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Categoria: Direito Penal
Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida
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Boletim informativo do Canal Ciências Criminais. – Vol. 1, n. 1 (2015). – Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2015-. v. ; 21 cm.
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978-85-8440-355-4 1. Canal Ciências Criminais - Periódicos. 2. Criminologia Periódicos. 3. Direito penal - Periódicos. CDD 364.098
Canal Ciências Criminais Diretor Editorial Bernardo de Azevedo e Souza Colunistas Anderson Figueira da Roza André Peixoto de Souza Adriane da Fonseca Pires Bernardo de Azevedo e Souza Bruno Espiñeira Lemos Cezar de Lima Chiavelli Facenda Falavigno Coriolano Camargo Cristina Sleiman Daniel Kessler de Oliveira Diógenes V. Hassan Ribeiro Diorgeres de Assis Victorio Eugênia Villa Fauzi Hassan Choukr Felipe Faoro Bertoni Francisco Sannini Neto Henrique Saibro Ingrid Bays Jean de Menezes Severo Lenio Luiz Streck Marcelo Crespo Mariana Muniz Cappellari Maiquel Wermuth Ricardo Breier Ruchester M. Barbosa Thiago M. Minagé Vilvana Damiani Zanellato Yuri Felix
Apresentação No ano de 2012, um jovem grupo de pesquisadores de Porto Alegre (RS) teve a ideia de desenvolver um espaço virtual para publicação de seus textos e artigos. O objetivo era promover o constante diálogo sobre as mais variadas temáticas. Apaixonados pelas ciências criminais, os estudantes criaram, à época, um blog que levava o mesmo nome, contando com dois textos inaugurais. A despeito da iniciativa, o projeto acabou não avançando em virtude de compromissos profissionais dos potenciais colaboradores. Nos meses que se sucederam, a ideia foi deixada de lado. O blog havia sido esquecido e os artigos perdidos na imensidão de informações disponibilizadas na rede. Foi durante um café, no segundo semestre de 2013, que se renovou a oportunidade de discutir a iniciativa. “Por que não criar um instituto?”, perguntou um dos colegas, com grande entusiasmo, aos demais que estavam na mesa. A proposta pareceu ótima, não havendo qualquer objeção por parte dos presentes: nos próximos dias seria registrado um instituto para o estudo específico de temas relacionados às ciências criminais. Superadas as dificuldades iniciais – tais como a composição da presidência e a criação da identidade visual –, o instituto tomou forma. Restava o registro para efetivar a sua existência. Porém, com o passar dos meses, mais cafés e algumas reuniões, o jovem grupo de pesquisadores percebeu que um instituto local talvez não consistisse na melhor ferramenta para alcançar a pretensão inicialmente almejada: promover o saber jurídico para estudantes de direito e atores judiciários de todo o Brasil. Pela segunda vez, portanto, a iniciativa havia sido abandonada, mas o amadurecimento do conjunto de experiências inexitosas originou uma terceira e nova ideia, distinta de tudo o que havia sido desenvolvido até o momento. Era o início de um canal virtual voltado
Sumário especificamente às ciências criminais, o nascedouro de um veículo ativo de divulgação de conhecimento nas redes sociais e na Internet. Surgia, desse modo, em agosto de 2014, o Canal Ciências Criminais. Com o objetivo de filtrar a receptividade do público, a proposta inicialmente consistiu na veiculação de audiocasts: áudios de curta duração tratando de determinado assunto relacionado às ciências criminais. A cada semana, um novo convidado abordava um tema inédito, sendo o conteúdo publicado sempre às quintas-feiras. A aceitação do público foi maior do que o esperado: em poucos meses de criação, a página oficial do Canal Ciências Criminais no Facebook já contava com milhares de seguidores. A excelente receptividade em relação aos conteúdos divulgados conduziu, naturalmente, a uma nova fase do projeto: a criação de um sítio eletrônico. Foi lançado assim, no mês de abril de 2015, o website <www.canalcienciascriminais.com.br>, transformando o canal num portal jurídico à disposição de todos. Hoje, o Canal Ciências Criminais veicula diariamente notícias e artigos voltados à esfera criminal, buscando atender a demanda dos milhares de usuários que acessam o portal em busca de informação e conhecimento. O alcance dos textos ultrapassou barreiras continentais: além do público-alvo inicial (Brasil), o canal conta, dentre outros países, com leitores de Portugal, Espanha, Angola e Moçambique. O lançamento da primeira edição do Boletim Informativo, em parceria com a renomada e prestigiosa editora Lumen Juris, configura um passo imprescindível para possibilitar a constante atualização do saber aos estudantes de direito, atores judiciários e demais interessados, estrutura fundante e basilar do Canal Ciências Criminais.
Bernardo de Azevedo e Souza Diretor Editorial
Uma Breve Análise Quanto à Criminalização da Conduta de Fornecer Bebidas a Menores________________ 2 Augusto Tarradt Vilela
Lavagem de Dinheiro: A (In)Definição da Doutrina Quanto ao Bem Jurídico Tutelado____ 8 Cezar de Lima
O Interrogatório do Inimigo________________ 13 Ingrid Bays
O Processo Penal como Pena________________ 18 José Antônio Lourenço Júnior
Populismo Penal: A Fé na Transcendência do Poder Punitivo Estatal__________________ 24 Letícia de Souza Furtado
Por Que a Ordem Pública Prende Tanto?_____ 30 Paulo Silas Taporosky Filho
O Crime de Ameaça e a (Des)Proporcionalidade da Medida Protetiva de Afastamento do Lar____________ 35 Ruiz Ritter
A Moral dos Jogos: A Relação entre Violência, Video Games e Alteridade________ 39 Schleiden Nunes Pimenta
Informativo de Jurisprudência______________ 44
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Uma Breve Análise Quanto à Criminalização da Conduta de Fornecer Bebidas a Menores Augusto Tarradt Vilela
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sociedade deparou-se com a notícia de que “plenário aprova projeto que criminaliza venda de bebidas alcoólicas a menores”[1], projeto n. 508/2008, cuja autoria é do Sen. Humberto Costa e inclui ao Estatuto da Criança e do Adolescente os arts. 242-A e 258-C, normas essas que devem ser analisadas atentamente, pois, como todo texto penal, causam grandes reflexos na sociedade. Inicia-se, então, pelo art. 242-A, cuja redação é: “Vender, fornecer ainda que gratuitamente, servir ou entregar, de qualquer forma, a criança ou adolescente bebida alcoólica: Pena – reclusão, de 3 (três) anos a 6 (seis) anos”. A exposição de motivos da norma refere que se faz necessária, para extinguir a discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da adequação típica da conduta de fornecer bebida alcoólica a menores, se enquadrar no art. 63, inc. I, da Lei das Contravenções Penais, ou no art. 243 do ECA, sendo que o Superior Tribunal de Justiça teria consolidado seu entendimento na tipificação da referida ação a esse último texto legal. A fim de que se tenha uma melhor percepção do porquê da discussão quanto à aplicação do art. 63 da Lei de Contravenções Penais e art. 243 do ECA, consoante o entendimento do STJ, o caso deve ser efetivamente específico para a adequação às regras 2
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mencionadas. Isso porque a contravenção referida abarca tão somente o verbo nuclear “servir” (e não os verbos oferecer, dar, vender, entre outros). Já o delito estabelecido no ECA não realiza diferenciação entre “oferecer bebida alcoólica” e “produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica ainda que por utilização indevida”, dicotomia essa realizada pelo art. 81 do estatuto, esse que estabelece os produtos proibidos a serem vendidos aos menores, o que demonstra a inviabilidade de reconhecer a bebida alcoólica inserida no tipo do art. 243 do mesmo diploma, sob pena de realizar-se analogia in malam partem.[2] Claro o entendimento da Corte Superior, contudo, não é objetivo desse artigo discutir essa posição, mas sim a necessária tipificação criminal dessa conduta e a austera intervenção do Estado pela via mais gravosa nas relações sociais. O projeto possui algumas precariedades em sua formação, tal como a quantificação da pena privativa de liberdade, que é equiparada ao do delito de oferecimento de arma, ou seja, se você estiver em dúvida entre fornecer uma arma ou uma cerveja ao menor, ofereça a arma, pois a pena será a mesma e, provavelmente, você estará recebendo mais, uma incoerência total(!), até porque a bebida, ainda que causadora de dependência, não necessariamente a desenvolverá, mas se sabe que a arma serve apenas para duas finalidades, ferir ou matar. Afora essa contrariedade, temos a expansão do direito penal para repressão de uma conduta não relevante à ultima ratio, por isso que se tem afirmado a existência de uma “prostituição” desse direito, pois esse tem se submetido a qualquer serviço, incumbindo ao direito penal a resolução de conflitos.
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A intervenção mínima do Estado já não existe como deveria, pois sua interferência teria de ocorrer excepcionalmente, não como regra. ROXIN[3] defende essa exceção do direito penal quando afirma que “A proteção de bens jurídicos não se realiza só mediante o Direito Penal, senão que nessa missão cooperam todo o instrumental do ordenamento jurídico. O Direito penal é, inclusive, a última dentre todas as medidas protetoras que devem ser consideradas, quer dizer que somente se pode intervir quando falhem outros meios de solução social do problema - como a ação civil, os regulamentos de polícia, as sanções não penais etc. Por isso se denomina a pena como a ‘ultima ratio da política social’ e se define sua missão como proteção subsidiária de bens jurídicos”.
O direito penal não foi construído para que todas as condutas tidas como inadequadas, repulsivas ou, até mesmo, socialmente ilícitas, entre outras, fossem reprimidas por essa ação desproporcional do Estado, em que esse move todas suas forças para obstar a prática de determinado agir (ou contra determinada pessoa).
Fala-se, então, da fragmentariedade do direito penal, em que a legislação criminal tutelará apenas os bens jurídicos cuja inviolabilidade causaria danos extremamente graves, não sendo possível uma “incriminação legal sem que haja necessidade”[4].
A discussão, neste ponto, não é a sanção em si, seja a multa, seja a interdição do local, pois se defende que medidas como essas devam ser tomadas por via administrativa. Entretanto, a proporcionalidade da penalização afasta-se da razoabilidade. O Estado deve repreender condutas, punir aqueles que descumprem a lei (independentemente da esfera utilizada), todavia, sua função não é causar a calamidade, tampouco arruinar negócios.
O uso demasiado do direito penal descaracteriza sua natureza, implicando ineficiência de sua atuação, é o que afirma QUEIROZ[5] quanto à não intervenção do direito penal caso “se revele claramente ineficaz, ou, pior ainda, contraproducente, como é o caso do lenocínio, aborto, ‘jogo do bicho’ [...]”. Não se está propondo uma consonância ao oferecimento de bebidas alcoólicas a menores, mas que as medidas devem ser tomadas proporcionalmente ao seu caso, o que demonstra inviabilidade de repreender, pela via penal, uma conduta quase socialmente adequada. São várias as medidas que poderiam ser aplicadas, principalmente administrativas, tais como multa onerosa ao estabelecimento, interdição temporária do local, perda de benefícios, medidas diversas da reprimenda penal e, muitas vezes, mais eficazes, porquanto possuem cunho pecuniário, fazendo com que as empresas orientem melhor seus funcionários ao não oferecimento/venda da bebida a menores. 4
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Outra questão é a multa prevista no artigo 258-C, que detém a seguinte redação: “Desobedecer à proibição constante do art. 81, II, desta Lei: Pena – multa de R$ 30.000,00 (trinta mil reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais). Medida Administrativa – interdição do estabelecimento comercial até o efetivo recolhimento da multa aplicada.”.
O valor mínimo da sanção do artigo 253-C, muitas vezes, pode ser equivalente a 5 vezes o quantum do fluxo de caixa de uma pequena empresa, podendo-se influenciar na quebra do negócio, gerando desemprego de alguns que trabalham no local, pois o estabelecimento de “Seu João”, em que esse recebe seus R$3.000,00 mensais e consegue pagar a seus dois funcionários um salário mínimo, será interditado até que pague os R$30.000,00 (no mínimo) de multa. Então, Seu João depara-se com a seguinte situação: pagar a multa ou fechar seu botequim e, se conseguir, abrir outro. A norma torna-se completamente inviável, pois em vez de permitir que os interpretes do direito avaliassem a situação praticada pela empresa e o magistrado aplicasse uma pena proporcional, pretendeu impor um caos, pois ao mesmo tempo em que “Seu João” terá de Ano 01 | Nº 01 | 978-85-8440-355-4 | 2015/02
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fazer o esforço anômalo e, bem provável, demitir seus funcionários, causando mais problemas (como se o Brasil estivesse em fase de garantir emprego a todos), as grandes empresas, como as redes de supermercados, continuarão vendendo bebidas a menores, pois a fiscalização, como sempre, será baixa, valerá a pena correr o risco de pagar os R$ 100.000,00, receber o lucro e, mais, captar os clientes de “Seu João”, que teve de fechar seu estabelecimento. A lei deve ser uma imposição justa do Estado, não surgir de forma que ao mesmo tempo em que se resolve impedir determinadas ações, crie outros problemas que, talvez, possuam caráter tão gravoso quanto à conduta que está sendo repreendida.
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[5] QUEIROZ, Paulo. Funções do Direito Penal: legitimação versus deslegitimação do sistema penal. 2. ed. Vol. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 120.
Augusto Tarradt Vilela - Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela UNISINOS. Especialista em Processo Penal pelo Instituto de Direito Penal Económico Europeu da Universidade de Coimbra. Advogado criminalista.
O Projeto de Lei 508 de 2011, além de tipificar criminalmente uma conduta que poderia ser repelida por meios administrativos, abusando do direito penal para impelir a alteração cultural, também prevê uma penalidade que, como sempre, prejudica aos menos favorecidos e pouco gera impacto aos grandes. NOTAS [1] Sítio da Câmara dos Deputados, 24/02/2015. Disponível em: <http://bit.ly/1Kqy1SE>. [2] REsp 942.288/RS, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 28/02/2008, DJe 31/03/2008. [3] Apud GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Impetus: Rio de Janeiro, 2011. p. 48. [4] ROCHA, Fernando A. N. Galvão da. Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Impetus, 2004. p. 90.
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Lavagem de Dinheiro: A (In) Definição da Doutrina Quanto ao Bem Jurídico Tutelado Cezar de Lima
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uando estudamos o delito de Lavagem de Dinheiro, disciplinado no art. 1º da lei nº 9.613/98, entendemos que essa prática delituosa ocorre no instante que o autor ocultar ou dissimular a origem de bens ou valores oriundos de qualquer infração penal. No entanto, quando analisamos qual é o bem jurídico tutelado pelo delito encontramos mais dúvidas do que respostas. Nesse sentido, faz-se necessário uma análise acadêmica sobre o tema, sobretudo para compreender as correntes existentes na doutrina. Inicialmente, é importante que façamos uma pequena abordagem sobre a ideia de bem jurídico como um todo para, com isso, analisarmos na essência a tutela protegia pelo crime de Lavagem de Capitais. Nesse aspecto, TAVARES apresenta uma importante determinação sobre bem jurídico, referindo este como sendo um “Elemento da própria condição do sujeito e de sua projeção social e nesse sentido pode ser entendido, assim, como um valor que se incorpora à norma como seu objeto de referência real” constituindo, assim, como o primeiro elemento da estrutura típica.[1] Da mesma forma, ROXIN[2] alerta que a criação de um bem jurídico deve derivar dos fundamentos expressos na Constituição do Estado de Direito, respeitando as garantias do cidadão, de forma que se possam fixar os marcos limitadores do poder punitivo estatal.
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O bem jurídico tutelado pelo tipo penal é a forma pela qual o legislador delimita as condutas sancionadoras, estabelecendo, assim uma segurança jurídica indispensável para viver em sociedade. Por consequência, caso o Estado ultrapasse os limites criados pelas barreiras da punibilidade previamente estabelecidas pela norma penal, estará afetando diretamente a vida social dos indivíduos.[3] Pois bem, e qual é o objeto tutelado pelo crime de Lavagem de Dinheiro? Se analisarmos brevemente o direito espanhol,[4] verificaremos que por lá, assim como aqui no Brasil, o tema também não é pacífico. Uma parte da doutrina [5] defende o caráter pluriofensivo do delito, indicando além da ordem socioeconômica, a administração da justiça como objeto tutelado. Por outro lado, há quem defenda a ordem socioeconômica como sendo o bem tutelado pela Lavagem de capitais, como salienta VILLAREJO: “Sería, entonces, el orden socio-económico el bien jurídico indiciariamente tutelado por el artículo 301 del Código penal de 1995. Ahora bien, otra cosa es que pueda siquiera considerarse que el orden socioeconómico reviste ese carácter de bien jurídico.”[6] No âmbito nacional, a controvérsia é ainda maior, sendo possível encontrar três correntes distintas: (i) a primeira sustenta que o bem tutelado pela lavagem é a ordem econômica; ao passo que (ii) a segunda defende que o bem a ser tutelado é administração da justiça; e por fim, uma (iii) terceira corrente argumenta no sentido que a tutela da Lavagem de Dinheiro atinge não somente a ordem econômica como a administração da justiça e o bem jurídico protegido pelo crime antecedente.[7] À primeira vista, MAIA[8], BOTTINI E BADARÓ apontam a administração da justiça como sendo o objeto jurídico predominante a ser protegido pelo tipo da lavagem de dinheiro. Para eles, a conduta afeta a capacidade da justiça de exercer suas funções de investigação, processamento, julgamento e recuperação do produto do delito.[9] Ano 01 | Nº 01 | 978-85-8440-355-4 | 2015/02
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Em contrapartida, há uma forte corrente cuja definição nos parece mais adequada em se tratando de tutela na Lavagem de Capitais. A ordem econômica é considerada por muitos autores[10] como sendo o bem jurídico a ser tutelado, até porque a inclusão do capital ilícito com aparência lícita na economia prejudica o desenvolvimento normal da ordem econômica. Seguindo este entendimento, DE CARLI argumenta que o crime de Lavagem de Dinheiro surge para proteger a ordem socioeconômica, pois, segundo sua compreensão, a lavagem de dinheiro apresenta implicações, como: a) distorções econômicas; b) risco à integridade e à reputação do sistema financeiro; c) diminuição dos recursos governamentais; d) repercussões socioeconômicas.[11] Por esses fundamentos, entendemos que a Lei de combate à Lavagem de Dinheiro tutela a ordem econômica, até porque a pratica do crime pode abalar o controle da economia pelo Estado, além de causar problemas na liquidez dos bancos e influenciar no desequilíbrio da livre concorrência. Além do mais, a administração da justiça como bem jurídico tutelado acarretará na ampliação demasiada dos limites da ofensividade do delito. Em suma, uma economia com valores inseridos por meio ilícito é um sistema sem transparência, sem confiança, sem concorrência honesta, em síntese, é um enorme prejuízo à ordem econômica. NOTAS [1] TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. Belo Horizonte: Del Rey. 2000. p. 179. [2] ROXIN, Claus, apud CALLEGARI, André Luís. Lavagem de dinheiro: aspectos penais da Lei 9.613/98. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 81.
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[3] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo. 2. ed. Martin Claret. 2009. p. 68. [4] VILLAREJO, Julio Díaz-Maroto. Algumas notas sobre el delito de blanqueo de capitales. Revista de Derecho Y Criminologia, 2ª Época. nº extraordinario 1º. 2000. p. 477. [5] FERNANDEZ, Miguel Bajo, apud VILLAREJO, Julio Díaz-Maroto. Algumas notas sobre el delito de blanqueo de capitales. Revista de Derecho Y Criminologia, 2ª Época. nº extraordinario 1º. 2000. p. 477. [6] VILLAREJO, Julio Díaz-Maroto. Algumas notas sobre el delito de blanqueo de capitales. Revista de Derecho Y Criminologia, 2ª Época. nº extraordinario 1º. 2000. p. 477. [7] BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Crimes federais: Estelionato – contra a administração pública, a previdência social, a ordem tributária, o sistema financeiro nacional, as telecomunicações e as licitações – Quadrilha ou Bando – Organizações Criminosas – Moeda Falsa – Abuso de Autoridade – Interceptação telefônica – Tortura – Tráfico transnacionais de drogas, pessoas, crianças e armas – Lavagem de Dinheiro – Genocídio – Invasão de terras da União – Estatuto do índio – Estatuto do Estrangeiro. 4. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 813. [8] MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro: lavagem de ativos provenientes de crime. Anotações às disposições criminais da Lei nº. 9613/98. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 57. [9] BOTTINI, Pierpaolo Cruz; BADARÓ, Gustavo Henrique. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei 9.613/98, com alterações da Lei 12.683/2012. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p.53-62.
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[10] São defensores desta teoria: CALLEGARI, André Luís. Lavagem de dinheiro: aspectos penais da Lei 9.613/98. 2. ed. ver. Atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p.85. PITOMBO, Antônio Sérgio de Moraes. Lavagem de dinheiro: a tipicidade do crime antecedente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p.92. PRADO, Luiz Régis. Direito Penal Econômico: ordem econômica, relação de consumo, sistema financeiro, ordem tributária, sistema previdenciário, lavagem de dinheiro, crime organizado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p.360. [11] DE CARLI, Carla Veríssimo. Lavagem de dinheiro: ideologia da criminalização e análise do discurso. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2012. p.106-110.
Cezar de Lima - Pós-graduando em Ciências Penais pela PUCRS. Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS. Advogado.
O Interrogatório do Inimigo
Ingrid Bays
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artigo 400 do Código de Processo Penal determina a ordem em que ocorrerá a realização da audiência de instrução, qual seja: a oitiva da vítima; oitiva das testemunhas arroladas pela acusação e, após, pela defesa; eventuais esclarecimentos de peritos; acareações e reconhecimento de pessoas e coisas; e, por fim, o interrogatório. Com isso, resta inequívoco que, a partir da Lei nº 11.719/08, no procedimento comum ordinário o interrogatório do acusado é o último ato da instrução. O interrogatório, como bem se sabe, é meio para que seja exercido o direito à ampla defesa na forma da autodefesa, passando a considerar o acusado não apenas como mero objeto processual, mas lhe garantindo a condição de sujeito de direitos no processo.[1] Assim, o interrogatório se diferencia do trabalho exercido pela defesa técnica do acusado, pois permite a esse que se manifeste da maneira que entender mais conveniente para a sua própria defesa, permitindo que fale (autodefesa positiva) ou permaneça em silêncio (autodefesa negativa), sem que isso possa ser interpretado em prejuízo de sua defesa (artigo 186, parágrafo único, do Código de Processo Penal), a fim de que não seja desrespeitado o princípio da presunção de inocência. Para que o direito de autodefesa possa ser exercido de forma plena é lógico que o interrogatório deve ser exercido por derradeiro, a fim
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de que ocorra somente depois de toda a prova ser devidamente colhida, possibilitando ao acusado rebater todos os fatos a ele imputados, mediante a escolha da opção mais favorável aos interesses defensivos. Ocorre que, ao contrário do disposto no Código de Processo Penal, há procedimentos especiais que possuem regulamento diverso do ora exposto. A exemplo disso, verifica-se a Lei nº 8.038/1990, que institui normas procedimentais para os processos que especifica, perante o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal (foro por prerrogativa de função) e a Lei nº 11.343/2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências (vulgarmente conhecida por “lei de drogas”). Em ambas as leis há determinação expressa de que o interrogatório é o ato que inicia a instrução, ou seja, diverge do dispositivo contido no Código de Processo Penal. A problemática da discussão baseia-se na discrepância dos julgamentos realizados pelo Supremo Tribunal Federal, quando, notadamente, atribui aos réus tratamento desigual, atentando contra o princípio da isonomia.[2] No julgamento da AP 528 AgR/DF, restou decidido pelo órgão que sendo o artigo 400 do Código de Processo Penal mais benéfico ao acusado, este deveria ser aplicado em detrimento ao artigo 7º da Lei nº 8.038/90, em razão de uma “interpretação sistemática e teleológica do direito”. Há referência, ainda, no acórdão, ao fato de que o artigo do Código de Processo Penal “possibilita ao réu exercer de modo mais eficaz a sua defesa”, pois, “no mínimo conferirá ao acusado a oportunidade para esclarecer divergências e incongruências que, não raramente, afloraram durante a edificação do conjunto probatório”.[3]
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Todavia, em absoluta desigualdade, quando do julgamento do RHC nº 116713/MG a Corte Superior se posicionou no sentido de que, sendo o acusado processado pelo delito de tráfico de drogas, sob a égide da Lei nº 11.343/06, o procedimento a ser adotado é o especial, pois, “tratando-se de lei especial, esta deve prevalecer, uma vez que a lei especial derroga a geral, mesmo que esta seja posterior”. Não obstante, indicaram que seria caso de nulidade relativa, cujo prejuízo deveria ser demonstrado, o que não teria ocorrido no caso em concreto.[4] É de se destacar que levar em consideração somente o critério da especialidade obsta o cidadão de exercer seus direitos consagrados pela Constituição Federal, pois se elimina a análise dos critérios temporal e da interpretação da lei mais benéfica.[5] Diante disso, denota-se que há resquícios advindos do direito penal do inimigo quando o crime que está sendo julgado é o delito do tráfico de drogas, pois notadamente há uma diferenciação no julgamento do Supremo Tribunal Federal que, juridicamente, não faz sentido algum. Analisando os argumentos expendidos nos dois julgados, ao tratar do delito de tráfico de drogas é como se fosse adotada a teoria de Jakobs, pois, ao passo que os ministros do Supremo Tribunal Federal privam de direitos e garantias asseguradas pela Constituição, apenas uma parcela de pessoas que cometem crimes age como se retirasse o status de cidadão (tornando-as não-pessoas) e etiquetasse tais acusados como inimigos da sociedade.[6] Ao aparentemente adotar uma teoria que atua no âmbito do direito penal do autor[7] e que nega à condição de pessoas a determinados criminosos, o Supremo Tribunal Federal despreza seu título de “guardião da Constituição Federal”, pois dá razão à (absurda) ideia de que os traficantes (ou, como na concepção de Jakobs, “indivíduos perigosos que atentam contra o Estado”) não estão protegidos pelas garantias constitucionais da mesma forma que os
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cidadãos que cometem delitos ocasionais. E nós, na condição de povo de um Estado Democrático de Direito, não podemos compactuar com tamanha insensatez.
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Ingrid Bays - Pós-graduanda em Direito Processual Penal pela Damásio Educacional. Graduada em Direito pela Faculdade da Serra Gaúcha. Advogada.
NOTAS [1] SANTIAGO NETO, Assis. A lei 11.900/2009 e as garantias constitucionais do acusado. Boletim do Instituto de Ciências Penais, Belo Horizonte, n. 97, ago. 2009. p. 3. [2] ALMEIDA, Leonardo Fantini de. Aspectos do interrogatório após as alterações introduzidas pela lei n. 10.792/03 e o princípio constitucional da ampla defesa. Boletim do Instituto de Ciências Penais, Belo Horizonte, n. 46, mai. 2004. pp. 10-11. [3] STF. AP nº 528 AgR/DF. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. Tribunal Pleno. Julgado em 24-03-2011. [4] STF. RHC nº 116713/MG. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. Segunda Turma. Julgado em 11-06-2013. [5] VILELA, Augusto Tarradt. O (problemático) procedimento especial da Lei de Drogas e o interrogatório do réu. Boletim IBCCRIM, v. 22, n. 261, ago., 2014, pp. 18-19. [6] JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Traduzido por André Luís Callegari, Nereu José Giacomolli. 2.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 35. [7] FAYET, Fábio Agne; BAYS, Ingrid; BAYS, Isadora; BALLERINI, Ketlin. Direito penal do inimigo. Revista do Curso de Direito da Faculdade da Serra Gaúcha. N. 14 (2013), pp. 01-14.
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O Processo Penal como Pena
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ão temos dúvidas quanto à estigmatização do indivíduo face a um processo criminal. Seja ele apenas a fase inquisitorial da persecução criminal, seja ele a própria fase instrutória que deveria servir de conforto ao agente, pois nesse momento, restaria provada sua inocência. O estigma que se forma ao simplesmente configurar como investigado ou indiciado, na fase da investigação preliminar, cria no indivíduo o que a Criminologia Crítica chama de labeling approach, ou Teoria do Etiquetamento. A Escola de Chicago deu esse aspecto sociológico do crime ao trazer a lume com autores, como Erving Goffman, contribuições fundamentais sobre os efeitos das prisões e natureza dos estigmas, bem como para teoria do comportamento desviante aperfeiçoado pela crítica nas contribuições do interacionismo simbólico. Não falarei aqui da Teoria Ecológica desenvolvida por essa Escola, pois será tratada em artigo específico. Inegável a amargura, o sentimento pejorativo, a experiência no antagonismo que vive o indivíduo que está compondo o polo passivo de uma demanda criminal. Esse sentimento que incute numa moção de incertezas profundas, se torna muito mais gritante em seu primeiro contato com a esfera criminal que, na esteira de Aury Lopes Jr., revela que lhe é completamente repleta de mistérios, de
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suspenses, de símbolos, seja pelo tipo de linguagem ou nome dos próprios recursos ou teses jurídicas.[1] O processo criminal já é uma pena em si. É o início do cumprimento da pena. A agonia que toma conta do indivíduo não mais permite que o mesmo tenha a vida que levava anteriormente. É uma avalanche de incertezas, medos e angústias. O Judiciário, cada vez mais atrasado na resposta rápida ao cometimento do delito, o que deveria se aproximar o mais rápido possível, porquanto só o fato de deixar no preso, a incerteza e obscuridade que um processo criminal causa, isso já seria prolongar sua pena de modo angustiante e degradante, conforme afirmou Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria e representante do iluminismo Penal, em sua obra Dei delitti e delle pene, escrita em 1764.[2] O Direito Penal não surgiria naquele momento, para aquele indivíduo. Conquanto ele não estive encarcerado, o sofrimento de configurar no polo passivo de uma persecução penal é tormentosa. Em sua obra “Lezioni sul Processo Penale”, Carnelutti já dizia, com total propriedade que corresponde ao Direito Processual Penal e não ao Direito Penal Material, em primeiro lugar, a pena, porque a pena si risolve e il giudizio nella pena. A pena se resolve no julgamento e o julgamento na pena.[3] Fala-se muito na “busca da verdade real”. Uma busca incessante que o Estado faz, de formas muitas vezes desproporcionais para trazer à tona toda a vida de um indivíduo a fim de levá-lo ao seu julgamento de forma que de lá nunca mais volte. Falamos sempre em Estado, pois o ius puniendi lhe pertence. Todavia, ele é representado por seres humanos. Seres estes que buscam em si uma satisfação pessoal de levar alguém à prisão sem ter certeza absoluta do que o indivíduo cometeu, seja absolvendo-o sem certeza ou deixando de descobrir mais ainda a extensão de seu crime. Ano 01 | Nº 01 | 978-85-8440-355-4 | 2015/02
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Estamos tomados pela raiva, pelo ódio. A sociedade busca em si um modelo político que se possa louvá-lo. O político busca, muitas vezes, a satisfação pessoal. O rico busca sempre mais bens. O pobre quer ser rico. E no meio de tantas esferas insatisfeitas surge a atuação policial, como consequência desta guerra sem fim que, conforme dito, não falamos agora do Estado em si, mas das pessoas que representam seu poder. No momento em que surge o ódio do criminoso, surge a ira e desprezo do policial. Esse passa a ser um dos momentos mais perigosos de um processo criminal. Conquanto o criminoso não tenha realizado alguma empreitada, o ódio e estigma que já está incutido em alguns policiais acabam iniciando um processo penal de que fatalmente o indivíduo poderá se livrar solto. Falamos aqui do afrodescendente, de 18 a 29 anos, morador de uma das periferias das grandes Cidades. Estes que, estatisticamente, são criminalizados diariamente pela mídia e a sociedade. Os estigmas que são criados pela mídia torna aquele indivíduo que reúne os requisitos, exclusivamente por ela elencados, um criminoso nato. Isso é o que Raul Eugênio Zaffaroni chamou de “Criminalização midiática”. Como se não bastasse o sofrimento impingido consubstanciado com a demora da entrega da jurisdição, ainda surge a prisão cautelar. Antes, define prisão, Tourinho Filho, como sendo “a supressão da liberdade individual, mediante clausura. É a privação da liberdade individual de ir e vir; e, tendo em vista a prisão em regime aberto e a domiciliar, podemos definir a prisão como a privação, mais ou menos intensa, da liberdade ambulatória.”[4] Tantas são as agruras do sistema prisional que deveria ser a última consequência de um possível ato criminoso. Dissemos deveria, pois o parágrafo 6º do art. 282 do Código de Processo Penal não é cumprido pelos julgadores. A regra é a prisão. Principalmente para os desgraçados pela pobreza. 20
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Prosseguindo, a prisão cautelar, como se não bastasse, resume a ineficiência do Estado, a incapacidade da prestação jurisdicional. Isso porque, se o Estado fosse completamente capaz de punir adequadamente seus criminosos, não se faria necessária a prisão acautelatória que persiste desde a Roma antiga. Os requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal atestam a plena incompetência (no sentido pejorativo) estatal em demandar criminalmente em face de qualquer indivíduo. Se o Estado quer garantir a ordem econômica, deveria tê-la feito antes do crime ocorrer. A conveniência da instrução penal deve ser feita pelo próprio Estado, de modo a agir imparcialmente e com idoneidade. Assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova de existência do crime e indício suficiente de autoria é ainda mais aterrorizador. Pois, não se pode enclausurar um indivíduo com indícios ou simples provas. Deve-se ter certeza. Se pararmos para refletir, não deve haver absolvição ao final de um processo criminal, pois na verdade ele não deveria nem se quer ter sido iniciado. Sem querer desviar o foco da proposta a ser apresentada, mas usando apenas de efeito comparativo, um estudo publicado na Inter Press Service, pelo Colunista Alberto Cremonesi, ele demonstra a partir de suas buscas, o início de exames de DNA em processos criminais que resultem em condenação à pena de morte, nos Estados Unidos. “O Centro sobre Condenações Equivocadas, da Escola de Leis da Universidade Noroeste (EUA) documentou, pelo menos, 38 execuções contra as quais havia contundente evidência de inocência ou sérias dúvidas sobre a culpabilidade desde a reinstauração da pena capital, em meados dos anos 1970. A União para as Liberdades Civis dos Estados Unidos (Aclu) documentou os casos de 123 presos que esperavam a morte e que, desde 1973, foram absolvidos ou libertados antes de suas execuções serem concretizadas.”[5]
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Isso serve apenas para demonstrar, mais uma vez, como o processo é uma pena em si. O medo das injustiças que geralmente ocorrem, o receio de uma condenação desprovida de certeza material e autoral gera, em cada indivíduo um sofrimento inenarrável. Isso para não falarmos das pessoas desprovidas de bens materiais ou prestígios na sociedade. Pois, para estas é quase certa suas condenações.
[2] BECCARIA, Cesar Bonesana, Marchesi di, 1738-1793. Dos Delitos e das Penas. Tradução J. Cretella Jr. E Agnes Cretella I. – 2 ed. ver., 2. Tir – São Paulo: RT, 1999. p. 71.
Destarte, de início, o que deve ser buscado é a melhora do aparelho de persecução criminal (Polícia e Ministério Público). Um Delegado zeloso não permitiria que a prisão se procedesse de forma que, ao final gerasse uma absolvição indevida ou uma condenação com resquícios de inocência. Um Promotor de Justiça cuidadoso não ofereceria a denúncia se não estivesse frente a uma investigação pautada na lei e observados todos os requisitos necessários para a condenação final.
[4] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. v. III. 5. ed. São Paulo: Jalovi, 1999.
Em suma, não pode o Judiciário admitir que o processo demore mais do que o que é necessário. Um Magistrado com o mínimo senso de responsabilidade instrui um processo imparcial, não labora apenas alguns dias por semana, não deixa modelos de decretação de prisão em sua gaveta. Ele busca resolver um problema que o Estado, nas formas dos Poderes Executivo e Legislativo, não sanaram. Ele tem que entregar à sociedade e ao réu a prestação justa de seus direitos, tanto na esfera da retribuição quanto da prevenção. O que não podemos admitir é transformar a vida de um indivíduo num fosso escuro, que é o processo penal, com as mãos atadas sem saber para onde se segue, quem e como o julga e se, ao final, irá se machucar ou acordar fazendo de conta que tudo não passou de um pesadelo.
[3] CARNELUTTI, Francesco. Lezioni sul Processo Penale. Roma: Edizioni Dell’Ateneo, 1946. v. 1. pp. 34-65.
[5] CREMONESI, Alberto. Pena de morte: DNA revela falhas judiciais. Disponívem em: <www.ipsnoticias.net>. Acesso em: 13/06/2015.
José Antônio Lourenço Júnior - Bacharel em Direito pela Universidade Veiga de Almeida, Ex-Conciliador Criminal do TJRJ, Pós-graduando em Direito e Processo Penal pela Univerdade Cândido Mendes, Servidor Público (RJ).
NOTAS [1] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 273.
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Populismo Penal: A Fé na Transcendência do Poder Punitivo Estatal Letícia de Souza Furtado
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e a violência é inerente ao ser humano, a primeira comunidade só pôde se estabelecer com o surgimento de alguma limitação sobre atos dessa natureza; de outra forma, os indivíduos conflitariam até a extinção do grupo. O ambiente onde a tensão está difundida é propenso à crise; contudo, caso todos atribuam ao mesmo indivíduo a culpa absoluta pelo caos – a um bode expiatório –, a agressividade coletiva é canalizada, desencadeando ato único de violência que agrega a comunidade, ao tempo em que permite a todos liberar a agressividade latente. A estrutura social, outrora desintegrada, se (r)estabelece. O fim das tensões melhora as relações interindividuais, “confirmando” a culpa integral do dilapidado.[1] Pensando em um contexto de origem da cultura, pode-se inferir que do ato inaugural de violência emerge a possibilidade de algumas significações, pois, responsabilizando a vítima por todo o mal e, depois, por todo o bem experimentados, os homens a investem de certas características. Atribuem-lhe poderes sobrenaturais – onipotência –, algo de sagrado: nela está a cura do que os abate. Tudo que a envolve haverá de ser representado em futuro ritual que vise efeitos curativos ou preventivos análogos[2] (GIRARD, 1990). Eis o medo e a esperança depositados no transcendental. O medo da devastação que um malfeitor “provoca”; a esperança 24
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de retomar a paz – repetição do resultado –, com a ritualização do assassinato originário, ou de que o antagonista se abstenha de prejudicar a comunidade. Exsurge a sistematização de condutas, com o mecanismo de contenção da violência pela canalização; a definição de valores – o indivíduo expulso consolida exemplo do que não deve ser feito –; e a definição de diferenças, do que é bom ou ruim, de quem deve compor a comunidade ou ficar à margem dela. A expulsão originária traça os contornos da comunidade. Muitas vezes, o ritual não observa proporções nem se funda em mais do que temor ou esperança. A religiosidade expressa a sensação de impotência do homem, que atribui o incompreensível ao transcendental; e a norma, com sua instância ritual, exprime a tentativa de solução: instinto do nosso estado puro de ser, suscetível ao misticismo. Os membros da comunidade se inclinam a explicar qualquer distúrbio interno pela conduta de algum indivíduo que não se comporte conforme a norma, pois ele ameaça o sistema, atraindo o temor de imitações desestabilizadoras. Os membros da comunidade realmente acreditam nas forças sobrenaturais do antagonista. No livro A Farmácia de Platão, DERRIDA[3] vincula duas palavras gregas: Pharmakós, denomina a vítima de sacrifícios gregos, prática recorrente em tempos de crise; Pharmakon, termo ambivalente, designa possíveis características opostas de um mesmo objeto ou pessoa, como, por exemplo, algo que, simultaneamente, é remédio e veneno. O Pharmakós se encaixa no conceito Pharmakon, compunha ritual que simulava um assassinato originário, atuando como bode expiatório – objeto este de estudo na tese girardiana. GIRARD aproveita tais conceitos linguísticos e desenvolve sua teoria da origem do signo, do surgimento da possibilidade de significação das coisas, aqui já exposta. Superado o cenário de origem,
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depois de estabelecidas algumas significações, existindo a noção de diferença, ela poderá ser percebida antes de o mecanismo vitimário se desenrolar. Na realidade, a diferença passará a ser um dos fatores que, intuitivamente, desencadearão a dilapidação. O caráter religioso da espécie de expulsão aqui tratada é evidente, e está presente nos rituais do sistema penal. Na seara da psicologia, JUNG[4] conceitua religião como a atitude do “espírito humano” frente a experiência pessoal que revela certos elementos – espíritos, ideias, leis... – “suficientemente poderosos, perigosos ou mesmo úteis” e que merecem “respeitosa consideração”. SEMINÉRIO[5] sustenta que crenças e processos sem fundamento empírico são desencadeados por intolerância à ambiguidade: “cada ser humano, perante a dúvida, é levado a efetuar uma ‘clausura’ interior, gerando hipóteses coerentes com sua infraestrutura de emoções e convicções”. AMATUZZI[6], fala de uma fé que “move o grupo”, favorecendo o surgimento de decisões coletivas. Ideia próxima às de DURKHEIM[7] e seus conceitos de consciências solidárias: a formada por estados sociais, estimulada pelos fins coletivos, e a constitutiva da personalidade individual. Da primeira decorre uma solidariedade que vincula os indivíduos pelas afinidades e os “classifica” como pertencente ao grupo. Situação diversa do antagonista expulso, cuja linguagem não se concilia com a da comunidade. A expulsão do antagonista se transforma em finalidade coletiva, imergindo o grupo naquela fé descrita por AMATUZZI. Ganha espaço, então, o efeito placebo, resultado de terapia que apenas sugere a cura: é inerte e simbólica [8]. Muitos elementos podem conceder efeito placebo: a fé, o carinho de alguém, uma vingança... Seja como for, o que se quer é a cura. ZANATTA afirma que o populismo – em gênero – tem natureza “genericamente reli-
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giosa”[9], denunciada pela devoção ao líder, e nos lembra de que o imaginário populista e também o religioso se inclinam a repelir os fundamentos legais e racionais da comunidade política. Apresenta, ainda, a ideia de uma “religión política”: “Al respecto, hasta se puede decir que el populismo es el vector mediante el cual el imaginario religioso tradicional se seculariza y transplanta en el terreno moderno de la comunidade politica. En este sentido, es una suerte de religión secular, o de “religión política”, con su “verbo” y su “profeta”, sus cultos y sus liturgias: pero todo esto no en nombre de Dios, sino del “pueblo”. O constante apelo pela criação de novos tipos penais, e o acatamento, que ignora o princípio da fragmentariedade, demonstram que a mentalidade do homem imperito ganha espaço. Não sendo devidamente sopesada a razão, voltamos à fase primordial do improviso fundado em pensamento mágico, metodologia íntima do transcendental. Sobre o Populismo Punitivo, ESTRAMPES adverte que as campanhas de lei e ordem se baseiam em dados que não guardam relação com a evolução das taxas de criminalidade, evidenciando artificialidade e influência da mídia. Nos dizeres do autor[10]: “... dota al Derecho Penal de un marcado carácter simbólico, utilizándolo para mitigar los niveles de ansiedade social frente al delito, esto es, con la finalidade de crear um efecto meramente tranquilizador em la ciudadania.” APOLINÁRIO[11] assinala que os meios de comunicação difundem a sensação de insegurança. Isso uniformiza o medo popular numa consciência coletiva, transformando a nação em uma grande aldeia. FERRAJOLI[12] observa que as doutrinas retributivas de Kant e Hegel, na realidade, dão sobrevida a antigas crenças mágicas que confundem direito e natureza. ESTRAMPES[13] destaca que o Direito Penal tem sido chamado para fazer as vezes de tratamento para determinados “problemas” sociais, como se fosse um remédio com “unas propiedades mágicas”. Diz que esses
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apelos são paralelos à sugestão constante da mídia pela criminalização de certos grupos sociais com alta carga estigmatizante. Por esta breve exposição, buscou-se mostrar que a sofisticação dogmática do Direito Penal tem sido deixada de lado, a simbologia está em voga, impregnada pelo pensamento mágico primitivo que dominava os indivíduos na origem do signo. Naquele tempo, os homens davam seus primeiros passos em comunidade, e tudo era surpresa e mistério. Tempo distante, essência idêntica. Ainda elevamos indivíduos à condição de superpoderosos, atribuindo a eles forças completamente desproporcionais a sua capacidade e, consequentemente, estamos sempre inclinados a dar respostas igualmente desproporcionais. Com a diferença de que temos sujado menos as mãos, pois, atualmente, há o Estado como instrumento que viabiliza a expulsão mítica. NOTAS
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[6] AMATUZZI, Mauro Martins. Fé e ideologia na compreensão psicológica da pessoa. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 16, n. 3, p. 569-575, 2003. [7] DURKHEIM, Émile. Da Divisão Social do Trabalho. Tradução de Eduardo Branção. 3. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. [8] BALESTIERI, Filomena Maria Perrella. Quando a cura vem do coração e da mente: a fé e o efeito placebo. Religare – Revista de Ciências das Religiões. n. 6, set. 2009. [9] ZANATTA, Loris. El Populismo. 1. ed. Buenos Aires: Katz, 2014. p. 69. [10] ESTRAMPES, Manuel Miranda. El Populismo Punitivo. Jueces para la Democracia, n. 58, , mar. 2007, p. 63. Disponível em <http://bit.ly/1NwfFl5>. Acesso em: 20/09/2014.
[1] GIRARD, René. O bode expiatório. Traduzido por Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004.
[11] APOLINÁRIO, Marcelo Nunes. O populismo punitivo na era da informação eo direito penal como instrumento de pedagogia social. Contribuciones a las Ciencias Sociales, n. 2009-06, 2009.
[2] GIRARD, René. A violência e o Sagrado. Traduzido por Martha Conceição Gambini. São Paulo: Paz e Terra, 1990.
[12] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Editora Revista dos Tribunais, 2006.
[3] DERRIDA, Jacques. A Farmácia de Platão. Editora Iluminuras Ltda, 2005.
[13] ESTRAMPES. Jueces para la Democracia.., p. 43.
[4] JUNG, C. G. Psicologia e Religião. Tradução de Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha. Petrópolis: Vozes, 1978. p. 10. [5] SEMINÉRIO, F. A religião como fenômeno psicológico. Temas em Psicologia, v. 6, n. 2, p. 161-172, 1998. pp. 163-164.
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Letícia de Souza Furtado - Pós-Graduanda em Direito Público pela PUCRS. Integrante do Grupo de Estudos de Direito Público da OAB/RS. Advogada.
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Por Que a Ordem Pública Prende Tanto? Paulo Silas Taporosky Filho
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tal da garantia ordem pública. O embasamento fundante de diversas segregações cautelares que pululam pelos fóruns e tribunais brasileiros. Prevista como um dos requisitos para a possibilidade da decretação a prisão preventiva (artigo 312 do Código de Processo Penal), a garantia da ordem pública figura em diversos julgados como a justificativa para manter presos enclausurados nas masmorras brasileiras. A questão aqui almejada não é criticar o pouco trato dado ao sistema de execução penal ou elencar os demais requisitos necessários para a segregação cautelar, mas sim (tentar) compreender o motivo da paixão que certos julgadores têm na utilização de tal requisito para fundamentar suas decisões de decretos prisionais. Convertendo-se o flagrante em preventiva (muitas vezes, sem que haja pleito neste sentido pelo Ministério Público) ou no curso do processo (de igual modo, agindo de ofício, já que o próprio Código de Processo Penal assim possibilita ao julgador proceder em seu artigo 311), o requisito da garantia da ordem pública, em grande parte das vezes, é utilizado para embasar a decretação da prisão preventiva. Conforme estabelece o artigo 312 do Código de Processo Penal, poderá ser decretada a prisão preventiva quando necessário para a garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou ainda para assegurar a 30
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aplicação da lei penal. Quase desnecessário mencionar, dado o que já foi sucintamente exposto, que dentre tais requisitos o da garantia da ordem pública é o mais largamente utilizado. Sendo o foco do presente escrito a análise de tal requisito, sobre este se debruçará. É preciso dar um significado para o mencionado requisito. Uma estruturação do que vem a ser “ordem pública”. Um conceito. Uma explanação ou qualquer coisa que o valha. Ocorre que a terminologia utilizada é notoriamente ampla, dando corda para as mais variadas (e aberrantes) interpretações. É aqui que reside o problema. Ao se fundamentar a decretação de uma prisão preventiva de modo relapso, com o fundamento pouco trabalhado em cima do requisito da garantia da ordem pública, pode-se dizer que, julgando-se o indivíduo e não a conduta, conforme aduz Alexandre Morais da Rosa, escorrega-se “na cadeia de significantes previstos na lei, até porque a legislação utiliza-se de termos claramente vagos e ambíguos para acomodar matreiramente em seu universo semântico qualquer um”.[1] O termo (“garantia da ordem pública”) é aberto demasiadamente. O que viria a ser a ordem pública? Um bom articulista (em realidade, nem precisa se ter muita retórica para lograr êxito no preenchimento de tal requisito) preenche o significado com a conceituação que melhor lhe aprouver. O crime causou grande repercussão na cidade? Preventiva contra o acusado! Virou manchete de telejornal? Para se preservar a credibilidade do povo nas instituições da justiça (o que é isso?), decrete-se a prisão preventiva! O crime foi cometido (aparentemente) sob estado irascível do seu suposto autor (em decisões do tipo, o “suposto” muitas vezes já nem mais é suposto, numa evidente antecipação de julgamento sobre a culpa do acusado)? Preventiva para garantia da ordem da pública. É simples. É fácil. Basta preencher o embasamento caracterizante do requisito “garantia da ordem pública” com algo que mexa com Ano 01 | Nº 01 | 978-85-8440-355-4 | 2015/02
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as emoções, que cause revolta e indignação, que impulsione aqueles sentimentos sedimentados pela vingança, inerentes do ser humano e facilmente afloráveis. Muda-se o discurso permitido pelo atual Direito Penal (do fato) para aquele que há tempos foi superado (do autor), numa verdadeira nostalgia das trevas. Tudo isso convalidado pelo próprio Código de Processo Penal e sustentado pela jurisprudência. O argumento (dentre os diversos) da “credibilidade das instituições” como preenchimento do requisito da “garantia da ordem pública” é fraco e não se sustenta. Aury Lopes Jr. critica a utilização de tal requisito nestes termos, definindo-o como sendo uma falácia, quando evidencia que “nem as instituições são tão frágeis a ponto de se verem ameaçadas por um delito, nem a prisão é um instrumento apto para esse fim, em caso de eventual necessidade de proteção”.[2] Não obstante a lastimável conceituação mencionada (bastante utilizada nos decisórios que decretam as prisões preventivas) para aquilo que viria a ser a tal da ordem pública, tem-se ainda como outra espécie do gênero escabroso o “risco de reiteração delitiva”, o que poderia ser traduzida para o bom português em algo como “o acusado tem uma aparência que me desagrada, típica cara de quem pratica crimes – melhor manter ele preso”, ou ainda em coisa do tipo “que crime bárbaro – este canalha merece permanecer preso para que não pratique outros delitos do tipo”. Típico direito penal do autor. Pior, já que aqui o julgador se utiliza uma peculiar vidência para fundamentar o seu decreto prisional, já que pressupõe que o acusado voltará a cometer crimes com base em uma espécie de futurologia não prevista em qualquer ordenamento jurídico válido ou vigente. É antever o que viria a acontecer, pautando-se em tal “lógica” (aqui as aspas indicam a ironia). Nesta linha, a preciosa crítica de Aury Lopes Jr., quando destaca que esse “é um argumento inquisitório, pois irrefutável. Como provar que amanhã, se permanecer solto, não co-
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meterei um crime? Uma prova impossível de ser feita, tão impossível quanto a afirmação de que amanhã eu o praticarei”.[3] Poderia se apontar diversas outras aplicações semânticas para a terminologia da “ordem pública” – a jurisprudência está repleta delas. A questão é que a imprecisão é evidente, resultando assim nas mais diversas e peculiares leituras que se faz sobre sua conceituação. Mas há uma resposta definitiva? Responde-se com outra pergunta: é possível definir e conceituar de modo escorreito e exato terminologias abertas, não concretas e que brincam com a semântica? Nesse mesmo tom de questionamento, Thiago Minagé explana que a decretação de uma prisão sob o fundamento da garantia da ordem pública não poderia constituir uma regra geral para tanto, vez que “devido a sua notória imprecisão quanto ao significado, sua utilização afronta de forma brutal o princípio da presunção de inocência”. [4] Assim, sustenta tal autor que não deve ser admitido um decreto prisional que se encontre pautado pela garantia da ordem pública com o suposto fundamento que são tidos como sinônimos (aqueles acima tratados e outros, tais como “clamor público” e “credibilidade da justiça”). A tal da garantia da ordem pública ainda está aí, assombrando o direito processual penal brasileiro. Conforme aduz Eugênio Pacelli, “a se lamentar – e muito – que, tanto tempo depois e com a introdução de tantas alterações em matéria de prisão e de medidas cautelares, tenha se mantido a expressão garantia da ordem pública e econômica”.[5] Enquanto não for combatido com afinco, os julgadores continuarão a se utilizar largamente de tal suposto requisito para trancafiar acusados por motivos inidôneos. Há de haver a superação de tal pseudorequisito, já que não há Pedra de Roseta capaz de decifrá-lo concretamente, sob pena de a “garantia da ordem pública” continuar prendendo tanto e tantos.
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O Crime de Ameaça e a (Des)Proporcionalidade da Medida Protetiva de Afastamento do Lar
NOTAS [1] ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 2. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 159. [2] LOPES JR., Aury. Prisões cautelares. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 114.
Ruiz Ritter
[3] LOPES JR.. Prisões..., p. 115. [4] MINAGÉ, Thiago. Prisões e medidas cautelares à luz da constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2015. p. 110. [5] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 18ª Ed. São Paulo: Atlas, 2014.p. 555.
Paulo Silas Taporosky Filho - Especialista em Ciências Penais. Pós-graduando em Direito Processual Penal Pós-graduando em Filosofia. Advogado.
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ntes de iniciar a reflexão acerca da (des)proporcionalidade da medida protetiva de urgência (que obriga o agressor) de afastamento do lar, em relação ao crime de ameaça no âmbito da Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha, indispensável registrar que nada além disso está sendo aqui questionado. O enfrentamento dessa questão social (violência contra a mulher) pelo Estado merece o devido reconhecimento e não se objetiva, com o presente escrito, diminuir o sofrimento ou obstaculizar a assistência àquelas que se encontram na condição de vítima em processos dessa natureza. Por isso, repita-se, a pretensão é uma só: refletir sobre o artigo 22, inciso II, da Lei em comento, quando o fato a ser investigado corresponder, em tese, ao delito previsto no artigo 147 do Código Penal. Sem mais delonga, avancemos direto ao ponto. Em apertada síntese, a materialização das chamadas medidas protetivas de urgência (leia-se: que obrigam o agressor), dá-se da seguinte forma: registra-se o boletim de ocorrência narrando o fato supostamente criminoso e solicita-se a tutela do Estado, por meio de medidas protetivas contra o então acusado. São elas, a suspensão da posse ou restrição do porte de armas; o afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; a proibição de determinadas condutas (aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando limite mínimo de distância entre e o agressor;
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contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; e, frequentação de determinados lugares); a restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores; e, a prestação de alimentos provisionais ou provisórios. Nada mais é necessário. Ou seja, independentemente da credibilidade que tenha o relato prestado (unilateralmente) na Delegacia de Polícia, havendo deferimento judicial, poderá alguém (o acusado), sem sequer ser ouvido, ser expulso de sua própria casa, e não raras vezes ter proibido o contato com seu(s) filho(s), se houver. É esse o palco da discussão. E por que limitar a abordagem ao delito de ameaça? Porque além de, possivelmente, o referido crime liderar os registros policiais que originam processos atinentes à Lei Maria da Penha, é também através desse tipo penal que se vê nitidamente como uma simples declaração (inexigibilidade probatória) pode ensejar tamanha restrição na liberdade individual de um sujeito de direitos. Diferentemente, são os casos em que há violência física, atestada por exame de corpo de delito, por exemplo, em que a razoabilidade de uma medida cautelar, agora sustentada com mais do que mera declaração da parte interessada, é indiscutivelmente outra. Feitas tais considerações, passemos a reflexão acerca da (des)proporcionalidade do decreto da medida protetiva de afastamento do lar ao acusado, com base exclusivamente na palavra da “vítima” da ameaça. Para tanto, recordemos que o princípio da proporcionalidade, nas palavras de ROXIN[1], é um valor fundamental do Estado Democrático de Direito, constituindo a proibição de excesso legislativo. Dado seu caráter constitucional básico e nesse mesmo sentido de proibir excessos, MIR PUIG[2] refere que um Direito Penal democrático deve ajustar a gravidade de suas sanções à consequência que para a sociedade representam os atos proibidos. Trata-se, portanto, da exigência de proporção entre os atos e as reprimendas, não só aplicado no âmbito legislativo, mas também no jurisdicional. 36
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À vista disso, propõe FELDENS[3] que a análise concreta do princípio da proporcionalidade (em sentido amplo) deve observar sua estrutura tridimensional, a partir do exame de adequação (idoneidade), necessidade (exigibilidade) e proporcionalidade em sentido estrito. Assim, um meio será considerado adequado quando se torna possível lograr o resultado desejado; necessário quando o legislador não tem a possibilidade de optar por qualquer outro meio, e obter, através deste, exatamente o mesmo resultado (axioma número três do Sistema Garantista de Ferrajoli - nulla lex poenalis sine necessitate); e proporcional, em sentido estrito, quando, aplicada certa ponderação, se conclui que as vantagens da promoção do fim superam as desvantagens da intromissão no direito restringido. É dizer que, por meio dos critérios apresentados, para se proceder um exame concreto da (des)proporcionalidade da medida protetiva ora contestada, quando relacionada ao crime de ameaça, os seguintes questionamentos devem ser respondidos: o afastamento do lar garante a inocorrência de novas ameaças à vítima ou outras práticas ilícitas (adequação)? Não existe nenhuma outra maneira de assegurar a liberdade individual da mulher vítima de ameaça, que não por meio da expulsão do suposto autor de sua residência (necessidade)? Por fim, é aceitável que um simples boletim de ocorrência, constando uma versão unilateral, seja suficiente para limitar substancialmente a liberdade de um indivíduo, expulsando-o de sua própria residência por prazo indeterminado (proporcionalidade em sentido estrito)? São essas as questões que se apresentam quando da reflexão sobre a (des)proporcionalidade da medida protetiva de afastamento do lar, nos casos do delito tipificado no artigo 147 do Código Penal. Será mesmo que, ressalvadas exceções (que sim, existem e devem ser consideradas – como exceções), não estamos diante de um flagrante excesso legislativo e judiciário (caso concreto) que viola o princípio da proporcionalidade? Parece-me que sim.
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NOTAS [1] ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos. La Estructura de la Teoría Del Delito. Traducción y notas Diego-Manuel Luzón Pena, Miguel Diaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. p. 106. [2] MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del derecho penal. 2. ed. Buenos Aires: B de F, 2003. pp. 142-174. [3] FELDENS, Luciano. A Constituição penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 161.
Ruiz Ritter - Mestrando em Ciências Criminais pela PUCRS. Especialista em Ciências Penais pela PUCRS. Graduado em Direito pela UNISINOS. Advogado.
A Moral dos Jogos: A Relação entre Violência, Video Games e Alteridade Schleiden Nunes Pimenta
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omos violentos. Trata-se de uma constatação. Violência, do verbo violar, assemelha-se a invadir, atacar, agredir. A natureza de todo ser vivo e consciente é violar. A semente, quando cresce, viola a terra; os animais, para sobreviver, violam as plantas e outros animais; o homem, animal intelectualmente privilegiado, viola todo o mundo: as profundezas dos oceanos, a atmosfera, as florestas e também os seus iguais. A violência faz parte do movimento natural de um corpo que anseia por crescer, se alimentar e se manter vivo. A busca de qualquer vida é continuar a existir mesmo que isto leve outras vidas à extinção; a primeira característica de qualquer ente vivente é a vontade de sobreviver, e, em busca da sobrevivência e da fuga da morte dolorosa, o ser humano se uniu enquanto espécie para resistir tanto ao mundo quanto aos seus próprios iguais. Para tanto, estipulou regras, normas de conduta que garantam a sua segurança, limitando as suas vontades e as suas liberdades em prol da vida. Esse conjunto de valores é chamado de moral: o que é certo ou errado, o que é bom ou ruim para a sociedade – e, logo, para si também, pois o indivíduo é um espelho dos seus demais. Moral, portanto, para este artigo, é um conjunto de regras desenvolvidas por seres inteligentes e em grupos dentre a sua espécie, destinado a manter uma ordem e uma sobrevivência segura e que os prive da violência e da dor.
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No sentido proposto, a vida só nos é importante se nos afetar. Costumeiramente defendemos a vida enquanto uma ideia abstrata, mas desde que seja aplicada ao mundo real, de uma forma que nos importe, que identifiquemos e que consigamos relacioná-la à nossa própria vida. Ou seja, não é todo tipo de vida que nos importa, e isto acontece porque não é todo tipo de vida que relacionamos à nossa. Por exemplo, não conseguimos perceber o corte de uma planta como uma violação e também não imaginamos que ela sofra porque não relacionamos os seus sentidos com os nossos ou a sua existência aos sofrimentos que temos. Apreciamos tão somente o tipo de vida em que conseguimos nos espelhar – ou sentir –, nos colocando em seu lugar. Mesmo quando falamos ou defendemos questões ambientais, visualizamos primordialmente a natureza não pela natureza em si, mas nos preocupamo com ela porque a sua manutenção significa a manutenção da nossa espécie também, ou pelas suas belezas, significando uma relação egoística ainda. Um vestígio de que a moral é algo circunscrito unicamente ao mundo real, dos sofrimentos, é que uma das primeiras perguntas que fazemos ao ver uma criança brincar com jogos virtuais violentos é: “Isso não a tornará violenta também?”. Ou seja, o que a pergunta quer dizer é: “Essa violência fictícia não se transformará em violência real, não é?”. Quando falamos dos jogos, falamos de um universo que não reconhecemos. O que acontece aos personagens dentro dos jogos não nos afeta, o que lhes acontece está restrito ao universo do jogo, e, se a moral é um conjunto de valores que adotamos para garantir a nossa sobrevivência no mundo, significa que no universo do jogo não existe moral uma vez que nada ali dentro nos afeta substancialmente. Uma grande parte dos jogos envolve violência. Jogos de luta, jogos de guerra, jogos de aventura e de personagens que buscam sobreviver acima de qualquer coisa, que fazem a sua justiça com as 40
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próprias mãos. Até nos jogos de esportes e de carros ultrapassamos a moral e as leis do nosso meio ao dirigirmos acima de velocidades permitidas, ao chocarmos os nossos carros com o de outros, ao violentar um atacante prestes a marcar um gol. Nossa lista de jogos agressivos é infindável, e, ao contrário do que muitos pensam, não é uma fábrica de violência real. A razão desta afirmação é que existe uma desconexão entre os dois universos; não há uma relação de reconhecimento de vida entre os personagens dessas duas dimensões. Aparentemente, soa contraditório que pessoas consideradas de alta moral, de bom coração e socialmente exemplares brinquem com jogos de guerra, de lutas e que envolvem crimes. Todavia, não há contradições. Não há contradições porque, uma vez que a moral é um constructo social que tem a ver com o nosso “eu”, e no jogo esse “eu” inexiste, simplesmente não há ninguém para moralizar absolutamente nada. Talvez, possível seja de se conjecturar, no máximo, que a irritação causada por derrotas seguidas ou que se sentar por muitas horas à frente de uma tela eletrônica influencie mais o jogador do que o jogo em si. Tal desprendimento, tal desconexão entre os dois universos é um dispositivo mental natural e a falta de tal diferenciação é a ocasionadora de situações em que se diz que o “jogo” levou uma pessoa a cometer determinados crimes. De toda forma, não é uma consequência unicamente do jogo e sim um distúrbio mental suscetível de ser influenciado por qualquer outro fator. Dentro do jogo, ao controlarmos um personagem, matamos, roubamos, brigamos. Isto significa que somos cruéis? Se houvesse realmente uma ponte entre os dois universos, e a depender da quantidade de pessoas que se deleitam nos jogos virtuais, o mundo não passaria de um antro de assassinos e de criminosos em série, de modo que o crime, e não o contrário disso, seria a regra. A alteridade, aqui, é impossível porque não há o “outro” com o qual nos relacionar,
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e a manifestação das vontades contra essa inteligência artificial é impunível porque nem somos nós quem cometemos crimes. Queremos apenas cumprir missões, passar de fase, vencer e zerar o jogo; importa mais o prazer de uma boa jogabilidade e menos os atos em separado que o personagem fará para tanto; os percalços da evolução do jogo são irrelevantes perto da jogabilidade; o prazer é o mesmo para quem gosta de fazer um gol, de eliminar o chefe malvado ou de acertar algum alvo com seu rifle de precisão. Jogar é como se pudéssemos lutar entre nós com a possibilidade do não sentir dor e sob a dádiva de sermos imortais. Se perdêssemos, ainda teríamos tantas outras vidas mais; bastaria recomeçar a fase. Se assim fosse, nenhum crime também haveria pela inexistência da figura da morte e do sofrimento para tentarmos evitar por meio de leis ou de uma moral protetora. Podermos lutar sob o privilégio da imortalidade seria a completude da união entre a satisfação da nossa selvageria e o fim da moral baseada no sofrimento. Nas mitologias, os deuses lutam indefinidamente, por toda a eternidade, e por isso mesmo que são deuses. Não são eles que criam a moral; os mortais é que elaboram uma moral entre si para decidirem qual deus é menos prejudicial e qual possui as táticas de guerra que menos afetam a sua vida curta e tão repleta de dores e de incertezas. Longe de defender os jogos ou de desvirtuar a moral, busca-se nessa analogia revelarmo-nos uma vez mais para além dos nossos véus ideológicos e dos discursos prontos aos quais somos impostos desde sempre, sem sabermos qual a razão de vermos o mundo, as leis e a sociedade. Apenas mentalizaremos uma moral honesta quando formos honestos conosco, e, em vez de nos apoiarmos em totens ideais ou superiores, utilizarmos nossos sentimentos mais naturais – como o ego, o medo, a vontade – para respeitarmos também o ego, o medo e a vontade dos outros. Os totens – teorias sociais, máximas religiosas, imperativos políticos – são como 42
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o universo dos jogos: vemos, mas são apenas criações, e um dia o jogo chega ao fim ou tem suas regras modificadas porque são apoios frágeis, tendenciosos e manipuláveis. Nós, por outro lado, o “eu”, existirá enquanto... existirmos. Compreendermos a razão dos nossos valores, por mais egoísticos que sejam, funcionaria melhor do que atendermos a regras educacionais falsas que nos dizem ditatorialmente o que é certo e o que é errado; tais preceitos educacionais, radicais, funcionam também como distinto universo, inexistente, que não educa de fato e se mantém aprisionado naquela outra dimensão virtual e desconexa da nossa já que não a reconhecemos como a nossa vera realidade. Ideologias também são violentas, impositivas, segregadoras, e têm o poder de modificar qualquer tipo de cultura ou de entendimento. Inclusive a ideia que temos dos deuses é violenta; servirmos a um ser maior que vencerá a todos os seus inimigos, que os eliminará e que nos dará o poder da imortalidade também. Cultuamo-lo por ser o deus da vitória, da sabedoria e da guerra. Por quê? Porque é ele quem zerará o jogo por nós. A grande questão, neste ponto de vista, é: isso quer dizer que deus também é selvagem e violador, ou a ideia que temos dele é que também não passa da visão que temos de outro jogo um pouco mais real do que a do video game? Para saber tem que aprender as regras; para responder tem que jogar.
Schleiden Nunes Pimenta - Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pesquisador nas áreas de Teoria da Justiça, Literatura e Direito, Filosofia e Direitos Humanos. Advogado e escritor.
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Informativo de Jurisprudência dinheiro de testemunha na aquisição de drogas a pedido dele e por instrução dele, com fornecedor indicado por ele. Conforme a testemunha, o réu ficaria com parte da droga para seu consumo, pois era usuário e “traficava para consumir”. Ambos os indivíduos eram consumidores, mas apenas um, com instrução superior e emprego fixo, tinha condições sociais e econômicas de solicitar a outrem que fosse buscar seu entorpecente. O réu, com instrução fundamental e trabalho na lavoura, só poderia consumir com o dinheiro do primeiro, sob o preço de correr os riscos da compra. Conduta que não configura tráfico na forma do art. 33, “caput”, da Lei de Drogas, hipótese considerada na denúncia.
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul Apelação-crime nº 70064774334, 3ª Câmara Criminal, Rel. Des. Diógenes V. Hassan Ribeiro, julgado em 20.08.2015. EMENTA: APELAÇÃO-CRIME. TRÁFICO ILÍCITO DE DROGAS. USO INJUSTIFICADO DE ALGEMAS. NULIDADE DE OFÍCIO. RÉU CONSUMIDOR. INTERMEDIÁRIO DE COMPRA DE DROGA POR OUTRO USUÁRIO. RECEBIMENTO DE PARTE DA SUBSTÂNCIA COMO “PAGAMENTO”. CONDIÇÃO SOCIAL COMO DIFERENCIAÇÃO ENTRE TRAFICANTE E CONSUMIDOR. INVIABILIDADE DO JUÍZO CONDENATÓRIO POR TRÁFICO. Uso de algemas. Nos termos da Súmula Vinculante n.º 11 do Supremo Tribunal Federal, o uso de algemas só é permitido em casos determinados, justificada a excepcionalidade por escrito, o que não houve no caso concreto. Ausência de fundamentação. A palavra dos policiais civis e militares ouvidos em juízo deu conta de que nem mesmo por ocasião da prisão em flagrante foi necessário o uso de algemas. Nulidade reconhecida de ofício, mas superada pelo desfecho de mérito mais benéfico. Tráfico de drogas. Não pode o direito penal punir o consumidor pobre por assumir os riscos que o consumidor de classe média não se dispõe a correr. No caso, o réu intermediou a compra de 6 buchas de cocaína (3g), empregando o
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RECURSO PROVIDO. ABSOLVIÇÃO.
VOTO: Des. Diógenes V. Hassan Ribeiro (RELATOR) I. Uso de algemas Primeiramente, constato que o réu permaneceu algemado durante a audiência de instrução e interrogatório, sem que para isso tenha havido qualquer justificativa. Claramente, vê-se pelo arquivo de nome “KT_797~1228_Video”, da mídia audiovisual de fl. 155, que o réu foi interrogado usando algemas voltadas para a frente. Verifica-se que apenas constou da ata de audiência que “o réu acompanhou a audiência com uso de algemas” (fl. 156). Tal registro não vem acompanhado de quaisquer razões. Nos termos da Súmula Vinculante n.º 11 do Supremo Tribunal Federal, o uso de algemas só é permitido em casos determinados,
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justificada a excepcionalidade por escrito: “Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.” (...) Outrossim, vale pontuar que mesmo quando o presidente do ato constatar insegurança na oitiva do preso sem algemas, esse risco deve ser expressamente justificado, possibilitando, assim, excepcionar os ditames da Súmula Vinculante n.º 11 do Supremo Tribunal Federal. Referida necessidade não pode ser presumida em prejuízo dos acusados. (...) Cumpre observar, ainda, que o teor da Súmula Vinculante n.º 11 não comporta maiores dificuldades de interpretação, pois estabelece que o uso de algemas fica condicionado à sua necessidade, devendo haver fundamentação judicial, sob pena de nulidade do ato e de responsabilização civil, disciplinar e penal. Portanto, a excepcionalidade do uso de algemas deve ficar justificada por escrito sob pena de nulidade. Simples assim. Essa nulidade opera de pronto e de plano, não havendo justificação por escrito. Evidente que se pode cogitar do vetusto sistema de nulidades processuais, hauridos do direito processual civil, como censura o processualista Aury Lopes Jr. Mas, a aplicação do sistema de nulidades da doutrina do direito processual civil não se aplica mais – ou não pode ser aplicada ainda – no sistema constitucional de garantias do direito penal democrático.
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Não fosse suficiente a Súmula, cumpriria lembrar do direito fundamental ao juízo argumentativo das decisões judiciais, expresso pelo menos em dois preceitos constitucionais (art. 5º, LXI, e art. 93, IX). Bom, será que é possível argumentar que uma decisão judicial que fere direito fundamental de liberdade pode ser considerada válida sem a devida fundamentação? Quem sabe poder-se-ia imaginar que a decisão judicial poderia ser considerada válida? Por outro lado, a possibilidade de edição de súmulas vinculantes adveio da Reforma do Judiciário da Emenda Constitucional nº 45, de 2004, que inseriu o art. 103-A na Constituição Federal. À época discutiu-se muito sobre as consequências do desatendimento às súmulas vinculantes, quando se pretendia a responsabilização penal e funcional dos magistrados. Felizmente isso acabou não constando do art. 103-A aprovado. De qualquer modo, também não me parece compreensível deduzir que, não havendo manifestação oportuna do defensor haveria preclusão e, ainda, que deveria ficar demonstrado o prejuízo efetivo, não servindo a condenação a tanto. Ora, é inerente ao ato, reforçado pela utilização de algemas, a situação de humilhação e de prostração a que fica submetido o acusado – que deve ser beneficiado, apesar de tudo, com o princípio do estado de inocência – na solenidade que colhe a prova do processo. (...) Em arremate, acrescento que no caso concreto o uso de algemas, ao que tudo indica, mostrava-se absolutamente dispensável. Pelo conteúdo dos depoimentos dos policiais civis e militares que participaram da ocorrência, infere-se que o réu era pessoa tão pacífica que foi desnecessário, mesmo no momento do flagrante, o uso de algemas. Assim, não se vislumbra justificativa para que, por ocasião da audiência, houvesse necessidade
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de manter o réu algemado; contudo, caso houvesse tal circunstância, deveria ter sido expressa e devidamente fundamentada. Assim, reconheço a nulidade de ofício, mas supero em razão de desfecho meritório mais favorável. II. Materialidade A materialidade restou consubstanciada na apreensão 01 tijolo de maconha pesando aproximadamente 22,5g, 06 trouxas de cocaína pesando 3g, 01 celular e 01 motocicleta (fl. 08). A natureza entorpecente das substâncias foi atestada por laudo pericial definitivo, oriundo do Instituto Geral de Perícias – positivo para canabinóides (fl. 176) e positivo para cocaína (fl. 177). Ressalvado entendimento pessoal, já expresso em inúmeros julgamentos, diante das recentes decisões dos Tribunais Superiores no sentido de reconhecer a materialidade do fato mesmo com a ausência de indicação, no laudo toxicológico, do princípio ativo tetraidrocanabinol (HC 29.099-PR do STJ, AgRg no AREesp 413.139-RS do STJ, e HC 122.247 do STF), considero caracterizada, no caso, a materialidade típica. III. Autoria e Tipicidade (...) Não é caso de manutenção da condenação. Inicialmente, observo que o réu admitiu ter adquirido a droga a pedido de Gilson, com dinheiro dele, e tê-la levado até ele, que se encontrava no trabalho e impossibilitado e buscar o entorpecente por si próprio. Ressalto, porque relevante, que Erich não possuía a droga consigo, tendo ido buscá-la em outra cidade. O réu alegou que ficaria com metade da substância para seu próprio consumo, pois dependente químico. Observo, no ponto, 48
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que Gilson esclareceu em seu depoimento que Erich efetivamente consumia cocaína, e que ficava com uma parte adquirida para si mesmo, não repassando a totalidade do volume que poderia ser comprado com o dinheiro dado: “ele pegava e ele buscava tanto, ele não ia me dar tudo, ele sempre ficava com alguma coisa” (CD de fl. 155, 5’12”). Note-se que o acerto era conveniente a ambos, pois Gilson satisfazia o vício sem os riscos da compra direta com o traficante, enquanto o réu corria o risco em seu lugar justamente para aplacar o seu vício. É opaca a linha que separa ambos, réu e testemunha, “traficante” e “consumidor”. Veja-se que foi Gilson, o consumidor, quem solicitou a droga e, inclusive, instruiu o réu sobre onde buscá-la. Os dados da interceptação telefônica demonstram claramente que era Gilson que possuía o contato do primeiro fornecedor, Jandré, que não foi encontrado em casa, e do segundo fornecedor, Camundongo, de quem a droga teria sido finalmente comprada. (...) Acrescento que, em seu depoimento, Gilson foi questionado sobre quem seria a primeira pessoa referida em seu diálogo interceptado (que não estava em casa), no que respondeu: “o que vende... o Jandré de Três de Maio” (CD de fl. 155, 3’48”). Claro, portanto, que o traficante não era o réu Erich, mero intermediário. Cumpre ressaltar, ainda, que a testemunha também asseverou o seguinte, sobre Erich: “ele não é um traficante assim, traficante que tu vai toda hora e ele tem, não. Eu disse se ele poderia conseguir pra mim. (...) ele é usuário, trafica pra usar” (2’55” e 12’30”). Em seu texto Política de drogas ilícitas na Alemanha, Luiz Fernando Tomasi Keppen, eminente desembargador paranaense, pondera que a política de droga alemã já foi semelhante à brasileira: “combate violento ao tráfico, exclusão assistencial aos dependentes e pouquíssimos resultados efetivos na diminuição do consumo”. O autor acrescenta uma ponderação de alta relevância ao presente
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processo: “enquanto houvesse alguém da classe média ou alta a querer usar droga, haveria quem, normalmente da classe baixa, estivesse disposto a correr o risco de morrer para fornecê-la”. Cumpre destacar que Gilson Fidêncio revelou, em seu depoimento, que solicitou a aquisição do entorpecente por meio de Erich Seibert porque “eu tinha trezentos reais e eu não tinha como ir comprar droga” (CD de fl. 155, 2’25”).
Ora, o que leva dois indivíduos consumirem drogas conjuntamente deve ser sua relação de amizade ou, no mínimo, intimidade. Se no caso o consumo não foi conjunto, seria individual apenas pelas condições sociais que separavam os dois, porque não eram amigos, mas tinham apenas um acerto conveniente, no qual o réu corria os riscos necessários a fim de usar droga, enquanto a testemunha não precisava corrê-los porque possuía dinheiro.
No caso concreto, o que separa os indivíduos, ambos usuários, perante a justiça criminal senão suas respectivas condições sociais? Ora, restou demonstrado que Gilson trabalhava em empresa de laticínios, onde, inclusive, ocorreu o flagrante. Na qualificação de fl. 06 constou que possui curso superior. De outro lado, na qualificação do réu consta que possui ensino fundamental e morava na zona rural. A prova testemunhal deixou claro que trabalhava em lavoura. Ambos consumidores de cocaína, mas apenas um com condições financeiras de comprá-la – o outro, vítima de seu vício e de sua condição econômica.
Neste caso, tratando-se o réu de consumidor de drogas que não auferia lucros com a atividade habitual de tráfico, mas sim que atuou, no caso em análise, apenas como intermediário da compra de uma porção de entorpecente para ficar com uma parte para seu próprio consumo, pois apesar de ser usuário não possuía dinheiro, é caso de absolvição, pois não há prova alguma de tráfico, na forma do art. 33, “caput”, hipótese constante da denúncia.
Poder-se-ia cogitar o argumento de que, para a configuração do tráfico, mesmo a cessão gratuita é conduta típica. Mas o réu não ofereceu a droga de modo gratuito. Ao contrário, a droga não era sua, foi-lhe solicitada, e “o preço” de seu risco com a compra era, justamente, uma porção da substância para si. O acusado alegou que consumiria a droga com Gilson, no momento em que chegasse na empresa deste (consumo compartilhado). A situação não foi confirmada por Gilson, que, de outro lado, admitiu que o réu ficaria com parte da substância para si. Não foi flagrado o consumo, efetivamente, mas apenas a entrega da substância. Ao que tudo indica, o réu seguiria com parte da droga para casa, a fim de consumir sozinho, enquanto o consumidor ficaria com a sua porção, consumindo-a também sozinho. Que situação é esta senão aquela descrita no parágrafo 3º do artigo 33 da Lei de Drogas?
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IV. Dispositivo Pelo exposto, dou provimento ao recurso defensivo e absolvo Erich Fernando Seibert da imputação do artigo 33, caput, da Lei 11.343/06, com fulcro no artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal. À unanimidade, a Câmara deu provimento ao recurso defensivo e absolveu o réu da imputação do art. 33, caput, da Lei 11.343/06, com fulcro no art. 386, VII, do CPP. Os Desembargadores Sérgio Miguel Achutti Blattes (Revisor) e João Batista Marques Tovo (Presidente) votaram de acordo com o Relator.
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