Campus 381

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Jornal-laboratório da Faculdade de Comunicação da UnB | De 22 a 28 de maio de 2012

42 ano

CAMPUS

edição

381

OPERAÇÃO

PF:

dar nome Verdade ? OU MENTIRA?

SEU

AVÔ na

capoeira

A MAIORIA

É CONTRA

Enquete feita pelo Campus mostra que 70% dos alunos entrevistados não concorda com sistema de cotas raciais adotado na UnB


Opinião “Formar campeões.” Essa é uma das plataformas da atual gestão do governo do Distrito Federal lançada com o objetivo de popularizar o esporte na cidade. O poder público chamou para si a tarefa concentrada nos clubes e empresas que têm no desporto sua razão de ser ou fonte de publicidade. A iniciativa é bastante oportuna, visto que o Brasil vai sediar uma Copa do Mundo (2014) e as Olimpíadas (2016). Vamos recepcionar delegações estrangeiras e apresentar o que temos de melhor. Nada mais propício, então, que investir no esporte local. A iniciativa é louvável, não fossem certas ações que a contradizem. Dois dos maiores centros de esporte popular do Distrito Federal, as escolinhas da Secretaria de Estado e Esporte do Distrito Federal (antigo Defer) e o Centro de Educação Física e Alto Rendimento Escolar (Cefare, antigo Cief ), tiveram modalidades canceladas. O Cefare, até 2011, oferecia a prática de 22 modalidades. Hoje abre as portas apenas para natação e musculação e cede espaço para treinos de equipes autônomas. Já o Defer cancelou as

inscrições de alguns dos esportes mais procurados como futebol, basquete e vôlei. Outra oportunidade, criada “para descobrir atletas” que já não estejam em grandes clubes, são os jogos escolares. O objetivo é fomentar o desporto na rede de ensino, para desde cedo formar os atletas da cidade, mas o incentivo à participação no evento não chega nem à metade das escolas de Brasília. Há de se reconhecer, no entanto, que é louvável a iniciativa tomada no início de maio de finalmente abrir oito centros olímpicos distribuídos pelo DF à comunidade durante os finais de semana. De nada adiantava ter espaços tão bem equipados e merecedores de tanto dinheiro público se as pessoas para as quais eles foram criados não podem auferir seus benefícios. Torcemos para que iniciativas como essa continuem a se disseminar, para que a formação de atletas possa deixar de ser uma mera plataforma e de fato apresentar ao mundo o que o país tem de melhor.

Ombudskvinna* A direção de arte da última edição deixou o conjunto diagramação e fotos menos monótono. A capa, as páginas 3 e 5 e a contracapa atraem pelo recorte das imagens e pela ilustração. O Fala, Rovérsio acertou nos irônicos “istas” do Código Florestal, já a Opinião confunde. Depois de “mais importante que legalizar ou não a maconha é discutir se o Brasil está preparado para a mudança”, espera-se uma exposição de pontos de vista antagônicos, com prós e contras. Mas os argumentos se restringem à defesa da legalização. Se essa era a proposta, ela não fica clara. A meditação em sala de aula é interessante, mas a matéria perde o ritmo com as repetições nos três primeiros parágrafos sobre os benefícios para a concentração dos alunos. Poderia ter explorado o estudo do British Journal of Educational Psychology: como a técnica desenvolve tolerância, noções de ética e criatividade (a deixa para um bom especialista). O que falta em Contrata-se, prende-se e descrimina-se está na Memória: hoje a procura de emprego pelos presos em regime

por | DAPHNE DIAS

por | AMANDA MAIA

semi-aberto é maior ou menor que a oferta? Por falar em números, “outras unidades da federação” não se limitam a Goiás. Se a percentagem do DF contrasta com a de outros estados, a repórter deve dar mais exemplos, como o estado com mais e o com menos trabalhadores detentos. E a especialização? A formação oferecida dentro do presídio não é suficiente? Em relação à vaquejada, a reportagem fala de 20 pistas no DF, mas cita apenas quatro e dá a localização de duas. Para quem não pratica o esporte e se interessou pelo tema, resta pesquisar onde estão essas pistas e quem são os personagens fora das competições: fazendeiros, funcionários públicos, estudantes? A crônica seduz com seu texto leve, mas os maiúsculos e minúsculos de “ele” e “ela” parecem falha de edição. *Feminino de ombudsman, termo sueco que significa “provedor de justiça”, a ombudskvinna discute a produção dos jornalistas a partir da perspectiva do leitor.

colunista fictício criado para ironizar situações cotidianas

Os militantes da internet estão em polvorosa. O tema quente das últimas semanas foi o vazamento de fotos íntimas da atriz Carolina Dieckmann. “Internet é terra de ninguém. As fotos já estão nos e-mails. Não adianta impedir mais.” Este comentário é de um internauta em um portal de notícias. E é bem por aí: jogadas na rede, as fotos não têm dono. Assim como aconteceu com Scarlett Johansson, atriz americana, Carolina teve o e-mail invadido. Após o vazamento das fotos, surgiu nas redes sociais uma espécie de embate entre os pró e contra a atriz. Uns diziam que ela foi tola em deixar fotos no computador, outros diziam que o ato de tornar públicas as fotografias intímas era crime. E é. Apesar do Brasil não ter uma legislação específica (como deveria), furto é furto. Quer seja ter os bens levados de sua casa, ou fotografias do seu e-mail. O que está no meu computador é de propriedade minha, e divulgá-los sem minha permissão é crime. Precisou uma celebridade ser vítima da internet para que o Brasil abrisse os olhos para crimes cometidos na internet. No dia 15 de maio a Câmara votou um projeto de lei que tipifica estes crimes. O presidente da Casa, Marco Maia, afirmou que a votação foi realizada apenas por conta do caso de Dieckmann.No entanto, a atitude deve ser: mudar a mentalidade da sociedade machista.

Memória

Polêmicas e discussões a respeito das cotas raciais não são novidade dos dias atuais. Há quatro anos o Campus questionou aos seus leitores: “Qual é a cara do negro?”. A reportagem, de Raquel Magalhães, procurava entender quais eram os critérios utilizados para avaliar se o candidato estava apto, ou não, a concorrer por uma vaga no vestibular da UnB pelo sistema de cotas. O ponto de partida para a matéria foi o burburinho causado pela situação dos irmãos gêmeos idênticos Paula Renata e Paula Rejane e Alan e Alex. Apenas um de cada casal de gêmeos foi aprovado pela banca avaliadora. Foram tempos em que as

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análises dos candidatos eram feitas por meio de fotografias e a olho nu, o que deixava a seleção muito subjetiva. Quatro anos depois da edição 317 de junho de 2007, o Campus retoma o assunto, mas com um enfoque diferente. A constitucionalidade das cotas foi julgada, no último mês, pelo Supremo Tribunal Federal, e após grandes debates, foi validada. Esta edição, porém, mostra o outro lado. O lado daqueles que, apesar de estudar na Universidade de Brasília, não concordam com a reserva de vagas segundo tais critérios. Cotas raciais não são unanimidade, como parecem. E aqueles que não concordam temem mostrar a opinião contrária.

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Editor-chefe Daphne Dias Secretário de Redação Paulo Pimenta Diretor de Arte Thiago Lima Diretora de Fotografia Marcela Nóbrega Projeto Gráfico Carolina Pereira, Ellen Rocha, Luisa Bravo, Mariana Capelo, Patrick Cassimiro e Thiago Lima Revisora Jéssica Paula Prego Professores Sérgio de Sá e Solano Nascimento Jornalista José Luiz Silva ISSN 2237-1850 Brasília/DF - Campus Darcy Ribeiro Faculdade de Comunicação - ICC Ala Norte CEP 70.910-900 Telefones (61) 3107.6498/6501 E-mail campus@unb.br Gráfica Palavra Comunicação Tiragem 4 mil exemplares ACESSE O CAMPUS ONLINE WWW.FAC.UNB.BR/CAMPUSONLINE


Cotidiano

O dilúvio começou na Arca de Noé Referências bíblicas, personagens mitológicos e episódios históricos inspiram a reportagem | BÁRBARA ROMUALDO Polícia Federal a nomear operações diagramação | LUISA BRAVO edição | MARIANA VIEIRA

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s nomes das operações da Polícia Federal estão cada vez mais na moda. Não só porque as ações têm como alvo figuras conhecidas, como empresários e políticos, mas também pelos apelidos criativos que recebem. Pinóquio, contra a exploração ilegal de madeira; Anjo da Guarda, contra a pornografia infantil; Narciso, contra as notas frias da loja de luxo Daslu. A curiosidade é exatamente sobre como é feito o batismo dessas ações. Há um policial responsável por escolher o nome, ou a identificação é feita por qualquer um dos investigadores? Ele trabalha numa sala quieta, com policiais debruçados sobre livros e outros pesquisando dados na internet? Buscam palavras ligadas ao assunto, mas que, ao mesmo tempo, preservem o foco da operação? A ideia surgiu em 2002. Os nomes são decididos entre os próprios delegados que comandam as investigações. O primeiro a “dar nome aos bois” foi o diretor-executivo Zulmar Pimentel, em um ataque ao jogo do bicho no Mato Grosso, na chamada operação Arca de Noé. Depois dela, o dilúvio dos apelidos. Uma mistura de divindades gregas, animais silvestres, expressões em inglês e até trocadilhos peculiares, como a operação Navalha, objeto que fecha em si mesmo e é feito para cortar quem o usa. Ação essa que culminou em 2007 no afastamento do diretor Zulmar, acusado de repassar informações sigilosas a colegas. Na verdade, esse “setor de nomenclaturas” não existe. Eliesio José da Rocha, da Polícia Federal, afirma: “Não há, dentro da PF, um grupo dedicado a denominar as operações, nem a agendar os temas. Um policial sugere o nome, que é aceito ou negado.” O apelido é escolhido com o caso já iniciado, mas ainda em caráter provisório. Ele pode surgir durante a etapa de coleta de provas, por exemplo, e funciona para os profissionais como uma espécie de senha que, assim como nas contas de e-mail, pode ser trocada com o desenrolar da investigação, se for necessário. Como aconteceu na operação Lee Oswald, que mandou para a cadeia o prefeito do município de Presidente Kennedy, no Espírito Santo, e outras 27 pessoas. Começou como operação Batalha. Um segundo nome foi pensado, mas só o terceiro, em referência ao assassino do presidente norte-americano, foi o ideal para o caso. Em certas situações, a nomenclatura chama mais atenção do que a própria ação. Justamente pelas sacadas, que levam em consideração

duas preocupações: o nome precisa ter alguma relação com o caso investigado e deve ser diferente o bastante para manter o assunto em segredo. Para muitos essa tática não passa de uma estratégia. “Ensinam as cartilhas de marketing que o nome facilita na descrição de um produto. E é exatamente o que eles têm feito”, afirma o jurista Sílvio Caracas. Porém, para a doutoranda em Linguística Flávia Maia, é uma forma de chamar a atenção dos brasileiros. “É mais fácil chamar a atenção dos contribuintes atiçando sua curiosidade do que esperar que eles acompanhem os desdobramentos das investigações.” E se engana quem acha que isso é exclusividade da Polícia Federal ou charme tupiniquim. Muitas operações realizadas pela Polícia Civil são batizadas, como a operação Aquarela, que prendeu 19 pessoas suspeitas de participar de uma suposta quadrilha que desviava verbas públicas. E no exterior algumas investigações ficaram famosas, como a operação Mãos Limpas, na Itália, que visava esclarecer casos de corrupção durante a década de 1990, e a Exposure, uma operação internacional da Interpol (Organização Internacional de Polícia Criminal), que conduziu ao indiciamento dez crackers (termo usado para designar quem pratica a quebra de um sistema de segurança de forma ilegal) do grupo Anonymous, acusados de publicar dados confidenciais na Argentina, Chile e Colômbia. A preocupação com os nomes das operações é apenas parte do trabalho da PF, explica Eliesio. “Com os títulos, fica mais fácil administrar internamente as equipes responsáveis por cada caso. A PF chega a realizar até 15 grandes investigações simultaneamente. E os apelidos oficiais acabam tornando o trabalho mais rápido.” Dependendo da ação, ela pode demorar até anos para sair do papel e envolver mais de 400 agentes nas investigações e prisões. Assim que todo esse trabalho começa a resultar em provas, é hora de a PF recolher os louros: ela surpreende os suspeitos tornando pública a operação e realizando as prisões, muitas vezes filmadas por câmeras de TV. Não há filosofia a ser seguida ao criar o nome de uma ação. As operações constam nos documentos oficiais com essas designações, inclusive como forma de facilitar, para o operador que trabalha com os processos, uma identificação rápida e fácil. Nada mais prático do que fazer menção a um apelido que estivesse relacionado a um conjunto de investigações. Mas sempre – aí sim há regra –

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o nome está relacionado ao motivo da ação da Polícia Federal. E quem é que não vai ficar curioso com uma operação chamada Ventania?

(

Operação que desarticulou uma organização criminosa que fabricava e distribuía moedas falsas em sete estados.

)

Sacadinhas

Conheça exemplos de operações da PF e o motivo da escolha do nome

ANACONDA (2003): Cobra que mata a presa quebrando seus ossos lentamente. A operação foi o resultado de uma investigação sobre as negociações ilícitas entre criminosos e membros do Judiciário. MATUSALÉM (2004): Personagem bíblico que viveu 969 anos. A operação investigou fraudes nos ressarcimentos de débitos fiscais no Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). TÊMIS (2007): Deusa grega que representa a Justiça. A operação investigou a suposta venda de decisões pela Justiça Federal de São Paulo. A ideia foi usada pela PF para manter a operação em sigilo. MECENAS (2007): Assim como um mecenas patrocina um artista, o Ministério da Cultura banca projetos. A operação deteve uma quadrilha especializada em fraudes de benefícios culturais. CAIXA DE PANDORA (2009): Caixa mitológica que continha “todos os males”. A operação investigou a suposta caixa preta de distribuição de recursos ilegais à base aliada do Governo do Distrito Federal.

**Carimbos meramente ilustrativos.

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GABRIELA CORREA

decisão unânime do Supremo Tribunal Federal (STF) pela constitucionalidade de cotas para negros e pardos no exame de vestibular da Universidade de Brasília (UnB) reacendeu o debate sobre a adoção do critério de raça na distribuição de direitos. O Campus conversou com alunos da UnB e chegou a um resultado significativo: de 150 estudantes questionados, 105 se declararam contra o sistema de cotas raciais, o que representa 70% dos entrevistados. A maioria argumenta que as cotas deveriam ser de recorte social, para evitar que negros com maior renda ocupem o lugar de brancos de baixa renda. Na UnB, os dados a respeito da condição econômica dos estudantes são sigilosos, portanto não é possível saber a que classe social pertencem predominantemente os alunos que entram pelo sistema de cotas raciais. A despeito disso, alguns estudantes acreditam que quem entra são negros de classe social alta. “Os que são negros e têm dinheiro vão usar as cotas, vão entrar e os pobres vão continuar sem. Acho que as cotas deveriam ser sociais apenas”, defende o estudante de Biotecnologia Guilherme Bentes. Em 2005, foi criado na UnB o Centro de Convivência Negra, com a proposta de oferecer suporte aos alunos cotistas. O coordenador do espaço, Ivair dos Santos, é categórico: “Se fosse depender da opinião dos estudantes, nós não implementaríamos as cotas. Eles têm uma postura pouco solidária, não incorporam as demandas dos estudantes negros da UnB”. O coordenador afirma que boa parte dos alunos mantém alguns preconceitos e que “há um resquício muito conservador em relação a certos temas. Falta interesse no aprofundamento sobre o assunto.”. O argumento é reforçado por Rita Segato, professora do Departamento de Saúde Coletiva da UnB e co-autora do projeto de cotas. Para ela, a questão não merece abordagem puramente opinativa porque a manifestação das pessoas é emitida sem aprofundamento e com base em interesses pessoais. “Essa reação se responde com uma palavra única: desinformação. As pessoas não têm a menor ideia da realidade do país onde moram, acham que olhando um pouco em torno de si vão entender uma realidade que é extremamente complexa”, afirma. O professor Nelson Inocêncio, diretor do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (Neab), também diz que algumas opiniões são construídas “sem subsídios” e que “muitas vezes a sociedade não

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reportagem | THAMARA PEREIRA diagramação | PATRICK CASSIMIRO edição | TAYNARA PRATA

de eficácia, mas é uma política que tem seus ganhos”, pondera. A posição do Diretório Central dos Estudantes (DCE) também diverge da opinião manifestada por mais de dois terços dos estudantes entrevistados: “O sistema de cotas da Universidade de Brasília está implementado há quase uma década, tem eficácia. A posição do DCE é de defesa institucional do sistema. Nós vemos como benéfica uma decisão [do STF] que julga como positivo um modelo de inclusão afirmativa na nossa universidade”, afirma o coordenador-geral, Octávio Torres. No entanto, a autora da ação pela inconstitucionalidade das cotas julgada no STF e procuradora do Distrito Federal, Roberta Fragoso Kaufmann, afirma que as pessoas têm medo de falar sobre o tema. “Eu observo que sou muito solitária na posição de alguém que tem coragem de expressar publicamente sua opinião. A maioria das pessoas que eu conheço é contra cotas, mas ninguém tem coragem de falar isso publicamente porque sabe que vai ser linchado socialmente”, lamenta. Roberta conta que precisou de escolta na saída de palestras e audiências onde defendeu o fim das cotas raciais e já teve seu carro pichado com dizeres agressivos dentro da própria universidade. A procuradora diz que não só é contra as cotas raciais, como qualquer medida afirmativa com base na cor: “Ofende a dignidade da pessoa humana a existência de um tribunal racial. A ideia de raça foi uma invenção de pessoas racistas, é preciso ser desconstruída.”. Roberta acredita que a opinião dos estudantes reflete a da maior parte da sociedade brasileira: “A população é contra a política de cota racial porque percebe nela uma injustiça em relação aos beneficiados. Eu acho que a maioria das pessoas é a favor de ajudar os pobres. Se a cota fosse social, a maioria seria a favor.” O coordenador do Centro de Convivência Negra discorda: “Algumas pessoas ainda têm uma posição muito contrária a isso [cotas raciais], mas a população brasileira de maneira geral é favorável.”. Em pesquisa realizada em 2006 pelo Datafolha, 65% dos

Mais de dois terços dos alunos questionados se dizem contrários à política de cotas raciais. Especialistas apontam resultado como desinformação

ESTUDANTES A estudante de Agronomia Bárbara Souza não concorda com a política. “Quem defende fala que a sociedade tem uma dívida com eles, eu não concordo que tem, acho que nós estamos em outros tempos e já foi paga essa dívida”, afirma. Tam-

principalmente os negros pobres. A procuradora destaca que não desconhece a existência do racismo e que entende como necessária a integração dos negros, mas a partir de outros critérios: “Como aqui no Brasil existe uma correlação entre pobreza e cor, nós podemos fazer a integração dos negros com base na pobreza porque não cria o mito da raça e integra aqueles que mais precisam da ajuda estatal, que são os negros pobres.” A respeito do argumento, Ivair dos Santos diz que “são coisas completamente diferentes”. Ele afirma que não é uma questão simplesmente econômica: “A falta de conhecimento sobre o tema leva a essas distorções, leva a entender que a questão é de desigualdade social e não racial”. Rita Segato também defende que as dimensões da questão racial vão muito além do viés meramente econômico: “É muito difícil para o branco ver o mundo a partir da perspectiva da pessoa negra. Depois do Caso Ari, eu enxerguei um Brasil que eu não tinha enxergado até então”.

O estudante Doroteu Soares entrou no vestibular pelo sistema universal e acredita que o critério para cotas deveria ser a renda

~ Estudantes dizem NAO

Universidade


GABRIELA CORREA

A UnB foi a primeira universidade federal a instituir o sistema de cotas raciais, em 2004, que reserva 20% das vagas de cada curso a estudantes negros e pardos. Nesses oito anos, 6.403 alunos ingressaram na universidade pelo sistema. Em 2014, as cotas completam dez anos, tempo de funcionamento previsto no projeto de cotas. Haverá avaliação do sistema e discussões para decidir se a política permanece, tem modificações ou é extinta.

Pioneira

* O levantamento foi feito com alunos de todas as áreas de ensino da UnB nas duas semanas seguintes à decisão do STF. As únicas respostas possíveis eram: “contra” ou “a favor”.

bém contra a política, o estudante de Física Doroteu Soares entende que “mais justo do que o sistema de cotas exatamente para negros são as cotas direcionadas para quem é menos privilegiado economicamente, porque acaba não tendo uma base tão boa pra encarar o vestibular”. O estudante de Agronomia Caio Rosado também não era a favor da política, mas mudou de opinião com o ingresso no curso. “Antes de entrar na universidade eu era contra, mas hoje no meu curso eu vejo pessoas que entraram por cotas fazendo muito mais valer a vaga do que quem não entrou por cotas”, afirma. Mariana Mota da Silva ingressou no curso de Serviço Social da UnB pelo sistema e defende a política: “A adoção das cotas é muito importante porque a desigualdade e o racismo são presentes e fortes na sociedade, mas acontecem de forma camuflada”. Ela diz ainda observar que os alunos cotistas geralmente pertencem a uma classe social mais baixa. Karen Ofuji, estudante de Biologia, não tem uma posição sobre o assunto. “Acho uma situação muito delicada. Na divulgação da Semana de Consciência Negra um cara simplesmente cuspiu nos panfletos e começou a rasgar. Eu pensei: se está em um nível que as pessoas não toleram, talvez tenha que inserir mais negros para ver se as pessoas, tendo essa convivência, passam a ter respeito”, diz.

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Arivaldo Lima, primeiro negro a cursar o programa de doutorado em Antropologia na UnB e primeiro aluno a ser reprovado em disciplina obrigatória naquele doutorado, em 1998. O estudante de origem humilde poderia perder a bolsa e o curso devido à reprovação. Rita Segato, coordenadora da Pós-graduação em Antropologia à época, afirma que a reprovação era injustificada, por isso foi questionada em processo acadêmico. Segundo ela, o professor da disciplina teria se negado a apontar os erros do aluno nas avaliações. O caso foi levado ao Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe), que concedeu, dois anos depois, aprovação ao estudante. O episódio motivou Rita e o professor José Jorge Carvalho a iniciar um estudo a respeito da situação do negro nas universidades, que resultou na criação do projeto de cotas, em 1999, intitulado Uma proposta de cotas para estudantes negros na Universidade de Brasília.

Caso Ari

A ação julgada no STF decorreu da pesquisa de mestrado da procuradora Roberta Kaufmann, na qual teve orientação do ministro do Supremo Gilmar Mendes, então professor da Faculdade de Direito da UnB. Depois de defender a tese, Roberta procurou entre partidos políticos a permissão para atuar como advogada voluntária no âmbito do STF. Conseguiu, em 2009, com o DEM. “Quem foi atrás do partido fui eu. Eu tenho dificuldade de aceitação por todos os partidos, inclusive pelo próprio Democratas, porque ninguém que tem um mínimo de necessidade do apoio popular consegue falar sobre esse tema. Quem tem a coragem de falar sobre o assunto é apedrejado todos os dias milhões de vezes”, diz.

Ação pela inconstitucionalidade

QUESTÃO SOCIAL “Aqui no Brasil, o negro rico de alguma maneira se embranquece”, afirma Roberta Kaufmann, defendendo que o preconceito no nosso país atinge

brasileiros foram favoráveis às cotas raciais nas universidades. Entre os que têm nível superior, ocorreu uma inversão: a maioria, 55%, se mostrou contra as cotas para negros e 42%, a favor (3% não expressaram opinião formada). A pesquisa concluiu ainda que 87% das pessoas aprovam cotas para pessoas de baixa renda, independentemente da raça. Em 2011, uma pesquisa encomendada pelo partido Democratas (DEM) ao Instituto GPP apontou um resultado diferente: 50,3% dos brasileiros se mostraram contrários à política de cotas raciais nas universidades. Em relação à UnB, a Secretaria de Comunicação informou que não há registro de pesquisas realizadas pela universidade a respeito da opinião dos estudantes sobre o assunto.

Roberta Kaufmann é autora da ação julgada no STF e acha que há pouco espaço para expressar opiniões contrárias à política de cotas

sabe do ganho que determinados programas significam”. Inocêncio ressalta que os resultados da ação afirmativa superam seus questionamentos. “Não existe política pública que tenha 100%


Pesquisa

NÃO minta para ele

JANAINA MONTALVÃO

Estudo feito na UnB sugere mudança de base na identificação de mentirosos por meio da observação reportagem | LUCAS ALVES diagramação | DANIELA ABREU edição | LUISA BRAVO

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ernando Honório Fagnani tinha 25 anos e era recém-graduado em Psicologia quando a série Lie To Me (Fox) lhe chamou a atenção para a detecção de mentiras. O estudante descobriu que havia respaldo científico na teoria que embasou o serviço executado pela equipe da personagem principal. O então Dr. Cal Lightman é baseado em Paul Ekman, referência em linguagem corporal e expressões faciais. Entretanto, Fernando ficou intrigado, já que o protagonista parecia ter certezas absolutas, o que não ocorreria na realidade. O intuito da pesquisa do mestrado para o Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (IP-UnB), finalizada no início deste ano, era perceber a mentira por meio da observação. A outra opção, dentro dos estudos sobre o tema, seria o polígrafo, mas o funcionamento desta máquina, baseado em variações de um padrão, não é totalmente preciso. Fernando explica como se acostumou a julgar possíveis mentirosos nas relações do dia a dia: “Quando alguém mente, diminui os ilustradores, que são gestos usados para ilustrar as palavras faladas, e podem ocorrer alguns manipuladores, como a atitude de coçar a nuca, que são gestos não usados intencionalmente durante uma comunicação ou interação, e difíceis de reconhecer. O julgamento da verdade deve partir da análise de proporções entre as ocorrências dessas situações”. No experimento, vinte alunos da UnB, avisados da proposta, foram filmados. A ocasião pedia que cada um, assistindo cenas agradáveis ou não, falassem como se as figuras fossem belas e interessantes. Como entrevistador da atividade, as questões que Fernando fazia passavam por: “Você comeria vendo esta imagem?”, “Mostraria essa figura para uma criança?”. As imagens mostradas foram escolhidas entre as que recebiam menores notas em avaliação do pesquisador a partir de um grupo específico, e as perguntas foram baseadas em estudos de Paul Ekman. Soldados formandos da Academia da Polícia Militar, em número de 335, deveriam julgar, sem critérios preestabelecidos, quem falava ou não a verdade.

Isaac Falcão Chaves Júnior, 31 anos, gostou da experiência. Após a visita do pesquisador ao grupo, ele quis manter o contato e continuar o aprendizado sobre o tema. Fato explicado pelas quatro funções em que trabalha: Isaac é instrutor de Krav magá (defesa pessoal israelense), estudante contra terrorismo e inteligência pelo Senado Federal e recentemente foi aprovado no Processo Seletivo do Curso de Operações Especiais do Bope-DF, além de ser policial militar. “A detecção de mentiras se encaixa em tudo o que faço hoje, além de que com esse entendimento eu não preciso abordar e levar o suspeito para a delegacia, vou poder monitorá-lo”, diz. O major Leonardo Siqueira dos Santos, Comandante da Escola de Formação de Oficiais da PM-DF, que também acompanhou o experimento, acredita que estudos como esses têm grande chance de serem utilizados pela polícia, “sempre disposta a firmar parcerias na área de pesquisa em segurança pública”, e chega a afirmar: “Talvez seja mais importante para um policial saber entrevistar, ali nas atividades diárias, do que saber utilizar armas de fogo, por serem para casos extremos”. Ter o conhecimento sobre detecção de mentiras por meio da observação pode ser positivo para profissionais de diferentes áreas, como: direito, jornalismo, publicidade e enfermagem. Editor-chefe e apresentador do Jornal do SBT Brasília, Álvaro Pereira considera que um “instrumento eficaz de detecção de mentiras facilitaria enormemente o trabalho do jornalista”, mas aponta: “Ao mesmo tempo, jornalista não é polícia. Não cabe a ele fazer interrogatórios como um policial”. O jornalista Pedro Lucena, hoje editor da TV Brasília, fala sobre a eficácia de um método por meio da observação: “Acredito, mas um ponto é fato: sempre haverá quem minta e nem o mais treinado

Ilustradores: gestos que dão fluência à fala 6

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Manipuladores: gestos que interrompem a fluência da fala e demonstram tensão dos olhos poderá perceber. Tal como existem bons perceptores de mentiras, existem bons atores”. Fernando confia que o diferencial de seu estudo é ser feito no Brasil. Argumenta que é um tema muito trabalhado no exterior, mas com poucas referências brasileiras. Ao final da entrevista esteve diante da pergunta: “E você, mentiu nesta conversa?”. Ele respondeu que não e soltou: “E você, repórter, mentiu nas suas intenções?”. * Modelo das fotos: Mirella Pessoa

Curiosidade Na Idade Média europeia, quando a visão de mundo da Igreja preponderava, os métodos para detecção de mentiras eram relacionados a aspectos religiosos e crenças mágicas. Ali, o acusado era jogado dentro de um saco em um rio e, se afundasse, era considerado culpado, caso boiasse, era inocente. Acreditava-se que esse inocente teria a boa alma salva por intervenção divina. No Brasil, atualmente, é vetado qualquer método para monitorar o mentiroso que infrinja proposição de um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, o princípio da dignidade da pessoa humana, presente no artigo quinto da Constituição de 1988. Na interpretação da lei, todos os procedimentos que levem uma pessoa a produzir provas contra si mesma são proibidos.


Lazer

Os avós da ginga Grupo inspirado na capoeira existe há 13 anos e incentiva vida mais ativa na terceira idade reportagem | LUCAS ALVES E PEDRO PAULO SOUZA diagramação | DANIELA ABREU edição | LUISA BRAVO

S

“Não há uma preocupação por resultado, cada um faz o exercício até seu limite”, afirma Flávia Barros, que tem 69 anos de idade, mas “uma mente de 18”. O chamado Paradão é outro ponto de prática no DF, e fica ao lado da Feira Permanente da QNL, em Taguatinga Norte. E nesse espaço uma das animadas adeptas aos exercícios físicos é Maria Arlinda Morbeck, 60 anos. A senhora acredita que o grupo ajuda a manter o corpo e a mente sãos. “É uma ótima atividade, é lúdico, você

dades para outras faixas etárias, e, em ocasiões especiais, como recreação ou Dia da Família, avós, pais e netos se encontram e interagem. Ele considera que o maior desafio desde o início das ações é fazer com que os idosos saiam de casa e pratiquem exercício. “Depois da capoterapia o incentivo é para que eles montem outros grupos e façam outras atividades, como massagem e dança”, diz ele. Sobre as outras opções que o projeto Capoterapia incentiva, Dona Flávia é direta: “Não me manda fazer isso de artesanato, JANAINA MONTALVÃO sentar para bordar. Minhas mãos são para fazer carinho. Eu preciso é me movimentar”. Marisete Safons, professora da Universidade de Brasília (UnB) e especialista em saúde da terceira idade, afirma que ao realizar um exercício físico o idoso tem ganhos imediatos. “Quando a gente fala de atividade física para idosos, a gente fala em uma dimensão psicobiossocial. E nas primeiras semanas percebe-se uma melhora no convívio social”, afirma. Marisete coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Atividade Física para Idosos, criado na UnB em 1997. Para a professora, a capoterapia é uma atividade com benefícios principalmente sociais e biológicos. “O Gilvan reuniu idosos e isso se tornou uma Quadra de esportes da Praça do Bicalho, em Taguatinga, é um dos núcleos de atividade da capoterapia no DF terapia de grupo, com conversa, roda faz atividade física sem sentir que é uma atividade físide abraço”, diz. Marisete afirma que esta atividade tem ca”, conta. Ela afirma também que se sente com ânimo benefícios, apesar de não haver estudos que comprovem. de uma moça de 20 anos: “Eu pratico a capoterapia e “O importante é que as pessoas se sintam bem e prafico bem comigo mesma, com disposição para realizar tiquem. A Capoterapia tem uma adesão enorme e isso é as atividades. É uma diferença enorme de quando não bom” conclui Marisete. praticava”. A TERAPIA DO EXERCÍCIO Além de ajudar na questão da saúde e amenizar problemas comuns em idosos, como artrite, osteoporose e má circulação do sangue, a Capoterapia se torna um grupo de ajuda entre amigos. Os bons momentos das rodas de exercícios ajudaram Flávia Barros em um período muito difícil. Há cerca de um ano, o marido de Flávia morreu. Pouco depois, ela teve um princípio de derrame cerebral e permaneceu internada por oito dias em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Após sair do hospital, os amigos a queriam de volta às atividades. “Por conta da insistência, eu voltei aos poucos para a Capoterapia. O meu neurologista disse que fiquei quase sem sequelas devido aos exercícios físicos”, afirma Flávia Barros. Mestre Gilvan conta que os encontros ocorrem principalmente entre os idosos, mas também existem ativi-

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PEDRO PAULO SOUZA

ão dezessete pessoas. Ainda somam-se ao grupo o casal que comanda, além de uma criança, que se destaca. São 8h06 da quarta-feira 9 de maio e o frio que vem com o vento não desanima os verdadeiros atletas. Uns utilizam agasalho, outros não aceitam esse tipo de artifício, afinal estão aqui para se exercitar. Após os cumprimentos iniciais, músicas embalam todo tempo de atividade: “A cobra não tem pé, a cobra não tem mão” ou “fui no tororó beber água e não achei, achei a morena que no tororó deixei”. Outra cantiga falava algo sobre uma Dona Maria mexendo doce na panela, oportunidade para movimento dos braços. A criança, com três ou quatro anos de idade, fica sentada ao lado na quadra de esportes. É uma hora de encontro, e ela passa tranquilamente: eles vão para a esquerda e para a direita, ficam abaixados, crescem no alongamento, fazem rodas, andam em círculos e em “trenzinho”. Em 1998, Mestre Gilvan teve uma ideia que mudaria a vida de muitos idosos. O mestre de capoeira visitava o Centro de Saúde Número 4, na região da Guariroba, em Ceilândia. Ali ele conversava com pacientes sobre a qualidade de vida. Aparecia com o berimbau e, com o pouco tempo que tinha para pequenos exercícios, animava os presentes, que não sabiam exatamente o que estavam fazendo, mas que gostavam. O interesse aumentou, a proposta parecia ter cativado as pessoas naquele ano. Em 1999, o projeto Capoterapia trouxe a prática da “capoterapia”, que, nas palavras do idealizador, “tinha e tem o objetivo de mostrar que qualquer pessoa pode praticar capoeira, mas de formas diferentes, com particularidades”. Gilvan logo acreditou que o projeto daria certo, viu a participação da comunidade e que aos poucos, “pelo boca a boca”, a quantidade de interessados só aumentava. Hoje em média são, de acordo com ele, 50 mil participantes no Brasil e algo em torno de 1,2 mil em 23 núcleos de atividade do Distrito Federal. Confiante em receber apoio do governo local, o mestre espera alcançar 100 núcleos até o final deste ano no DF, contando com comunidades rurais e academias comunitárias de ginástica. O objetivo central do projeto Capoterapia é mostrar que qualquer pessoa pode praticar uma atividade física. Essa modalidade não é a capoeira propriamente dita. É uma liberdade da ginga, com alongamentos e outros exercícios, com o propósito claro de ninguém ficar parado.

Após exercícios, praticantes rezam por Mestre Gilvan, no encontro especial para comemorar seu aniversário de 50 anos

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reportagem | TIAGO AMATE diagramação | PATRICK CASSIMIRO edição | MARIANA VIEIRA

INGRIDY PEIXOTO

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o campus Darcy Ribeiro pessoas caminham com pressa pelo saguão da Biblioteca Central (BCE). Difícil explicar como uma mulher de dois metros de altura pouco seja notada pelos frequentadores da biblioteca. Aqueles que vêm e vão observam-na sempre com a mesma incógnita expressão, como se nunca tivessem conhecido figura mais misteriosa. Comparação com divindades não seria mera coincidência. Chama-se Minerva em homenagem à deusa romana da civilização, sabedoria, estratégia e artes. Na mão direita traz uma lança pontiaguda, símbolo da guerra, e, enroscada no braço esquerdo, uma serpente remete às habilidades humanas nas tarefas do cotidiano. Esculpida em bronze patinado, Minerva veio ao mundo em 1963 pelas mãos do famoso escultor mineiro Alfredo Ceschiatti (1918 – 1989). As motivações do artista são desconhecidas. Sabe-se que a mulher de bronze surgiu no mesmo ano em que Ceschiatti chegou à UnB. E só. Darcy Ribeiro o convidou para lecionar no antigo Instituto Central de Artes (ICA), onde ficou por dois anos até a demissão coletiva dos professores em 1965. “Não temos uma história muito clara da fase do Ceschiatti pelo ICA. Ficou resumida numa passagem episódica”, constata Miguel Simão, atual professor de escultura da UnB. Ceschiatti tem obras espalhadas por Brasília – desde A Justiça, no Supremo Tribunal Federal, até Os evangelistas, na Catedral. “Não sou escultor de bibelô”, disse em entrevista para O Globo na década de 1970. “Prefiro as grandes peças ao ar livre, onde se pode explorar mais planos, sombras, luzes. Escultura não deve ser um ‘objetozinho’ de decoração”, concluiu. O escultor não é o único a pensar assim. “Imagino ela mais satisfeita fazendo companhia a leitores en plein air [ao ar livre], quem sabe numa vereda preparada pelo Burle Marx”, sugere o professor de História da Arte Pedro Alvim. “Não acho que a Minerva fi-

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que muito bem no saguão da BCE”, opina. Ladeada à esquerda pelas ilhas de atendimento da biblioteca, onde pequenas filas se formam, a sábia deusa acompanha diariamente o empréstimo e a devolução de livros daqueles que sequer lhe fitam o rosto. A figura passou por outros pontos da UnB antes de se fixar na BCE. Aos 49 anos, carrega histórias de um passado agitado. Fotografias de 1968 exibem-na no hall do ICA, período em que o jornal-laboratório Planalto, da Faculdade de Comunicação da UnB, anunciou a crise que o Instituto dividia com a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU). Aglutinada entre cartazes de efeito, Minerva presenciava a escassez de professores, cujo ápice foi a demissão de aproximadamente 200 mestres da Universidade. No mesmo ano, foi estrela de vídeo amador. Trecho veiculado no registro cinematográfico mais importante sobre o período da ditadura dentro da UnB, o documentário Barra 68, do cineasta Vladimir Carvalho, reconstrói a história dos alunos que se esconderam no antigo ICA durante uma invasão militar. Minerva presenciou tudo. “Foi uma testemunha de bronze, mesmo na mudez. Se falasse, tenho certeza de que seu voto seria a favor dos estudantes”, brinca Vladimir. A mulher de bronze também passou anos no prédio da reitoria, revezando-se entre o auditório e o gabinete. Entre 80 e 90, migrou de vez para a BCE. BRONZE VALE OURO “Essa escultura é muito boa! Que a Universidade zele pela peça. A assinatura de Ceschiatti é rara e revela um período de produção anterior ao de maior destaque dele em Brasília. Tudo indica que seja única, feita especialmente para a UnB”, alerta o marchand Celso Albano, de 82 anos. “A Minerva vale pelo menos R$ 120 mil. Num leilão isso ainda aumenta”, estima. Hoje, Minerva acompanha piadas internas e serve até de algoz. “Quando está zangada, a chefe do setor nos ameaça cortar a cabeça para pendurá-la na Minerva”, conta aos risos uma bibliotecária que não se iden-

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MIN

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INGRIDY PEIXOTO

A anônima da biblioteca

perfil

tificou. A mulher de bronze acumula situações inusitadas. “Uma vez encontrei uma flor na mão da estátua”, lembra Karoline Teotônio, bibliotecária, que à época não pensou duas vezes ao catar a máquina para registrar a brincadeira. “Achei muito engraçado”, comenta, sorridente. Alguns visitantes não se intimidam. “À noite eu já vi um homem apertando os seios da escultura. São até bem coisadinhos, né? O cara se aproximou e deu aquela apertadinha”, deixa escapar Jade Dantas, estagiária técnica da BCE. Quem tem histórias para contar é Nea Macedo, bibliotecária na BCE desde 1994. Ela e a atual diretora interina, Neide Gomes, foram pegas de surpresa por “uma mulher meio descompensada, de uns 30 e poucos anos”, que teimava em vestir a Minerva. “Olha, por que vocês deixam essa moça nua?”, Nea reproduz a fala às gargalhadas. “Vou trazer um vestido de casa para colocar nela.” Faz anos que Nea conhece Minerva. Desde que chegou percebe a indiferença dos frequentadores da BCE à deusa. Acha contraditório ter conhecido estrangeiros que foram à biblioteca só para conhecer de perto a obra de Ceschiatti. Larissa Vidal, atendente no balcão de empréstimos, atenta para um fato: “Uma vez um menino que chegou com a irmã na biblioteca não se segurou de curiosidade. Logo veio perguntar : ‘quem é essa pessoa? Por que está ali, daquela cor? ’”. Minerva não pode responder. Às vezes esquecem que ela é apenas uma estátua.


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