona com a Medicina, mas escrevi para periódicos umas dezenas de artigos de opinião sobre temas de saúde. 15


O Ecos da Marofa, porta-voz da região onde se encontram as minhas raízes, está sempre pronto a acolher os textos elaborados sobre temas diversos. Foi este conhecimento acumulado a gerar o ânimo e até o entusiasmo para reflectir sobre o percurso que trilhei pelos caminhos da Medicina. Alguém disse que o faço “com os olhos de quem assistiu a todas estas transformações (da prática médica) sentado na primeira fila”. Acrescento a esta afirmação outra complementar: “dei a atenção devida ao desenrolar do filme”. Nesta trajectória profissional tive a sorte de me cruzar com grandes personagens da Medicina, com quem aprendi a ciência, a técnica e a arte de ser médico. Seria exaustivo estar aqui a citá-los todos, até porque corria o risco de alguém ficar esquecido. Contudo, há um que tenho forçosamente de referir, porque foi o que mais influenciou a minha formação clínica, humana e cultural. Refiro-me ao Dr. António José de Barros Veloso. Um sorteio caprichoso, efectuado para a distribuição de internos por serviços dos HCL, colocou-me no seu caminho. Nunca antes tinha ouvido falar dele, nem me haviam chegado referências sobre o valor relativo do seu Serviço de Medicina. Estava, nessa altura, à mercê do acaso e do destino. Olhando para trás, reconheço que dessa vez o jogo me favoreceu. Cedo percebi a sua grande capacidade clínica, o gosto e o prazer postos na transmissão do seu saber aos jovens que tinha o encargo de formar, como era o meu caso. A todos incitava a participar nas várias actividades do Serviço. Uns aproveitavam as oportunidades oferecidas de bandeja, outros claudicavam no momento decisivo da sua concretização. No meu caso concreto, acho que não virei a cara a nenhum desafio que me foi feito. Reconheço que dois deles foram importantes para a minha ascensão na carreira: a organização dos cursos de ensino pós-graduado e o

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estudo aprofundado da terapêutica com antibióticos. Não tenho dúvidas de que, com esta postura, ganhei crédito junto do chefe, dos colegas do Serviço e de todo o corpo clínico do HSAC. A partir daqui estavam criadas as condições e aberto o caminho para uma relação de proximidade com o Dr. Barros Veloso. Na sequência da estreita ligação profissional veio a amizade. A troca de opiniões entre nós tornou-se frequente, sobre temas médicos mas não só. Quando se falava de Medicina, a maioria das vezes estávamos em sintonia. Quando discordava, fazia-o com frontalidade e acho que ele apreciava essa atitude. Um certo dia deixou escapar o seguinte desabafo: “O Álvaro diz-me frontalmente o que outros dizem nas minhas costas”. Este vínculo tão estreito a um grande “Senhor” da Medicina trouxe consequências no momento da escolha da especialidade — a opção por Medicina Interna era uma inevitabilidade. A elevada classificação obtida no exame de acesso permitia-me ter a veleidade de escolher qualquer outra, particularmente uma daquelas que estavam na moda, por proporcionarem a execução de técnicas. Porém, nessa altura, o divórcio já não era possível. A consciência dizia-me que estava predestinado para exercer o ramo da Medicina vocacionado para fazer uma abordagem global do organismo humano. Nesta lógica, quando os diagnósticos difíceis se tornavam fáceis, sentia um enorme prazer. Aliás, os casos clínicos complicados galvanizavam toda a equipa e, perante essa realidade, os elementos mais jovens do Serviço começaram a reivindicar a publicação dos mais interessantes e pedagógicos. Com algumas reticências iniciais, o director foi cedendo, pouco a pouco… Aconteceram as primeiras publicações. A partir de então passámos para um patamar formativo mais elevado e o nosso esforço suplementar passou a ter visibilidade externa. Não exagero se disser que todos os textos eram revistos pelo exigente mode-

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rador. Fazia sempre umas “podas”, como ele ainda hoje gosta de apelidar as correcções. Esses exercícios de revisão contribuíram para aperfeiçoar a minha escrita. As sugestões eram sempre apresentadas com elegância e diplomacia, sendo um acto de justiça o realce deste pormenor. As circunstâncias da vida, neste caso a imponderabilidade das vagas existentes ou não nos quadros hospitalares, acabaram por ditar o meu afastamento temporário do HSAC. Fui para o Hospital Distrital de Cascais, o concelho onde resido. Apesar desta proximidade, nesta simpática unidade sentia-me como um emigrante, pelo que na primeira oportunidade surgida regressei à casa-mãe e ao reencontro do pai adoptivo. Contudo, esta reencarnação acabaria por ser efémera — apenas um ano. Outra convulsão na carreira fez-me atravessar o Tejo e chegar a Almada. Quando comuniquei ao Dr. Barros Veloso o convite recebido para ser director clínico do HGO, que estava em regime de instalação, e o compromisso já assumido para o aceitar, exteriorizou o que lhe ia na alma, com uma voz triste: “Se assim é, quem me vai substituir quando eu tiver de largar o serviço?” Ambos percebemos que a separação ia ser definitiva. No entanto, não foi total, porque continuámos a conviver, reatando conversas sobre Medicina, doenças, doentes, médicos e outras coisas — às vezes à mesa, a degustar um bom petisco e a apreciar um bom vinho. Na sobremesa vinha sempre o “bichinho” da prática médica e das vicissitudes a ela inerentes. O assunto estava permanentemente na ordem do dia e não havia forma de fugirmos dele. Mantínhamos o hábito de trocar escritos e solicitar opiniões. Só um motivo de força maior me impedia de assistir às múltiplas palestras e conferências que ele foi fazendo em diversas instituições. Em noite na qual expressasse a sua arte de pianista, era proibido faltar. Este mosaico de recordações é bem ilustrativo da influência que teve em mim o primeiro e último chefe. Muitos dos conhecimentos, das

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ideias e dos conceitos aprendidos acerca da Medicina e da sua evolução, derivam directamente desta prolongada convivência e aprendizagem contínua, sabendo que não tenho capacidade para transmitir esse legado com a arte, a precisão e a acutilância utilizadas por ele na escrita. Faço o que posso e a mais não serei obrigado. Atrevo-me a dizer que esta obra — Doenças, Doentes e Médicos — tem, nos bastidores, mais um autor. É verdade que a ideia de fazer um livro deste tipo já bailava na minha mente há muito tempo. Sofreu o derradeiro impulso com a edição de Médicos e Sociedade. Para Uma História da Medicina em Portugal no Século XX, coordenada por Barros Veloso. À colectânea em causa, sobretudo aos muitos artigos marcados com o seu inconfundível estilo, fui buscar factos, palavras, frases, talvez mesmo parágrafos completos. Noutras ocasiões, já havia feito abordagens idênticas, porque um bom discípulo carrega sempre às costas o legado que o magnífico professor lhe transmitiu. Para finalizar esta nota, quero dizer que este volume de ideias e de opiniões despretensiosas é mais uma forma de prestar a devida homenagem a António José de Barros Veloso.

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Introdução

Considera-se a palavra doença como a representação de um conjunto de sinais e de sintomas detectados num indivíduo, devido a qualquer alteração do seu estado de saúde. O vocábulo é de origem latina e deriva de dolentia que significa dor ou padecimento. O distúrbio das funções orgânicas de um ser, seja encarado sobre o aspecto físico ou mental, pode ser causado por factores exógenos ou endógenos. A definição tradicional de saúde, entendida como a ausência de doença, foi revista na segunda metade do século XX por ser considerada demasiado formal, simplista e redutora. Neste contexto, em 1960, a Organização Mundial de Saúde (OMS) pretendeu tornar o conceito de saúde mais lato e integrá-lo numa dinâmica social, definindo-o como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente a ausência de afecções e enfermidades”. Com esta revisão veio dar-se uma maior importância à componente mental, atitude que estava em consonância com o grande incremento entretanto verificado na ocorrência de distúrbios psíquicos. Estas alterações foram atribuídas, de forma unânime, às múltiplas transformações sociais ocorridas nas últimas décadas. O actual estilo de vida e as obrigações diárias criam nas pessoas grande desgaste e muito sofrimento psicossomático, passando a viver ansiosas. Associa-se a isso o povoar do seu quotidiano por múltiplos problemas e incertezas. A partir daqui, a saúde também passou a ser entendida como um valor colectivo, um bem-estar social e não apenas individual. Nesta perspectiva, para se poder considerar uma pessoa saudável não é suficiente ter assegurado um bom desempenho das suas funções vitais, criado pela harmonia funcional e a integração de órgãos e aparelhos. O conceito ficou intimamente ligado à relação do indivíduo com a comunidade onde se integra. Segundo esta visão, não basta o adequado funcionamento individual dos órgãos, mas sim a prestação global do organismo, o qual 21


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