Francisco Teix eir a de Queiroz uma casa em construção Pedro de Castro Caldas
BY T H E
BOOK
Índice 5
Advertência preambular
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In memoriam
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O escritor e a sua circunstância
15 Do retrato de uma Vida 20 Do regresso às origens 21
Parva domus magna quies
46
“Comédia de Campo”
46 De onde tudo começou 52 D o despertar na cidade dos arcebispos à luz que tudo ilumina 56 De outras estórias da “batalha da vida” 63 D o mal de “não fazer nada” e ficar parado ao mal de “tudo fazer” e caminhar 68 D a estória dos vários caminhos para viajar e chegar ao Campo 80 D a importância e da benevolência do bom vinho à ruindade das paixões 85
“Comédia Burguesa”
85 Da Génese 91 D o “poder legislativo que não legisla” ao “ministério que não governa” 98 Do remanso a banhos
105 D a ajuda dos “Bons Primos” no “limpar o bosque dos lobos” 109 Das promessas de “vida nova” à “janeirada” 118 Do “Adeus para nunca mais” 137 D as promissoras manhãs de nevoeiro à noite de São Sebastião 151 Do “movimento das espadas” à “Nova República” 171 D a “noite infame” ao “fechar da porta” onde a nossa estória acaba 181 Na senda do caminho iluminado 189 Da Academia ao Chiado 194 D a necessidade da “abastança” ao “ajoujar sob o fardo dos negócios” 200 Da Jóia da Coroa 204 Do turbilhão da “febre bancária” 209 D a (menos conhecida) breve incursão na Fábrica do Paleão 216 Da passagem pela atribulada “Compagnie Royale” 229 D a posse e administração dos “Almoxarifados do Tejo e do Sado” 238
Índice Onomástico Francisco Teixeira de Queiroz Uma Casa em Construção – As Cartas –
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Advertência preambular
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Quero crer que as casas têm alma: de quem com enlevo as pensou, com alento as construiu e mantém, de quem nelas penou e prezou, e nelas viveu e morreu. Nesta fé, correndo o risco de não estar à altura do avivar da memória dos sentimentos, de forma singela, e por opção e limitação com pouca literacia própria, recorrendo antes à erudição dos Autores, deixando-os contarem de novo o que antes contaram, transcrevendo-os abundantemente e sem reservas – será um mosaico de citações − propus-me tratar um espólio de 41 cartas, que a final se transcrevem com anotações, referentes à Casa em Construção de Cortinhas, em Arcos de Valdevez, com início em 1904, escritas por Francisco Teixeira de Queiroz a José Pereira de Castro Caldas, a quem à data incumbiu de acompanhar e fiscalizar as obras de construção da Casa. Pelos assuntos de ordem prática que as Cartas tratam, não terá havido um especial esmero literário na sua feitura, o que, sem pretender transformar anotações de ordem prática em obra-prima, por si só as torna interessantes pela espontaneidade que comportam, transparecendo da escrita do Autor pormenores da sua personalidade multifacetada, que a consulta aos mais diversos registos existentes da sua Viagem de Vida comprova: no humanismo e no pensamento livre, no conhecimento ecléctico e no rigor pragmático dos pormenores e das coisas, e a final no cepticismo e descrença no triunfo da razão. Não restando, no mundo dos vivos, quem o tenha conhecido e com ele tenha privado, recorri a arquivos mortos e outros fragmentos de memória de quem ouviu contar, citando apreciações e comentários aos 1. Este título introdutório, não sendo original, justifica-se plenamente, pois mais do que um usual preâmbulo, trata-se à partida de uma advertência que a narrativa que se segue se baseia na fé de que a Casa em Construção de Francisco Teixeira de Queiroz faz parte de uma Viagem de Vida e das suas circunstâncias, da qual construí uma novela posta à paciência do leitor, que não sendo inteiramente original pela razão de narrar factos já conhecidos, não se antevê que venha a ficar “para a posteridade”, a não ser que seja por ter usado este título introdutório, justamente porque o Camilo o usou – e que com a devida vénia estou a usurpar − na introdução da novela “O Degredado” nas Novelas do Minho, para explicar esta veleidade do ser humano em não ser esquecido, tendo com o mesmo fito dedicado outra das novelas − “A Morgada de Romariz” − “a Francisco Teixeira de Queiroz auctor da Comédia do Campo (…) com superior admiração e indelével reconhecimento”, a quem, reconhecendo desde o início o mérito da sua escrita, pronunciou o crédulo vaticínio de que “seja como for, lá vamos todos para a posteridade”. 5
acontecimentos que viveu e ouviu, alguns documentados outros nem tanto, no seu profícuo percurso: como pessoa; como escritor; como político; como curador de cabedais próprios e alheios. Nas incipientes inquirições que empreendi, registo, para além das inúmeras pessoas conhecedoras do que aconteceu com quem falei, a prestável ajuda dos bibliotecários-arquivistas, do Museu João de Deus, onde se encontra depositado o Fundo do Autor, da Torre do Tombo, da Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa, do Centro de História do BES, do Arquivo Histórico e Centro de Documentação da CP, do Arquivo Histórico da EPAL , do Arquivo Histórico do antigo Ministério das Obras Públicas, do Arquivo Municipal de Pedrógão Grande, da Biblioteca Nacional, das Bibliotecas Municipais de Lisboa e de Arcos de Valdevez, do Arquivo Municipal de Lisboa e da Biblioteca e Arquivo Histórico da Misericórdia de Lisboa. Resta acrescentar as palavras principais de reconhecimento e apreço aos actuais usuários de direito da Casa de Cortinhas, em Arcos de Valdevez, terra Pátria do Autor: à Graça, neta de Francisco Teixeira de Queiroz, e ao Mário Pinto, que com esforço denodado e certamente com sacrifício e amor às coisas que têm valor, souberam e conseguiram manter de pé a memória viva de Cortinhas, tutelando e fazendo perdurar com enlevo o culto do seu Autor. Arcos de Valdevez em Agosto de 2015
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In memoriam “Querem dizer que tinha o sobrenome de Quijada ou Quesada (que nisto discrepam algum tanto os autores que tratam da matéria), ainda que por conjecturas verosímeis se deixa entender que se chamava Quijana. Isto porém pouco faz para a nossa história; basta que, no que tivermos de contar, não nos desviemos da verdade nem um til…” 2 . Das diversas comunicações de Francisco Teixeira de Queiroz à Academia das Ciências, na prelecção que fez “acerca da gloriosa novela do engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha” 3 , Teixeira de Queiroz fez um juízo do que no seu íntimo, porventura, ajuizava como o seu próprio percurso de vida e identidade: “o final é um desengano e uma desilusão, desengano para Sancho que vê em nada a sua cobiça; desilusão para D. Quixote que vê desfeita a sua sublime quimera. D. Quixote morre com juízo, dizendo aos que o cercavam: «Dai-me alvíssaras senhores, pois já não sou D. Quixote de la Mancha, mas sim Alonso Quijano, a quem pelos seus bons costumes deram o apelido do Bom». É o que é justo dizer de Cervantes ao terminar a sua existência. Nunca um escritor pode deixar de viver a sua obra”. Neste juízo de Vida, como passaremos de seguida a narrar sem que “nos desviemos da verdade nem um til no que tivermos de contar”, foi assim que decorreu a “gloriosa novela” de Francisco Joaquim Teixeira de Queiroz e as suas circunstâncias na sua Casa em Construção, vivida paredes-meias com as personagens que engendrou, filho único que foi de José Maria Teixeira de Queiroz (1817-1850), natural de Amares, e de Antónia Joaquina Pereira Machado 4 , natural de Arcos de Valdevez, nascido a 3 de Maio de 1848, na freguesia de São Paio da vila de Arcos de Valdevez no rescaldo de fratricidas guerras civis, no alvor do que foi a Regeneração e no advir de novas revoltas e pronunciamentos que estariam para vir e que assolaram os finais do séc. XIX e o início do séc. XX portugueses. 2. Cf. Don Quixote, “Capítulo I — Que trata da condição e exercício do famoso fidalgo D. Quixote de La Mancha”, de Cervantes. 3. Cf. Sessão Comemorativa da Real Academia das Ciências de 9 de Maio de 1905. 4. Antónia Joaquina era filha de Ana Joaquina Pereira da Silva, natural da freguesia de São Paio de Arcos de Valdevez, e de Joaquim Machado, natural de Braga, conforme registo existente, “pedreiro” de profissão (a profissão de “pedreiro” ou de “mestre-pedreiro” era à data o que nos dias de hoje se poderá considerar um mestre-de-obras). Depois de enviuvar, Antónia Joaquina voltaria a casar em 1866 com José Maria Brandão, sacristão da Igreja de São Paio e igualmente dado em registo existente como “pedreiro” de profissão, não havendo descendência deste segundo casamento. 7
Como resulta de uma consulta atenta aos registos existentes, ressalta desde logo que José Maria Teixeira de Queiroz, santeiro de profissão 5 , pai de Francisco Teixeira de Queiroz, não era a mesma pessoa, nem tão-pouco tinha qualquer parentesco conhecido, como às vezes é suposto, com o magistrado José Maria Teixeira de Queiroz (1820-1901), pai do escritor Eça de Queiroz (1845-1900) 6 com quem Francisco Teixeira de Queiroz aliás se veio a corresponder − sendo esta confusão compreensível para quem com eles não conviveu, tendo em conta que os dois, embora sendo quase certo não frequentassem os mesmos círculos, viveram e andaram ambos pelo Minho no mesmo tempo, quase com a mesma idade e portando igual nome e apelido − nem tão-pouco com José Teixeira de Queiroz (1816-1879) 7, natural de Arcos de Valdevez, para onde o pai de Francisco Teixeira de Queiroz veio em novo e aí se casou, também José de nome, que com os seus filhos João e António Teixeira de Queiroz Vaz 5. Os santeiros eram artesãos de arte sacra formados em escolas-oficinas, nomeadamente na circunscrição da Arquidiocese de Braga para dar resposta à procura de artífices decorrente da intensa construção e engrandecimento de templos religiosos, sobretudo a partir do séc. XVIII, nomeadamente em Arcos de Valdevez, onde foram edificadas várias igrejas, entre as quais a nova Igreja de São Paio, concluída na primeira metade do séc. XIX, sita na vizinhança da casa onde José Maria e sua mulher Antónia Joaquina viveram e onde Francisco nasceu, podendo dar-se o caso de José Maria ter trabalhado como artífice ou como aprendiz, nas obras da Igreja de São Paio ou na conservação das inúmeras igrejas e capelas particulares edificadas em Arcos de Valdevez. 6. O pai de Eça de Queiroz nasceu no Brasil, onde o seu pai – por conseguinte o avô de Eça de Queiroz −, Joaquim José de Queiroz, se encontrava como magistrado, e que regressado a Portugal, veio a ser protagonista da fracassada revolta iniciada em Aveiro em Maio de 1828, que ficou conhecida pela Belfastada por ter tido o apoio de um grupo de exilados liberais chefiados pelo Duque de Palmela, desembarcados no Porto a bordo do vapor Belfast, em apoio à “Junta Provisória, encarregada de manter a Legitima Authoridade d‘El-Rei o Senhor D. Pedro IV”, após a aclamação de D. Miguel como Rei absoluto e dissolução das Cortes da Nação Portuguesa, das quais Joaquim José de Queiroz era deputado, sendo julgado à revelia e condenado à morte, devendo ser “conduzido pelas ruas do Porto com baraço e pregão, subindo depois a um alto cadafalso sendo-lhe decepada a cabeça, e o corpo reduzido a cinzas”. Tendo escapado a esta sentença por ter fugido para Inglaterra, veio a assumir com a vitória liberal os cargos de Presidente da Relação do Porto e de Ministro da Justiça, e em cuja casa em Verdemilho, em Aveiro, Eça de Queiroz viveu parte da sua infância. José Maria Teixeira de Queiroz, que viera com o seu pai para Portugal ainda criança, licenciou-se em Direito em Coimbra, tendo na sua carreira académica colaborado em diversas publicações, ingressando na vida política como deputado e na carreira judicial como delegado do Procurador Régio em Famalicão e em Ponte de Lima, vindo a casar-se com a mãe de Eça de Queiroz, Carolina Pereira d’Eça, natural de Monção e residente em Viana, onde exerceu advocacia, após ter sido demitido da magistratura no eclodir da Revolução da Patuleia, foi mais tarde reintegrado, tendo como juiz do Tribunal Criminal do Porto pronunciado Ana Plácido no célebre caso de acusação de adultério com Camilo Castelo Branco que, como é do conhecimento, acabou em absolvição. 7. Ver índice onomástico em Teixeira de Queiroz, José Teixeira de Queiroz de Almeida Morais Sarmento. 8
Guedes 8 , tal como Francisco Teixeira de Queiroz, estiveram envolvidos, na mesma época, nas lides políticas nacionais e locais, assim como nas Ciências e nas Letras. José Maria Teixeira de Queiroz, pai de Francisco Teixeira de Queiroz, era filho de António José Teixeira de Queiroz, natural de Amares, e de Angélica Narcisa da Silva Campellina, natural de Amarante, assistente na Casa da Torre de Vilar em Amares, que tiveram pelo menos mais quatro filhos para além de José Maria: Plácido, Francisco (que foi padre e padrinho do sobrinho Francisco Teixeira de Queiroz), Manuel e Matilde Rosa 9. Francisco Teixeira de Queiroz estudou em Braga, no Porto 10 e em Coimbra, onde na Universidade concluiu o curso de Medicina, tendo sido premiado no ano lectivo de 1871-1872; exerceu clínica em Lisboa entre 1875 e 1879, dedicando-se depois ao jornalismo, literatura, política e negócios. Em 1872 casou-se com Teresa Oliveira David, filha de António Venâncio David, natural de Pedrógão Grande, e de Narcisa Casimira Xavier de Oliveira, natural de Lisboa, de quem mais à frente se falará, de quem teve seis filhos, um dos quais, o único rapaz, veio a residir na Casa 8. Ver índice onomástico em Vaz Guedes, João e António Teixeira de Queiroz Vaz Guedes. 9. A avó paterna de Francisco Teixeira de Queiroz, Angélica Narcisa, nascida em 1793 em Amarante e assistente na Casa da Torre de Vilar em Amares − sendo que nos registos antigos assistente é o mesmo que residente – era afilhada de baptismo de António Teixeira Mendes de Vasconcelos (bisavô do poeta e escritor Teixeira de Pascoaes, 1877-1952) da Casa de Pascoaes em Amarante, filho da figura tutelar da Casa de Pascoaes, António Gonçalo de Torres e Queiroz, Vigário-Geral de Valença e Provisor do Algarve na Sé de Faro, não se sabendo se Angélica Narcisa ou, porventura, o seu marido António José, teriam algum grau de parentesco ou com a família da Casa de Pascoaes em Amarante, ou com a então Senhora da Casa da Torre de Vilar em Amares, Maria Teresa Pereira do Lago Abreu Lima (1768-1841), que figura como madrinha por procuração no registo de baptismo em 1817, em Amares, do filho de Angélica Narcisa e António José, José Maria Teixeira de Queiroz, que viria a casar-se nos Arcos em 1843, e que na sua juventude, “em rapazito”, terá sido “recomendado por um fidalgo” a Filipe Araújo Silva Figueiredo, negociante em Braga – que tal como o pai de José Maria e o próprio José Maria era natural de Amares −, avô de Gustavo Araújo Figueiredo, pai do escritor arcuense Tomás de Figueiredo (que ficcionou este episódio no romance A Gata Borralheira), vindo mais tarde Gustavo Figueiredo a casar-se com Maria da Soledade de Araújo Costa Lobo, filha de Tomaz Xavier de Araújo Azevedo Cardoso da Casa de Casares em Arcos de Valdevez e de Maria Engrácia da Costa Lobo Bandeira, irmã do opulento 2.º Conde de Porto Covo da Bandeira, figura filantrópica arcuense de quem mais à frente se falará (cf. Origens de Francisco Teixeira de Queiroz, de João Castro Caldas). 10. Francisco Teixeira de Queiroz frequentou o Liceu no Porto no final dos anos 60 do séc. XIX, para conclusão dos estudos secundários iniciados em Braga, sendo de admitir que aí possa ter tido o apoio da família do seu falecido pai, dada como residente no Porto, nomeadamente do seu tio e padrinho, irmão do seu pai, e de sua avó Angélica Narcisa, que embora tenha falecido em Amares aos 94 anos em 1887, na respectiva certidão de óbito é dada como residente no Porto. 9
de Cortinhas que herdou de seu pai, construída por Francisco Teixeira de Queiroz em Arcos de Valdevez, entre 1904 e 1909. Considerado como fazendo parte da segunda geração doutrinária do republicanismo português 11 , Teixeira de Queiroz desde muito cedo aderiu aos ideais republicanos, integrando a Comissão Executiva da primeira direcção nacional do movimento republicano ao lado de José Elias Garcia, Manuel de Arriaga, Teófilo Braga, Consiglieri Pedroso, Sousa Brandão, Bernardino Pinheiro, Sabino de Sousa, Magalhães Lima e Castelo Branco Saraiva 12 . Em 1880, no rescaldo das comemorações do tricentenário da morte de Camões 13 , foi, com Magalhães Lima, Anselmo Xavier, António Pinto Leão de Oliveira, João de Almeida Pinto, José Campelo e entre outros, Jacinto Nunes e o poeta Gomes Leal 14 , fundador de O Século, jornal na sua fase inicial até 1896, empenhado sobretudo na divulgação da causa republicana. 11. Teófilo Braga, enquanto Presidente do Governo Provisório da República Portuguesa ao discursar na sessão de 18 de Julho de 1911 da Assembleia Nacional Constituinte, referiu-se a três gerações que, segundo ele, tinham contribuído para a construção e o enraizamento das ideias republicanas em Portugal: a primeira geração, que era a geração dos fundadores (anos 50/60 do séc. XIX), a segunda geração que caracterizou como “essencialmente doutrinária” (anos 70/80) e a terceira geração já “absolutamente activa” (anos 90), passando a lembrar em preito de homenagem as principais figuras destas sucessivas gerações: “A República fez-se por três gerações que precisam ser nomeadas e honradas por esta Assembleia. Não foram só os tiros da Rotunda que a fizeram, não; há três gerações que muito contribuíram também para a sua implantação. À primeira geração pertenceram Henriques Nogueira, Sousa Brandão, Latino Coelho, Gilberto Rola, Oliveira Marreca, Elias Garcia, Bernardino Pinheiro e outros, e no tempo dos quais a República representava a desonra e a infâmia, e esses homens puseram ao serviço da sua causa todo o prestígio do seu nome, mostrando bem claramente que se podia ser republicano sem que para isso fosse preciso ter incorrido nos artigos do Código Penal. À segunda geração, essencialmente doutrinária, pertencem Rodrigues de Freitas, Magalhães Lima, José Falcão, Teixeira de Queiroz, Jacinto Nunes, eu, que tenho essa honra, e tantos outros; e à terceira geração, absolutamente activa, pertencem Afonso Costa, António José de Almeida e tantíssimos outros que se evidenciaram pela forma decisiva como fizeram a propaganda das ideias republicanas” (cf. Programas Republicanos Portugueses, Comissão Comemorações do Centenário da República, coordenação de Ernesto Castro Leal). 12. Ver índice onomástico, respectivamente em: Elias Garcia; Arriaga; Teófilo Braga; Consiglieri Pedroso; Sousa Brandão; Pinheiro; Sabino de Sousa; Magalhães Lima e Castelo Branco Saraiva. 13. Em 10 de Junho de 1880 comemorou-se o tricentenário da morte de Camões, em grande parte devido à iniciativa de Teófilo Braga. A Comissão Executiva do Centenário, eleita pelos jornalistas e organizada por Latino Coelho, era composta por nove membros, com excepção de Pinheiro Chagas, todos eles republicanos. Foi através de Teófilo que a Comissão conseguiu que um deputado do Governo, Simões Dias, apresentasse ao Parlamento um projecto para que o dia 10 de Junho fosse considerado de festa nacional. Ramalho Ortigão redigiu o programa de um cortejo simbólico, que representava o povo e as suas sucessivas conquistas de liberdade. “No conjunto, foi evidente a desconfiança e a má vontade dos poderes públicos perante o Centenário”, como sublinhou Teófilo (cf. III Centenário da morte de Camões, de Carlos Cunha). 14. Ver índice onomástico em Gomes Leal. 10
Integrado nas listas do Partido Republicano, Teixeira de Queiroz foi eleito vereador da Câmara Municipal de Lisboa em 1886 e deputado às Cortes pelo círculo de Santiago do Cacém em 1893, participando no Congresso do Partido Republicano de Março de 1895, obrigado a reunir-se na clandestinidade após o encerramento das Cortes em Novembro de 1894 e da repressão movida aos republicanos pelo então Ministro do Reino e, mais tarde, Chefe de Governo, João Franco. Após a implantação de República em 1910, foi novamente eleito deputado nas eleições de 28 de Maio de 1911, pelo círculo de Aldeia Galega (actual Montijo), participando nos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte. Em 1915, por um breve período, foi Ministro dos Negócios Estrangeiros no Governo de José de Castro 15 , saído da Revolução de 14 de Maio desse ano. Foi sócio efectivo da Academia das Ciências de Lisboa a partir de 1905, e seu Presidente eleito em 1913, tendo sido responsável por vários pareceres acerca de candidaturas de eminentes figuras da Sociedade Portuguesa. Francisco Teixeira de Queiroz destacou-se sobretudo como escritor, utilizando o pseudónimo de Bento Moreno; segundo consta, sugerido pelo seu amigo Gonçalves Crespo 16 . Foi, porventura, a par de Camilo Castelo Branco o melhor contista do Minho: “Devendo-lhe o Minho gratidão e devoção especiais. A paisagem, as figuras, os costumes minhotos – revivem, e prodigiosamente vivos sempre, na Comédia do Campo, como em nenhuns outros livros de nenhuns outros autores” 17, “pondo em relevo duas figuras (…) com uma vida intensa, com uma realidade violenta: o abbade e o brazileiro, as duas entidades importantíssimas na paysagem risonha e na farta vida tão singela da verde província” 18 . Datam de Coimbra as suas primeiras experiências literárias, onde fez parte do grupo dos protoparnasianos 19, chefiados por João Penha 20, director de A Folha, onde foi um dos principais redactores da Crónica 15. Ver índice onomástico em Castro, José Augusto Soares Ribeiro de Castro. 16. Idem em Gonçalves Crespo. 17. Cf. “Teixeira de Queiroz (Bento Moreno)”, Seara Nova, 1946, de João de Barros. 18. Cf. Alguns Homens do Meu Tempo – Teixeira de Queiroz, de Maria Amália Vaz de Carvalho. 19. O parnasianismo foi uma corrente literária surgida em França, com a publicação em 1866 da revista Parnasse contemporain, que se propunha valorizar a componente estética da poesia reagindo contra o sentimentalismo da poesia romântica, propondo uma poesia descritiva, pictural, plástica, com uma versificação perfeita e musical. Em Portugal, os parnasianos agruparam-se na revista A Folha, publicada entre 1868 e 1873, onde se destacaram, para além do seu director João Penha (1838-1919) e de Teixeira de Queiroz, António Feijó (1859-1917), Gonçalves Crespo (1846-1883) e António Macedo Papança, futuro Conde de Monsaraz, (1852 ‑1913), havendo, contudo, laivos de parnasianismo em muitos outros poetas como Gomes Leal (1848-1921) e Cesário Verde (1855-1886) (cf. Infopedia – Porto Editora). 20. Ver índice onomástico em Penha, João Penha de Oliveira Fortuna. 11
Literária. A sua estreia como escritor deu-se em 1876 no Diário Ilustrado, com um conto intitulado o “Tio Agrela”. Publicou outros contos em jornais e revistas: Occidente (1878), Ilustração (1885-1891), Revista de Portugal (1889), Branco e Negro (Lisboa, 1897), Serões (Lisboa, 1891 e 1903), Brasil-Portugal (Lisboa, 1904 e 1907), Arte & Vida (Coimbra, 1906), Ilustração Portuguesa (Lisboa, 1906), Alma Nacional (Lisboa, 1910), Atlântida (Lisboa, 1915 a 1918) e nos jornais A Vanguarda, A Luta (Lisboa), O País (Rio de Janeiro), etc. Com o apoio de Camilo Castelo Branco, encontrou um editor em Lisboa para publicar o 1.º volume de Comédia do Campo, intitulado Cenas do Minho, obra que é constituída por uma série de contos. A ele se seguiu outra série dedicada à cidade, reunida sob o título de Comédia Burguesa 21 . Vinculou-se ao realismo e naturalismo, influenciado por Balzac e pela Comédie humaine. Para além dos estudos sobre figuras suas contemporâneas, escreveu também uma peça de teatro em quatro actos, intitulada O Grande Homem, representada no Teatro Nacional em 1881. A par desta intensa actividade literária e cultural, Teixeira de Queiroz administrou a Companhia das Lezírias do Tejo e Sado, a Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses, a Companhia das Águas de Lisboa e, o que é menos conhecido, a Companhia Fabril e Industrial de Soure. Morreu em Sintra, em 22 de Julho de 1919, “onde tudo é sonho e a penosa ideia de luta humana desaparece” 22 , na vigência de um dos breves Governos da República, “sem duração bastante para botar nome ou para receber alcunha” 23 , dessa feita chefiado pelo Coronel Sá Cardoso, mais tarde General, um histórico combatente depositário de uma “inquebrantável fé republicana”, co-autor do pronunciamento do 14 de Maio de 1915 que depôs o General Pimenta de Castro e que, por um breve período, levou Teixeira de Queiroz à governação, como atrás se disse e mais à frente se contará 24 . 21. Logo no princípio da sua carreira literária, ainda estudante, em obediência a um plano prévio, Teixeira de Queiroz iniciou duas séries paralelas de contos e romances, a que deu os títulos de Comédia do Campo e Comédia Burguesa, plano que, pouco a pouco, foi concretizando, com tenacidade e persistência. Essa organização, escolhida pelo autor para aquele que é considerado o conjunto mais significativo da sua obra, reflecte uma inspiração no modelo de Balzac, que se evidencia também ao nível do conteúdo, de raiz predominantemente realisto-naturalista (cf. Dicionário de literatura portuguesa e brasileira). 22. Cf. Teixeira de Queiroz referindo-se a Sintra em D. Agostinho. 23. Cf. Ramalho Ortigão em As Farpas referindo-se aos Governos de curta duração dos finais da Monarquia à semelhança do que viria a ocorrer nos conturbados anos da República. 24. Para além do protagonismo na Revolução do 14 de Maio de 1915, Sá Cardoso esteve activamente envolvido no 31 de Janeiro de 1891 e no 5 de Outubro de 1910 contra a Monarquia, 12
Nesse mesmo dia foi homenageado no Parlamento por todas as bancadas, com discursos de Domingos Leite Pereira, Presidente da Câmara de Deputados 25 , de Melo Barreto, Ministro dos Negócios Estrangeiros, e dos deputados João Pinheiro, Costa Júnior, António Maria da Silva, António José de Almeida, Nuno Simões e Brito Camacho 26 que, com Teixeira de Queiroz, José Relvas, João Chagas 27, Manuel Teixeira-Gomes, e outros fundara o jornal A Lucta em 1906. Na sua alocução Brito Camacho diria: “Dá-se o caso de Teixeira de Queiroz ser um dos meus amigos pessoais, daqueles por quem eu tinha a mais bem justificada consideração e estima (…) e a meu ver, ninguém, em Portugal, fez um ensaio de literatura naturalista com tam completo êxito como o fez Teixeira de Queiroz”. (Apoiados) 28 . José Pereira de Castro Caldas, incumbido de Teixeira de Queiroz nas obras da Casa de Cortinhas, viria a morrer anos depois em circunstâncias trágicas em 2 de Março de 1938. Dele referiu o Notícias dos Arcos do dia 6 seguinte à sua morte, ter sido “uma figura típica do nosso meio onde marcou pela sua extrema bondade aliada ainda a uma grande modéstia (…) desprendido de todo o amor das grandezas (…) que tendo no escudo heráldico a cruz vermelha dos Pereiras em campo de prata, abrigava em seu nobre peito as mais altas virtudes”. E, mais adiante, o Notícias dos Arcos informava que nas cerimónias fúnebres “portou a chave da urna o Exmo. Sr. General Amílcar Mota 29, primo do falecido e Chefe da Casa Militar da Presidência da República Sr. General Carmona, que incumbiu o Sr. General Amílcar Mota de apresentar os seus sentimentos na Casa da Andorinha por tam doloroso acontecimento”.
em 1917 contra o Sidónio, em 1919 contra a Monarquia do Norte, em 1926 contra o pronunciamento do 28 de Maio, e depois disso contra a Ditadura e o Estado Novo. 25. Domingos Leite Pereira (1882-1956) foi, com a República, Presidente da Câmara de Braga, tal como Teixeira de Queiroz deputado à Constituinte, várias vezes ministro e Chefe do Governo, nomeadamente do 44.º e penúltimo Governo da República em 1925. 26. Ver índice onomástico em Brito Camacho. 27. Ver índice onomástico em Chagas. 28. Cf. Deputados do Alto Minho na Primeira República, de L. Dantas)/Arq. Alto Minho, “Teixeira de Queiroz”, de João de Barros (Abril de 1934)/Diário das Sessões. 29. Ver índice onomástico em Mota. 13
Francisco Teixeira de Queiroz (Columbano – Colecção Museu do Chiado)
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O escritor e a sua circunstância
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Do retrato de uma Vida “(…) já o vemos em 1913 ocupando a cadeira da presidência (…) tem cerca de 65 anos, usa paletó às riscas, gravata multicolor, colarinho alto, engomado, de pontas dobradas, óculos de acentuada miopia, sobrancelhas severas a contrastar com um rictus zombeteiro, fixado para a posteridade por Columbano e Carneiro. Já então lhe chamavam o Balzac Português, usava o pseudónimo de Bento Moreno (…)” 31 . “No livro Portugal de Agora o escritor brasileiro João do Rio escreveu em 1909 estas palavras sobre Teixeira de Queiroz: «os olhos fincados interrogativamente em nós, através dos vidros dos óculos de ouro, severo, um ar meio cultor de edições raras, meio pedagogo, o autor de Salustio Nogueira parecia-me muito mais severo do que é possível julgar dos seus romances». Era essa a primeira impressão que dava o Teixeira de Queiroz citadino, rígido no aspecto, frio nas palavras, um pouco hirto, um pouco seco, embora extremamente amável no seu acolhimento. Da convivência demorada, porém, surgia outra pessoa, infinitamente afável e carinhosa, gostando de rir e conversar, com delicados escrúpulos de justiça e íntimos recessos de ternura, sensibilidade rara que não queria deixar-se adivinhar, homem para qual o maior triunfo – o único triunfo de que se vangloriava – fora sempre confessar e mostrar o domínio da razão e do espírito critico, sobranceiro às inquietações, às duvidas, aos fluxos e refluxos da sua vida emocional” 32 . Salvaguardadas estas aparências, no pressuposto de que “nunca um escritor pode deixar de viver a sua obra”, a final será precisamente o “domínio do espírito critico” que terá levado Teixeira de Queiroz a retratar em derradeiro registo a descrença no triunfo da razão nas páginas de A Grande Quimera escritas no fim da sua vida, como que em corolário de
30. Aforismo alegórico à famosa frase do filósofo Ortega y Gasset (1883-1955) na sua obra Meditaciones del Quijote: “Yo soy yo y mi circunstancia y si no la salvo a ella no me salvo yo”. 31. Cf. “Evocação de Francisco Teixeira de Queiroz” na Academia das Ciências, por António Pereira Forjaz em 1962. 32. Cf. Arq. Viana do Castelo, “Teixeira de Queiroz”, de João de Barros, Abril de 1934. 15
anteriores narrativas de desengano na bondade do comportamento humano, nomeadamente em O Famoso Galrão 33 e em A Caridade em Lisboa 34 . Em A Caridade em Lisboa, a estória divide-se em duas partes distintas, numa dicotomia das reais motivações que levam as personagens retratadas em cada uma das duas narrativas à prática do “bem-fazer”. Na primeira parte “temos sobretudo a narração da beneficência de um grupo de senhoras da alta burguesia e da aristocracia que, com notório zelo, decidem organizar-se em torno de uma associação («A Esmola»), ajudando os mais desfavorecidos. A verdade é que deste esforço solidário sobressai a ideia de que o socorro dos mais pobres mais não é do que uma forma de tais senhoras, ao fim e ao resto, ocuparem os seus ócios” 35 . Na segunda parte, intitulada A Dor, a solidariedade humana no combate ao sofrimento, com suporte e fé na ciência, já é apresentada como verdadeiramente altruísta e redentora: “um filósofo epicurista (João da Terra), um médico (Julião Esteves), um químico (Manuel de Sá) e um capitalista (Cláudio de Mendonça) fundam um hospital 36 , vocacionado para crianças e idosos e ainda, ponto fundamental, um laboratório, destinado a apoiar a prática hospitalar. Esta parceria entre a ciência, representada pelo laboratório, e a solidariedade, significada pelo hospital, é reveladora da crença de que o desenvolvimento científico poderia muito bem constituir o advento de uma era de maior justiça social” 37. Contudo, esta crença na redenção através da ciência esmorece-se no desfecho final de A Grande Quimera, em que Teixeira de Queiroz recuperou as personagens da narrativa anterior, em drama protagonizado pelo personagem Manuel de Sá: “As ciências naturais traziam à terra 33. Romance de Teixeira de Queiroz de 1898 inserido na série Comédia Burguesa. 34. Romance de Teixeira de Queiroz de 1901 inserido na série Comédia Burguesa, composto por dois volumes intitulados A Esmola e A Dor respectivamente. 35. Cf. A origem oriental de Jacinto, de Sérgio Guimarães de Sousa. 36. Apesar do desengano no comportamento humano expresso ao longo da sua obra, na “vida real”, Teixeira de Queiroz mantinha fé nestas iniciativas de “bem-fazer” encontrando-se registo deste sentir, como mais à frente se fará referência, nos elogios que fez ao “magnifico hospital” inaugurado em 1885 na sua terra natal de Arcos de Valdevez, louvando “todas as pessoas que tenham por qualquer forma concorrido para a existência de tão belo estabelecimento onde os desherdados da fortuna encontrarão descanso e conforto nas suas doenças”, cuja invulgar realização para a época, pelo projecto de saúde pública que comportava − um pouco à semelhança do hospital retratado no romance − só fora possível com a conjugação de esforços de beneméritos, nomeadamente do 2.º Conde de Porto Covo, Félix Bernardino da Costa Lobo da Bandeira, natural e com casa própria em Arcos de Valdevez, e de outras personalidades locais, com destaque para o clínico Dr. António Alves Pereira, Provedor da Misericórdia de Arcos de Valdevez à data da inauguração do hospital, casado com uma irmã do Conde de Porto Covo. 37. Cf. A origem oriental de Jacinto, de Sérgio Guimarães de Sousa. 16
maldita, o imaginado paraíso (…) só faltava que a química fabricasse o sustento diário dum homem, representado numa pastilha alimentar, como o desejou Berthelot 38 , para haver felicidade completa sobre a terra. Depois disto, os grandes problemas do proletariado inquieto teriam a solução natural, e a equiparação dos homens pelo nivelamento satisfatório das necessidades urgentes da vida, estaria realizada. Os químicos e outros sábios substituiriam o Deus antigo e omnipotente, facultando à colectividade social, com mui pequeno esforço, tudo quanto ela precisa para ser ditosa. Estas crenças tornavam-no feliz e satisfeito; trazia o semblante, sempre cheio de ideias alegres (…)” 39. Teixeira de Queiroz retratava assim o optimismo e a crença em ditosos amanhãs por parte da personagem ao dedicar-se com entusiasmo à descoberta de um novo tipo de explosivo (a “mongite”), que pretensamente viria coroar de êxito a sua carreira, destinado, segundo acreditava, “a melhorar consideravelmente a humanidade, possibilitando tal invenção abrir rasgos na natureza, cumprindo em milésimos de segundos o que o homem, com muito esforço, faria em longos e penosos meses ou anos de trabalho” 40. No romance, a personagem Manuel de Sá, que criara simpatias diletantes pelo movimento anarquista, recusaria, contudo, a colaboração que lhe fora pedida por militantes radicais que o contactaram, para usarem o seu invento em acções revolucionárias “redentoras”, ou, entenda-se, fabricar bombas para atentados, pois em sua consciência ajuizava que “não é para aniquilar o trabalho do homem, e o próprio homem, que a ciência conquistou à terra forças que nela existem mortas. Os explosivos devem ter um emprego harmónico com a justiça social, ajudando o nosso braço e não destruindo-o. Há tanta obra de paz a empreender, e aí é que os 38. Marcellin Berthelot (1827-1907) foi um professor, químico e político francês que se celebrizou pelas suas investigações sobre a síntese dos compostos orgânicos em laboratório, modificando radicalmente os postulados da química orgânica, ao contestar a suposição de que as substâncias orgânicas só podem ser obtidas a partir de organismos vivos. Para além de numerosas investigações e publicações, nomeadamente sobre a antiga Alquimia, que analisou a fundo, nos seus estudos conduziu a investigação de explosivos cujos resultados publicou em Sur la force de la poudre et des matières explosives. 39. Cf. em A origem oriental de Jacinto, o autor Sérgio Guimarães de Sousa, por analogia, faz referência à personagem de um “sábio”, uma espécie de alquimista dos tempos modernos, em La Recherche de l’Absolu, (1834), de Balzac − autor que tanta influência teve em Teixeira de Queiroz − que fica praticamente louco, tornando-se obcecado perdendo o contacto com a vida real na ânsia de produzir diamantes a partir da cristalização do carbono. 40. É de crer que estas “invenções” e a personagem de Manuel de Sá tenham sido inspiradas por Teixeira de Queiroz nas investigações “alquimistas” de Berthelot e no “sábio louco” de La Recherche de l’Absolu de Balzac, referidas por Sérgio Guimarães de Sousa no ensaio citado. 17
devemos aproveitar, com o fim de substituir a picareta, o martelo e toda a pena corpórea” 41 . Todavia, no desfecho da narrativa, o que acabaria no final por suceder é que o ajudante de Manuel de Sá fez explodir o laboratório onde decorriam as experiências, mutilando a criada do protagonista, que este generosamente recolhera na rua, e que fora assediada justamente por esse ajudante, que por ela nutria uma paixão avassaladora, causando esta tragédia um profundo abalo e descrença de Manuel de Sá nos valores da Ciência e da Razão, levando-o a desistir da investigação científica e, em jeito de exílio, retirar-se para as origens na Mãe-Natureza 42 . Este cepticismo no triunfo da razão, já se encontrava expresso no atrás referido romance de Teixeira de Queiroz de 1898 – O Famoso Galrão – desta feita na crítica ao “empreendedorismo” do capitalismo nascente rumo ao Progresso 43 , a que se referiu Maria Helena Santana em recente alocução académica 44 , aludindo ao sentimento dos finais do séc. XIX-início do séc. XX, de descrença nos benefícios e contributos positivos da ciência para o Progresso, repescando como exemplo deste cepticismo do fim-de-século este romance de Teixeira de Queiroz, em que um arrivista “decide criar uma grande companhia de fomento (uma empresa de base tecnológica, como hoje se diria), para isso recorrendo aos conhecimentos de um sábio alemão, de grande inteligência mas algo exótico (na representação ficcional, os sábios do século XIX tendem a ser alemães, e normalmente são alvo de troça) (…), que fica encarregado de produzir extraordinárias patentes: entre os novos inventos destacam-se uma linha de 41. Cf. A origem oriental de Jacinto, de Sérgio Guimarães de Sousa. 42. Sérgio Guimarães de Sousa no ensaio citado A origem oriental de Jacinto, compara os sentimentos de optimismo, e no final de descrença no Progresso, por parte do Manuel de Sá de A Grande Quimera, aos do Jacinto de A Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz e aos do chinês Kin-Fo, personagem de Les tribulations d’un chinois en Chine, de Júlio Verne, onde o ensaísta admite ter-se Eça de Queiroz inspirado para a conhecida personagem de Jacinto retratado por Eça como um homem das “Luzes”, rodeado pelas últimas maravilhas da tecnologia dos tempos modernos, que enfastiado da modernidade acabará por se refugiar, na sua quinta de Tormes sobranceira à magnífica paisagem do Douro, desprendido das amarras da “civilização” usufruindo dos elixires e benesses da Mãe-Natureza. 43. Esta descrença do “bem-fazer” do “empreendedorismo” colheu-a, porventura, Teixeira de Queiroz na experiência da “triste coisa de entrar forçado na vida dos negócios”, como mais à frente se contará, nomeadamente na vivência da “bancarrota” dos caminhos-de-ferro em que foi protagonista, e no único projecto industrial de raiz em que se envolveu, aparentemente sem grande sucesso como projecto autónomo, da Fábrica do Paleão em Soure destinada a ser “uma fábrica exemplar com boa iluminação natural e artificial, pensada globalmente em todos os aspectos mesmo os do foro social, prevendo-se desde o início habitações para operários”. 44. Cf. “A Química na Literatura”, de Maria Helena Santana (texto de alocução académica publicado no Boletim da Sociedade Portuguesa de Química, de Out/Dez 2013). 18
produtos de cortiça e outra de ovos artificiais, e um «elixir de temperatura normal», a distribuir em pastilhas, que funcionaria como um condicionador corporal (…). A ideia de substituir a Natureza por produtos sintéticos causa estranheza, mas é a ânsia de riqueza que destrói o sonho: a grande Companhia de Fomento não vinga, porque o dinheiro dos accionistas é desencaminhado; e a fábrica vai à falência porque uma paixão infeliz desconcentra o aventureiro dos negócios” 45 . Assim, a Autora conclui deste interessante texto, sobre a forma como ganhou “expressão, no discurso ideológico e literário do fim-de-século, uma corrente antiprogressista que muitas vezes se classifica de reaccionária com alguma razão, na medida em que entra em ruptura com a realidade do seu tempo. Como sabemos, trata-se em parte de um fenómeno cíclico, embora dramatizado em circunstâncias histórico-culturais concretas. Já antes acontecera como reacção romântica às luzes, e voltará a verificar-se repetidamente, até aos movimentos ecologistas e new age dos nossos dias. À sociedade mecânica e utilitária opõe-se então a reconversão aos valores do espírito, tendo por vezes como corolário o retorno a um estado civilizacional anterior, pré-moderno e pré-científico. O ideal da paz campestre apresenta-se frequentemente como alternativa – uma alternativa igualmente mitificante e utópica, já se vê. O relógio do progresso nunca anda para trás” 46 , o que em certa medida talvez sintetize a essência e a evolução do pensamento de Teixeira de Queiroz na sua circunstância, simultaneamente céptico e crente no Progresso, ao deixar estes registos na Comédia Burguesa que ele próprio classificou como “obra paciente do desengano” como que em contraponto à Comédia do Campo cuja obra, nas suas próprias palavras, resultou de uma “manifestação espontânea de amor à província”, ou seja, na vontade sempre presente do regresso às origens. “Nem um só Verão se dispensava de visitar os Arcos”. Vista do núcleo da freguesia de São Paio com a Igreja Nova e a Rua da Ponte (actual Rua Teixeira de Queiroz), encoberta pelo casario – onde Francisco Teixeira de Queiroz nasceu na casa que se encontra assinalada com uma placa alusiva – transversal à Ponte Nova, inaugurada em 1880, em substituição da antiga ponte medieval, no decurso das “campanhas de melhoramentos materiais” do período da Regeneração de construção de infra-estruturas, no caso em apreço da Estrada Real Braga-Valença iniciada em 1859 com ligação a norte a Monção e Valença e a poente ao cais do rio Lima no Carregadouro para acesso fluvial a Viana. 45. Idem. 46. Idem. 19
Do regresso às origens “Nem um só Verão se dispensava de visitar os Arcos, e a sua profunda ambição – por fim realizada – foi sempre ter ali a sua casa, para descansar do ruído e da agitação de Lisboa, talvez, mas sobretudo para trabalhar afanosamente na obra admirável que nos legou. Não construiu, de facto, o lindo casal de Cortinhas, com a simples intenção de gozar vilegiaturas repousadas – antes com o propósito firme a que não faltou, de melhor pensar, construir e ordenar os livros que trazia na imaginação, entre as linhas e cores da sua infância descuidada” 47. Na concretização dessa ambição, logo no início, estabeleceu as regras austeras que deveriam presidir à Casa em Construção: “Lembre-se o meu amigo, que quero uma casa confortável e modesta, prescindindo de tudo quanto é luxo, mas querendo limpeza e segurança. Não me importo com as obras que fazem as outras pessoas, cada um faz o que quer conforme a sua vontade e fim que tem em vista. Eu quero uma casa para ir ahi de vez em quando, estar um ou dois meses no verão e não preciso de luxo e só quero comodidade (…)” (Janeiro de 1905) 48 . E no final, concluído o “percurso da construção”, celebraria a satisfação da ambição cumprida do regresso às origens, com os fiéis e “antigos companheiros de caçadas”, “(…) sempre conversando e á chalaça, mais que perdizes, hoje, melhor caça é matar fomes do caçar antigo (…)” 49. “Na 2.ª feira 18 reuno à minha mesa quatro amigos, como de costume todos os anos. São os três antigos companheiros de caçadas, Abade de Sistelo, Pedro e João de Tora e o meu amigo, que eu conto sempre entre as pessoas que mais me auxiliaram, ou melhor, aquelle que mais me auxiliou no fazer desta casa onde os recebo (…)” (Agosto de 1913) 50. 47. Cf. Arq. Alto Minho, “Teixeira de Queiroz”, de João de Barros, Abril de 1934. 48. Cf. Carta de 25 de Janeiro de 1905, de Francisco Teixeira de Queiroz a José Pereira de Castro Caldas, a quem, como já referido, incumbiu de dirigir e fiscalizar as obras da Casa de Cortinhas na freguesia de Paçô, em Arcos de Valdevez. 49. Cf. Extracto eloquente do posfácio de A Toca do Lobo, de autoria de Tomás de Figueiredo, ilustrativo das saudades do “caçar antigo”: “– Pai, vem da morte e vamos às perdizes, vejo a aurora, que tinge do seu rajo de dente a dente a serra de Soajo. – Ciprestes, desatai-o das raízes! – Este inverno as perdizes são em barda: criaram-se as ninhadas sem granizo. Vamos chumbar dos perdigões o guizo, anda matar securas da espingarda (…). Trinta anos depois, caçar contigo, e sempre conversando e á chalaça. Mais que perdizes, hoje, melhor caça é matar fomes do caçar antigo (…). Ah! pai, que me repassam os nordestes, que vejo além ferrugens de mil cruzes: de dia, embora, palpitando luzes e a palma de verdete dos ciprestes.” 50. Cf. Carta de 14 de Agosto de 1913 a José Pereira de Castro Caldas. 20
Parva domus magna quies Quem hoje suba as escadas de acesso ao andar nobre da Casa de Cortinhas, depara com a seguinte frase em latim, escrita em azulejos fixados na parede da varanda: Parva Domus, Magna Quies. Questiona-se o visitante, sobretudo o não versado em latim, sobre o verdadeiro significado da frase, e com que intenção aí terá sido colocada. Em tradução livre, a frase significa Pequena é a Casa, Grande é a Tranquilidade, cujo texto original em latim é o título de um poema atribuído ao erudito romano Petronius Arbiter, que viveu no período do Imperador Nero, em Roma, e a quem se atribui a autoria do romance satírico Satyricon que, segundo vários autores da Idade Moderna, se tornou uma obra de referência do “realismo corrupto” que norteava a sociedade romana de então, com aderência à realidade dos tempos modernos. O poema, de que não encontrei tradução em português – que certamente Teixeira de Queiroz conhecia na versão original em latim, querendo porventura deixar dele referência como epitáfio ou memorial aos vindouros – faz crer: o carácter da Casa modesta e protectora que não receia nenhum mal, em desenvolvimento harmónico com a Natureza, mas por onde paira a ameaça do mal, em resultado de putativos comportamentos maléficos e atentatórios à bondade dos usos e costumes por parte do seu dono, ao trocar uma vida simples e honesta por uma vida faustosa e pecaminosa, pedindo que, quando a vida chegar ao fim, que ali esteja, e ali seja chamado para prestar contas do tempo passado. Outros autores contemporâneos, dos sécs. XIX e XX, alguns certamente lidos por Teixeira de Queiroz, encontraram inspiração no mesmo epitáfio atribuído a Petronius, como foi o caso de Alphonse Daudet 51 , também da “escola naturalista”, em que, no romance Jack, escrito em 1876, no capítulo VIII, que justamente o autor intitula Parva Domus Magna Quies, Jack, a personagem do romance – uma infeliz criança negligenciada pela própria Mãe nos afectos maternais – é finalmente acolhida na casa do seu 51. Ver índice onomástico em Daudet, Alphonse Daudet. 21
padrasto adoptivo, onde se julga por fim sob protecção e em segurança, sentimento esse que no desenrolar do romance se vem a mostrar dramaticamente efémero. De Cortinhas e de Arcos de Valdevez ficaram de Teixeira de Queiroz múltiplas referências de gratas recordações e calorosos afectos. Em determinado período que é difícil precisar, antes da empreitada de Cortinhas, para as suas vilegiaturas estivais nos Arcos, Francisco Teixeira de Queiroz, já casado e com filhos, tomou de aluguer a Casa da Coutada 52 na freguesia de Giela, em Arcos de Valdevez 53 , na ausência prolongada da sua proprietária, Maria da Conceição Teixeira de Queiroz Vaz Guedes 54 , irmã de João 55 e de António Teixeira de Queiroz Vaz Guedes 56 e filha de José Teixeira de Queiroz 57, os três já mencionados notáveis arcuenses, contemporâneos de Teixeira de Queiroz, que, como atrás já referido, apesar de disporem de iguais apelidos de família, não tinham relação de parentesco conhecida com Francisco Teixeira de Queiroz. É de crer, contudo, que houvesse pelo menos algum relacionamento de confiança ou proximidade entre estas duas famílias arcuenses, subjacente à referida cedência em arrendamento da Casa da Coutada para os veraneios de Francisco Teixeira de Queiroz e respectiva família, 52. A Casa da Coutada é assim designada pela razão do vasto perímetro murado adjacente, ocupando mais de 1/10 da antiga freguesia de Giela, ter sido coutada do vizinho Paço de Giela, emprazada em 1793 a Gaspar Queiroz Botelho de Almeida e Vasconcelos (1760-1834) − que aí edificou a Casa da Coutada −, tio do já mencionado José Teixeira de Queiroz; pelo 14.º Visconde de Vila Nova de Cerveira e 1.º Marquês de Ponte de Lima, D. Tomaz Xavier de Lima (1727 ‑1800), natural de Ponte de Lima; Ministro do Reino de D. Maria I após a “queda” do Marquês de Pombal; donatário das vilas de Arcos de Valdevez e de Vila Nova de Cerveira; Alcaide-Mor de Ponte de Lima etc., que aí possuía “terras de coutada com zona de mato, algumas pesqueiras, carvalhal e caça” nas proximidades do seu Paço de Giela, Paço que seu neto, D. José Maria Xavier de Lima, 16.º Visconde e 3.º Marquês, viria mais tarde a vender ao arcuense Narciso Durães de Faria em 1868. 53. Este arrendamento por prazo determinado, que se presume fosse renovável, ainda perdurava em 1900, como o atesta a correspondência desse ano, entre Pedro Queiroz Gaivão, ausente a estudar na Alemanha, e sua Mãe, Maria da Conceição Teixeira de Queiroz Vaz Guedes, proprietária ausente da Coutada, em que Pedro Gaivão informa sua Mãe, por carta datada de 13 de Julho de 1900, que irá avisar “o Tio António (refere-se ao seu tio António Teixeira de Queiroz Vaz Guedes, irmão de sua Mãe, residente nos Arcos na Casa das Vessadas, que zelava localmente pelos interesses do ramo ausente da família) que diga ao Sr. Queiroz, para sair da Coutada no próximo prazo, que assim como a Mãe não sei quando é (…)” (cf. Espólio de Pedro Queiroz Gaivão). 54. Ver índice onomástico em Vaz Guedes, Maria da Conceição Teixeira de Queiroz Vaz Guedes. 55. Idem em Vaz Guedes, João Teixeira de Queiroz Vaz Guedes. 56. Idem em Vaz Guedes, António Teixeira de Queiroz Vaz Guedes. 57. Idem em Teixeira de Queiroz, José Teixeira de Queiroz Almeida Vasconcelos. 22
Francisco Teixeira de Queiroz, já casado e com filhos, tomou de aluguer a Casa da Coutada (foto actual)
Quadro a óleo, representando a Coutada, pintado pelo arqueólogo e etnólogo arcuense Félix Alves Pereira, amigo e correspondente de Francisco Teixeira de Queiroz
Casa das Vessadas ou dos Queirozes, Francisco Teixeira de Queiroz não tinha parentesco conhecido com a família Teixeira de Queiroz do extinto vínculo das Casas do Casal do Paço, Boavista e das Vessadas em Arcos de Valdevez situada na actual Rua Queiroz Vaz Guedes, também conhecida como a Casa dos Queirozes entretanto demolida
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B Y TH E
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Edições Especiais, lda Rua das Pedreiras, 16-4º 1400-271 Lisboa T. + F. (+351) 213 610 997 www.bythebook.pt ©Edição By the Book, Edições Especiais Título Francisco Teixeira de Queiroz: uma casa em construção ©Texto Pedro de Castro Caldas Revisão Fernando Milheiro Impressão Real Base ISBN 978-989-8614-80-3 Depósito Legal 456515/19
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