Caramulo: Ascensão e queda de uma estância de tuberculosos

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BARROS VELOSO de meio século, um lugar ímpar no tratamento da tuberculose pulmonar,

quer pelo número e estatuto social dos doentes (por lá passaram inúmeras

personagens da política, da aristocracia e da alta finança), quer pelo corpo

clínico, cuja competência profissional conquistou um assinalável prestígio dentro e fora do país.

O seu fundador, Jerónimo Lacerda, mostrou-se desde o início determinado

a dotar a Estância de infra-estruturas e equipamentos à época excepcionais, revelando um raro sentido de modernidade e um grande interesse pela inovação.

A história da Estância do Caramulo ficou intimamente ligada aos acontecimentos do Estado Novo e revelou profundas marcas das diversas fases do longo consulado salazarista.

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Fundada em 1920, a Estância Sanatorial do Caramulo ocupou, durante mais

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©Luísa Ferreira

CARAMULO Ascensão e quedA de umA estânciA de tuberculosos ANTÓNIO JOSÉ DE BARROS VELOSO

António José de BArros Veloso Médico, fez a sua carreira nos Hospitais Civis de Lisboa, tendo sido Director de Serviço no Hospital dos Capuchos. Foi Presidente de várias Sociedades Científicas e sócio fundador da Federação Europeia de Medicina Interna. Desde 2005 é Presidente da Comissão de Ética para a Investigação Clínica. Publicou numerosos artigos científicos e de opinião e é autor de dois livros: Medicina: a Arte e o Ofício e Medicina e Outras Coisas. Coordenou e foi co-autor do livro Medicina do Corpo, Medicina do Espírito: 50 Anos de Medicina Interna. Depois de aposentado frequentou a Faculdade de Filosofia e o Mestrado de História e Filosofia da Ciência da Universidade de Lisboa.


Título Caramulo: Ascensão e Queda de Uma Estância de Tuberculosos Texto António José de Barros Veloso Revisão Fernando Milheiro Design Forma, Design: Margarida Oliveira | Veronique Pipa Coordenação Editorial e Produção Ana de Albuquerque e Maria João de Paiva Brandão Edição de imagem Maria João de Morais Palmeiro Impressão Jorge Fernandes ISBN 978-989-96409-0-0 Depósito Legal 455519/19 Data 2019 . 3ª Edição

Rua das Pedreiras, 16-4º 1400-271 Lisboa T. + F. 213 610 997 bythebook@sapo.pt

Agradecimentos Este livro contém testemunhos, fotografias e documentos cedidos a título gracioso, por instituições e pessoas a quem devemos um agradecimento: Sociedade do Caramulo Museu do Caramulo Fundação António Quadros Engº Tiago Patrício Gouveia Maria Madalena Lacerda Maria de Fátima Fernandes Homem João Maria Lacerda Paulo Leira Padre José Ribeiro dos Santos Fernando Ferreira da Silva Hermínia Pinheiro Joaquim Cabaças Dr. Luís Damas Mora Dr. João Moreira dos Santos Elisabete Rodrigues


CARAMULO

Ascensão e queda de uma estância de tuberculosos

ANTÓNIO JOSÉ DE BARROS VELOSO



Índice 8

Introdução

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O local

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O fundador: Jerónimo Lacerda

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As infra-estruturas

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A arquitectura

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Os aspectos assistenciais e científicos

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As ligações políticas

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1920-1938 : Fase de arranque 1938-1952 : Período áureo 1952-1978 : Fim anunciado


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Introdução Em Dezembro de 2007, durante a reunião anual da Sociedade Portuguesa de História dos Hospitais, apresentei uma comunicação com o título “Estância Sanatorial do Caramulo: uma história esquecida”. A palestra foi recebida com interesse e alguma surpresa, tendo então surgido a ideia de utilizar o texto e o material fotográfico para a publicação de um livro. Depois de obtido o patrocínio da Câmara Municipal de Tondela, foi decidido concretizar este projecto. Tornou-se, assim, possível registar e divulgar a história daquela que foi, sem dúvida, a mais célebre estância portuguesa destinada ao tratamento de tuberculosos. Fundada em 1920, a Estância Sanatorial do Caramulo teve o seu período áureo durante os anos 40 e 50 do século passado. Depois disso, e por razões que são conhecidas, entrou numa decadência progressiva, até ao seu encerramento no final dos anos 1970. Assim, durante mais de meio século, ocupou um lugar ímpar no tratamento da tuberculose pulmonar, não apenas pelo número e estatuto social dos doentes assistidos nos seus sanatórios (por lá passaram inúmeras personagens da política, da aristocracia e da alta finança), mas, sobretudo, por ter conseguido reunir um corpo clínico que, pela sua competência profissional e contributos para a ciência médica, conquistou um assinalável prestígio dentro e fora do país. Outros aspectos merecem, contudo, ser destacados. Por um lado, a visão do seu fundador, Jerónimo Lacerda, que desde o início se mostrou determinado a dotar a Estância de infra-estruturas e equipamentos, à época excepcionais num país atrasado como o nosso, revelando um raro sentido de modernidade e um grande interesse pela inovação. Por outro lado, as relações que, ao longo de décadas, o fundador e a sua família mantiveram com Salazar, desde a subida ao poder até à sua morte em 1970. A história da Estância está assim intimamente ligada aos acontecimentos que assinalaram o percurso do Estado Novo e revela profundas marcas das diversas fases do longo consulado salazarista.

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Por tudo isto, não é fácil, à primeira vista, perceber porque é que um empreendimento como este, ainda para mais realizado num passado relativamente recente, esteja a desaparecer da memória dos Portugueses. Mas a explicação é simples: durante várias décadas, ninguém se preocupou em reunir, conservar e classificar um vasto espólio de fotografias, dados estatísticos, contratos, documentos oficiais, publicações científicas, correspondência e equipamento médico. Dito isto, torna-se agora claro porque é que resolvi escrever este livro. Antes de mais, trata-se de uma primeira tentativa para não deixar cair no esquecimento acontecimentos que não só marcaram uma época, como também foram marcados por ela. Época de regimes autoritários, miséria social, religiosidade primária, sociedades ultraconservadoras e guerras à escala mundial. Época em que a tuberculose ceifava vidas sem respeitar idades ou classes sociais e em que o medo do contágio estava presente em cada esquina e em cada encontro. Época com gente que tinha os seus códigos e os seus valores — mesmo quando atrás deles se escondiam motivos hipócritas — e que nos deixou uma herança cultural que, no que tinha de bom e de mau, se mantém presente. ­Época, enfim, com características que não são imagináveis pelos jovens de hoje, mas que continua próxima deles porque foi afinal aquela em que viveram os seus pais e os seus avós. Mas existem ainda outras razões, essas de carácter pessoal e afectivo, que justificam esta iniciativa. Tal como aconteceu com muitas famílias, também a minha foi atingida por um caso de tuberculose. Tinha eu onze meses quando diagnosticaram, à minha mãe, uma “caverna no vértice pulmonar direito”. Queria isto dizer que “estava tuberculosa” e que todas as pessoas que com ela contactassem, a partir daquele momento, corriam perigo de contágio. O internamento em sanatório e a consequente separação familiar era inevitável e, como é fácil de imaginar, constituiu uma decisão difícil e dolorosa. Caramulo foi, nessa altura, o destino escolhido.


A Estância, fundada dez anos antes, encontrava-se ainda numa fase de organização do seu corpo clínico. O meu pai, que terminara o curso há poucos meses e que iniciara uma carreira de clínica geral para a qual não se sentia particularmente vocacionado, aceitou sem hesitar o convite do Director Clínico para integrar o pequeno grupo de médicos que ali trabalhavam. Foi-lhe proposto exercer duas das especialidades que estavam por preencher e que nada tinham em comum: Análises Clínicas e Estomatologia. Depois de curtos estágios em Lisboa, foi considerado apto, ficou responsável pelos novos serviços e ali permaneceu durante 60 anos, até à sua morte em 1991. Os conteúdos deste livro resultam, em grande parte, de um trabalho de pesquisa de documentos e de material fotográfico feito nos últimos anos. Mas outra parte não menos importante é fruto, quer das minhas recordações pessoais, quer de relatos e testemunhos de outras pessoas quase todas desaparecidas, que durante muitos anos participaram na vida da Estância e com as quais convivi de perto. Gostaria de dedicar esta monografia aos doentes, médicos e a todos aqueles que, durante cerca de cinco décadas, passaram pelo Caramulo e ali deixaram um rasto de histórias, em que a coragem, a dedicação e o sofrimento se encontram misturados com episódios cómicos, rocam­ bolescos e, algumas vezes, macabros que, de tanto os ouvir contar, passaram a fazer parte do imaginário da minha infância. Merecem bem a homenagem que agora lhes presto.

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O LOCAL



O LOCAL Aquela que é hoje conhecida por “serra do Caramulo” foi chamada, em tempos remotos, serra de Alcoba. A palavra, que deriva do árabe, significa cúpula ou zimbório 1 e poderá estar relacionada com o aspecto de alguns dos monumentais acidentes graníticos presentes na região. A serra é constituída por um alinhamento montanhoso com 25 km de comprimento e uma orientação geral de NNE para SSO. Ocupa parte dos concelhos de Vouzela, Oliveira de Frades e Tondela, que pertencem ao distrito de Viseu, e uma fracção do concelho de Águeda que faz parte do distrito de Aveiro 2. O seu ponto mais alto situa-se 1071 metros acima do nível do mar, num local chamado Caramulinho, assinalado por um curioso aglomerado piramidal de enormes blocos de granito que mais parece ser um monumento construído por gigantes, do que o resultado de qualquer convulsão geológica de um passado remoto. Em consequência da acentuada assimetria do seu dorso, o flanco da serra virado a nascente desce em rápido declive até ao vale de Besteiros, enquanto que o que está voltado a poente se vai espraiando,

em sucessivos socalcos montanhosos, até às zonas mais baixas da Beira Litoral 3 . Graças a esta morfologia, é possível desfrutar, a partir da encosta voltada para oriente, um panorama de rara beleza. A limitar a paisagem, estende-se a longa cordilheira da serra da Estrela que, com uma orientação quase paralela à do Caramulo, se continua a sul com a serra da Lousã. Entre as duas serras, Caramulo e Estrela, desdobra-se, a partir da região de Besteiros, o vasto planalto da Beira Alta, cortado por numerosos cursos de água que nele cavam os seus vales (Mondego, Dão, Cris, Pavia), mas que, visto do alto, mais parece uma enorme superfície plana.

A paisagem, que se estende para norte de Viseu até zonas ao sul já muito próximas de Mortágua, varia constantemente de aspecto ao longo do ano e ao longo do dia. Por vezes, uma densa nebulosidade cobre todo o vale e cria o espectáculo inesquecível conhecido por “mar de nuvens”, que se assemelha a um vasto oceano que só deixa a descoberto os pontos mais altos da Estrela; outras vezes, em dias de cristalina visibilidade, é possível observar, com grande nitidez, as povoações espalhadas pelos vales e pelas encostas; finalmente, em dias de sol e sem vento, a paisagem assemelha-se a uma pintura aguarelada na qual sobressaem os rastos de fumo

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16 Mapa espanhol do século XVIII. Ao centro, a serra do Caramulo; à esquerda, a costa marítima com a ria de Aveiro e à direita, a cordilheira da serra da Estrela

saídos das chaminés e os ténues traços da neblina que se evapora dos cursos de água que atravessam o planalto beirão. A serra é constituída por duas vastas manchas de xisto, uma a norte e outra a sul, que abraçam uma extensa zona central de granito localizada à volta do Caramulinho. Esta característica geológica é ­facilmente notada quando, ao circular na estrada que liga o Caramulo a Águeda, se chega ao sítio da “portela”, ou seja, ao local onde se ­passa da vertente oriental da serra para a vertente ocidental: a norte, vêem-se os cabeços de onde emergem, aqui e ali, as ­típicas rochas xistosas; a sul, ­despontam enormes penedos de granito com as suas formas exóticas e os seus equilíbrios instáveis.

A serra foi habitada, desde tempos remotos, por vagas sucessivas de populações que nela deixaram alguns vestígios. Em relação às tribos paleolíticas, não existem investigações arqueológicas que forneçam informações seguras 4 . Mas, em contrapartida, não faltam numerosos sinais de povoamento neolítico. Além dos grandes pedregulhos que parecem ter sido deslocados pelo esforço do homem, regista-se a presença de várias antas, das quais a de Paranho de Arca é, entre todas, a mais bem conservada 5 . Os Romanos também lá deixaram alguns ­sinais, o que não é de admirar se nos lembrarmos que as zonas de contacto entre o granito e o xisto, ricas em galena, ­volframite e pirite de ferro, foram por eles


Vista do vale de Besteiros numa fotografia dos anos 1940. Ao fundo, a cordilheira da serra da Estrela coberta de neve

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muito procuradas para exploração mineira 6. Além disso, na Capela de São Bartolomeu, situada num local sobranceiro ao ribeiro de Castelões, foi encontrada uma pedra com uma gravação incompleta que provavelmente contém uma referência à via romana lajeada que passava na serra 7 e da qual existe ainda um troço junto à igreja do Guardão. Outro pequeno fragmento desta via, situado ao pé de um moinho que existiu nas Paredes do Guardão, viria a desaparecer no início dos anos 1950, soterrada pelas obras de construção de um sanatório. Com as invasões germânicas de um território que nessa altura já se encontrava em grande parte cristianizado, operaram-se significativas transformações na organização territorial. Remontam a essa época diversos toponímicos relacionados com os oragos das igrejas, alguns dos quais persistiram até

hoje, como é o caso de Santa Maria do Guardão e Santiago de Besteiros 8. As invasões muçulmanas, em 711, criaram um estado de guerra quase permanente até à Reconquista cristã definitiva. Apesar disso as populações locais, depois de se submeterem ao domínio do invasor, mantiveram as suas próprias leis e costumes, resistindo à islamização. Os vestígios da ocupação moura encontram-se, sobretudo, nas indicações toponímicas, como é o caso de Alcofra e Almofala. A povoação do Guardão ficou especialmente ligada à história desta época por se situar numa das zonas fronteiriças das lutas entre árabes e cristãos. É em relação com esse passado que se continua a celebrar uma velha cerimónia de acção de graças pela conquista de uma fortaleza que estaria provavelmente situada no local da Capela de São Bartolomeu.


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