13 minute read
A justiça e a inversão da pirâmide etária
Diana Andrade
Jurista
Advertisement
Em “Portugal Country Fiche on Pensions Ageing Report 2021” conseguimos confirmar algo que já adivinhávamos: daqui a cerca de cinquenta anos, em Portugal, a esperança média de vida feminina subirá de 84,8 para 90,4 anos e a masculina ascenderá de 78,6 para 85,7 anos. Em 2070, cerca de um terço da população terá mais de 65 anos e a força laboral decrescerá de aproximadamente 5 milhões para 3,6 milhões. Algo terá de mudar em todos os setores. A justiça não será exceção.
Podemos principiar esta caminhada pela proteção que a lei portuguesa dá aos idosos. A mesma não nos deixa dúvidas sobre o seu direito à participação, à saúde, à autorrealização, à dignidade, à informação, à alimentação, ao seu acesso à justiça, aos direitos sociais, à independência, ao trabalho e à assistência. Todavia, cumpre indagar se esses mesmos direitos se encontram efetivamente acautelados e se não devemos reforçar a sua proteção, sobretudo quando sabemos que a pirâmide etária inverte de forma galopante.
É verdade que esta faixa etária tem específico respaldo constitucional. Se olharmos para o artigo 63.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) - referente à segurança social e solidariedade – ou para os artigos 64.º e 67.º, relativos à saúde e à família, respetivamente, percecionamos a vontade do legislador quanto à promoção da política de terceira idade. Aliás, o seu artigo 72.º dedica-lhes toda a atenção, remetendo-nos precisamente para a importância de se proporcionarem às pessoas idosas oportunidades de realização pessoal, através de uma participação ativa na vida da comunidade. Todavia, note-se que ao abrigo do disposto no artigo 13.º da CRP, referente ao princípio da igualdade, a idade não é considerada como fator potencialmente discriminatório, ao contrário do que sucede com a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. E isto merece ser revisitado e alterado.
Cumpre, também, cogitar sobre o próprio conceito de idoso. Com o envelhecimento da população fará sentido falar-se em idoso se estivermos perante uma pessoa com 65 anos?
E se quisermos avançar para o campo penal, aquilo que parece carecer de análise mais aprofundada é a eventual tutela diferenciada e integrada dos idosos dependentes ou especialmente vulneráveis. Para estas pessoas, faria sentido a existência de direitos especiais, tais como o direito a uma proteção efetiva diferenciada, o direito à assistência, o direito à informação e o direito à indemnização.
Outra questão que pode ser suscitada é a (des)proteção dos futuros arrendatários idosos e a oportunidade legislativa para tentar saná-la. Repare-se que a idade do arrendatário, maior ou igual a 65 anos, que foi considerada pelo legislador como fator preponderante na relação de arrendamento habitacional, deixará de ser relevante à medida que os contratos antigos se forem extinguindo. Ora, num momento em que se sabe que haverá uma população idosa crescente, dever-se-ia apostar exatamente em sentido oposto.
Encaremos o futuro com realismo: se temos a certeza de que daqui a muito pouco tempo a pirâmide etária portuguesa estará completamente invertida, isso leva-nos a reajustar o panorama da justiça desde já. Há um longo caminho percorrido nesse mesmo sentido, mas a conduta cirúrgica que aqui se advoga será certamente crucial. As políticas públicas deverão acompanhar esta tendência e a justiça tem um papel importante neste processo.
A liberdade religiosa é fundamental num estado democrático. Mas o que acontece quando a lei civil e a doutrina apontam caminhos diferentes? Neste espaço, vamos revelar-lhe, ao longo de várias edições, os credos com maior representatividade em Portugal. Saiba o que defendem, no que acreditam, como vivem e qual o seu conceito de Justiça.
FÉ BAHÁ’Í
UNIDADE NA DIVERSIDADE
ESCRITURAS BAHÁ’ÍS
REPORTAGEM DINA TEIXEIRA / FOTOGRAFIA RUI SANTOS JORGE
É no n.º 17B, na Rua Cidade de Nova Lisboa, nos Olivais, que vamos descobrir a mais recente das religiões mundiais: a Fé Bahá’í. Somos recebidos no Centro Nacional Bahá’í. Quem nos guia por estes caminhos de fé são Victor Forghani Teruel, secretário da Assembleia Espiritual Nacional dos Bahá’is de Portugal, e Stella Xavier Rodrigues, secretária da Assembleia Espiritual Local dos Bahá’is de Viana do Castelo.
Comecemos pelo princípio. Bahá’í é uma palavra com origem árabe que significa glória ou esplendor. Mas quando se terá iniciado esta corrente religiosa? Segundo os secretários, a fé Bahá’í nasceu na Pérsia e no Império Otomano durante o século XIX. “A primeira característica que a distingue de outras religiões é o facto de ter dois profetas fundadores. O primeiro foi Báb que, em 1844, Se proclamou como um novo Manifestante de Deus e que trazia consigo uma Revelação Divina destinada a transformar a espécie humana. Os seus ensinamentos baseavam-se no renascimento espiritual e moral da sociedade, na elevação da condição da mulher e dos destituídos, na importância da educação e das ciências”. Revolucionária na sociedade persa, a mensagem de Báb acabou por gerar muitos ódios e paixões, tendo muitos dos Seus seguidores sido perseguidos e chacinados. Mas, apesar da ameaça permanente, esta religião acabou por prevalecer através da figura de “Bahá’u’lláh, o Manifestante prometido por Báb. Ao longo de vários exílios a que foi submetido, “Bahá’u’lláh foi anunciando a Sua missão e expondo os Seus ensinamentos destinados a guiar a humanidade nos próximos séculos”, explicam. Faleceu em 1892 e o Seu filho mais velho, ‘Abdu’l-Bahá, sucedeu-Lhe. Este, viajando pela Europa e pelos Estados Unidos, onde já existiam pequenos grupos de Bahá’ís, acabou por contribuir para uma expansão significativa da Fé Bahá’í. Após a sua morte, em 1921, deixou como sucessores o Seu neto, Shoghi Effendi, e a Casa Universal de Justiça, o organismo supremo da administração Bahá’í a nível internacional. São, assim, “os textos e as palavras destas três figuras centrais – Báb, Bahá’u’lláh e ‘Abdu’l-Bahá – que constituem o corpo das escrituras Bahá’ís”, referem.
À medida que vamos avançando na visita, os quadros e cartazes com referências aos templos Bahá’ís captam a nossa atenção. Conta-nos Victor Forghani Teruel que “as Casas de Adoração, os templos Bahá’ís, são espaços abertos ao público, exclusivamente dedicados à oração e meditação”. Sublinhe-se que quando falamos de meditação não nos referimos a longas orações, mas sim ao exercício do intelecto, isto é, à capacidade humana para questionar, refletir e compreender o mundo que nos rodeia. Nestes espaços, “é proibido qualquer tipo de culto ou sermão. Somente é permitida a leitura de escrituras consideradas sagradas”, menciona. Contam-se, até à data, oito templos Bahá’ís em todo o mundo. Apesar dos seus estilos arquitetónicos díspares, todos eles partilham de certas características: jardins soberbos e nove entradas em nove lados. Não, não é por acaso. Para a fé Bahá’í, o número nove é o maior dígito e simboliza a unidade.
Ainda focados na história desta religião, quisemos compreender o seu contexto em Portugal. Stella Xavier Rodrigues esclarece-nos que “as primeiras referências à Fé Bahá’í em Portugal surgiram em 1878, mas só a partir de 1946 se estabeleceram os primeiros Bahá’ís no nosso país”. Contudo, os desafios impostos pela ditadura salazarista não tardaram a chegar. “O Centro Nacional
VICTOR FORGHANI TERUEL Bahá’í foi alvo de rusgas, muitos livros e panfletos foram apreendidos e vários crentes foram interrogados pela PIDE. Nas colónias portuguesas a repressão tinha um caráter ainda mais violento, havendo registo de crentes assassinados pelas autoridades coloniais”, refere. Com a Revolução de 1974, o cenário mudou. “Desapareceram as restrições às atividades da Comunidade Bahá’í e, no ano seguinte, esta foi reconhecida como Pessoa Religiosa Coletiva. Em 1999 foi autorizada pelo Ministério da Educação a lecionar aulas de educação moral e religiosa e, em 2007, reconhecida pelo Ministério da Justiça como Comunidade Religiosa Radicada”.
Revelada a história, debrucemo-nos agora sobre os ensinamentos Bahá’ís. Segundo estes, existe apenas um único Deus. “Ele é transcendente, omnipotente, omnisciente, criador de todas as coisas. Ele faz surgir, no mundo da humanidade, os Seus mensageiros - Manifestantes de Deus – que nos transmitem a Sua vontade”, realça o secretário da Assembleia Espiritual Nacional. Desta forma, “Deus comunica com a humanidade através de um processo de revelação progressiva, que existe desde sempre e que continuará ao longo da nossa existência enquanto espécie”, acrescenta. “Neste aspeto, encontramos uma grande diferença entre a Fé Bahá’í e outras religiões: não acreditamos que qualquer religião seja a palavra final de Deus à humanidade”, aponta também Stella Xavier Rodrigues, afirmando ainda que “dentro de alguns séculos, o mundo será muito diferente, as pessoas terão outras necessidades e, certamente, surgirá uma nova revelação de Deus”.
Mas não é tudo. Nos ensinamentos Bahá’ís existem ainda princípios que merecem destaque: “o abandono de todas as formas de preconceito; a igualdade de direitos e oportunidades entre homens e mulheres; o reconhecimento da unidade e relatividade da verdade religiosa; a eliminação dos extremos de pobreza e de riqueza; a obrigatoriedade de educação para todas as crianças; a livre e independente pesquisa da verdade; o estabelecimento de uma comunidade mundial de nações; a harmonia entre ciência e religião; e a adoção de uma língua auxiliar internacional”, mencionam os secretários.
Muito mais há por desvendar no que se refere à essência desta religião. Uma essência que, de acordo com a secretária de Viana do Castelo, pode ser resumida em cinco palavras-chave: unidade, diversidade, maturidade, globalidade e racionalidade. “Unidade, porque um dos objetivos da Fé Bahá’í é a unidade da humanidade; diversidade, pelo dever de respeitar as culturas dos diferentes povos; maturidade, porque estamos a atingir a nossa maturidade coletiva; globalidade, pois temos de olhar para o nosso planeta como o nosso lar comum; e racionalidade, uma vez que a fé tem de estar em harmonia com a razão (considerada a maior dádiva de Deus ao ser humano)”, clarifica.
Para Victor Forghani Teruel, “essencial nesta religião é o desenvolvimento de qualidades espirituais que nos ajudam na nossa jornada eterna em direção a Deus”. Estas qualidades desenvolvem-se numa matriz de crescente amor e conhecimento. À medida que permitimos que Deus cresça nas nossas mentes e corações, evoluímos na nossa compreensão do universo sico, do ser humano, da sociedade e da vida espiritual. “O cultivo de tais qualidades é inseparável de um contínuo refinamento da nossa conduta, pois as nossas ações vão refletir cada vez mais a nobreza e integridade com que todo o ser humano é dotado”, afirma. E por falar em conduta, “não nos esqueçamos de dois conceitos primordiais para o padrão de vida em comunidade: serviço e adoração”, referem os secretários. Todos sabemos que o trabalho é um aspeto universal e essencial da existência humana. Porém, este “não pode ser reduzido a um mero meio de satisfazer desejos e necessidades. Ele deve encontrar constante expressão no serviço à humanidade”, revela Stella Xavier Rodrigues. ‘Abdu’l-Bahá ensina-nos que: “Todo o esforço, toda a função desempenhada pelo homem, de todo o coração, se for movida pelos mais nobres propósitos e pelo desejo de servir à humanidade, é adoração”. Assim, todas as realizações humanas representam serviço em espírito de adoração a Deus.
Outro aspeto fundamental da doutrina Bahá’í é o facto de o ser humano possuir uma dupla identidade. Como nos explica a secretária de Viana do Castelo, “uma é a
nossa identidade sica, que se extingue no momento da morte do corpo sico. A outra identidade está na nossa alma, que está «ligada» ao corpo enquanto este está vivo e é neste mundo material que inicia o seu desenvolvimento”. ‘Abdu’l-Bahá explicou a relação entre corpo e alma, dizendo que o corpo humano “é como um espelho e a sua alma é como o sol e as suas faculdades mentais são como os raios que emanam dessa fonte de luz”. E acrescentou que a alma “pode descobrir as realidades das coisas, compreender as peculiaridades dos seres e perscrutar os mistérios da existência”. No momento da morte, a alma é separada do corpo e continua a progredir numa viagem eterna para a perfeição. Coloca-se, portanto, uma questão: será que podemos dizer que há «vida» depois da morte? “Sim, existe uma forma de existência após a morte do corpo sico”, menciona. De acordo com as Escrituras Bahá’ís, “o mundo do além é tão diferente deste mundo, quanto este mundo é diferente
daquele mundo da criança que ainda está no ventre materno”. Desta forma, “tal como o mundo fora do ventre materno é muito mais vasto, mais rico e mais interessante do que o mundo no ventre materno, podemos esperar que o mundo que a alma vai encontrar depois da morte do corpo sico também seja mais vasto, mais rico e mais interessante do que este mundo material”, remata.
Quisemos também compreender qual a posição da comunidade Bahá’í relativamente à homossexualidade. “Para os Bahá’ís, a ética sexual baseia-se nos ensinamentos de Bahá’u’lláh. Estes ensinamentos afirmam o valor do impulso sexual, rejeitam o puritanismo sexual, mas reconhecem a necessidade de expressão adequada e autocontrole. Bahá’u’lláh afirma que a família é a base da sociedade e da civilização, que o casamento é uma união entre um homem e uma mulher e que as relações sexuais
STELLA XAVIER RODRIGUES
só são permitidas entre um casal”, realça o secretário da Assembleia Espiritual Nacional. “Note-se que a Fé Bahá’í não tem uma posição quanto às práticas sexuais de pessoas que não são membros da comunidade”, refere, sublinhando que “os Bahá’ís se esforçam para acabar com a discriminação e proteger os direitos humanos fundamentais de todas as pessoas, independentemente da sua orientação sexual, sem promover nem se opor ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo”.
Prestes a terminar esta viagem pelo mundo espiritual dos Bahá’ís, levanta-se uma curiosidade: existem regras para pertencer à comunidade? “Todos os seres humanos têm capacidade para reconhecer um Manifestante de Deus, mas aceitar os seus mandamentos é um requisito para ser membro da comunidade Bahá’í”, explica Stella Xavier Rodrigues. Um Bahá’í deve pôr em prática um conjunto de valores éticos, bem como respeitar certas leis práticas: a oração diária, a não ingestão de bebidas alcoólicas e o jejum anual. “Para dar a conhecer a Fé Bahá’í realizamos várias atividades, nas quais apresentamos os princípios da nossa religião”, admite, frisando que “não estamos obcecados com um forte crescimento numérico. É preferível ter 10 novos crentes bem conscientes do que significa a mensagem de Bahá’u’lláh, do que ter 100 novos crentes que não sabem bem no que se meteram”. E revela ainda que as crianças e os jovens têm um papel vital para a comunidade: “os bahá’ís consideram as crianças e os jovens como o mais precioso tesouro que uma comunidade pode possuir. Neles está a promessa e a garantia do futuro”.
E é desse futuro que falaremos agora. Um futuro encarado com muito otimismo: “Se olharmos para a história das grandes religiões mundiais, percebemos que o processo de crescimento inicial foi lento e, por vezes, tortuoso. Estes primeiros dois séculos de história Bahá’í mostram exatamente isso. Um crescimento lento, mas sólido e consistente. Em algumas localidades, começamos a ver sinais de uma influência social significativa, com uma grande recetividade e interesse no contributo dos Bahá’ís. Claro que isso nem sempre se reflete no número de adesões à comunidade, mas percebemos que somos um agente social influente”, admitem.
Terminada a visita, levamos connosco uma certeza: a de que “se chegarmos ao fim da vida e tivermos a perceção de que contribuímos para fazer deste planeta um lugar melhor para os nossos semelhantes, então isso é sinal de que tivemos uma vida frutífera”. E, por isso, como dizem as Escrituras Bahá’ís, que juntos consigamos fazer com “que cada manhã seja melhor do a que sua véspera e cada amanhã seja mais rico do que ontem”. Encorajamos todos os interessados a conhecerem por si próprios a Fé Bahá’í.