pedro castro henriques diabruras
diabruras pedro castro henriques
© Pedro Castro Henriques Design: Forma, design | Margarida Oliveira Tipografia: Real Base ISBN: 978-989-8614-74-2 Depósito Legal: 449381/18
Edições Especiais, lda Rua das Pedreiras, 16-4º 1400-271 Lisboa T. 213 610 997 www.bythebook.pt
diabruras pedro castro henriques
para começar
a setôra de português deste ano diz que tenho dificuldades em português no grau de dificuldade I e no grau de dificuldade II e no grau de dificuldade III o que quer dizer que tenho dificuldades em todos os graus de dificuldade e ela diz que eu nunca me vou safar na língua portuguesa o que quer dizer que estou tramado a português mas eu acho que até nem dou muitos erros mas os meus pais dizem que o meu mal é a pontuação que não sei para que serve mas que eles também não me sabem explicar e que os setôres e setôras dizem que é o pulmão para a língua respirar mas o que eu sei é que quem fica com falta de ar cada vez que tem de fazer uma frase sou eu e depois é o que se vê e por isso fiquei muito admirado quando no final do ano a setôra de ciências que o dimas da minha escola que sabe
à brava de certas coisas diz que é puxada para a frente me disse que devia mostrar aos meus pais os textos que escrevo às escondidas deles e foi o que fiz e eles disseram que era tudo uma parvoíce e que com este português e com estas histórias não ia longe mas a setôra de ciências conhecia um senhor que fazia livros com textos destes e que resolveu não sei porquê fazer um livro com os meus apesar de estarem mal escritos e eu a pedido dele escrevi mais estas linhas para pôr no princípio do livro sem saber bem para quê mas também se a coisa não resultar quero lá saber porque de qualquer maneira já tive três a português e não me quero chatear muito mais com esta matéria até porque o inglês chega para tudo e como agora não tenho mais nada para dizer aproveito o inglês a que tive quatro e digo the end
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esta é a minha primeira história
como não tinha nada que fazer fui a casa da nini que também não tinha nada que fazer e saímos passando pela casa do pílulas que não tinha nada que fazer e seguimos os três até à casa do puças que não tinha nada que fazer e como ninguém tinha nada que fazer decidimos ir para a rua e como não tínhamos nada que fazer na rua resolvemos dar um salto até ao parque onde também não tínhamos nada que fazer mas depois de pensarmos um pouco e como continuávamos sem nada que fazer voltámos a casa do puças onde ficámos sem nada para fazer então ele ficou em casa e fomos para a casa do pílulas onde nada havia para fazer por isso levei a nini até à sua casa em que nada tinha que fazer e depois de tanto esforço estou de novo em casa sem nada que fazer ufff
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história número dois
o meu avô diz que não sabemos nada nem a capital da mongólia nem quem era o bismarck e farta-se de dizer que a 4ª classe das antigas é que era porque tinha a estação de pampilhosa da serra e os conjuntivos do verbos ser e estar e acaba sempre a gritar que a internet é um inferno e o meu pai que é mais burro do que o avô só repete parte do que o avô diz porque a sua 4ª classe já é mais fraquinha do que a antiga mas o problema é que quem diz ao avô onde fica a tecla on-off do computador e ao pai que não deve carregar em ctrl sem querer sou eu e acho que se não tirarem da cabeça os rios e as serras + tabuada + reis de Portugal + gramática da 4º classe das antigas nunca vão acertar no on-off e talvez um dia até fiquem sem a carta de condução e até sejam proibidos de votar
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história número quatro
uma vez no dia dos meus 7 anos deitei pela janela uma nave interplanetária oferecida pela prima flora que caiu do terceiro andar na cabeça de um senhor que tinha 674 cabelos e o resultado do choque foi que se estragaram os reactores da nave e o senhor ficou com um grande galo e perdeu 36 cabelos ficando apenas com 638 cabelos e gritou muito e tanto gritou que veio um polícia que lhe disse para ficar calado e prestar mais atenção ao que fazia mas o homem disse que não estava a fazer nada de mal porque vinha pelo passeio e o senhor guarda perguntou-lhe porque é que ele vinha pelo passeio quando o passeio foi feito para estacionar os carros e os caixotes de lixo e eu acho que o polícia tinha muita razão mas a minha mãe que é toda legalidades sempre achou que não
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história número oito
quando me falam da importância do saber eu digo quero lá saber e quando me falam na importância da religião ou da ecologia eu digo quero lá saber e quando me falam na importância da democracia e da política eu digo quero lá saber e não é porque estas coisas não se falem lá em casa porque isso eu quero lá saber mas porque no meio de tantas coisas importantes para os outros eu já nem sei para onde me virar mas às vezes é chato não dar importância às coisas importantes como o futebol em que o meu pai ficou furioso comigo por eu ter dito quero lá saber do resultado do arouca quando o jogo era decisivo e o clube desceu de divisão o que fez com que o senhor esteves do talho que é um doente da bola deixasse de encomendar vitela arouquesa porque não quer carne de segunda
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história número doze
o bebé da senhora do 5º direito foi baptizado ontem e nós fomos convidados e ouvimos o senhor prior a dizer umas coisas sobre a origem da vida que não batem certo com o que disse a setôra de ciências quando demos essa parte da matéria e quando chegar ao exame já nem sei se pôr a explicação da setôra de ciências que obriga a decorar uma data de nomes ou a do senhor prior em que o bebé aparece por obra e graça do espírito santo que o meu pai diz que era o dono disto tudo e junto da pia quase despiram a criança e eu que não percebo nada disto e os meus pais que não acreditam no senhor prior dissemos coitado do bebé mas o senhor prior só lhe lavou a cabeça e então ficámos com muito má impressão da lá do prédio que nem para o baptizado tinha dado banho ao bebé
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história número treze
os da minha aula dizem que a minha prima salette que é assim porque a mãe é francesa tem boa perna e não se cansam de olhar para ela quando tem ocasião o que é coisa rara porque a minha prima salette só vem a lisboa quando os pais vêm a lisboa o que não é muito frequente porque vivem em faro que não sendo muito longe é afastado mas há dias os meus tios e a minha prima salette foram buscar-me à escola onde a minha turma viu a minha prima e todos disseram que ela tinha boa perna mas eu não devo pensar como os da minha turma até porque o meu pai já me disse que não devemos olhar para as primas por causa da consarilhidade que é uma coisa que há no sangue e dá sarilhos nos filhos dos primos mas a salette que julga que já é boa nem olha para mim por isso não há problema
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história número trinta e nove
(esta história era para não vir)
dei um pum muito mal cheiroso no consultório médico e a senhora do sofá da esquerda tapou o nariz e a senhora do sofá da direita olhou para o ar e virou-se para uma corrente de ar e o senhor do sofá em frente olhou para a janela com ar de quem pede socorro e outro senhor que ocupava outro sofá com uma criança começou a esbracejar para movimentar o ar e outra senhora pôs um lenço sobre a cara e eu fiquei admirado com tudo aquilo porque uma vez na urgência de santa maria dei um pum e não aconteceu nada e o meu pai disse que era mais fácil dar um pum no serviço nacional de saúde que tem narizes acostumados a tudo do que num consultório privado onde a coisa se entranha nos sofás e todos estranham até porque pagam e pagam muito pela consulta
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história número sessenta e quatro
o passeio no barquinho à vela em que cabiam dois mas que levava quatro acabou mal porque o barco se virou mas a sorte foi um barco maior que nos meteu lá dentro e rebocou o nosso veleiro para a praia de barriga para baixo e já em terra a minha mãe chorava enquanto o meu pai dizia calmamente que pelo menos tínhamos aprendido aquilo por que passaram os marinheiros do infante mas o que o meu pai não sabia é que virámos o barco de propósito para ver o que é que acontecia e queríamos lá saber dos marinheiros do infante até porque a setôra de história já nos tinha ensinado que esses marinheiros eram um bando de bêbados de primeira apanha e que para chegar à Índia o que era preciso era haver na nau muitos tonéis de vinho e outras bebidas
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história número oitenta e dois
os avós da nini são muito dados à música para seniores e passam a vida a ouvir na gulbenkian que tem uma sala própria com lugares para a terceira idade em que tocam aqueles grupos com cem pessoas ou mais com instrumentos esquisitos que já nem se usam e que dão aqueles sons que vêm na antena 2 e não é que me levaram e à nini a ouvir um concerto desses em que quem manda é um gajo fardado à casamento com um pauzinho na mão que não faz nenhum mas recebe muitas palmas só por mexer no pau e os outros só recebem palmas quando ele deixa e ninguém se pode mexer durante o concerto nem se pode beber uma cola zero e toda a gente está sempre calada mas no intervalo não sei porquê põem-se todos a tossir mas isso é permitido
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história número noventa e seis
gosto de tocar em todas as campainhas das portas ao mesmo tempo e pôr-me a andar e ao chegar ao fim os intercomunicadores põem-se a palrar e a coisa até parece a gaiola dos papagaios do jardim zoológico com todas as araras dos prédios a dizerem faz favor, quem é ou já abriu ou diga mas há dias por engano toquei no meu andar e o meu pai apareceu a perguntar quem era mas também apareceu o coronel ramirez que é o chefe das contas do prédio e armou-se uma grande discussão porque um acusava o outro de andar a tocar sem saber o que queria e ao jantar o meu pai estava muito triste por não ter morto o coronel ramirez mas eu vingo-o porque agora toco todos os dias a primeira parte do despacito no botão do coronel ramirez que vem a correr escada abaixo
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esta é a minha última história
não é que eu não goste de ir à escola mas o meu problema é não ter grande jeito para línguas estrangeiras não ter queda para biologia que lá em casa chamam ciências naturais não me interessar muito por história não perceber boi de matemática confundir muito as coisas em geografia não conseguir desenhar uma recta em educação visual não estar inscrito em educação moral e religiosa nem em formação cívica ser um pé em educação física além de gostar de dar umas baldas de vez em quando não gostar muito dos professores embicar com os auxiliares de tudo e mais alguma coisa não frequentar a cantina perder várias vezes o meu passe ter umas notas acima de zero e abaixo de cinco confundir ano lectivo com férias mas não é que não goste de ir à escola
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para terminar escrevo eu, o outro
Dado que admiro os ‘disparates’ dos mais novos, bem como o ‘embaraço’ dos pais e mais família, o autor de ‘Diabruras’, um meu ‘velho’ conhecido, pediu-me duas ou três palavras para lhe fechar o livro. Tenho bem presente que, em poucas décadas, a uma revolução nuclear sucedeu uma revolução informática, razão de sobra para ninguém e nada terem ficado na mesma, nomeadamente as ‘boas e exemplares histórias’ de outrora, que hoje não passam de verdadeiros soporíferos. O tempo das ‘belas adormecidas’ lá se foi e pode ser que um destes dias uma criança se lembre de dizer ‘hoje é a minha vez de contar uma história!’ abandonando princesas, bruxas, lobos-maus e seus sucessores contemporâneos em favor das corriqueiras e quantas vezes divertidas ocorrências do seu dia-a-dia um pouco aldrabadas, é certo, e sempre temperadas com um q.b. de asneira.
Entretanto, mergulhados em incertezas e ignorâncias, pais e mais família cada vez menos entendem de crianças, preocupados como andam em mudar as suas próprias fraldas. Ultrapassados, vegetam no disparate, daí também poderem ser actores nas histórias contadas neste livro. Quanto à pretensa má-criação ou ignorância dos jovens personagens… rio-me de nós próprios, os construtores do cenário onde tudo isto se passa. O facto dos nossos sucessores – nós cedo esquecemos o essencial das inquietações de nossos pais – já não viverem as nossas preocupações, mostra bem que a Terra continua a girar.