Granja do Marquês, Dez décadas ao serviço da aeronáutica militar portuguesa, 1920-2020

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DEZ DÉCADAS AO SERVIÇO DA AERONÁUTICA MILITAR PORTUGUESA

GRANJA DO MARQUÊS 1920-2020

PEDRO GONÇALVES VENTURA


Base Aérea n.º 1, 1956 (Créditos AHFA )


PEDRO GONÇALVES VENTURA

GRANJA DO MARQUÊS DEZ DÉCADAS AO SERVIÇO DA AERONÁUTICA MILITAR PORTUGUESA 1920-2020


© EDIÇÃO

AGRADECIMENTOS INSTITUCIONAIS

Base Aérea n.º 1 | By the Book, Edições Especiais

Arquivo da Defesa Nacional Arquivo Histórico da Força Aérea

TÍTULO

Arquivo Histórico da Presidência da República

Granja Marquês: Dez Décadas ao Serviço da Aeronáutica Militar Portuguesa, 1920-2020

Arquivo Histórico Militar Arquivo Municipal de Sintra

© TEXTO

Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Pedro Gonçalves Ventura

Automóvel Club de Portugal

REVISÃO

Base Aérea n.º 1

Benedita Rolo

British National Archive

COORDENAÇÃO FOTOGRÁFICA

Centro de Informação Geoespacial do Exército

Carlos Senra Barbosa

Hemeroteca de Lisboa

FOTOGRAFIA

NATO Archives

Primeiro-Sargento Carlos Senra Barbosa, Primeiro-Sargento João Brito, Primeiro-Sargento Manuel Cascalheira e André Garcez

Fundação Mário Soares – Casa Comum Serviço de Documentação da Força Aérea

DIGITALIZAÇÃO

Sargento-Ajudante Rui Lobato de Faria EDIÇÃO DE IMAGEM

Maria João de Moraes Palmeiro DESIGN

Veronique Pipa COORDENAÇÃO EDITORIAL E PRODUÇÃO

Ana de Albuquerque Maria João de Paiva Brandão IMPRESSÃO

Diário do Minho ISBN

978-989-53093-5-1 DEPÓSITO LEGAL

483702/21 Em Sintra, o dia 5 de fevereiro de 1920 marca o início da epopeia que hoje, cem anos volvidos, celebramos. (Créditos Manuel Cascalheira) Edições Especiais, lda Rua das Pedreiras, 16-4º 1400-271 Lisboa T. (+351) 213 610 997 www.bythebook.pt

Aquando da transcrição de documentos: 1. Foi retirada a cor vermelha que se encontrava nalguns documentos, nomeadamente sublinhados; 2. Manteve-se a pontuação original; 3. Não se atualizou a ortografia, exceto nos casos em que a versão pudesse colocar em causa a interpretação do mesmo;

4. Utilizamos (?) para datas ou factos apresentados, mas que dos quais ainda subsistem algumas dúvidas; 5. Utilizamos [?] para transcrições dos originais das quais subsistem dúvidas; 6. As citações em texto são apresentadas entre parênteses com autor-data.


PREFÁCIO

PALAVRAS PRÉVIAS

APRESENTAÇÃO PREÂMBULO

27 DE VILA NOVA DA RAINHA À GRANJA DO MARQUÊS 31

O ESTADO DA AERONÁUTICA MILITAR EM PORTUGAL

53

QUINTA DA GRANJA DO MARQUÊS: DE ESCOLA AGRÍCOLA A ESCOLA MILITAR DE AVIAÇÃO

111

A REORGANIZAÇÃO DO EXÉRCITO

133 BASE AÉREA N.º 1 NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO 135

A TRANSIÇÃO PARA A SEGUNDA METADE DO SÉCULO

177

A FORÇA AÉREA MODERNA: A ENTRADA DA BA1 NA ERA DOS JATOS

211

A BASE AÉREA N.º 1 ÀS PORTAS DO SÉCULO XXI

237 A GRANJA ESTENDE AS SUAS ASAS 239 A EESFA/ESFA/IAEFA 245 A ACADEMIA DA FORÇA AÉREA 255 MUSEU DO AR

263 ESPÓLIO DE MEMÓRIAS 265 LISTA DE COMANDANTES DA BASE AÉREA N.º 1 271

MARTIROLÓGIO DA AUDÁCIA

283 CONDECORAÇÕES DA BASE AÉREA N.º 1 289 MEMÓRIAS NO SOLO 299 BIBLIOGRAFIA



um (latim unus, -a, -um) quantificador numeral cardinal O primeiro dos números inteiros (ex.: um e um são dois). adjetivo e nome masculino Que ou o que ocupa o primeiro lugar numa série.

(Créditos Carlos Senra Barbosa)


Em destaque, a Capela da Base Aérea n.º 1 vendo-se, ao fundo, a antiga estrada que ligava ao Algueirão, ligação hoje cortada pela pista da BA1. (Créditos Carlos Senra Barbosa)


PREFÁCIO

Professor Doutor

MARCELO REBELO DE SOUSA

Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas CELEBROU-SE O CENTENÁRIO DA PRESENÇA AERONÁUTICA MILITAR NA GRANJA DO Marquês, em 2020. E porque celebrar esta efeméride é celebrar a aventura de Portugal no ar, em boa hora a Base Aérea n.º 1 decidiu avançar para a publicação da presente obra, a qual procura fazer perdurar na eternidade própria dos livros, as maiores conquistas e os superiores feitos aqui realizados, sempre em nome de Portugal e sempre ao serviço dos portugueses. Berço de aviadores nacionais, cuja fama persiste na perpetuidade do tempo, a Base Aérea n.º 1 apresenta-se, hoje, como a fiel depositária do heroísmo dos nossos pioneiros da aviação, que aqui rasgaram os céus da glória, destes herdando as melhores tradições e os maiores valores. Assim o foi, assim o é. É, aliás, alicerçada nesta preservação histórica e cultural que, mais de um século volvido, continua a ser cumprida a missão capital da Base Aérea n.º 1: formar Mulheres e Homens capazes de servir Portugal no Ar, desígnio maior de qualquer aviador militar. Mas mais do que analisar unicamente a história desta já secular Unidade militar, a presente obra afirma-se igualmente como um roteiro de memórias que permite passar em revista a história da própria Força Aérea, afirmando-a enquanto Instituição que muito orgulha a sua Nação. Não é, por tal, demais reconhecer que a elaboração de obras desta natureza, que garantem o preservar da história das nossas instituições e da nossa memória coletiva, deve continuar a ser incentivada. Tais trabalhos permitem que as instituições se conheçam melhor a si próprias, possibilitando igualmente que se deem a conhecer junto do ecossistema militar e civil com o qual se relacionam. É assim, dotados deste saber, que poderemos de forma mais clara observar o presente, e conceber o futuro, permitindo que vós, que hoje aqui servem, sejam dignos sucessores de todos quantos, a partir deste local, escreveram em letras douradas páginas gloriosas da nossa narrativa. Que o percurso absolutamente único percorrido por esta Unidade continue, assim, a ser um exemplo para o presente, mas principalmente para o futuro, honrando-se desta forma a nossa História, elevando-se desta forma Portugal. 9





PALAVRAS PRÉVIAS

General

JOAQUIM BORREGO

Chefe do Estado-Maior da Força Aérea

Em janeiro de 1960 a Hunting Aircraft Limited ofereceria, à Base Aérea n.º 1, esta fantástica representação do seu Provost, o qual apresenta o esquema de pintura e insignias utilizado durante o seu período de testes na BA1. (Créditos Carlos Senra Barbosa)

A ENTRADA NA SEGUNDA DÉCADA DO SÉCULO XX MARCOU, DE FORMA INDELÉVEL, a história da aviação militar nacional. Pese embora o caminho percorrido tenha sido iniciado no decénio anterior, em Vila Nova da Rainha, é na Granja do Marquês que a Escola de Aeronáutica Militar, a partir de fevereiro de 1920, se consolida. A deslocação para Sintra da entretanto renomeada Escola Militar de Aviação transformaria campos, outrora dedicados à lavoura, em pistas de aviação, nas quais aterravam aeronaves que ajudavam a diminuir distâncias e a aproximar pessoas. Assim, tornou-se usual, ao longo das últimas dez décadas, ver neste lugar Mulheres e Homens nas suas máquinas a rasgar os céus, passando a Granja do Marquês a ser, por mérito próprio, sinónimo de aviação. Verdadeiramente, a consolidação da aeronáutica militar portuguesa em muito se deve ao sucesso do arrojado e inovador projeto iniciado na Granja do Marquês em 1920, não só enquanto alma mater dos aviadores, mas igualmente pelo dinamismo que esta sempre teve, ao longo da sua existência, na promoção e sustentação das atividades ligadas à Causa do Ar. No âmbito das comemorações do seu centenário, entendeu-se, em boa altura, que seria este o momento ideal de trazer à estampa uma obra que compilasse alguns dos principais momentos destas dez décadas de existência. Fiel ao seu desígnio de apoiar as iniciativas de carácter histórico-cultural ligadas à aviação militar nacional, a Força Aérea, no seu todo, juntou-se em torno deste projeto, permitindo que este alcançasse o seu merecido êxito, cumprindo-se desta forma o nosso dever para com a história e para com a nossa memória coletiva. Todavia, a inusitada realidade trazida pela pandemia da COVID-19 obrigou-nos, de forma consciente, a adiar a edificação deste projeto por um ano, dilação essa que em nada diminuiu o ânimo de todos os envolvidos nesta obra.

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Enquanto Comandante da Força Aérea cumpre-me, institucional e pessoalmente, agradecer a todos os envolvidos neste projeto, os quais permitiram trazer a público esta nossa obra, bem como a todas as entidades externas que nos apoiaram desde o primeiro momento, tal como o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, a Biblioteca Nacional e a Hemeroteca de Lisboa. Numa altura de estruturais renovações, as quais terão natural impacto também na Base Aérea n.º 1, é tempo de saudar a forma como a Base Primeira soube encontrar nesta mudança o seu espaço próprio, consequência direta de quem, ao longo do último século, norteou a sua ação pelo superior propósito de servir Portugal no ar. É este secular pioneirismo reinventado que caracteriza os Oficiais, Sargentos, Praças e Funcionários Civis que aqui servem e serviram, que nesta obra também celebramos. A todos Vós expresso a minha profunda gratidão pelo serviço que prestam à Força Aérea e, por tal, à Nação, o que em muito honra e dignifica a Instituição Militar. Bem hajam.

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Aceder à Base Aérea n.º 1 continua a ser sinónimo de entrar num local rico em história, feitos e memórias. (Créditos Carlos Senra Barbosa)




APRESENTAÇÃO

Coronel Piloto-Aviador

ANTÓNIO MANUEL GOMES MOLDÃO Comandante da Base Aérea n.º 1

O intemporal monumento dedicado ao malogrado aviador Castilho Nobre, pela lente de Carlos Senra Barbosa.

PARAFRASEANDO HERÁCLITO, FILÓSOFO GREGO PAI DA DIALÉTICA, “NADA É PERMAnente, exceto a mudança”. Esta que é a instituição mais antiga da Força Aérea, animada por um dinamismo perene, tem sofrido uma permanente transformação ao longo dos seus cem anos de existência. Não fosse apenas pela singular celebração e já haveria motivo suficiente para construir uma obra com a qual se preservasse a memória da Base Aérea n.º 1, “a Primeira”, mas seja antes como justa homenagem aos milhares de militares e civis que cumpriram a sua missão ao serviço da aeronáutica militar portuguesa na Granja do Marquês. Desde os quinze primeiros aviadores, chegados aos terrenos da Granja do Marquês a 5 de fevereiro de 1920 com a missão de dar início ao processo de transferência da Escola de Aeronáutica Militar, ainda sem aviões, mas, certamente, com uma vontade férrea de dar continuidade à obra de edificação desta nova capacidade, até aos atuais 230 mulheres e homens colocados nesta Unidade, muitas terão sido as aventuras e desventuras por aqui vividas. A mencionada mudança permanente que o desfilar dos últimos cem anos tem trazido a estes terrenos passou por etapas muito diversas, as quais têm acarretado uma geometria marcadamente variável no que respeita à dimensão humana. O efetivo da Unidade foi crescendo desde a sua criação, tendo atingido o máximo no início dos anos sessenta do século passado, época em que totalizou dois mil homens. Naturalmente muitos têm sido os aviões que, pilotados por esses bravos aviadores, têm ousado desafiar as leis da física sobre os céus de Sintra. Na mesma senda de constante adaptação aos desafios que vão surgindo, para além das máquinas e dos militares que as operam, também as infraestruturas aeronáuticas e de apoio contruídas na Granja do Marquês têm sofrido uma evolução constante. É com vista à preservação da memória, relativa a esses cem anos repletos de mudança que o autor desta obra, o Capitão Pedro Gonçalves Ventura, historiador, muito gentilmente aceitou o desafio de construir a presente narrativa histórica. Ao longo de mais de trezentas páginas, escritas com a clareza e o rigor a que a história obriga, mas com o entusiasmo e a paixão exclusivos dos que, como o Capitão Pedro Ventura, conseguem fazer sentir ao leitor o prazer de desfrutar de detalhes que passariam ao lado de narradores menos atentos, começa por ser feito um breve retrato do estado da aeronáutica militar em Portugal no início do século XX e culmina com um périplo pelo espólio histórico da Unidade.

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Majestosa a Sala Marquês de Pombal, e a sua sempre hipnotizante vista para a silhueta da serra de Sintra, e do Palácio que a encima. (Créditos João Brito)

Na primeira parte desta obra o autor, para além do referido enquadramento histórico da realidade aeronáutica nacional nos seus primórdios, faz uma breve abordagem à evolução do espaço físico “Quinta da Granja do Marquês” e conclui fazendo a ligação para a segunda parte da obra dedicada ao tema “a reorganização do Exército”. A época de maior relevância operacional da Unidade, com a criação formal da Base Aérea n.º 1, é assim tratada na segunda parte desta publicação. Ao longo dos três capítulos que integram esta parte, é feito um percurso que nos leva desde os icónicos NorthAmerican T-6, chegados a Sintra em 1947, até à partida definitiva da Esquadra 101 para Beja, em junho de 2020, passando pela frota Cessna T-37C, C-212 Aviocar, Cessna FTB-337G e tantos outros. A terceira parte da obra é dedicada às três principais instituições que “aterraram” na Granja do Marquês nas últimas décadas: a EESFA/ESFA/IAEFA, a Academia da Força Aérea e o Museu do Ar. A referência a estas instituições decorre da sua importância e magnitude. Trata-se de um espaço dedicado às Unidades, Estabelecimentos ou Órgãos que, seja presentemente ou seja no passado, partilharam a sua implementação territorial com a Base Aérea n.º 1. No decorrer deste segmento da obra é ainda realizada uma breve análise à implementação da Academia da Força Aérea em Sintra, em 1978, bem como do Museu do Ar, o qual haveria de se mudar de Alverca para Sintra em dezembro de 2009. A última parte deste périplo pela história aeronáutica da Granja do Marquês começa por apresentar um breve apontamento sobre os quarenta e oito oficiais que tiveram o privilégio de comandar esta Unidade tão singular. Não abandonando o carácter profundamente jubilar da presente obra, na sua reta final é prestada a devida homenagem a todos quantos, a partir da Granja, perderam a vida ao serviço da Pátria, no cumprimento dos desígnios da aviação militar. A Base Primeira, ao longo de dez décadas de pleno sucesso ao serviço de Portugal, foi sendo agraciada com as mais altas comendas nacionais e estrangeiras, as quais reconheceram publicamente os elevados feitos prestados pelos seus militares à causa pública. A narrativa inerente a este ponto é apresentada ainda na quarta e última parte da obra, a qual se encerra com conjunto iconográfico composto por uma centena de imagens representativas das viaturas que serviram na Base Aérea n.º 1 ao longo das suas dez décadas de existência. Termino esta breve apresentação reiterando a minha profunda gratidão, pessoal e institucional, a todos quantos apoiaram a edificação desta obra, pelo empenho e dedicação empregues, a qual foi construída num período profundamente difícil e desafiante para todos. Caríssimos Camaradas, bem hajam!

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PREÂMBULO

PEDRO GONÇALVES VENTURA Capitão

“ Porque de feitos tais por mais que diga Mais me há-de ficar ainda por dizer.” OS LUSÍADAS, CANTO III, EST. V

QUANTOS DIAS TEM CEM ANOS? E CADA UM DESTES DIAS QUANTAS VIDAS, QUANTAS estórias, quantas horas voadas encerra em si mesmo? Quantos aviadores, quantos especialistas, quantos tantos por aqui passaram? Procurar tratar a história da Granja do Marquês enquanto alma mater da aviação é possivelmente, para qualquer historiador ligado à aeronáutica militar nacional, um dos maiores desafios da sua carreira, sendo apenas ombreado pelos estudos relativos a Vila Nova da Rainha. Mas mesmo a “sempre nova” Rainha se esgota num tempo que, embora marcadamente único, se revelou curto e fugaz, entregando a Sintra o testemunho de uma vida e a função de ser a casa dos aviadores militares nacionais. É este o peso que a Base Aérea n.º 1, e as Escolas suas precursoras, carrega em si, ao ser a Primeira e ao ostentar o título já enraizado na história, mas pleno de significado, de Berço da Aeronáutica Militar portuguesa. Sendo a História, em muitos aspetos, considerada como a memória da humanidade, será então a ela que nos socorreremos para, num olhar retrospetivo, procurarmos reconstruir as primeiras dez décadas da Granja do Marquês ao serviço da aeronáutica militar lusitana. Norteados pela busca da verdade, o trabalho que agora é tornado público resulta do esforço colocado por todos os seus intervenientes em fazer, com rigor, uma breve súmula da Base Aérea n.º 1 enquanto servente da Causa do Ar. (Créditos Carlos Senra Barbosa)

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Com este labor não procuramos encerrar uma página nem tão pouco as comemorações associadas ao centenário da Granja. Pretendemos, isso sim, contribuir para a construção de uma narrativa que se crê ser agora mais completa e mais documentada, abrindo portas a futuras investigações e publicações. Verdadeiramente, dar voz a este silêncio cujo manto a História encobre, aproximando-nos assim do nosso passado, é também dar voz a toda a aeronáutica militar lusitana, e ao papel proeminente que desempenha no seio da História militar contemporânea. Ao longo da presente narrativa não procuraremos reconstruir na sua plenitude o passado vivido em Sintra, pois tal é materialmente impossível pelas lacunas existentes no conhecimento que possuímos, mas buscaremos transportar o leitor para uma realidade o mais aproximada possível da vivida na Granja do Marquês à época. Para tal, traçámos desde o início uma abordagem de investigação que privilegiasse a abrangência: a abrangência dos temas, das áreas estudadas, das épocas analisadas e das fontes apresentadas, por forma a colocar nesta obra a Granja do Marquês vista por quem nela trabalhou e estudou. Assim, o presente estudo foi conceptualizado para ser a história de todos, mas também de cada um, os que servem ou serviram neste local, democratizando-se desta forma a sua relevância. Porque em verdade a história da Base Aérea n.º 1 é a história dos milhares de militares que serviram Portugal servindo nesta Unidade e que aqui trabalharam, voaram, mas igualmente morreram. Neste particular, e numa obra que é marcadamente comemorativa, sentimos que não podemos deixar de prestar a devida homenagem a todos quantos, servindo em Sintra, ganharam o pleno direito de ver inscrito o seu nome no martirológio da audácia da Causa do Ar. É este carácter epigonal, de quem descende de um passado glorioso, que trazemos agora à estampa. Este é o nosso contributo para a história da Base Primeira. 22


BRASÃO DA UNIDADE DESCRIÇÃO

É de ouro, constituído por um aro liso com virolas nos bordos superior e inferior, encimado por oito pontas, das quais cinco aparentes. A ponta central e as laterais são encimadas por duas asas de águia estendidas. As pontas intermédias são encimadas por cruzes de Cristo. Num listel de branco, sotoposto ao escudo, em letras de estilo elzevir, maiúsculas, de negro: “SABER PARA BEM SERVIR”. De azul, com um castelo de ouro lavrado do mesmo, aberto e iluminado de negro, em chefe de ouro, a Passarola, de negro. O Castelo é alusão a Sintra lugar onde a Base está situada. A Passarola representa a atividade de voo e constitui homenagem ao primeiro português que tentou voar e tem sido símbolo tradicional da Unidade. A Divisa “SABER PARA BEM SERVIR” exorta os que ali são instruídos ao estudo e à aprendizagem. Coronel Aeronáutico é sinal distintivo privativo da Força Aérea que com ele caracteriza todas as suas Unidades e Órgãos. O Ouro simboliza a constância na atividade de instrução. O Azul representa o ar e o espaço.

ESTANDARTE DA UNIDADE DESCRIÇÃO

Gironado de ouro e negro, com bordadura de azul acantonada de prata. Ao centro, brocante, sobre o gironado um listel circular de prata com a divisa “SABER PARA BEM SERVIR”. Dentro do círculo formado pelo listel contém-se o escudo com o brasão de armas da Unidade. Em cada canto, bordadas a negro as iniciais “BA1”. O estandarte está debruado por um cordão de ouro e negro e franjado de prata e azul.

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BRASÃO DE ARMAS DO COMANDANTE Escudo: de azul, com um castelo de ouro lavrado do mesmo, aberto e iluminado de negro, em chefe de ouro, a Passarola, de negro. Divisa: num listel de branco, sotoposto ao escudo, em letras de estilo elzevir, maiúsculas, de negro: “SABER PARA BEM SERVIR”. Elmo: quatrocentista de prata, com grades e guarnições de ouro, tauxiado de negro, forrado de vermelho e colocado a três quartos para a dextra. Elmo: de vermelho, perfilada e afivelada a ouro. Paquife: de ouro, negro, azul e prata. Virol: de azul, ouro e negro. Timbre: o castelo do escudo SIMBOLOGIA

O Castelo é alusão a Sintra, lugar onde a Base está situada. A Passarola representa a atividade de voo e constitui homenagem ao primeiro português que tentou voar e tem sido símbolo tradicional da Unidade. A Divisa “SABER PARA BEM SERVIR” exorta os que ali são instruídos ao estudo e à aprendizagem. O Ouro simboliza a constância na atividade de instrução. O Azul representa o ar e o espaço. 24

(Créditos Carlos Senra Barbosa)



“ Há então uma Escola, onde se ensina a arte de voar.” CAPITÃO AVIADOR ANTÓNIO MONTENEGRO, 1927 (BREVET N.º 13)


DE VILA NOVA DA RAINHA À GRANJA DO MARQUÊS: PARTE

O INÍCIO DA EPOPEIA


Berço da Aviação O sonho de Ícaro tornou-se realidade... Fora aventura loucura ansiedade Fora vitória glória liberdade.

Como outrora — rotas certas Sobre mare… em espaço aéreo... Novo rumo às Descobertas! Fomos também “Pioneiros”

Foi ventura que ultrapassou a memória. Foi feitura que mudou o rumo à História!

No horizonte aventura Do tempo dos Marinheiros... Com audácia força estóica Sulcando nuvens altura Fomos “Tempo da Heróica”!

Fora “grandíssima” a “ousadia” Ao se “cometer o Céu Supremo” Em tão “insana fantasia”... D’um Olimpo, sonho profundo Do extremo a outro extremo

Vila Nova da Rainha “Berço da Aviação”! Ali se forjou a espinha D’um sonho — hoje imortal — Onde nasceu o Coração Das asas de PORTUGAL!…

Voámos todo o Mundo! Como Titãs escalámos O Luso azul etéreo E Cruzes de Cristo levámos

ANTÓNIO PERESTRELLO T. COR.

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No campo de aviação de Sintra Lelo Portela, Cifka Duarte, acompanhado pela sua fiel amiga Gaby e Oliveira Viegas perfilam-se diante de um SPAD S. VII C1, certamente proveniente do GEAR . A fotografia seria captada a 13 de setembro de 1921, pelo fotógrafo Arnaldo Garcez, o mesmo que havia acompanhado o CEP na Flandres. (imagem cedida pelo ANTT )



O ESTADO DA AERONÁUTICA MILITAR EM PORTUGAL Sacadura Cabral e Pinheiro Correia rasgam os céus de Vila Nova da Rainha aos comandos de um Caudron G.3. Na imagem é perfeitamente visível as insígnias nacionais, as quais eram apresentadas sob a forma de círculos concêntricos em vermelho e verde, pintados nas asas. (Créditos AHFA )

A PRESSÃO LEVADA A CABO PELO AERO CLUB DE PORTUgal, a qual foi acompanhada por uma outra, de dimensão considerável, levada a efeito pela imprensa diária nacional, faria com que em 24 de junho de 1912 António José de Almeida, reputadíssimo deputado do seu tempo – médico, deputado, líder do Partido Evolucionista e futuro Presidente da República –, apresentasse à Câmara dos Deputados um projeto-lei que serviria de embrião à criação, em solo nacional, de um Instituto de Aviação Militar. Este projeto, ambicioso o bastante num país com um considerável défice industrial e tecnológico à época, obteve um parecer bastante positivo junto da Câmara dos Deputados, ao qual não será alheia a visão modernista e evolucionista de um regime republicano ainda jovem e a necessitar de afirmação. Assim, defende o deputado no artigo primeiro do seu projeto-lei, que deverá ser “(…) criado o Instituto Militar de Aviação Portuguesa de que farão parte os Majores Generais do Exército e da Armada, os Comandantes do Corpo de Engenharia e Escolas de Torpedos” (CARDOSO, 1984), entre outros a designar, sendo também da maior importância a criação imediata de um “(…) aeroporto ou aeródromo nas planícies das margens

In illo tempore… do Tejo tendo como anexos as oficinas, hangares, depósitos de material, a Escola e outras dependências” (CARDOSO, 1984), como se pode ler no artigo segundo do mesmo diploma. Não obstante alguma crítica assistia-se ainda assim a um apoio social deveras empolgante em torno da questão aeronáutica lusitana. Este facto é comprovado pelas inúmeras petições e espetáculos realizados um pouco por todo o país tendo por finalidade a angariação de fundos para a aquisição de algumas aeronaves que serviriam como impulsionadoras da aeronáutica lusitana, tais como o biplano Voisin O Século, numa referência ao jornal que patrocinou a sua aquisição, o M. Farman Comércio do Porto ou o Avro República, entre outros. Reunido o apoio político e social estavam assim reunidas as condições necessárias à edificação de uma Escola de Aviação em solo nacional. Para dar resposta a questões relacionadas com a localização da futura Escola, foi criada pelo Ministério da Guerra a Comissão de Aeronáutica Militar (nomeada por portaria de 10 de agosto de 1912) a quem caberia levar a termo os estudos necessários à escolha do tipo de terreno a adquirir pelo Exército de Terra e Mar, de onde podemos extrair que: “Manda o Govêrno da República Portuguesa, pelos Ministros da Guerra e da Marinha, nomear a comissão (…) para proceder ao estudo das bases para a criação duma Escola de aviação (…) (EXÉRCITO, 1912). Desta comissão fariam parte nomes como Hermano de Oliveira (Tenente-Coronel de Engenharia), Manuel Silveira e Castro (Capitão de Engenharia), Pedro F. Ribeiro de Almeida (Capitão de Engenharia), Gustavo Correia Neves (Capitão de Artilharia) ou Manuel

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Assinatura dos promotores do projeto de 1912. (Créditos MUSAR ) Plano da Escola de Vila Nova da Rainha. (Créditos MUSAR )

Rego Chaves e Cândido Lopes Vilarinho (ambos oficiais da Armada), tomando particular relevância os escritos elaborados por esta comissão relativos ao pessoal afeto à futura Escola, à instrução a ministrar, aos cursos existentes, às condições de admissão bem como aos terrenos estudados para implementação do futuro estabelecimento de ensino. Em resumo, caberia a esta Escola ministrar quatro diferentes cursos, a saber: o curso de piloto-aviador militar; o de piloto aerosteiro militar; o de mecânico; e ainda o de observador aeronauta. No que toca à localização, foram estudados por esta comissão o Mouchão da Quinta do Alfeite e terreno anexo, situado na margem esquerda do rio Tejo, o qual foi desde o início criticado por ser uma região muito batida dos ventos sendo por tal pouco recomendado o seu aproveitamento para campo de aviação; o Polígono de Alcochete,

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o qual, fruto da ondulação e irregularidades do terreno, bem como da localização que dista de Lisboa, associado à falta de um serviço regular de vapores, condicionaria igualmente a escolha deste local e a Propriedade da Vale da Vaca, localizada a 15 km da estação do Entroncamento, a qual possuía boas condições para a implantação de um campo de aterragem, pese embora a distância a que esta se encontrava da capital. Foram ainda visitados os terrenos da Quinta da Bugalheira, o Campo de Alverca, a Várzea do Almargem do Bispo bem como a Várzea da Granja do Marquês e terrenos anexos, este último desaconselhável por estar rodeado de colinas e por ser alvo de nortadas rijas e nevoeiros frequentes. No que toca à Granja era indicado que “A um e outro lado da estrada, que da Venda Secca vae pelo Algueirão entroncar na estrada de Cintra a Pêro Pinheiro, em uma extensão de cerca de 1500 metros a contar e para o Sul do mesmo entroncamento. Os terrenos pertencem a vários proprietários; a zona porem mais importante faz parte da Quinta denominada Granja do Marquez. Exceptuando uma porção de terreno com matto, toda a Várzea consta de terra cultivável e de excelente qualidade. Sensivelmente de novel podendo, sobretudo a Leste da estrada do Algueirão, encontrar-se uma zona aproveitável para aeródromo. (…) Estas circunstancias, a distancia a que a Várzea se encontra do caminho de ferro de Cintra (cerca de 8 km), e o não poder ahi ser dada toda a instrução de aviação, levou a comissão a não indicar a sua acquisição para aeródromo, embora reconhecendo que em certos casos poderá ser utilizado como campo de aterragem, e para o que se deverá ainda contar com o terreno para Norte, junto à estrada que vae a Pêro Pinheiro e é pertença da referida Quinta da Granja” (REVISTA AERONÁUTICA, 1912).


Concluído o estudo deliberaria então a comissão, a 30 de novembro de 1912, que a sua escolha recairia sobre a zona de Alverca (situada ao km 29 da linha-férrea do Norte), fruto das boas características do terreno, localização e meios de transporte, ideia igualmente corroborada pelo engenheiro inglês H. V. Roe. Todavia, o custo elevado do arrendamento do terreno levou a comissão a proceder a novos estudos de implementação territorial da futura Escola, os quais seriam realizados no ano seguinte, tendo sido encontrado em Vila Nova da Rainha um “(…) campo em melhores condições económicas e satisfazendo, senão tão completamente como o de Alverca, pelo menos em grau apreciável para ser aplicado no aeródromo” (EXÉRCITO, 1912). Este terreno, propriedade de António Carlos Machado, ficava situado entre a linha-férrea do norte e as margens do Tejo, apresentava uma dimensão de 95 hectares, tendo no geral satisfeito a Comissão, a qual dá assim o seu aval final para a criação, neste local, da Escola de Aeronáutica. Contudo, a discussão política em torno deste tema não cessaria com a escolha do terreno. Analisando o debate parlamentar de 7 de maio de 1914 verificamos que nesta sessão seria discutida a proposta de Lei n.º 77-C a qual dará, grosso modo, origem à Lei n.º 162/14 de maio de 1914, tendo a sessão sido pautada por uma acesa discussão entre o deputado Goulart de Medeiros e o Ministro da Guerra Pereira de Eça. Vista aérea de Vila Nova da Rainha, 28 de novembro de 1916. (Créditos AHFA )

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Sacadura Cabral e Pinheiro Correia junto do acidentado Maurice-Farman MF-11 NC MF-2, 1916. (Créditos AHFA )



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