memória, arquitectura e projecto
Assim, as reflexões que apresentamos tiveram por condição de base a acção potenciadora implícita à preservação da memória e à revalorização tácita de uma omnisciente identidade patrimonial, realidade que, quanto a nós, surge metodologicamente como efectivo meio prático e pragmático para ‘pensar’, ‘projectar’ e ‘construir’, hoje, novas ideias sustentáveis de reabilitação. Deste modo, mais do que apresentar imagens e linguagens arquitectónicas, as reflexões e as propostas apresentadas procuraram sustentar o seu valor, não apenas no modo como reconstroem uma ideia prévia do património que conhecemos, mas sobretudo numa ideia prioritária de vitalidade e sustentabilidade económica, social e cultural, realidade que exige, objectivamente, a reactualização constante das razões de usos e a revalorização programática da identidade de um sempre eloquente Património Urbano e Arquitectónico.
António Santos Leite | Ana Marta Feliciano
A presente publicação, síntese de uma investigação teórico-prática que procurou actuar no âmbito da Reabilitação do Património Urbano e Arquitectónico, reflectiu crítica e operativamente sobre um território que surge hoje, inquestionavelmente, como um dos lugares centrais do pensar e construir o nosso tempo. Na verdade, num tempo onde a ‘homogeneidade da globalização’ tende a anular subliminarmente as diferenças e as identidades, a redescoberta e reinvenção de um matricial património construído, resgatando-o funcional e culturalmente para um novo tempo, assume-se como uma efectiva estratégia cultural sustentável e identitariamente qualificadora.
BY THE
BOOK
ANTÓNIO SANTOS LEITE
memória arquitectura e projecto Reflexão e Propostas para uma Reabilitação Sustentada do Património Urbano e Arquitectónico Coordenação
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António Santos Leite | Ana Marta Feliciano
Natural de Lisboa. 1995: licenciatura em Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa (FAUTL). Desde 1995: actividade profissional em Arquitectura e Urbanismo. Entre 1993 e 1997: colaboração com o Arq. Victor Figueiredo 2001: grau de Mestre em ‘Arquitectura de Habitação’, atribuído pela FAUTL; Entre 2003 e 2007: bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) 2008: grau de‘Doutor Europeu’, atribuído pela Universidad Politecnica de Madrid, com a defesa da tese “La Casa Romántica; de la Matriz Romántica a un Concepto Acrónico y Operativo en la Contemporaneidad”. Desde 1996: docente e investigador da Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa, onde lecciona disciplinas teórico-práticas de Projecto de Arquitectura. Escreve regularmente em publicações de Arte e Arquitectura. Editou A Casa Romântica; uma Matriz para a Contemporaneidade e, em conjunto com Ana Marta Feliciano A Casa Senhorial como Matriz da Territorialidade; a região de Torres Vedras entre o Tempo Medieval e o Final do Antigo Regime. Principais temas de investigação: a Arquitectura Experimental, a Habitação e a Casa Individual; processos de Reabilitação Arquitectónica e de valorização do Património, entendendo estes como factores desencadeantes de uma efectiva sustentabilidade sociocultural. ANA MARTA FELICIANO
Natural de Torres Vedras. 1995: licenciatura em Arquitectura pela FAUTL. Desde 1995: actividade profissional em Arquitectura e Urbanismo. 2001: grau de Mestre no 2º Curso de Mestrado em Arquitectura da Habitação da FAUTL. Entre 2003 e 2007: bolseira da FCT; Curso de Doutoramento Teoría y Practica del Proyecto do Departamento de Proyectos Arquitectónicos da Escuela Técnica Superior de Arquitectura da Universidad Politécnica de Madrid; Doutoramento Europeu em Arquitectura com a defesa da tese “La Metáfora del Organismo en las Arquitecturas Visionarias de los Años Sessenta; La Obra del Grupo Archigram como Reinvención de un Nuevo Habitar”. Desde 1997: docente e investigadora da FAUTL, onde lecciona disciplinas de Projecto de Arquitectura. Publica regularmente em revistas e livros de Arquitectura e Urbanismo. Editou A Metáfora do Organismo nas Arquitecturas dos Anos Sessenta; A Obra dos Archigram como Manifesto de um novo Habitar. Principais interesses de investigação: a Arquitectura Experimental; a Habitação nos Anos 60 e as propostas Visionárias da segunda metade do Século XX; a Casa/Cidade como ‘Organismo Vivo’.
Ficha técnica
Agradecimentos
Título
Assumindo que o presente trabalho só foi possível pela concertação de
Memória, Arquitectura e Projecto;
vontades de um grupo alargado de investigadores, queremos em primeiro
Reflexão e Propostas para uma Reabilitação Sustentada do Património Urbano e Arquitectónico Coordenação Professor Arq. António Santos Leite, FAUL/CIAUD Professora Arq. Ana Marta Feliciano, FAUL/CIAUD © Texto Professor Arq. António Santos Leite; Professora Arq. Ana Marta Feliciano; Arq. Mariana Robalo; Arq. Susana Ayres © Projectos Arq. Américo Olival; Arq. Ana Teresa Torres; Arq. Catarina Alegria; Arq. Catarina Mendonça; Arq. Daniela Glória; Arq. Emanuela Mendes; Arq. Inês Felix; Arq. Inês Galrão; Arq. Inês Inácio; Arq. Isabel Sebastião; Arq. Joana Diniz; Arq. Lara Raposo Silva; Arq. Marco Gomes; Arq. Mariana Robalo; Arq. Mário Pessa; Arq. Rita D’Aguilar; Arq. Sofia Coelho; Arq. Susana Ayres; Arq. Tiago Baptista Design Mariana Robalo Revisão gráfica e produção By the Book, Edições Especiais Impressão Jorge Fernandes, lda ISBN 978-989-8614-40-7 Depósito Legal 418701/16
BY T H E
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Edições Especiais, lda Rua das Pedreiras, 16-4º 1400-271 Lisboa T. + F. (+351) 213 610 997 www.bythebook.pt
lugar agradecer a todos os participantes que contribuíram generosamente com os conteúdos apresentados. Para além destes contributos, queremos agradecer muito particularmente à Arq. Mariana Robalo pelo esforço de centralização e sistematização da informação e pelo layout prévio da publicação. Gostaríamos também de agradecer ao Professor Fernando Moreira da Silva pelo seu apoio e incentivo à divulgação deste trabalho, bem como reconhecer a importância do Centro de Investigação de Arquitectura Urbanismo e Design e da Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa como instituições de suporte da presente publicação e investigação. Finalmente queremos agradecer à editora By the Book pelo interesse e profissionalismo demonstrado, realidade que tornou concreta a presente publicação.
ÍNDICE
4 Apresentação
António Santos Leite | Ana Marta Feliciano
120 Uma proposta de reconversão do convento e fábrica de são paulo, em Vila Viçosa, num Centro de Artes, Cultura e residência para artistas
6 REFLEXÃO
Inês Galrão
7 Memória, Arquitectura E Projecto
130 A Matriz fundadora como catalisador identitário do Espaço
António Santos Leite
Inês Cadete Inácio
23 A Intervenção Culturalista como Génese de uma ‘Nova Ideia’ de Património
140 Repensar o Habitar na Colina de Sant’ana
Ana Marta Feliciano 35 Espaço, Tempo e Arquitectura
150 O Conceito de Micro-Bairro como estratégia de revitalização da Cidade
Mariana Robalo
Joana Tenreiro Diniz
41 A Flexibilidade como Factor de Preservação
160 A reabilitação do património dos moinhos de vento do Oeste
Susana Ayres
Isabel Sebastião
Lara Filipe Raposo Silva 49 propostas de intervenção
170 Resignificar e reabilitar a ‘presença’ da Cerca Fernandina na Colina de Sant’ana
Marco Gomes 50 Memória e Esquecimento – as ligações e os limites
180 A Percepção do Tempo na Reabilitação Urbana e Arquitectónica
Américo Olival
Mariana Robalo
60 A Rua como Mediador ‘Entre’ A Cidade e o Edifício
190 The Creative Cluster – Rehab Tool
Ana Teresa Torres 70 O Objecto-Cidade como estratégia de Reabilitação
198 Reabilitar e resignificar para a contemporaneidade as antigas “Tercenas do Marquês”
Catarina Alegria
Rita D’Aguilar
80 Memória e Contemporaneidade
Catarina Mendonça
208 O Pátio Urbano como elemento de intimidade e proteção
90 O Tempo do Habitar
Sofia Coelho
Daniela Glória
218 Flexibilidade e Permanência
102 Desenhar na Memória de uma Quinta de Recreio
Susana Ayres
Emanuela Mendes
228 O Património Industrial na cidade de Lisboa
110 O Valor Simbólico nas Arquitecturas da Cidade
Tiago Baptista
Mário Pessa
Inês Félix 238 Bibliografia
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APRESENTAÇÃO Arq. António Santos Leite, Professor da FAUL Arq. Ana Marta Feliciano, Professora da FAUL
O trabalho que agora se apresenta, Memória, Arquitectura e Projecto; Reflexão e Propostas para uma Reabilitação Sustentada do Património Urbano e Arquitectónico, resulta de uma síntese dos trabalhos desenvolvidos por um Projecto de Investigação, realizado entre 2011 e 2015, coordenado pelo Professor Arq. António Santos Leite e pela Professora Arq. Ana Marta Feliciano, projecto que se sediou na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa (FAUL) e foi realizado com o apoio do Centro de Investigação de Arquitectura, Urbanismo e Design (CIAUD). Concretamente, o presente projecto, desenvolvido a partir do âmbito do acompanhamento e orientação de Projectos Finais do Mestrado Integrado dos cursos de Arquitectura e Arquitectura de Interiores da FAUL, realizados sobre a temática da “Reabilitação do Património Urbano e Arquitectónico”, permitiu construir um espaço laboratorial teórico-prático que procurou abordar e reflectir criticamente sobre este amplo território cultural, território que surge hoje, inquestionavelmente, como um dos lugares centrais do pensar e construir o nosso tempo. Na verdade, num tempo onde a ‘homogeneidade da globalização’ tende a anular subliminarmente as diferenças e as identidades, a redescoberta e reinvenção do Património Urbano e Arquitectónico, resgatando-o funcional e culturalmente para um novo tempo, assume-se como uma efectiva estratégia cultural identitariamente qualificadora. Desta forma, podemos afirmar que, num tempo de Pós-modernidade onde o reconhecimento do ‘outro’ emerge como acção potenciadora, a preservação e reabilitação de uma omnisciente identidade patrimonial surge objectivamente como lugar central e meio operativo para a sustentabilidade económica e sociocultural dos nossos dias. Para além deste reconhecimento genérico, dificilmente contraditável pelas dinâmicas económicas e culturais cada vez mais estabelecidas, torna-se também importante referir que o presente Projecto de Investigação estabeleceu-se a partir de uma matriz
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de orientação intencionalmente crítica e aberta a revisões do previamente estabelecido, razão pela qual procurou sustentar a sua metodologia de projecto arquitectónico numa relação intrínseca entre uma específica reflexão teórica e uma concreta aplicação prática. Neste quadro, todos os projectos desenvolvidos tiveram por condição preliminar a sua sustentação num concreto quadro teórico, quadro esse que permitiu abrir linhas de pesquisa e reflexão teórica, das quais se apresentam algumas tidas como exemplares, que sustentaram modos distintos de ‘pensar’, ‘projectar’ e ‘construir’ novas ideias de reabilitação. De certo modo, procurou-se a superação do mero pragmatismo de uma tácita resposta contextual, uma vez que a imposição de um tema em concreto implicou – sempre – a reflexão sobre um âmbito específico que justificasse a actualidade da intervenção, realidade que exigiu, metodologicamente, a redefinição crítica de um genérico contexto programático, determinando assim a construção de um programa próprio e não uma mera resposta circunstancial a um qualquer objectivo e ideias previamente colocadas. Assim sendo, as propostas e as reflexões agora apresentadas sustentam o seu valor, não apenas no modo como reconstroem uma ideia prévia de um património que genericamente conhecemos, mas sobretudo num modo diferente de o pensar e de o reabilitar, procurando, tanto quanto o seu enquadramento específico o justificou, novas razões, novos usos, novas formas e linguagens arquitectónicas que acrescentem potencialmente valor ao já conhecido; no fundo, procurámos que a reabilitação experimentada neste Projecto de Investigação não se revelasse como um mero agente passivo subjugado por certezas, mas sim que se projectasse como um amplo território em aberto que pudesse potenciar, para nós e para a nossa contemporaneidade, novas leituras que reinventassem criticamente o modo como olhamos, reentendemos e reactualizamos as razões e as identidades que, verdadeiramente, podem garantir em cada momento a vitalidade e a sustentabilidade das estratégias qualificadoras de um eloquente Património Urbano e Arquitectónico.
Reflexão
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MEMÓRIA, ARQUITECTURA E PROJECTO Algumas reflexões em aberto sobre o Valor da Memória no Projecto de Reabilitação Arq. António Santos Leite, Professor da FAUL
Façamos três perguntas simples: o que é a Memória? O que é o Projecto? O que é a Arquitectura? Mas – um momento – não respondamos já, divaguemos um pouco pelas nossas próprias memórias, ideias e incertezas, pois, essas três perguntas – metodologicamente – deverão permanecer aqui sem respostas objectivas, pois, assumimos, dentro de um entendimento aberto do Mundo, que o perguntar pode ser por vezes mais consequente do que o responder. Assim, primeiro, reconstruamos a matriz da nossa primeira arquitectura – a nossa Casa; ou melhor, a nossa Casa Matricial – aquela que nos criou e nos identifica, a Casa que, sinteticamente no seu limite, poderá ser feita por todas as casas onde vivemos. Certamente, se a revivermos, somos capazes de a reconstruir imageticamente envolta numa luz azul, que, pouco a pouco, se vai definindo com a insegurança da natureza dos sonhos, recriando-a nas suas formas, nos seus limites, nas suas cores, nos seus cheiros e sons – nos seus afectos. Nessa irrealidade feita de imprecisas memórias, projectamos instintivamente a claridade luminosa dos nossos desejos, esquecendo – num primeiro momento – as sombras escuras dos nossos medos; depois, só depois, superados os medos e as hipocrisias, projectamos a verdade mais profunda dessa Arquitectura.
Raul Lino, “Casas Portuguesas; Casa na Estremadura”, s.d. | Max Ernst; “O quarto de dormir de Max Ernst; vale a pena passar aqui uma noite”1, 1920. 1. Texto em francês: “…la chambre à coucher de max ernst cela vant la peine d’y passer une nuit / max ernst”; trad. do autor.
8 | António Santos Leite
A partir desta primária reconstrução subjectiva, reencontramos, tanto mais quanto mais ausente ela estiver momentaneamente de nós, as memórias e os valores residuais da casa que permanece dentro de nós – reencontramo-nos; ou melhor, reidentificamo-nos com valores que, paradoxalmente, conhecemos e desconhecemos mas que, pela sua vulgaridade doméstica, tendíamos a ignora-los por não os valorizarmos num primeiro olhar. Segundo José Joaquín Parra Bañón “…aquilo que chamamos casa é o lugar que nos foi dado, ou que, podendo, escolhemos no (do) Mundo como nosso. A casa é uma propriedade, não só no sentido legal ou patrimonial, onde possui um elevado grau na hierarquia das pertenças, até ao ponto em que se fala da casa própria como se do próprio corpo se tratasse: uma goteira é como um derrame vascular, uma ferida, uma greta. A casa é o nosso lugar no Mundo, independentemente da arquitectura que o limita. Quando alguém se apropria do espaço tende a convertê-lo na sua casa servindo-se, a preceito, da estratégia da domesticação. Domesticar um lugar, como se de um felino se tratasse, consiste em ensiná-lo a obedecer à vontade alheia, a cumprir por imposição umas normas artificiosas até que estas se tornem naturais…”2. Objectivamente, se revisitarmos intencional e emocionalmente a nossa Casa Matricial, reconhecemos nela traços e valores que para nós se assumem, ou que pelo menos cremos que se podem assumir, como constantes verdadeiramente identitárias, pois elas foram o resultado irrepetível da nossa orgânica simbiose de vivências, assumindo-se por isso como parte inalienável do nosso Mundo e de nós mesmos, parte da nossa diferença dos outros – a nossa identidade. Deste modo, reencadeemos uma vez mais numa única pergunta sem resposta as três perguntas iniciais: o que é a Memória, o Projecto e a Arquitectura; e – já agora – associemos-lhe intencionalmente uma ideia tácita de Reabilitação. Isto é, procuremos compreender as inter-relações recíprocas de como é que a Memória condiciona – ou pode condicionar – o Projecto, como é que reciprocamente o Projecto condiciona a Arquitectura e como é que a Arquitectura se determina – ou se pode determinar – a partir da ideia subjacente de Reabilitação. No entanto, apesar de num primeiro ímpeto tendermos a procurar definir respostas para as perguntas colocadas, tal não nos parece necessariamente o caminho mais fecundo, pois a certeza definida das respostas tenderia, por si só, à limitação apriorística ao conhecido, tendendo portanto a potenciar relações unívocas e direccionadas que implicariam o recurso a definições fechadas, que, certamente, apenas de um modo medíocre responderiam ao âmbito genericamente aberto pelo questionado. Esta constatação obriga-nos assim, uma vez mais, a deixar metodologicamente
2. José Joaquín Parra Bañón; “Pensamiento Arquitectónico en la Obra de José Saramago; Acerca de la Arquitectura de la Casa”; col. Iberia Nossa n.º1; Aconcagua Libros S.L.; 1.ª ed., Sevilla, 2003; p.37; trad. do autor.
MEMÓRIA, ARQUITECTURA E PROJECTO | 9
as respostas em suspenso, abrindo espaço – para nós, mas também para quem ler este texto – para se poder construir um caminho próprio de reflexão3. Dentro desta abertura metodológica – onde ressoam conscientemente reflexos do conceito de ‘Obra Aberta’4 que emerge a partir da revisão crítica do estruturalismo italiano dos anos cinquenta, “…a poética da ‘obra aberta’ tende (…) a promover no intérprete ‘actos de liberdade consciente’, a pô-la como centro activo de uma rede de relações inesgotáveis, entre as quais ele instaura a própria forma, sem ser determinado por uma ‘necessidade’ que lhe prescreva os modos definitivos da organização da obra fruída…”5 – regressemos de novo ao contexto matricial e identitário da ‘Casa que nos criou’, relacionando-o e interpretando-o agora especificamente a partir do seu intrínseco valor de memória. Mas recomecemos por mais perguntas: o que é a Memória e, complementarmente, porque é que nos esquecemos; porque mantemos presentes, mesmo que o façamos por tempos diferentes que determinam quer uma temporária Memória Superficial, quer uma atemporal Memória Profunda, determinados factos e valores em detrimento de todo um contínuo de coisas que nos foram e vão sempre acontecendo, esquecendo assim, tácita e momentaneamente, todo um enorme volume de factos e sentimentos que de um modo concreto vamos experimentando e dando resposta. De certo modo, confrontamo-nos dialecticamente entre dois discursos tacitamente mnemónicos: um discurso narrativo, sintético e racional, mas precariamente encadeado, e um discurso matricial, aberto e aleatório, mas potencialmente fecundo nas suas múltiplas possibilidades combinatórias, que, por não ser racionalmente linear, surge livre e subjectivo sem uma pré-configurada razão aparente. Sem se querer entrar aqui numa qualquer explicação psicanalítica para a qual, obviamente, não estaríamos qualificados, ressalta no entanto como acessível a percepção primária de um directo sentido de amnésia sobre as coisas que consideramos banais, de certo modo apenas associadas eventualmente a uma Memória Superficial, coisas que já compreendemos por certamente já as termos previamente resolvido. Deste modo, ten 3. Não queremos com isto dizer que as reflexões que se registam neste texto se assumam autonomamente como originais, pois isso seria, objectivamente, uma realidade muito ingénua ou despudoradamente pretensiosa, apenas queremos afirmar aqui a primária intencionalidade de manter, tal como num ensaio, uma relativa autonomia subjectiva na construção de um modo próprio de interpretar, mesmo que esse modo seja acompanhado e sustentado pela omnipresença da leitura e interpretação de muitos outros; n.a. 4. Referência directa ao conceito de ‘Obra Aberta’ desenvolvido por Umberto Eco e divulgado, em 1962, no seu livro Opera Aperta (ed. original Gruppo Editoriale Fabbri, Bompiani, Sonzogono, Etas, S. p. A.; 1962); n.a. 5. Umberto Eco; Obra Aberta (título original: Opera Aperta; Gruppo Editoriale Fabbri, Bompiani, Sonzogono, Etas, S.p.A.; 1962); trad. João N. Furtado; Difel 82 – Difusão Editorial, Lda.; Lisboa 1989; p.69.
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A flexibilidade como fator de preservação Susana Ayres
A flexibilidade da arquitetura apresenta-se-nos hoje em dia como uma das chaves para lidar com os desafios de um presente em constante mudança, as projeções imprevisíveis do futuro e um passado que deve continuar a permear as nossas cidades. É um atributo nato da arquitetura que reside, de modo mais ou menos presente, na forma da geometria, na massa que delimita o espaço e refere-se à capacidade que este tem de acolher novos usos e transformações. Este conceito de adaptabilidade pode multiplicar-se, de uma forma generalizante, em três vertentes mais específicas de ‘flexível’: I) a polivalência é capacidade de uma forma acolher várias funções sem ou com o mínimo de intervenção espacial; II) a alterabilidade é a capacidade que o edifício tem de ser fisicamente alterável; III) e a expansibilidade refere-se à adição sobre a própria arquitetura. Porém, referimo-nos neste artigo à conceção mais abrangente da adaptabilidade, visando todas as subtilezas. De que modo estão a preservação e o estudo do património ligados à flexibilidade? É oportuno falar de preservação juntamente com a reutilização, reativação ou adaptação, porque está pressuposta uma evolução, através de transformação funcional ou física, sempre com o intuito de manter o edifício utilizável para fins simbólicos ou funcionais. A manutenção decorre não só porque o justificam as qualidades históricas ou espaciais, mas também devido à alteração dos usos; a arquitetura encontra, ciclicamente, novos papéis a desempenhar junto aos seus habitantes.
Recepção no Convento do Beato, Lisboa.
A FLEXIBILIDADE COMO FATOR DE PRESERVAÇÃO | 49
PROPOSTAS DE INTERVENÇÃO
50 |
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Memória e Esquecimento – As Ligações e os Limites Uma proposta de requalificação do Largo de Martim Moniz a partir da resignificação da Cerca Fernandina Américo Olival
Ao inverso da riqueza de permanências que podemos localizar na colina de Sant’Ana, não existem já no Largo de Martim Moniz vestígios físicos da Cerca Fernandina. Sobre este facto, o conceito de atuação será oposto ao do projeto de intervenção urbana: na sua inexistência, pretende-se trazer a memória da cerca através da enfatização da ausência em vez de qualquer reconstrução alusiva. Esta ideia será materializada pela adição de corpos arquitetónicos contíguos – mas nunca sobrepostos – ao espaço geográfico outrora ocupado pela cerca, quer no interior quer no exterior dos antigos limites. Desta forma, a cerca será representada pelo vazio e tensão exercida por esses corpos opostos. Por outro lado, reforçando a rememoração da cerca no largo, pretende-se dar a perceção de estar no interior e no exterior da cerca através do carácter do edificado proposto. Na proposta de intervenção arquitectónica referencia-se o caráter passado, em que o interior densamente povoado das fortificações se opõe ao seu exterior imediato composto por espaço livre e algumas construções temporárias ou informais. Numa perspetiva contemporânea e ligada ao programa definido para o largo, para o lado interior (Sul) da cerca a construção será mais “fixa” e tendencialmente imutável, enquanto para o lado exterior (Norte), caraterizar-se-á pela simplificação, leveza e flexibilidade da construção pouco densa coexistente com espaços verdes e de descompressão da malha urbana. A cércea do construído também irá deferir: no interior da cerca é intencionalmente mais alta, aproximando-se à altura da muralha – sensivelmente 10 metros – ao passo que a Norte a construção é proposta como mais baixa desenvolvendo-se ao nível térreo. A área da cerca é representada, desta forma, como um espaço de passagem transversal ao largo e de ligação entre a Colina de Sant’Ana e a Colina do Castelo, inserindo-se desta forma no percurso turístico proposto na estratégia urbana.
52 | Américo Olival
Conceito Pretende-se devolver a memória da cerca à cidade, partindo do seu estado actual no Largo de Martim Moniz, onde não existem já vestígios significativos da Cerca Fernadina, alargando a intervenção à Colina de Sant’Ana onde se constata ainda uma riqueza de vestígios. Na zona do Martim Moniz mais nada existe além da Torre do Jogo da Péla, na encosta nascente da Colina de Sant’Ana, mesmo assim, a partir deste vestígio e do trabalho de Augusto Vieira da Silva, ainda se pode especular sobre o re-desenho da cerca no largo. O conceito é oposto ao do projeto de intervenção urbana, devido à inexistência da cerca, porque se pretende trazer a sua memória através da sua ausência e não da sua reconstrução integral. A ideia consiste na adição de corpos arquitetónicos contíguos à cerca, quer no interior quer no exterior, e, desta forma, a cerca será representada pelo vazio e tensão exercida por esses corpos opostos.
MEMÓRIA E ESQUECIMENTO – AS LIGAÇÕES E OS LIMITES | 53
Programa O programa assenta na criação de espaços de domínio essencialmente público e encontra-se ligado às premissas do conceito enunciadas, de adição e densidade diversa, pretendendo-se garantir a diferenciação entre o interior e o exterior da cerca e admitir a diversidade de funcionalidades para abranger as várias necessidades do indivíduo. O projeto prevê a criação de espaços de comércio de carácter diferente do lado de fora e de dentro da cerca. Na zona Sul, o comércio assume características de um centro comercial fechado, composto por lojas, bares, restaurantes e escritórios, enquanto que, na zona Norte do largo, o comércio carateriza-se pela flexibilidade e capacidade de acolher vários tipos de comércio em espaço aberto, permitindo quer a utilização pelo comércio grossista,
50m
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A Rua Como Mediador ‘Entre’ A Cidade E O Edifício Das Portas de Santo Antão ao Palácio da Anunciada Ana Teresa Torres
Esta intervenção submete um olhar sobre a rua segundo um lugar portador de uma identidade, um espaço articulador e multifuncional. Uma unidade que integra diversas componentes que interagem em simultâneo com a rua, quer numa relação de proximidade como de distância, gerando lugares de encontro, de convívio e intimidade, enquanto potenciadora de urbanidade e regeneradora da cidade. A cidade enquanto um sistema de relações em constante movimento, proximidades, avanços tecnológicos, em que a mudança deve ser acompanhada pelas ruas – que tanto são moldadas como moldam – onde o edifício, elemento que as integra, é trabalhado segundo um referencial de leitura para a rua ao contribuir para o diálogo desenvolvido entre ambos. Neste contexto, a intervenção que propomos para a Rua das Portas de Santo Antão, uma das ruas mais emblemáticas da cidade de Lisboa, bem como a reabilitação proposta para o Palácio da Anunciada, um dos palácios que integram esta rua, vêm reforçar a distinta e singular identidade do lugar, introduzindo uma componente contemporânea na vida deste eixo e na leitura da cidade.
64 | Ana Teresa Torres
Ambiente da Rua. Nova relação gerada na Rua das Portas de Santo Antão com a introdução dos diversos níveis da Escola na sua relação com a rua.
A RUA COMO MEDIADOR ‘ENTRE’ A CIDADE E O EDIFÍCIO | 65
Planta do Piso Térreo Relação das diversas entradas e respectivo auditório da Escola com a Rua das Portas de Santo Antão.
1
1. Escola das Artes do Espetáculo 2. Auditório da Escola 3. Residência de Estudantes e Professores 4. Biblioteca das Artes Perfomativas
4
2
3
25m
66 | Ana Teresa Torres
Varanda Urbana da Escola e passagem pedonal de ligação com o edifício da Biblioteca. Uma relação superior com a a Rua das Portas de Santo Antão.
A RUA COMO MEDIADOR ‘ENTRE’ A CIDADE E O EDIFÍCIO | 67
Planta do Piso 1 Relação do nível superior com a Rua das Portas de Santo Antão. Relação da Varanda Urbana (Jardim do Palácio) com o conjunto do Palácio e edifício adjacente (Biblioteca).
1
1. Escola das Artes do Espetáculo 2. Varanda Urbana Elemento Agregador da Escola 3. Residência de Estudantes e Professores 4. Ponte de Ligação
4 5
2
5. Biblioteca das Artes Perfomativas
3
25m
Memória e Contemporaneidade Burg Hochosterwitz como lugar para a Contemporaneidade Catarina Mendonça
A presente intervenção tem por objecto de estudo o Castelo de Hochosterwitz na região de Carínthi, na Áustria. A muralha, que circunda e se adapta ao rochedo de Hochosterwitz, é pautada pelas portas de acesso ao castelo, convidando de imediato a percorrer o caminho até ao topo do castelo. Ao longo do caminho, o visitante é constantemente surpreendido pela riqueza do lugar de Hochosterwitz, tanto pela sua arquitectura, como pela diversidade construtiva de cada uma das suas portas, pelas paisagens, pela sua magnitude. A proposta pretende estabelecer um equilíbrio entre o novo e o antigo, no qual o novo não pretende substituir nem tirar protagonismo ao antigo. Trata-se antes de uma sintonia em que ambos têm o seu papel, no qual o novo vem enquadrar e valorizar o antigo. O antigo destaca-se como o protagonista. Genericamente o projecto realiza-se de acordo com três premissas: análise e conhecimento do sítio, o que o define como lugar; o restauro e conservação para salvaguardar as principais pré-existências e, por fim, intervir para valorizar o conjunto de Hochosterwitz, adaptando-o adequadamente aos novos programas e funcionalidades. Deste modo, na presente proposta de reabilitação do Castelo de Hochosterwitz, o novo e o antigo distinguem-se em plena harmonia e distinção, isto é, pela sua materialidade, morfologia ou carácter, os espaços são apropriados de acordo com o programa que acolhem. Na realidade, a qualidade do conjunto, assenta sobretudo neste equilíbrio entre o construído e a Natureza. O projecto tem assim por objectivo, estabelecer um diálogo coerente que garanta esse equilíbrio, bem como o funcionamento do conjunto. O mote para o projecto foi o próprio lugar. A inegável presença do rochedo, pousado na planície na qual surge em destaque. O castelo destaca-se pela sua riqueza formal e espacial, a sua relação com a paisagem. A proposta procura então emergir directamente destas pré-existências.
82 | Catarina Mendonça
Plantas com evolução morfológica de Hochosterwitz ao longo dos séculos
MEMÓRIA E CONTEMPORÂNEIDADE | 83
Maqueta
6
5 10
6
6
4
9 6
8 7 2 3
1
11 50m Planta de implantação
140 |
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Repensar o Habitar na Colina de Sant’ana Uma proposta da intervenção na Rua do Passadiço Isabel Sebastião
O local escolhido para o desenvolvimento do presente trabalho, a Colina de Sant’Ana, engloba uma grande área consolidada no centro histórico da cidade de Lisboa. Entre duas das principais artérias da cidade, a Avenida Almirante Reis e a Avenida da Liberdade, reúnem-se cinco importantes unidades hospitalares, históricas e definidoras do local. O mote para o trabalho é dado pela actual inutilização de alguns dos hospitais e eminente desativação dos restantes, e sua transferência para o futuro Hospital de Todos os Santos. Sendo a Colina de Sant’Ana caracterizada, em muito, pelos seus núcleos hospitalares, torna-se fundamental rever as suas funções e formas de ocupação, atribuindo-lhe um novo papel na cidade. Com perspetivas futuras de um cada vez maior envelhecimento da população, aliado a uma maior precaridade das camadas mais jovens, é primordial repensar a Colina como agregadora destas duas faixas etárias da população. Embora distintas, podem complementar-se, de forma em muito beneficiadora para ambas, gerando-se uma nova forma de qualificar a cidade tradicional. Assim, propõe-se numa perspectiva geral, a reutilização do espaço actualmente ocupado pelo núcleo hospitalar, para criação de um Instituto de Reabilitação Arquitectónica. Com desenvolvimento prático e teórico da temática da reabilitação e, ainda, a reabilitação dos edifícios devolutos ou degradados, para novas ocupações habitacionais direccionadas para as faixas etárias jovem e sénior.
142 | Isabel SebastiĂŁo
REPENSAR O HABITAR NA COLINA DE SANTANA | 143
A proposta desenvolvida, visa a reabilitação de um edifício devoluto situado na Rua do Passadiço nº32, englobando também novas construções no terreno adjacente. Propõe-se a introdução de tipologias flexíveis de habitação, direccionadas para as faixas já referidas, como forma de fomentar o rejuvencescimento da Colina de Sant’Ana. Pretende-se que o modelo proposto possa disseminar-se pela restante Colina e, até, pela cidade. O projecto divide-se em Residência Jovem e Residência Sénior, sendo a primeira conseguida através de uma nova edificação, e a segunda englobando a reabilitação do edifício já referido, preenchido pelas funções públicas e sociais da Residência e uma nova construção ocupada pelos espaços de habitação. A conexão entre os dois núcleos da proposta, e a sua relação com a envolvente, é potenciada pelos espaços exteriores que estabelecem a ligação entre as diversas cotas em que se desenvolvem.
Residência Sénior
Residência Jovem
Átrio/Receção Administração Cozinha de Serviço Sala de Estar Sala de Refeições Sala Polivalente Habitações Quartos
Habitações Topos Habitações Centrais Terraço (Comum) Tratamento de Roupas (Comum)
50m
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Resignificar e reabilitar a ‘presença’ da Cerca Fernandina na Colina de Sant’ana Uma estratégia de requalificação para a Torre de Sant’Ana e sua envolvente Marco Gomes
A Colina de Sant’Ana, em Lisboa, conserva alguns elementos da grande obra edificada no século XIV para a defesa da cidade e que durante séculos definiu os seus limites: a muralha mandada construir por D. Fernando, mais conhecida por ‘Cerca Fernandina’. Ainda hoje são visíveis duas torres em mau estado de conservação e os vários troços de muralha existentes confundem-se com muros e fachadas de prédios adossados à muralha, ocupação que se tornou mais densa a partir do século XVII e que hoje torna quase impercetível a presença da ‘Cerca’. O objetivo fundamental é devolver a ‘Cerca’ para a vivência quotidiana desta zona histórica da cidade.
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Gravura perspetivada de Lisboa Quinhentista, de Giorgius Braunio, com a ‘Cerca Moura’ (representada a azul) e a ‘Cerca Fernandina’
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A proposta de intervenção consiste fundamentalmente em dar visibilidade às torres e à muralha e transformar a Torre de Sant’Ana em miradouro sobre a cidade, sendo para isso necessário demolir parte do edificado adossado à torre e aí criar um novo equipamento polifuncional que compreende dois corpos. O corpo inferior localiza-se no subsolo do proposto Largo de Sant’Ana, o corpo superior encontra-se no edifício setecentista, alvo de reabilitação profunda, destinado a um novo uso de biblioteca. O corpo inferior é composto por duas partes com funções diferentes. Uma é de âmbito cultural, composta pela zona de receção e de acolhimento, a sala polivalente situada no subsolo do largo, a sala de pessoal, o arquivo e as instalações técnicas situados sob o palácio setecentista. A outra é de âmbito comercial, ocupada pela cafetaria com zonas de apoio e papelaria. A ligação entre estas duas partes faz-se pela galeria de exposição temporária, iluminada com luz natural. A proposta consiste também em proceder a uma reabilitação do edifício da década de 1870, por onde se acede à Torre de Sant’Ana, oferecendo um novo uso turístico. Nas traseiras localizam-se o pátio e o elevador exterior, aí colocado para permitir a acessibilidade da população com mobilidade reduzida aos pisos superiores e à Torre.
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SECÇÃO LONGITUDINAL
SECÇÃO TRANSVERSAL