O NOVIÇO, do Paço de Azeitão ao Convento dos Capuchos

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“Imobilizado o coche real ao fundo dos degraus de pedra, e sem esperar por instruções nem sinais, D. Sebastião pôs-se logo de pé no estrado central. E tão inopinadamente o fez que quase assustava a regente, sua avó. A camareira real acorreu de imediato e, pegando-lhe pelos sovacos, transferiu-o para uma liteira, dentro da qual iria ser levado, como previsto estava, até ao seu trono, junto ao altar. Foi então que, para surpresa geral e gáudio da plebe, sua irrequieta majestade se olvidou da régia condição e das regras do protocolo, encarnando, por breves momentos, o papel de simples petiz de seis anos. (…) Segurando a coroa com as mãos para lhe não cair – um gesto que poderia muito bem ser prenúncio de ponderação e sensatez para o futuro exercício do seu reinado (…) – pulou ágil da liteira, indo aterrar com a suavidade de uma garça na laje que antecedia a escadaria de pedra.”

“– Boas tardes, reverendos. Chamo-me Jorge de Sá e apodreço às ordens do Omnipotente… – soltou, com voz cava e amarga. E logo seguiu o seu caminho, sem esperar sequer a resposta dos dois monges, que ainda o chamaram, não obtendo qualquer reacção dele. – Não leveis a mal – acudiu Gregório Fernandes. – Como poderíamos levar a mal? Coitado... – Está assim, áspero e misantropo, por causa da frustração e do desespero. Mas não é

O NOVIÇO

do Paço de Azeitão ao Convento dos Capuchos FERNANDO FARIA

Obras anteriores do autor: Terra Mãe – Crónicas da Idade Menor, 2010 As Viagens de Filinto – Memórias de uma Estranha Primavera, 2012

frequente blasfemar deste modo. Talvez o ver-vos lhe tenha acendido a revolta contra Deus… Eu não reajo assim.”

B Y THE

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FERNANDO FARIA

Nascido em 1947, em Maceira – Leiria, no seio de uma família rural, Fernando Faria fez os estudos humanísticos e secundários no Seminário de Leiria, licenciando-se depois em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Após breve passagem pelo ensino secundário, realizou todo o seu percurso profissional na área da Justiça, primeiro na carreira de investigação da Polícia Judiciária e depois no Ministério Público, magistratura da qual se encontra já jubilado, tendo exercido funções nas comarcas de Figueiró dos Vinhos, Guimarães e Sintra. Reside em Sintra desde 1993. O Noviço é o seu terceiro livro.

FERNANDO FARIA

No dia 3 de Maio de 1560, perante uma pequena multidão de fiéis e com a assistência das mais altas figuras da realeza, foi inaugurado na Serra de Sintra, numa cerimónia de comedida solenidade, o convento arrábido de Santa Cruz ou da Cortiça. Entre a meia-dúzia de futuros ocupantes do novo ermitério, edificado por entre enormes fragas no coração daquele que é conhecido desde a antiguidade como o Monte da Lua, achava-se um jovem poeta, de auspicioso futuro: chamava-se Agostinho Pimenta, fora educado para fidalgo e ficaria na História como Frei Agostinho da Cruz. Alicerçado em (escassos) dados históricos, este romance, para além de propor à imaginação do leitor o que pode ter sido a fundação, inauguração e primeiro ano de vida fradesca no agora arruinado Convento dos Capuchos de Sintra, constitui uma reflexão acerca da pureza do ideal monástico.

O NOVIÇO • do Paço de Azeitão ao Convento dos Capuchos

ROMANCE

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Fernando Faria faria454@gmail.com © Edição

By the Book, Edições Especiais Impressão e acabamento

ACD Print ISBN

978-989-8614-27-8 depósito legal

389209/15

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Edições Especiais, lda Rua das Pedreiras, 16-4º 1400-271 Lisboa T. 213 610 997 www.bythebook.pt


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O sonho e o voto Seis professos e um noviço Insónias No meio desta serra… Ascetério Casa nova! O segredo de Estêvão Frei Jácome, peregrino… A carta de Azeitão Brumas e frios… Como o bicho na maçã… A cuba de sangue Descida ao povoado A prova de fogo Trágico desenlace… Frei Agostinho da Cruz Notas finais Bibliografia



O sonho e o voto a Ao erguer a tua cabana escolhe por alicerce a escarpa ou o vento. J. Tolentino Mendonça

Três de Maio do ano de 1560 da era cristã. Melhores tempos bafejaram já a nação: começa a esboroar-se o Império; mingua o tesouro público; verga-se a grei sob a ameaça da Inquisição. Em compensação, as letras prosperam e florescem a grande altura; apura-se o idioma pátrio; mostram-se ao mundo vultos como Pedro Nunes, Garcia de Orta, Amato Lusitano ou Francisco de Holanda [por desgraça, muitos deles exilados da pátria: as tais garras demoníacas...]. Algures, lá pelo Extremo-Oriente, dá Camões os finais retoques a’ Os Lusíadas. Na serra, a manhã aproxima-se do seu final. O sol vai quase a pique e a calma cresce a cada minuto que passa. Pressentindo o grande momento, agita-se o gentio. Um burburinho crescente se ergue então do meio da turba, um rumor feito de vozes contidas, pigarros e tosses de nervosismo, que começa a pairar na atmosfera, como farrapo de nuvem trazido dos abismos por um hálito quente. De princípio, não passa de um sussurro vago, pouco mais do que uma bafagem resultante do movimento dos corpos, do roçagar das vestes, do próprio esticar dos colos na tentativa de perscrutar ao longe. Pouco a pouco, porém, a zoada vai engrossando, até se tornar um ruído contínuo que atravessa o terreiro de lés-a-lés e parece fazer vibrar a folhagem nova dos castanheiros. Até as bestas, apesar de libertas já de bridas e arreios, começam a dar sinais de desassossego e remexem-se frente às suas manjedouras improvisadas. O tempo, contrariamente, parece ter parado. Sem o mínimo rasto de nuvem, o firmamento refulge no mais puro e diáfano dos azuis, cobrindo a serrania de uma claridade sem mácula. Esteiras de sol pincelam de oiro o dossel verde dos bosques. Do meio das frondes vêm arrulhos de toutinegras, que se fundem com uma fragrância sui generis, mistura da alfazema das vestes domingueiras O Noviço · O sonho e o voto

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dos camponeses, do alecrim, da urze, da erva pisada, da palha seca das rações. E também das imundícies das bestas que, saciadas já da ração, começam a expelir, aqui e acolá, moldado e fumegante, o intestinal sedimento, ao mesmo tempo que catam com a língua e depois mordiscam rebentos de arbustos. a

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O sítio onde o povo se apinhava era uma ampla e quase plana depressão, que começava num género de mirante natural – pequeno capricho da orografia –, descia um pouco, e se alongava depois para nascente e sudeste, conquistando um bom naco do dorso da serra. Por entre os pedregulhos de granito irrompiam tufos de fetos e moitas de giesteiras carregadas de flores amarelas. Coado pelas copas, algumas mal revestidas ainda da folhagem nova, o sol entrava ali aos pedaços, projectando no chão sombras com formas estranhas. Alheados do feito que os adultos aguardavam com ânsia, bandos de moços pulavam ao sol, nas clareiras, exibindo acrobacias e levantando pó. Alguns, com as roupas sujas já de terra, rastejavam por entre as giesteiras, semeando o pânico em colónias de formigas, de repente espoliadas das suas moradas e importunando escaravelhos e besouros que, baratinados, emergiam das luras e logo se precipitavam no primeiro buraco que lhes aparecesse. De súbito, alguém gritou: – Vem lá el-rei! Vem lá el-rei! Agitou-se mais a populaça. Cresceu o rumor. E logo os olhares convergiram no troço final do trilho, antes um sinuoso carreiro de pastores e almocreves e agora um caminho largo e adequado à circulação de trens, carroças e carros de bois, que de Sintra conduzia ao local e desaguava naquela espécie de grande adro onde o povo aguardava. Todos queriam presenciar a chegada do coche real. Mas foi falso rebate. Não era ainda a régia carruagem que se anunciava. O que lá vinha não passava, afinal, de mais uma charrete da comitiva da corte, neste caso, a do almoxarife-geral do reino, um homem gordo, de barbicha rala e rosto corado. Vagarosamente, tentando evitar os muitos seixos que atravancavam o chão e faziam oscilar o veículo como se fosse um besoiro gingando sobre grãos de cereal, o cocheiro do tesoureiro régio lá guiou a ressudada parelha até entestar o estribo ao primeiro dos degraus que davam acesso à dita plataforma, circundada por um muro baixo, a qual servia de átrio do convento e era onde se iria desenrolar a cerimónia. Três cruzes de pedra, representando a do meio o patíbulo do Redentor e, as outras duas, as dos malfeitores com Ele supliciados, se evidenciavam no terrado, inspirando o nome pelo qual o espaço ficou a ser conhecido: Terreiro das Cruzes.


Afogueado e passando pela fronte, com deliciada lentidão, um grande lenço de caxemira, o almoxarife apeou-se do trem, logo se encaminhando para a cadeira que pelo mestre-de-cerimónias lhe foi destinada, entre o camareiro-mor do paço e o alcaide de Sintra. Enquanto isto, já o arrieiro procurava, abanando-se exuberantemente com a gorra, uma sombra para os corcéis, cujas dilatadas narinas e empapadas garupas diziam tudo quanto à dureza da jornada. A bonança regressara à turba, conformada já com a continuação da espera. Depois do intendente, e antes que surgisse D. Sebastião, ainda faltavam chegar alguns convidados notáveis, como era o caso, por exemplo, do já octogenário arcebispo de Lisboa, D. Fernando de Noronha e Vasconcelos e de D. Álvaro de Castro, patrono e obreiro do convento, para além de outros devotos fidalgos que, segundo o uso da época, e tal como aquele, manifestavam a sua fé cristã, tornando-se padroeiros de conventos e mosteiros. E, para além desses, haveriam também de preceder o futuro rei de Portugal, a regente D. Catarina de Áustria, sua avó, em cuja nobilíssima estirpe figuravam personagens como o imperador Carlos V, de quem era irmã, e Filipe o Belo, que a gerara no ventre de Joana, a Louca, assim como o cardeal D. Henrique, tio-avô do monarca e então arcebispo de Évora, o qual, talvez por ter costela de asceta, acarinhara desde o início a ideia da edificação do novo ermitério e se prontificara a presidir à bênção inaugural. a Apesar do calor – um tanto excessivo para a época –, o ar da serra apresentava-se leve e puro para os pulmões e delicado ao olfacto. Mau grado as emanações acres dos excrementos e do suor que a espaços subiam da turba, principalmente do lado onde se concentravam as reses, desvendava-se na atmosfera um suave perfume primaveril, mistura de urze e giesta em flor. Um enxame de insectos, estimulados uns pela fragrância das flores, atraídos outros pelo suor dos corpos, outros ainda impulsionados apenas pela luz solar, urdia nos ares uma teia intrincada de linhas imaginárias. Nunca até então aquele recesso remoto da serra, antes poiso de pastores e retiro de viandantes, assistira a tão numeroso ajuntamento. Sem contar com a nobreza, a clerezia e os convidados oficiais, podiam contar-se por centenas as pessoas que lá acorreram por sua espontânea iniciativa e aguardavam com impaciência o desenrolar dos acontecimentos: um pequeno mar de gente, humildes plebeus na esmagadora maioria. Boa parte tinha vindo mais para ver D. Sebastião – de quem se dizia ser a mais bela criança de Portugal, um querubim de carne e osso – do que pelo pio evento. Muitos, pelas escassas posses e também pela proximidade geográfica, vieram a pé das povoações vizinhas de O Noviço · O sonho e o voto

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Gigarós, Penedo, ou Colares, ou mesmo dos povos mais afastados de S. Pedro de Canaferrim e Ranholos, famílias inteiras galgando, em fila, a encosta, com os seus tamancos de pau, os trajes domingueiros e o bornal da merenda a tiracolo. Outros, procedendo de mais distantes paragens, haviam cavalgado em burros e muares, ou viajaram em carroças e carros de bois, chiando, langorosos, estradas afora. Alguns, mais abastados, sobretudo senhores de terras, mesteirais e mercadores, puderam deslocar-se desde lugares mais remotos, como Cascais, Belas ou Mafra, ufanamente empoleirados em boas carroças e carruagens, puxadas por cavalos. Houve até quem, mesmo sem ser fidalgo, se apresentasse a bordo de luxuosos trens, tirados por parelhas ricamente ajaezadas. Contrastando com a simplicidade dos aldeãos, que vestiam singelamente de estamenha ou linho grosseiro, a generalidade da fidalguia trajava a seda, veludo e fina lã. Alguns, de mais nobre linhagem ou abundante fazenda, apareceram de penacho e não dispensaram mesmo criado ou escudeiro de libré, um alarde de ostentação e fausto que, sendo embora usual nos eventos em que figurava a realeza, era manifestamente inadequado ao local e ao momento que se aguardava, afrontando a modéstia extrema dos seis monges que, descalços e vestidos apenas com o pardo burel, se alinhavam num recanto do terreiro, em completo recolhimento e com as cabeças curvadas, como abstraídos do que os rodeava. Sendo, na verdade, as figuras centrais do acontecimento, os futuros ocupantes do novo convento destoavam por inteiro do contexto geral. Quase confundidos com as fragas e visivelmente alheados do burburinho gerado pela eminente chegada do futuro monarca, mais pareciam um grupo de sentenciados esperando, resignados, o cadafalso. O que aquelas almas ansiavam não era o brilho ou solenidade da cerimónia, mas o momento em que, dispersa por fim a turba, regressada a corte ao paço e tornados os dignitários às suas quintas e mansões, iriam poder mergulhar na paz silenciosa do labirinto de compartimentos, quase todos de reduzidas dimensões e de parca construção, não passando, boa parte deles, de cavernas naturais, que se arrumavam por entre as penedias, mesmo por detrás deles. Era lá que faziam tenção de viver o resto dos seus dias, meditando, orando, jejuando e vivendo de esmolas, num quase absurdo desprezo dos bens materiais. O elevado número de veículos chegados fizera com que todos os espaços abertos, em redor, estivessem ocupados com bestas e carros dos mais diversos formatos e tamanhos, dando ao local um aspecto de grande colorido, quase de arraial. Presos a troncos de árvores por arreatas de sola ensebada, os quadrúpedes travavam então uma luta sem quartel com enxames de moscardos,


meneando as cabeças e fazendo das caudas enxota-moscas. Famintos e vorazes, os insectos mal se incomodavam com a acção defensiva e, desaforadamente, esquivavam-se ao moscadeiro, indo pousar logo ao lado. Por vezes, quando a ferroada era mais dolorosa, a vítima erguia a tromba no ar e, de narinas engelhadas, fazia troar na atmosfera o seu grito de protesto, momentos havendo em que, por um fenómeno de contágio ou de afirmação colectiva, a vontade de protestar se propagava como rastilho e o rumor da multidão era abafado por uma cacofonia desconcertante de rudes instrumentos de sopro. a Visto de fora e pese a singeleza e lisura da sua construção, dava ares de hospitaleiro o novo convento. A parte da serra onde fora edificado era um abrigo ameno mas alcantilado e pedregoso, situado na vertente norte, no ponto preciso em que principiava a desenhar-se a depressão que, descendo por Gigarós, se funde, em Colares, com o longo vale que começa no arrabalde norte de Sintra e se encontra com o Atlântico no ponto onde desagua a ribeira chamada das Maçãs. O sítio sofrera, porém, uma considerável metamorfose. Ainda há menos de um ano tudo o que por ali se via era um vasto conjunto de pedregulhos de granito, de forma geralmente arredondada, alguns de enormes dimensões, amontoados a esmo na sequência de um qualquer cataclismo cósmico, outros formando amplas cavernas, em cujos intervalos e frinchas despontavam sobreiros, carvalhos e medronheiros. Tudo aquilo resultava num singular capricho da natureza, que servia de morada a mamíferos selvagens, de poiso a águias e milhanos, ou de esconderijo a répteis. E assim haveria de permanecer por longos anos, não se sabe se por séculos, não fora, ao que reza a lenda, ter-se el-rei D. João III perdido por aqueles ermos, certa tarde de estio, quando andava numa caçada. Correriam então os ainda propícios tempos finais da terceira década de quinhentos. Encontrando, por fim, abrigo e refrigério numa das impressionantes grutas que por ali havia, o monarca acabara por adormecer. Muito devoto da paixão de Cristo, sonhou então ver erguida à entrada da caverna uma grande cruz, rodeada por uma plêiade de anjos que, prostrados em adoração, entoavam hinos celestiais. Ao acordar, tomando o sonho como um sinal divino, o rei partilhou-o com os vassalos que o acompanhavam. No real séquito destacava-se – prossegue a lenda – D. João de Castro, que era fidalgo ilustre e cavaleiro da Ordem de Cristo, e varão muito prestigiado e instruído nas modernas ciências – não tivesse ele sido discípulo de Pedro Nunes e próximo de Francisco de Holanda. Muito jovem ainda, começara por frequentar o paço de D. Manuel, monarca que serviu lealmente, primeiro O Noviço · O sonho e o voto

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como moço de câmara e depois como secretário. Acabando por enveredar pela carreira militar, o fidalgo servira depois o seu real amo na praça de Tânger. Regressado a Portugal após a campanha africana, adquirira numa fecunda encosta da vertente setentrional da serra uma fazenda, então denominada quinta da Fonte d’el-Rei e que ele rebaptizou com o nome de quinta da Penha Verde, na qual fixara morada com a família e passara a dedicar-se ao amanho das terras e à apicultura. Cada vez mais desapegado da coisa pública, alargara depois os seus domínios, adquirindo outras propriedades, como aquela situadas nas faldas da serra, nas quais organizava caçadas e fazia pascer os seus rebanhos. Devoto, também ele, do mistério do Calvário e impressionado com o sonho régio, D. João de Castro logo acalentou a ideia de ali mandar erguer uma ermida dedicada à evocação da Santa Cruz, plano que depois converteu num projecto mais amplo: aproveitando o grande recolhimento, a localização privilegiada, o abundante manancial de água, a multiplicidade de frondosas árvores e a especial morfologia do local, em vez da ermida construiria antes um convento. Contudo, o destino – que lhe iria reservar uma vida mais breve do que longa – e o seu grande prestígio de militar valoroso e experimentado iriam obstar à concretização do seu devoto plano. Outros e mais altos desígnios o fizeram abdicar, com algum pesar seu, do bucolismo e tranquilidade das suas propriedades de Sintra e partir para longe. Tais desígnios só podiam proceder do paço real. D. João III andava preocupado com as constantes arremetidas do inimigo em algumas praças do Oriente. Determinado a reforçar a presença militar naquelas paragens, chamou o amigo à corte, em Évora, e nomeou-o governador da Índia. D. João de Castro acatou sem hesitar a nomeação régia, o que fez mais por lealdade e dedicação ao monarca do que por ambição pessoal. Aos quarenta e três anos e quando já não sonhava voltar a envergar as vestes militares, preparou-se o fiel patrício para a missão patriótica. Foi já no ano de 1545 que o cavaleiro da Ordem de Cristo partiu para a Índia, comandando uma armada de seis grandes naus e uma guarnição de dois mil homens. Acompanhavam-no os seus dois filhos, Álvaro e Fernando, ambos muito jovens, ainda. O último acabaria por perecer pouco depois, de armas na mão e com apenas dezanove anos, durante os recontros do segundo cerco de Diu. D. Álvaro, porém, haveria de regressar ileso ao reino, onde viria a trilhar, de algum modo, as pisadas paternas, exercendo cargos do maior relevo na administração pública e chegando a embaixador junto da Santa Sé. Poucos meses bastaram para que o novo governador evidenciasse o seu génio e valentia como militar, sacudindo as arremetidas dos inimigos contra os vas-


tos territórios submetidos à coroa portuguesa, em terras da Índia, desse modo granjeando prestígio e glória pessoal. Nesta matéria, atingiu patamares quase lendários a fama do feito de D. João de Castro no rechaço do cerco de Diu – o tal em que perdeu, caído no campo de batalha, o filho mais novo – e na reconstrução da respectiva fortaleza, para cujo custeio [começavam a fazer-se sentir as dificuldades de tesouraria em Lisboa, por causa das crescentes despesas com a defesa do Império] terá lançado um pungente apelo à generosidade dos habitantes de Goa, oferecendo como penhor, por não possuir ouro nem prata, as suas próprias barbas. Dizem os cronistas que os goeses, comovidos com a honradez do governador, lhe devolveram as barbas, juntamente com uma soma monetária superior ainda à que lhes fora pedida. Devido a tão notáveis feitos, não tardaria o valoroso capitão a receber o título de vice-rei da Índia, que lhe foi concedido por carta régia de treze de Outubro de 1547. Mas, tal como acima se antecipou, o destino foi-lhe padrasto. O agora vice-rei mal teria tempo de empunhar o ceptro: acometido de grave e súbita doença, acabaria D. João de Castro por sucumbir prematuramente, em Goa, menos de um ano depois. Tinha apenas quarenta e oito anos de idade. Pôde adormecer, mesmo assim, serenamente, como devoto cristão, nos braços do grande apóstolo das Índias, Francisco Xavier, a seu pedido convocado à pressa para tão compassiva missão. Antes, tivera ainda o cuidado de recomendar ao filho que implementasse o seu antigo voto. Eis, assim, explicado o motivo pelo qual viria a ser D. Álvaro de Castro, entretanto regressado ao reino, quem, anos mais tarde, iria materializar o pio desígnio do pai. Foi ele quem, a expensas próprias, fez surgir, misturado com grutas e penhascos, o pequeno cenóbio, que logo foi destinado à província observante de Santa Maria da Arrábida, ramo pietista franciscano recém-implantada em Portugal. Dele resta, apenas, hoje em dia, um despojo que mal passa de uma ruína, depois de pilhado de todo o recheio e abandonado durante mais de um século. a Para assistir à inauguração do ascetério acorrera toda aquela gente e era esperado, como convidado mais ilustre, o monarca a quem o povo chamou de “O Desejado”, e cujo nascimento, ocorrido em vinte de Janeiro de 1554, fora celebrado em todo o reino com grandes efusões de regozijo. Com efeito, após a inesperada morte, dezoito dias antes e aos dezassete anos de idade, de D. João de Portugal, príncipe herdeiro do trono e seu pai, foi no pequeno Sebastião que a nação centrou a derradeira esperança da continuidade da dinastia de Avis, então sob séria ameaça devido ao desaparecimento sucessivo dos herdeiros O Noviço · O sonho e o voto

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legítimos ao trono e às crescentes pretensões do ramo castelhano da família. D. João III, na verdade, gerou nada menos que dez filhos; porém, a todos viu morrer, um após outro, em tenra idade ou na flor da vida, para seu desgosto e perante a geral consternação dos súbditos, que muito receavam ficar a coroa de Portugal sem herdeiro natural português e à mercê da cobiça de Filipe II de Espanha. Funesta consequência, esta verdadeira razia de infantes, da tradição de consanguinidade que, à época, caracterizava as bodas reais não apenas na península hispânica como em toda a Europa ocidental, a qual tradição o rei Piedoso honrou, desposando D. Catarina de Áustria, sua prima direita e irmã do então soberano espanhol. Como se isto tudo ainda não bastasse, acabaria ele próprio por expirar inesperadamente, de apoplexia, quando o neto contava apenas três anos de idade, obrigando à entrega da regência à rainha viúva. Agora com seis anos, e sendo monarca ainda não reinante mas muito acarinhado pelo povo – mal se sonhava ainda o desgraçado e inglório fim que iria ter –, D. Sebastião fazia agora a sua primeira aparição pública oficial, atraindo ao remoto sítio uma grande multidão de súbditos. Apesar da singeleza da sua estrutura e das suas exíguas dimensões – tudo junto não terá custado mais de cem cruzados – levou cerca de um ano a edificação da tebaida. A demora foi consequência, acima de tudo, do acesso difícil e do isolamento do local. É certo que fazendo-se aproveitamento, como se fez, de várias concavidades e cavernas naturais ali existentes, muito se poupou em mão de obra e materiais de construção. Mas, ainda assim, foi preciso ajustar dezenas de trabalhadores braçais para as tarefas de limpeza de entulhos, aplanamento e preparação do terreno, incluindo a remoção e reposicionamento de algumas fragas, para além de uma numerosa equipa de cabouqueiros, trolhas, carpinteiros e canteiros, para a construção propriamente dita. Para viabilizar o acesso dos carros de bois e carroças de mulas em que era feito o transporte de areias, cal, telhas, materiais diversos de alvenaria e carpintaria, bem como de travejamentos e de algumas pesadas peças de lioz de Pero Pinheiro, tivera D. Álvaro que mandar abrir, pelo lombo da serra e aproveitando o traçado de uma velha trilha de pastores e burriqueiros, um caminho com a extensão de cerca de uma légua, com início numa apertada curva da calçada que, proveniente da vila de Sintra, dava acesso ao convento jerónimo de Nossa Senhora da Pena, sito nas proximidades do castelo mourisco. Por esse trilho acorreu, naquele dia da bênção inaugural, a maioria dos convidados e fiéis. Muita da gente humilde das aldeias vizinhas optou por palmilhar os caminhos e veredas serranas, que conhecia já da pastorícia dos gados. a


Ali estava, pois, à espera da bênção canónica, naquela quente e memorável manhã de Primavera, quase confundido com as fráguas e espreitando timidamente por entre o verde arvoredo, o conventinho serrano, então baptizado com o nome de Santa Cruz de Sintra, e mais tarde popularizado como Convento da Cortiça – óbvia alusão ao facto de ser todo ele forrado a casca de sobreiro. Na hierarquia do ramo observante da grande ordem franciscana, a que pertencia, o cenóbio era submetido à já mencionada província de Santa Maria da Arrábida, antonomástica referência esta ao nome do local onde, cerca de vinte anos antes, e por iniciativa de alguns franciscanos espanhóis, fora fundada a sua primeira comunidade em Portugal. O Terreiro das Cruzes encontrava-se sobriamente ornamentado com estandartes e pendões, o chão revestido de alfazema, rosmaninho e murta, e rodeado por uma cercadura de ramos de palma e de medronheiro entrelaçados. No centro, um singelo altar, tendo ao meio uma grande cruz feita de toscos madeiros e, de ambos os lados, mandados trazer do paço real de Sintra, duas filas de cadeirões para os dignitários. Do lado direito do altar, em posição de destaque e tendo defronte uma passadeira vermelha, ficava o pequeno trono com dossel de seda também escarlate, pertencente, outrossim, aos régios aposentos, no qual se iria sentar o futuro monarca. Quisera D. Álvaro de Castro que o local fosse mais faustosamente engalanado, de acordo com o que era prática e uso nos acontecimentos em que participava a corte, mas o provincial da Ordem, frei Jácome Peregrino, “o Tio”, a tal se opôs com veemência, alegando que a utilização da pompa e do fausto para lá do mínimo considerado indispensável para assegurar a dignidade da coroa, não só seria contrária ao espírito franciscano, como constituiria até um ultraje aos sete homens que se preparavam para, naquele local, abraçarem uma vida dedicada à penitência, à prática do jejum e à renúncia a quaisquer bens materiais, e, bem assim, a quantos pelos tempos fora lhes viessem a seguir as pisadas. Foi, decerto, a especial ligação do finado monarca à ideia da fundação do convento que determinou o interesse da família real em comparecer à cerimónia, arrastando consigo toda uma vasta comitiva de ministros, altos funcionários e fidalgos. Não era, na verdade, usual, nem tão pouco expectável, que a inauguração de uma humílima tebaida franciscana, situada, ademais, nos remotos confins de uma serra agreste, concitasse a atenção – e muito menos ainda o interesse – de tão elevadas figuras. E foi também o relatado episódio do sonho real, juntamente com a entranhada devoção de seu pai ao martírio de Cristo, que levou D. Álvaro de Castro a, juntamente com frei Jácome Pere-

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grino, escolher para a cerimónia da bênção o dia da festa da Invenção da Santa Cruz, e baptizar o convento com esse mesmo nome, para o que obteve – como para quase tudo era preciso – a prévia anuência da regente D. Catarina e do poderoso cardeal-Infante D. Henrique que era, ao tempo, o mais alto dignitário religioso do reino. Entusiasta dos muitos encantos da serra, aonde mais que uma vez fora já levado a passear a cavalo durante as estâncias da realeza no paço da vila, chegando mesmo a empolgar-se com o avistamento de javalis e veados, o pequeno D. Sebastião mostrara-se deveras excitado com a participação no acontecimento, mal a sua avó e preceptora lha anunciara. E, apesar da tenra idade, submetera-se de muito bom grado ao preparo intensivo e aos conselhos sobre a forma como deveria comportar-se durante o acto público que, por ser o primeiro em que participava, lhe haveria de ficar gravado na memória, por toda a sua curta vida. Os futuros íncolas do cenóbio ocupavam um espaço apropriado, do lado esquerdo do altar. Estavam de pé, atrás do guardião, tão imóveis e aprumados como um renque de faias junto a um lago, em dia bonançoso. A atribuição dos lugares da lotação – oito celas individuais, uma das quais destinada ao superior, e mais uma, especial, para noviço – fora feita por concurso informal entre monges de outras comunidades franciscanas, visando principalmente aqueles que, descontentes porventura com a amenidade e crescente aburguesamento da vida conventual tradicional, almejassem uma vida de maior ascese cristã, pela submissão à chamada “nova observância”, caracterizada, esta sim, pelo mais radical padrão de penitência e privações, numa reaproximação às origens de Assis. Em última instância, e sobejando interessados, a escolha ficaria ao critério dos ministros e prelados da Ordem. Acabaram por alistar-se apenas cinco monges já professos, oriundos de outras casas franciscanas. Para o cargo de guardião foi convidado um frade espanhol, de mérito e virtude reconhecidos e já experimentado na nova regra. Estava previsto que durante a cerimónia da bênção do convento se fizesse a investidura como noviço de um jovem candidato a monge, um moço de mediana estatura e com certo ar afidalgado que, vestido ainda secularmente, se encontrava sentado por detrás dos demais e, pelos vistos – enigmas intangíveis da alma humana – se deixara seduzir por tão austero e aberrante modo de vida, pese embora a verdura dos seus anos. Ou seja, contando com o guardião, perfazia sete, o número total de estreantes do ermitério. a


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