Libelo da Rainha
Joaquim Barradas
BY T H E
BOOK
Libelo da Rainha Onde se conta do processo de D. Maria Francisca contra o poderosíssimo rei Afonso VI de Portugal, que cometeu crime de Vénus e não assegurou a perenidade da ilustre Casa de Bragança. Com todas as explicações dos médicos e do cirurgião.
Joaquim Barradas
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á danças nas ruas à volta de fogueiras e iluminações por toda a parte. Todos sabem que é dia de luminárias. Ter luz na noite de Lisboa é uma alegria e uma libertação que se comemora com foguetes e folias. Nas outras noites, só o brilho vacilante das velas em discretos oratórios quebra a escuridão que mantém os lisboetas recolhidos nas suas casas; mas em dia de luminárias as ruas são de todos e as emoções partilham-se. Andam lanternas vidradas e candeeiros de três bicos pelas mãos. Das casas vem a luz das velas de sebo em parapeitos de janela e de lamparinas entre vasos de flores. Os potes de mecha iluminam as praças e vão grupos irmanados pela luz de tochas e brandões, candeias de azeite e velhas lucernas de barro. Por entre as fogueiras do meio da rua, crianças e adultos dão saltos e fazem acrobacias que namoram o fogo e deleitam os vizinhos. Uns andam sem destino em busca de acontecimento; outros, mais pacatos, sentam-se à mesa, ao abrigo da copa das árvores dos velhos pátios. Há ainda a promessa de efusivas cintilações que iluminam o rio em fantasias e caprichos de sonho. O Tejo já se anuncia na noite por centenas de luzes que assinalam a vida em cada um dos barcos fundeados. Depois, é o fogo de artifício que faz o lisboeta entregar-se a estas libações de luz que se atiram aos céus em surpresas coloridas, tão extravagantes como efémeras. Todos celebram a luz, exaltam o fogo, invadem as ruas da cidade e apoderam-se delas. Tomam-nas aos ladrões e arruaceiros que assaltam, roubam e matam. Os duros labores e algumas misérias dão agora lugar a uma liberdade fugaz que se respira e a todos envolve numa felicidade que ajuda a sublimar os medos e agruras da guerra que se combate há anos contra Castela e a monarquia hispânica. Das mesas alinhadas em recantos escolhidos, vem
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o cheiro dos pimentos e da sardinha assada. Pelo ar, soam acordes perdidos em ensaios de harmonia que os tambores vão ritmando. De passagem, andam mascarados e histriões que exibem artes insuspeitas entre malícias e espirais de fumo e fogo. Noutras paragens, em palcos eleitos, a nobreza exercita a pompa e celebra também o nascimento de Afonso, filho da rainha D. Luísa de Guzman e do duque de Bragança, que é agora o rei D. João IV de Portugal. O primogénito é Teodósio, o príncipe herdeiro, mas a vinda de Afonso, um segundo varão, vem consolidar a sucessão ao trono de Portugal, que se batia aguerrido pela independência. Os arautos da boa nova exibem as alabardas e levam a bandeira branca com os castelos e as quinas das armas de Portugal. Os porteiros de maça aprontam-se para a abertura da longa procissão festiva que vai do palácio real até à sé de Lisboa. Na capela do piso térreo do paço, junto à Casa da Índia e frente ao rio, ainda se ouve o som contido do alaúde e do cravo que os músicos fazem festivo. Duas dezenas de outros músicos sopram as longas e estreitas trombetas, cada uma delas com o pendão real, uma coroa dourada a encimar as armas. Cadenciadas pelo som cavo das baquetas nos tambores, elas anunciam o início do cortejo. É o rei de armas que conduz a nobreza assinalada pelos estandartes das casas fidalgas. Segue-se o clero: o arcebispo de Lisboa e os bispos de Évora, de Braga, do Porto, de Coimbra e de Leiria; os priores, os clérigos e os cónegos do cabido da sé de Lisboa e das colegiadas de São Francisco, de São Domingos e dos Jerónimos; os dominicanos do Santo Ofício e os jesuítas, uma grande mancha preta no meio do cortejo. Noutra negrura seguem os magistrados do Desembargo do Paço, da Mesa de Consciência, do Tribunal da Suplicação e também os membros dos Conselhos de Estado e de Guerra, do Conselho Ultramarino e da Casa dos Contos. Numa clareira destaca-se o grande pálio de pano branco e franja dourada sustentado por quatro varas que os eclesiásticos seguram. Abrigado por este sobrecéu, vai Afonso bebé ao colo do velho marquês de Ferreira, ainda pertencente à casa real de Bragança. Outro marquês, o de Gouveia, empunha o bastão de mordomo-mor e vai adiante, à frente do rei, como quem o guia. Ao lado do pai, o pequeno príncipe Teodósio compõe o ar solene dos seus nove anos para esta primeira cerimónia pública. Um criado de libré leva o bolo de amêndoa cerimonial, enorme, em forma de castelo. Exibem-se outros símbolos perdidos de uma prosperidade crente em evocações e promessas: a salva de prata, onde assenta a almofada de veludo carmesim com as quatro moedas de ouro iluminadas por uma grande vela; e o sal, o sal da vida, que o marquês de Cascais transporta numa pequena caixa de prata, como se fosse
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um relicário. Pesado, no ouro trabalhado, vai o gomil, para verter água na pequena cabecinha que há-de ser enxuta por quem leva, solene, a toalha pelo braço: é António Luís de Menezes, o conde de Cantanhede. Embora tivesse os cuidados de um bebé que é filho de rei, a vida não correu bem a Afonso desde muito cedo. Aos quatro anos teve uma doença grave que lhe deixou marcas nos membros e o tolheu. A face perdeu a simetria e os seus olhos azuis divergiam num ligeiro estrabismo. Embora conseguisse movimentar-se, fazia-o com alguma dificuldade e era notória a diferença ao caminhar, por falta de força na perna direita. Mais tarde, não era isso que o impedia de andar ou de saltar para um cavalo e desatar em correrias. Os médicos fizeram o diagnóstico de febre maligna e identificaram uma paralisia parcial da perna e braço direitos. Tratado com sangrias repetidas e com banhos nas águas das Caldas da Rainha, o mal teve uma evolução natural, pouco alterada por estes tratamentos e pelas mezinhas que foram prescritas. Certo é que ficaram profundas marcas físicas da doença que atingiu as meninges e o cérebro. Afonso só sobreviveu a esta provação porque possuía grandes defesas próprias e uma resistência física apreciável. Mais tarde, alguns propagaram a ideia de alteração das faculdades mentais, embora não fossem manifestos os sintomas de deficiência: tinha ideias próprias e sabia defendê-las, mas as suas preocupações e atitude satisfaziam mal aquilo que todos esperavam de um príncipe. Em lugar de se mostrar sereno e contido, era impulsivo, reagia emocionalmente à contrariedade e tinha dificuldade de concentração. Os touros, que enfrentava com coragem e uma perigosa intrepidez, eram a sua paixão. As caçadas, as lutas e disputas, os jogos e cavalgadas doidas pelos campos faziam a sua delícia e estimulavam um espírito que se revelava irrequieto. Um dia atravessou o estuário do Tejo numa barcaça que o levou pelo vale do Zebro até Palhais. Cumpria uma visita aos aprazíveis campos de Azeitão, duas léguas adiante, quando avistou um touro. Logo que lhe descobre a silhueta, propõe-se atacar. Atira-se com o seu cavalo contra o animal, num galope desmedido e insensato. Surpreso e certamente incrédulo, o animal ainda hesita, mas quando verifica que o perigo é real, defende-se como pode. À primeira investida, o cavalo é colhido e os efeitos de uma grande cornada deixam-no maltratado. O jovem Afonso é atirado pelo ar e cai com estrondo. Os que o acompanham encontram-no inanimado. Trazem-no de volta a Lisboa, onde é entregue aos cuidados dos médicos. Várias vezes lhe puseram o garrote no braço para tornar as veias salientes. Ao fim de alguns dias acaba por recuperar, mas ainda lhe fizeram cinco sangrias.
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Os fados não estão com a família real e a tragédia insinua-se com a veemência dos infortúnios sem apelo. Teodósio, o promissor herdeiro do trono, padece de grave doença que o consome como uma maldição. Há preces por todo o lado e mil procissões correm pelas cidades, vilas e em todo o lugarejo com padre-cura solícito. A doença do jovem príncipe, inesperada e lamentável, arrasta-se durante largos meses e todo o país se comove. Há um definhar progressivo e uma tosse danada. Mudam-se os ares, mais campestres, para uma quinta da Palhavã; depois para o palacete real, no lugar de Alcântara, a uma légua do paço. Mas já então o mal desarvorava. Teve empenhos de místico e fez promessas piedosas. Em momentos de fragilidade desesperava num choro suplicante, mas nada contrariou a terrível doença. Morreu tísico, aos dezanove anos, este infortunado príncipe. No mesmo ano, morre também Joana, a mais velha das infantas. Estes trágicos acontecimentos, que trouxeram o luto à família real, levaram o padre António Vieira a escrever ao rei para lhe dizer que os infaustos sucessos se deviam a punição divina por os portugueses terem escravizado mais de dois mil índios junto ao rio Amazonas. Escrevia do Brasil, onde viveu a maior parte da sua longa vida. Três anos depois é o rei atingido pela doença. Enquanto duque, durante o domínio da monarquia hispânica, nunca fora a Madrid prestar homenagem ao rei Filipe. Muitos nobres portugueses o fizeram, colaborando assim na integração de Portugal na monarquia hispânica, uma velha aspiração de Castela. Unida aos reinos de Leão, Aragão e Navarra ao longo de três séculos e integrando já a região da Galiza, à monarquia hispânica restava dominar a rebelião na Catalunha e anexar Portugal para consumar a unificação de toda a península ibérica; mas o domínio que exerceu sobre o país durante sessenta anos terminou abruptamente no primeiro de Dezembro de 1640. O assalto dos nobres portugueses ao palácio da Ribeira e o grande apoio popular foram decisivos. O rei está agora doente e tem uma pertinaz obstipação, com dores intensas, sem remissão. Os médicos muniram-se de poderosos agentes contra a obstipação e prescreveram chás de sene e ruibarbo, que manuseiam com destreza. São os remédios drásticos, que causam grandes cólicas, mas são quase sempre eficazes. Infelizmente, não é o caso do rei. Fica de cama e prostra-se na sua alcova. Dão-se novos tratamentos: sangrias diárias no braço, do lado direito, perto do sítio doente. Com o sangue que se retira, virão os humores espessos retidos no corpo e que aí se acumulam. Há ocasiões em que melhora, mas ainda assim nada parece atalhar a doença e a indecisão campeia entre o júbilo e o desânimo de todos. Os físicos entregam-se ao grave
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conciliábulo da arte médica e da ciência incerta. Os argumentos fixam-se em princípios há muito assinalados pelos sábios antigos, mas as doutas opiniões divergem entre humores nocivos e sábias verdades. Os médicos têm um ar grave quando tomam o pulso e se apoderam da sugestão deste prodigioso sinal que o corpo envia do seu interior inacessível. O pulso é delgado e sumido, certamente por excesso de calor, e as febres não desmentem. Nova conferência e nova decisão: a sangria será feita nas veias do pé, longe do sítio doente. Alguma hesitação sobre o lado onde se fará a ferida que vai abrir a veia: no pé direito limpam-se os humores viciosos do fígado; do pé esquerdo recolhe-se o sangue melancólico do baço opilado. A discussão ganha algum calor. Evocam-se os ensinamentos do grande Hipócrates e a justa doutrina de Galeno, mas toda a reflexão tem um fim: não havendo melancolia por excesso de bílis negra, desnecessário se torna desopilar o baço; o humor responsável será a bílis amarela do fígado, quente e seca, como o fogo, e atreita às grandes febres. O ar dos médicos é grave e a consideração profunda: sendo curta a vida, alongada a ciência e difícil o julgamento, há que encontrar oportunidade. – Sim, a sangria será feita no pé direito. O rei está incomodado, já as dores lhe tolhem os movimentos. Com o ventre duro como tábua, mesmo a paz de um suspiro vira agora uma praga dolorosa. O nariz parece ter mudado de forma e está mais estreito, descarnado, a pele estirada em face de visão ossuda, uma palidez acinzentada com os olhos perdidos em fundo de cova. Dois dias antes de morrer, escreveu uma carta a Maria, uma filha de um amor erradio, que vive afastada e reclusa, em lugar para uma vida santa. Está recolhida no convento das Carmelitas Descalças, fora de portas e para lá de Benfica, em Carnide, de onde nunca mais vai sair. O pai deixou-lhe uns abastados cinquenta mil cruzados para Maria ordenar a sua casa, certamente dedicada a obras pias. Por tristes e misteriosos descaminhos, a pobre Maria virá a morrer, quase trinta anos depois, com fama de possuída pelo demónio. O silêncio envolve a morte, mas um soberano deixa os seus e também entrega o reino, de que sempre há muito a dizer. Mandou chamar os filhos: Afonso, o herdeiro; e o mais novo, o infante Pedro. Debruçam-se ambos sobre o leito do pai e chegam-se perto para ouvirem a voz sumida, que lhes cicia o pensamento ao ouvido: – Todos têm os olhos postos no príncipe e no infante…
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O rei suspende-se a meio da frase, que não consegue concluir de um fôlego. Recorre a novas forças para vencer a febre que o abrasa e abrevia a mensagem que tinha para ambos: – A paz entre os dois é que fará a felicidade do reino. Jovens e ainda imberbes, os dois irmãos, tão tristes como reverentes, estão atentos e concentrados nas palavras do pai. A mãe, Luísa de Guzman, vê os filhos abandonarem a alcova do pai com lágrimas nos olhos. Está distante, a um canto da sala, rodeada das açafatas e damas que a servem, sempre mirando as velas acesas em cima da mesa. Príncipe e infante inclinam-se numa vénia e beijam-lhe a mão, antes de saírem. Luiza está triste, entregue ao sofrimento, e não lhe sobra emoção ou palavra de conforto para os filhos. Contida, mantém-se rígida e submergida pela dor. O seu pensamento já se centra nos dias que seguirão. Está sobretudo empenhada em afastar a ansiedade por assumir a condução do reino e da guerra contra a monarquia hispânica. Foi aí que nasceu, e aí reina Filipe, o monarca que ela e a família odeiam. Vive uma intensa luta interior para combater esta ambição que a toma e atormenta na agonia do rei. A expectativa de mandar assalta-a como um demónio que lhe desgarra a alma e abala as laboriosas defesas que exibe à sedução. Guarda segredo destes pensamentos porque os sabe sacrílegos e não tem dúvida que esta é uma luta solitária contra o maligno, que sempre a vai surpreendendo em pecaminosas penumbras de indizível detalhe. Luiza de Guzman já se tinha mostrado firme na adversidade. Pouco depois da Restauração do reino em 1640, descobre-se a conspiração do marquês de Vila Real e do seu filho, o duque de Caminha. Com o arcebispo de Braga e outros, propunham-se eliminar o rei João para voltar a integrar Portugal na monarquia hispânica. Foi Luiza que pressionou o rei para que a punição fosse exemplar. Sobre um patíbulo de madeira, especialmente construído na grande praça do Rossio, em Lisboa, dispuseram os condenados em cadeiras de alturas diferentes, que cada um ocupou de acordo com a ordem do nobiliário. Foram todos degolados, a convencionada morte honrosa para os nobres. Uma turba imensa assistia e mostrava satisfação pela morte violenta da fidalguia: – Mata! Mata! Mata!
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A rainha mal se apercebe da água benta que Francisco de Sotto-Maior, o bispo de Targa e capelão real, asperge agora, enquanto prepara o rito para a unção final. Já entregue ao varrimento da morte, o rei atende ainda os dignitários da grande nobreza do reino, que desfilam pela sua alcova. A lareira abriga um fogo discreto e há ainda a luz triste das velas que desenham nas paredes a silhueta vacilante e monstruosa dos bustos femininos curvados à sua volta. O ambiente é lúgubre, as vozes breves, sem afrontar o silêncio, e sobre todos paira uma sobriedade pasmada até ao estupor que a morte próxima reclama. Lisboa transfigurou-se e parecia tomada de uma estranha paralisia. As lojas fecharam e os coches, carroças e liteiras mal se viam nas ruas. O movimento é escasso, o passo fugidio, como sorvido pelo passamento do rei. Ao vazio que anda pelo ar abrem-se as portas das igrejas e as naves monumentais são agora espaços públicos onde muitos procuram conforto. Tremulam círios em mãos de dó e alinha-se a procissão que desce da sé para a igreja de São Domingos, no Rossio. As mulheres usam na cabeça o mesmo lenço preto do luto de todos os dias. Separadas dos homens, vêm no fim da procissão e caminham descalças sobre a areia lamacenta das ruas de Lisboa – a maior parte porque são pobres e assim andam todos os dias; outras, são mulheres dadas a exercício de penitência. O rei esteve onze dias de cama antes de morrer. Nos últimos momentos procedeu-se ao ofício religioso da agonia, um sussurro contínuo de piedosas ladainhas que encomendam a alma do moribundo. A oração prosseguiu até que se finasse. Foi numa manhã fria de Novembro de 1656. O rei D. João IV tinha cinquenta e dois anos. Por todo o país há um grande pesar. Alguns arrancaram as barbas para sinalizar a perda do rei que anunciou a libertação; outros não as raparam nem cortaram o cabelo durante vários meses. Muitos choraram como crianças perdidas. As mulheres entregavam-se à sonoridade, e carpiam quanto podiam. Umas poucas usavam as unhas para ferir a face, como faziam as mulheres de Atenas, e exibiam o sangue com as mãos suspensas e o medonho no olhar.
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a Primavera de 1665, os serviços de espionagem do conde de Castelo Melhor dão notícia de novos preparativos castelhanos para a guerra. Há grande concentração de tropas na fronteira e ainda se esperam reforços de combatentes de Itália, da Alemanha e da Hungria. O exército da monarquia hispânica vem renovado e o seu novo comandante é Luís de Benevides, o marquês de Caracena. Vem substituir Juan de Austria que perdeu o favor do rei depois da derrota na batalha do Ameixial. Afamado pelos seus feitos militares, o marquês de Caracena traz novos ímpetos e prepara uma ofensiva geral. Conhecedor, o conde de Castelo Melhor informa os chefes militares portugueses e todos os membros da nobreza. Ele insiste para que se juntem com brevidade ao exército do Alentejo. Pressiona o marquês de Marialva e numa carta que lhe dirige chega a impacientar-se: “Eu, se não me livro da desgraça que pode suceder ao Alentejo com as demoras do senhor marquês, hei-de livrar-me da culpa”. Pelos concelhos, não é menor a azáfama e sucedem-se os recrutamentos de soldados. São convocados todos os homens entre os quinze e os setenta anos, exceptuando os filhos de viúvas e lavradores. Deslocam-se os exércitos das outras províncias: as tropas do conde de São João vêm de Trás-os-Montes. Das Beiras, vem novamente o exército de Pedro Jacques de Magalhães. Os terços de cavalaria estacionados em Lisboa, sob o comando do irmão de Castelo Melhor, também são enviados para a frente. Criam-se compensações para os soldados estrangeiros: nos casos de morte em combate, a viúva fica com direito a um mês de soldo e, caso haja filhos pequenos, mais dois meses. O conde de Castelo Melhor acorre aos pedidos que lhe são transmitidos pelos responsáveis do exército e é novamente ele que se encarrega das
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questões logísticas. Não eram novos os reparos à falta de cirurgiões para assistência e acompanhamento das tropas. Com maior insistência eram requeridos para o tratamento dos feridos nos campos de batalha, onde ficavam centenas ou mesmo milhares de soldados sem assistência, como acontecera recentemente na batalha do Ameixial. O assunto fora tema de conversa e sobre ele se fizeram muitas observações. Desta vez, para que nada falte, o conde mobiliza dois cirurgiões e prepara um transporte especial para a frente de combate. Pedro Palmeiro e Eugénio Pão e Água encontram-se no pequeno cais do paço real, onde aguardam o enviado do Conselho de Guerra com os documentos e as últimas instruções antes de partirem para a frente. Ainda não nascera o sol, quando embarcam numa falua para a margem sul do Tejo. Pedro Palmeiro recosta-se na amura depois de colocar a sua pequena bagagem debaixo da bancada. Embora não saiba a idade com precisão, calcula andar próximo dos cinquenta anos. Alguns cabelos brancos despontam de cada lado da face redonda, agora oferecida ao vento. Mestre cirurgião há quase três décadas, está ao serviço do rei desde que se juntou à força que foi socorrer Elvas, na altura do cerco castelhano. À sua frente, Eugénio Pão e Água apoia no ombro direito o comprido pau, onde está amarrado o pano-cru que envolve o bornal e a sua exígua bagagem. Mais adiante, alinham-se outros cinco passageiros que arrumam as suas trouxas e outros pertences. Duas galinhas em disciplinado silêncio espreitam pelos cestos de verga que as abrigam. Já um pequeno crescente de sol se vê no horizonte quando o marinheiro pega no cabo da adriça e faz subir a vela ao longo do mastro. À popa, o mestre faz um ligeiro movimento com o leme e oferece o pano a uma brisa de leste que o ordena. Eugénio Pão e Água não está à vontade. Nunca se habituou às coisas do mar e sempre achou pouco pacíficas as travessias do Tejo. Esta e outras fragilidades são já antigas: muitas vezes doente, havia quem encontrasse milagre por ter sobrevivido a todas as provações. Desde as constipações permanentes até doenças mais graves, Eugénio conheceu perigos, deu grandes trabalhos, e não foi só uma vez que a sua alma foi encomendada. Vai calado e olha em frente, enquanto procura orientar os seus pensamentos para longe do assédio do medo. Tem vinte e poucos anos e um ar franzino. A pele, de uma brancura leitosa, e uma barba rala acentuam a sua juventude descuidada. Também não está à vontade com Pedro Palmeiro,
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Luiza de Guzman estava doente há algumas semanas. O seu estado agravara-se nos últimos dias e à hidropisia, com edemas que lhe avolumavam todo o corpo, juntava-se agora uma aflitiva dificuldade em respirar. Os médicos que a assistiam no convento de Xabregas tinham ensaiado vários tratamentos, mas não obtinham progressos. Mais afoitos no prognóstico, nada auguram de bom e vão sugerindo os cuidados da alma. Luiza de Guzman entrega-se ao ritual do bispo de Targa e pede-lhe que a recomende aos céus. Os marqueses de Marialva e de Niza são as testemunhas presentes quando dita o testamento. Escreve à filha Catarina, em Londres, para dizer do seu amor. Envia um mensageiro aos filhos e a ambos lembra as obrigações. Em particular, pede ao rei que não esqueça as dívidas de gratidão para os que sempre a serviram. A Pedro, lembra a obrigação de obedecer ao irmão e assim servir o reino. Afonso e Pedro vinham da caça com as comitivas e umas dezenas de cavaleiros, a caminho do paço de Salvaterra de Magos, quando recebem a notícia. O rei manda preparar o bergantim real na amarração de Escaroupim. Enquanto se fazem os preparativos da partida, segue o mordomo-mor, marquês de Gouveia, a caminho de Xabregas, com mensagens dos filhos. A ansiedade da rainha-mãe aumenta depois de lhe lerem as cartas e é notório que deseja ver os filhos. Duas vezes se anuncia a chegada do rei e do infante. A rainha esforça-se por se conservar lúcida até que venham, mas a longa espera prostra-a. Quando chegam – pelas oito horas da noite – a rainha não se apercebe da sua presença. Os dois irmãos ajoelham ao lado da alcova da mãe e é uma dama da rainha que recolhe a sua mão fria de entre os lençóis e a apresenta aos filhos para a beijarem.
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Luiza de Guzman de la Buena morreu no dia 27 de Fevereiro de 1666, quando ainda não tinha completado cinquenta e três anos. Nasceu em San Lucar de Barrameda, na Andaluzia espanhola. Era filha dos duques de Medina e Sidonia, uma das famílias mais poderosas da monarquia hispânica, conhecida também pela animosidade ao rei Filipe. Quando casou com o duque de Bragança, o futuro rei João, era uma jovem franzina, de uma beleza retraída e expressão serena. A ela se atribui a máxima: “mais vale ser rainha uma hora que duquesa toda a vida”.
A armada francesa trazia um mês de viagem quando chegou à barra do Tejo. Vinha do pequeno burgo de La Rochelle, na costa oeste de França. Neste mês de Julho, seco e quente, os ventos foram rogados e só quando mostraram alguma constância o almirante Rovigny deu ordem para levantar ferro e demandar Lisboa. A viagem foi lenta e com alguma deriva. Finalmente fundearam ao largo de Cascais a aguardar vento e maré favoráveis para a entrada no Tejo. Depois, foi a vagarosa aproximação até à silhueta redonda do forte de São Lourenço, no cabeço do Bugio. Maria Francisca de Saboia viaja num galeão, com os seus três imponentes mastros, que envergam velas redondas com a imaculada brancura do brim. Uma armada francesa escolta a grande nau de guerra onde viaja aquela que é agora a rainha de Portugal. A frota tem trinta e cinco navios, entre naus, galeões e galeras de guerra. O jovem rei de França, Luís XIV, tinha providenciado protecção segura para esta prima, não fossem os corsários a mando do rei de Inglaterra, dos holandeses, ou mesmo os piratas por conta própria, macular a viagem nupcial. A nova rainha casara com o rei D. Afonso VI de Portugal no mês anterior, em cerimónia realizada na igreja de La Rochelle. Esteve presente o embaixador marquês de Sande. Da parte da rainha esteve o cardeal Vendôme, seu tio e legado do papa em França. Tudo se cumpriu com a pompa adequada ao ritual de um casamento real, ainda assim deslustrado pela ausência do noivo, que aguardava em Lisboa a chegada da rainha. A ansiedade de Maria Francisca crescera na longa viagem, interrompida amiúde pela impertinente calmaria. O confinamento prolongado no espaço exíguo do navio aumentava a vontade de desembarcar em terra portuguesa; mas estava preocupada porque se sabia nervosa e excessiva.
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O príncipe
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Os valentes do rei
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Um palácio de príncipe
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O novo regime
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Santo Motim
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Basta deixá-los
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O Vitorioso
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Maria Francisca
97 Alcântara 106
A queda
121 Prisão 137
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Os reis não precisam de arrimo
185 Agradecimento 186 Notas 194
Resenha bibliográfica
© Edição By the Book, Edições Especiais Título Libelo da Rainha © Texto Joaquim Barradas Revisão Catarina Santiago Costa Paginação Veronique Pipa Impressão Gráfica Manuel Barbosa e filhos, lda. ISBN 978-989-8614-53-7 Depósito Legal 427514/17
BY THE
BOOK
Edições Especiais, lda Rua das Pedreiras, 16-4º 1400-271 Lisboa T. + F. (+351) 213 610 997 www.bythebook.pt