Contos Ácidos

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Clara Pracana

CONTOS ÁCIDOS Clara Pracana

A escrita de um conto é uma dificílima aventura literária. Sempre. A mais nua de todas. Sem roupagens, sem artifícios. Deve o escritor fixar a ideia, sem perder de vista o foco, sem consentir variações. Deve comprimir o descritivo de tal modo que só o “assunto” possa brilhar e ser atendido, entendido.

ou Desenho Animado, como lhe chama uma das suas mais antigas amigas, nasceu no meio do Atlântico, num dia de bruma, com o cordão umbilical enrolado várias vezes à volta do pescoço. Embora esteja agora na moda fazê-lo, não tenciona processar a mãe por esse facto. Sempre gostou de ler e escrever. Deve-o aos pais, cuja casa, como a dela, estava forrada de livros. Apaixonou-se por Kafka aos treze anos. Já foi pôr uma pedrinha no túmulo dele. Presentemente, dedica-se a trazer para cima o melhor das pessoas, em actividades ditas terapêuticas e de formação. Doutorou-se em psicanálise porque lhe apeteceu, como quase tudo o que fez e faz na vida. Estudou muito. Um dia, irá apetecer-lhe morrer. Agora, apetece-lhe viver e contar histórias. É psicanalista e vive em Lisboa com uma cadela sharpei, de seu nome Nuvem, com cara de má, mas com bom coração. Tem uma filha muito bonita por dentro e por fora chamada Julieta, que já não vive com ela porque é crescida, e que também gosta muito de ler. Adora voltar aos Açores sempre que pode, porque, entre outras coisas que a prendem à ilha, ali está o melhor mar do mundo.

do prefácio de Maria João Seixas

Clara Pracana


© Texto: Clara Pracana Stories Design capa: Luís Miguel Castro Tipografia: Real Base ISBN: 978-989-8614-85-8 Depósito Legal: 454585/19 Este livro não segue o Acordo Ortográfico mais recente.


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Os contos da Clara

10 A casa junto ao mar 12 A visao do Golem 16 O Hospital 23 O traficante 28 Historia sem memoria 32 O primeiro encontro 37 A joia 42 A Senhora dos dildos 46 O penis de Platao 50 O aceno 53 O filme mudo 57 Tardes preguicosas 61 As matronas 63 Os botes 66 O lago 69 O remo quebrado 74 A cave 78 O caminho do Alem 85 Obituario 90 Os meus sentimentos 98 A Feira do vento 102 Paranoia ou sonho de uma noite de Verao 107 Os sinos da minha aldeia


“Above all, watch with glittering eyes the whole world around you, because the greatest secrets are always hidden in the most unlikely places� ROALD DAHL [1916-1990]


Os contos da Clara... Franco Maria Ricci, seguramente um dos melhores editores de livros e revistas de arte, do mundo, atravessou um dia o Atlântico para conhecer Jorge Luis Borges. Disse-lhe que o procurara porque admirava incondicionalmente o seu talento e, sobretudo, a economia das páginas em que os temas eram descritos, já que não suportava calhamaços com centenas de páginas, onde o leitor sempre se perdia na cabal fixação do enredo. O conto era, para o famoso editor, o nec plus ultra da literatura. Borges, na altura Director da Biblioteca de Buenos Aires, atravessava um período difícil, a braços com a possibilidade do regime o querer despedir. Ricci perguntou-lhe se gostaria de deixar a Argentina para viver na Europa. Perplexo, o escritor confessou-lhe que sim, mas não sabia como sobreviver. Criada uma forte cumplicidade entre os dois, Franco Maria insistiu – em que país? Na Suíça. Muito bem, tratarei de tudo, não se preocupe. Borges veio, sustentado por uma preciosa renda, a troco de Ricci ter inventado, só para ele, uma coleção nova,

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de contos fantásticos, escolhidos e prefaciados pelo escritor. Foi assim que nasceu “A Biblioteca de Babel”. Com ela, foi possível a Jorge Luis Borges viver, folgadamente e até ao fim dos seus dias, em Zurique. A escrita de um conto é uma dificílima aventura literária. Sempre. A mais nua de todas. Sem roupagens, sem artifícios. Deve o escritor fixar a ideia, sem perder de vista o foco, sem consentir variações. Deve comprimir o descritivo de tal modo que só o “assunto” possa brilhar e ser atendido, entendido. Clara Pracana é um ser curioso. Mal se instala numa situação, logo prepara o salto para outra, pronta a correr grandes riscos até a atingir. De uma curiosidade sôfrega, vê tudo para que olha, sossegando só quando consegue apanhar o sentido das coisas, das emoções. Contorna dificuldades e espinhos, a saltitar, com os seus passos curtinhos e o seu olhar perspicaz.


Estes contos, escritos num português impoluto, com a tal maestria da síntese contista, revelam bem o seu gosto pelos livros que devora, pelos mestres que respeita e segue, pelas imagens dos filmes que a marcaram, pelo mar dos Açores... M A R I A J O Ã O SE I X A S

Lisboa, Março 2019

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A casa junto ao mar

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Sentiu-o, mal a porta se abriu, e correu a esconder-se. Da última vez, fora por pouco. Ele tinha-a visto quando acendera o fósforo e por pouco não a agarrara. O homem tinha deixado os faróis do carro acesos, enquanto ligava a electricidade. Olhou à volta e cheirou a humidade. Acenou, satisfeito. Estava tudo na mesma. Foi até ao carro e tirou a mala, pejada de livros. Arrastou-a até ao quarto e começou a pô-los nas prateleiras. Era um ritual que precisava de cumprir para se sentir em casa. Ela espreitava-o de longe. Sabia que o homem a detestava, mas se conseguisse sobreviver ele ia deixar restos de comida e isso era bom, muito bom. Quanto mais tempo ele ficasse, mais perigoso se tornava. Mas também mais restos de comida cairiam para o chão. O homem tinha aberto a janela e estava a olhar para fora. Não se via nada, mas ouvia-se. Um barulho infernal, primitivo, das ondas a baterem nas rochas negras e desgastadas. Ele sabia que o som era tão forte que não dei-


xava ouvir as risadas dos cagarros. Para isso teria de vir cá fora e dirigir-se à falésia. Foi o que fez, com uma lanterna nas mãos e os pés na erva que cercava a casa. Os cagarros riam e conversavam como loucos. Era bom ouvi-los, velhos amigos que estavam ali e não lhe faziam perguntas. Alguns esvoaçavam na arriba, de buraco em buraco, parecia uma aldeia onde todos se visitavam. Já ele, esperava sinceramente que ninguém aparecesse. Gostava muito desta casa, do mar e dos cagarros e contava finalmente poder escrever o livro. Só o aborreciam as baratas, talvez tivesse de comprar Baygon. Parecera-lhe ver, mal entrara, as antenas enormes de uma, a vibrar de excitação. Caminhou pela erva macia a caminho da casa. Ela esperava toda encolhida. Sabia que o homem ia comer qualquer coisa e deixar migalhas. Tinha apenas de esperar que ele adormecesse. Agitou as antenas, na expectativa. Não sabia que o fim do mundo estava para chegar.

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O Hospital A C. e a Z.

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Debaixo do hospital corriam as condutas, os canos, os fios, os cabos, um mundo de túneis e emaranhados que sustentavam a vida lá em cima, nos corredores, gabinetes, quartos, blocos operatórios, salas de espera e capela. Este era um hospital moderno, com muita luz e uma magnífica vista do seu andar mais alto, que era mesmo muito alto. Como era habitual naquela parte do mundo, em hotéis, hospitais e outros edifícios altos, nenhuma janela abria. A ventilação, no entanto, devia ser muito boa, porque nunca cheirava a hospital. Este hospital estava ligado a um outro, e este a outro, e este outro ainda a outro por pontes pedonais não muito longe do solo. Tinham nomes futurísticos, como a Ponte da Esperança, ou a Ponte do Progresso. Era preciso olhar com atenção para a sinalética, para não se ir parar a um hospital, ou serviço, que não fosse o que procurávamos. Mas não é desta parte do hospital, onde circulam os doentes, o pessoal, os médicos, os enfermeiros, que se vai falar. Onde se fazem esquisitos tratamentos com máqui-


nas complicadas, em salas onde ninguém pode entrar, senão o paciente. O técnico fica cá fora, a controlar todos os movimentos por computador. A radiação pode ser letal. Ou salvar. Venha o diabo e escolha. Nas salas de operações, num dos hospitais ligado a este pelas tais pontes, fazem-se precisos – e preciosos– buraquinhos, por onde penetram os tubos e seus terminais que vão cortar o tecido, extirpar o tumor, permitindo, com alguma sorte, mais uns meses de vida ao paciente. Não, do que se vai falar é do que se passa no subsolo, nas caves, nos tubos de ventilação, nos recipientes de material hospitalar – e humano. No subsolo vagueiam seres sem nome nem memória, mas atentos. Podem ser baratas, ratazanas ou muitos outros. Há-os de todos os tamanhos, alguns mesmo microscópicos. Talvez sejam estes os mais letais, mas a desordem instaurada pelos outros, os que são visíveis a olho nu, é mais assustadora. Muitos tinham dentes e atacavam-se mutuamente, como se à violência da dor

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Historia sem memoria A M. Cesariny

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Durante um par de anos, abriu-lhe as portas da sua casa e do seu coração. Ele era um senhor muito educado, afectuoso, carinhoso. Muito bem arranjado, muito polido, muito snob. Encontravam-se uma vez por semana, sempre na casa dela. Às vezes ele não podia, porque trabalhava muito, e ela sentia-se sozinha, um pouco rejeitada, sabendo que era uma estupidez da sua parte, que era apenas a repetição de um padrão emocional de abandono. O pai dela tinha sido um homem bonito, muito charmoso, mas fugidio, por vezes frio e distante, ou impaciente e mal disposto. De entre os muitos amantes, porquê escolher este para contar? Não tinha sido o mais inteligente (embora o fosse), nem o mais bonito, nem o mais dotado sexualmente, nem o que mais a fizera rir. O riso entre os amantes, sempre o pensara, era especialmente erótico, meio caminho andado para a paixão carnal, como dizem os cristãos.


Este amante dizia muitas vezes as mesmas piadas, ela fazia o seu sorriso de Mona Lisa, às vezes imaginava-se a tomar chá com a rainha de Inglaterrra, devia ser parecido, a acenar educadamente com a cabeça quando era caso disso, com uma bolachinha na mão, com medo de deixar cair alguma migalha. Se não concordava em absoluto com o que o amante dizia, então sentia a obrigação moral de lho dizer, em tom cordato e deixando sempre espaço para a opinião dele. Na cama, como dizia o amante, não havia gentilezas. Mas era aí que ele se enganava, era mais importante a gentileza na cama do que à mesa, quem diz gentileza diz generosidade, abertura, aquilo que era propício ao levantar do voo. Ele aplicava-se metodicamente em dar-lhe prazer, como dizia, mas o prazer não nasce assim, nasce com asas, não com o chumbo da desconfiança. É que este amante, é preciso agora dizê-lo, era particularmente desconfiado. Desconfiava de tudo, mas para efeitos desta história, o que importa é que desconfiava

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O penis de Platao

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A discussão punha-se em termos artísticos, supostamente. Estavam a seleccionar material para uma exposição de pintura e fotografia eróticas. Um dos fotógrafos, um homem, tinha uma série de nus masculinos. Uma das mulheres presentes, pintora, admirou-se por ele só ter fotografado “pénis não-erectos”, como ela dizia, num delicado eufemismo para pénis flácidos. Outro homem interveio e disse que os pénis não-erectos até podiam ser mais bonitos por serem mais naturais. – “E então erecto não é natural?”, admirou-se a pintora. – “Achas que os homens andam sempre por aí de pau feito?”, foi a resposta escarninha do fotógrafo. A outra mulher presente, também fotógrafa, reagiu: – “Mas é evidente que um pénis erecto é muito mais erótico, muito mais belo!” Os homens presentes desataram a rir. Para eles, aparentemente, um pénis servia principalmente a função excretora e só subsidiariamente a função erótica. A curadora, que até ali tinha estado calada, disse:


– “Ainda há dias li um artigo sobre esse mistério das estátuas gregas terem sempre pilinhas pequenas e flácidas. Os bronzes de Reace, que por acaso tive a sorte de ver num museu em Reggio-Calabria, são um caso flagrante. Uns guerreiros lindíssimos, musculados, mas com umas pilinhas que quase não se vêem. No artigo argumentavam que a capacidade guerreira exigiria temperança, essa qualidade tão apreciada pelos antigos gregos. O mais importante era a musculatura, a força, a pose de coragem serena. Seria esse o cerne da virilidade, e não a capacidade sexual. O próprio David, do Miguel Ângelo, também é um exemplo da pouca importância dada ao volume ou comprimento do pénis. Era como um pequeno detalhe do corpo, impossível de evitar, mas secundário no conjunto da figura masculina. Pénis grandes aparecem nas representações do deus Pan, ou dos faunos. “A equação”, acrescentou a curadora, “parecia ser: muito pénis, pouca cabeça”. A pintora interveio:

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O filme mudo Era tão velha que já ninguém se lembrava dos pais dela. O marido morrera há muito, assim como o único filho que tanto custara a nascer. Netos que houvesse, ou bisnetos, estariam no Canadá, para onde o filho tinha ido aos dezoito anos e de onde nunca mais voltara. Não havia, pois, ninguém que se lembrasse. Excepto ela, que se lembrava de tanta coisa, talvez coisas demais. As memórias corriam-lhe por detrás das cataratas como num écran feito de lençol. Lembrava-se de quando tinham chegado uns homens que traziam máquinas com umas rodas, e o pai a ter levado a ver um filme a preto e branco, do Charlot. As raparigas nesse filme davam gritos silenciosos e havia risos mudos, muitos risos mudos. O pai, sentado ao lado dela, sorria. O Charlot deslizava pelo lençol com um passinho curto, a última imagem, lembrava-se tão bem, era um círculo que se fechava, e tinha ido toda a gente para casa. A mãe tinha ficado em casa a costurar e perguntou-lhe se gostara. Se tinha gostado!

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Queria ser uma daquelas raparigas com caracóis nos cabelos, lábios muito marcados, dentes branquíssimos, que adejavam no lençol conforme o vento. A mãe explicou-lhe que nunca poderia ser uma delas, porque vivia muito longe e, além disso, era preciso ser muito bonita. Pareceu-lhe uma explicação muito má. Sabia que o pai, que era guarda-florestal, também ia para longe, que às vezes até atravessava a fronteira. Ficava dias fora e quando regressava trazia-lhe rebuçados. Não devia ser assim tão difícil ir para esse país onde o Charlot beijava as raparigas. Não que ela quisesse ser beijada pelo Charlot, que tinha uma cara triste e quando ria parecia que fazia uma careta. Quanto a ser bonita, a mãe pouco sabia disso. Era uma mulher magra e baixa, escura, que raramente se arranjava. Nunca a vira pôr baton. Tal como se lembrava do Charlot, lembrava-se muito bem de ter pensado que a mãe podia morrer, talvez assim o pai a levasse para o país do filme.


Tardes preguicosas Corria rochas acima como uma cabra, numa manifestação de agilidade que até a mim, criança, me espantava. Imagino-a sempre assim, baixa e gorda, de avental, com a cara muito rosada e um chapéu branco na cabeça. Nesse tempo toda a gente usava chapéu, e não era de estranhar que a Marcelina tivesse direito a um no conjunto do seu uniforme, que consistia em bata preta com gola branca e avental também branco. No Verão, na casa da praia, tudo isto se aligeirava, mas aparecia o chapéu branco, por causa do sol. Chamo-lhe Marcelina porque me apetece. Para ser inteiramente honesta, foram tantas as criadas que passaram perante os meus olhos curiosos de menina, que não me lembro de um único nome. Excepto, sim, a Fabiana, uma cozinheira maravilhosa que tinha a sua própria casa, onde vivia com um filho que sofria de epilepsia. Mas essa era um ser à parte. Sempre bem disposta, punha a cozinha, ao fundo do longo corredor, a emitir deliciosos apelos odoríferos. Já entrada em idade,

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era tratada com respeito por todos os habitantes da casa. Ao invés, a Marcelina, que era criada de fora, não se notabilizava por nada. A não ser por uma fabulosa ignorância, daquelas em que custava a acreditar. Sendo eu a mais velha, às vezes fazia-me perguntas com um desconchavo que me deixava maravilhada. Por exemplo, numa tarde, tinha eu acabado de dormir a sesta, que era obrigatória, vem a Marcelina do fundo do corredor e pergunta-me de sopetão: – “A menina também tem um reguinho no fundo das costas?” Engasguei. E ela, sem me deixar responder: – “É verdade que toda a gente tem um reguinho no fundo das costas?” – “Um reguinho como?”, perguntei eu, cautelosa e preparando já mentalmente uma resposta com a dignidade científica que achava que era o melhor recurso. – “Assim, um reguinho aqui em baixo” (a apontar). – “Mas a Guilhermina, diz que também tem um...”


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