Capa a ser definida pelo capista B O L E T I M I N F O R M AT I V O D O C A N A L C I Ê N CIAS CRIMINAIS ANO 02 | Nº 03 | ISSN 0000-0000 | 2016/01 W W W. C A N A L C I E N C I A S C R I M I N A I S . C O M . BR
EDIÇÃO Nº3
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Categoria: Direito Penal
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Sumário A Suspeição do Magistrado/Testemunha para Presidir a Ação Penal_______________________2 Aphonso Vinicius Garbin
Rumos e Horizontes na Psicologia Criminal_______7 Claudius Gomes de Aragão Viana
Desobediência/Insubordinação Civil como Resposta aos Crimes Políticos Continuados: Direito Fundamental______________13 Juan Ygnácio Koffler Añazco
Processo Penal e a Constituição Federal: o Procedimento Sumaríssimo e sua Compatibilidade com o Tribunal do Júri_________19 Lorena Machado Do Nascimento
A Ciência Forense e o Estudo do Perfil do Criminoso____________________________24 Mariana Azevedo Couto Vidal
A Prescrição Penal nos Crimes Cometidos por Pessoa Jurídica____________________________29 Matheus Gonçalves dos Santos Trindade
O Acordo de Leniência na Medida Provisória 703/2015: Novos Regramentos e o Alcance de Novas e Possíveis Celebrações______34 Milene Maurício
Processo Penal: Sistema (Neo)Inquisitório_______39 Paulo Silas Taporosky Filho
Informativo de jurisprudência__________________43
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A Suspeição do Magistrado/ Testemunha para Presidir a Ação Penal Aphonso Vinicius Garbin
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caso hipotético: Um juiz, titular de uma única vara criminal de um município de interior, está parado numa calçada conversando com um homem que está a lhe vender um automóvel. Por conta de um esbarrão em outro transeunte, o pretenso vendedor (pessoa de pele morena) é ofendido com os seguintes dizeres: “cuidado, seu macaco!” A vítima, extremamente abalada pela situação, descobrindo através de terceiros a identidade do agente, registra Boletim de Ocorrência, que se transforma num Termo Circunstanciado, o qual chega ao Ministério Público, que, diante da representação em audiência preliminar, não sendo caso de concessão das benesses do Juizado Especial Criminal, denuncia o autor das injúrias, porém não arrola o juiz como testemunha, que, por coincidência, é o magistrado da vara onde o feito fora distribuído. Parece pegadinha de questão de prova, mas tal hipótese pode ocorrer na prática: o magistrado pode vir a processar e julgar uma ação penal em que tenha presenciado os fatos, inobstante não ser arrolado como testemunha? Veremos. Quando o juiz é relacionado como testemunha, é causa de impedimento previsto no rol taxativo do art. 252 do Código de Processo Penal, em seu inciso segundo, o qual prevê que o julgador
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não poderá exercer sua jurisdição no processo em que ele próprio serviu como testigo. Todavia, no caso em tela, o juiz presenciou os fatos, mas não fora arrolado pelas partes. O julgador, em que pese ter testemunhado os fatos que deram ensejo à deflagração da ação penal, continuando a presidir a demanda, está agindo de encontro à equidade necessária para ofertar ao acusado o regular deslinde da ação, mediante decisões justas inerentes à democracia no processo penal, tratando-se do princípio da imparcialidade, onde o juiz se afasta dos fatos, mas não lhes é neutro, na medida em que têm suas convicções políticas, sociais, religiosas, deve ser imparcial, afastando o seu subjetivismo das partes e do objeto da ação[1]. A ação penal deve ser conduzida por alguém que, afora aceitar a versão da acusação, deve acreditar na inocência do réu[2], longe de subjetivismos extraprocessuais, tais como de alguém que presenciou algo e carrega consigo suas percepções do que aconteceu, contudo, por não ser onipotente, não consegue apresentar a riqueza de detalhes de tudo que se passou. Diante da sua essencialidade para a atividade jurisdicional, a imparcialidade é tida, além de requisito de validade processual, como elemento ímpar no que se refere à atividade judicante em contrapartida aos demais poderes[3]. Neste quadro, o art. 254, caput, do Código de Processo Penal prevê que “O juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes”. Em que pese tal dispositivo trazer um rol de possibilidades, sendo sustentado por parcela da doutrina como taxativo, mostra-se crível entender-se pelo contrário, posto que este arrolamento não alberga todas as causas de suspeição do juiz[4]. Não se pode olvidar que outras situações, além daquelas prevista na lei, podem retirar do julgador a sua imparcialidade, devendo Nº 03 | 2016/01
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se admitir que existem outras razões para que seja detectada a suspeição[5], tal como na hipótese em que o “Juiz que testemunha os fatos não pode julgá-los. Ele pode, no máximo, ser arrolado como testemunha. E testemunha não julga”[6]. Um julgador parcial é causa de suspeição, viciando todo o processo e os atos praticados por ele (lição de NUCCI). Quanto a isso, é importante emprestar-se da doutrina processual civilista de Humberto THEODORO JÚNIOR[7], quando afirma que apesar de não ser alistado como testemunha de alguma das partes, o juiz não tem a condição de processar e julgar o feito quando presenciou os fatos objeto da ação, pois, nestas conjecturas, consciente ou inconscientemente, sua persuasão encontra-se sob influência de eventos e circunstâncias extras, além do processo. Ora, “Mesmo que o magistrado pudesse ter contato imediato com a situação de fato que lhe é submetida a julgamento, ainda assim haveria largo espaço para discutir a fidelidade de sua percepção, as suas pré-compreensões”[8]. Aqui, data vênia aos entendimentos opostos (no qual se entende que, não se enquadrando o caso nas hipóteses taxativas dos arts. 252 e 254 do CPP, deve ser alegada a incompatibilidade de que trata o art. 112 do mesmo Diploma), é imperioso reconhecer que esta medida demanda o reconhecimento espontâneo por parte do julgador[9], o que torna muito difícil a demonstração pelo réu de tal suspeição. De tal modo, o juiz que testemunhou os fatos, presidindo a ação penal que os processam, colocará em cheque a imparcialidade de que se exige ao caso, tornando viciados todos os atos por ele praticados no feito, pois ao réu, numa demanda criminal, é assegurado o julgamento por um juiz imparcial, equidistante das partes e dos fatos postos sob judice, posto que a garantia de imparcialidade do 4
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juiz ainda está em pleno vigor, insculpida no art. 8º, item 1, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos[10]. Portanto, o juiz que presenciou os fatos é suspeito para processar e julgar a respectiva ação penal, na forma do art. 254, caput, do CPP, devendo ser suscitado através de exceção de suspeição (CPP, art. 95, inciso I e ss.), e, continuando a atuar no processo, é causa de nulidade absoluta de todos os atos por ele praticados, na forma do art. 564, inciso I, do mesmo Diploma Legal. NOTAS [1] ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto de processo penal conforme a teoria dos jogos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 128. [2] SUANNES, Adauto. Os fundamentos éticos do devido processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 31. [3] POZZEBON, Fabrício Dreyer de Ávila. A imparcialidade do juiz criminal enquanto ausência de causas de impedimento ou de suspeição. Revista Direito e Justiça. 39. v., n. 1, jan./jun. 2013, p. 116. [4] LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 520. [5] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 549. [6] STRECK, Lenio Luiz. Não havia provas, mas a juíza disse: “testemunhei os fatos”! E cassou o réu! São Paulo, Consultor Jurídico, 10 jul 2014. [7] THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. 56. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 221. Nº 03 | 2016/01
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[8] PRADO, Daniel Nicory do. Autos da barca do inferno: o discurso narrativo dos participantes da prisão em flagrante. Dissertação de Mestrado. Curso de Mestrado em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Salvador: Janeiro de 2009, p. 18-19.
Rumos e Horizontes na Psicologia Criminal
[9] POZZEBON. A imparcialidade do juiz criminal..., p. 117. [10] NUCCI. Código de processo penal comentado..., p. 549.
Aphonso Vinicius Garbin – Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Advogado Criminalista.
Claudius Gomes de Aragão Viana
O
título deste artigo poderá parecer um tanto pretensioso e desajeitado – embora adequado ao seu propósito – gerando a necessidade de certas explicações prévias a seu respeito. Iniciando pela própria expressão “rumos e horizontes”, que indica minha intenção de discorrer sobre as direções atuais e as perspectivas das articulações possíveis entre a Psicologia e as Ciências Criminais, abordarei as possibilidades de aplicação de fundamentos da ciência do comportamento a essa área específica do Direito. Com efeito, temos aqui uma especificidade dentro de outra especificidade, que constitui a primeira dificuldade na abordagem do tema: recortar, do grande conjunto de teorias e práticas da Psicologia atual, um corpo de aplicações concretas e de interesse para a Ciência Jurídica. Reconstruir a trajetória dessa associação foge ao escopo deste trabalho, e os interessados na história da constituição dessas relações no Brasil poderão encontrá-la nas Diretrizes para atuação e formação dos psicólogos do Sistema Prisional Brasileiro[1], estudo publicado em 2007 a partir de uma parceria entre o Conselho Federal de Psicologia e o Ministério da Justiça. Por ora, cabe lembrar que, assim como outros campos da Psicologia Aplicada, este se encontra em constante desenvolvimento, requerendo a associação permanente entre trabalho e pesquisa.
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O segundo termo do nosso título, “Psicologia Criminal”, também exige esclarecimentos. Não ignoro que nas produções acadêmicas e científicas o termo seja evitado pelos psicólogos brasileiros, que aparentemente enxergam certos aspectos estigmatizantes na expressão, a qual recorda uma época não muito distante em que a Psicologia contribuiu para a legitimação da criminalização e da reclusão como modos de enfrentamento das questões sociais mais amplas que envolvem a transgressão das leis. Entre esses, encontraremos a preferência por termos como “Psicologia Forense”, “Psicologia Jurídica” ou “Psicologia Judiciária”. Já os operadores do Direito não parecem possuir melindres em utilizar o termo que os psicólogos tentam proscrever. Citando Fernandes (1998) e Rovinski (2002), Lago et al afirmam que a atuação dos psicólogos brasileiros na área jurídica foi contemporânea do reconhecimento legal da profissão, na década de 1960[2]. Segundo os mesmos autores, os primeiros trabalhos nessa área foram compostos quase exclusivamente de estudos acerca de adultos e adolescentes infratores da lei. Junto ao sistema penitenciário, a ação dos psicólogos foi oficializada a partir da Lei de Execução Penal de 1984, embora, não oficialmente, essa atuação ocorresse em diversos estados brasileiros há alguns anos. As circunstâncias históricas da aproximação entre Psicologia e Direito através da área criminal esclarece certos aspectos da relação atual entre essas ciências no Brasil, mormente na permanência de questões, formas e modos como se apresentam as demandas pelo trabalho dos psicólogos, bem como nas expectativas dos diversos atores sociais em relação às suas possibilidades de atuação no sistema judiciário. Tais possibilidades vão além das atualmente exploradas em nosso país. Ilustrando as direções possíveis para o emprego da Psico-
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logia Aplicada no campo do Direito Penal, apresentaremos dois exemplos da sua potencialidade como instrumento subsidiário nas investigações criminais: o offender profiling e o crime action profiling. Esses recursos já fazem parte da realidade cotidiana e do arsenal técnico-científico de órgãos policiais em diversas nações, embora em nosso próprio país a função dos psicólogos nessa área se resuma a pouco mais do que era a sua atividade original, há mais de cinco décadas: como perito para averiguação de periculosidade, de condições de discernimento ou de sanidade mental de partes em litígio ou em julgamento. Assumindo então a premissa – e a esperança – de que em algum momento dos anos futuros chegaremos a empregar em nosso país os modelos bem sucedidos da aplicação de teorias psicológicas no apoio às investigações criminais, consideraremos os Estados Unidos da América como contraponto e exemplo, ou nas palavras do nosso desajeitado título, o horizonte desejável. Nesse contexto, evocamos a crescente importância concedida pelo Federal Bureau of Investigation (FBI) ao conhecimento psicológico na investigação e na prevenção de crimes. A relação entre a unidade de polícia do Departamento de Justiça norte-americano e as ciências comportamentais tem como marco a solicitação de investigadores daquela unidade ao psiquiatra James Brussel (1905-1982) para que estudasse cenas de crime e fotos de mais de trinta atentados a bomba, cometidos ao longo de dezesseis anos, que permaneciam insolúveis para os métodos de investigação tradicionais. A descrição do perfil psicológico do criminoso elaborada por Brussel levou à prisão de George Metesky, apelidado Mad Bomber, autor das explosões. Isto ocorreu no ano de 1956, dado que reforça e confirma nossa sensação de atraso em relação ao tema[3].
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Brussel continuou auxiliando a polícia de Nova Iorque e outras agências de investigação entre 1957 e 1972. Seu processo de elaboração de perfis criminosos foi reconhecido pela própria Associação Americana de Psicologia (APA – American Psychological Association), organização que representa os psicólogos nos Estados Unidos da América e no Canadá, como uma das principais contribuições da Psicologia à Justiça na área criminal. O artigo Criminal profiling: the reality behind the myth, publicado em 2004 na revista Monitor Staff, mantida pela APA, descreve a contribuição de Brussel na criação do método denominado Offender profiling (literalmente, perfil criminoso ou perfil do criminoso), que envolve a análise da ação criminosa e sua comparação com crimes similares ocorridos no passado. No método, combinam-se a análise detalhada da cena do crime (contexto, ambiente, circunstâncias) e das atividades da vítima (antecedentes, atividades, conexões pessoais), na busca pelo entendimento da motivação e para o desenvolvimento de uma descrição do perfil físico e psicológico do agressor. Outro exemplo desses recursos, descrito na mesma publicação, é o crime action profiling (perfil da ação criminosa), um método desenvolvido pelo psicólogo forense Richard Kocsis e sua equipe. Inspirado em métodos similares às entrevistas utilizadas por psicólogos clínicos para a elaboração de diagnósticos, Kocsis conduziu estudos de amplo espectro sobre o modus operandi de assassinos em série, estupradores e incendiários, estabelecendo padrões que constituem um guia para o estabelecimento de perfis em investigações futuras.
Conclusões Estes dois exemplos isolados não resumem e estão longe de esgotar as possibilidades de emprego da Psicologia Aplicada nos
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processos judiciários e investigações criminais. Nesta exposição, ambas as técnicas foram apresentadas como contraponto ao parco desenvolvimento da área em nosso próprio país. Por um lado, temos notícias de profissionais brasileiros, tanto do setor público quanto do privado, que buscam aperfeiçoamento no estrangeiro em palestras, cursos e intercâmbios nessa área; além disso, recentemente, instituições particulares de ensino superior passaram a oferecer o criminal profiling course a nível de especialização lato sensu. Mas essas iniciativas são isoladas e ainda parecem longe de se disseminarem como práticas correntes no Brasil. O destaque que concedemos a elas vem ao caso principalmente como ilustração das possibilidades inexploradas das contribuições que os psicólogos podem oferecer ao sistema judiciário, para além daquelas que já desempenham. Resta a esperança de alcançar um futuro, desejavelmente próximo, no qual os psicólogos brasileiros possam desenvolver seu potencial de contribuição para as Ciências Criminais, transcendendo seu papel atual e oferecendo os amplos recursos da Psicologia em busca da justiça e da transformação social, um objetivo sempre almejado e que justifica sua própria existência enquanto ciência aplicada. NOTAS [1] CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA & MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Diretrizes para atuação e formação dos psicólogos do Sistema Prisional Brasileiro. Conselho Federal de Psicologia: Brasília, 2007. [2] LAGO, Vivian de Medeiros et al. Um breve histórico da psicologia jurídica no Brasil e seus campos de atuação. Estudos de Psicologia. (Campinas), Campinas, v. 26, n. 4, p. 483-491, Dez. 2009.
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[3] WINERMAN, Lea. Criminal profiling: the reality behind the myth. Monitor Staff. v. 35, n. 7, p. 66. jul/ago 2004.
Claudius Gomes de Aragão Viana – Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História, Política e Bens Culturais do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Psicólogo.
Desobediência/Insubordinação Civil como Resposta aos Crimes Políticos Continuados: Direito Fundamental Juan Ygnácio Koffler Añazco
1. Palavras preliminares ao leitor [...] a omnipotência da pátria ou do Estado, é a exclusão e negação da liberdade individual, isto é, da liberdade do homem, que não é em si mesma senão um poder moderador do poder do Estado. A liberdade individual é o limite sagrado em que termina a autoridade da pátria[1].
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ptamos pelo introito deste ensaio mediante a citação supra, por considerá-la emblemática (ao revés) da atual situação em que se encontra a nação brasileira, diuturnamente castigada por crimes continuados de lesa-pátria, incentivados pela figura costumeira (histórica) da impunidade como eterna salvaguarda das ações políticas deletérias. Os perpetradores de crimes de colarinho branco repentinamente se multiplicaram, como por um passe de mágica, espraiando-se e infiltrando-se por todos os estratos sociais, do topo à base da pirâmide humana, num processo similar ao do efeito dominó, contaminando o todo social. Diante desta situação próxima do caótico, ditos crimes passaram a constituir um cenário doentio e endêmico, contagiando os indivíduos de caráter dúbio, despersonalizados ou extremamente vorazes pelos ganhos e benesses fáceis. Daí o
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cenário turbulento que vige nestas últimas décadas, com grave perturbação da ordem social e do equilíbrio institucional. A sociedade brasileira, refém de uma sucessão de desmandos inimagináveis, literalmente afundou num obscuro processo marcado pela decadência moral e ética, nacional (lato sensu). Explodiram os índices de inflação, de desemprego, de escândalos, em cujo deprimente cenário contabilizam-se perdas de inocentes vidas humanas, destruição e dilapidação do patrimônio público e das riquezas da nação, desapropriação coercitiva provocada por uma avalanche de impostos escorchantes sem qualquer contrapartida em serviços de qualidade – na saúde, nos transportes públicos, na previdência social, na educação em seus três patamares básicos, nos serviços sociais et cetera. Em suma, um cenário de devastação, de desmotivação, de tristeza cidadã sem precedentes. O sufrágio democrático, infelizmente, se mostrou inepto e por demais capcioso e dúbio, restando comprometido em sua sagrada missão de refletir os anseios da nação. As manipulações políticas espúrias hoje são produzidas à luz do dia. Os três poderes montesquianos vivem seu maior momento de grosseiro e criminoso conluio. A Justiça é tardia e falha. O Estado Democrático de Direito, resumidamente, perdeu seus alicerces e afastou-se do fiel cumprimento do seu verdadeiro desiderato. Se as instâncias de poder que compõem a Divisão Administrativa do País descumprem ou mal cumprem suas funções mais básicas, o que restaria para a sociedade ordeira e trabalhadora, como saída desse incômodo impasse? A desobediência civil, único instrumento pacífico de resolução de conflitos. Ou isso, ou a guerra civil.
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2. Desobediência ou insubordinação civil? Há singela diferença entre um e outro conceito. A desobediência pressupõe uma resposta social aos atos do governo no sentido de intentar e induzir sua reformulação a fim de que sejam assimiláveis pela sociedade, ao passo que a insubordinação reclama a modificação total do sistema[2]. Ante uma lei injusta (ou um arcabouço legal injusto), impõe-se a desobediência civil, a dissidência, o asilo ou a greve, como reações pacíficas. Já as reações de desobediência violenta apontam a guerra, a revolução, a rebelião, a desobediência criminal, o terrorismo[3]. A figura da desobediência civil tem em Henry Thoreau (1817-1862) sua representação fiel. Revoltado com a renitência do regime de escravidão (ainda vigente) e opositor ferrenho à sangrenta guerra EUA-México pela posse do território de Texas, Thoreau teria se negado a pagar um imposto federal e, em razão disso, fora preso por uma noite. A desobediência configurava um veemente reclamo contra a lei injusta que mantinha vigente o regime escravagista. A partir desse antecedente e transportando-o ao presente e à situação brasileira da última década, a união de forças sociais congregadas contra os incontáveis impostos extorsivos sem a correspondente contraprestação em serviços de qualidade; contra a impunidade vigente nos sucessivos casos de corrupção política e social; contra a dilapidação criminosa dos recursos públicos; enfim, esse largo caleidoscópio criminoso exige uma resposta à altura: a desobediência civil. Única ferramenta pacífica que forçaria as autoridades públicas a rever suas ações e a ajustar-se às demandas justamente guerreadas pela sociedade.
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A insubordinação ou insurreição civil, por seu lado, implica em resistência violenta ao status quo ante bellum (estado das coisas antes da guerra), medida coercitiva que intenta deter pela força os abusos de um governo despótico, inepto, mesmo aquele disfarçado de democracia – que, saliente-se, não são poucos os desta classe, Brasil incluído. Um trecho emblemático que bem ilustra o que afirmamos extraímos de uma obra de 1869[4], ambientada na Espanha sob o reinado de Fernando VII: Ao que jamais há sucedido, hão denominado costume; ao que há sucedido apenas uma vez, hão dado o nome de costume imemorável; e ao que há sucedido num caso extraordinário contra toda lei e direito, hão declarado costume legal. A refinada sagacidade com que se hão disfarçado tantos embustes, há sido amalgamada com a torpe insolência com que se há insultado o povo espanhol; usurpando-se o nome deste fiel e heroico povo para dá-lo a uma porção de filhos espúrios que hão manchado sua vida com negríssimos borrões [todos os grifos do autor].
Em suma, lá como cá, hoje como no passado, os governantes travestem-se com o manto de uma falsa democracia e sob ele perpetram os mais grosseiros crimes de lesa-pátria e de lesa-humanidade, com destemor ao saberem-se imunes à lei e à ordem constitucional. Tal situação (irracional e abusiva) parece desprezar a força de um povo, mormente quando sentem-se seguros ante a inércia social endêmica. A reação social – recorde-se – está inscrita na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, produto da Revolução Francesa, ostentando em seu Artigo 2º, verbis: “O fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses Direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão” [grifamos].
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Nada obstante todas essas pomposas normas, o certo é que os crimes políticos continuados, em sua mais larga escala, persistem e resistem aos séculos denotando uma clara dicotomia entre os que mandam e os que obedecem; entre a sociedade, titular de direitos e deveres, e os governantes, também titulares de direitos democraticamente adquiridos, enquanto dos seus deveres soem tergiversar sua compreensão, servindo-se de subterfúgios dolosos que castigam diuturnamente aquela sociedade, seja por ação ou por omissão.
3. Palavras finais Nenhuma ideologia dominante poderá ser entendida como profícua, seja qual for a sociedade em que aquela prospere. O adjetivo dominante de per se admite a existência de um grupo social poderoso, não raro calcado em interesses políticos, econômicos e/ou sociais grupalizados cujo escopo é privilegiar seus próprios interesses em detrimento de segmentos excluídos porque divergentes. Não há, em suma, uma sociedade ideal, mas grupos de interesses conflitantes que buscam submeter uma parcela da sociedade aos seus específicos propósitos, derrubando de vez a falácia do conceito democracia. NOTAS [1] ALBERDI, Juan B. Política y sociedad en Argentina. Caracas: Fundación Biblioteca Ayacucho, 2005, p. 327. [2] LABASTIDA, Horacio. Semanario Político 1988-1994. México, D.F.: Universidad Nacional Autónoma de México, 1995.
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[3] MARSAL, Carmen G. Desobediencia civil: volviendo a Thoreau, Gandhi y M. L. King. In: Foro, Nueva Época, 11-12, 147-191. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 2010. [4] FERRER, Frey Magin. La cuestión dinástica: examen. In: Altar y Trono, Revista Hispano-americana. Madrid: Imprenta de la Esperanza, 1869.
Processo Penal e a Constituição Federal: o Procedimento Sumaríssimo e sua Compatibilidade com o Tribunal do Júri Lorena Machado do Nascimento
Juan Ygnácio Koffler Añazco – Jus-sociólogo.
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s normas constitucionais no ordenamento jurídico brasileiro gozam de supremacia diante das demais, e a razão para tanto é a manutenção do Estado Democrático de Direito instituído no país com a Constituição Federal de 1988. Ademais, é sabido que as normas protetivas de direitos humanos (esses universais) positivadas em tratados internacionais possuirão status de norma constitucional desde que aprovadas pelo Congresso nacional com o mesmo quórum das emendas constitucionais. Nesse diapasão, é trazida à discussão a Lei n. 11.313/2006 que alterou o artigo 60, § único, da Lei n. 9099/1995 e determinou que ”o Juizado Especial Criminal, provido por juízes togados ou togados e leigos, tem competência para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor potencial ofensivo, respeitadas as regras de conexão e continência”, bem como que “na reunião de processos, perante o juízo comum ou o tribunal do júri, decorrentes da aplicação das regras de conexão e continência, observar-se-ão os institutos da transação penal e da composição dos danos civis”. Entretanto, em que pese o legislador tenha se empenhado em solucionar a problemática da conexão processual, não realizou a leitura constitucional e fundamental das referidas diretrizes.
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Lorena Machado Do Nascimento
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Dos Juizados Especiais Criminais
Do Tribunal do Júri
Com o seu sistema diferenciado, os Juizados Especiais foram instituídos com os objetivos da não aplicação da pena privativa de liberdade e do fomento à reparação dos danos sofridos pela vítima, ou seja, o caráter da pena (preventivo ressocializador e punitivo)[1], quando cometido esse tipo de delito, deve ser aplicado de forma diferenciada dos demais, sobretudo em respeito aos princípios da intervenção mínima e da proporcionalidade[2], punindo-se conforme a gravidade do delito que foi praticado.
Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1.988, através do artigo 5º, inciso XXXVIII, o Júri foi, mais uma vez, determinado como o órgão competente para julgar crimes dolosos contra a vida, bem como os crimes que lhe forem conexos.
Assevera o professor José Laurindo de Souza Netto[3], que o legislador criou uma presunção júris tantum de que infrações de menor potencial ofensivo são os delitos sobre os quais o interesse da persecução é reduzido a ponto de ser bastante, para a sua satisfação, o cumprimento de condições, prescindindo o processo judicial, como é o modelo ordinário. Destarte, os Juizados Especiais criminais possuem fundamento no artigo 98, inciso I, da Constituição Federal, o qual determina o julgamento das infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante procedimento oral e sumaríssimo, bem como a possibilidade de transação e julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau. Posteriormente, a Lei dos Juizados Especiais estabeleceu que “o processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação”[4], bem como que as referidas infrações seriam os delitos cuja pena máxima em abstrato não ultrapassassem dois anos.
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Como o artigo 5º da Constituição Federal trata de direitos e garantias individuais e coletivos, direitos esses que foram estabelecidos como cláusula pétrea pelo artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV, da Carta, admite-se que o Juiz Natural dos crimes dolosos contra a vida é o Tribunal popular, sendo a referida competência material, incontestavelmente, absoluta, já que atribuída pelo legislador constitucional.
Inconstitucionalidade do art. 60, § único, da Lei n. 9099/1995 Em que pese o legislador constitucional atribuir a exclusividade do julgamento das infrações de menor potencial ofensivo aos juizados especiais, a Lei n. 11.313/2006 passou a prever que “na reunião de processos, perante o juízo comum ou o tribunal do júri, decorrentes da aplicação das regras de conexão e continência, observar-se-ão os institutos da transação penal e da composição dos danos civis”[5]. Tal previsão possui o condão de unificar os processos no âmbito do Júri e tornar único o seu julgamento, promovendo a unificação probatória.
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Contudo, construiu-se notória inconstitucionalidade. É salutar apontar que assim como o Tribunal do Júri, a instituição dos Juizados Especiais também possui status constitucional. Ambas as competências são materiais e absolutas, e ambas foram estabelecidas pelo legislador constitucional. É latente, sobretudo pelos argumentos aduzidos sobre as funções dos juizados especiais, que eles foram criados com objetivos específicos de política criminal e social, com fomento na celeridade e informalidade dos delitos que lesam bens jurídicos menos relevantes. Portanto, a reunião dos crimes com as infrações em comento, sob o julgamento do tribunal do Júri, fere primordialmente o princípio constitucional e direito fundamental do juiz natural. Ademais, enquanto os processos dos crimes dolosos contra a vida possuem um longo procedimento, demandando muito mais tempo para sua finalização, nos juizados especiais a aplicação da composição civil ou da transação podem ocorrer já na primeira audiência de conciliação, diferentemente do que ocorre quando são processados em conexão com os crimes dolosos contra a vida no Júri, quando a transação e a composição civil só podem ser ofertadas no judicium causae. Infere-se, assim, que sob a Lei n. 11.313/2006 também paira a inconstitucionalidade no que tange ao direito constitucional da razoável duração do processo, bem como no direito de punir do Estado, uma vez que ao deslocar da competência para um trâmite mais burocrático, as infrações de menor potencial ofensivo são mais comumente alcançadas pela prescrição[6].
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que os juízos naturais atuem, independentemente, para a melhor eficácia da política criminal. NOTAS [1] HIRECHE, Gamil Föppel El. A função da pena na visão de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 22. [2] TOURINHO NETO, Fernando da Costa. Os crimes organizados. Revista jurídica da Seção Judiciária do Estado da Bahia, Salvador, n. 7, ano 6, mai.2007. [3] NETTO, Laurindo de Souza. Processo penal: modificação da Lei dos Juizados Especiais Criminais. Curitiba: Juruá, 1998, p. 44. [4] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Niterói: Impetus, 2012, p. 430. [5] LIMA. Manual de Processo Penal..., p. 430. [6] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 7. ed. Salvador: Jus Podivm, p. 800.
Lorena Machado do Nascimento – Pós-graduada em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Cândido Mendes. Bacharela em Direito pela Faculdade Ruy Barbosa (DeVry). Advogada.
Assim, uma vez traçadas as inconstitucionalidades latentes, reitera-se a urgente necessidade de revogação da lei supramencionada ou a utilização da Ação Direta de Inconstitucionalidade com fulcro de excluí-la do ordenamento jurídico, possibilitando, assim,
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A Ciência Forense e o Estudo do Perfil do Criminoso Mariana Azevedo Couto Vidal Ciência Forense nada mais é do que um estudo que reúne um conjunto de técnicas científicas com a finalidade de solucionar um crime. Assim, a ciência forense auxilia a justiça na investigação criminal, objetivando a descoberta da verdade envolvendo a aplicação de conhecimento técnico e científico na resolução de questões criminais. Nesse sentido, destaca-se um ramo de suma importância para a ciência forense, a Psicologia e Psiquiatria Forense, permitindo um estudo profundo do perfil do criminoso. A psicologia e a psiquiatria têm um papel fundamental da construção desse saber, o de responder principalmente a duas perguntas: o criminoso tinha discernimento ou autocontrole prejudicado por motivo de transtorno mental? Quais as motivações subjacentes ao comportamento em questão? Juridicamente, essas perguntas são muito importantes, pois determinam a culpabilidade e dosimetria da pena. A resposta à primeira pergunta revela se o criminoso pode ser inteiro ou parcialmente responsável pela sua conduta delituosa ou mesmo se é absolutamente isento de responsabilidade por não entender a ilicitude do fato. Essas situações implicarão a caracterização/exclusão da culpabilidade ou a redução da pena. Já a resposta à segunda pergunta
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permitirá, por exemplo, averiguar a existência de circunstâncias agravantes, atenuantes ou qualificadoras do crime. Os aspectos relacionados à saúde mental e justiça têm exigido cada vez mais da psicologia e da psiquiatria uma compreensão multifatorial para analisar se o criminoso tem um problema mental que de algum modo interferiu na sua conduta na ocasião do crime, ou se essas características são apenas motivos implícitos ao comportamento infracional, que acabaram por interferir na dosimetria da pena. A psiquiatria e a psicologia auxiliam de forma fundamental e determinante no âmbito jurídico-penal, pois contribuem intensamente para que órgãos da justiça utilizem conhecimentos especializados no tocante aos processos que regem a vida humana e a saúde psíquica, de modo a aplicar a lei de forma correta. Mas qual a diferença de psicologia e psiquiatria forense? A psicologia forense é uma especialização que atende à demanda judicial contemplando os conhecimentos jurídicos e médico-legais. O seu objetivo é esclarecer as questões judiciais particulares que surgem nas fases de instrução ou na fase processual. Realiza o psicodiagnóstico criminal e o aconselhamento psicossocial nas demandas das Varas de Execução Criminal e tratamento de vítimas de violência domésticas, por exemplo. A psiquiatria forense é uma subespecialidade da psiquiatria e da medicina legal atuando nos casos em que existe qualquer dúvida sobre a integridade ou a saúde mental dos indivíduos, em qualquer área do Direito, buscando esclarecer à justiça se há ou não a presença de um transtorno ou enfermidade mental e quais as implicações da existência ou não de um diagnóstico psiquiátrico. O psiquiatra forense tem a função de auxiliar a justiça com a explicação de fatos médicos em termos leigos que possibilitem Nº 03 | 2016/01
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a maior correção nas decisões tomadas e não de ajudar ou favorecer este ou aquele, nem tampouco determinar se uma pessoa é culpada ou inocente.
sário para a execução do crime e essa característica é crítica para a satisfação das necessidades emocionais do criminoso, estando enraizada na sua própria fantasia.
A psiquiatria e psicologia forense tem uma importante colaboração relacionada à elaboração do chamado perfil criminal do suspeito. O objetivo dessa prática é construir o percurso de vida do indivíduo criminoso e todos os processos psicológicos que o possam ter conduzido à criminalidade, tentando descobrir a raiz do problema, uma vez que só assim se pode partir à descoberta da solução. A psicologia criminal realiza estudos psicológicos de alguns dos tipos mais comuns de delinquentes e dos criminosos em geral, como, por exemplo, dos psicopatas.
Dentro deste contexto, destaca-se o Criminal Profiling[1], uma ferramenta comportamental e de investigação fundamental com o intuito de contribuir na investigação de um crime através da definição da personalidade do criminoso e até mesmo da vítima. É um método através do qual é possível identificar o perpetrador de um crime, com base na análise da natureza do crime e no modo como foi cometido. Diversos aspectos da construção da personalidade do criminoso são determinados pelas escolhas que tomou antes, durante e depois do crime. O profiling psicológico pode ser descrito como um método de identificação de suspeitos, o qual procura identificar as características mentais, emocionais e de personalidade da pessoa, que se manifestam, por exemplo, no que o criminoso fez ou deixou na cena do crime.
Para a realização do perfil, faz-se necessário considerar que o comportamento em si não revela necessariamente o autor de um ato criminoso. Para tal, faz-se necessário um estudo retrospectivo do fato, considerando-se: análise do processo, entrevistas com os peritos criminais, entrevistas com as vítimas (sobreviventes) e testemunhas, parentes das vítimas, local do crime (sinais de ansiedade, organização), área de captação do crime, análise do legista, análise das provas físicas e entrevista com o policial responsável pelo caso. Quando se trata de realização do perfil ou da análise do comportamento do criminoso, deve-se considerar o modus operandi, que nada mais é do que o comportamento do criminoso que assegura o sucesso do crime, protege sua identidade e garante a sua fuga. Não se pode conectar crimes com base apenas no modus operandi, pois o mesmo é dinâmico e vai se sofisticando conforme o aprendizado do criminoso e a experiência adquirida com os crimes anteriores. Contudo, o modus operandi representa o ritual que se traduz em padrão de comportamento que excede o neces-
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O profiling criminal é realizado por um profiler[2]. A premissa do criminal profiling é que o comportamento reflete a personalidade. Os profilers procuram entender a personalidade do ofensor através das seguintes fases: antecedente, quais os planos ou fantasias tinha o assassino preparado antes do crime; método e forma, qual o tipo de vítima e qual o método foi usado pelo assassino; disposição do corpo, se o crime e a disposição do corpo ocorreram ao mesmo tempo ou na mesma cena e comportamento pós-ofensa, se o criminoso tenta inserir-se na investigação contatando investigadores. Todavia, merece ser destacada outra fase do criminal profiling: a fase da ligação de casos. Este é o processo em que se determina se há, ou não, pontos de ligação entre dois ou mais casos anteriormente sem relação, através da análise da cena do crime. Isto envolve o estabelecimento e comparação das provas físicas, vitimo-
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logia, características da cena do crime, modus operandi e comportamentos de assinatura entre cada um dos casos sob investigação. A partir de tudo o que foi exposto no presente artigo, vimos que o direito necessita do tecnicismo da ciência que proporciona o conhecimento da verdade e auxilia na investigação criminal, fortalecendo as provas e ajudando na análise de vestígios. Através da união desta ciência com o direito, dentro do ramo da ciência forense, surge a psicologia e psiquiatria forense, fontes primordiais para a elaboração do perfil psicológico do criminoso, possibilitando identificar os motivos primários que o levaram a tal prática criminosa e o seu comportamento, configurando uma ferramenta forense útil na investigação de crimes. NOTAS [1] Criminal Profiling: do inglês, perfil do criminoso, ato de salientar os traços de uma pessoa que praticou fato criminoso. [2] Profilers: do inglês, criador de perfil. O profiler é aquele que elabora o perfil do criminoso.
Mariana Azevedo Couto Vidal – Bacharel em Direito pela Faculdade Vianna Júnior. Pós-graduanda em Processo Penal pela rede LFG. Presidente do núcleo do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família), da cidade de Juiz de Fora/MG.
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A Prescrição Penal nos Crimes Cometidos por Pessoa Jurídica Matheus Gonçalves dos Santos Trindade
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á muito tempo se discute no mundo alguma forma de combater um novo ramo da criminalidade moderna, denominada pela doutrina de criminalidade não convencional ou empresarial[1]. O constituinte brasileiro, em 1988, atento aos debates travados especialmente nos Estados Unidos e na União Europeia acerca do tema, instituiu pela primeira vez no Brasil comandos constitucionais que abririam, em tese, a possibilidade de responsabilização penal do ente moral. Com isso, a Constituição brasileira passou a dispor, no seu artigo 173, § 5º, que a lei estabelecerá a culpabilidade da pessoa jurídica, sem detrimento da responsabilidade individual dos seus dirigentes, sujeitando-a a punições condizentes com a sua natureza no que tange aos atos praticados contra a ordem econômica e financeira, bem como em prejuízo à economia popular. No que refere a este dispositivo, insta salientar que ainda não houve regulamentação acerca da imputação penal do ente coletivo. Importante frisar, de mesmo modo, que se sustenta na doutrina que o referido artigo não nos conduz à conclusão de que é possível a empresa responder penalmente pelos seus atos, visto que o termo responsabilidade deve ser lido sem adjetivos, sendo este um conceito jurídico geral, e não especial, como seria se fosse redigido com responsabilidade penal[2]. Nº 03 | 2016/01
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Estabeleceu a Carta Magna, outrossim, no artigo 225, § 3º, que os comportamentos nocivos ao meio ambiente sujeitarão, as pessoas físicas ou morais, a punições penais e administrativas, independente da obrigação de reparação do dano causado. Com o advento da Lei 9.608/98, temos, no seu artigo 3º, efetivamente, a imputação criminal da pessoa jurídica, no que concerne aos crimes ambientais, podendo essa ser condenada à pena restritiva de direitos, visto que não possui condições de cumprir pena privativa de liberdade. Desde então, vem se travando, na doutrina e na jurisprudência, incessantes batalhas acerca da constitucionalidade da responsabilização criminal do ente abstrato em delitos ambientais, sustentando-se que, através da aplicação da interpretação constitucional sistemática, não seria possível tal imputação, frente às garantias constitucionais voltadas para a definição de crime, capacidade delitiva e aplicação da pena[3]. Em que pese doutrinariamente o cabimento da responsabilização criminal do ente abstrato ainda ser bastante discutido, temos no Poder Judiciário a superação do embate acima referido, local onde se firmou o entendimento de que é possível a inculpação penal da pessoa jurídica, em segundo plano, sendo imprescindível, para tanto, a comprovação e a imputação de conduta criminosa à pessoa física (nullum crimen sine actione humana). Esta teoria de responsabilização penal foi denominada pela doutrina como Teoria da Dupla Imputação ou Teoria do Ricochete. O referido posicionamento foi adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, prevalecendo até o ano de 2013, quando o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário n.º 548.181/PR, debruçou-se sobre a questão, definindo que a Teoria da Dupla Imputação seria inconstitucional, por fazer um condicionamento de imputação que o mandamus constitucional não fez.
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Vejamos que o legislador pátrio se preocupou em incriminar a pessoa jurídica, entendendo ser esta um órgão que, através dos seus membros, possui intenção de benefício, cultura própria com possibilidade de desvio e vinculação direta com a pessoa física que realiza o ato. Todavia, não observou a compatibilidade da inculpação criminal do ente abstrato com a teoria do delito clássica, que levou décadas para chegar ao estágio de consolidação de garantias em que se encontra[4]. Até o marco decisório supramencionado, enquanto vigia a Teoria do Richochete, verificamos que o Poder Judiciário tomava como base, majoritariamente, para o cálculo da prescrição dos delitos ambientais cometidos em concurso de agentes de natureza física e jurídica, a pena cominada da infração imputada, utilizando-se o art. 109 do CP. Ocorre que, após a decisão do recurso supramencionado, surge a seguinte questão: se a pessoa moral somente pode ser condenada à pena restritiva de direitos, pode a prescrição do delito ser calculada com base na pena privativa de liberdade abstratamente cominada no delito, ou deve-se aplicar a prescrição disposta no art. 114, I, do CP, que diz respeito à pena de multa? Em um primeiro momento, devemos observar que os tipos de sanções aplicáveis à pessoa jurídica, conforme o art. 21 da Lei 9.605/98, são: multa, restrição de direitos e prestação de serviço à comunidade. É importante frisar que, mesmo a Lei Ambiental tendo na sua parte geral estipulado a incriminação do ente coletivo e as suas penas aplicáveis, ela não estipulou, na parte especial, o lapso temporal de aplicação da referida aflição penal. Vejamos, destarte, que as penas aplicáveis às pessoas jurídicas, ainda que determinadas pelo juízo criminal, não possuem a natureza da referida seara, sendo, portanto, incompatíveis com o cálculo prescricional pelo lapso temporal abstrato dos delitos. Neste
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ínterim, sendo a prescrição disposta no art. 109 do CP um instituto em que é imprescindível a observância da pena legalmente cominada, entendemos que ele é inaplicável aos entes morais.
de imputação de entes coletivos e individuais trazidos pela lei 9.608/1995 no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v.23, n.114, maio/jun. 2015, p. 204.
Ademais, ante a referida lacuna preconizada pelo legislador, cabe a nós, intérpretes, preenchê-la através da analogia de que no direito penal pátrio só cabe in bonam partem, motivo pelo qual devemos, lançando mão de uma interpretação sistêmica, aplicar a prescrição concernente à pena de multa, pois é mais benéfica ao réu[5].
[2] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. In: PRADO, Luiz Regis; DOTTI, René Ariel (Coords). Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação subjetiva. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 276-277.
De outra banda, na medida em que constatamos a incompatibilidade supramencionada, criamos outro problema, agora de esfera prática, pois a prescrição do delito ambiental cometido por ente moral, à luz do art. 114, I, do CP, seria de 02 anos. Considerando este exíguo lapso temporal, bem como a dificuldade de apuração de um delito corporativo combinada com a mora no início ou curso de uma ação penal, tal posicionamento esvaziaria o mandamus constitucional de responsabilização criminal da pessoa jurídica, o que foi o principal argumento utilizado pelo STF para a quebra da Teoria da Dupla Imputação.
[3] REALE JÚNIOR, Miguel. A responsabilidade penal da pessoa jurídica. In: PRADO, Luiz Regis; DOTTI, René Ariel (Coords). Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação subjetiva. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 354.
Diante do exposto nesta breve abordagem, podemos concluir que o Brasil importou o instituto da imputação criminal da pessoa jurídica de forma equivocada, não observando a necessária mudança na dogmática penal clássica, através da utilização de regras materiais e processuais próprias para os entes morais. Com isso, no que tange ao tema então abordado, devemos aplicar a prescrição disposta no art. 114, I, do CP, até que seja suprida a lacuna legislativa, oportunidade em que não precisaremos lançar mão de analogia.
[5] MUNIZ SANTOS, Rodrigo. Responsabilidade penal das pessoas jurídicas e prescrição. In: PRADO, Luiz Regis; DOTTI, René Ariel (Coords). Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação subjetiva. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 320.
NOTAS
[4] GÓMEZ-JARA DÍEZ, Carlos. A responsabilidade penal da pessoa jurídica e o dano ambiental: a aplicação do modelo construtivista de auto-responsabilidade à Lei 9.605/98. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 9.
Matheus Gonçalves dos Santos Trindade – Pós-Graduando em Direito Penal Militar pela Verbo Jurídico. Bacharel em Direito pela FMP. Advogado criminalista.
[1] WUNDERLICH, Alexandre. A responsabilidade penal por danos ambientais: do cenário atual à avaliação crítica ao modelo 32
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O Acordo de Leniência na Medida Provisória 703/2015: Novos Regramentos e o Alcance de Novas e Possíveis Celebrações Milene Maurício
O
Acordo de Leniência – ato celebrado entre a Secretaria de Desenvolvimento Econômico (em nome da União) e autores de infração contra a ordem econômica, tanto pessoa física ou jurídica, para permitir ao infrator a colaboração nas investigações e nos processos administrativos, a fim de reparar danos coletivos, em troca, porém, de alguns benefícios, para a melhor eficiência na aplicabilidade brasileira – sofreu algumas alterações em sua história. Advindo dos ideais norte-americanos, o instituto da leniência ingressou no ordenamento jurídico brasileiro com a Medida Provisória nº 2.055/2000, convertida posteriormente na Lei nº 10.149/2000, a qual introduziu diversos dispositivos na Lei nº 8.884/94 (Antitruste) no sentido de ampliar os poderes instrutórios da Secretaria de Desenvolvimento Econômico (SDE) e Secretaria de Acompanhamento Econômico, como uma forma de mecanismo de controle de práticas antitruste[1]. Assim, permitia-se que a SDE celebrasse junto ao Ministério da Justiça acordos de leniência, os quais contemplavam benefícios como imunidade administrativa e também criminal (com exceção dos crimes de cartel do art. 90 da Lei nº 8.666/93 e formação de quadrilha), de acordo com o antigo artigo 35-C da Lei nº 8.884/94
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(redação dada pela Lei nº 10.149/2000), que prescrevia a suspensão do curso do prazo prescricional e impedia o oferecimento da denúncia. Além disso, após o cumprimento do acordo, determinava-se, automaticamente, “a extinção da punibilidade dos crimes”. Posteriormente, com a Lei nº 12.529/2011, que revogou a Lei nº 8.884/94, o acordo passou a ser previsto nos artigos 86 e 87, incluindo, principalmente, a competência do CADE para julgamento dos acordos celebrados. Já na Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013), a previsão do acordo de leniência se deu no artigo 16, “com objetivo de garantir que as empresas colaborem efetivamente com as investigações e com o processo administrativo, identificando os demais envolvidos na infração, além de evitar que a empresa seja responsabilizada no âmbito administrativo, permitindo-lhe a manutenção de suas relações com o poder público”[2]. Surgiram, portanto, diversos questionamentos sobre o instituto da leniência, assim como: a competência de julgamento pelo CADE, incluindo a capacidade de extinguir a punibilidade no âmbito criminal, bem como o questionamento sobre a inconstitucionalidade deste instituto, por desrespeitar o contraditório e o direito à não autoincriminação. Tais discordâncias e regramentos descontentes com as antigas redações das leis já supramencionadas, ao invés de incentivarem a celebração de vastos acordos, faziam o oposto e distanciavam a vontade da pessoa em realizar acordos de leniência. A fim de se estabelecerem novos e competentes regramentos a serem enquadrados ao instituto de leniência, o Senado Federal elaborou o Projeto de Lei nº 105, de 2015, com a aplicação efetiva e correta dos dispositivos. No entanto, como há uma ampla morosidade para a aprovação de novas leis no ordenamento juríNº 03 | 2016/01
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dico brasileiro, a alternativa encontrada para adaptar a legislação e celebrar acordos de leniência, dando continuidade à atividade econômica brasileira, foi a edição de uma Medida Provisória. Por isso, o instituto de leniência foi alterado pela Medida Provisória nº 703, de 18 de dezembro de 2015, que trouxe importantes alterações, principalmente nos artigos 16 a 17-B da Lei nº 12.846/2013, com o intuito de prevenir novas infrações, aprimorando as regras para o interesse público. Com isso, um novo embate e mais discussões, na qual uma parcela da população, formada em sua maioria por juristas, entendeu que a nova redação pôs fim às dúvidas jurídicas que ocorriam na Lei anterior, afastando os receios das empresas em realizar acordos, mas, em compensação, outra parcela, ainda não satisfeita, critica a alteração legislativa e diz estar descontente, principalmente com o argumento de que a modificação traz impunidade, e também se posicionando no sentido de que somente o Congresso Nacional tem competência para realizar a referida alteração, e que a MP aprovada contrariou o artigo 62, § 1º, b, da Constituição, que proíbe que medidas provisórias versem sobre direito penal, processual penal e processual civil. Dentre as importantes alterações que trouxe a recente Medida Provisória, logo no artigo 16, caput, foi possibilitar a participação do Ministério Público ou da Advocacia Pública no momento da celebração do acordo de leniência, dando, assim, segurança jurídica aos lenientes, o que significa dizer que será proibida a hipótese de propositura de ação civil pública prevista na Lei de Improbidade Administrativa, ou, caso já tenha sido ajuizada, será obstado o prosseguimento quando da celebração do acordo de leniência. As alterações se estenderam também a outros importantes aspectos, tais como: i) à Lei de Licitações, pois o acordo de leniência 36
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agora permite a isenção da pessoa jurídica das sanções ao direito de licitar; ii) isenções de sanções pecuniárias nos casos de conluio de empresas, integrais, garantidas à primeira empresa leniente, ou uma diminuição de até dois terços às demais lenientes. Ou seja, caso celebre acordo de leniência, a pessoa jurídica ainda não será inidônea para participar de licitações e executar contratos com a Administração Pública. Se já tiver sido considerada inidônea, em caso anterior, a norma retroagirá para que possa beneficiar a empresa e torná-la apta a negociar com a administração pública novamente (Constituição, art. 5º, inciso XL). Além disso, outro importantíssimo aspecto, já no âmbito criminal, foi de grande valia ao instituto e ao seu novo regramento, uma vez que a pessoa jurídica não precisa mais admitir sua participação no ato ilícito, resgatando, assim, seu direito de não produzir prova contra si mesma e cessando já um grande embate tido anteriormente. De certo, os benefícios são tamanhos, mas há de se discordar da crítica aos que creem em uma Medida Provisória da impunidade e da inconstitucionalidade. Dentre diversas discussões, a empresa apresenta um bem maior, e a medida provisória permite a sua permanência, qual seja: a garantia de que, mediante a colaboração no acordo, a empresa fique intacta, garantindo empregos e fazendo circular a economia. Além disso, sabe-se que a corrupção e delitos concorrenciais são cometidos de maneira mais sofisticada, o que dificulta a produção de provas, por isso, a nova redação dada pela Medida Provisória se torna plausível, pois, com os novos benefícios, a celebração do acordo de leniência se torna de maior interesse e mais convincente às pessoas jurídicas, possibilitando, assim, o acolhimento de novas provas e o combate à corrupção, e mais: a imposição de
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obrigações para a empresa: (I) fazer cessar a sua participação nas infrações desde a celebração do acordo, e (II) aumentar sua área de compliance ao se comprometer em implementar ou melhorar os mecanismos internos de integridade. Por fim, importante posicionar que o índice de punições após a Lei Anticorrupção no Cadastro Nacional de Empresas Punidas tendeu a zero, estando na data de 22 de dezembro de 2015[3] com 30 processos administrativos, sendo 29 oriundos da operação Lava Jato. Por isso, a aprovação da Medida Provisória para alterar a redação dos artigos dos acordos de leniência, mesmo sendo em sua forma, e possibilitar a celebração de acordos de leniência, a fim de se obterem provas dos ilícitos cometidos, foi de grande avanço no ordenamento jurídico. NOTAS [1] PETRELLUZZI, Marco Vinicio; RIZEL JUNIOR, Rubens Naman. Lei Anticorrupção: origens, comentários e análise da legislação correlata. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 91. [2] Disponível em: <http://bit.ly/1VC5Oyk>. Acesso em: 13 jan 2016. [3] Disponível em: <http://bit.ly/1rzrGy6>. Acesso em: 13 jan 2016.
Milene Maurício – Advogada criminalista.
Processo Penal: Sistema (Neo)Inquisitório Paulo Silas Taporosky Filho
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Constituição Federal de 1988 estabeleceu, em suas diretrizes (que podem ser extraídas), diversos direitos e garantias salutares e devidos, os quais se encontram dispostos ao longo de seus artigos. Com base no texto constitucional, é possível notar que se desenhou o trilhar para o sistema processual penal pátrio que deveria ser adotado a partir de então, a saber, o sistema acusatório. Entretanto, mesmo passados quase trinta anos desde a promulgação do resultado concreto da constituinte, ainda se observa presente no direito processual penal um ranço inquisitório. Pudera, vez que o nosso Código Processual Penal data de 1941. Registre-se também que ocorreram, obviamente, significativas alterações processuais penais no decorrer de todos esses anos. Mas ainda assim a essência do Código permanece a mesma, de modo que as alterações legislativas eventuais e não integrais realizadas não foram suficientes para efetivar o estipulado sistema acusatório pela Constituição. Sistema, em seu aspecto processual, poderia ser definido, em apertada síntese, como um conjunto de fatores estruturantes que possuem uma finalidade determinada, possuindo certo liame entre tais fatores, vez que, analisando o conjunto de todos os elementos que o compõe, ter-se-ia um fim precípuo.
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Delimitando quais seriam os sistemas processuais existentes, pode-se falar em sistema inquisitório e sistema acusatório, tendo cada um destes suas próprias especificidades. O sistema inquisitório seria aquele que remonta ao direito canônico, onde a gestão da prova se encontra nas mãos da figura do juiz-inquisidor (produção de provas de ofício), cujo processo não é totalmente aberto ao acusado (há sigilo), onde há desigualdade entre as partes (o papel da defesa é limitado, enquanto o da acusação não encontra barreiras) e, consequentemente, o contraditório não é amplo. Já o sistema acusatório seria aquele que remonta ao sistema grego, onde a gestão da prova se encontra nas mãos das partes (juiz como terceiro imparcial), cujo processo é totalmente aberto ao acusado (publicidade plena), onde há igualdade entre as partes (paridade de armas), ou seja, onde o contraditório e a ampla defesa são efetivamente concretizados. Analisando qual seria o cerne da questão que pontuaria a possibilidade de diferenciar os sistemas, tem-se que a gestão da prova seria o fator determinante, o qual acabaria por evidenciar qual é o sistema processual abordado. Focando no direito processual brasileiro, adotou-se costumeiramente o discurso de mencionar que o sistema vigente não seria nem o inquisitório, nem o acusatório, mas sim um sistema misto, vez que presentes elementos de ambos os sistemas. Dentre as justificativas em assim se sustentar, por exemplo, teria a de que toda a fase investigativa tramita de modo inquisitorial, ou seja, sem a possibilidade de se ver manifestado um contraditório efetivo. O nome do instrumento utilizado para tanto confirmaria a assertiva: inquérito. Por outro lado, a parte que tange ao sistema acusatório seria observada no processo propriamente dito, vez que a partir do momento em que se inicia o procedimento judi-
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cial, são garantidos ao acusado o contraditório e a ampla defesa, além de outras garantias previstas. Ocorre que tal argumento não se sustenta. Não há como querer se falar em sistema misto. É ser inócuo. É dizer sem nada dizer. Dizer “sistema misto” é utilizar meramente uma máscara para a verdadeira celeuma que se esconde. A separação de atividades acusar-julgar não é motivo suficiente para dizer que se tem um sistema acusatório implantado na fase processual. Como mencionado, o “X” da questão se encontra na gestão da prova: quem produz a prova no processo? Analisando o Código de Processo Penal é possível observar que não são poucas as hipóteses em que é possibilitado ao julgador agir como produtor de provas. Dentre os exemplos mais gritantes, pode-se mencionar a previsão do artigo 385 (onde se menciona que o juiz pode condenar o réu mesmo quando existir pedido de absolvição pela própria acusação) e a do artigo 311 (em que se possibilita ao juiz decretar prisão preventiva de ofício). Protagonismo pelo juiz possibilitado pelo próprio código. Eis situações em que o código situa a gestão da prova também nas mãos do julgador, caindo por terra qualquer tentativa de sustentação de se enquadrar a fase processual como sendo acusatória. O sistema misto é um mero mito. Merece ser superado, sob pena de continuar se incorrendo numa falta de lógica gritante. A análise mais profunda de toda a problemática que envolve a discussão acerca dos sistemas inquisitório e acusatório se faz mais que necessária. Para muito além de uma discussão teórica, vez que seus efeitos são reiteradamente produzidos na prática processual, o engodo do sistema misto merece ser escancarado e transpassado. Enquanto se aguarda esperançosamente por uma reforma legislativa completa que realmente atenda os anseios garantidores Nº 03 | 2016/01
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Informativo de Jurisprudência constitucionais, que ao menos o discurso seja franco. Não se tem hoje um sistema misto, mas sim, nos dizeres de Aury Lopes Jr., um sistema (neo)inquisitório.
Superior Tribunal de Justiça Recurso em Habeas Corpus nº 51.531 - RO, Sexta Turma, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 19.04.2016.
Paulo Silas Taporosky Filho – Especialista em Ciências Penais. Especialista em Direito Processual Penal. Pós-graduando em Filosofia. Advogado.
EMENTA: PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. NULIDADE DA PROVA. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA A PERÍCIA NO CELULAR. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. 1. Ilícita é a devassa de dados, bem como das conversas de whatsapp, obtidas diretamente pela polícia em celular apreendido no flagrante, sem prévia autorização judicial. 2. Recurso ordinário em habeas corpus provido, para declarar a nulidade das provas obtidas no celular do paciente sem autorização judicial, cujo produto deve ser desentranhado dos autos.
VOTO: Min. Nefi Cordeiro (RELATOR) Consta dos autos que o paciente foi denunciado pela prática dos crimes previstos nos arts. 33 e 35 da Lei 11.343/06 e art. 329 do CP. Em 6/8/2014, a Corte Estadual denegou a ordem, consoante acórdão assim ementado (fl. 61):
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Habeas corpus. Processo Penal. Tráfico de drogas. Prova pericial. Nulidade. Transcrição de mensagens de texto gravadas no aparelho apreendido. Inocorrência de prova ilícita. Ordem Denegada. 1. É válida a transcrição de mensagens de texto gravadas no aparelho celular apreendido com o paciente por ocasião de sua prisão em flagrante pois estes dados não gozam da mesma proteção constitucional de que trata o art. 5º, XII. 2. Ordem denegada.
Neste recurso, busca-se a decretação da ilicitude das provas extraídas do aparelho celular do recorrente dada a ausência de ordem judicial. Extrai-se do voto condutor a seguinte fundamentação (fls. 64/66): Em breve narrativa fática, consta dos autos que o paciente foi preso no dia 18/03/2014, sob a acusação de praticar o delito de tráfico de entorpecentes e ainda associação para o tráfico.
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cífica de perpetrar o delito de tráfico de entorpecentes, cada um exercendo uma tarefa específica. Em informações apresentadas às fls. 40/42 a autoridade impetrada afirmou que o aparelho de telefone celular foi apreendido com o paciente por ocasião de sua prisão em flagrante, apontando que a perícia realizada no aparelho tem fundamento no art. 6º, incs. II, III e VII do CPP. Informou ainda que o acesso aos dados constantes do aparelho, no caso dos autos, não encontra o mesmo impedimento da interceptação telefônica e que a autoridade policial agiu estritamente para cumprimento da Lei. A discussão apresentada pelo impetrante circunda a possibilidade de realização unilateral da perícia no aparelho de telefone celular apreendido quando da prisão em flagrante sem a alegada imprescindível autorização judicial. Entendo que a tese apresentada pelo impetrante é desprovida de fundamento porquanto a proteção do acesso aos dados constantes do aparelho não se assemelha à interceptação telefônica.
A denúncia descreve que uma denúncia anônima informou que no dia em que foi preso o paciente receberia, via correios, uma carga de entorpecente.
Inicialmente relato que o telefone celular foi apreendido no momento da prisão em flagrante do paciente, ocasião em que os policiais recolheram todos os instrumentos que poderiam estar relacionados ao crime, incluindo este aparelho, encaminhando-o à autoridade policial competente.
Foi realizado acompanhamento pela polícia militar e tão logo a encomenda fora entregue realizaram a abordagem, logrando êxito em apreender na posse do paciente um recipiente contendo 300 (trezentos) comprimidos de ecstasy.
Após a apreensão a autoridade policial conduziu a investigação conforme disposto no art. 6º do CPP, determinando a realização de perícia do entorpecente apreendido e ainda extração das conversações do aparelho celular do paciente.
Investigações complementares demonstraram que o paciente se associou com os corréus com a finalidade espe-
Assim dispõe o referido texto legal:
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Art. 6º Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá: [...] II - apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais; (Redação dada pela Lei nº 8.862, de 28.3.1994) III - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias; [...] VII - determinar, se for caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias; Nota-se que o legislador não atribuiu discricionariedade ao ato impugnado, pelo contrário, determina que a autoridade policial realize as ações descritas nos incisos do referido artigo. Entendo não ser imprescindível a decisão judicial para realização de perícia em aparelho celular apreendido pois a lei permite até mesmo a violação de domicílio para efetuar prisão em flagrante. Relato ainda que o Direito Penal e Processual Penal possuem natureza pública, geridos pelo Estado, representante das vontades e interesses da coletividade. Cito este fato em razão do questionamento da atividade pericial realizada, e saliento que a perícia foi realizada por agentes oficiais do Estado, legalmente incumbidos da realização dos estudos realizados, recaindo sobre eles a necessidade de observação explícita dos princípios constitucionais da legalidade, moralidade, impessoalidade, dentre outros. Apresentar meras ilações acerca da possibilidade de algum dos policiais prejudicar o paciente é demasiada-
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mente pueril, até mesmo porque não demonstrou objetivamente tal condição, não sendo relatado em momento algum dos autos a preexistência de qualquer animosidade pretérita ao fato. O fato é que ao empossar um agente público em seu cargo o Estado lhe confia o poder conferido pelo povo, presumindo-se legais os seus atos até ulterior conclusão contrária. Observo ainda que o art. 159 do CPP exige a realização dos trabalhos periciais por peritos oficiais, a saber: “Art. 159. O exame de corpo de delito e outras perícias serão realizados por perito oficial, portador de diploma de curso superior.” Sobre este tema, leciona Nucci (in Código de processo penal comentado / 13. ed. rev. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense, 2014) que “perito é o especialista em determinado assunto. É considerado oficial quando investido na função por lei e não pela nomeação feita pelo juiz. Normalmente, é pessoa que exerce a atividade por profissão e pertence a órgão especial do Estado, destinado exclusivamente a produzir perícias”. Com essas ponderações, considero válida a prova pericial decorrente da degravação do conteúdo constante do aparelho celular do paciente, inexistindo ainda qualquer ilegalidade a ser sanada.
A Constituição Federal prevê como garantias ao cidadão a inviolabilidade da intimidade, do sigilo de correspondência, dados e comunicações telefônicas - salvo ordem judicial: Art. 5º. [...]
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X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; [...] XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;
No caso das comunicações telefônicas, a Lei n. 9.294/96 regulamentou o tema: Art. 1º. A interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal e em instrução processual penal, observará o disposto nesta lei e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça. Parágrafo único. O disposto nesta Lei aplica-se à interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática. Art. 5º. A decisão será fundamentada, sob pena de nulidade, indicando também a forma de execução da diligência, que não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova.
A Lei n. 9.472/97, ao dispor sobre a organização dos serviços de telecomunicações, prescreve: Art. 3º. O usuário de serviços de telecomunicações tem direito: [...] 48
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V - à inviolabilidade e ao segredo de sua comunicação, salvo nas hipóteses e condições constitucional e legalmente previstas;
E a Lei 12.965/14, que estabelece os princípios, garantias e deveres para o uso da Internet no Brasil, prevê que: Art. 7º. O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos: I - inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; II - inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei; III - inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial; [...]
Na perícia realizada, houve acesso aos dados do celular e às conversas de whatsapp obtidos sem ordem judicial. No acesso aos dados do aparelho, tem-se devassa de dados particulares, com violação à intimidade do agente. Embora possível o acesso, necessária é a prévia autorização judicial devidamente motivada: RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE. DILIGÊNCIAS PARA VERIFICAR O REGULAR CUMPRIMENTO DA PENA. DECISÃO DESPROVIDA DE FUNDAMENTAÇÃO. 1. Embora não sejam absolutas as restrições de acesso à privacidade e aos dados pessoais do cidadão, e mesmo considerado o interesse público no acompanhamento da execução penal, imprescindível é a qualquer decisão judicial a explicitação de seus motivos (art. 93, IX, da Constituição Federal). Nº 03 | 2016/01
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2. Diligências invasivas de acesso a dados (bancários, telefônicos e de empresa de transporte aéreo) deferidas sem qualquer menção à necessidade e proporcionalidade dessas medidas investigatórias, não propriamente de crime, mas de regular cumprimento de pena imposta. Nulidade reconhecida. 3. Recurso especial parcialmente provido. (REsp 1133877/PR, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 19/08/2014, DJe 02/09/2014). PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. 1. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. VIOLAÇÃO AO ART. 157 DO CPP. OCORRÊNCIA. CONDENAÇÃO PELO DELITO DO ART. 1º, I, DA LEI N. 8.137/1990. QUEBRA DO SIGILO BANCÁRIO PELA ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. NULIDADE DA PROVA. 2. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. Afigura-se decorrência lógica do respeito aos direitos à intimidade e à privacidade (art. 5º, X, da CF) a proibição de que a administração fazendária afaste, por autoridade própria, o sigilo bancário do contribuinte, especialmente se considerada sua posição de parte na relação jurídico-tributária, com interesse direto no resultado da fiscalização. Apenas o Judiciário, desinteressado que é na solução material da causa e, por assim dizer, órgão imparcial, está apto a efetuar a ponderação imprescindível entre o dever de sigilo - decorrente da privacidade e da intimidade asseguradas ao indivíduo, em geral, e ao contribuinte, em especial - e o também dever de preservação da ordem jurídica mediante a investigação de condutas a ela atentatórias. 2. Recurso especial a que se dá provimento para reconhecer a ilicitude da prova advinda da quebra do sigilo ban50
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cário sem autorização judicial, determinando-se que seja proferida nova sentença, afastada a referida prova ilícita e as eventualmente dela decorrentes. (REsp 1361174/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 03/06/2014, DJe 10/06/2014)
Nas conversas mantidas pelo programa whatsapp, que é forma de comunicação escrita, imediata, entre interlocutores, tem-se efetiva interceptação inautorizada de comunicações. É situação similar às conversas mantidas por e-mail, onde para o acesso tem-se igualmente exigido a prévia ordem judicial: PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. OPERAÇÃO REVELAÇÃO. CORRUPÇÃO ATIVA. MEDIDAS CAUTELARES DETERMINADAS. AFASTAMENTO DE SIGILO DE CORREIO ELETRÔNICO. DURAÇÃO DA CONSTRIÇÃO. PRAZO: DE 2004 A 2014. FUNDAMENTAÇÃO PARA A QUEBRA DO SIGILO DO E-MAIL NO PERÍODO. AUSÊNCIA. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. NÃO OBSERVÂNCIA. OFENSA ÀS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS. FLAGRANTE ILEGALIDADE. EXISTÊNCIA. ORDEM CONCEDIDA. 1. A quebra do sigilo do correio eletrônico somente pode ser decretada, elidindo a proteção ao direito, diante dos requisitos próprios de cautelaridade que a justifiquem idoneamente, desaguando em um quadro de imprescindibilidade da providência. 2. In casu, a constrição da comunicação eletrônica abrangeu um ancho período, superior a dez anos, de 2004 a 2014, sem que se declinasse adequadamente a necessidade da medida extrema ou mesmo os motivos para o lapso
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temporal abrangido, a refugar o brocardo da proporcionalidade, devendo-se, assim, prevalecer a garantia do direito à intimidade frente ao primado da segurança pública. 3. Lastreadas as decisões de origem em argumentos vagos, sem amparo em dados fáticos que pudessem dar azo ao procedimento tão drástico executado nos endereços eletrônicos do acusado, de se notar certo açodamento por parte dos responsáveis pela persecução penal. 4. Ordem concedida, com a extensão aos co-investigados em situação análoga, a fim de declarar nula apenas a evidência resultante do afastamento dos sigilos de seus respectivos correios eletrônicos, determinando-se que seja desentranhado, envelopado, lacrado e entregue aos respectivos indivíduos o material decorrente da medida. (HC 315.220/RS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 15/09/2015, DJe 09/10/2015).
Atualmente, o celular deixou de ser apenas um instrumento de conversação pela voz à longa distância, permitindo, diante do avanço tecnológico, o acesso de múltiplas funções, incluindo, no caso, a verificação da correspondência eletrônica, de mensagens e de outros aplicativos que possibilitam a comunicação por meio de troca de dados de forma similar à telefonia convencional. Deste modo, ilícita é tanto a devassa de dados, como das conversas de whatsapp obtidos de celular apreendido, porquanto realizada sem ordem judicial. Ante o exposto, voto por dar provimento ao recurso ordinário em habeas corpus, para declarar a nulidade das provas obtidas no celular do paciente sem autorização judicial, cujo produto deve ser desentranhado dos autos.
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