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FRESTAS RESULTANTES DA PESQUISA
from CIDADE-PEDREIRA
by caiorechuem
ESTRANGEIRO
1. que ou o que é de outro país, que ou o que é proveniente, característico de outra nação.
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2. (sentido figurado)
que ou o que não pertence ou que se considera como não pertencente a uma região, classe ou meio; forasteiro, ádvena, estranho.
(Fonte: Dicionário Oxford)
O estrangeiro
Caetano Veloso, 1989
O pintor Paul Gauguin amou a luz da Baía de Guanabara O compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela A Baía de Guanabara O antropólogo Claude Levy-Strauss detestou a Baía de Guanabara: Pareceu-lhe uma boca banguela. E eu menos a conhecera mais a amara?
Sou cego de tanto vê-la, te tanto tê-la estrela O que é uma coisa bela? O amor é cego Ray Charles é cego Stevie Wonder é cego E o albino Hermeto não enxerga mesmo muito bem Uma baleia, uma telenovela, um alaúde, um trem? Uma arara? Mas era ao mesmo tempo bela e banguela a Guanabara Em que se passara passa passará o raro pesadelo Que aqui começo a construir sempre buscando o belo e o amaro Eu não sonhei: A praia de Botafogo era uma esteira rolante de areia branca e de óleo diesel Sob meus tênis
E o Pão de Açúcar menos óbvio possível À minha frente Um Pão de Açúcar com umas arestas insuspeitadas À áspera luz laranja contra a quase não luz quase não púrpura Do branco das areias e das espumas Que era tudo quanto havia então de aurora
Estão às minhas costas um velho com cabelos nas narinas E uma menina ainda adolescente e muito linda Não olho pra trás mas sei de tudo Cego às avessas, como nos sonhos, vejo o que desejo Mas eu não desejo ver o terno negro do velho Nem os dentes quase não púrpura da menina (pense Seurat e pense impressionista Essa coisa de luz nos brancos dentes e onda Mas não pense surrealista que é outra onda) E ouço as vozes Os dois me dizem Num duplo som Como que sampleados num sinclavier:
“É chegada a hora da reeducação de alguém Do Pai do Filho do Espírito Santo amém O certo é louco tomar eletrochoque O certo é saber que o certo é certo O macho adulto branco sempre no comando E o resto ao resto, o sexo é o corte, o sexo Reconhecer o valor necessário do ato hipócrita Riscar os índios, nada esperar dos pretos” E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento Sigo mais sozinho caminhando contra o vento E entendo o centro do que estão dizendo
Aquele cara e aquela: É um desmascaro Singelo grito: “O rei está nu” Mas eu desperto porque tudo cala frente ao fato de que o rei é mais bonito nú E eu vou e amo o azul, o púrpura e o amarelo E entre o meu ir e o do sol, um aro, um elo. (“Some may like a soft brazilian singer but i’ve given up all attempts at perfection”).
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1. Vista da Baia de Guanabara. (Fonte: IMS - Marc Ferrez, 1885)
2. Vista de Paquetá. (Fonte: IMS - Marc Ferrez, 1885)
3. Vista de Paquetá. (Fonte: IMS - Marc Ferrez, 1889)
O olhar do estrangeiro é o instrumento utilizado por Caetano em sua canção cuja letra relata uma conversa escutada pelo artista. Esta conversa é construída por corpos descritos como “um velho com cabelos nas narinas e uma menina ainda adolescente e muito linda” e evidencia uma narrativa reacionária que permeia o país através de uma constante reorganização de forças hegemônicas.
O estranhamento que acompanha o estrangeiro, faz-se constantemente presente durante esta pesquisa. A construção de questionamentos e reflexões, resultam em uma espécie de vertigem causada pelo posicionamento da minha formação acadêmica no limite de um precipício conformado por um vazio de pedreira, cujo plano de fundo constitui-se através do horizonte da cidade.
O olhar atento do estrangeiro, normalmente suscetível a determinado estranhamento capaz de eleger elementos da paisagem como signos de uma civilização, também pode ser o instrumento que possibilita a utilização destes elementos como vetores de projeto.
O reconhecimento das frentes de pedreiras desativadas como signos de um processo de urbanização, surge a partir de algumas reflexões sobre o monumento a aquilo que dispara o estranhamento inicial desta pesquisa. Projetado por Lúcio Costa, o monumento a Estácio de Sá, assim como os estrangeiros citados na canção de Caetano Velloso, apropria-se da paisagem da Baía de Guanabara para a elaboração de uma narrativa nacional.
Nascido na França, filho de pai baiano e mãe amazonense. Lúcio teve a parte inicial de sua formação predominantemente europeia, em consequência do fato de morar em diversos países acompanhando seu pai em suas atividades oficiais de almirante. Apesar de já ter visitado poucas vezes o Brasil, retornou em definitivo em 1917, quando mais tarde passou a frequentar a Escola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro, graduando-se no curso de Arquitetura.
Em 1924, já consolidado como um dos expoentes do movimento neocolonial, o jovem arquiteto concede uma entrevista ao jornal “A noite”, publicada no dia 19 de março. Na qual relata sua percepção inicial da produção arquitetônica do período no Brasil.
[...] habituado a viajar por terras diversas, estava eu acostumado a ver em cada novo país percorrido uma arquitetura característica, que refletia o ambiente, o gênio, a raça, o modo de vida , as necessidades do clima em que surgia; uma arquitetura que transformava em pedra e nela condensava numa síntese maravilhosa toda uma época, toda uma civilização, toda a alma de um povo. No entanto, aqui chegando, nada vi que fosse a nossa imagem.../ Não vou ao extremo de achar que já devíamos ter uma arquitetura nacional. Naturalmente, sendo o nosso povo, um povo cosmopolita, de raça ainda não construída definitivamente, de raça ainda em caldeamento, não podemos exigir uma arquitetura própria, uma arquitetura definida. Deveríamos, porém, ter
tomado, e isso há muito tempo, uma diretriz, e iniciado a jornada aceitando como ponto de partida o passado que, seja ele qual for, bom ou mal existe, existirá sempre, e nunca poderá ser apagado. Para que tenhamos uma arquitetura logicamente nossa, é mister procurar descobrir o fio da meada, isto é, recorrer ao passado, ao Brasil-colônia. Todo esforço nesse sentido deve ser recebido com aplausos. (LEONÍDIO, 2007 Apud. COSTA, 1924, p.33)
Inegavelmente, Lúcio compartilhara do estranhamento cantado por Caetano. Entretanto, o projeto do monumento a Estácio de Sá, ao mesmo tempo que se apropria da baía de Guanabara como um signo identitário da cidade por meio de um exemplar rigor arquitetônico, se materializa sob uma narrativa hegemônica do processo de fundação, enquanto exemplifica uma constante disputa pelo controle da mesma.
Tenho por hábito cultivar certa admiração pelo trabalho de Lúcio Costa devido a sua incansável busca por uma arquitetura nacional. Entretanto, o Monumento apresenta paradoxos interessantes enquanto construção de uma narrativa.
O Monumento, inaugurado em 1973 no local da antiga foz do rio Carioca, com área de 450m², parte do princípio da pureza geométrica, tendo seu uso adequado as formas de triângulos sobrepostos em planta-baixa. A interseção destas formas geométricas delimita o volume do espaço construído no parque do Flamengo, formado por um estacionamento, um pátio central e a área do monumento, que dialogam harmonicamente com a espacialidade do parque.
A relação com o lugar se estende ao fato de um dos vértices apontar para o local em que os portugueses desembarcaram e fundaram a cidade. Além disto, a aresta oposta a este eixo é paralela à avenida Infante D. Henrique, que dá acesso ao estacionamento. O visitante é guiado por circulações verticais nas bordas destes triângulos. A rampa leva até o nível do monumento um obelisco de 14 metros de altura, sendo 3 metros dentro da cripta e 11 metros a partir da plataforma superior, na qual o monumento se junta a vista panorâmica que se integra a paisagem natural da fundação da cidade.
Já a escada, leva ao nível inferior que tem a entrada marcada por uma porta em bronze de autoria do escultor Honório Peçanha, na qual está impresso o primeiro mapa da Guanabara e o brasão do fundador, ainda no subsolo podemos perceber a relação estabelecida entre o espaço externo e o interno através de iluminação zenital, adquirida através da estrutura trapezoidal que possibilita os raios solares, evidencia as réplicas da lápide e do marco da fundação, posicionados sobre uma caixa de areia que busca representar a praia na qual o militar português desembarcou.
A materialidade do monumento é quase que exclusivamente em pedra. O piso da plataforma é completamente revestido em placas
de granito serrado e seu embasamento em pedras portuguesas, marteladas e cortadas a mão.
Apesar de responder algumas necessidades de um espaço de memória, a obra precisa conviver com o paradoxo de abrigar uma cripta vazia visto que com a transferência do núcleo administrativo para o Morro do Castelo, fora construído a Igreja Matriz de São Sebastião, que passou a abrigar os restos mortais de Estácio de Sá, falecido em 1567 e sepultado no núcleo primitivo onde a cidade foi fundada. Devido ao desmonte do morro do Castelo em 1922, a lápide de mármore português, construída em 1583 na Igreja de São Sebastião, precisou ser transferida para a nova igreja dos padres Capuchinos.
A ideia inicial de transladar o marco de fundação da cidade, os restos mortais e lápide de Estácio de Sá para o novo monumento construído, não se concretizou devido a falta de acordo entre a prefeitura do Rio de Janeiro e os Frades. Desta forma, foram instaladas réplicas no memorial do Parque do Flamengo e as relíquias históricas continuam na Igreja localizada na Tijuca. (LEITTE-TEIXEIRA E CANEZ, 2017)
Memorial Estácio de Sá
Lúcio Costa, 1973 Brasil, Rio de Janeiro
(Fonte: Imagem produzida pelo autor)
O monumento a Estácio de Sá é um exemplo que aquilo que convencionamos como uma boa prática de arquitetura muitas vezes não é o suficiente para se alcançar determinados resultados coletivos.
A narrativa pela qual a pesquisa se desenvolve está justamente ligada ao choque entre o poder público, as elites, os pobres e escravizados. As cicatrizes dessa constante disputa, encontram-se em locais como a atual zona portuária, delimitada pela cadeia rochosa recortada pela pesquisa
Tal formação geológica, abriga tanto os trapiches e ancoradouros resultantes de uma diáspora africana, quanto a vazios de pedreiras resultantes de um violento processo de urbanização. Evidenciando assim, a necessidade de se aprofundar no entendimento de um processo civilizatório e de formação de povo e cultura, para poder se discutir o papel de uma arquitetura nacional que responda aos interesses da população ao invés daqueles construídos pelo capital.
Tendo em vista a dominância dos setores hegemônicos nas narrativas oficiais que justificam inúmeras intervenções urbanísticas no Rio de Janeiro, o discurso de embelazamento urbano passa a vir acompanhado de uma especulação proposital do solo urbano e uma ruptura violenta de laços comunitários.
Determinado regime de visualidade é posto em discussão quando se promove um movimento dos corpos da cidade para o centro de um vazio de pedreira. Buscando equalizar uma enorme exposição à inúmeras informações visuais com as poucas experiências estéticas pensadas a partir de uma experiência sensorial do corpo.
Neste ponto, torna-se necessário uma menção a colaboração entre o arquiteto Claude Parent e o teórico Paul Virilio, cuja investigação da obliquidade como uma estratégia arquitetônica e urbana que busca o desequilíbrio enquanto promove um movimento contínuo e fluido, serviu de forte inspiração à pesquisa.
(Fonte: The Function of the Oblique, 2004)
Portanto, concluo este trabalho que se propõe a construir questionamentos antes de achar soluções, sugerindo uma pequena intervenção sobre o vazio resultante da extração. Uma suave inclinação deste chão em direção ao fundo da pedreira, capaz de promover o encontro dos corpos com este corte geológico, que simbolicamente expressa nossa atuação no processo de urbanização do Rio de Janeiro.
Esta intervenção caracteriza-se como uma exploração da obliquidade, ou seja, um desvio tanto do paralelismo quanto da perpendicularidade. Sendo assim, a obliquidade é o espaço entre o pragmatismo e o abstrato.
Dentre os inúmeros questionamentos levantados por este trabalho, encontra-se talvez a única afirmação que me arrisco a fazer munido de minha quase completa graduação, a real potência da arquitetura vai muito além do que sua materialidade física, e um dos possíveis caminhos para se chegar a tal objetivo é o olhar atento para aqueles que manipulam a matéria enquanto redefinem a paisagem da cidade.
Intervenção sobre o chão resultante da extração da matéria.
(Fonte: imagem produzidas pelo autor)
CIDADE PEDREIRA
A manipulação da matéria no processo de urbanização do Rio de Janeiro.
Caio Rechuem Lopes Martinez
TCC Graduação Orientação: Caio Calafate Arquitetura e Urbanismo USU Rio de Janeiro, 2020
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REFERÊNCIAS AUDIOVISUAIS
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ENTRE MORROS E MARES.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nYKN9OI8NTo
MEMÓRIAS DO CAIS DO VALONGO.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EAQranIgycA