Alverca, “terra sagrada da aviação (...) ninho de águias e durante anos testemunha de belos acontecimentos”. Jornal diário A Capital, 5 junho 1968
AERONÁUTICA MILITAR
FORÇA AÉREA PORTUGUESA EM ALVERCA comissão histórico-cultural da força aérea
DIREÇÃO | COORDENAÇÃO NOVEMBRO 2018
António Mimoso e Carvalho AUTORES
A. Mimoso e Carvalho Carlos Serejo Henriques-Mateus Henrique M. Rodrigues Mário Correia Óscar C. Rodrigues
Depósito Geral de Material da Força Aérea. A Unidade e plataforma logística que garantem o apoio de retaguarda “...E do mais necessário vos proveja”. [CAMÕES, Luís Vaz, Lusíadas, Canto I, Estância 55] 4
Manuel Teixeira Rolo General Chefe do Estado-Maior da Força Aérea
7
ABERTURA
António Mimoso e Carvalho Tenente-General Presidente da Comissão Histórico-Cultural da Força Aérea
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APRESENTAÇÃO
A. Mimoso e Carvalho
11
A. Mimoso e Carvalho
21
A. Mimoso e Carvalho
45
A. Mimoso e Carvalho
63
Carlos Serejo
83
Henriques-Mateus
101
Henriques-Mateus
113
Henriques-Mateus
127
A. Mimoso e Carvalho
135
Henrique M. Rodrigues
157
Mário Correia
173
Óscar C. Rodrigues
191
VOAR UM SÉCULO DE HISTÓRIA PARQUE DE MATERIAL AERONÁUTICO | PMA BATALHÃO DE AEROSTEIROS | BA UNIDADES AÉREAS | UA CAMPO INTERNACIONAL DE ATERRAGEM | CIA VIAGENS AÉREAS AVIAÇÃO DE TURISMO OFICINAS GERAIS DE MATERIAL AERONÁUTICO | OGMA REPARTIÇÃO DE ENGENHARIA DE AERÓDROMOS | REA
218
MUSEU DO AR | MUSAR DEPÓSITO GERAL DE MATERIAL DA FORÇA AÉREA | DGMFA BIOGRAFIA dos AUTORES
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BIBLIOGRAFIA GERAL | FONTES DOCUMENTAIS
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GLOSSÁRIO
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FICHA TÉCNICA | CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS
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AGRADECIMENTOS
Águia de Alverca. 1925-2010. Oitenta e cinco anos encimando os pilares do Portão das Águias do Parque de Material Aeronáutico - Oficinas Gerais de Material Aeronáutico. Um voo que marcou gerações, não deixando indiferente quem por elas passava.
Abertura Ma nuel Te i xei ra Rolo General Chefe do Estado-Maior da Força Aérea
A exigência, o rigor e a vontade de bem servir do DGMFA e das OGMA, temperados pelas condicionantes, exigências e sacrifícios no cumprimento da Missão, muito contribuíram para a decidida e decisiva resposta da Força Aérea nas operações em África. Multiplicando-se na retaguarda e em três teatros distintos, com flexibilidade e experiência acrescidas na manutenção, reparação e logística de campanha, edificaram solidamente o espírito de equipa e a cultura de Missão.
Decorria já a segunda década do século XX quando se formaram os primeiros aviadores militares portugueses. Não havia, então, conhecimento aeronáutico estruturado nem condições que permitissem a formulação de um plano estratégico para a componente aérea nacional. Foi nesta conjuntura, ainda à procura de consolidação, que Alverca se vê reconhecida como localização aeronáutica de futuro. Ao longo dos primeiros 40 anos, as unidades e estabelecimentos militares que vieram a ser sediados em Alverca desenvolveram-se e participaram na edificação do Poder Aéreo de Portugal, emergindo e demarcando-se, igualmente, como único polo de desenvolvimento da indústria aeronáutica nacional.
O DGMFA, o Museu do Ar e a Repartição de Engenharia de Aeródromos mantêm-se residentes em Alverca, um espaço insubstituível ao cumprimento das suas atribuições e responsabilidades, como componentes da Missão da Força Aérea.
Com a constituição da Força Aérea Portuguesa como ramo independente das Forças Armadas, e através da sua ligação à OTAN - Organização do Tratado do Atlântico Norte, Alverca evoluiu para um complexo aeronáutico transversal às necessidades logísticas e operacionais de uma força aérea em operações comprometida em responder aos requisitos da Guerra Fria na Europa e no Atlântico.
Durante praticamente 100 anos, Alverca apresentou-se como o reflexo e materialização das estratégias de crescimento que, ciclicamente, o desenvolvimento da aeronáutica militar exigiu e a aviação civil incrementou. Várias foram as gerações e personalidades que reconheceram o seu valor intrínseco, a par das chefias militares, forjando um complexo aeronáutico que revela o rosto do esforço individual e coletivo dos Homens do Ar.
Com a expansão do dispositivo aeronáutico militar aos territórios de África, imposta pelo redirecionamento estratégico do esforço da Missão, decorrente da antecipação ao surgimento da guerra subversiva, o DGMFA - Depósito de Material da Força Aérea transformou Alverca num núcleo essencial do sistema logístico e de distribuição, utilizando todas as plataformas de transporte disponíveis, por terra, mar e ar.
Atualmente, a estrutura militar no complexo aeronáutico de Alverca constituiu-se como retaguarda do Poder Aéreo e da sua permanente sustentabilidade, associada a um património histórico material e imaterial, cujo valor, indiscutível, marca indelevelmente um centenar de anos de honroso passado.
Durante 75 anos, as OGMA - Oficinas Gerais de Material Aeronáutico, como referencial de Alverca, embora vocacionadas pela lógica e satisfação das necessidades militares, também souberam responder aos desafios da aviação civil, acompanhando, com visão integrada, a evolução e os desafios da inovação no mundo aeronáutico, num esforço contínuo de especialização nas áreas científicas e tecnológicas. Em resposta aos desafios e exigências dos mercados, a desmilitarização das OGMA permitiu a emergência de uma nova empresa que pode orgulhar-se do seu passado.
Termino, expressando o meu profundo agradecimento a todos quantos contribuíram para este livro, como mais um feliz marco desta efeméride, desejando que esta obra permaneça na memória de todos nós, como recordatória da nobre história do Complexo Militar de Alverca, e dos seus expoentes máximos, o DGMFA e as OGMA, ao serviço de Portugal e dos portugueses.
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De Havilland D.H. 82A Tiger Moth construído em Alverca. Entre a fragilidade das asas, uma força que exalta, o voo que não esquece um passado aeronáutico no presente.
Apresentação ANTÓNIO MIM OSO E CARVALH O Tenente-General Presidente da Comissão Histórico-Cultural da Força Aérea
Alverca, pensada há mais de cem anos como localização compatível com o desenvolvimento da atividade aérea, veio a constituir-se, em 1918, como primeiro orgão independente de logística e apoio, servido por um campo-pista de aterragem, dando assim corpo ao embrionário Serviço Aeronáutico Militar.
As infraestruturas logísticas e a extraordinária plataforma aeronáutica evoluíram numa visão abrangente, sendo o garante que sustentou e sustenta o nível operacional da Força Aérea, que importa, por isso, relevar e preservar como referência do passado e apoio de retaguarda.
As raízes de Vila Nova da Rainha, cedendo a experiência do voo e a prática das primeiras ações de manutenção e reparação, fortalecidas pela experiência operacional adquirida por pilotos e mecânicos na Primeira Guerra ainda em curso, permitiram aglutinar um núcleo coeso iniciador de uma nova unidade. Esta foi transformada num extenso complexo, englobando indústria aeronáutica, estabelecimentos militares, unidades operacionais e até o precursor do aeroporto internacional de Lisboa.
O património histórico material e imaterial de Alverca reflete e recorda um passado ímpar deste complexo aeronáutico militar. O momento e importância da sua criação, o seu crescimento, o espetro de missões cumpridas desde a sua origem, a diversidade e especialidade imprescindível aos engenheiros, técnicos, mecânicos e trabalhadores da indústria e da logística aeronáuticas, demonstram o elevado valor e potencial humano que o soube construir e desenvolver.
Em 1933, quando a construção aeronáutica portuguesa começava a garantir a existência de aeronaves em serviço nas unidades aéreas, escrevia O Século: “Desde o frágil aparelho, simples, à força de ser complicado – que fez o assombro dos nossos pais, até aos modernos aviões de turismo e combate, seguros e perfeitos, que valem por muitas unidades – quantos estudos, quantas experiências, quantos sacrifícios? Os engenheiros, os mecânicos, os operários, os pilotos, os observadores, enfim, essa legião imensa que cogita, opera e realiza – não descansam, não param, não desanimam…”
O Hangar dos Balões e o Museu do Ar, em boa hora aqui construídos, resultantes de esforço hercúleo no passado, pelo seu valor intrínseco, mantêm viva a necessidade de a todos relembrar a responsabilidade da sua preservação, engrandecimento e divulgação no presente, partilhando e transmitindo esse património para memória futura. Esta edição – que atravessa e celebra cem anos de presença Aeronáutica em Alverca, iniciativa louvável e tempestiva da comandante do DGMFA, Coronel Maria João dos Santos de Oliveira –, sendo um contributo para o conhecimento do passado, salvaguarda um referencial próprio. Na continuidade, exorta à inovação no presente e à antecipação dos desafios do futuro, mas, fundamentalmente, permite validar o esforço de gerações e homenagear todos aqueles que acreditaram, souberam servir e responder aos desígnios de Portugal.
Este complexo militar de Alverca, materializado degrau a degrau, sujeito a sucessivas alterações inovadoras para acomodar os desafios das missões atribuídas cada vez mais exigentes, caracterizado pelo edificado de arquitetura muito própria e de traça singular, veio a desenvolver-se focalizado nos requisitos da construção e reparação aeronáuticas e das unidades de aerostação e aviação sucessivamente atribuídas.
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Biplano construído no Laboratório Aeronáutico Militar, em Chalais-Meudon, pelo Major Jean-Baptiste Émile Dorand [1866-1922] com equipamentos para voo de teste. 1914. A e B: Aparelho de registo da tração do hélice. C: Aparelho de registo das rotações do hélice e da potência empregue em cavalos. D: Manómetro de água indicador de velocidade. E: Altímetro. F: Barómetro aneróide para indicar ao piloto uma subida ou descida. G: Botão elétrico permitindo ao piloto, no momento pretendido, disparar o obturador da máquina fotográfica e os cronógrafos dos aparelhos de registo.
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Voar. Entre o espírito inventivo, a experimentação, o conhecimento aeronáutico e a tecnologia
Fokker Spin. 1911.
VOAR 11
PRECURSORES
Primeiro voo em Portugal. 27 abril 1910. Julien Mamet [1877-1932], em aeroplano Bleriot XI, com duração de 4 minutos e 37 segundos, a uma altura de 120 m e sobrevoo do rio Tejo e Mosteiro dos Jerónimos. Descolagem do Hipódromo de Belém, cedido pelo Ministério da Guerra como campo de aviação provisório para o evento. O piloto, de gorro branco, após cumprimentos ao infante D. Afonso, da Casa Real portuguesa.
No início do século XX, os artigos de opinião que surgiram nos jornais sobre aeronáutica, talvez por escassos, não conseguiram centrar a atenção suficiente para mobilizar vontades. O livro de Amadeu de Vasconcellos1, em português, despertou o maior interesse pelo elevado valor das descrições, ao referir “outros apparelhos d’aviação disputam ao aeroplano a gloria de serem vehículos aerios, o orthóptero, que é uma verdadeira ave mecânica, e o helicóptero, aparelho que tenta levantar-se no ar por meio de helices d’eixo vertical”. Sendo inovador, não deixava contudo de aconselhar “Em presença, pois, dos actuaes e retumbantes sucessos da aviação, nem sejamos demasiado optimistas, nem demasiado pessimistas. Esperemos ainda, mas esperemos com confiança. Paris, janeiro de 1909.” Em 1909 realizou-se em Portugal a primeira tentativa de fazer voar uma “máquina mais pesada que o ar”. No final do mesmo ano foi fundado o Aero Club de Portugal, que viria a ter um papel preponderante na divulgação da aerostação e na criação da Escola Aeronáutica Militar. Assistiu-se então ao aparecimento de um conjunto de “inventores de máquinas voadoras”, tentando, cada um à sua maneira, tornar viável o sonho de voar. No entanto, apesar do maior ou menor apoio das entidades governamentais e militares não conseguiram antecipar-se e realizar o primeiro voo em Portugal. Julien Mamet, piloto francês, mecânico de Louis Blériot quando da travessia aérea do canal da Mancha, voou sobre Lisboa, com descolagem, circuito e aterragem, cumprindo a duração e altitude suficientes para obter o reconhecimento de ter “cruzado ares nunca antes navegados.”
1. [MARIOTTE, 1909, pp. 161-163].
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Planador AVANTE I, adaptação de um motor. Novembro 1909. Constituído por um paralelepípedo de bambú, fio de aço, folha de Flandres e pano de cobertura marca Cotton Mills. Os seus construtores, Raul Caldeira e Arthur Moraes, pretendiam efetuar a sua motorização na sequência da realização de voos planados da ordem dos 28 m de distância a uma altura de 3 m. [NEVES, 1912, pp. 38-40]
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Hangar provisório. 1919. Com a ativação do PMA - Parque de Material Aeronáutico, iniciou-se, de imediato, a reparação e construção de estruturas de aeronaves, visíveis no interior do hangar de lona. Ao fundo, a vila de Alverca. Precedendo a inauguração oficial do Parque, a 26 de outubro 1919, numa fase em que as infraestruturas iniciais já eram visíveis, apesar da insuficiência das verbas disponibilizadas, o Ministério da Guerra pedia ainda a inclusão de uma verba de 60.000$00 no orçamento para viabilizar a mudança da Escola Militar de Aviação, de Vila Nova da Rainha para Alverca. [Diário da Câmara dos Deputados, Sessão 68. 24 outubro 1919]
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A visão que, evoluindo, fez surgir ao longo de cem anos uma “cidade aeronáutica”
século Um
Planta do PMA e arredores. Janeiro 1920. Inspeção Geral das Fortificações e Obras Militares. [AHFA/DGMFA]
de História
Identificação dos terrenos e plano de implantação do PMA. 13 agosto 1919. Planta dos terrenos definidos como tendo interesse para implantar as instalações e o respetivo campo-pista (quatro proprietários). Inspeção Geral das Fortificações e Obras Militares. Planta 10, escala 1:2.000. [AHFA/DGMFA]
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UM SÉCULO DE HISTÓRIA 1918-2018 A . M I M O S O E CAR VALHO
Em 1918, Alverca do Ribatejo, vila portuguesa a escassos quilómetros a norte de Lisboa, tinha 1786 habitantes e 478 fogos quando foi considerada como local adequado para a construção, manutenção e operação de aeroplanos militares. Cem anos depois, a cidade orgulha-se do seu desenvolvimento e progresso, a par com a unidade de aviação militar mais antiga de Portugal. Berço da indústria aeronáutica nacional tem um passado que se constitui como legado patrimonial singular no panorama internacional.
1. Projeto-lei “mandado para a mesa” por António José de Almeida, deputado por Lisboa. Diário da Câmara dos Deputados, 144ª Sessão, 24 junho 1912, p. 15. 2. Na sessão “Admitido para a Comissão de Guerra e de Marinha”. Diário da Câmara dos Deputados, 146ª Sessão, 26 junho 1912, p. 8. 3. Curiosamente, em 1920, como Presidente da República, decretou que fosse considerado de utilidade pública para efeitos de expropriação de terrenos, parte da propriedade “Quinta das “Drogas”, necessária ao campo-pista de Alverca e campo internacional de aterragem. 4. Aprovada a 22 março na Câmara dos Deputados e a 7 de maio no Senado da República. Lei n.º 162, Diário do Governo n.º 74, I série, 14 maio 1914.
A evolução admirável da aviação nas primeiras décadas do século XX parece não ter sido acompanhada em Portugal com a atenção oficial requerida, atendendo certamente às limitações económicas e financeiras do Estado e ao patamar de desenvolvimento industrial do país. A sociedade da época, dividida pela mudança radical do sistema político com a implantação da República e desunida relativamente à participação na Primeira Guerra Mundial, sensibilizada por alguns jornais, mas não tocada por eventos aeronáuticos suficentemente marcantes, manteve-se numa expectativa algo indiferente. Fora dos grandes centros urbanos, as populações, longe da informação e concentradas nas rotinas e atividades diárias, não puderam desenvolver um interesse atuante e transversal pelas “coisas do ar”, em contraponto com o interesse crescente que se foi vivenciando em Alverca. 23
Em 1910, quando das primeiras demonstrações aéreas em Portugal, houve dificuldade na identificação de locais propícios à operação das aeronaves nas cercanias de Lisboa, atendendo à orografia e instabilidade dos ventos. Belém e Campo Grande foram os primeiros terrenos utilizados para eventos aeronáuticos, não possuindo, contudo, as condições adequadas. A Amadora, presente nos alvores da aviação, apesar de fortes limitações, ainda manteve quase vinte anos de atividade aérea. Estes locais ficaram para a história também pelos inúmeros aeroplanos que se danificaram ou destruíram, ou seja, na tipologia aeronáutica da época, “mais lenha”. Em 24 de junho de 1912 foi apresentado no Parlamento um projeto-lei1 para a organização de um Instituto de Aviação Militar, tendo em vista o emprego de aeronaves no âmbito militar, que apesar de ter sido admitido para as comissões de Guerra e de Marinha2 não teve desenvolvimento conclusivo a nível parlamentar. António José de Almeida3 apontava então, entre outros, para a “construção dum Porto Aéreo ou aeródromo nas planícies da margem do Tejo, tendo anexas oficinas, hangares, depósitos de combustível, a Escola e outras dependências”. Mais tarde, os estudos conducentes à implantação da Escola Aeronáutica Militar4 vieram a confirmar Alverca como a melhor opção em termos logísticos, de localização e operação, sendo as limitações apontadas exclusivamente económicas.