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Boletim informativo do Canal Ciências Criminais. – Vol. 2, n. 2 (2015). – Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2015-. v. ; 21 cm. 978-85-8440-425-4 1. Canal Ciências Criminais - Periódicos. 2. Criminologia Periódicos. 3. Direito penal - Periódicos. CDD 364.098
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Sumário A Teoria da Subcultura e os Criminosos no Ambiente Digital___________________________ 2 Carlos Alberto Ferreira da Silva
A Garantia da Ordem Pública: Fundamento “Coringa” nos Decretos de Prisão Preventiva em Crimes Empresariais____________________ 7 Douglas Sena Bello
A Mitológica Busca da Verdade no Processo Penal_______________________________________ 12 Gênesis Cavalcanti Rayanne Odila
O Supremo Tribunal Federal, o Porte de Arma e o Problema da Ofensividade_________ 18 Guilherme Henrique Mariani de Souza
Há que se Falar em (In)Justiça Criminal_____ 23 Laís Gorski Rafael Max Possa de Freitas
Verdade Real: Um Resquício Inquisitório____ 29 Mariana Peronio Prestes
Avanço do Estado Penal e Crise do Sistema de Justiça Criminal_________________________ 34 Victor Matheus Bevilaqua
O Erro Sobre Elementos do Tipo no Delito de Lavagem de Capitais_____________________ 39 Vitor Raatz Bottura
Informativo de Jurisprudência______________ 44
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A Teoria da Subcultura e os Criminosos no Ambiente Digital Carlos Alberto Ferreira da Silva
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m princípio, a importância de compreender a teoria criminológica para uma posterior análise do incidente campo da informação é indispensável, pois se denota que o corpo social está transgredindo seu comportamento aos efeitos do campo virtual, esperando deste algo além daquilo que não é alcançado no espaço de propagação sem celeridade. Porém, neste contexto, a intenção principal é conectar as práticas delituosas informáticas, especificamente aquelas que exigem um pouco mais de conhecimento técnico, com a teoria da subcultura consagrada por Albert Cohen, em sua literatura criminológica Delinquent boys. A teoria em questão discute, dentre outras temáticas, a maneira que se compõem os determinados grupos sociais que implicam padrões inversos aos da sociedade como um todo, ou seja, os atos que sejam considerados ilícitos ou imorais são isolados e tratados como errôneos no ambiente social. Essa teoria pode ser interpretada nos casos da sociedade da informação, apesar de ter sido criada em referência às condições sociais dos sujeitos envolvidos nas circunstâncias consideradas desfavoráveis, principalmente no sentido de sobrevivência em sociedade. Obviamente que, no cenário pós-industrial, em alguns grupos os sujeitos possuem peculiaridades quanto ao conhecimento, trazendo
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nesta sociedade alguns mecanismos que não eram analisados no século passado, nem mesmo podemos afirmar que a classe social é um requisito visível nas averiguações cientificas para o teor da pesquisa sobre a teoria da subcultura na revolução tecnológica. Ora, neste ambiente teórico, não se admite uma absorvição na ideia de que nascemos com etiquetas ou valores marginalizados pré-determinados. Seguindo esse raciocínio, a presente proposta será abordada com exposições de que os criminosos com práticas delituosas no ambiente digital são semelhantes aos criminosos no espaço propriamente físico, a diferença são as formas utilizadas para a devida consumação, além do comportamento em si dos sujeitos que, aparentemente, são denominados como intelectuais ou cautelosos nas investidas criminosas. Aliás, em termos de populismo penal, a expressão delinquência, exposta na teoria em caso, para o ambiente digital, ainda não é visualizada como um produto viável ao medo e “digna” dos meios de comunicação sensacionalistas. Em razão disso, evidencio neste caso as práticas de conteúdo mais especialistas, que deveriam ter uma publicidade maior por conta da demanda em ascendência frente ao despreparo da sociedade. O indivíduo delituoso no ambiente digital geralmente possui alguns precedentes que precisam ser considerados para tal exposição, como, por exemplo, seu estado de transtorno psicológico decorrente de isolamento, desde a fase colegial, pois, na grande maioria dos casos, é o tempo originário para tal reação. Ora, esse comportamento, dependendo da situação, pode gerar circunstâncias vingativas e não me refiro aos crimes contra honra extensivos nesse espaço virtual. São delitos, como dito anteriormente, que basta o mero uso da internet para sua consumação no iter criminis. Além da própria ferramenta ser especifica, o conhecimento precisa ser notório, em inúmeros casos.
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A vertente no aspecto social-jurídico é que estamos diante de uma falha estrutural no corpo da sociedade, gerando assim uma subdivisão em vários ângulos. Ora, conforme é explanado por BARATTA[1], na teoria das subculturas criminais, o delito não pode ser considerado uma expressão inversa aos valores e normas sociais gerais e afirma que existem valores e normas especificas nos diversos grupos sociáveis. É verdade que, como diz RODRIGUES FILHO[2], muitos criminosos se mostram como forma de reação necessária de algumas minorias desfavorecidas. E, nesse ponto, se estende aos acasos ocorridos no ambiente virtual, principalmente em aspecto econômico, contudo não é apenas o fator financeiro que evita uma fragmentação entre os grupos sociais. Isto é, no espaço digital, normas e valores autônomos são criados pelos grupos em que se englobam os criminosos, para que entre eles possam haver uma “ordem social”. Além disso, é relevante dizer que entre estes grupos as diversas informações quanto aos novos vírus, espiões, engenharias sociais são compartilhadas e, como qualquer cadeia natural na sociedade, existem aqueles que lideram numerosos movimentos de caráter político-social. No caso em questão, o comportamento desviante não é apenas um problema na distribuição econômica, a ideia dominante no ambiente digital é a de que o “conhecimento gera conhecimento”, e tais informações não poderão ser divididas aos usuários que não possam oferecer nada em troca. Ressalto que, conforme bem explorado pelos autores MACHADO e VIANNA[3], o criminoso denominado como “2.0”, ao se envolver nos grupos subculturais de ambiente digital, acaba sendo induzido à realização de crimes eletrônicos para conquistar o respeito e aceitação.
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Além disso, muitos usuários isolados na realidade social física adquirem acatamento de terceiros no ambiente digital, concedendo-o um inicial poder de superioridade pelas suas habilidades que são ignoradas no plano real, mas são almejadas pelos usuários do “mundo paralelo” e que estes acabam respeitando os códigos morais originados na rede. A marginalização citada pela teoria de Cohen faz todo sentido na maioria dos crackers, que são os usuários com um conhecimento valorizado pela sociedade digital no âmbito eletrônico que possuem o intuito de aplicar seus atos neste ambiente de maneira maliciosa ou justificável. Esta última é uma razão apontada pelos valores e normas criadas nos grupos internos desses criminosos, que não consideram danoso ou imoral os atos praticados. Os crackers, em sua maioria, eram marginalizados na infância pela sua inteligência acima daquilo considerado como normal, sendo eles etiquetados por vários adjetivos pejorativos e, na Internet, os delituosos citados marginalizam aqueles que não possuem conhecimento necessário. Finalmente, dentro de uma concisa explanação, é possível verificar que os sujeitos em questão possuem um conhecimento notório e invejável, porém são apenas valorizados no ambiente digital, que possibilita aos usuários explorarem outros campos inacessíveis em regra, abrangendo ainda mais as suas ideias. Ora, é um perfil que poderia ser aproveitado em benefício da sociedade, pois muitos deles praticam crimes apenas para fins de conhecimento, nem todos visam os valores econômicos. E seguindo a vertente de Cohen, a formação das subculturas, neste caso, não foi pelo exemplo clássico colocado pelo autor, mas o termo marginalização é o mesmo e os efeitos colaterais podem ser drásticos, apenas tivemos modificações tácitas e de interpretação extensiva pela sociedade da informação.
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NOTAS [1] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 6. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p. 10. [2] PENTEADO FILHO, Nestor Sampaio. Manual esquemático de criminologia. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 58.
A Garantia da Ordem Pública: Fundamento “Coringa” nos Decretos de Prisão Preventiva em Crimes Empresariais Douglas Sena Bello
[3] VIANNA, Túlio; MACHADO, Felipe. Crimes informáticos. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 39.
Carlos Alberto Ferreira da Silva – Pós-Graduando em Direito Penal pela Damásio Educacional. Graduado em Direito pelo Centro Universitário Cesmac – Maceió/AL. Advogado criminalista.
A Lei 12.403/11 trouxe ao ordenamento processual penal brasileiro algumas alterações no tocante à prisão processual, introduzindo um rol de medidas cautelares diversas à prisão. No entanto, ao que se percebe, os Tribunais têm demonstrado certa resistência à sua aplicação, utilizando-se do fundamento da afronta à garantia da ordem pública para restringir a liberdade dos indivíduos. De plano, faz-se imperioso referir que a prisão preventiva se encontra dentro do gênero prisão provisória, caracterizando-se esta como a restrição à liberdade do indivíduo ocorrida antes do trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória. Dessa feita, a prisão preventiva tem por objetivo a proteção da persecução penal, tendo em vista que, como bem referido por AVENA[1], resguarda a sociedade, o processo penal, a investigação criminal e a aplicação da pena. No entanto, para a decretação da prisão preventiva é necessário que estejam preenchidos os requisitos que se encontram elencados no art. 312 do CPP, quais sejam, a garantia da ordem pública ou econômica, conveniência da instrução criminal ou assegurar a aplicação da lei penal, conjugado com os requisitos previstos no art. 313 do mesmo diploma legal. Dentre os requisitos ora referidos, para o professor LOPES JR.[2] a prisão preventiva para tutela
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da instrução criminal, juntamente com a prisão preventiva para assegurar a aplicação da lei penal, “[...] são verdadeiramente cautelares, na medida em que se destinam ao processo, a assegurar o regular e eficaz funcionamento do processo penal”. Impende observar, ainda, que, nos termos do art. 282, §6º do CPP, “a prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar”. Assim, tem-se percebido a opção de diversos julgadores pela não aplicação das medidas cautelares diversas da prisão elencadas no art. 319 do CPP, sob o argumento de que a prisão preventiva deve ser decretada para a garantia da ordem pública em razão dos mais diversos fundamentos, principalmente, a reiteração delitiva do agente. Nesse diapasão, para adentrar-se especificamente na garantia da ordem pública deve-se ressaltar que o surgimento da expressão ordem pública ocorreu na Alemanha nazista, onde fora utilizada como fundamento para o extermínio de outras raças, sendo introduzida no ordenamento jurídico brasileiro na ditadura militar, amparando a doutrina da segurança nacional, mitigando os direitos fundamentais[3]. Além disso, uma parcela da doutrina, como é o caso do autor NICOLITT[4], questiona a constitucionalidade da prisão preventiva para garantia da ordem pública, por afronta a presunção de inocência, pois não se destinaria a tutelar a persecução penal. O Projeto de Lei 4.208/2001, que originou a Lei 12.403/11, na sua redação original pretendia eliminar o fundamento da garantia da ordem pública em razão da sua indeterminação, como exposto no parecer do Deputado Abi-Ackel. Entretanto, a redação original fora alterada e a garantia da ordem pública continuou a existir como fundamento para restrição da liberdade dos indivíduos.
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Recentemente fora objeto de uma matéria da Revista Eletrônica ConJur que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, ao julgar um Habeas Corpus impetrado em favor de um dos réus da operação Lava Jato, defendeu a definição de novos parâmetros para a decretação da prisão preventiva. Contudo, no que tange à garantia da ordem pública, tais parâmetros devem coadunar-se aos preceitos constitucionais, o que não se vê na jurisprudência, uma vez que o fundamento objeto deste artigo tem sido utilizado como “coringa” para os decretos de prisão preventiva, principalmente na criminalidade empresarial. Os julgadores têm constantemente decretado ou mantido a segregação preventiva dos indivíduos com base na garantia da ordem pública, relacionando-a aos reflexos que a conduta do agente causou e pode causar na sociedade em razão de a criminalidade empresarial causar maiores prejuízos à sociedade que aqueles crimes praticados nas ruas, acrescido da possível reiteração delitiva do agente. Contudo, a reflexão que se faz oportuna neste momento é se o art. 282, §6º do CPP tem sido efetivamente respeitado pelos tribunais, haja vista que fundamentar a restrição à liberdade de um indivíduo nos reflexos do seu delito na sociedade significa decretar a prisão preventiva em razão da gravidade em abstrato do delito, fundamento este que é acrescido pela possível reiteração delitiva do agente, ou seja, “está se atendendo não ao processo penal, mas sim a uma função de polícia do Estado, completamente alheia ao objeto e fundamento do processo penal”[5]. Assim, acerca do primeiro argumento exposto no parágrafo anterior (gravidade do delito), deve-se perceber que, ao excepcionar a norma constitucional no que tange à restrição a liberdade de um indivíduo, não pode ser perpetrada sem uma análise detida do caso concreto, haja vista que segregar um indivíduo com base na gravidade em abstrato de um delito tornaria a prisão como regra
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para aquela espécie de crime, contrariando de maneira inconcebível a Constituição Federal. No entanto, ao que se percebe, os julgadores têm optado pela restrição à liberdade amparados pela crescente reprovação social dos crimes de colarinho branco, gerada em parte pela constante abordagem midiática acerca das operações policiais envolvendo crimes com vultosos valores envolvidos. Dessa forma, a garantia da ordem pública tem sido utilizada como coringa, assim como em um jogo de cartas, ou seja, encaixando-a em qualquer caso concreto em que se pretenda restringir a liberdade de um agente investigado, indiciado ou réu, normalmente fundamentando-se a impossibilidade de aplicação das medidas do art. 319 do CPP de maneira genérica, o que praticamente inviabiliza o ataque a esses fundamentos em sede, principalmente, de habeas corpus.
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[5] LOPES JR., Aury; ROSA, Alexandre Morais da. Crise de identidade da “ordem pública” como fundamento da prisão preventiva. Disponível em: <bit.ly/1NgJGjI>.
Douglas Sena Bello – Pós-graduando em Processo Penal pelo Instituto de Direito Penal Econômico Europeu da Universidade de Coimbra/IBCCRIM. Advogado criminalista.
NOTAS [1] AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo penal: esquematizado. 5. ed. São Paulo: Método, 2012. p. 926. [2] LOPES JR., Aury. O novo regime jurídico da prisão processual, liberdade provisória e medidas cautelares diversas: lei 12.403/2011. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 100. [3] CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo penal e constituição: princípios constitucionais do processo penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. pp. 218-219. [4] NICOLITT, André Luiz. Manual de processo penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 455.
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A Mitológica Busca da Verdade no Processo Penal Gênesis Cavalcanti e Rayanne Odila Ainda permeia, no imaginário de boa parte dos juristas, a ideia de que no processo penal busca-se uma “verdade real” na (re) construção histórica dos fatos delituosos. Desse modo, estaria o magistrado autorizado a perseguir tal “verdade” a todo custo, assumindo o papel central no processo e o acusado a penitência de ser mero objeto deste. Como bem ensina Salah KHALED JR.[1], “embora a obtenção de uma verdade correspondente em si mesma não passe de mera ilusão, trata-se de uma ilusão que exerce efeitos que, sem sombra de dúvidas, são reais”. Sendo assim, é de suma importância entender o que está por detrás do discurso da – inalcançável – busca da “verdade”, analisando suas origens, finalidades e consequências, para que possamos entender e, em seguida, desconstruir esse mito[2], ainda tão reproduzido nos livros de processo penal. O mito da verdade real nasce na Inquisição e, a partir daí, é utilizado para justificar os atos abusivos do Estado, seguindo a mesma lógica de que “os fins justificam os meios”. A busca da “verdade real” – vinculada à Inquisição e aos regimes autoritários –, sustenta o sistema processual penal inquisitório, autorizando o magistrado, em nome do “interesse público”, a pesquisar provas de ofício, independentemente da provocação das partes, buscan12
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do combater a qualquer custo o crime/heresia e o criminoso/herege – o acusado é visto como um inimigo, devendo assim ser eliminado. O sistema inquisitivo transforma radicalmente a estrutura do processo. O juiz deixa a sua posição de julgador imparcial[3] e assume a postura de inquisidor (buscar a “verdade”) e acusador, deixando a relação entre acusador e acusado totalmente desigual. O acusado agora perde sua condição de sujeito de direitos e se transforma em mero objeto de investigação. Na busca dessa inalcançável “verdade real”, a prisão cautelar torna-se regra geral, pois só assim o inquisidor teria o corpo do herege, para fazer o que bem entender, à sua disposição. Algo não muito diferente do que temos no nosso atual sistema processual penal com as prisões cautelares – preventiva e temporária. Com o corpo do acusado em seu domínio, buscava-se a confissão, rainha de todas as provas, e para isso a tortura física era o meio mais utilizado. No sistema inquisitivo, a tortura é legítima, pois não importa a crueldade da tortura em si, mas o afastamento do criminoso/ herege do caminho para eternidade – o paraíso cristão, prometido para os não pecadores – por ter praticado um crime/heresia[4]. O réu vira um pecador, logo, detentor de uma verdade a ser extraída, tornando-se um mero objeto de investigação. O acusado que confessa o cometimento do delito desempenha o papel da verdade viva, sendo o meio de prova preferido da Igreja, pois além de simbolizar a imagem de um pecador arrependido – daí a relação entre crime/heresia –, reforça todo o poder punitivo da Igreja Católica. No processo penal inquisitório o importante é o resultado obtido – preferencialmente a condenação – a qualquer custo ou de qualquer modo, até porque quem vai em busca da prova e determina sua legalidade é o mesmo agente – que, ao final, será o julgador.
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A pior herança desta busca da verdade real, segundo LOPES JR.[5], foi ter criado uma “cultura inquisitiva que acabou se disseminando por todos os órgãos estatais responsáveis pela persecução penal”. A partir dela, tudo é permitido em busca da condenação do acusado; toda e qualquer prática está autorizada pela nobreza de seus propósitos: a verdade. Diante de um olhar crítico, o processo penal só se justifica como limite ao poder estatal, ao poder punitivo, na redução do arbítrio e na tentativa de racionalização das respostas estatais aos atos etiquetados como crime. Romper com essa cultura inquisitiva passa, necessariamente, pela desmistificação da busca da verdade real no processo penal. Desta forma, é fundamental que os manuais de processo penal e os/as professores/as levem os/as estudantes a refletir se a busca da verdade, princípio fundante do sistema inquisitivo – autoritário –, é condizente com o projeto constitucional – democrático e garantista. Com efeito, uma perspectiva problematizadora da educação jurídica deve explorar todos os discursos jurídicos violadores de direitos fundamentais reproduzidos na academia. Um ensino jurídico efetivamente crítico deve preocupar-se também na superação do vício historicamente reiterado nos manuais e nas universidades acerca da busca da verdade real no processo penal. Este mito da “busca da verdade”, ligado diretamente à Inquisição e aos regimes autoritários, é totalmente incompatível com um Estado Democrático de Direito, porém bastante útil para uma determinada classe – a dominante – que, utilizando de tal mito, legitima discursivamente a repressão aos/às mais pobres. É mister esclarecer que a verdade real (absoluta) é algo inalcançável, como bem apontou Thums[6], pois é impossível o homem repro-
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duzir com exata precisão um fato pretérito, sendo o tempo responsável por extingui-lo no exato momento em que se tornou passado. Assim, é inconcebível uma verdade sobre o fato que está no passado, por mais que boa parte dos juristas ainda insista em denominar a solução judicial sobre um caso de “reconstrução da verdade”. Logo, a diferenciação clássica reproduzida nos manuais de direito entre processo penal e processo civil, que neste busca a verdade processual e naquele busca a verdade real, é incorreta. Muitos juristas acreditam que o problema da “verdade real” seria resolvido com sua substituição pela busca de uma “verdade processual”. No entanto, o imbróglio fantasioso consiste nessa busca da “verdade”, e não no adjetivo que a ela se atribua. Assim, não é suficiente desconstruir o mito da verdade real, sendo igualmente fundamental questionar-se também a “verdade processual” e, sobretudo, a “ambição de verdade”. O ponto nevrálgico está na pretensão de verdade e o que isso representa em termos de estrutura do processo. No processo penal, assim como no processo civil, não existe uma verdade, impossível reconstruir um fato do passado. Com efeito, o que deve ser buscado é um juízo de probabilidade, por meio do devido processo legal, perante um juiz legitimamente constituído, no qual sejam respeitados direitos fundamentais do acusado, como, por exemplo, o direito ao contraditório, à ampla defesa e à presunção de inocência. É preciso pensar um processo destituído da necessidade da busca por (um)a verdade. A decisão penal deve ser instruída e processada de acordo com os princípios constitucionais, normas legais de obtenção de provas e atuação das partes estabelecidas para uma relação jurídica processual. Assim, a verdade é contingencial, não fundante.
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Gênesis Cavalcanti Rayanne Odila
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A verdade real ou formal é um mito. A verdade, como correspondência entre um dado e a realidade, é uma só. A verdade está no plano ideal: é a plena correspondência que não pode ser reconstruída no mundo sensível.
[4] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 113.
A reprodução deste discurso acrítico – busca da verdade – nos manuais de processo penal é (co)responsável pela permanência de uma cultura inquisitiva no cotidiano forense. Romper com esse mito deve ser uma luta constante para aqueles/as que almejam uma sociedade verdadeiramente democrática e garantidora de direitos. Não é possível pensar uma educação jurídica efetivamente crítica e comprometida com os direitos fundamentais sem a superação desse enredo.
[6] THUMS, Gilberto. Sistemas processuais penais: tempo, tecnologia, dromologia e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 182.
O desmascaramento do mito da busca da verdade é pressuposto necessário para que o processo penal, estruturado em torno da presunção de inocência, concretize o programa constitucional de limitar o poder punitivo estatal e de elevar o valor da dignidade da pessoa humana como diretriz a ser seguida em toda e qualquer atividade do Poder Público.
Rayanne Odila Ribeiro do Nascimento – Graduanda em Direito pela UFPB – campus Santa Rita.
[5] LOPES JR. Direito processual penal..., p. 566.
Gênesis Jácome Vieira Cavalcanti – Pós-graduando em Direito Penal e Criminologia pela Uninter em parceria com ICPC (Instituto de Criminologia e Política Criminal). Bacharel em Direito pela UFPB – campus Santa Rita. Advogado.
NOTAS [1] KHALED JR., Salah Hassan. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013. p. 480. [2] Entendemos que mitos são narrativas que têm função exemplar e pedagógica, determinando modelos de comportamentos e oferecendo uma legitimação para o poder de determinado grupo social. [3] Imparcialidade aqui entendida como a inércia do órgão julgador, garantindo o distanciamento necessário ao julgamento. Princípio fundante do Sistema Processual Penal Acusatório.
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O Supremo Tribunal Federal, o Porte de Arma e o Problema da Ofensividade Guilherme Henrique Mariani de Souza Questão que ainda merece discussão diz respeito à presença ou não de um conteúdo de ofensividade nos crimes de perigo abstrato[1], tema que parece não haver sido bem compreendido pelos tribunais brasileiros. Para estas reflexões, tomar-se-á como exemplo o Habeas Corpus nº 102.087/MG, julgado pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal em fevereiro de 2012, que parece resumir bem o problema. Nesse caso, o voto do Relator, Ministro Celso de Mello, concedia a ordem de habeas corpus, considerando - a nosso ver, acertadamente – que o “[...] agente que porta arma de fogo desmuniciada e que, simultaneamente, também não dispõe de acesso imediato à munição necessária à sua utilização não cria, nem faz instaurar, com esse comportamento, situação efetiva de perigo real, o que descaracteriza, por completo, qualquer possibilidade, por remota que seja, de risco concreto ao bem jurídico penalmente tutelado”. Como se vê, não há discussões em relação à legitimidade da incriminação do porte de arma pela via de um tipo de perigo abstrato. Há, sim, considerações acerca da ausência de ofensividade e de tipicidade material da conduta. O Ministro Gilmar Mendes, divergindo desse posicionamento, inicia seu voto fazendo referência aos denominados “mandados 18
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expressos de criminalização”[2], previstos na Constituição Federal, que impõem uma série de obrigações ao legislador ordinário em matéria penal, como é o caso, por exemplo, da determinação de que a prática de racismo constitua crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão (art. 5º, inciso XLII, da CF). Citando a doutrina e a jurisprudência alemãs, o Ministro expõe a diferenciação do princípio da proporcionalidade em sua dupla face: de um lado, a proibição de excesso (Übermassverbot); de outro, a proibição de insuficiência (Untermassverbot). Segundo exposto no acórdão, os mandados constitucionais de criminalização impõem ao legislador, para o seu cumprimento, o dever de observância do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de proteção deficiente. Aquela, funcionando como limite máximo, e esta, como limite mínimo da intervenção legislativa penal. Adentrando a matéria dos crimes de perigo abstrato, o Ministro considera que essa categoria delitiva não representa, por si só, uma atitude inconstitucional por parte do legislador, pois muitas vezes, essa forma de tipificação acaba sendo a melhor alternativa para a proteção de bens jurídico-penais de caráter coletivo, como o meio ambiente, por exemplo. Dessa forma, Gilmar Mendes chega à ideia de que a criminalização do porte de arma desmuniciada é legítima, tendo em vista que a dinâmica dos fatos cotidianos tem demonstrado que a simples apreensão e aplicação de sanções pecuniárias não são suficientes para coibir o uso e o porte de armas de fogo. Assim, para o Ministro, agiu bem o legislador, pois as armas de fogo são objetos cuja danosidade é intrínseca, havendo interesse público e social na proibição das condutas em questão. Pois bem. Do breve relato acima, pode-se vislumbrar que o voto do Ministro Gilmar Mendes, ao utilizar-se da argumentação acerca
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do princípio da proibição de proteção deficiente, o fez especialmente no intuito de justificar as razões pelas quais é legítima a incriminação do porte de arma, ainda que desmuniciada a arma. O seu voto, em realidade, enfatiza os motivos da incriminação do porte de arma, mas em relação à situação concreta de uma arma sem munição, não há maiores considerações. Há, sim, digressões de ordem abstrata, mas que fogem da análise do caso específico que se discutia. O que parece ter ocorrido, portanto, é uma confusão entre os motivos da incriminação e a análise material da tipicidade (isto é, da ofensividade). Confusão essa, porém, que já foi aclarada pela doutrina. Com efeito, Luís GRECO[3] afirma que o problema dos crimes de perigo abstrato pouco tem a ver com a questão do bem jurídico. Desse modo, a legitimação dos crimes de perigo abstrato não deve ser discutida à luz de considerações sobre o bem jurídico, mas sim sobre a estrutura do delito. Logo, é preciso estabelecer a seguinte diferenciação: quando se trata do bem jurídico, questiona-se o que proteger, mas quando se fala da estrutura do delito, o problema não é mais saber o que proteger, mas como proteger. Em outras palavras, segundo afirma Fabio Roberto D’AVILA [4], trata-se não somente de avaliar o objeto de tutela da norma, mas também a técnica de tutela desse mesmo objeto. Desse modo, ainda com D’AVILA[5], pode-se afirmar que, para a legitimidade do ilícito-típico, não basta a constatação de um bem jurídico-penal como objeto de tutela da norma. É igualmente necessário um segundo momento, em que se busca averiguar a existência de ofensividade, através da consideração dos efeitos da conduta sobre o bem jurídico. Verifica-se, assim, que a decisão em comento incorreu num equívoco já denunciado por D’AVILA[6], qual seja, o de realizar uma leitura dos crimes de perigo abstrato em termos meramente 20
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formais, em que o perigo geral da conduta é apenas elemento de motivação legislativa, não exercendo nenhum papel em âmbito hermenêutico-aplicativo, senão o de uma presunção de perigo juris et de jure, materialmente vazia. Vê-se, portanto, que a demorada argumentação do Ministro Gilmar Mendes, com referências à dupla faceta do princípio da proporcionalidade e da necessidade de proteção suficiente dos direitos fundamentais, ainda que seja adequada à análise da justificava de criminalização do porte de arma, não serve para explicitar o porquê de uma arma desmuniciada apresentar lesividade. A discussão fundamental do caso, que teria que ver com o princípio da ofensividade, não foi suficientemente abordada. No entanto, a tese do Ministro acabou sendo acolhida, e tem sido predominantemente aceita não somente no Supremo Tribunal Federal, como também no Superior Tribunal de Justiça, o que não contribui para uma adequada compreensão dos delitos de perigo abstrato. NOTAS [1] De modo aprofundado a respeito do assunto, ver a obra de D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios: contributo à compreensão do crime como ofensa a bens jurídicos. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. [2] O Ministro citou a obra de FELDENS, Luciano, A Constituição Penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. [3] GRECO, Luís. “Princípio da ofensividade” e crimes de perigo abstrato – uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 49, jul. 2004.
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[4] D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade em direito penal: escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 106.
Há que se Falar em (In) Justiça Criminal
[5] D’AVILA. Ofensividade em direito penal..., pp. 106-107. [6] D’AVILA. Ofensividade em direito penal..., p. 109.
Laís Gorski e Rafael Max Possa de Freitas Guilherme Henrique Mariani de Souza – Pós-Graduando em Direito Público pela Escola Superior da Magistratura Federal (ESMAFE-RS). Graduado em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Advogado.
A partir do giro democrático introduzido com a promulgação da Constituição da República de 1988, notamos que o avanço democrático não foi tão palpável em alguns setores da política criminal, sobretudo no que trata à política de drogas. Relativo a isto pode se notar, frente a atual realidade em que vivemos, certa “falta de sorte” que desgraça e estigmatiza determinada classe social no país: os mais pobres. Isto se deve a diversos fatores, dentre eles a própria estrutura Constitucional, que em seu texto prevê indicativos repressivos que impactam o texto constitucional que a seguir exporemos[1]. Diante deste cenário real há que se falar sobre justiça criminal. Podemos afirmar que a guerra contra as drogas assume o papel de um dos principais expoentes quando se fala em superencarceramento. É claro que o atual contexto histórico é diferente do que era há 44 anos, quando a war on drugs foi declarada nos EUA pelo então presidente Richard Nixon. Sabe-se que tal luta influenciou o mundo inteiro, inclusive o Brasil, que também a adotou e neste sentido vem fracassando, porém, os olhos de quem vê e sente tal fracasso não são os mesmos de quem de algum modo lucra com isso. Por outro lado, percebe-se que há muita dificuldade na interpretação constitucional das leis ordinárias no campo penal. E de certo ponto de vista a própria Constituição deixou esse espaço,
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que foi preenchido por uma desigualdade material entre os crimes e os crimes hediondos. Precisamente, a Lei 8.072/1990 equiparou o tráfico de drogas aos crimes hediondos[2], afetando, sobretudo, a questão dos benefícios e direitos na execução da pena. As consequências são sentidas no corpo social, o aumento significativo do número de presos e da violência intramuros, que naturalmente retroalimenta a violência na sociedade, extramuros. Dados recentes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) informam que temos uma população carcerária inúmeras vezes maior do que a que tínhamos em 1971, e se o superencarceramento continuar na velocidade imprimida desde então, nos próximos 44 anos teremos muito trabalho em construir muros. Sobre este aspecto, o diagnóstico publicado em 2014 sobre o número de presos no Brasil informa a impressionante marca de 711.463 pessoas entre presos provisórios e definitivos, nos regimes fechado, aberto e semiaberto[3]. Nos últimos vinte anos, em um parâmetro global, o Brasil tem uma das maiores populações carcerárias do mundo, ficando atrás dos EUA, China e Rússia[4]. Ocorre que, de todos estes países, entre todos os males causados pelo superencarceramento o Brasil é o único cujo sistema prisional está muito acima de sua capacidade. E, frente a isto, é razoável concluir que a guerra às drogas é apenas uma das faces da luta de classes, de forma que o encarceramento em massa nada mais é do que a demonstração de uma hegemonia político-liberal que tem influenciado[5] radicalmente o país em que vivemos. A população acredita que a política de prisão adotada é a solução para as mazelas sociais, quando, muitas vezes, é a causadora. Por outro lado, a atenção à guerra contra o crime ou contra as drogas nunca se deu de uma forma geral, sempre foi empreendida em face de um setor com espaço físico e social definidos, e por determinadas categorias de ilegalidades. Esta estratégia de acionamento da luta contra o crime serviu apenas como pretexto 24
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para reformulação das funções do Estado e inchaço dos setores policiais, jurídicos e correcionais. E tal fato não é uma contradição ao projeto neoliberal de desregulamentação e degradação do setor público, ao invés disso a ascensão penal apenas nos apresenta o seu lado negativo como uma revelação e manifestação do seu reverso[6]. Quer dizer, uma consequência cuja suportabilidade se dispõe. E constituído o seu negativo evidencia-se a implementação de uma política de criminalização da pobreza, que é o complemento indispensável à imposição de ofertas de trabalho precárias e mal remuneradas na forma de obrigações cívicas para aqueles que estão cativos na base da estrutura de classes e castas. Tais efeitos acabam suprimindo a consistência do Estado Democrático de Direito, no que se refere ao encarceramento em massa, e vale lembrar que a prisão é medida de exceção, não a regra. Este Estado de exceção só faz sentido se correlacionado ao modelo de estrutura social que se adota atualmente. Contudo, esta realidade e estes números têm colocado as comunidades negras e pobres em um verdadeiro desespero, e demonstram quanto o contexto jurídico-político é seletista. De acordo com o Infopen[7] dois em cada três negros no Brasil são presos, e a maioria entre 18 e 29 anos. O número de jovens no sistema prisional supera a proporção de jovens da população brasileira. Entretanto, tal sistema não se formou somente de maneira que parece estar distorcido em função da raça, mas também distorcido pela classe social do indivíduo. Estamos diante de um sistema de justiça que trata melhor pessoas ricas e culpadas, do que pobres inocentes. A realidade é dura, mas não sem fundamento: o que molda os resultados é a riqueza, e não a culpabilidade. É lamentável que sociedade enquanto um só corpo pareça estar muito confortável frente a isso. As políticas de medo e de ódio eficazmente articuladas e introduzidas no âmago social, empenhamAno 01 | Nº 02 | 978-85-8440-425-4 | 2015/02
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-se em fazer acreditar que estes problemas não nos pertencem. Este afastamento não permite uma mudança na realidade, o que significa a perda de um nível significativo de direitos como um subsídio à manutenção do status quo. E o silêncio representado pela estaticidade do sistema produtivo legal a todo este quadro que nos cerca é assustador. A cultura punitivista doutrina a sociedade de tal forma que nos impede de associar que estamos perpetuando atrocidades em face de nós mesmos. E por isso deveríamos nos questionar se nós merecemos tratá-los assim. Nós, como uma sociedade, como operadores do direito, merecemos tratá-los assim? Em 2009, o ministro Gilmar Mendes disse que aproximadamente um terço da população carcerária nacional se encontrava recolhida aos presídios de forma indevida[8]. Naturalmente, por exemplo, jamais seria permitido que as pessoas comprassem carros se, de toda a frota produzida, 30% apresentasse erros ou defeitos. O impressionante é que, de algum modo, conseguimos manter este problema afastado de nós, sentimos como se ele não fosse nosso. Não é nosso fardo, nossa luta, não temos ligação com a maneira em que os presos são tratados no Brasil. Parece que não entendemos o significado histórico e social do que temos feito, do rumo que as coisas têm tomado. A nossa classe média tem dificuldade em falar sem tabu de raça, de classe social, talvez porque ainda não se ache preparada a compromissar-se com um processo de verdade e de reconciliação. Enquanto nós, o todo, não nos preocuparmos verdadeiramente com a nossa realidade, com os negros, os pobres, os presos, os avanços ficarão comprometidos. Temos de sermos mais incursos e dedicados aos desafios que são básicos da vida em uma realidade tão complexa. Quando se vê discussões acerca de jovens de 16 anos tendo que responder a um processo penal como um adulto, começamos
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a pensar como isso aconteceu? Será que ele aprendeu a cometer crimes sozinho? A vontade criminosa já nasceu com ele? Como chegamos até aqui? Como um juiz pode transformar uma pessoa em algo que ela não é? Muitos jovens são declarados traficantes, quando não passam de instrumentos de um sistema muito maior, que engloba, inclusive, políticos. Talvez o problema da nossa justiça criminal só melhore quando pobres e negros forem julgados de forma igualitária como brancos, executivos e políticos, uma vez que, no final, todos passamos por algum tipo de estigma, de julgamento, e como já asseverado por Nilo Batista, Zaffaroni, entre tantos outros estudiosos do tema, o nível democrático de uma sociedade perpassa, necessariamente, pela forma como trata os marginalizados, pobres, condenados, sem escolaridade. NOTAS [1] BOITEUX, Luciana. Drogas e cárcere: repressão às drogas, aumento da população penitenciária brasileira e alternativas. In: SCHECAIRA, Sérgio Salomão (Org.). Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo: IBCCRIM, 2014. pp. 87-88. [2] BOITEUX. Drogas e cárcere..., pp. 87-88. [3] Disponível em: <bit.ly/1QNCzWG >. Acesso em: 21 out 2015. [4] Os dados são referentes ao ano de 2014 e fazem parte do relatório do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (INFOPEN). Disponível em: <bit.ly/1JPJ71p>. Acesso em: 21 out 2015. [5] Esta influência é exercida por diversos meios, sobretudo pela mídia, ainda que boa parte das pessoas que são influenciadas não se deem conta disso. Este fenômeno é bem delineado por Noam Chomsky e quanto ao poder de massificação social que a mídia pode exercer e os meios utilizados, e por Pierre Bordieu, que Ano 01 | Nº 02 | 978-85-8440-425-4 | 2015/02
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esclarece que as pessoas tomam uma posição de acordo com aquilo que lhes é apresentado, sendo esta apresentação limitada a vontade de quem detém o poder de decidir o que se apresenta e, portanto, a escolha fica limitada às possibilidades postas. (CHOMSKY, Noam. Mídia: propaganda política e manipulação. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014; BORDIEU, Pierre. A opinião pública não existe. Disponível em: <bit.ly/1Is5cki>. Acesso em: 10 jun 2015). [6] WACQUANT. Löic. O lugar da prisão na nova administração da pobreza. Disponível em: <bit.ly/1NW6G8g>. Acesso em: 21 out 2015. [7] Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias do dia 23/06/2015. Disponível em: <bit.ly/1JPJ71p>. Acesso em: 21 out 2015. [8] O CNJ divulgou no 2º Encontro Nacional do Judiciário um diagnóstico sobre o sistema carcerário brasileiro. Conforme o balanço, até dezembro de 2008 havia no país 446.687 presos. Deste total, 42,97% eram presos provisórios e 57,03% condenados. Disponível em: <bit. ly/1Oy9tah>. Acesso em: 21 nov 2015. Em junho de 2014 novo diagnóstico apontou dados muito mais graves, com o assustador número total de 711.463 pessoas presas, sendo que destas, 563.526 estão presas no sistema, sendo 41% ou 231.046 presos provisórios. Disponível em: <bit.ly/1Q6u5Z8> Acesso em: 21 out 2015.
Laís Gorski – Pós-graduanda em Direito Penal e Política Criminal pela UFRGS. Graduada em Direito pela UniRitter. Advogada Criminalista. Rafael Max Possa de Freitas – Pós-graduando em Direito Penal e Política Criminal pela UFRGS. Graduado em Direito pela UniRitter. Advogado Criminalista.
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Verdade Real: Um Resquício Inquisitório Mariana Peronio Prestes Historicamente, a humanidade alternou períodos de maiores liberdades, assim como de grandes repressões. O surgimento dos sistemas processuais penais, acusatório e inquisitório, visava a dar uma resposta aos anseios e exigências do Estado em cada época. Nesse ínterim e, por assim dizer, intimamente relacionado ao sistema inquisitório, surge a ideia de verdade real, objeto da presente análise, fortemente discutida por operadores do Direito e alvo de profundas críticas. Inicialmente, objetivando maior compreensão sobre o tema em debate, necessária se faz uma breve análise e digressão histórica acerca dos sistemas processuais penais, acusatório e inquisitório, especificamente, e suas características. O sistema acusatório, que perdurou até meados do século XII, é característico de países que, em sua grande maioria, possuem maior apreço e respeito às liberdades individuais, bem como uma sólida base democrática. Ao se revelar insuficiente na repressão de delitos, dando margem para que os magistrados extrapolassem seus limites de atuação, o sistema acusatório foi cedendo espaço ao modelo inquisitório, que perdurou até o final do século XVIII. Posteriormente, com a Revolução Francesa, profundas e significa-
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tivas mudanças ocorreram baseadas em novos pensamentos e em um ideário liberal, de valorização do homem. À luz da Constituição Federal, o sistema acusatório caracteriza-se, atualmente, pela clara distinção entre as atividades de acusar e julgar; pela iniciativa probatória pertencente às partes, possibilitando, assim, a imparcialidade, bem como o livre convencimento motivado do juiz; a paridade das partes; a oralidade e a publicidade do procedimento; o contraditório; a instituição da coisa julgada; a existência do duplo grau de jurisdição e a possibilidade de impugnação das decisões. Pode-se dizer que o sistema acusatório é “um imperativo do moderno processo penal, frente à atual estrutura social e política do Estado”[1]. Visa a assegurar a imparcialidade e a tranquilidade do juiz que, ao final, proferirá a sentença, de forma a garantir o trato digno e respeitoso ao acusado, que deixa de ser um mero objeto para assumir sua verdadeira posição no processo penal. O sistema inquisitório, por sua vez, predomina em países fortemente marcados pelo autoritarismo, em que prevalece os interesses do Estado em detrimento aos direitos e liberdades individuais. Sua origem remonta o Tribunal da Inquisição ou Santo Ofício, instituído para reprimir heresias, bem como toda e qualquer manifestação contrária aos postulados da Igreja Católica. A adoção do sistema inquisitório, alicerçado na busca pela verdade, provocou severas mudanças, caracterizando-se pela concentração das funções de acusar e julgar nas mãos do juiz, assim como a gestão probatória. Não há contraditório, tampouco a imparcialidade, já que o próprio juiz buscará a prova e, posteriormente, decidirá com base nela. O procedimento é bastante obscuro, tendo em vista que não há publicidade, transforma-se o imputado “em mero objeto de verificação, razão pela qual a noção de parte não tem nenhum sentido”[2]. Aqui, as funções se confundem. 30
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Isto posto, e com base no sistema inquisitório, nasce a ideia de verdade real, objeto de profundas discussões. Verdade essa, por assim dizer, inalcançável e mitológica, em que o acusado é tão somente um mero objeto, “detentor da verdade de um crime”[3]. O sistema inquisitório, conforme já exposto, e, consequentemente, a incansável busca pela verdade real, desprovida de limites, conduziu a humanidade a grandes atrocidades. Nesse sentido, pode-se dizer que o mito da verdade real é um forte resquício do sistema inquisitório, que está intimamente relacionado “com o ‘interesse público’ [...]; com sistemas políticos autoritários; com a busca de uma ‘verdade’ a qualquer custo [...] e com a figura do juiz-ator (inquisidor)”[4]. A ideia de verdade, no sistema inquisitório, é estruturante do processo. A ambição pela verdade é considerada uma das funções do Processo Penal, cabendo ao juiz à missão de desvelá-la. É necessário desconstruir tal entendimento, a fim de que se possa compreender a verdade a partir de outra dimensão, eis que a sua constante busca vai de encontro ao sistema acusatório, caminhando em sentido oposto a um processo penal constitucional e democrático. Ademais, encontrar a verdade real parece utópico. Isso porque quem se preocupa com a verdade real acaba confundindo o real com o imaginário, pois “o crime é sempre um fato passado, logo, é história, memória, fantasia, imaginação. É sempre imaginário, nunca é real”[5]. Por se tratar de um fato já ocorrido, por óbvio, não é passível de experiência direta, não há como reconstituí-lo em sua plenitude. Será, nesse caso, demonstrado através de provas utilizadas para dar suporte ao que está sendo levado a conhecimento. Insta salientar que a verdade não está unicamente nesse fragmento de história, “a verdade é inalcançável, até porque a verdade está no todo, não na parte; e o todo é demais para nós”[6].
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O Processo Penal possui suas limitações, inclusive temporais. Não há como se ter conhecimento de tudo, eis que sempre haverá algo não descoberto. Não há verdades absolutas. A ilusão de que se podem obter, a qualquer custo, todas as informações a respeito de um fato é extremamente perigosa, pois além de remeter ao sistema inquisitório, traça uma lógica bastante autoritária do processo. O que se tem – e se quer – na realidade é, ao fim e ao cabo, uma verdade aproximada, com estrita observância ao contraditório, bem como aos princípios e ao devido processo legal. Uma verdade “não obtida mediante indagações inquisitivas alheias ao objeto processual, mas sim condicionada em si mesma pelo respeito aos procedimentos e garantias da defesa”[7]. Outrossim, não se pode atribuir ao magistrado ou ao processo o papel de revelar uma verdade. Para que haja compatibilidade com o sistema acusatório há que se desmistificar essa ideia, a fim de que se compreenda que cabe às partes auxiliar na formação do convencimento do juiz, não sendo ele o senhor do processo como outrora. Ao fim, a decisão judicial não será a revelação da verdade, mas, sim, um ato de convencimento formado em contraditório, com respeito aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da presunção de inocência, num viés acusatório e democrático. Desse modo, é necessário (re)pensar a posição ocupada pela verdade dentro do Processo Penal, à luz da Constituição Federal de 1988, no sentido de romper, efetivamente, com a cultura inquisitória fundada na insaciável ambição de verdade, pois “sem uma adequada teoria da verdade, da verificabilidade e da verificação processual, toda a construção do direito penal do iluminismo [...] termina apoiada na areia”[8].
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NOTAS [1] LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal: Introdução Crítica. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 140. [2] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no Processo Penal. In: Crítica à teoria geral do direito processual penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 23. [3] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do processo penal brasileiro. Separata do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais. ITEC. Porto Alegre, 2000. p. 28. [4] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 381. [5] LOPES JR., Direito Processual..., p. 383. [6] CARNELUTTI, Francesco. Verità, dubbio e certezza. Rivista di diritto processuale. Vol. XX. Padova: Cedam, 1965, pp. 4-9. [7] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón – teoria del garantismo penal. Trad. Perfecto Andrés Ibáñes; Alfonso Ruiz Miguel; Juan Carlos Bayón Mohino; Juan Terradillos Basoco e Rocío Cantarero Bandrés. 2. ed. Madrid: Trotta, 1997, p. 45. [8] FERRAJOLI, Derecho y Razón..., p. 47.
Mariana Peronio Prestes – Pós-Graduanda em Ciências Criminais pela Universidade Estácio de Sá – Complexo de Ensino Renato Saraiva. Graduada em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI – Campus Santiago/RS). Advogada.
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Avanço do Estado Penal e Crise do Sistema de Justiça Criminal Victor Matheus Bevilaqua No período pós-guerra, a criminalidade era vista pelos norte-americanos como uma injustiça social, isto é, os indivíduos praticavam crimes porquanto eram privados de educação adequada ou pertenciam a famílias desajustadas ou, ainda, careciam de oportunidades de emprego. A ‘solução’ para o crime seria, portanto, o tratamento correcional individualizado, a supervisão e assistência das famílias, bem como a adoção de medidas sociais que aumentassem o bem-estar das pessoas. De acordo com WACQUANT[1], a partir da década de 1970 houve uma sensível diminuição das políticas que constituíam o Estado caritativo norte-americano em favor das políticas de despesas militares e de redistribuição de riquezas às classes altas, ainda que a desigualdade social e a insegurança econômica tenham aumentado, a tal ponto que a ‘guerra contra a pobreza’ é substituída por uma guerra contra os pobres, os quais, agora, passam a ser estigmatizados, criminalizados e vulneráveis ao sistema penal (seletivo). Desde então, segundo GARLAND[2], a política criminal norte-americana tornou-se ainda mais politizada e populista, deixando de ser orientada pelos experts, cabendo à população, especialmente às vítimas, dar a voz ‘dominante’, e deixando de ser assunto
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a ser delegado a especialistas, tornando-se um tema proeminente nas competições eleitorais. SILVA SÁNCHEZ[3] elenca algumas das causas da expansão do Direito Penal, como a sensação social de insegurança, a configuração de uma sociedade de ‘sujeitos passivos’, os gestores ‘atípicos da moral’, como os movimentos feministas, ecologistas, antidiscriminatórias etc., que encabeçam a tendência de uma progressiva ampliação do Direito Penal no sentido de uma crescente proteção de seus respectivos interesses. Podem-se elencar muitos outros aspectos que indicam esse avanço da intervenção penal, como a própria transformação do pensamento criminológico, com a emergência de teorias de controle de várias espécies que sustentam a política de recrudescimento penal. O Brasil, seguindo a tendência latino-americana de adoção da política de segurança norte-americana, importou o paradigma estadunidense do encarceramento maciço e sistemático como componente da política de ‘contenção repressiva’ dos pobres. No entanto, pelo menos no tocante ao atual sistema carcerário brasileiro, a prisão está longe de ser um meio de contenção da criminalidade, pelo contrário, trata-se de um dos maiores propulsores do aumento da violência, contribuindo para o aumento das taxas de criminalidade e produzindo reincidência. A prisão nas últimas décadas foi reinventada como instrumento de contenção neutralizante, destinado não somente a criminosos violentos ou potenciais reincidentes, mas também a condenados a pequenas penas, existindo “uma notável negligência quantos às liberdades civis de suspeitos e aos direitos dos presos, na direta proporção da ênfase sobre repressão efetiva e controle”[4]. Com efeito, a atual prisão retira da esfera pública a percepção do sofrimento dos condenados e a angústia de suas famílias, porAno 01 | Nº 02 | 978-85-8440-425-4 | 2015/02
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quanto o mass media e a ‘criminologia do cotidiano’ apresentam os criminosos como ‘diferentes’, como sendo os ‘outros’ e as penas são de pouca visibilidade. Outrossim, cada vez mais presente o conflito entre a amenização das práticas penais e a preocupação com a garantia de segurança, o que ocasiona, dentre outras, a instrumentalização da segurança para fins políticos, transformando a punição numa questão ideológica. Além disso, a aplicação desenfreada de prisões provisórias contribui para o considerável aumento da população carcerária. Tal medida cautelar está cada vez mais se tornando ‘normal’ – aliás, no Brasil a tendência é tornar ‘normal’ o anormal; veja-se, por exemplo, a flexibilização das garantias penais e processuais penais, a aceitação de provas obtidas por meios ilícitos ou produzidas sem as formalidades legais e a (de)mora jurisdicional penal – no decorrer do processo penal ou na investigação preliminar. A prisão preventiva tornou-se um símbolo da (falsa) eficiência do sistema penal, estando longe de ser utilizada como meio para assegurar o andamento do processo e a execução das penas, tornando-se um dos mecanismos de controle/ dirigismo/contenção das consequências da miséria. Nesse contexto fático, sobrevieram os substitutos penais (suspensão condicional do processo, suspensão condicional da pena, penas restritivas de direitos etc.) com o objetivo de suprir a falta de vagas nos estabelecimentos prisionais e para servir de instrumento de combate à crise da pena de prisão. Contudo, os substitutos penais são aditivos às prisões que, quando não prolongam o encarceramento, aumentam a rede de controle social penal. Conforme afirma ANDRADE[5], a extensão da rede de vigilância é ampliada; não se enfraquece a prisão que, por outra via, acaba por sair revigorada em sua função - de repressão e, sobretudo, de contenção. Assim, a curva dos substitutivos penais
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cresce na mesma medida que a pena de prisão – ou seja, o efeito é contrário do que aquele esperado, qual seja, o de frear a pena de prisão. “Os substitutos penais não respondem à atenuação da prisionalização e não servem de válvula de escape para o número de vagas no sistema ou outro efeito análogo”.[6] Como é cediço, os dispositivos eletrônicos ou assemelhados estão ‘aliviando’ o acesso às vagas na esfera da execução da pena. Este é o primeiro efeito, mas e depois? Da experiência vivenciada pelo nosso sistema penal, não tardará existir um novo déficit de vagas, igual ou maior do que o anterior, tanto no âmbito dos regimes de semiliberdade quanto agora na nova esfera do ‘sistema de monitoramento eletrônico’. Ao fim e ao cabo, o ‘sistema de monitoramento eletrônico’ está causando os mesmos efeitos dos substitutivos penais, isto é, não reduz o âmbito da prisão e acaba por inflamar a expansão do controle social penal. Feitas essas considerações, a questão da crise do sistema penal no Brasil deve ser vista como uma política de redução de danos, isto é, considerando que é utópica a pretensão de um sistema penal perfeito, deve-se ao menos amenizar suas consequências. Isso se pode buscar através da imposição de um novo paradigma baseado, por exemplo, na justiça restaurativa – seja para substituir a atuação do sistema penal, seja para complementá-lo, mas que tenha autonomia em relação ao sistema de justiça criminal. Ainda, a resolução de conflitos por outras instâncias de controle social formal é viável, podendo até mesmo ser mais eficaz que a intervenção penal, e teria como consequência o desafogamento do sistema de justiça criminal, o qual, em terrae brasilis, está (e sempre esteve) em crise.
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Por fim, deve-se confrontar o senso comum teórico punitivista, que trata a questão complexa do sistema penal com simplicidade, reproduzido pelo mass media, bem aqueles que defendem de forma aparentemente suficiente e com base em estudos empíricos e científicos a expansão do sistema penal. NOTAS [1] WACQUANT, Loic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Editora Freitas Bastos, 2001. p. 24. [2] GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008. p. 56-57. [3] SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do Direito Penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 80-84. [4] GARLAND. A cultura do controle..., p. 57. [5] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da Criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2012. p. 303. [6] ROSA, Alexandre Morais; AMARAL, Augusto Jobim do. Cultura da punição: a ostentação do horror. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 12.
Victor Matheus Bevilaqua – Pós-graduando em Ciências Penais (PUCRS). Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Estado do Rio Grande do Sul (PUCRS).
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O Erro Sobre Elementos do Tipo no Delito de Lavagem de Capitais Vitor Raatz Bottura Desde sempre, quem pratica algum tipo de crime patrimonial busca de alguma forma utilizar o produto do crime para seu benefício, razão pela qual seja almejada essa transformação buscada após a consumação do crime, para fazer com que o proveito das condutas ilícitas ganhe uma aparência de licitude[1], sendo inclusive a origem da expressão.[2] Podemos tratar a Convenção de Viena, celebrada com o propósito de criar políticas públicas de combate ao tráfico drogas, como um marco na luta contra lavagem de capitais, tendo como foco principal as atividades ilícitas ligadas ao narcotráfico, contando com diversos países como signatários. Assim, após a sanção da Lei 9.613/1998, o Brasil definitivamente aderiu aos esforços de diversos países já guarnecidos com legislações relativas a esse tema, passando a prestar auxílio na prevenção e repressão, além da troca de informações, extremamente necessárias diante das diversas e engenhosas formas de consumação. O legislador brasileiro optou por definir como crime antecedente qualquer infração penal, incluindo assim nessa expressão crime e contravenção, através da sua conversão em ativos lícitos, necessária para sua utilização sem chamar a atenção das autoridades.
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O caput do art. 1º traz como núcleos da ação típica ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. Temos que “ocultar” significa esconder, sonegar, tirar da vista, encobrir e “dissimular” é uma ação que exige uma astúcia maior para fingir, disfarçar, acobertar. A distinção entre as duas ações reside no fato de que “ocultar” requer o simples encobrimento e na “dissimulação” exige-se uma ação mais sagaz, utilizando-se de melhores artifícios. A “natureza” representa as próprias especificações, a essência do objeto alvo da conduta prevista, sendo a “origem” relacionada com a forma utilizada para obtenção. “Localização” significa o ponto geográfico onde se encontram os bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime. Por “disposição”, entendemos ser o local de fruição ou a situação que se encontram. Referindo-se a “movimentação”, trata-se da mudança ou circulação dos bens, direitos ou valores e a “propriedade” é a titularidade mesmo, direito real sobre o bem ou direito. O tipo subjetivo é composto pelo dolo, não havendo elemento subjetivo específico e também não existe previsão de punição pelo delito na forma culposa. Estamos diante de um tipo penal de ação múltipla ou conteúdo variado, onde a prática de uma ou todas as modalidades de conduta previstas no tipo, no mesmo contexto fático, configurará crime único. Introduzido em nosso ordenamento jurídico após as alterações ocorridas na Parte Geral do Código com o advento da Lei 7.209/1984, o erro sobre elementos do tipo atua diretamente sobre o dolo, ou seja, sobre o conhecimento e a vontade das circunstâncias do tipo penal.
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Segundo previsão do art. 20 do Código Penal, a existência de erro sobre elemento constitutivo do tipo legal afasta a incidência do dolo na ação, mas, por outro lado, caso exista a previsão legal da modalidade culposa, poderá ocorrer sanção decorrente dessa conduta. Nesse sentido, seguem as ponderações do doutrinador Juarez Cirino dos Santos: O conceito de dolo, definido como conhecer e querer as circunstâncias de fato do tipo legal, está exposto à relação de exclusão lógica entre conhecimento e erro: se o dolo exige conhecimento das circunstâncias de fato do tipo legal, então o erro sobre circunstância de fato do tipo legal exclui o dolo. Em qualquer caso, o erro de tipo significa defeito de conhecimento do tipo legal e, assim, exclui o dolo, porque uma representação ausente ou incompleta não pode informar o dolo do tipo. Mas é preciso distinguir: o erro inevitável exclui o dolo e a imprudência; o erro evitável exclui apenas o dolo, admitindo punição por imprudência.[3]
Não existe previsão da modalidade culposa nos crimes previstos na Lei 9.613/1995, de forma que a ocorrência do erro sobre elementos do tipo, incidindo em qualquer das condutas delitivas estipuladas, excluirá o dolo e, consequentemente, não haverá punição para seu autor. Conforme exposto, para ocorrer a incriminação pela prática dos crimes de lavagem de capitais será necessário o conhecimento dos elementos que compõem o tipo objetivo e uma atuação consciente voltada para sua realização. Partindo desse pressuposto, entraremos em uma zona tortuosa quando um determinado agente realizar qualquer das condutas típicas previstas sem o conhecimento que os bens, direitos ou vaAno 01 | Nº 02 | 978-85-8440-425-4 | 2015/02
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lores utilizados para realizar qualquer das condutas previstas foram originados mediante ação delituosa e, ainda, que esses delitos estão elencados no rol dos delitos antecedentes.
possibilidade de cometimento de crime sem dolo ou culpa, uma autêntica garantia do indivíduo, essência para a manutenção do Estado Democrático de Direito.
Olhando por esse ângulo, podemos vislumbrar não ser improvável a caracterização desse quadro em um caso concreto, ou seja, restar configurada uma ação típica prevista na lei de lavagem de dinheiro, sendo que o autor não tinha conhecimento dos meios utilizados para a aquisição do objeto utilizado nessa conduta.
NOTAS
Aproveitamos as lições do Professor André Luís Callegari: Como se sabe, a consciência por parte do autor de que os bens originam-se de um delito precedente é um elemento normativo do tipo, uma vez que, para que o conheça, o sujeito necessita realizar previamente um processo de valoração. Nas circunstâncias normativas do fato, o conhecimento pressupõe uma compreensão intelectual, sem esta compreensão ou valoração, faltará o dolo. No entanto, tal valoração ou compreensão intelectual desses elementos normativos que caracterizam o dolo típico nos delitos de lavagem não significa uma subsunção jurídica exata nos conceitos empregados pela lei, mas basta que o conteúdo de significado social do caso incriminado aludido com esses conceitos se abara à compreensão do sujeito.[4]
Restando comprovado o desconhecimento ou ignorância do autor sobre serem os bens, direitos ou valores por ele utilizados na prática das condutas específicas de lavagem frutos diretos ou indiretos de qualquer dos tipos penais antecedentes, em razão do disposto no art. 20 do Código Penal, não será possível impor qualquer sanção entre as previstas na Lei 9.613/1995, pois, assim sendo, estaríamos infringindo diretamente o princípio da culpabilidade (nullum crimen sine culpa), corolário expresso na não 42
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[1] LIMA, Renato Brasileiro. Legislação criminal especial comentada. 3. ed. Bahia: JusPodvim, 2015. p. 287. [2] A expressão “lavagem de dinheiro” tem origem nos Estados Unidos (Money laundering), a partir da década de 1920, quando lavanderias de Chicago teriam sido utilizadas por gangsters para despistar a origem ilícita do dinheiro. Assim, por intermédio de um comércio legalizado, buscava-se justificar a origem criminosa do dinheiro arrecadado com a venda ilegal de drogas e bebidas. [3] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. 4. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010. p. 142. [4] CALLEGARI, André Luís. Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Manole, 2004. p. 76.
Vitor Raatz Bottura – Pós-Graduando em Direito Penal e Processo Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Graduação pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Advogado criminalista.
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Informativo de Jurisprudência do o fato, persiste em desfavor do requerente o depoimento prestado por esta última no processo originário, ocasião em que disse ter testemunhado pessoalmente o fato.
Informativo de Jurisprudência Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
De outro norte, a tese de que os fatos teriam sido inventados pelas testemunhas que incriminaram o réu com a perspectiva de melhor posição na herança da genitora comum constitui matéria de avaliação subjetiva que não veio incontrastável na revisional como prova nova.
Revisão Criminal nº 70061281606, 4º Grupo Criminal, Rel. Des. José Conrado Kurtz de Souza, julgado em 28.11.2014.
REVISÃO CRIMINAL JULGADA IMPROCEDENTE.
EMENTA:
VOTO:
Art. 621 do CPP. julgamento contrário À lei PENAL.
Des. José Conrado Kurtz de Souza (RELATOR)
O depoimento indireto de um fato, isto é, o “ouvir dizer” ou “hearsay” (sob a perspectiva de sua compreensão e aplicação no ambiente jurídico brasileiro), somente deve ser aceito como indício relevante quando estiver vinculado fática e logicamente a contexto probatório de certeza, e assim pela natural razão de que não se tem como avaliar a credibilidade da afirmação sem ter como confrontá-la com quem a teria proferido. Exceção, todavia, dá-se quando for comprovada a impossibilidade de tal confrontação, seja por não ter sido localizada a pessoa, seja por que ela faleceu. No caso dos autos, nada obstante na justificação judicial que instrui a presente revisional ter uma das testemunhas que compuseram o pilar da decisão condenatória desmentido o abuso sexual perpetrado pelo requerente contra a ofendida, bem ainda ter outras duas pessoas inquiridas na justificação afirmado que terceira testemunha (chave), não inquirida na justificação, ter admitido que ela teria inventa-
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UNÂNIME.
REVISÃO CRIMINAL. CRIMES SEXUAIS. ATENTANDO VIOLENTO AO PUDOR.
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Trata-se de revisão criminal ajuizada por Antônio [...], condenado como incurso nas sanções do artigo 214, combinado com os artigos 224, alínea “a”, e 226, incisos I e II, todos do Código Penal, à pena de 08 anos e 09 meses de reclusão, a ser cumprida em regime inicial fechado. Antônio busca através da presente revisão criminal a sua absolvição com base nos depoimentos prestados por três testemunhas em ação cautelar de justificação judicial. Em sua petição (fls. 02-06), o requerente pugna pela sua absolvição ante a ausência de comprovação da existência do crime. Refere que a vítima Daiane, tanto em juízo quanto perante a autoridade policial, afirmou que não foi vítima de qualquer abuso sexual. Menciona que o tio da ofendida João Antônio “nunca viu comportamento estranho de Antônio com a menor Daiane e somente efetuou o registro policial porque as irmãs lhe falaram”. Aduz que a Ano 01 | Nº 02 | 978-85-8440-425-4 | 2015/02
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“irmã Beloni” disse que nunca presenciou qualquer comportamento estranho de Antônio com a ofendida. Destaca que Hulda e Maria teriam visto o réu lamber a vítima. Alega que após o transito em julgado do acórdão condenatório a testemunha Hulda teria referido em uma reunião familiar que inventou tais abusos sexuais a fim de prejudicar a sua irmã Idalina, já que ambas brigaram frequentemente pela herança da mãe falecida. Sustenta que Maria Geni, Soely e Natércia, quando ouvidas na ação de justificação, referiram que presenciaram Hulda dizendo que inventou os abusos sexuais pelos quais o requerente e Idalina, mãe da ofendida, foram condenados e que Maria Geni desmentiu que teria visto o réu beijando a vítima. Requer a absolvição. Foi recebida a revisão criminal e determinado o apensamento dos autos originais (fl. 54). A douta Procuradoria de Justiça exarou parecer opinando pelo não conhecimento da revisão criminal (fls. 52-53v). Vieram-me conclusos os autos. É o relatório. Adianto que estou conhecendo a revisão criminal e julgando-a improcedente. A presente ação revisional tem suporte no artigo 621, inciso I, do Código de Processo Penal. O Magistrado a quo julgou improcedente a denúncia para absolver os réus Antônio [...], ora requerente, e Idalina [...] da prática do crime previsto no artigo 214, c/c o artigo 224, alínea “a”, ambos do Código Penal, com fundamento no art. 386, inciso II e VI, do Código de Processo Penal (fls. 114-119 do processo criminal).
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Contra esta decisão, o Ministério Público interpôs recurso de apelação (fl. 122 do processo criminal), o qual foi provido pela 8ª Câmara Criminal deste Tribunal, à unanimidade (Dr.ª Marlene Landvoigt, Relatora, Des. Marco Antônio Ribeiro e Oliveira e Des.ª Fabianne Breton Baisch), a fim de julgar procedente a denúncia para condenar os réus Antônio [...] à pena de 08 anos e 09 meses de reclusão e Idalina [...] à pena de 05 anos, 03 meses e 10 dias de reclusão, como incursos nas sanções do artigo 214, combinado com os artigos 224, alínea “a”, e 226, incisos I e II, todos do Código Penal, a serem cumpridas em regime inicial fechado para Antônio e semiaberto para Idalina (fls. 165-179 do processo criminal). O acórdão prolatado pela 8ª Câmara Criminal deste Tribunal de Justiça transitou em julgado em julho de 2010 (fl. 289 do processo criminal). Na presente revisão criminal Antônio [...] busca o reconhecimento dos relatos de Soely [...], Maria Geni [...] e Natércia [...] às fls. 23-35 da presente ação, que negam a existência do crime, como prova de sua inocência. Soely [...] disse, em juízo - na ação de justificação judicial (fls. 23-30v da presente ação) -, que sua irmã Hulda admitiu que inventou os abusos sexuais praticados por Antônio contra a vítima Daiana perante toda a família, que na oportunidade estava reunida em face do falecimento de seu marido Gilberto – ocorrido em 06/05/2011. Mencionou que havia uma disputa de Hulda com Idalina pela herança de seu pai, que faleceu em 2009. Destacou que sua mãe faleceu em 2002, sendo que quando os fatos ocorreram ela estava viva.1 Referiu que a vítima Daiana não estava presente quando Hulda confessou que teria inventado os abusos sexuais. Por fim, não soube dizer onde Hulda reside. 1
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Destaco que o crime ocorreu em novembro de 2001.
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Natércia [...], filha de Soely, prestou depoimento no mesmo sentido que a sua mãe (fls. 33v-35 da presente ação). Maria Geni [...], disse que sua irmã Hulda a manipulou para que dissesse perante a autoridade policial e em juízo que viu Antônio abusando sexualmente de sua sobrinha Daiana. Mencionou que não viu qualquer abuso sexual perpetrado pelo requerente contra a ofendida e que tal fato foi inventado por Hulda. Asseverou que Idalina e Hulda brigavam pela herança de seu pai (fls. 31-33 da presente ação). Da análise do acórdão condenatório (fls. 168-179 do processo criminal), denota-se que a condenação do ora requerente, padrasto da vítima Daiana, e de sua companheira Idalina, mãe da ofendida, tem como base os relatos das tias da ofendida Hulda e Maria Geni, que “viram o réu lamber o corpo da vítima, o viram beijá-la na boca e colocar a língua na boca dela, tanto quando estavam na cozinha como quando foram para o quarto. Questionaram o réu e ele disse que beijava a menina onde e quando quisesse. Já haviam notícia de vários abusos anteriores. Idalina dizia que tudo era carinho do réu para com a filha. Como ficaram nervosas com a situação, Idalina foi até o quarto e disse para que a filha saísse, mas Antônio não largava Daiana, “ele fazia e olhava para ela” (...)” (fl. 172 do processo criminal).2 O requerente Antônio, em juízo (fl. 33-34 do processo criminal), negou a prática do crime, dizendo que a imputação decorre de uma invenção de Maria Geni e Hulda, já que não deixou Daiana pernoitar na residência de Hulda. Pois bem, nada obstante tenha Maria Geni afirmado que mentiu ao dizer que visualizou Antônio abusando de sua sobrinha Daiana, o que, frisa-se, pode até mesmo ser verdade, e ela e as demais 2
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Citação direta de parte do acórdão condenatório.
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pessoas ouvidas na ação cautelar de justificação (fundada no art. 861 do CPC), Soely e Natércia, tenham dito de forma uníssona que presenciaram Hulda admitindo que teria inventado o fato pelo qual Antônio e Idalina foram condenados, ainda persiste em desfavor do requerente o depoimento de Hulda – que não foi ouvida na ação de justificação por, segundo se depreende dos relatos das pessoas ouvidas na referida ação, não ter sido apurado o seu endereço. Com efeito, o depoimento indireto de um fato, isto é, o “ouvir dizer” ou “hearsay”3 (sob a perspectiva de sua compreensão e 3
Vejamos a definição de “hearsay rule” por LILLY, Graham G., CAPRA, Daniel J., SALZBURG, Stephen A. Principles of EVIDENCE. Saint Paul MN: WEST, Thomson Reuters. 2012, pag. 137: “The hearsay rule is designed to exclude statements that are not reliable when offered to prove that what a person said was true. The classic hearsay situation is this: a witness testifies that someone else (whom we call the declarant) made a statement about an event that is in dispute at the trial. The witness relates the statement, but cannot verify that the declarant was telling the truth. If the statement is offered to prove that what the declarant said is true, then there is no way to verify it for accuracy. The declarant is not at trial. He is not speaking under oath. The factfinder does not get to view him an make its own assessment of whether he is speaking the truth. Most importantly, he is not subject to the crucible of cross-examination, so there is no opportunity to assess his sincerity, precision, perception, and memory of the event. Cross-examining relating the statement in court is not a sufficient safeguard, because the witness cannot tell the facfinder about the declarant´s sincerity, perception, etc. He only knows what he heard the declarant say.” Em tradução livre: “A regra “hearsay” é projetada para excluir declarações que não são confiáveis quando oferecidas para provar que o que uma (terceira) pessoa disse era verdade. A situação “hearsay” clássica é esta: a testemunha afirma que alguém (a quem chamamos de declarante) fez uma declaração sobre um evento que está em disputa no julgamento. A testemunha refere a declaração, mas não é possível verificar que o declarante estava dizendo a verdade. Se a declaração é oferecida para provar que o que o declarante disse é verdade, então não há nenhuma maneira de verificar se há veracidade. O declarante não está em julgamento. Ele não está falando sob juramento. O factfinder não consegue vê-lo e fazer a sua própria avaliação para determinar se ele está falando a verdade. Mais importante ainda, ele não está sujeito ao severo teste do cross-examination, por isso não há oportunidade de avaliar-se sua sinceridade, precisão, percepção e memória do evento. Os questionamentos das partes relativos
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aplicação no ambiente jurídico brasileiro), somente deve ser aceito como indício relevante quando estiver vinculado fática e logicamente a contexto probatório de certeza, e assim pela natural razão de que não se tem como avaliar a credibilidade de tal afirmação sem ter como confrontá-la com quem a teria proferido. Em linha de princípio o testemunho indireto, por sua natureza, não possui a segurança jurídica necessária ao processo penal (hearsay is no evidence), sendo temerária a sua aceitação sem critério, ainda mais tratando-se de revisão criminal, a qual situa-se “numa linha de tensão entre a “segurança jurídica” instituída pela imutabilidade da coisa julgada e a necessidade de desconstituí-la em nome do valor justiça”4. Acerca da impossibilidade de não aceitação do depoimento indireto, dispõe o artigo 129 do Código de Processo Penal Português que não será considera prova “o depoimento (...) do que se ouviu dizer”, salvo algumas exceções, abaixo elencadas, as quais, diga-se de passagem, não se aplicam no caso em tela: Artigo 129.º Depoimento indirecto 1 — Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.
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2 — O disposto no número anterior aplica-se ao caso em que o depoimento resultar da leitura de documento de autoria de pessoa diversa da testemunha. 3 — Não pode, em caso algum, servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos.
Nos EUA a rule against hearsay é prevista no art. 802 da Federal Rules of Evidence. No entanto, há exceções à vedação do hearsay, seja nos casos em que esteja presente a fonte originária, mas o testemunho indireto é de boa qualidade epistemológica, seja nos casos em que a testemunha esteja “indisponível” (unavailable).5 Ora, no caso dos autos não há qualquer informação de que Hulda esteja “indisponível” (unavailable) para ser ouvida em ação de justificação, cumprindo referir que não há nos autos prova de que tenham sido realizadas diligências efetivas e exaustivas a fim de apurar o endereço de Hulda. De outro viés, os relatos das pessoas ouvidas na justificação carecem de credibilidade quando afirmam que Hulda inventou o fato em apreço a fim de prejudicar sua irmã Idalina na disputa da herança do pai de ambas, porquanto (a) o pai delas não era falecido à época do fato6 – consoante se depreende dos depoimentos das próprias pessoas ouvidas na ação de justificação – e (b) tal tese sequer foi levantada pelo próprio requerente – quando de sua defesa pessoal – e pela sua defesa técnica durante a instrução criminal.
à declaração no tribunal não são uma salvaguarda suficiente, pois que a testemunha não pode dizer ao examinador/inquiridor (facfinder) sobre a sinceridade da percepção do declarante, etc. Ele só sabe dizer o que ouviu do declarante.”
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BADARÓ, Gustavo. A utilização da hearsay witness na Corte Penal Internacional. Disponível em <http://www.zis-online.com/dat/artikel/2014_4_810.pdf >.
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 1308.
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O fato ocorreu em 2001 e o falecimento do genitor de Idalina e Hulda em 2009.
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Neste contexto probatório, mantém-se a condenação e, consequentemente, íntegra a coisa julgada material. Por esses motivos, julgo improcedente a presente ação revisional, porquanto não caracterizadas as hipóteses do art. 621 do CPP. Nesses termos, julgo improcedente a revisão criminal. É o voto.
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