Dorothy l sayers veneno fatal pt

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Ficha Técnica Título original: S TRONG POIS ON Autor: Dorothy Sayers Tradução deAna Saldanha Capa: Neusa Dias Imagem da capa: Elisabeth Ansley / Trevillion Images ISBN: 9789892335230 Edições ASA II, S.A. uma editora do Grupo LeYa R. Cidade de Córdova, n.º 2 2160-038 Alfragide – Portugal Tel.: (+351) 214 272 200 Fax: (+351) 214 272 201 © The Trustees of Anthony Fleming deceased, 1930 Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor edicoes@asa.pt www.asa.leya.com www.leya.pt


Dorothy Leigh Sayers (1893-1957) é um dos nomes maiores da literatura policial clássica britânica. Foi também poeta, ensaísta, dramaturga, crítica literária e tradutora. Embora considerasse a tradução de A Divina Comédia, de Dante, a sua maior obra, foi devido aos seus livros policiais que alcançou a fama que se estende até aos nossos dias. Trata-se de contos e romances que decorrem entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, e têm como protagonista o formidável Lord Peter Wimsey, cuja “vida” começa com um explosivo “Oh, raios!”. Lord Peter Wimsey nasceu em 1890 e é o arquétipo do detetive gentleman inglês. Resolve mistérios puramente para se entreter, coleciona incunábulos e é um apaixonado por música clássica, moda e gastronomia. Na sua luta contra o crime, é frequentemente auxiliado pelo seu criado, Mervyn Bunter, e posteriormente, pela mulher. A sua árvore genealógica remonta ao século XII, com o cavaleiro Gerald de Wimsey, que acompanhou o rei Ricardo I, Coração de Leão, na Terceira Cruzada. O lema desta antiga e respeitável família é: Ao sabor dos meus caprichos1. 1 No original: As my Whimsy takes me. Jogo de palavras com o nome da família – Wimsey– e o termo whim (capricho). (N. da E)


CAPÍTULO UM Havia rosas carmesins na mesa; pareciam manchas de sangue. O juiz era um homem velho; tão velho que dava a impressão de ter sobrevivido ao tempo, à mudança e à morte. O seu rosto de papagaio e a sua voz de papagaio eram secos, tal como as suas velhas mãos com veias salientes. A sua toga escarlate contrastava de forma berrante com o carmesim das rosas. Há três dias que ele se sentava na sala abafada do tribunal, mas não aparentava sinais de fadiga. Não olhou para a prisioneira quando recolheu os seus apontamentos num maço ordeiro nem quando se virou para se dirigir ao júri, mas a prisioneira olhava para ele. Os olhos dela, como borrões escuros sob a sua fronte pesada e quadrada, não aparentavam nem medo nem esperança. Aguardavam. – Membros do júri... Os velhos olhos pacientes pareceram abarcar o grupo e avaliar a sua inteligência combinada. Três comerciantes respeitáveis – um deles alto e com ar rezingão, um robusto, embaraçado, com um bigode de pontas caídas, e outro com ar triste e uma forte constipação –; o diretor de uma grande empresa, ansioso por não desperdiçar o seu valioso tempo; o dono de um pub, incongruentemente bem-disposto; dois homens relativamente jovens da classe operária; um homem idoso, sem traços distintivos, com ar polido, que poderia ser qualquer coisa; um artista com uma barba ruiva a disfarçar o seu queixo fraco; três mulheres – uma solteirona idosa, uma senhora robusta e capaz que era dona de uma loja de doçarias e uma esposa e mãe sobrecarregada, cujos pensamentos pareciam tresmalhar-se continuamente para o seu lar abandonado. – Membros do júri, escutastes com grande paciência e atenção as provas neste caso deveras perturbante, e é agora meu dever resumir os factos e os argumentos que vos foram apresentados pelo douto procurador-geral e pelo douto advogado de defesa e ordená-los tão claramente quanto possível para vos ajudar a tomar a vossa decisão. «Mas, em primeiro lugar, talvez eu deva dizer algumas palavras relativamente a essa decisão. Certamente sabeis que um dos grandes princípios da lei inglesa é que toda a pessoa acusada é considerada inocente a menos que, e até que, seja provado o contrário. Não é necessário que essa pessoa prove a sua inocência; na moderna expressão corrente, está ‘a cargo’ da Coroa provar a culpa, e, a não ser que fiqueis convencidos de que a Coroa o fez para além de qualquer dúvida razoável, é vosso dever proferir um veredicto de ‘inocente’. Tal não significa necessariamente que a inocência da prisioneira tenha sido demonstrada através de provas; significa apenas que a Coroa não foi capaz de produzir nos vossos espíritos uma convicção inabalável da sua culpa. Salcombe Hardy, erguendo por instantes os olhos da cor de violetas afogadas do seu bloco de apontamentos de repórter, escrevinhou duas palavras num pedaço de papel e empurrou-o para Waffles Newton. «Juiz hostil.» Waffles acenou com a cabeça. Eles eram velhos cães de caça a seguir o trilho de sangue. O juiz prosseguiu ronceiramente.


– Talvez desejeis ouvir-me explicar o que se quer dizer exatamente com essas palavras, «dúvida razoável». Elas significam a mesma dúvida que vós poderíeis ter na vida diária sobre uma comum questão de negócios. Este é um caso de homicídio e seria natural que pensásseis que, num caso destes, as palavras significam mais do que isso. Mas não é assim. Não significam que devais procurar soluções extraordinárias para o que vos parece claramente simples. Não significam que tenhais aquelas dúvidas de pesadelo que por vezes nos atormentam às quatro da madrugada quando não conseguimos dormir. Significam que a prova deve ser como a que aceitaríeis numa simples questão de compra e venda ou em qualquer outra transação comum similar. Não deveis, evidentemente, esforçar-vos por formar uma opinião a favor da prisioneira sem o mais cuidadoso escrutínio, mais do que vos esforçaríeis por aceitar a prova da sua culpa. «Tendo dito estas poucas palavras para que não vos sintais excessivamente assoberbados pela pesada responsabilidade que os vossos deveres para com o Estado vos impuseram, começarei agora pelo princípio e tentarei apresentar perante vós a história que ouvimos, tão claramente quanto possível. «Segundo a Coroa, o caso é que a prisioneira, Harriet Vane, assassinou Philip Boyes envenenandoo com arsénico. Não tomarei o vosso tempo passando em revista as provas apresentadas por Sir James Lubbock e pelos outros médicos que prestaram depoimento sobre a causa da morte. A Coroa sustenta que ele morreu de envenenamento por arsénico e a defesa não o contesta. Está provado, por consequência, que a morte foi causada por arsénico, o que deveis aceitar como facto. A única questão que vos resta considerar é se esse arsénico foi de facto deliberadamente ministrado pela prisioneira com a intenção de matar. «O falecido, Philip Boyes, era, como ouvistes, um escritor. Tinha trinta e seis anos e publicara cinco romances e um grande número de ensaios e de artigos. Todas essas obras literárias eram de um tipo a que por vezes se chama ‘avançado’. Nelas, pregava doutrinas que poderão parecer a alguns de nós imorais ou sediciosas, tais como o ateísmo, a anarquia e o que é conhecido como ‘amor livre’. A sua vida privada parece ter sido conduzida, pelo menos durante algum tempo, de acordo com essas doutrinas. «Seja como for, a certa altura no ano de 1927 ele travou conhecimento com Harriet Vane. Encontraram-se nalguns daqueles círculos artísticos e literários onde são debatidos tópicos ‘avançados’ e, ao fim de algum tempo, tornaram-se muito amigos. A prisioneira é também romancista de profissão e é muito importante recordarmos que ela escreve as chamadas histórias ‘policiais’ ou ‘de detetives’, que abordam os vários métodos engenhosos de cometer homicídios e outros crimes. «Ouvistes a prisioneira no banco das testemunhas e ouvistes também as várias pessoas que se apresentaram para prestar depoimentos sobre o seu carácter. Foi-vos dito que ela é uma jovem de grandes capacidades, educada nos mais estritos princípios religiosos; que, por motivos alheios à sua vontade, aos vinte e três anos ficou sozinha no mundo. Desde essa altura – e ela está agora com vinte e nove anos – tem trabalhado industriosamente para se sustentar, e é seu grande mérito que, através dos seus esforços, tenha conseguido ganhar a vida de forma legítima, não devendo nada a ninguém e não aceitando ajuda fosse de quem fosse. «Ela própria nos contou, com grande candura, como se enamorou profundamente de Philip Boyes e como, durante um considerável período de tempo, resistiu às suas persuasões para que fosse viver com ele em moldes irregulares. De facto, não havia nenhuma razão para ele não se casar honradamente com ela; mas, aparentemente, ele apresentava-se como alguém com objeções de


consciência a qualquer tipo de casamento formal. Tendes o depoimento de Sybil Marriott e de Eiluned Price de que a prisioneira se sentia muito infeliz com a atitude que ele optou por adotar e ouvistes também dizer que ele era um homem muito bem-parecido e atraente, a quem qualquer mulher poderia sentir dificuldade de resistir. «De qualquer modo, em março de 1928, a prisioneira, desgastada, como nos disse, pelas suas insistências incessantes, cedeu e consentiu em viver com ele em termos de intimidade fora dos laços do casamento. «Talvez sintais, e bastante apropriadamente, que foi uma decisão extremamente errada. Mesmo considerando a atenuante da posição desprotegida desta jovem, podereis continuar a sentir que ela era uma pessoa de carácter moral instável. Não vos deixareis iludir pelo falso fascínio que alguns autores conseguem evocar em relação ao ‘amor livre’ nem sereis levados a considerar que foi algo mais do que um ato comum e ordinário de mau comportamento. Sir Impey Biggs, muito corretamente empregando toda a sua grande eloquência a favor da sua cliente, pintou este ato de Harriet Vane em tons róseos; falou de sacrifício abnegado e de autoimolação e recordou-vos que, em tal situação, a mulher tem sempre de pagar um preço mais pesado do que o homem. Não prestareis demasiada atenção a isto, quero crer. Conheceis muito bem a diferença entre o certo e o errado em tais matérias e podereis pensar que, se não se tivesse deixado corromper até certo ponto pelas influências malsãs do meio em que vivia, Harriet Vane teria demonstrado um heroísmo mais verdadeiro arredando Philip Boyes do seu convívio. «Mas, por outro lado, deveis ter o cuidado de não atribuir um tipo errado de importância a este lapso. Uma coisa é um homem ou uma mulher levar uma vida imoral, outra, muito diferente, é cometer um homicídio. Talvez penseis que um passo no caminho da imoralidade torna o seguinte mais fácil; contudo, não deveis atribuir demasiado peso a essa consideração. Tendes o direito de a tomar em conta, mas não deveis deixar-vos dominar excessivamente pelo preconceito. O juiz fez uma pausa por um momento e Freddy Arbuthnot deu uma cotovelada nas costelas de Lord Peter Wimsey, que parecia dominado por pensamentos sombrios. – Espero bem que não. Que raio, se todas as brincadeiras redundassem em homicídio, enforcavam metade das pessoas por mandarem a outra metade para os anjinhos. – E em que metade te encontrarias? – inquiriu sua senhoria, encarando-o por um momento com uma expressão de frieza e em seguida dirigindo o olhar de novo para o banco dos réus. – Na de vítima – disse Freddy –, na de vítima. Eu seria o cadáver na biblioteca. – Philip Boyes e a prisioneira viveram juntos desta maneira – prosseguiu o juiz – durante quase um ano. Vários amigos testemunharam que pareciam viver em termos do maior afeto mútuo. Miss Price disse que, embora Harriet Vane sentisse muito agudamente a sua desgraçada situação, afastando-se dos amigos da família e recusando impor a sua companhia onde o seu estatuto à margem da sociedade pudesse causar embaraço, era, mesmo assim, extremamente leal ao amante e exprimia orgulho e felicidade por ser a sua companheira. «No entanto, em fevereiro de 1929 houve uma zanga e o casal separou-se. A ocorrência dessa zanga não é negada. Mr. e Mrs. Dyer, que vivem no apartamento imediatamente por cima do de Philip Boyes, dizem que ouviram falar alto em vozes iradas, o homem a praguejar e a mulher a chorar, e que no dia seguinte Harriet Vane fez as malas e saiu de vez de casa. O aspeto curioso do caso, e que deveis considerar muito cuidadosamente, é a razão atribuída à zanga. Quanto a isso, o único testemunho de que dispomos é o da própria prisioneira. Segundo Miss Marriott, em casa de quem


Harriet Vane procurou refúgio depois da separação, a prisioneira recusou-se firmemente a prestar quaisquer informações sobre o assunto, dizendo apenas que tinha sido dolorosamente enganada por Boyes e que nunca mais queria ouvir o nome dele. «Poderia supor-se que Boyes dera à prisioneira motivo de queixa contra ele, por infidelidade, por crueldade ou simplesmente pela recusa persistente de regularizar a situação aos olhos do mundo. Mas a prisioneira nega-o categoricamente. De acordo com o seu depoimento, e neste ponto o seu testemunho é confirmado por uma carta que Philip Boyes escreveu ao pai, Boyes teria acabado por lhe propor casamento legal, sendo essa a causa da zanga. Embora possais pensar que se trata de uma declaração bizarra, é esse o testemunho da prisioneira, prestado sob juramento. «Seria natural pensardes que esta proposta de casamento invalida qualquer sugestão de que a prisioneira teria motivo de queixa contra Boyes. Qualquer pessoa diria que, em tais circunstâncias, ela não poderia ter motivos para querer assassinar esse jovem, precisamente o contrário. Mesmo assim, há o facto da zanga e de a própria prisioneira afirmar que esta proposta honesta, embora tardia, não foi bem-vinda. Ela não diz, como poderia muito razoavelmente dizer e como o seu advogado de defesa disse por ela com a mais admirável convicção, que esta proposta de casamento arredou completamente qualquer pretexto de inimizade da sua parte para com Philip Boyes. Sir Impey Biggs di-lo, mas não é isso que a prisioneira diz. Ela diz, e deveis tentar pôr-vos no seu lugar e compreender o seu ponto de vista, se conseguirdes, que ficou furiosa com Boyes porque, depois de ele a ter persuadido contra a vontade dela a adotar os seus princípios de conduta, renunciou de seguida a esses princípios e assim, como ela diz, ‘fez dela parva’. «Bem, compete-vos considerar se a proposta que foi de facto feita poderia razoavelmente ser interpretada como um motivo para homicídio. Devo fazer-vos notar que nenhum outro motivo foi sugerido nos testemunhos. Nesse momento, a solteirona idosa do júri foi vista a tomar um apontamento, um apontamento vigoroso, a avaliar pela ação do seu lápis no papel. Lord Peter Wimsey abanou lentamente a cabeça duas ou três vezes e resmungou qualquer coisa entredentes. – Depois disso – disse o juiz – não parece ter acontecido nada em particular a estas duas pessoas durante cerca de três meses, para além de Harriet Vane ter deixado a casa de Miss Marriott e de ter alugado um pequeno apartamento em Doughty Street, ao passo que Philip Boyes, pelo contrário, achando deprimente a sua vida solitária, aceitou o convite do primo, Mr. Norman Urquhart, para morar na casa deste em Woburn Square. Embora vivessem na mesma zona de Londres, Boyes e a ré não parecem ter-se encontrado com muita frequência depois da separação. Uma ou duas vezes, houve um encontro acidental na casa de uma pessoa amiga. As datas dessas ocasiões não podem ser determinadas com exatidão, por serem festas informais, mas existem indícios de que se verificou um encontro perto do final de março, outro na segunda semana de abril e um terceiro a dada altura em maio. Vale a pena ter em mente essas ocasiões, embora, como estão em dúvida os dias exatos em que se verificaram, não devais atribuir-lhes grande importância. «No entanto, chegamos agora a uma data da maior importância. A 10 de abril, uma jovem, que foi identificada como sendo Harriet Vane, entrou na farmácia em Southampton Row que é propriedade de Mr. Brown e comprou 55 gramas de arsénico comercial dizendo que necessitava dele para matar ratazanas. Assinou o livro dos venenos sob o nome de Mary Slater e a caligrafia foi identificada como sendo a da prisioneira. Além disso, a própria prisioneira admite ter efetuado essa compra, por certas razões pessoais. Por esse motivo, é relativamente pouco importante, mas talvez considereis


digno de nota, o facto de a porteira do prédio de apartamentos onde Harriet Vane vive ter comparecido perante vós e vos ter dito que não há ratazanas no prédio nem nunca as houve em todo o tempo em que ela lá residiu. «A 5 de maio temos uma outra compra de arsénico. A ré, como ela mesma declara, desta vez adquiriu uma lata de herbicida à base de arsénico, da mesma marca mencionada no caso de envenenamento Kidwelly. Desta vez, usou o nome Edith Waters. O prédio onde ela vive não tem jardim nem poderia haver nenhum uso concebível para herbicidas. «Também em variadas ocasiões, durante o período entre meados de março e o início de maio, a ré comprou outros venenos, entre eles ácido prússico (ostensivamente para fins fotográficos) e estricnina. Registou-se igualmente uma tentativa de obter aconitina, tentativa essa que não foi bemsucedida. Foi procurada uma loja diferente e dado um nome diferente em cada um dos casos. O arsénico é o único veneno diretamente relacionado com este caso, mas estas outras compras são de alguma importância, por lançarem luz sobre as atividades da prisioneira neste período. «A prisioneira prestou uma explicação para estas compras a que deveis dar o valor que merece. Ela diz que andava envolvida, naquela altura, na escrita de um romance sobre envenenamento e que comprou os venenos para provar experimentalmente como era fácil uma pessoa comum adquirir venenos mortíferos. A comprová-lo, o seu editor, Mr. Trufoot, apresentou o manuscrito do livro. Tiveste-lo nas vossas mãos e ser-vos-á facultado de novo, se o entenderdes necessário, depois de eu terminar o meu resumo, para que possais examiná-lo na vossa sala. Foram-vos lidos excertos que demonstram que o assunto do livro era o assassínio por arsénico e que consta dele uma descrição de uma jovem que vai à farmácia comprar uma quantidade considerável desta substância mortífera. E devo mencionar agora o que já deveria ter mencionado antes, nomeadamente, que o arsénico comprado a Mr. Brown foi o comum arsénico comercializado, que é tingido com carvão ou índigo, como exige a lei, para não ser confundido com açúcar ou com qualquer outra substância inofensiva. Salcombe Hardy gemeu: – Por quanto tempo, meu Deus, por quanto tempo vamos ter de ouvir estas tretas todas sobre o arsénico comercial? Os assassinos aprendem isso ao colo da mãe. – Quero especialmente que recordeis essas datas, que voltarei a referir: 10 de abril e 5 de maio. (O júri anotou-as. Lord Peter Wimsey murmurou: – «Todos eles escreveram nas suas ardósias ‘Ela não acredita que haja um grão de sentido nisso’.»2 O Honourable Freddy disse: – O quê? O quê? – E o juiz virou mais uma página dos seus apontamentos.) «Por essa altura, Philip Boyes começou a sofrer renovados ataques de problemas gástricos dos quais sofrera de tempos em tempos ao longo da sua vida. Lestes o depoimento do Dr. Green, que o tratou de algo do género quando ele andava na universidade. Isso foi há algum tempo, mas temos também o depoimento do Dr. Weare, que em 1925 lhe receitou medicamentos para um achaque similar. Não doenças graves, mas dolorosas e esgotantes, acompanhadas por enjoos e sintomas semelhantes e dores nos membros. Muitas pessoas têm problemas desse género de tempos em tempos. Mesmo assim, verifica-se aqui uma coincidência de datas que pode ser significativa. Temos estes ataques, anotados no livro de registos do Dr. Weare, um a 31 de março, um a 15 de abril e mais um a 12 de maio. Três coincidências, como talvez as considereis: Harriet Vane e Philip Boyes encontraram-se ‘perto do final de março’ e ele tem um ataque de gastrite a 31 de março; a 10 de abril, Harriet Vane comprou 55 gramas de arsénico e eles encontram-se novamente ‘na segunda semana de abril’ e a 15 de abril ele tem novo ataque; a 5 de maio há a compra do herbicida, ‘a dada altura em


maio’ dá-se um outro encontro e a 12 de maio ele adoece pela terceira vez. Podereis pensar que é bastante curioso, mas não deveis esquecer que a Coroa não conseguiu provar que tenha havido alguma aquisição de arsénico antes do encontro em março. Deveis ter esse facto em mente na ponderação deste ponto. «Depois do terceiro ataque, que ocorreu em maio, o médico aconselha Boyes a mudar de ares e ele escolhe o extremo noroeste do País de Gales. Vai para Harlech, onde passa uma temporada muito agradável e se sente muito melhor. Mas tem um amigo a acompanhá-lo, Mr. Ryland Vaughan, que vós vistes, e esse amigo diz que ‘Philip não estava feliz’. De facto, Mr. Vaughan formou a opinião de que Philip Boyes estava preocupado com Harriet Vane. A sua saúde física melhorou, mas continuava mentalmente deprimido. E, assim, a 16 de junho encontramo-lo a escrever uma carta a Miss Vane. Ora bem, trata-se de uma carta importante, pelo que vo-la lerei mais uma vez: QUERIDA HARRIET, A vida é uma total confusão. Não consigo aguentar aqui mais tempo. Decidi partir à deriva e ir para oeste. Mas antes de partir quero ver-te mais uma vez e descobrir se não será possível voltar a endireitar as coisas. És livre de fazeres o que quiseres, claro, mas continuo a não compreender a atitude que tomaste. Se, desta feita, eu não conseguir fazer-te ver a coisa na perspetiva correta, desisto de uma vez por todas. Estarei na cidade no dia 20. Escreve-me a dizer quando posso visitar-te. Teu, P.

– Ora, como vos apercebestes já, esta carta é extremamente ambígua. Sir Impey Biggs sugeriu com argumentos de grande peso que, com expressões como «partir à deriva» e «ir para oeste», «Não consigo aguentar aqui mais tempo» e «desisto de uma vez por todas», o autor da carta estava a exprimir a sua intenção de pôr fim à própria vida se não conseguisse obter uma reconciliação com a ré. Chama a atenção para o facto de «ir para oeste» ser um eufemismo bem conhecido para «morrer» e isso, é claro, poderá parecer-vos convincente. Mas Mr. Urquhart, quando interrogado sobre o assunto pelo procurador-geral, disse que supunha que a carta aludia a um projeto que ele mesmo tinha sugerido ao falecido, de fazer uma viagem de travessia do Atlântico até Barbados, para mudar de ares. E o douto procurador-geral apresenta um outro argumento, de que, quando o autor da carta diz «Não consigo aguentar aqui mais tempo» está a referir-se à Grã-Bretanha ou, talvez, meramente a «aqui em Harlech» e que se a expressão se referisse a suicídio seria simplesmente «não consigo aguentar mais tempo». «Sem dúvida, formastes a vossa própria opinião sobre este ponto. É importante assinalar que o falecido pede um encontro para o dia 20. Temos a resposta a essa carta diante de nós; diz: QUERIDO PHIL, Podes passar por cá às 9h30 no dia 20 se quiseres, mas de certeza que não me vais fazer mudar de ideias.

– E está simplesmente assinada «H». Uma carta muito fria, podereis pensar, quase num tom hostil. No entanto, o encontro fica marcado para as nove e meia. «Não terei de tomar a vossa atenção por muito mais tempo, mas peço-vo-la neste momento em especial porque, embora tenhais atendido às minhas palavras com a maior paciência e diligência, chegamos agora ao dia da morte. O velho senhor pôs as mãos unidas uma por cima da outra sobre o maço de apontamentos e inclinou-se um pouco para a frente. Tinha todos os dados na mente, embora três dias antes não


soubesse ainda nada sobre o assunto. Ainda não chegara à fase de balbuciar ninharias sobre campos verdejantes e episódios da infância3; ainda dominava com firmeza o presente; segurava-o bem espalmado sob os seus dedos enrugados com unhas cinzentas e quebradiças. – Philip Boyes e Mr. Vaughan voltaram juntos para a cidade ao fim da tarde do dia 19 e não parece haver nenhuma dúvida de que Boyes se encontrava então de ótima saúde. Boyes passou a noite na casa de Mr. Vaughan e, como habitualmente, tomaram juntos o pequeno-almoço: bacon e ovos, torradas, compota de laranja e café. Às onze horas Boyes bebeu uma cerveja Guinness, comentando que, como diziam os anúncios, ela «Fazia bem». À uma hora fez um lauto almoço no seu clube e à tarde jogou vários sets de ténis com Mr. Vaughan e alguns outros amigos. Durante o jogo, um dos parceiros comentou que Harlech tinha feito bem a Boyes e ele respondeu que há muitos meses não se sentia tão em forma. «Depois das sete e meia, voltou para casa para jantar com o seu primo, Mr. Norman Urquhart. Não foi observado absolutamente nada fora do comum nos seus modos ou na sua aparência, nem por Mr. Urquhart nem pela criada que os serviu à mesa. O jantar foi servido às oito horas em ponto e penso que seria aconselhável que anotásseis essa hora (se não o fizestes já) e também a lista do que foi comido e bebido. «Os dois primos jantaram sozinhos e, primeiro, como aperitivo, tomaram cada um o seu cálice de xerez. O xerez foi um belo Oleroso de 1847, que a criada decantou de uma garrafa aberta na hora e lhes serviu em cálices quando eles estavam sentados na biblioteca. Mr. Urquhart mantém o digno hábito antiquado de ter a criada presente durante toda a refeição, pelo que temos aqui a vantagem de duas testemunhas durante esta parte do serão. «Bem, houve o xerez. Seguiu-se uma taça de caldo frio, servida por Hannah Westlock da terrina que se encontrava no aparador. Era uma sopa muito forte, boa, gelatinosa. Ambos os homens a comeram e, depois do jantar, o caldo foi acabado pela cozinheira e por Miss Westlock na cozinha. «Depois da sopa veio um rodovalho com molho. As porções foram mais uma vez servidas no aparador, a molheira passada a ambos à vez e o prato foi depois levado para a cozinha para ser acabado pelas serviçais. «Em seguida, veio um poulet en casserole, ou seja, frango cortado e estufado lentamente com legumes num recipiente de cozinha à prova de fogo. Ambos os homens comeram um pouco e as serviçais comeram o resto. «O prato final foi uma omelete doce, confecionada à mesa num pequeno fogareiro pelo próprio Philip Boyes. Tanto Mr. Urquhart como o primo insistiam em comer as omeletes mal saem da frigideira, uma bela regra esta, e aconselho todos a darem este mesmo tratamento às omeletes e a nunca as consumirem já frias, porque ficarão duras. Foram trazidos para a mesa quatro ovos ainda na casca e Mr. Urquhart partiu-os um a um e deitou-os numa taça, acrescentando-lhes açúcar de um açucareiro. Em seguida, passou a taça a Mr. Boyes, dizendo-lhe: ‘Tu é que tens jeito para omeletes, Philip, deixo-te a ti a tarefa.’ Philip Boyes bateu os ovos com o açúcar, cozinhou a omelete no pequeno fogareiro, recheou-a com compota quente, que foi trazida por Hannah Westlock, e ele próprio a dividiu em duas porções, dando uma a Mr. Urquhart e consumindo a outra. «Tenho tido o cuidado de vos recordar todas estas coisas para mostrar que possuímos boas provas de que todos os pratos servidos ao jantar foram consumidos por duas pessoas pelo menos, e na maior parte dos casos por quatro. A omelete, o único prato cujos restos não foram para a cozinha, foi preparada pelo próprio Philip Boyes e partilhada com o primo. Nem Mr. Urquhart nem Miss


Westlock nem a cozinheira, Mrs. Pettican, sentiram nenhuns efeitos adversos desta refeição. «Devo também mencionar que houve um elemento da refeição que foi tomado apenas por Philip Boyes, uma garrafa de borgonha. Era um soberbo vinho Corton e foi trazido para a mesa na sua garrafa original. Mr. Urquhart tirou a rolha à garrafa, que passou intacta a Philip Boyes, dizendo que não beberia, porque tinha sido aconselhado a não beber às refeições. Philip Boyes bebeu dois copos cheios e, felizmente, o resto da garrafa foi guardado. Como já ouvistes, o vinho foi posteriormente analisado, tendo-se comprovado que era totalmente inofensivo. «Assim chegamos às nove horas. Depois do jantar, é sugerido um café, mas Boyes apresenta a desculpa de que não gosta de café turco e de que, além disso, provavelmente Harriet Vane lhe oferecerá café. Às nove e um quarto, Boyes sai do prédio de Mr. Urquhart em Woburn Square e vai de táxi até ao prédio onde Miss Vane tem o seu apartamento, no número 100 de Doughty Street, uma distância de cerca de oitocentos metros. Sabemos, pela própria Harriet Vane, por Mrs. Bright, moradora no apartamento do rés-do-chão, e pelo agente de polícia D. 1234, que estava a passar na rua naquela altura, que Boyes se encontrava à soleira da porta, a tocar à campainha da prisioneira, às nove horas e vinte e cinco minutos. Ela estava à espera dele e abriu-lhe a porta imediatamente. «Ora bem, como o encontro foi, naturalmente, privado, não temos um outro relato em que possamos confiar a não ser o da ré. Ela disse-nos que, mal ele entrou, lhe ofereceu ‘uma chávena de café que estava pronto no bico do gás’. Ora bem, quando ouviu a ré dizer isso, o douto procurador-geral imediatamente perguntou onde se encontrava pronto o café. A ré, aparentemente não compreendendo bem o objetivo da pergunta, respondeu ‘na grelha, para o manter quente’. Quando a pergunta foi repetida mais claramente, ela explicou que o café tinha sido feito numa cafeteira e que esta tinha sido colocada na grelha, no bico de gás. O procurador-geral chamou então a atenção da prisioneira para o depoimento anterior por ela prestado à polícia, no qual se exprimia da seguinte forma: ‘Eu tinha uma chávena de café pronta para ele quando chegou.’ Verão de imediato a importância disto. Se as chávenas estavam preparadas e tinham sido servidas antes da chegada do falecido, teria havido oportunidade de colocar anteriormente veneno numa delas e oferecer a chávena preparada a Philip Boyes; mas, se o café foi servido da cafeteira na presença do falecido, a oportunidade seria bastante menor, embora, evidentemente, a coisa pudesse ser facilmente feita quando Boyes estivesse momentaneamente distraído. A ré explicou que no seu depoimento usou a expressão ‘uma chávena de café’ meramente para denotar ‘uma certa quantidade de café’. Vós próprios podereis ajuizar se essa é uma forma de expressão usual e natural. Segundo Harriet Vane, o falecido não quis leite nem açúcar no café e tendes o testemunho de Mr. Urquhart e de Mr. Vaughan de que era seu hábito tomar o café após o jantar sem adicionar leite nem o adoçar. «Segundo o depoimento da ré, o encontro não foi satisfatório. Foram proferidas recriminações por ambas as partes e cerca das dez horas o falecido exprimiu a intenção de a deixar. Ela diz que ele parecia pouco à vontade e que comentou que não estava a sentir-se bem, acrescentando que o comportamento dela o tinha perturbado imenso. «Às dez horas e dez minutos, e insto-vos a tomar bem nota destas horas, o taxista Burke, que estava na praça de táxis de Guildford Street, foi abordado por Philip Boyes, que lhe pediu que o levasse a Woburn Square. Ele diz que Boyes falou num tom apressado e abrupto, como o de uma pessoa perturbada na mente ou no corpo. Quando o táxi parou à porta da casa de Mr. Urquhart, Boyes não saiu e Burke abriu a porta para ver o que se passava. Encontrou o falecido encolhido num canto com a mão a apertar o estômago e o rosto pálido e coberto de suor. Perguntou-lhe se se estava a sentir


doente e o falecido respondeu: ‘Sim, estou de todo.’ Burke ajudou-o a sair e tocou à campainha, apoiando-o com um braço enquanto ambos esperavam na soleira da porta. Hannah Westlock abriu a porta. Philip Boyes mal parecia capaz de andar; estava quase dobrado em dois e afundou-se a gemer numa cadeira no átrio, pedindo brandy. Ela trouxe-lhe um brandy com água mineral da sala de jantar e, depois de o beber, Boyes recuperou o suficiente para tirar dinheiro do bolso e pagar o táxi. «Como ele continuava a parecer muito doente, Hannah Westlock foi chamar Mr. Urquhart à biblioteca. Este disse a Boyes: ‘Olá, meu velho, o que se passa contigo?’ Boyes respondeu: ‘Não faço ideia! Sinto-me pessimamente. Não pode ter sido o frango.’ Mr. Urquhart disse que esperava que não, não tinha notado nada de estranho nele, e Boyes respondeu que não, supunha que devia ser um dos seus ataques usuais, mas que nunca se tinha sentido assim. Foi acompanhado ao andar de cima, até à cama, e o Dr. Grainger foi chamado por telefone, por ser o médico disponível mais próximo. «Antes da chegada do médico, o paciente teve um violento acesso de vómitos e continuou a vomitar persistentemente. O Dr. Grainger diagnosticou uma gastrite aguda. Tinha febre alta e o pulso acelerado e dores agudas no abdómen quando este foi palpado, mas o médico não encontrou nada que indiciasse algo como uma apendicite ou uma peritonite. Por conseguinte, regressou ao seu consultório e preparou um medicamento para debelar os vómitos, uma mistura de bicarbonato de potássio, tintura de laranja e clorofórmio e mais nenhumas outras drogas. «No dia seguinte, os vómitos persistiam e o Dr. Weare foi chamado para conferenciar com o Dr. Grainger, já que estava bem a par da constituição do paciente. O juiz fez uma pausa e lançou um olhar ao relógio de parede. – O tempo urge e, como os testemunhos médicos ainda têm de ser passados em revista, suspenderei agora a sessão para o almoço. – É típico dele – disse o Honourable Freddy –, mesmo no momento mais chocante, quando já nos tirou completamente o apetite. Vem daí, Wimsey, vamos lá alimentar o sistema com uma costeleta, que me dizes?... Ouve! Wimsey passou por ele sem lhe prestar atenção e estava a descer para a sala do tribunal, onde Sir Impey Biggs se encontrava a conferenciar com os seus assistentes. – Parece uma confusão – disse Mr. Arbuthnot num tom pensativo. – Foi apresentar alguma espécie de teoria alternativa, suponho. Nem sei porque é que vim a este triste espetáculo. É um tédio, sabe, e a moça nem sequer é bonita. Acho que não volto depois do almoço. Saiu a custo e viu-se face a face com a duquesa viúva de Denver. – Venha daí almoçar, duquesa – disse Freddy, esperançado. Gostava da viúva. – Estou à espera do Peter, obrigada, Freddy. É um caso tão interessante e com pessoas tão interessantes, não lhe parece, embora eu não saiba como o júri o interpretará, a maioria tem cara de presuntos, menos o artista, que não teria nenhuma característica distintiva se não fosse aquela gravata horrorosa e aquela barba, parece Cristo, mas não Cristo de verdade, um daqueles italianos com umas vestes cor-de-rosa e uma espécie de opa azul. Aquela ali no júri não é a Miss Climpson do Peter? Como é que ela lá foi parar? – Ele pô-la numa casa algures nas imediações, imagino – disse Freddy –, com um escritório de datilografia a seu cargo e ela a viver no andar por cima e a dirigir aquelas cómicas proezas de caridade dele. É uma velhota esquisita, não é? Parece saída de uma revista dos anos 1890. Mas dá a impressão de se adaptar bem ao trabalho dele e isso tudo. – Sim, e é uma boa coisa, responder àqueles anúncios duvidosos todos e depois desmascarar as


pessoas; e também muito corajoso, algumas delas são pessoas horrendas, nem me admirava que fossem assassinos, com aquelas coisas automáticas e armas em todos os bolsos e muito provavelmente uma fornalha cheia de ossos como o Landru4, ele era mesmo esperto, não era? E realmente tais mulheres, assassinas natas como diz alguém, com cara de recas, mas é claro que não mereciam e possivelmente as fotografias não lhes fazem justiça, pobrezinhas. A duquesa divagava ainda mais do que o habitual, pensou Freddy e, enquanto falava, desviava o olhar para o filho com uma espécie de ansiedade que não era comum nela. – É formidável ter o velho Wimsey de volta, não é? – disse ele, num bondoso tom simples. – É maravilhoso como ele se interessa por este tipo de coisa, não lhe parece? Sai disparado mal chega a casa como um velho cavalo de guerra quando sente o cheiro a TNT. Anda sempre metido nestas coisas. – Bem, é um dos casos do inspetor-chefe Parker e eles são grandes amigos, sabe, quais David e Bersebá...5 ou será que quero dizer Daniel? Wimsey aproximou-se deles nesse momento complicado e enfiou afetuosamente o braço da sua mãe no dele. – Lamento imenso tê-la feito esperar, mãe, mas tinha de dar uma palavrinha ao Biggy. Ele está a passar um mau bocado e o velho juiz Jeffrey dá a ideia de que se está a preparar para uma condenação à morte. Vou já para casa queimar os meus livros. É perigoso saber demasiado sobre venenos, não lhe parece? Nem que sejais tão casto como o gelo, tão puro como a neve, não escapareis ao Old Bailey6. – A jovem não parece ter seguido essa receita, pois não? – observou Freddy. – Devias estar no júri – retorquiu Wimsey, com um azedume inusitado –, aposto que é o que estão todos a dizer neste momento. Estou convencido de que aquele porta-voz dos jurados é abstémio, vi um refrigerante a entrar para a sala do júri e só espero que expluda e lhe rebente com as entranhas e lhas faça sair pelo topo do crânio. – Pronto, pronto – respondeu Mr. Arbuthnot a sossegá-lo. – Do que tu precisas é de uma bebida. 2 Citação do episódio do julgamento em Alice no País das Maravilhas. (N. da T.) 3 Alusão a Henrique V, de Shakespeare. (N. da T.) 4 Famoso assassino em série francês. (N. da T.) 5 A duquesa confunde Betsabé, a mãe de Salomão, com o nome de um local bíblico. (N. da T.) 6 Alusão a Hamlet. Na peça de Shakespeare, não se escapa à calúnia, aqui substituída pelo nome do tribunal londrino. (N. da T.)


CAPÍTULO DOIS A procura de lugares abrandou; o júri regressou; a prisioneira reapareceu no banco dos réus de repente, como um boneco de mola; o juiz voltou a ocupar o seu lugar. Tinham caído algumas pétalas das rosas vermelhas. A velha voz retomou a história onde a tinha interrompido. – Membros do júri, julgo não haver necessidade de eu recordar a progressão da doença de Philip Boyes com grandes pormenores. A enfermeira foi chamada no dia 21 de junho e durante esse dia os médicos visitaram o paciente três vezes. O seu estado agravou-se progressivamente. Verificavam-se vómitos persistentes e diarreia e ele não conseguia manter no estômago nem comida nem medicamentos. No dia seguinte, 22 de junho, estava ainda pior, com dores fortes, o pulso cada vez mais fraco e a pele em redor da boca seca e a esfolar. Os médicos prestaram-lhe todos os cuidados possíveis, mas não podiam fazer nada por ele. O seu pai foi chamado e, quando chegou, encontrou o filho consciente, mas incapaz de se soerguer. No entanto, conseguia falar e na presença do seu pai e da enfermeira Williams fez o seguinte comentário: «Estou de partida, papá, e sinto-me contente por estar tudo acabado. A Harriet vai ver-se livre de mim; eu não sabia que ela me odiava assim tanto.» Ora bem, foi um discurso notável e ouvimos duas interpretações muito diferentes dele. Compete-vos decidir se, na vossa opinião, ele queria dizer «Ela conseguiu ver-se livre de mim; eu não sabia que ela me odiava o suficiente para me envenenar», ou se queria dizer «Quando me apercebi de que ela me odiava assim tanto, decidi que já não queria viver». Ou se, porventura, ele não quereria dizer nem uma coisa nem a outra. Quando as pessoas estão muito doentes, por vezes são assaltadas por ideias absurdas e noutras vezes divagam; talvez sintais que não convém tomar nada como dado adquirido. Seja como for, essas palavras incluem-se nas provas e tendes o direito de as tomar em consideração. «Durante a noite, ele foi ficando gradualmente mais fraco e perdeu os sentidos, e às três da madrugada faleceu sem nunca os ter recuperado. Essa ocorrência deu-se no dia 23 de junho. «Ora bem, até esse momento, nenhuma suspeita de qualquer tipo tinha sido despertada. Tanto o Dr. Grainger como o Dr. Weare formaram a opinião de que a causa da morte tinha sido um ataque agudo de gastrite e não devemos culpá-los por terem chegado a esta conclusão, porque era bastante consistente tanto com os sintomas da doença como com o historial do paciente. Foi passada uma certidão de óbito nos moldes habituais e o funeral realizou-se no dia 28. «Bem, aconteceu então algo que acontece frequentemente em casos deste tipo, ou seja, alguém começou a falar. Foi a enfermeira Williams quem falou neste caso em particular e, embora possais pensar que se tratou de uma atitude muito errada e muito indiscreta da enfermeira, ela, como viria a revelar-se, procedeu bem. Evidentemente, ela deveria ter informado o Dr. Grainger ou o Dr. Weare sobre as suas suspeitas na altura, mas não o fez, e podemos pelo menos sentir-nos satisfeitos por sabermos que, na opinião dos médicos, mesmo que ela o tivesse feito e que eles tivessem descoberto que a doença era causada por arsénico, nada mais teriam conseguido fazer para salvar a vida deste infeliz homem. Seja como for, o que aconteceu foi que a enfermeira Williams foi contratada durante a última semana de junho para cuidar de outro paciente do Dr. Weare, que por acaso pertencia ao


mesmo grupo literário em Bloomsbury de Philip Boyes e Harriet Vane, e, durante a sua estada em casa desse doente, a enfermeira falou sobre Philip Boyes e disse que, na sua opinião, os sintomas dele se pareciam bastante com os de envenenamento e mencionou até a palavra arsénico. Bem, sabeis como uma coisa dessas se espalha. Uma pessoa diz a outra e o assunto é discutido em lanches festivos ou naquilo que é conhecido, julgo, como festas de cocktails, e daí a pouco tempo a história espalha-se e as pessoas mencionam nomes e tomam partido. Miss Marriott e Miss Price ouviram a história, que também chegou aos ouvidos de Mr. Vaughan. Ora bem, Mr. Vaughan ficou extremamente perturbado e surpreendido com a morte de Philip Boyes, especialmente por ter estado com ele no País de Gales e saber o quanto ele tinha melhorado nessas férias, e sentia também fortemente que Harriet Vane se comportara mal em relação ao caso amoroso. Mr. Vaughan achou que deveria ser empreendido algum tipo de ação relativamente ao assunto e foi ter com Mr. Urquhart para lhe apresentar a história. Ora bem, Mr. Urquhart é advogado, pelo que tende a encarar boatos e suspeitas com cautela, e avisou Mr. Vaughan de que não era recomendável andar a fazer acusações contra pessoas, sob pena de correr o risco de lhe ser movida uma ação por difamação. Ao mesmo tempo, naturalmente sentiu-se incomodado por andar a dizer-se tal coisa sobre um seu parente que tinha morrido na sua casa. Adotou o procedimento, um procedimento muito sensato, de consultar o Dr. Weare e de lhe sugerir que, se ele tinha toda a certeza de que a doença fora devida a uma gastrite e a nada mais, tomasse medidas para repreender a enfermeira Williams e pôr fim ao falatório. Naturalmente, o Dr. Weare ficou muito surpreendido e perturbado ao ouvir o que andava a dizer-se, mas, como a sugestão tinha sido feita, ele não podia negar que, tomando em consideração apenas os sintomas, havia uma possibilidade mínima de algo do género ter acontecido, porque, como já ouvistes nos depoimentos médicos, não é possível distinguir os sintomas de envenenamento por arsénico dos sintomas de gastrite aguda. «Quando isto lhe foi transmitido, Mr. Vaughan viu confirmadas as suas suspeitas e escreveu ao pai de Philip Boyes a sugerir um inquérito. Naturalmente, Mr. Boyes ficou muito chocado e disse imediatamente que a questão deveria ser averiguada. Estava a par da ligação do seu filho com Harriet Vane e reparara que ela não tinha vindo saber de Philip Boyes nem assistira ao funeral, o que considerou um comportamento de extrema frieza. Por fim, a polícia foi contactada e foi obtida uma ordem de exumação. «Ouvistes o resultado da análise feita por Sir James Lubbock e por Mr. Stephen Fordyce. Houve grande debate sobre os métodos de análise e sobre a maneira como o arsénico atua no corpo e assuntos afins, mas penso que não precisamos de nos preocupar excessivamente com esses pormenores subtis. Os pontos principais das provas parecem-me ser os seguintes, de que tomareis nota se assim o entenderdes. «Os analistas retiraram certos órgãos do corpo, o estômago, os intestinos, os rins, o fígado e outros, e analisaram algumas porções deles, descobrindo que todos continham arsénico. Conseguiram pesar a quantidade de arsénico encontrada nessas várias porções e, com base nesses valores, calcularam a quantidade de arsénico presente em todo o corpo. Em seguida, tiveram de tomar em consideração a quantidade de arsénico eliminada pelo corpo, por via dos vómitos e da diarreia e também através dos rins, porque os rins desempenham um papel muito substancial na eliminação deste veneno específico. Depois de tomarem em consideração todas estas coisas, formaram a opinião de que tinha sido tomada uma dose grande e fatal de arsénico, quatro ou cinco grãos, talvez, cerca de três dias antes da morte.


«Não sei se compreendestes bem todos os argumentos técnicos sobre o caso. Tentarei expor-vos os pontos principais tal como os compreendi. É da natureza do arsénico passar muito rapidamente pelo corpo, especialmente se for tomado com alimentos ou imediatamente a seguir a uma refeição, porque o arsénico irrita o revestimento dos órgãos internos e acelera o processo de eliminação. A sua ação será mais rápida se o arsénico for tomado em estado líquido do que se for tomado como pó. Quando é tomado com uma refeição ou imediatamente a seguir, o arsénico é evacuado quase todo cerca de vinte e quatro horas depois do início da doença. Por isso vedes que, embora as quantidades efetivamente encontradas no corpo vos possam parecer, a vós e a mim, muitíssimo pequenas, o mero facto de serem encontradas, três dias depois de vómitos e diarreia persistentes, aponta para que tenha sido tomada uma dose substancial a dado momento. «Ora bem, debateu-se bastante a hora a que os sintomas se manifestaram pela primeira vez. A defesa sugere que Philip Boyes poderá ter ele próprio tomado o arsénico a certa altura, entre o momento em que saiu do apartamento de Harriet Vane e chamou um táxi em Guildford Street; e apresenta livros em que se demonstra que, em muitos casos, os sintomas ocorrem pouco depois de o arsénico ser tomado; um quarto de hora, creio, foi o período de tempo mais curto mencionado nos casos em que o arsénico é tomado sob a forma de líquido. Ora bem, o depoimento da prisioneira, e não temos nenhum outro, é que Philip Boyes saiu de sua casa às dez horas, e dez minutos depois ele estava em Guildford Street. Nessa altura, já parecia doente. Não demora muitos minutos a chegar a Woburn Square àquela hora da noite e, quando lá chegou, ele já sentia dores agudas e mal conseguia segurar-se de pé. Ora bem, como Guildford Street fica muito perto de Doughty Street, talvez uns três minutos a pé, deveis perguntar-vos, partindo do princípio de que o depoimento da ré está correto, o que fez Philip Boyes naqueles dez minutos. Ter-se-á ocupado a ir para algum local sossegado tomar uma dose de arsénico, que nesse caso teria consigo para a eventualidade de o encontro com a ré ser desfavorável? E devo recordar-vos neste momento que a defesa não apresentou quaisquer provas de que Philip Boyes tenha alguma vez comprado arsénico ou tenha tido acesso a ele. Tal não significa que ele não possa tê-lo obtido, já que as compras feitas por Harriet Vane demonstram que a lei que regulamenta a venda de venenos nem sempre é tão eficaz como seria desejável, mas mantém-se o facto de que a defesa não foi capaz de demonstrar que o falecido alguma vez tivesse tido arsénico em sua posse. E já que falamos deste assunto mencionarei que, curiosamente, a análise não encontrou vestígios do carvão ou do índigo com o qual o arsénico comercializado deve ser misturado. Quer tenha sido comprado pela ré ou pela própria vítima, seria de esperar que se encontrassem vestígios do produto colorante. Mas podeis pensar que todos esses vestígios seriam removidos do organismo pelos vómitos e pelas purgas que ocorreram. «Quanto à sugestão de suicídio, tereis de considerar aqueles dez minutos, se Boyes esteve a tomar uma dose de arsénico ou se, como é possível, se sentiu mal e se sentou algures para se recompor ou ainda se, quem sabe, se pôs a andar ao acaso daquela maneira vaga que por vezes adotamos quando nos sentimos perturbados ou tristes. Ou podereis pensar que a ré se enganou ou não disse a verdade em relação à hora a que ele saiu do apartamento dela. «Tendes também o depoimento da ré de que, antes de sair, Boyes mencionou que estava a sentir-se mal. Se achais que esse facto tinha algo a ver com o arsénico, evidentemente ele invalida a hipótese de Boyes ter tomado o veneno depois de sair do apartamento. «Mas então, quando se atenta melhor, descobre-se que esta questão do início dos sintomas ficou muito vaga. Vários médicos vieram aqui falar-vos das suas próprias experiências e dos casos citados


em livros por autoridades médicas e tereis certamente notado que não há certezas relativamente ao momento em que pode esperar-se que os sintomas se manifestem. Por vezes é um quarto de hora ou meia hora, noutros casos duas horas, noutros ainda até cinco ou seis horas e, segundo julgo, num caso cerca de sete horas depois de o veneno ser ingerido. Nesse momento, o procurador-geral levantou-se respeitosamente e disse: – Nesse caso, Meritíssimo, julgo poder afirmar-se que o veneno foi tomado com o estômago vazio. – Obrigado, agradeço o esclarecimento. Esse foi um caso em que o veneno foi tomado com o estômago vazio. Só menciono estes casos para mostrar que estamos perante um fenómeno muito incerto e essa foi a razão por que eu tive o cuidado particular de vos recordar todas as ocasiões nas quais Philip Boyes ingeriu alimentos durante aquele dia, 20 de junho, visto que existe a possibilidade de terdes de o tomar em consideração. – Uma besta, mas uma besta justa – murmurou Lord Peter Wimsey. – Deixei propositadamente fora de consideração até este momento um outro ponto que surgiu da análise, o da presença de arsénico no cabelo. O falecido tinha cabelo encaracolado, que usava bastante comprido; certas madeixas da parte da frente, quando esticadas, mediam cerca de quinze ou dezoito centímetros. Ora bem, nesse cabelo foi encontrado arsénico, na parte mais próxima da cabeça. Não se estendia até às pontas das madeixas mais compridas, mas foi encontrado perto das raízes, e Sir James Lubbock diz que a quantidade era maior do que a que poderia explicar-se por meios naturais. Ocasionalmente, descobre-se que pessoas a todos os títulos normais apresentam vestígios minúsculos de arsénico no cabelo e na pele e noutras partes do corpo, mas não nas quantidades aqui encontradas. Essa é a opinião de Sir James. «Ora bem, foi-vos dito, e as testemunhas médicas concordam todas a esse respeito, que, se uma pessoa tomar arsénico, uma certa porção ficará depositada na pele, nas unhas e no cabelo. Ficará depositada nas raízes do cabelo e, à medida que o cabelo for crescendo, o arsénico acompanhará o crescimento do cabelo, pelo que, analisando a posição do arsénico no cabelo, se obtém uma ideia geral de há quanto tempo foi ministrado o veneno. Houve bastante debate sobre isto, mas parece-me que se chegou a um acordo generalizado de que, tomando uma dose de arsénico, pode esperar-se encontrar vestígios dele perto do couro cabeludo ao fim de cerca de dez semanas. O cabelo cresce a uma velocidade de cerca de quinze centímetros por ano e o arsénico acompanha esse crescimento até chegar às pontas e elas serem cortadas. Tenho a certeza de que as senhoras do júri compreenderão isto muito bem, porque creio que acontece a mesma coisa naquilo a que se chama uma ‘ondulação permanente’. A ondulação é feita numa certa porção de cabelo e, ao fim de algum tempo, começa a passar e o cabelo perto do couro cabeludo tem de ser novamente ondulado. Pode calcular-se há quanto tempo foi feita a ondulação pela posição das ondas. Da mesma maneira, se pisarmos uma unha, a descoloração descerá gradualmente até chegar ao ponto em que se poderá cortar com uma tesoura. «Ora bem, foi-nos dito que a presença de arsénico nas raízes do cabelo de Philip Boyes indica que ele deve ter tomado arsénico pelo menos três meses antes da sua morte. Avaliareis a importância que deve dar-se a este facto tendo em consideração a compra de arsénico pela ré em abril e em maio e os achaques do falecido em março, abril e maio. A zanga com a ré ocorreu em fevereiro; ele ficou doente em março e morreu em junho. Decorreram cinco meses entre a zanga e a morte e quatro meses entre a primeira doença e a morte, e podereis pensar que essas datas têm algum significado. «Chegamos agora às investigações feitas pela polícia. Quando a suspeita foi suscitada, os detetives


investigaram os movimentos de Harriet Vane e subsequentemente foram ao seu apartamento recolher um depoimento. Quando lhe disseram que se tinha descoberto que Philip Boyes morrera de envenenamento por arsénico, ela pareceu muito surpreendida, e disse: ‘Arsénico? Que coisa extraordinária!’ E em seguida riu-se e disse: ‘Ora, eu estou a escrever um livro que é todo sobre envenenamento por arsénico.’ Eles fizeram-lhe perguntas sobre as compras de arsénico e de outros venenos que ela tinha feito e ela admitiu-o prontamente e deu de imediato a mesma explicação que viria a dar aqui em tribunal. Perguntaram-lhe o que tinha feito com os venenos e ela respondeu que os tinha queimado porque eram substâncias perigosas para se terem em casa. O apartamento foi revistado, mas não foram encontrados venenos de nenhum tipo, a não ser aspirinas e outros medicamentos comuns desse tipo. Ela negou absolutamente que tivesse ministrado arsénico ou qualquer tipo de veneno a Philip Boyes. Foi-lhe perguntado se o arsénico se poderia ter misturado com o café acidentalmente e ela respondeu que tal era impossível, porque tinha destruído todos os venenos antes do final de maio. Nesse momento, Sir Impey Biggs interveio, atrevendo-se a sugerir ao meritíssimo juiz que recordasse ao júri o testemunho de Mr. Challoner. – Com certeza, Sir Impey, agradeço-lhe. Recordais que Mr. Challoner é o agente literário de Harriet Vane. Ele veio aqui dizer-nos que falou com ela em dezembro passado sobre o seu próximo livro e que ela lhe disse nessa ocasião que seria sobre venenos e muito provavelmente sobre arsénico. Por consequência, podereis pensar que é um ponto a favor da ré o facto de já ter em mente esta intenção de estudar a compra e a ministração de arsénico algum tempo antes de se dar a zanga com Philip Boyes. É evidente que ela refletiu maduramente sobre o assunto, porque havia um certo número de livros nas suas prateleiras relativos às áreas da medicina forense e da toxicologia, e também os relatos de vários julgamentos de casos famosos de envenenamento, entre eles o caso Madeleine Smith, o caso Seddon e o caso Armstrong, todos eles de envenenamento por arsénico. «Bem, julgo que este é o caso tal como vos foi apresentado. Esta mulher é acusada de ter assassinado o seu antigo amante envenenando-o com arsénico. Indubitavelmente, ele tomou arsénico e se estais convencidos de que foi ela quem lho deu, com a intenção de lhe causar danos ou de o matar, e que ele morreu disso, então é vosso dever declará-la culpada de homicídio. «Sir Impey Biggs, no seu discurso capaz e eloquente, sugeriu-vos que ela tinha pouquíssimo motivo para cometer um tal ato, mas é meu dever dizer-vos que os homicídios são muitas vezes cometidos pelos motivos aparentemente mais inadequados, se é que, de facto, algum motivo pode alguma vez ser considerado adequado para tal crime. Especialmente quando as partes são marido e mulher ou viveram juntas como marido e mulher, é provável que haja sentimentos fortes que levem pessoas com padrões morais inadequados e mentes perturbadas a cometerem crimes de violência. «A prisioneira tinha os meios, o arsénico, tinha o conhecimento especializado e teve a oportunidade de o administrar. A defesa diz que tal não é suficiente. Diz que a Coroa deve ir mais longe e provar que o veneno não poderia ter sido tomado de nenhuma outra maneira, por acidente ou com intenções suicidas. Compete-vos a vós decidir. Se sentis que persiste alguma dúvida razoável de que a ré tenha dado este veneno a Philip Boyes deliberadamente, deveis declará-la ‘inocente’ do crime de homicídio. Não tendes a obrigação de decidir como foi ministrado, se não foi ministrado por ela. Considerai as circunstâncias do caso na sua globalidade e comunicai as conclusões a que chegastes.


CAPÍTULO TRÊS – Parece-me que não vão demorar – disse Waffles Newton. – É bastante óbvio. Olha, meu velho, eu vou enviar o meu material. Dizes-me depois o que aconteceu? – Claro – respondeu Salcombe Hardy –, se não te importares de entregar também o meu. Não poderias mandar-me uma bebida por telefone? Tenho a boca que parece o chão de uma gaiola de papagaio. – Olhou para o seu relógio. – Já não vamos a tempo da edição das seis e meia, receio bem, a não ser que eles se despachem. O velhote é cuidadoso, mas é lento como o diabo. – A bem da decência, eles têm de, pelo menos, dar a ideia de que estão a conferenciar sobre o caso – disse Newton. – Dou-lhes vinte minutos. Vão querer fumar. Assim como eu. Volto às seis menos dez, pelo sim pelo não. Encaminhou-se para a saída. Cuthbert Logan, que era repórter de um matutino e um homem com mais tempo, instalou-se bem instalado para escrever uma descrição do julgamento. Era uma pessoa fleumática e discreta e conseguia escrever tão confortavelmente no tribunal como em qualquer outro lugar. Gostava de estar no local quando aconteciam as coisas e tomar nota de olhares, tons de voz, efeitos de cor e outras coisas do género. As suas notícias eram sempre interessantes e por vezes até notáveis. Freddy Arbuthnot, que afinal não tinha ido para casa depois do almoço, achou que já era hora de o fazer. Mexia-se no seu lugar e Wimsey franziu-lhe o sobrolho. A duquesa viúva avançou ao longo dos bancos e encafuou-se ao lado de Lord Peter. Sir Impey Biggs, tendo zelado pelos interesses da sua cliente até ao fim, desapareceu, a tagarelar animadamente com o procurador-geral e seguido pelos advogados subalternos. O banco dos réus estava deserto. Na mesa, as rosas vermelhas figuravam solitárias, com as pétalas a caírem. O inspetor-chefe Parker, afastando-se de um grupo de amigos, avançou lentamente por entre a multidão e cumprimentou a viúva. – E o que pensa do caso, Peter? – acrescentou, virando-se para Wimsey. – Bastante bem apresentado, não? – Charles – disse Wimsey –, não deviam deixá-lo andar cá fora sem mim. Cometeu um erro, meu velho. – Cometi um erro? – Não foi ela. – Oh, deixe-se de coisas! – Não foi ela. O caso é muito convincente e tem as pontas bem atadas, mas está tudo errado. – Não pensa realmente isso. – Penso. Parker pareceu ficar perturbado. Confiava no poder de avaliação de Wimsey e, apesar da sua certeza interior, sentiu-se abalado. – Meu caro, onde está a falha no caso? – Não há falha nenhuma. É à prova de bala, por assim dizer. Não há absolutamente nada de errado no resultado, a não ser que a moça está inocente.


– Está a tornar-se um psicólogo de algibeira – disse Parker, com uma risada contrafeita –, não está, duquesa? – Quem me dera ter conhecido aquela moça – respondeu a viúva, da sua habitual maneira indireta –, tão interessante, e tem um rosto realmente notável, embora talvez não propriamente bonito, o que o torna ainda mais interessante, porque as pessoas bonitas são muitas vezes umas verdadeiras vacas. Ando a ler um dos livros dela, é realmente bastante bom e tão bem escrito, e eu só adivinhei quem era o assassino na página 200, bastante esperto, porque usualmente adivinho por volta da página 15. É bastante curioso, escrever livros sobre crimes e depois ser acusada de um crime, algumas pessoas diriam que foi castigo. Pergunto-me, caso não o tenha cometido ela, se ela adivinhou quem é o assassino. Suponho que os escritores de romances de detetives não se dedicam à deteção na vida real, não é, a não ser Edgar Wallace, claro, que parece estar sempre em toda a parte, e o caro Conan Doyle e aquele homem negro, como é que ele se chamava, e claro, o tal Slater, foi um imenso escândalo, embora, agora que penso nisso, esse caso foi na Escócia, onde têm leis muito estranhas sobre tudo, particularmente sobre o casamento. Bem, suponho que em breve saberemos, não a verdade, não necessariamente, mas o que o júri decidiu. – Sim, estão a demorar mais tempo do que eu esperava. Mas, ouça cá, Wimsey, gostava que me dissesse... – É demasiado tarde, é demasiado tarde, não pode entrar agora. Fechei o meu coração numa caixa de prata e espetei-lhe um alfinete dourado7. Já não interessa a opinião de ninguém a não ser a do júri. Suponho que Miss Climpson está a dizer-lhes tudo e mais alguma coisa. Quando começa, só para daí a uma ou duas horas. – Bem, já lá estão há meia hora – disse Parker. – Ainda à espera? – disse Salcombe Hardy, regressando à mesa da imprensa. – Sim... então é a isto que chamas vinte minutos! Três quartos de hora mas é, calculo eu. * – Já lá estão há uma hora e meia – disse uma jovem ao seu noivo, mesmo por trás de Wimsey. – O que é que podem estar a discutir? – Talvez não achem que foi ela, afinal. – Que tolice! É claro que foi ela. Via-se-lhe na cara. Dura, é o que eu acho, e nem uma vez chorou nem nada. – Oh, não sei – disse o jovem. – Não estás a querer dizer que a admiras, Frank? – Oh, bem, não sei. Mas não me pareceu uma assassina. – E como é que sabes o aspeto que tem uma assassina? Já alguma vez conheceste alguma assassina? – Bem, já estive na Madame Tussaud’s. – Oh, figuras de cera. Toda a gente parece assassina num museu de cera. – Bem, talvez sim. Queres um bombom?

– Duas horas e um quarto – disse Waffles Newton, impacientemente. – Devem ter adormecido. Temos de fazer uma edição especial. O que é que acontece se demorarem


a noite toda? – Ficamos aqui sentados toda a noite, é tudo. – Bem, é a minha vez de ir beber um copo. Avisem-me, está bem? – Certo!

– Estive a falar com um dos oficiais de justiça – disse o Homem Que Sabe Mexer os Cordelinhos, com ar de importância, a um amigo. – O juiz mandou perguntar aos jurados se pode ajudá-los de alguma maneira. – Ah sim? E o que é que eles disseram? – Não sei. – Já estão a deliberar há três horas e meia – segredou a jovem por trás de Wimsey. – Estou a ficar cheia de fome. – Estás, querida? Vamos embora? – Não, quero ouvir o veredicto. Já esperámos tanto tempo que mais nos vale continuar aqui. – Bem, eu vou lá fora e trago umas sanduíches. – Oh, isso era bom. Mas não te demores, porque eu tenho a certeza de que vou ficar numa pilha de nervos quando ouvir a sentença. – Vou ser o mais rápido possível. Dá-te por feliz por não seres do júri, não lhes dão absolutamente nada. – O quê, nada para comer nem para beber? – Nada de nada. Julgo que também não podem ter luz nem a lareira acesa. – Pobrezinhos! Mas a sala tem aquecimento central, não tem? – Faz bastante calor aqui, de qualquer maneira. Vai-me fazer bem respirar ar puro.

Cinco horas. – Há uma multidão incrível na rua – disse o Homem Que Sabe Mexer os Cordelinhos, regressando de uma expedição de reconhecimento. – Algumas pessoas começaram a apupar a prisioneira e uma data de homens atacaram-nas, e um tipo foi levado de ambulância. – A sério? Que divertido! Olha! Ali está Mr. Urquhart, já voltou. Tenho tanta pena dele, tu não? Deve ser horrível morrer-nos alguém em casa. – Ele está a falar com o procurador-geral. Foram todos jantar em condições, claro. – O procurador-geral não é tão bem-parecido como Sir Impey Biggs. É verdade que tem canários? – O procurador-geral? – Não, Sir Impey. – Sim, é verdade. Até ganha prémios com eles. – Que ideia mais esquisita!

– Aguenta lá, Freddy – disse Lord Peter Wimsey. – Vislumbro movimentos. Estão a vir, minha alma, minha doçura, com passos leves jamais vistos8.


Os presentes no tribunal puseram-se de pé. O juiz tomou o seu lugar. A prisioneira, muito pálida à luz elétrica, reapareceu no banco dos réus. A porta que dava para a sala do júri abriu-se. – Olha para as caras deles – disse a noiva. – Diz-se que quando o veredicto é «culpado» nunca olham para o prisioneiro. Oh, Archie, dá-me a mão! O escrivão dirigiu-se ao júri num tom em que a formalidade se debatia com a reprimenda. – Membros do júri, chegastes a acordo quanto ao vosso veredicto? O porta-voz do júri pôs-se de pé com uma expressão ofendida e irritada. – Lamento dizer que consideramos impossível chegar a um acordo. Uma exclamação prolongada e um murmúrio percorreram o tribunal. O juiz debruçou-se para a frente, muito cortês e nada fatigado. – Parece-vos que com mais algum tempo poderíeis chegar a um acordo? – Receio bem que não, Meritíssimo. – O porta-voz do júri lançou um olhar furioso a um canto do banco do júri, onde a solteirona de certa idade se encontrava com a cabeça baixa e as mãos firmemente unidas. – Não vejo hipóteses nenhumas de alguma vez chegarmos a acordo. – Posso ajudar-vos de alguma maneira? – Não, obrigado, Meritíssimo. Compreendemos bem as provas, mas não conseguimos chegar a um acordo. – Isso é lamentável. Parece-me que talvez seja melhor tentardes novamente e, em seguida, se não conseguirdes chegar a uma decisão, deveis regressar e comunicar-mo. Entretanto, se os meus conhecimentos da lei puderem ajudar-vos de alguma forma, estarei, evidentemente, ao vosso dispor. Os jurados retiraram-se em passos incertos e cabisbaixos. O juiz arrastou as suas vestimentas escarlates por trás da mesa. O murmúrio das conversas aumentou e transformou-se num ruído atroador. – Por Deus – disse Freddy Arbuthnot –, acho que é a tua Miss Climpson que está a atrasar o espetáculo, Wimsey. Viste como o porta-voz do júri a olhou furioso? – Ela é boa pessoa – disse Wimsey. – Oh, excelente, excelente pessoa! Tem uma consciência assustadoramente firme, é bem capaz de resistir. – Parece-me que tens andado a corromper o júri, Wimsey. Fizeste-lhe algum sinal ou coisa do género? – Não – disse Wimsey. – Acredites ou não, refreei-me de tal maneira que nem o sobrolho ergui. – Ele assim o diz – resmungou Freddy –, o que muito abona em seu favor. Mas é duro como o diabo para as pessoas que querem ir jantar.

Seis horas. Seis horas e meia.

– Por fim! Ao entrarem em fila pela segunda vez, os jurados davam sinais de cansaço. A mulher assoberbada tinha estado a chorar e ainda soluçava com o lenço a tapar-lhe a boca. O homem com um forte resfriado parecia quase morto. O cabelo do artista estava despenteado e parecia um arbusto varrido pelo vento. O diretor de uma empresa e o porta-voz do júri davam a impressão de que lhes apetecia estrangular alguém, e a solteirona de certa idade tinha os olhos fechados e mexia os lábios como se


estivesse a rezar. – Membros do júri, já chegastes a acordo quanto ao veredicto? – Não. Temos a certeza de que é impossível alguma vez chegarmos a acordo. – Têm toda a certeza? – perguntou o juiz. – Não quero apressar-vos de maneira nenhuma. Estou disposto a esperar aqui o tempo de que precisardes. O rosnado do diretor da empresa ouviu-se até na galeria. O porta-voz do júri controlou-se e respondeu num tom de voz alquebrado com o mau humor e a exaustão: – Nunca chegaremos a acordo, Meritíssimo, nem que aqui fiquemos até ao Dia do Juízo Final. – É muito lamentável – disse o juiz –, mas, nesse caso, evidentemente não há mais nada a fazer a não ser dispensar-vos e ordenar novo julgamento. Tenho a certeza de que destes todos o vosso melhor e de que aplicastes todos os recursos da vossa inteligência e da vossa consciência a esta matéria, que escutastes com tanta paciência e atenção zelosa. Estais dispensados e tendes o direito de usufruir de isenção de serviços de júri nos próximos doze anos.

Quase antes de se completarem as restantes formalidades e enquanto a toga do juiz ainda flamejava na pequena e escura entrada, Wimsey já tinha descido à sala do tribunal. Agarrou o advogado de defesa pela toga. – Biggy! Parabéns! Tem mais uma oportunidade. Deixe-me ajudá-lo e seremos bem-sucedidos. – Acha que sim, Wimsey? Não me importo de lhe confessar que nos saímos melhor do que eu esperava. – E vamos sair-nos ainda melhor da próxima vez. Olhe, Biggy, contrate-me como seu funcionário ou coisa do género. Quero interrogá-la. – A quem, à minha cliente? – Sim, tenho um pressentimento em relação a este caso. Nós temos de a ilibar e eu sei que é possível fazê-lo. – Bem, venha falar comigo amanhã. Tenho de ir falar com ela agora. Estou no meu escritório às dez. Boa noite. Wimsey afastou-se a toda a pressa para a porta lateral, pela qual estava a sair o júri. Por último, com o chapéu torto e a gabardine pelos ombros, saiu a solteirona de certa idade. Wimsey correu para ela e pegou-lhe na mão. – Miss Climpson! – Oh, Lord Peter! Oh, meu Deus! Que dia terrível que foi. Sabe, fui eu quem causou o problema todo, embora dois dos outros me dessem o seu apoio com toda a coragem, mas eu não podia, não, não podia em consciência dizer que foi ela quando tinha a certeza de que não foi, não é? Oh, meu Deus, meu Deus! – Tem toda a razão. Não foi ela e ainda bem que a senhora lhes fez frente e deu à ré outra oportunidade. Eu vou provar que ela não cometeu o crime. E vou levá-la a si a jantar fora e... ouça, Miss Climpson! – Sim? – Espero que não se importe, porque já não me barbeio desde hoje de manhã, mas vou levá-la para um canto sossegado e dar-lhe um beijo. 7 Alusão a uma balada celta. (N. da T.)


8 Paráfrase de versos do poema «Come into the garden, Maud», de Tennyson. (N. da T.)


CAPÍTULO QUATRO O dia seguinte era um domingo, mas Sir Impey Biggs cancelou um encontro para jogar golfe (sem grande pena, porque chovia a potes) e realizou um conselho de guerra extraordinário. – Ora bem, Wimsey – disse o advogado –, qual é a sua ideia em relação a isto? Permita-me apresentar-lhe Mr. Crofts, da Crofts & Cooper, advogados da defesa. – A minha ideia é que Miss Vane não cometeu o crime – disse Wimsey. – Atrevo-me a dizer que é uma ideia que já lhe ocorreu a si, mas, com o peso do meu soberbo intelecto por trás dela, sem dúvida causa uma impressão mais viva na sua imaginação. Mr. Crofts, sem saber ao certo se aquela tirada era cómica ou presunçosa, sorriu com deferência. – Exatamente – disse Sir Impey –, mas interessa-me saber quantos membros do júri o viram a essa luz. – Bem, posso dizer-lhe pelo menos isso, porque conheço um deles. Uma senhora, meia senhora e cerca de três quartos de um homem. – O que quer dizer exatamente? – Bem, a senhora que eu conheço defendeu que Miss Vane não era esse tipo de pessoa. Insistiram bastante com ela, é claro, porque ela não conseguiu apontar nenhum elo fraco na cadeia de provas e antes se limitou a dizer que a atitude da ré constituía parte das provas e que ela tinha o direito de a tomar em consideração. Por sorte, ela é uma senhora forte, enxuta e idosa, com um bom sistema digestivo e uma consciência religiosa militante de uma persistência notável, com excelente capacidade de resistência. Deixou-os galopar até caírem para o lado e a seguir disse que continuava a não acreditar e não ia dizer o contrário. – Muito útil – disse Sir Impey. – Uma pessoa que consegue acreditar em todos os artigos da fé cristã não vacila perante uma prova adversa menor. Mas não podemos ter a esperança de arranjar um júri cheio de eclesiásticos ferrenhos. E o que me diz da outra senhora e do homem? – Bem, a senhora foi bastante surpreendente. Era a jurada robusta e próspera que tem uma loja de doçarias. Disse que não lhe parecia que o caso estivesse provado e que era perfeitamente possível que o Boyes tivesse tomado o veneno ele próprio ou que o primo lho tivesse dado. Foi influenciada, estranhamente, pelo facto de ter assistido a um ou dois julgamentos de casos de envenenamento por arsénico e de não ter ficado convencida pelos veredictos nalguns outros casos, nomeadamente no julgamento de Seddon. Não tem grande opinião sobre os homens em geral (já enterrou o terceiro marido) e, por princípio, não acredita nos testemunhos dos peritos. Disse que, pessoalmente, pensava que Miss Vane poderia ter cometido o crime, mas que não estava disposta a mandar nem que fosse um cão para a forca com base em testemunhos médicos. Ao princípio estava disposta a votar com a maioria, mas antipatizou com o porta-voz do júri, que tentou vergá-la à sua autoridade masculina, e acabou por dizer que ia apoiar a minha amiga, Miss Climpson. Sir Impey riu-se. – Muito interessante. Quem me dera que tivéssemos sempre estas informações internas sobre os júris. Suamos as estopinhas para preparar as provas e depois uma pessoa decide-se com base no que


não é realmente prova e outra apoia-a com base no facto de que essa prova não é fiável. E o homem? – O homem era o artista, a única pessoa que realmente compreendia o tipo de vida que aquelas pessoas levavam. Ele acreditou na versão da zanga dada pela sua cliente e disse que, se a moça nutria realmente aqueles sentimentos pelo homem, a última coisa que quereria fazer seria matá-lo. Preferiria afastar-se e assistir à dor dele, como o homem com o dente furado naquela cançoneta cómica. Também conseguia acreditar na história toda de ela comprar os venenos, que para os outros, é claro, parecia extremamente duvidosa. Disse também que o Boyes, pelo que tinha ouvido dizer, era um pedante presunçoso e que qualquer pessoa que o eliminasse estava a prestar um serviço à comunidade. Tinha tido o azar de ler alguns dos livros dele e considerava o homem uma excrescência e uma ofensa pública. De facto, achava muito provável que ele tivesse cometido suicídio e, se alguém estivesse disposto a assumir esse ponto de vista, ele secundá-lo-ia. Alarmou também o júri ao dizer que estava acostumado a ficar a pé até tarde e num ambiente viciado e que não tinha a mínima objeção a ficar ali sentado toda a noite. Miss Climpson disse também que, numa causa justa, um pouco de desconforto pessoal era uma ninharia e acrescentou que a sua religião a tinha habituado a jejuar. Nesse momento, uma terceira senhora teve um ataque de histeria e outro homem, que tinha um negócio importante para finalizar no dia seguinte, perdeu as estribeiras e, por isso, para evitar que ocorresse algum ato de violência física, o porta--voz do júri disse que achava que era melhor concordarem em discordarem. E foi assim que se passou. – Bem, deram-nos mais uma oportunidade – disse Mr. Crofts –, por isso, ainda bem que assim foi. O julgamento não pode realizar-se antes da próxima temporada, o que nos dá cerca de um mês, e é provável que da próxima vez nos calhe o Bancroft, que não é um juiz tão severo como o Crossley. A questão é se podemos fazer alguma coisa para melhorar as perspetivas do nosso caso. – Eu vou dar tudo por tudo – disse Wimsey. – Tem de haver provas algures, não vos parece? Sei que trabalharam todos como mouros, mas eu vou trabalhar como o rei dos mouros. E tenho uma grande vantagem sobre vós todos. – Mais massa cinzenta? – sugeriu Sir Impey com um sorriso trocista. – Não... nem pensaria em sugerir tal, Biggy. Mas acredito de facto na inocência de Miss Vane. – Que diabo, Wimsey, os meus discursos eloquentes não o convenceram de que eu era um crente fervoroso? – É claro que sim. Quase derramei umas lágrimas. Aqui está o velho Biggy, disse eu para comigo mesmo, decidido a afastar-se dos tribunais e a cortar os pulsos se este veredicto for contra ele, porque deixará de acreditar na justiça britânica. Não, foi o seu regozijo por conseguir obter um desacordo que o desmascarou, meu velho. Foi mais do que você esperava. Disse-o claramente. A propósito, se não for uma pergunta inconveniente, posso saber quem lhe está a pagar, Biggy? – A Crofts & Cooper – disse Sir Impey, matreiro. – Eles estão metidos nisto por caridade, deduzo? – Não, Lord Peter. Na verdade, os custos deste caso são suportados pelos editores de Miss Vane e por... bem, por um certo jornal, que vai publicar o novo livro dela em folhetins. Contam com um furo em consequência de tudo isto. Mas, francamente, não sei o que dirão à despesa de um novo julgamento. Eu estou à espera de saber notícias deles durante a manhã. – Os abutres – disse Wimsey. – Bem, espero que continuem, mas diga-lhes que eu vou assegurarme de que estão garantidos. Mas não mencione o meu nome.


– Isso é muito generoso... – De modo nenhum. Eu não perderia por nada o divertimento disto tudo. É o tipo de caso que me encanta. Mas em troca tem de fazer uma coisa por mim. Quero ver Miss Vane. Tem de me fazer passar por um dos seus colaboradores, para eu poder ouvir a versão dela da história numa situação de relativa privacidade. Entende-me? – Suponho que isso é possível – disse Sir Impey. – Entretanto, não tem nada a sugerir? – Ainda não tive tempo. Mas vou pensar nalguma coisa, não se preocupe. Já comecei a minar as certezas da polícia. O inspetor-chefe Parker foi para casa entrançar folhas para os arranjos florais da campa dele. – Tenha cuidado – disse Sir Impey. – Tudo o que possamos descobrir será muito mais eficaz se a acusação não o souber antecipadamente. – Vou andar com pezinhos de lã. Mas se eu descobrir o verdadeiro assassino (se é que ele existe), não se opõe a que eu obtenha a detenção dele, presumo? – Não, não me oponho. Mas a polícia talvez sim. Bem, cavalheiros, se não há nada mais de momento, será melhor darmos por encerrada a reunião. Trata de providenciar a Lord Peter o que ele pretende, Mr. Crofts?

Mr. Crofts empenhou-se com energia e na manhã seguinte Lord Peter apresentou-se aos portões da Prisão de Holloway com as suas credenciais. – Oh, sim, vossa senhoria. Será tratado do mesmo modo que os advogados da prisioneira. Sim, recebemos também instruções da polícia e está tudo em ordem, vossa senhoria. O carcereiro vai acompanhá-lo e explicar-lhe o regulamento. Wimsey foi conduzido através de uma série de corredores despidos até uma pequena sala com uma porta de vidro. Havia uma mesa comprida nela e um par de cadeiras de aspeto repelente, uma em cada extremidade da mesa. – Aqui está, vossa senhoria. Vossa senhoria senta-se num dos extremos e a prisioneira no outro e devem ter o cuidado de não sair do lugar nem passar quaisquer objetos um ao outro. Eu fico lá fora a vê-los pelo vidro, vossa senhoria, mas não vou conseguir ouvir nada. Se não se importa de tomar o seu lugar, eles trazem a prisioneira, vossa senhoria. Wimsey sentou-se e esperou, dominado por curiosas sensações. Daí a pouco ouviram-se passos e a prisioneira foi trazida, acompanhada por uma guarda. Sentou-se na cadeira em frente a Wimsey, a guarda retirou-se e a porta foi fechada. Wimsey, que se tinha posto de pé, pigarreou. – Bom dia, Miss Vane – disse, discretamente. A prisioneira olhou para ele. – Por favor, sente-se – disse ela, na curiosa voz grave que o tinha atraído no tribunal. – É Lord Peter Wimsey, creio, e vem da parte de Mr. Crofts. – Sim – disse Wimsey. O olhar firme dela estava a desarmá-lo. – Sim. Eu... hum... eu ouvi o caso e tudo isso, e, hum... achei que poderia haver alguma coisa que eu pudesse fazer, não sei se me entende. – Foi muito generoso da sua parte – disse a prisioneira. – De modo nenhum, de modo nenhum, que diabo! Quer dizer, eu gosto bastante de investigar coisas, se me faço entender.


– Eu sei. Como sou escritora de histórias de detetives, naturalmente estudei a sua carreira com interesse. Ela sorriu-lhe subitamente e ele sentiu o coração derreter-se. – Bom, ainda bem que assim é, de certa forma, porque percebe então que eu não sou tão idiota como pareço neste momento. Isso fê-la rir. – Não tem aspeto de idiota, pelo menos não mais do que qualquer cavalheiro teria nestas circunstâncias. O ambiente não se adequa propriamente ao seu estilo, mas o senhor é uma presença muito reconfortante. E eu estou-lhe realmente muito grata, embora receie bem que seja um caso perdido. – Não diga isso. Não pode ser um caso perdido, a não ser que tenha de facto cometido o crime, e eu sei que não o fez. – Bem, não o cometi, na verdade. Mas sinto que é como um livro que escrevi, em que inventei um crime tão perfeito que não conseguia imaginar nenhuma maneira de o meu detetive o provar e tive de recorrer à confissão do assassino. – Se necessário, faremos o mesmo. Não saberá por acaso quem é o assassino, suponho? – Não me parece que haja assassino. Acredito realmente que foi o próprio Philip a tomar o veneno. Ele era uma pessoa bastante derrotista, sabe? – Deduzo que a vossa separação lhe custou muito. – Bem, suponho que em parte foi isso. Mas penso que era mais o facto de ele sentir que não era suficientemente apreciado. Tinha tendência para pensar que as pessoas estavam conluiadas para lhe dar cabo das hipóteses. – E era verdade? – Não, não me parece. Mas acho que ele ofendeu um grande número de pessoas. Tinha tendência para exigir coisas como se elas fossem um direito seu, o que irrita as pessoas, sabe? – Sim, estou a ver. Ele dava-se bem com o primo? – Oh, sim, embora, é claro, dissesse sempre que Mr. Urquhart não fazia mais do que o seu dever ao olhar por ele. Mr. Urquhart é bastante abastado, porque tem relações profissionais muito boas, mas o Philip realmente não tinha o direito de reclamar nada para si, já que o dinheiro não era da família nem nada que se pareça. Ele acreditava que os grandes artistas mereciam ter cama, mesa e roupa lavada a expensas dos comuns mortais. Wimsey estava bastante familiarizado com esta variedade do temperamento artístico. Surpreendeuo, no entanto, o tom da resposta, impregnado, achava ele, de azedume e até mesmo de algum desprezo. Fez a pergunta seguinte com alguma hesitação. – Perdoe-me a pergunta, mas... tinha muito afeto por Philip Boyes? – Devo ter tido, não devo... dadas as circunstâncias? – Não necessariamente – disse Wimsey, abruptamente. – Podia sentir pena dele... ou estar enfeitiçada por ele... ou até ter sido fortemente assediada por ele. – Todas essas coisas. Wimsey refletiu por uns momentos. – Eram amigos? – Não. – A palavra saiu-lhe com uma espécie de ferocidade reprimida que o sobressaltou. – O Philip não era o tipo de homem que fizesse amizade com mulheres. Ele queria uma dedicação total.


Eu dei-lhe isso. Dei-lho, sabe? Mas não consegui suportar que fizesse de mim parva. Não consegui suportar que me pusesse à experiência, como um paquete de algum escritório, para ver se eu era suficientemente boa para merecer a sua condescendência. Eu acreditei que ele estava a ser sincero quando disse que não acreditava no casamento. E afinal era um teste, para ver se a minha dedicação era suficientemente abjeta. Bem, não era. Não gostei que o casamento me fosse oferecido como prémio por mau comportamento. – Não a censuro – disse Wimsey. – Não? – Não. Parece-me que o sujeito era um presumido, já para não dizer um malandro. Como aquele homem horroroso que fingiu ser pintor de paisagens e a seguir embaraçou a infeliz jovem com o fardo de uma honraria para a qual ela não tinha nascido9. Não tenho dúvidas de que ele se tornou perfeitamente intolerável em relação àquilo, com os seus carvalhos antigos e a baixela da família e os serviçais a fazerem vénias e tudo o resto. Harriet Vane riu-se mais uma vez. – Sim, é ridículo, mas também humilhante. Bem, é o que é. Achei que o Philip nos tinha tornado ridículos aos dois e mal vi isso... bem, a coisa simplesmente ruiu... catrapum! Fez um gesto terminante. – Bem o vejo – disse Wimsey. – Uma atitude tão vitoriana, também, para um homem com ideias avançadas. Ele só para Deus, ela para Deus nele, etc., etc. Bem, fico satisfeito por Miss Vane encarar a situação dessa maneira. – Fica? Não é propriamente uma grande ajuda na crise em que me encontro. – Não; eu estava a pensar no futuro. O que quero dizer é que, quando tudo isto acabar, quero casarme consigo, se a Harriet achar que poderia aturar-me. Harriet Vane, que estava até àquele momento a sorrir-lhe, franziu a testa e uma expressão indefinível de repulsa perpassou-lhe nos olhos. – Oh, é mais um desses? Já vai em quarenta e sete. – Quarenta e sete quê? – perguntou Wimsey, descoroçoado. – Propostas. Chegam todos os dias pelo correio. Suponho que há uma data de imbecis que querem casar-se com alguém que seja famosa por maus motivos. – Oh! – disse Wimsey. – Ora, ora, isso torna a situação muito embaraçosa. De facto, sabe, eu não preciso de mais notoriedade. Consigo aparecer nos jornais por iniciativa própria. Não me encanta propriamente. Talvez seja melhor eu não voltar a mencionar o assunto. Soou magoado e a jovem olhou-o com uma expressão de remorso. – Desculpe... mas uma pessoa na minha situação fica com alguns melindres. Tem havido tantas coisas horrendas! – Eu sei – disse Lord Peter. – Foi estúpido da minha parte... – Não, eu acho que foi estúpido da minha parte. Mas porquê? – Porquê? Oh, bem... achei que seria uma pessoa bastante atraente com quem me casar. É tudo. Quer dizer, eu desenvolvi uma certa atração por si. Não lhe sei dizer porquê. Não há regras quanto a isso, sabe? – Estou a ver. Bem, é muito simpático da sua parte. – Quem me dera que não desse a impressão de que acha isto bastante engraçado. Sei que tenho cara de parvo, mas não posso fazer nada quanto a isso. De facto, eu gostava de ter alguém com quem


pudesse falar sensatamente, que tornasse a vida interessante. E poderia sugerir-lhe muitos enredos para os seus livros, se é que tal seria um aliciante. – Mas não ia querer uma mulher que escreve livros, pois não? – Ia sim; seria muito divertido. Muito mais interessante do que o tipo comum, que só se interessa por roupas e por pessoas. Embora, é claro, as roupas e as pessoas também não tenham nada de mal, em moderação. Não queria dizer que me oponho à roupa. – E quanto aos velhos carvalhos e à baixela da família? – Oh, isso não ia dar-lhe trabalho nenhum. O meu irmão é quem se encarrega disso tudo. Eu coleciono primeiras edições e incunábulos, o que é um pouco maçador, mas Miss Vane não teria de se incomodar com isso, a não ser que quisesse. – Não era o que eu queria dizer. O que é que o seu pai pensaria? – Oh, a minha mãe é a única que conta, e gosta muito de si, do que viu. – Então, mandou-me inspecionar? – Não... que diabo, hoje parece que só digo asneiras. Fiquei absolutamente fascinado naquele primeiro dia em tribunal e fui a toda à pressa ter com a minha mãe, que é uma verdadeira querida e o tipo de pessoa que realmente compreende as coisas, e disse-lhe: «Ouça cá! Ela é absolutamente a mulher da minha vida e está a passar por uns tormentos simplesmente abomináveis e por favor venha dar-me o seu apoio!» Não faz ideia do horror que foi. – De facto, parece bastante desagradável. Lamento ter sido tão brutal. Mas, já agora, tomou em consideração que eu tive um amante, não tomou? – Oh, sim. Eu também, falando disso. De facto, várias. É o tipo de coisa que poderia acontecer a qualquer pessoa. Eu posso apresentar-lhe vários testemunhos positivos. Dizem-me que sou um amante bastante bom... mas estou em desvantagem neste momento. Não se pode ser muito convincente no outro extremo de uma mesa e com um sujeito a espreitar pela porta. – Eu acredito na sua palavra. Mas «por mais encantador que seja vaguear livremente por um jardim de imagens vívidas, não estamos a desviar a sua atenção de outro assunto de importância quase igual»? Parece provável... – E se é capaz de citar Kai Lung, com certeza vamos dar-nos bem. – Parece bastante provável que eu não sobreviva para fazermos a experiência. – Não seja assim tão desanimadora – disse Wimsey. – Já lhe expliquei cuidadosamente que desta vez serei eu a investigar este assunto. Até parece que não tem confiança em mim. – Já houve casos de pessoas erradamente condenadas. – Exatamente; simplesmente porque eu não estava lá. – Nunca pensei nisso. – Pense agora. Achará esse pensamento muito belo e inspirador. Poderá até ajudá-la a distinguirme dos outros quarenta e seis, se por acaso se esquecer das minhas feições ou assim. Oh, a propósito... Eu não lhe causo repugnância ou coisa do género, pois não? Porque, a ser verdade, tirarei imediatamente o meu nome da lista de espera. – Não – disse Harriet Vane, com bondade e um pouco de tristeza. – Não, não me causa repugnância. – Não lhe recordo lesmas brancas nem lhe provoco pele de galinha pelo corpo todo? – De modo nenhum. – Ainda bem. Teria todo o gosto em fazer quaisquer alterações menores, como a risca da velha


juba ou deixar crescer o bigode ou ver-me livre do monóculo, sabe, se elas se adequassem melhor aos seus gostos. – Não o faça – disse Miss Vane –, por favor não altere nenhuma das suas características. – Fala mesmo a sério? – Wimsey corou um pouco. – Espero que não queira dizer com isso que nada do que eu pudesse fazer me tornaria pelo menos aceitável. Virei visitá-la com trajes diferentes de cada vez, para lhe proporcionar uma boa ideia global do assunto. O Bunter, o meu criado, tem excelente gosto em gravatas e meias e coisas do género. Bem, parece-me que seria melhor eu ir andando. Miss Vane... hum... Miss Vane vai pensar no assunto, não vai, se puder dispensar-lhe um minuto? Não há pressa. Mas não hesite em me dizer se lhe parecer que não poderia suportar a ideia a nenhum preço. Eu não estou a tentar chantageá-la para que se case comigo, sabe? Quer dizer, investigaria este caso só pelo divertimento que me vai proporcionar, aconteça o que acontecer, não sei se está a ver. – É muito bondoso da sua parte... – Não, não, de maneira nenhuma. É o meu passatempo. Não propor casamento, não é isso que quero dizer, mas investigar coisas. Bem, adeusinho e coisa e tal. E eu volto a visitá-la, se me permite. – Darei ordens ao mordomo para lhe abrir a porta – disse a prisioneira, num tom grave. – Vai encontrar-me sempre em casa.

Wimsey desceu a rua esconsa a sentir-se quase estonteado. – Acredito que vou conseguir... ela está magoada, claro... não admira, depois daquele bruto horrendo... mas não se sente repelida... uma pessoa não poderia aguentar sentir-se repulsiva... a pele dela é como mel... ela devia usar vermelho escuro... e granadas antigas... e muitos anéis, daqueles bastante antiquados... eu podia arranjar uma casa, claro... pobre garota, eu daria o meu melhor para a compensar... também tem sentido de humor... é inteligente... uma pessoa nunca se maçaria com ela... acordava-se e haveria um dia inteiro para nele acontecerem coisas agradáveis... e depois vinha-se para casa e ia-se para a cama... isso também seria agradável... e enquanto ela estivesse a escrever, eu podia sair e envolver-me em coisas, para nem um nem outro nos tornarmos maçadores... pergunto-me se o Bunter acertou na escolha deste fato... é um pouco escuro, sempre o achei, mas tem bom corte... Parou diante de uma montra para olhar sub-repticiamente para o seu reflexo. Um anúncio grande e colorido atraiu-lhe a atenção: GRANDE OFERTA ESPECIAL SÓ UM MÊS

– Oh, meu Deus – disse ele em voz baixa, caindo em si. – Um mês, qua tro semanas, trinta e um dias. Não temos muito tempo. E eu não sei por onde começar. 9 Alusão a «The Lord of Burleigh», de Tennyson, em que um homem finge ser pintor para conquistar uma camponesa. (N. da T.)


CAPÍTULO CINCO – Ora bem – disse Wimsey –, porque é que as pessoas matam pessoas? Estava sentado no gabinete de Miss Katharine Climpson. A empresa era aparentemente um escritório de datilografia, e de facto havia três datilógrafas eficientes que faziam de tempos em tempos excelentes trabalhos para autores e cientistas. Na aparência, era um grande e próspero negócio, já que, com frequência, tinham de se rejeitar clientes por o pessoal estar assoberbado de trabalho. Mas nos outros andares do prédio havia outras atividades. Todos os funcionários eram do sexo feminino – a maior parte delas de certa idade, mas algumas ainda jovens e atraentes – e, se o registo confidencial guardado no cofre de aço fosse consultado, ver-se-ia que todas essas senhoras eram da classe cruelmente conhecida como «supérflua». Havia solteironas com pequenos rendimentos fixos ou sem qualquer tipo de rendimento; viúvas sem família; mulheres abandonadas por maridos peripatéticos e a viverem com uma pensão de alimentos reduzida, que, antes de serem contratadas por Miss Climpson, não tinham outros recursos a não ser o bridge e os mexericos das pensões onde viviam. Havia professoras aposentadas e desiludidas; atrizes no desemprego; pessoas corajosas que não tinham tido sucesso com as suas lojas de chapéus ou com os seus salões de chá; e até algumas Jovens com Futuro, para quem as festas e os clubes noturnos se tinham transformado num tédio. Essas senhoras pareciam passar a maior parte do seu tempo a responder a anúncios. Cavalheiros solteiros que desejavam conhecer senhoras prendadas com vista a um possível casamento; sexagenários enxutos que pretendiam uma governanta para casas de campo em locais remotos; cavalheiros engenhosos com esquemas financeiros, à procura de capital; cavalheiros das letras, ansiosos por colaboradores do sexo feminino; cavalheiros plausíveis prestes a contratar atrizes de talento para peças de teatro na província; cavalheiros benevolentes que se dispunham a explicar às pessoas como fazer dinheiro no seu tempo livre – cavalheiros como esses tinham todas as probabilidades de receber candidaturas de membros do pessoal de Miss Climpson. Talvez fosse por coincidência que, com muita frequência, esses mesmos cavalheiros tinham o infortúnio de comparecer pouco depois perante o juiz acusados de fraude, chantagem ou tentativa de proxenetismo, mas é um facto que o escritório de Miss Climpson podia gabar-se de ter uma linha telefónica direta para a Scotland Yard, e que poucas das suas funcionárias eram tão desprotegidas como pareciam. É também um facto que o dinheiro para a renda e a manutenção das instalações provinha da conta bancária de Lord Peter Wimsey, como qualquer investigador zeloso descobriria. Sua senhoria mostrava-se algo reticente sobre este seu empreendimento, embora ocasionalmente, quando se encontrava a sós com o inspetor-chefe Parker ou com outros amigos íntimos, se referisse a ele como «O Meu Gatil». Miss Climpson serviu-lhe uma chávena de chá antes de responder. Nos seus pulsos magros cobertos por punhos de renda usava uma série de pulseiras que tilintavam agressivamente com cada um dos seus movimentos. – Realmente não sei – disse ela, aparentemente considerando o problema do ponto de vista psicológico. – Se é tão perigoso, e tão terrivelmente malvado, uma pessoa tem de se perguntar como


é que alguém tem a audácia de o cometer. E, com muita frequência, ganham tão pouco com isso. – É o que eu quero dizer – disse Wimsey –, o que é que julgam que vão ganhar? É claro que algumas pessoas parecem fazê-lo só para se divertirem, como aquela alemã, como é que ela se chamava, que gostava de ver morrer pessoas. – Que gosto mais estranho – disse Miss Climpson. – Sem açúcar, não é? Sabe, caro Lord Peter, tem sido meu dever melancólico estar presente junto a muitos leitos de morte e, embora algumas dessas mortes, como por exemplo a do meu querido pai, fossem extremamente cristãs e belas de se ver, eu não lhes chamaria propriamente divertidas. As pessoas têm ideias muito diferentes do que é divertido, claro, e eu, por exemplo, nunca tive em grande conta George Robey10, embora Charlie Chaplin me faça sempre rir... seja como for, sabe, há pormenores desagradáveis em torno de qualquer leito de morte que, seria de crer, não poderiam agradar a ninguém, por mais depravada que essa pessoa seja. – Concordo totalmente consigo – disse Wimsey. – Mas deve ser divertido, num certo sentido, sentir que se pode controlar as questões da vida e da morte, não lhe parece? – Isso é uma infração à prerrogativa do Criador – disse Miss Climpson. – Mas bem agradável saber que se é divino, por assim dizer. Muito acima do mundo, lá no alto. Admito que sinto esse fascínio. Mas, para todos os efeitos práticos, essa teoria é o diabo... peço-lhe perdão, Miss Climpson, pelo desrespeito a personagens sagradas... quero dizer que é insatisfatória, porque se adequaria a qualquer pessoa. Se tenho de encontrar um maníaco homicida, mais me vale cortar já os pulsos. – Não diga isso – suplicou Miss Climpson – nem mesmo a brincar. O seu trabalho aqui, tão bom, tão valioso, daria sentido a qualquer vida, apesar das deceções pessoais mais tristes. E eu já tenho visto piadas desse tipo acabarem muito mal, das maneiras mais surpreendentes. Havia um jovem que nós conhecíamos que tinha a triste tendência de falar à toa, há muito tempo, caro Lord Peter, quando o senhor ainda era bebé, mas os jovens já eram desatinados, mesmo nessa época, diga-se agora o que se disser sobre os anos 1880. E um dia ele disse à minha pobre e querida mãe «Mrs. Climpson, se eu não tiver bons resultados hoje, mato-me com um tiro» (ele gostava muito de desporto), e saiu com a arma e, quando estava a passar por cima de uma vedação, o gatilho ficou preso numa sebe e a arma disparou e rebentou-lhe com a cabeça. Eu ainda era muito nova, e aquilo perturbou-me terrivelmente, porque ele era um jovem muito bem-parecido, com umas suíças que todas admirávamos muito, embora hoje em dia fossem motivo de troça, e ficaram todas queimadas com a explosão, e ele com um buraco chocante no lado da cabeça, assim me disseram, porque é claro que eu não tive autorização de o ver. – Pobre sujeito – disse sua senhoria. – Bem, arredemos da mente a ideia de manias homicidas por agora. Por que outros motivos é que as pessoas matam? – Há... paixão – disse Miss Climpson com uma ligeira hesitação inicial na palavra –, a que eu não chamaria amor, quando é um sentimento assim tão desregulado. – Essa é a explicação apresentada pela acusação – disse Wimsey. – Não a aceito. – Com certeza que não. Mas... seria possível que houvesse alguma outra jovem desafortunada que se sentisse ligada ao tal Mr. Boyes e sentisse impulsos de vingança contra ele, não lhe parece? – Sim, ou um homem com ciúmes. Mas o tempo é o busílis da questão. É preciso haver algum pretexto plausível para dar arsénico a um tipo. Não se pode apanhá-lo à soleira da porta e dizer-lhe «Olhe, beba lá disto», pois não?


– Mas há um período de dez minutos em que não sabemos o que aconteceu – disse Miss Climpson, astutamente. – Ele não poderia ter entrado num estabelecimento para tomar uma bebida e ter encontrado aí um inimigo? – Por Deus, é possível. – Wimsey tomou um apontamento e abanou a cabeça com ar de dúvida. – Mas é demasiada coincidência. A não ser que houvesse um encontro previamente marcado. De qualquer modo, vale a pena investigar essa possibilidade. Seja como for, é óbvio que a casa de Mr. Urquhart e o apartamento de Miss Vane não são os únicos locais onde o Boyes pode, concebivelmente, ter comido ou bebido entre as sete e as dez e dez nessa noite. Muito bem: sob o título «Paixão» encontramos: (1) Miss Vane (excluída ex hypothesi); (2) amantes com ciúmes; (3) rival com os ditos ciúmes. Local: pub (ponto de interrogação). Agora passamos para o motivo seguinte, que é o Dinheiro. Um ótimo motivo para assassinar alguém que o tenha, mas fraco motivo no caso de Boyes. Mesmo assim, consideremo-lo. Dinheiro. Consigo pensar em três subtítulos para esse motivo: (1) roubo da pessoa (muito improvável); (2) seguro de vida; (3) herança. – Que mente clara que tem – disse Miss Climpson. – Quando eu morrer, vai encontrar «Eficiência» escrito no meu coração. Não sei quanto dinheiro o Boyes trazia, mas não julgo que fosse muito. O Urquhart e o Vaughan talvez saibam; de qualquer modo, não é muito importante, porque o arsénico não é um veneno que se dê a alguém que se queira roubar. Demora muito tempo a fazer efeito, em termos comparativos, e não deixa a vítima suficientemente indefesa. A não ser que suponhamos que o taxista o drogou e o roubou, não havia ninguém que pudesse lucrar com um crime assim tão tonto. Miss Climpson concordou e barrou com manteiga um segundo pãozinho. – A seguir, seguro de vida. Agora aproximamo-nos da região do possível. O Boyes tinha seguro? Não parece ter passado pela cabeça de ninguém investigar a questão. Provavelmente, não tinha. Os literatos são muito pouco previdentes e são uns descuidados relativamente a ninharias como o pagamento dos prémios. Mas devemos averiguar. Quem poderia ter interesse no seguro? O pai, o primo (possivelmente), outros parentes (se existem), os filhos (se existem) e, suponho, Miss Vane, se ele fez a apólice enquanto ainda estava a viver com ela. Também alguém que possa ter-lhe emprestado dinheiro com a garantia desse seguro. Há bastantes possibilidades nesse caso. Já me sinto melhor, Miss Climpson, mais em forma e desperto. Ou estou a encontrar o fio à meada ou então é do seu chá. Esse bule tem um aspeto bom, robusto. Tem mais chá dentro? – Sim, claro – disse Miss Climpson com entusiasmo. – O meu querido pai costumava dizer que eu tinha muito jeito para tirar o máximo partido de um bule. O segredo está em ir enchendo o bule e nunca deixar que se esvazie completamente. – A herança – prosseguiu Lord Peter. – Ele tinha alguma coisa para deixar? Não muito, não me parece. É melhor eu dar uma saltada ao escritório do editor dele. Ou teria ultimamente recebido alguma herança? O pai ou o primo sabê-lo-iam. O pai é pastor protestante, um «ofício do pior, esse», como diz o rufião ao novo aluno num dos livros de Dean Farrar. Tem um ar pouco abastado. Não me parece que haja muito dinheiro na família. De qualquer modo, nunca se sabe. Alguém poderia ter deixado uma fortuna ao Boyes pelos seus beaux yeux ou por admiração pelos seus livros. Nesse caso, a quem a deixou o Boyes? Questão: ele fez testamento? Mas com certeza a defesa deve ter pensado nestas coisas. Já estou a sentir-me deprimido outra vez. – Coma uma sanduíche – disse Miss Climpson. – Obrigado – disse Wimsey –, ou alguma palha. Não há nada como a palha quando uma pessoa está


a sentir-se desfalecida, como o Rei Branco observou com toda a propriedade11. Bem, isto despacha mais ou menos o motivo do dinheiro. Resta-nos Chantagem. Miss Climpson, cuja ligação profissional com «O Gatil» lhe ensinara alguma coisa sobre chantagem, assentiu com um suspiro. – Quem era este Boyes? – perguntou Wimsey retoricamente. – Eu não sei nada sobre ele. Podia ser um patife da pior estirpe. Talvez soubesse coisas inenarráveis sobre todos os seus amigos. Porque não? Ou talvez estivesse a escrever um livro para desmascarar alguém, de modo que teve de ser posto fora de circulação a qualquer preço. Que diabo, o primo é advogado. Suponhamos que ele tem andado a desviar fundos fiduciários ou coisa do género e que o Boyes andava a ameaçar denunciálo? Ele vivia na casa do Urquhart, tinha todas as oportunidades para descobrir uma coisa dessas. O Urquhart deita um pouco de arsénico na sopa e... ah! Aqui temos um problema. Ele põe arsénico na sopa e come-a. Não bate certo. Receio bem que o testemunho de Hannah Westlock deite esta teoria por terra. Vamos ter de considerar a hipótese do misterioso desconhecido no pub. Pensou durante alguns momentos e em seguida disse: – E há o suicídio, claro, que é para o que me inclino realmente a acreditar. O arsénico é um meio bastante tonto de cometer suicídio, mas já houve casos. Houve o do Duc de Praslin, por exemplo... se é que foi mesmo suicídio. Mas, neste caso, onde está o frasco? – O frasco? – Bem, ele devia tê-lo levado nalgum recipiente. Poderia ser num papel, se o tomou sob a forma de pó, embora fosse pouco prático. Alguém procurou um frasco ou um papel? – Onde se procuraria? – perguntou Miss Climpson. – Esse é que é o problema. Se ele não o tinha, pode estar em qualquer parte na Doughty Street ou nas suas imediações, e vai ser o cabo dos trabalhos procurar um frasco ou um papel que foi deitado fora há seis meses. Detesto suicídios, são tão difíceis de provar. Oh, bem, o desânimo não serve para nada. Ouça cá, Miss Climpson, temos cerca de um mês para preparar este caso. O período de São Miguel termina a 21; estamos a 15. Não é provável que levem o caso a julgamento antes dessa data, e a sessão seguinte começa a 12 de janeiro. Provavelmente será logo no início, a não ser que possamos apresentar razões para um adiamento. Quatro semanas para obtermos novas provas. Pode reservarme os seus melhores esforços e os do seu pessoal? Não sei ainda o que vou querer, mas o mais provável é que queira que se faça alguma coisa. – É claro que sim, Lord Peter. Sabe que é um enorme prazer fazer seja o que for pelo senhor, mesmo que o escritório todo não fosse sua propriedade, que é. Basta que me informe, a qualquer hora do dia ou da noite, e eu darei o meu melhor para o ajudar. Wimsey agradeceu-lhe, fez algumas perguntas sobre o trabalho do escritório e saiu. Fez paragem a um táxi e dirigiu-se imediatamente para a Scotland Yard.

Como usualmente, o inspetor-chefe Parker ficou encantado por ver Lord Peter, mas tinha uma expressão preocupada no seu rosto banal, embora agradável, ao cumprimentar a visita. – O que se passa, Peter? É o caso Vane outra vez? – Sim. Fizeram asneira nisto, meu velho, fizeram mesmo. – Bem, não sei. Pareceu-nos bastante claro. – Charles, meu caro, não confie nos casos claros, no homem que o olha com um olhar límpido e na


pista cristalina. Só o mentiroso mais matreiro pode dar-se ao luxo de ser tão agressivamente transparente. A luz mais forte ofusca, segundo julgo saber. Por amor de Deus, meu velho, faça os possíveis por endireitar a coisa antes da próxima sessão judicial. Se não o fizer, nunca lhe perdoarei. Que diabo, você não quer mandar para a forca a pessoa errada, pois não? Ainda por cima uma mulher. – Fume um cigarro – disse Parker. – Está com um olhar tresloucado. O que é que lhe aconteceu? Lamento se pegámos pelos cornos o touro errado, mas cabe à defesa apontar-nos onde errámos e não posso dizer que tenham dado um espetáculo muito convincente. – Não, lamentavelmente. O Biggy fez os possíveis, mas aquela besta, aquele tolo do Crofts, não lhe deu materiais nenhuns. Malditos sejam os feios olhos dele! Eu sei que o bruto acha que foi ela. Espero que arda no Inferno e o sirvam com pimenta num prato a escaldar! – Que eloquência! – disse Parker, sem se mostrar impressionado. – Qualquer pessoa suspeitaria que anda todo derretido pela moça. – Isso é que é maneira de um amigo falar? – disse Wimsey com azedume. – Quando se atirou de cabeça à minha irmã, talvez eu tenha sido pouco compreensivo... aceito que sim... mas o que não fiz foi espezinhar os seus sentimentos mais delicados e chamar à sua dedicação masculina «andar todo derretido por uma moça». Não sei aonde é que vai buscar essas expressões, como disse a mulher do vigário ao papagaio. «Derretido», ora essa! Nunca ouvi nada mais ordinário. – Meu Deus – exclamou Parker –, não está seriamente a dizer que... – Oh, não! – retorquiu Wimsey, azedamente. – Não se espera que eu fale a sério. Um bobo da corte, é o que eu sou. Sei agora exatamente como se sente Jack Point. Costumava achar que o Yeoman12 era uma chachada sentimental, mas é bem verdadeiro. Quer ver-me dançar aos pinotes? – Lamento – disse Parker, interpretando o tom mais do que as palavras de Wimsey. – Se é esse o caso, lamento profundamente, meu velho. Mas o que posso eu fazer? – Agora sim. Olhe cá, o mais provável é que o Boyes, esse tipo repelente, tenha cometido suicídio. A indescritível defesa não conseguiu encontrar arsénico na sua posse, mas, muito provavelmente, não conseguiria encontrar uma manada de vacas pretas num campo coberto de neve ao meio-dia com um microscópio. Quero que o seu pessoal se encarregue do assunto. – Boyes... a questão do arsénico... – disse Parker, tomando um apontamento num bloco. – Mais alguma coisa? – Sim. Descubra se o Boyes foi a algum pub nas imediações de Doughty Street entre, digamos, as dez menos dez e as dez e dez na noite de 20 de junho, se se encontrou com alguém e o que bebeu. – Será feito. Boyes... a questão do pub... – Parker tomou mais um apontamento. – Sim? – Em terceiro lugar, se algum frasco ou algum papel que pudesse ter contido arsénico foi encontrado nessa zona. – Oh, a sério? E não quererá também que eu procure o bilhete de autocarro que Mrs. Brown deixou cair à porta dos armazéns Selfridge’s na azáfama do Natal passado? Não vale a pena tornar-nos as coisas demasiado fáceis. – É mais provável que seja um frasco do que um papel – prosseguiu Wimsey, ignorando-o –, porque penso que o arsénico deve ter sido tomado sob a forma de líquido, para fazer efeito tão rapidamente. Parker não voltou a protestar, anotando «Boyes – Doughty Street – a questão do frasco» e fazendo uma pausa, na expectativa.


– Sim? – É tudo, por ora. Já agora, se fosse a si revistava o jardim em Mecklenburgh Square. Uma coisa pode ficar muito tempo debaixo daqueles arbustos. – Muito bem. Darei o meu melhor. E se o Peter descobrir alguma coisa que prove realmente que temos seguido a pista errada informa-nos, não é verdade? Não queremos cometer grandes e ignominiosos erros públicos. – Bem... eu acabei de afiançar à defesa que não farei tal coisa. Mas, se encontrar o criminoso, permitirei que o prenda. – Obrigadinho pela consideração. Bem, boa sorte! É estranho que estejamos de lados opostos, não é? – Muito estranho – disse Wimsey. – Lamento, mas a culpa é sua. – Não devia ter-se ausentado de Inglaterra. Já agora... – Sim? – Já pensou que, provavelmente, o que o nosso jovem amigo fez durante aqueles dez minutos foi pôr-se em Theobalds Road ou algures à espera de um táxi? – Oh, cale-se! – disse Wimsey, furioso, e saiu. 10 Ator e estrela do music-hall inglês. (N. da T.) 11 Alusão a Alice do Outro Lado do Espelho, de Lewis Carroll. (N. da T.) 12 Opereta de W. S. Gilbert e Arthur Sullivan. Jack Point é um bobo. (N. da T.)


CAPÍTULO SEIS O dia seguinte amanheceu soalheiro e bonito, e Wimsey sentia uma certa animação ao rolar sem sobressaltos para Tweedling Parva. Mrs. Merdle, o automóvel, assim chamado porque, tal como a célebre senhora do mesmo nome, não gostava de «discussões»13, chispava alegremente nos seus doze cilindros, e havia um toque de geada no ar. Estas coisas provocavam boa disposição. Wimsey chegou ao seu destino por volta das dez horas e indicaram-lhe o caminho para o vicariato, um daqueles edifícios grandes e com cantos e recantos desnecessários que engolem o rendimento do seu ocupante durante a vida deste e deixam aos seus herdeiros uma pesada conta em obras mal ele morre. O reverendo Arthur Boyes estava em casa e ficou contente por ver Lord Peter Wimsey. O clérigo era um homem alto e acabado, com rugas de preocupação profundamente gravadas no rosto e olhos azuis bondosos, um pouco assoberbados com a dececionante dificuldade das coisas em geral. O seu casaco preto era velho e pendia-lhe em dobras de desânimo dos ombros curvados e estreitos. Estendeu a Wimsey uma mão magra e sugeriu-lhe que se sentasse. Lord Peter sentiu alguma dificuldade em explicar ao que vinha. Era evidente que o seu nome não despertava nenhumas associações na mente deste pastor delicado e pouco mundano. Decidiu não mencionar o seu passatempo de investigação criminal, apresentando-se antes, com igual verdade, como amigo da prisioneira. Isso poderia ser doloroso, mas pelo menos seria inteligível. Por conseguinte, começou a falar, com alguma hesitação: – Lamento profundamente vir incomodá-lo, especialmente porque é tão perturbante e tudo isso, mas tem a ver com a morte do seu filho e o julgamento e o resto. Por favor não pense que me quero intrometer, mas estou profundamente interessado, pessoalmente interessado. Sabe, é que conheço Miss Vane... eu... de facto, eu gosto muito dela, sabe, e não consigo deixar de pensar que há um erro algures e... e gostaria de fazer com que ele fosse corrigido se possível. – Oh... oh, sim – disse Mr. Boyes. Limpou cuidadosamente um par de lunetas e empoleirou-as no nariz, onde pousaram tortas. Olhou atentamente para Wimsey e pareceu não desgostar do que viu, porque prosseguiu: – Pobre moça enganada! Garanto-lhe que não acalento nenhuns sentimentos de vingança... quer dizer, ninguém ficaria mais contente do que eu por saber que ela era inocente desta terrível coisa. De facto, Lord Peter, mesmo que ela fosse culpada, causar-me-ia grande dor vê-la sofrer o castigo. Faça-se o que se fizer, não é possível trazer os mortos de novo à vida e seria infinitamente preferível deixar toda a vingança na mão d’Aquele a quem ela cabe. Sem dúvida, nada pode ser mais terrível do que tirar a vida a uma pessoa inocente. Sentir-me-ia atormentado até ao fim da vida se pensasse que havia a mínima probabilidade de tal acontecer. E confesso que, quando vi Miss Vane no tribunal, tive sérias dúvidas sobre se a polícia teria procedido acertadamente ao acusála. – Obrigado – disse Wimsey –, é muita bondade sua dizê-lo. Torna a tarefa muito mais fácil. Peço desculpa, disse «quando a vi no tribunal». Não a conheceu antes? – Não. Sabia, claro, que o meu desafortunado filho tinha formado uma ligação ilícita com uma


jovem, mas não me sentia capaz de travar conhecimento com ela... e, na verdade, creio que ela, com um sentimento muito apropriado, se recusou a permitir que o Philip a apresentasse a qualquer um dos seus parentes. Lord Peter, é um homem mais jovem do que eu, pertence à geração do meu filho e compreenderá talvez que, embora ele não fosse mau rapaz, embora não fosse depravado, nunca tal pensarei, de certo modo não havia aquela confiança total entre nós que deveria existir entre pai e filho. Sem dúvida a culpa era minha em grande medida. Se a mãe dele fosse viva... – Meu caro senhor... – murmurou Wimsey – compreendo perfeitamente. Acontece com frequência. De facto, está sempre a acontecer. A geração do pós-guerra e isso tudo. Muitas pessoas descarrilam um bocado, não que tenham mau fundo. Só não concordam com a geração mais velha. Geralmente passa com o tempo. Não se pode culpar ninguém, na realidade. Devaneios da juventude e... hum... esse tipo de coisa. – Eu não podia dar a minha aprovação – disse Mr. Boyes com uma expressão triste – a ideias tão antagónicas da religião e da moralidade. Talvez tenha falado demasiado abertamente. Se tivesse sido mais compreensivo... – Não é possível – disse Wimsey. – Têm de ser as próprias pessoas a compreender. E quando escrevem livros e coisas do género e se dão com esse tipo de gente, tendem a exprimir-se bastante ruidosamente, se me faço entender. – Talvez, talvez. Mas eu recrimino-me. Seja como for, isto não o ajuda em nada. Peço desculpa. Se houve um erro e o júri não ficou evidentemente convencido, devemos fazer todos os possíveis por o emendar. Em que posso ajudá-lo? – Bem, em primeiro lugar – disse Wimsey –, e receio bem que esta pergunta seja desagradável, o seu filho alguma vez lhe disse ou escreveu alguma coisa que pudesse levá-lo a pensar que ele... estava cansado da vida ou qualquer coisa do género? Peço desculpa. – Não, não, de maneira nenhuma. Evidentemente, a polícia e os advogados de defesa fizeram-me a mesma pergunta. Posso dizer com toda a verdade que tal ideia nunca me tinha ocorrido. Não havia nada que o sugerisse. – Nem sequer quando ele se separou de Miss Vane? – Nem nessa altura. De facto, depreendi que ele estava mais furioso do que abatido. Devo dizer que me surpreendeu saber que, depois de tudo o que se tinha passado entre eles, ela não estava disposta a casar-se com ele. Continuo sem conseguir compreender. A recusa dela deve ter sido um grande choque para ele. Escreveu-me tão animado antes. Talvez se recorde da carta? – Remexeu numa gaveta desarrumada. – Tenho-a aqui, se quiser lê-la. – Se não se importa, pode ler-me só o excerto relevante? – sugeriu Wimsey. – Sim, oh, com certeza. Deixe cá ver. Sim. «Agradará à sua moralidade ficar a saber, papá, que decidi regularizar a situação, como dizem as pessoas.» Ele tinha uma maneira descuidada de falar e de escrever por vezes, pobre rapaz, que não faz justiça ao seu bom coração. Ora, ora. Sim. «A minha jovem é uma bela alminha e eu resolvi-me a fazer as coisas como deve ser. Ela realmente merece-o e espero que quando tudo ficar respeitável o papá lhe conceda o seu reconhecimento paternal também a ela. Não lhe peço que oficie a cerimónia... como sabe, o registo civil é mais ao meu gosto, e embora ela tenha sido educada com fumos de santidade, como eu, não me parece que vá insistir num casamento pela Igreja. Eu digo-lhe quando vai ser, para que possa vir dar-nos a sua bênção (como pai, se não como pastor da Igreja), se assim o entender.» Como vê, Lord Peter, ele tencionava tomar a atitude correta e a mim comoveu-me que ele desejasse a minha presença.


– Com certeza – disse Lord Peter, e pensou: «Se aquele rapazola fosse vivo, como eu gostaria de lhe aplicar um pontapé no traseiro.» – Bem, a seguir veio outra carta, a anunciar que o casamento já não se realizaria. Aqui está. «Querido papá, desculpe, mas receio bem que os seus parabéns tenham de ser devolvidos com os meus agradecimentos. O casamento foi cancelado e a noiva fugiu. Não há necessidade de contar a história toda. A Harriet conseguiu fazer de mim e dela parvos, por isso não há mais nada a acrescentar.» Mais tarde, soube que ele não andava a sentir-se bem, mas o senhor já sabe tudo isso. – Ele sugeriu alguma razão para essas suas doenças? – Oh, não... deduzimos que era uma recaída dos seus velhos problemas gástricos. Ele nunca foi um rapaz muito robusto. Escreveu cheio de esperança de Harlech a dizer que se sentia muito melhor e a mencionar o seu plano de fazer uma viagem a Barbados. – Ah sim? – Sim. Eu achei que lhe faria muito bem e lhe distrairia a mente de outras coisas. Ele só falou daquilo como um vago projeto, não como se já estivesse alguma coisa decidida. – Disse mais alguma coisa sobre Miss Vane? – Nunca mais voltou a mencionar-me o nome dela até se encontrar no seu leito de morte. – Sim... e o que achou do que ele disse nessa altura? – Não soube o que pensar. Não fazíamos ideia de que tinha havido envenenamento na altura, naturalmente, e eu julguei que se referia à zanga entre eles que tinha provocado a separação. – Estou a ver. Ora bem, Mr. Boyes. Supondo que não foi um ato de autodestruição... – Não me parece realmente que possa ter sido. – Ora bem, há mais alguém que pudesse ter interesse na morte dele? – Quem poderia haver? – Não havia... nenhuma outra mulher, por exemplo? – Nunca ouvi falar de mais nenhuma mulher. E penso que teria ouvido. Ele não era de secretismos em relação a essas coisas, Lord Peter. Era notavelmente aberto e direto. «Sim», comentou Wimsey interiormente, «gostava de se gabar, imagino. Só para causar dor. Maldito seja.» Em voz alta, limitou-se a dizer: – Existem outras possibilidades. Por exemplo, ele fez testamento? – Fez. Não que tivesse muito para deixar, pobre rapaz. Os seus livros eram muito inteligentes, ele tinha um belo intelecto, Lord Peter, mas não lhe rendiam grandes quantias. Eu ajudava-o com uma pequena mesada e ele governava-se com isso e com o que ganhava com os artigos nos periódicos. – Mas deixou os direitos de autor a alguém, deduzo? – Sim. Era seu desejo deixar-mos a mim, mas eu senti-me obrigado a dizer-lhe que não poderia aceitar a herança. Sabe, é que eu não aprovava as opiniões dele e não me pareceria correto lucrar com elas. Não, deixou os direitos ao amigo Mr. Vaughan. – Oh! Posso perguntar-lhe quando foi feito o testamento? – A data é do período da estada dele no País de Gales. Julgo que antes tinha feito um testamento em que deixava tudo a Miss Vane. – Não me diga! – disse Wimsey. – Suponho que ela estava a par. – Passou mentalmente em revista uma série de possibilidades contraditórias e a seguir acrescentou: – Mas não seria uma quantia considerável, de qualquer modo? – Oh, não. O máximo que o meu filho ganhava por ano com os seus livros era umas cinquenta


libras. Embora me digam – acrescentou o velho senhor, com um sorriso triste – que, depois disto, o novo livro dele se venderá melhor. – É muito provável – disse Wimsey. – Desde que se apareça nos jornais, o público leitor, encantado, não se importa com o motivo. Mesmo assim... bem, é o que é. Suponho que ele não tinha uma fortuna pessoal para deixar. – Nada de nada. Nunca tivemos dinheiro na nossa família, Lord Peter, nem na da minha mulher. Somos os proverbiais ratos de sacristia. – Sorriu ligeiramente ao dizer aquela piadinha clerical. – A não ser, suponho, Cremorna Garden. – Como? Desculpe? – A tia da minha mulher, a famosa Cremorna Garden, dos anos 1860. – Meu Deus, sim... a atriz? – Sim. Mas ela, claro, nunca, nunca era mencionada. Não convinha propriamente saber como ela fez fortuna. Não de maneira pior do que muitos outros, atrevo-me a dizer. Mas naqueles tempos as pessoas chocavam-se com facilidade. Não temos notícias delas há mais de cinquenta anos. Julgo que está bastante gagá. – Por Deus! Não fazia ideia de que ela ainda era viva! – Sim, julgo que é, embora deva ter bem mais do que noventa anos. O que é certo é que o Philip nunca recebeu nenhum dinheiro dela. – Bem, isso exclui a hipótese do dinheiro. O seu filho tinha um seguro de vida, por acaso? – Não que eu soubesse. Não encontrámos nenhuma apólice entre os papéis dele e, tanto quanto sei, ninguém se apresentou a reclamar o seguro. – Não deixou dívidas? – Só pequenas dívidas, contas por pagar e coisas do género. Talvez umas cinquenta libras ao todo. – Muito obrigado – disse Wimsey, pondo-se de pé –; a nossa conversa desbravou muito terreno. – Receio que não o tenha feito avançar muito mais. – Indica-me onde procurar, de qualquer modo – disse Wimsey –, e tudo isso poupa tempo, sabe? Foi muito gentil da sua parte dar-se ao trabalho de me receber. – De modo nenhum. Pergunte-me tudo o que quiser saber. Ninguém ficaria mais contente do que eu por ver aquela desafortunada jovem ilibada. Wimsey agradeceu-lhe de novo e despediu-se. Já estava a mais de um quilómetro e meio da casa quando lhe ocorreu um pensamento de remorsos. Inverteu a marcha de Mrs. Merdle, voltou à igreja, encafuou um punhado de notas com alguma dificuldade na ranhura de uma caixa com a etiqueta «Despesas da Igreja» e retomou o seu caminho de regresso à cidade.

Enquanto manobrava o automóvel pela zona financeira da cidade, ocorreu-lhe um pensamento e, em vez de se dirigir para Piccadilly, onde vivia, virou para uma rua a sul da Strand, na qual se situavam os escritórios de Grimsby & Cole, que publicavam as obras de Philip Boyes. Após uma breve espera, foi conduzido ao gabinete de Mr. Cole. Mr. Cole era uma pessoa robusta e bem-disposta e ficou muito interessado ao saber que o famoso Lord Peter Wimsey se estava a ocupar da questão do igualmente famoso Mr. Boyes. Wimsey fingiu que, como colecionador de primeiras edições, fazia gosto em obter exemplares de todas as obras de


Philip Boyes. Mr. Cole lamentou profundamente não poder ser-lhe útil e, sob a influência de um charuto caro, tornou-se bastante expansivo. – Sem querer parecer insensível, meu caro Lord Peter – disse, recostando-se na cadeira e transformando o seu triplo queixo em seis ou sete queixos –, cá entre nós, Mr. Boyes não podia ter feito melhor pela sua carreira do que ser assassinado daquela maneira. Esgotaram-se todos os exemplares uma semana depois de a exumação ser notícia, duas edições substanciais do seu último livro voaram das prateleiras antes de começar o julgamento, ao preço original de sete xelins e seis pence, e as bibliotecas clamaram de tal maneira pelos primeiros livros que tivemos de reimprimir tudo. Infelizmente, não tínhamos guardado a composição tipográfica dos textos e os tipógrafos tiveram de trabalhar noite e dia, mas conseguimos. Estamos a apressar a publicação dos volumes a três xelins e seis pence na encadernação e a edição a um xelim já está assegurada. Parece-me que não é possível arranjar uma primeira edição em Londres de maneira nenhuma. Não temos nada aqui a não ser os exemplares de arquivo, mas vamos lançar uma edição especial comemorativa, com retratos, em papel artesanal, limitada e numerada, a um guinéu. Não é a mesma coisa, claro, mas... Wimsey pediu-lhe que anotasse o seu nome na lista de espera para a coleção a um guinéu, acrescentando: – É muito triste que o autor não possa beneficiar com a coisa, não lhe parece? – Profundamente perturbante – concordou Mr. Cole, comprimindo as suas bochechas gordas com duas dobras longitudinais desde as narinas até à boca. – E mais triste ainda que não possa haver mais livros vindos da pena dele. Um jovem muito talentoso, Lord Peter. Sentiremos sempre um orgulho melancólico, Mr. Grimsby e eu, por sabermos que reconhecemos a qualidade dele antes de haver qualquer probabilidade de recompensa financeira. Um succes d’ estime, foi tudo, até esta ocorrência terrivelmente lastimável. Mas, quando a obra é boa, não é nosso hábito vacilar quanto a lucros monetários. – Ah, bem – disse Wimsey –, por vezes compensa espalhar o pão sobre as águas14. Bastante religioso, não é? Sabe ao que me refiro, aquela parte sobre «abundantemente praticando boas ações sereis abundantemente recompensado». O vigésimo quinto domingo depois da Santíssima Trindade15. – Exatamente – disse Mr. Cole, com uma certa falta de entusiasmo, possivelmente porque o seu conhecimento do Livro de Oração Comum não era exaustivo ou porque detetou sinais de troça no tom de Wimsey. – Bem, agradou-me sobremaneira a nossa conversa. Lamento não poder ser-lhe útil quanto às primeiras edições. Wimsey pediu-lhe que não se preocupasse e, depois de se despedir cordialmente, desceu as escadas a toda a pressa. A sua visita seguinte foi ao escritório de Mr. Challoner, o agente de Harriet Vane. Challoner era um homenzinho brusco, moreno e com um ar militante, com o cabelo despenteado e óculos muito graduados. – Sucesso? – perguntou, depois de Wimsey se apresentar e de mencionar o seu interesse por Miss Vane. – Sim, claro que está a ter sucesso. É bastante repugnante, realmente, mas não se pode evitar. Temos de dar o nosso melhor pela cliente, sejam quais forem as circunstâncias. Os livros de Miss Vane sempre se venderam razoavelmente bem, cerca de três ou quatro mil no nosso país, mas é claro que este assunto estimulou enormemente as coisas. O último livro dela já esgotou três novas edições e do mais recente já se venderam sete mil antes de ser publicado.


– Financeiramente, é positivo, heim? – Oh, sim... mas, francamente, não sei se estas vendas artificiais são uma grande coisa para a reputação de um autor a longo prazo. Sobem como um foguete, descem como uma cana, sabe? Quando Miss Vane for libertada... – Fico contente que diga «quando». – Não me permito contemplar qualquer outra possibilidade. Mas quando isso acontecer, o mais certo é que o interesse do público se desvaneça muito rapidamente. É claro que eu ando a assegurar os contratos mais vantajosos que me é possível neste momento, que contemplem os três ou quatro próximos livros, mas só posso realmente controlar os adiantamentos. A receita final dependerá das vendas e é aí que eu prevejo uma queda. No entanto, estou a ter bons resultados com os direitos de publicação em folhetim, que são importantes do ponto de vista dos rendimentos imediatos. – No geral, como homem de negócios, não está totalmente satisfeito por isto ter acontecido? – A longo prazo, não. Pessoalmente, não preciso de lhe dizer que estou extremamente afetado e que sinto que, positivamente, houve algum engano. – É o que eu penso também – disse Wimsey. – Do que sei de vossa senhoria, posso afirmar que o seu interesse e a sua colaboração são o melhor golpe de sorte que Miss Vane poderia ter tido. – Oh, obrigado... muito obrigado. Ouça... este livro sobre arsénico... não podia deixar que eu lhe deitasse uma olhadela, suponho? – Com certeza que sim, se lhe for útil. – Tocou uma sineta. – Miss Warburton, traga-me as provas do Morte na Panela. A Trufoot está a adiantar a publicação o mais depressa possível. O livro ainda estava inacabado quando ocorreu a detenção. Com uma energia e uma coragem raras, Miss Vane deulhe os toques finais e reviu ela própria as provas. É claro que tudo teve de passar pelas mãos das autoridades prisionais. No entanto, nós fazíamos questão de não ocultar nada. O que é certo é que ela sabe tudo sobre o arsénico, pobre moça. Estas provas estão completas, Miss Warburton? Aqui tem. Mais alguma coisa? – Só uma. O que pensa da Grimsby & Cole? – Nunca colaboro com eles – disse Mr. Challoner. – Não está a pensar em fazer alguma coisa com eles, pois não, Lord Peter? – Bem, não sei se estou... a sério. – Se o fizer, leia cuidadosamente o seu contrato. Não lhe digo que no-lo traga... – Se eu alguma vez publicar na Grimsby & Cole – disse Lord Peter –, prometo fazê-lo através de si. 13 Personagem de A Pequena Dorrit, de Charles Dickens. (N. da T.) 14 Ecl 11,1: Espalha o teu pão sobre a superfície das águas; passado muito tempo, achá-lo-ás de novo. (N. da T.) 15 Alusão ao Livro de Oração Comum e ao calendário litúrgico da Igreja Anglicana. (N. da T.)


CAPÍTULO SETE Lord Peter Wimsey entrou quase a correr na Prisão de Holloway na manhã seguinte. Harriet Vane saudou-o com uma espécie de sorriso triste e irónico. – Então, voltou a aparecer? – Por Deus, sim! Com certeza esperava que eu viesse? Julguei que tinha deixado essa impressão. Ouça... pensei num bom enredo para uma história de detetives. – A sério? – Do melhor. Sabe, do tipo que as pessoas apresentam e dizem: «Já pensei muitas vezes em fazê-la eu, se arranjasse tempo para me sentar e escrevê-la.» Suponho que o único requisito para produzir obras-primas é uma pessoa sentar-se. Mas espere só um momento, tenho de despachar um assunto primeiro. – Fez menção de consultar um bloco de apontamentos. – Ah, sim. Sabe por acaso se Philip Boyes fez testamento? – Penso que sim, quando vivíamos juntos. – A favor de quem? – Oh, a meu favor. Não que ele tivesse muito para deixar, pobre homem. Foi principalmente porque ele queria ter um testamenteiro literário. – É efetivamente a sua testamenteira? – Por Deus! Nunca pensei nisso. Parti do princípio de que ele o teria alterado quando nos separámos. Acho que deve tê-lo feito, senão eu teria ouvido falar do assunto quando ele morreu, não lhe parece? Olhou para Wimsey com candura e ele sentiu-se um pouco incomodado. – Não sabia que ele o tinha alterado, então? Antes de ele morrer, quero dizer? – Nunca mais pensei nisso, na verdade. Se tivesse pensado, é claro que teria deduzido que sim. Porquê? – Por nada – disse Wimsey. – Mas fico satisfeito por a questão do testamento não ter sido abordada na coisa que sabemos. – Está a falar do julgamento? Não precisa de ser tão delicado quando se refere a ele. Quer dizer que, se eu julgasse que ainda era sua herdeira, poderia tê-lo assassinado por dinheiro. Mas eram uns patacos, sabe? Eu ganhava quatro vezes mais do que ele. – Oh, sim. Era só um enredo tonto que eu tinha na cabeça. Mas é bastante tonto, agora que penso nele. – Conte-me. – Bem, está a ver... – Wimsey engasgou-se um pouco e a seguir saiu-se com a sua ideia num tom exageradamente ligeiro. – Bem... é sobre uma moça (um homem também servia, mas digamos que é uma moça) que escreve romances, romances policiais, de facto. E ela tem um... um amigo que também escreve. Nem um nem o outro escrevem best-sellers, está a ver, são romancistas comuns. – Sim? É o tipo de coisa que poderia acontecer.


– E o amigo faz testamento, deixando o seu dinheiro, receitas da venda dos livros e coisas do género, à moça. – Estou a ver. – E a moça, que entretanto já se fartou dele, sabe... pensa num grande furo que transformará os dois em autores de sucesso. – Oh, sim? – Sim. Ela despacha-o pelo mesmo método que usou no seu último policial. – Um golpe ousado – disse Miss Vane, com um ar sério de aprovação. – Sim. E, claro, os livros dele tornam-se imediatamente êxitos de venda. E ela colhe os proveitos. – Isso é realmente engenhoso. Um motivo completamente novo para um assassínio... é do que eu ando à procura há anos. Mas não lhe parece que seria um pouco perigoso? Ela poderia até tornar-se suspeita do assassínio. – Nesse caso, os livros dela também se tornariam êxitos de venda. – Como isso é verdade! Mas é possível que ela não vivesse o tempo suficiente para desfrutar dos lucros. – Isso, evidentemente – disse Wimsey –, é o senão desta hipótese. – Porque, a não ser que suspeitassem dela e a prendessem e levassem a julgamento, o furo só resultaria em parte. – Aí tem – disse Wimsey. – Mas, como autora experiente de policiais, não consegue pensar numa maneira de contornar essa dificuldade? – Acho que sim. Ela podia ter um álibi engenhoso, por exemplo. Ou, se fosse muito malvada, podia conseguir lançar as culpas para outra pessoa. Ou levar as pessoas a suporem que o seu amigo se tinha suicidado. – Demasiado vago – disse Wimsey. – Como é que ela faria isso? – Não sei dizer, assim de repente. Mas vou refletir no assunto e dir-lhe-ei mais tarde. Ou... tive uma ideia! – Sim? – Ela é uma pessoa com uma ideia fixa... não, não, não falo da ideia de homicídio. Isso é pouco interessante e não é realmente justo para com os leitores. Mas há alguém que ela quer beneficiar, alguém, digamos um pai, uma mãe, uma irmã, um amante ou uma causa, que precisa muito de dinheiro. Ela faz um testamento a favor dessa pessoa ou causa e deixa-se enforcar pelo crime, sabendo que o objeto do seu afeto receberá o dinheiro. O que lhe parece? – Ótimo! – berrou Wimsey, encantado. – Mas... espere lá. O dinheiro não seria entregue, pois não? Não é permitido beneficiar de um crime. – Oh, que diabo! É verdade. Seria só o dinheiro dela, então. Ela podia doá-lo. Sim... olhe! Se ela o fizesse imediatamente a seguir ao assassínio, uma doação de todos os seus bens, isso incluiria tudo o que ela herdasse do amigo. Assim, iria tudo para o objeto do seu afeto, e não acredito que a lei pudesse impedi-lo! Ela encarou-o com um olhar cheio de animação. – Ouça cá – disse Wimsey –, não é de meias-medidas. É demasiado esperta. Mas é um bom enredo, não lhe parece? – É fenomenal! E se o escrevêssemos? – Por Deus, vamos a isso!


– Só que, sabe, receio bem que não tenhamos oportunidade de o fazer. – Não deve dizer isso. É claro que vamos escrevê-lo. Com um raio, para que é que eu estou aqui afinal? Mesmo que eu pudesse aceitar a ideia de a perder, não poderia perder a oportunidade de escrever um êxito de vendas! – Mas o que fez até ao momento foi encontrar um motivo muito convincente para eu ter cometido o assassínio. Não me parece que isso vá ajudar-nos por aí além. – O que eu fiz – disse Wimsey – foi provar que esse não foi o motivo, de qualquer maneira. – Porquê? – A Harriet não mo teria dito se fosse esse o caso. Teria desviado a conversa discretamente. E além disso... – Sim? – Bem, eu estive com Mr. Cole, da Grimsby & Cole, e sei quem vai receber a maior parte dos lucros de Philip Boyes. E não me parece que ele seja o seu objeto de afeto. – Não? – disse Miss Vane. – E porque não? Não sabe que eu estou completamente embeiçada pelo duplo queixo dele? – Se são queixos que admira – disse Wimsey –, tentarei desenvolver mais do que um, embora seja uma tarefa bastante árdua. Seja como for, continue a sorrir... fica-lhe bem.

«É tudo muito bonito», pensou Lord Peter quando os portões da prisão se fecharam nas suas costas. «Esta conversa fiada anima a paciente, mas não nos faz avançar. E aquele tipo, o Urquhart? Parecia boa pessoa, no tribunal, mas nunca se sabe. Acho que é melhor eu dar uma saltada a casa dele e conversarmos.» Apresentou-se em Woburn Square, mas ficou dececionado. Mr. Urquhart tinha ido visitar uma parente doente. Não foi Hannah Westlock quem veio à porta, mas uma mulher idosa e robusta, que Wimsey deduziu ser a cozinheira. Gostaria de a interrogar, mas parecia-lhe que Mr. Urquhart não o receberia propriamente bem se descobrisse que os seus serviçais tinham andado a ser sondados nas suas costas. Por conseguinte, limitou-se a perguntar por quanto tempo seria provável que Mr. Urquhart estivesse ausente. – Não sei dizer-lhe ao certo. Julgo saber que depende das melhoras da senhora doente. Se ela recuperar, ele regressa imediatamente, porque sei que tem muitos afazeres neste momento. Se ela falecer, ele vai ficar ocupado com a questão da herança. – Estou a ver – disse Wimsey. – É um incómodo, porque eu queria falar com ele com bastante urgência. Não poderia dar-me a morada, por acaso? – Bem, eu não sei ao certo se Mr. Urquhart quereria que eu o fizesse. Se é uma questão de negócios, podiam dar-lhe essa informação no escritório dele em Bedford Row. – Muito obrigado – disse Wimsey, apontando o número. – Eu vou lá. Possivelmente, poderão fazer lá o que eu pretendo sem ter de o incomodar. – Sim, senhor. Quem devo dizer que esteve cá? Wimsey entregou-lhe o seu cartão de visita, escrevendo no topo «Relativo a julgamento de Vane», e acrescentou: – Mas há a possibilidade de ele regressar em breve? – Oh, sim, senhor. Da última vez só se ausentou por uns dois dias, o que foi uma providência


misericordiosa, com o pobre Mr. Boyes a morrer daquela maneira terrível. – Sim, efetivamente – disse Wimsey, encantado por ver o assunto apresentar-se na conversa espontaneamente. – Deve ter sido um choque perturbante para todos. – Bem – disse a cozinheira –, eu nem gosto de pensar no assunto, nem mesmo agora. Um cavalheiro a morrer cá em casa assim, e ainda por cima envenenado, quando fui eu a fazer o jantar... faz uma pessoa pensar ainda mais no caso. – A culpa não foi do jantar, de qualquer maneira – disse Wimsey, simpaticamente. – Oh, não, senhor... ficou mais do que provado. Não que alguma vez pudesse acontecer algum acidente na minha cozinha... isso é que eu gostava de ver! Mas as pessoas falam por dá cá aquela palha. De qualquer maneira, não houve nada que não fosse também comido pelo patrão e pela Hannah e por mim, e nem preciso de lhe dizer como fiquei bem-agradecida por isso. – Suponho que sim, com certeza. – Wimsey estava a pensar na formulação de mais perguntas quando o toque insistente de uma campainha na zona de serviço os interrompeu. – É o talhante – disse a cozinheira. – Vai-me desculpar, senhor. A criada de fora está de cama com gripe e eu vejo-me sozinha hoje de manhã. Eu digo a Mr. Urquhart que o senhor veio cá. Fechou a porta e Wimsey dirigiu-se para Bedford Row, onde foi recebido por um funcionário idoso que não levantou objeções a fornecer-lhe o endereço onde se encontrava Mr. Urquhart. – Aqui está, vossa senhoria. Ao cuidado de Mrs. Wrayburn, Appleford, Windle, Westmorland. Mas julgo que ele não estará ausente por muito tempo. Entretanto, podemos ser-vos úteis nalguma coisa? – Não, obrigado. Eu preferia vê-lo pessoalmente, sabe? De facto, é sobre a triste morte do primo dele, Mr. Philip Boyes. – Ah sim, vossa senhoria? Um caso chocante, esse. Mr. Urquhart ficou extremamente perturbado, com aquilo a acontecer na sua própria casa. Um belo jovem, Mr. Boyes. Ele e Mr. Urquhart eram grandes amigos e aquilo afetou-o profundamente. Assistiu ao julgamento, vossa senhoria? – Assisti. O que lhe pareceu o veredicto? O funcionário comprimiu os lábios. – Atrevo-me a dizer que fiquei surpreendido. Parecia-me um caso muito claro. Mas os júris não são de fiar, especialmente nos dias que correm, com mulheres e tudo. Nós vemos bastante o sexo mais fraco nesta profissão – disse o funcionário, com um sorriso matreiro – e pouquíssimas são notáveis pelas suas capacidades legais. – Isso é bem verdade – disse Wimsey. – Se não fossem elas, no entanto, haveria muito menos litigações, por isso é bom para o negócio. – Ah, ah! Bem visto, vossa senhoria. Bem, temos de aceitar as coisas como elas são, mas na minha opinião... eu sou um homem antiquado... as senhoras eram mais adoráveis quando se limitavam a adornar e a inspirar e não tomavam parte ativa nos assuntos. Tínhamos aqui uma jovem escriturária, não digo que não fosse competente, mas apoderou-se dela um capricho e lá se foi ela embora para se casar, deixando-me pendurado, logo quando Mr. Urquhart está ausente. Ora bem, no caso de um homem jovem o casamento fá-lo assentar e dedicar-se mais ao trabalho, mas com as mulheres passase o contrário. É certo que ela estava no direito de se casar, mas causou-nos um inconveniente, num escritório de advogados não se pode arranjar com facilidade um colaborador temporário. Algum do trabalho é confidencial e, de qualquer modo, um ambiente estável é essencial. Wimsey manifestou a sua compreensão para com o agravo do escriturário-chefe e desejou-lhe afavelmente um bom dia. Existe uma cabine telefónica em Bedford Row e ele precipitou-se para


dentro dela e telefonou imediatamente a Miss Climpson. – Fala Lord Peter Wimsey... oh, olá, Miss Climpson! Como vai tudo? Tudo o melhor possível? Ótimo! Sim, ora ouça. Há uma vaga para uma escriturária confidencial no escritório de Mr. Norman Urquhart, o advogado, em Bedford Row. Tem alguém disponível? Oh, ótimo! Sim, mande-a lá. Quero especialmente ter alguém lá. Oh, não, não é nenhuma investigação em particular, só para recolher informações sobre o caso Vane. Sim, escolha a que tenha o ar mais sério, sem demasiado pó de arroz, e confirme que usa saias com os dez centímetros abaixo dos joelhos da praxe. O escriturário-chefe é quem está à frente daquilo e a última secretária despediu-se para se casar, por isso ele está contra os atrativos femininos. Certíssimo! Chame-a e eu dou-lhe as instruções necessárias. Bem-haja, que a sua sombra nunca se agigante!


CAPÍTULO OITO – Bunter! – Vossa senhoria? Wimsey tamborilou os dedos numa carta que tinha acabado de receber. – Sente-se no seu melhor e mais verdadeiramente fascinante? Uma íris mais viva, não obstante o tempo de inverno, brilha no polido Bunter?16 Tem aquela sensação de conquista? O toque de Dom Juan, por assim dizer? Bunter, equilibrando o tabuleiro do pequeno-almoço nos dedos, tossiu reprovadoramente. – Você tem uma bela figura, escorreita e impressionante, se me permite dizê-lo – prosseguiu Wimsey –, um olhar audaz e sedutor quando está de folga, muita lábia, Bunter... e estou convencido de que tem modos sedutores. O que mais havia de querer uma cozinheira ou uma criada de fora? – Tenho sempre todo o prazer – respondeu Bunter – em dar o meu melhor ao serviço de vossa senhoria. – Tenho consciência disso – admitiu sua senhoria. – Uma e outra vez o tenho dito a mim mesmo: «Wimsey, isto não pode durar. Um destes dias, este homem de valor vai libertar-se do jugo da servidão e instalar-se num pub ou coisa do género», mas não acontece nada. Todas as manhãs, o meu café é-me trazido, o meu banho é preparado, a navalha de barbear posta à mão, as minhas gravatas e as minhas meias são organizadas e o meu bacon com ovos é-me trazido num prato condigno. Seja como for, desta vez peço uma devoção mais perigosa, perigosa para ambos, meu Bunter, porque se você se deixasse levar, um mártir indefeso do matrimónio, quem me traria então o café, quem me prepararia o banho, quem me poria à mão a navalha e realizaria todos aqueles outros rituais? E no entanto... – Quem é a pessoa em questão, vossa senhoria? – Há duas, Bunter, duas meninas viviam num bosque, Binnorie, ó Binnorie!17 A criada de fora, já a viu. Chama-se Hannah Westlock. Uma mulher dos seus trinta anos, julgo eu, e nada desengraçada. A outra, a cozinheira... não posso sussurrar as ternas sílabas do seu nome, porque não o sei, mas deve chamar-se Gertrude, Cecily, Magdalen, Margaret, Rosalys ou um outro nome igualmente doce e melodioso... é uma bela mulher, Bunter, talvez a atirar para o maduro, mas não perde nada com isso. – Com certeza que não, vossa senhoria. Se me permite dizê-lo, a mulher de idade madura e figura avantajada frequentemente é mais vulnerável a atenções delicadas do que a jovem beleza estonteada e irrefletida. – É bem verdade. Suponhamos, Bunter, que você era o portador de uma missiva cortês para um tal Mr. Norman Urquhart de Woburn Square. Poderia, no curto espaço de tempo ao seu dispor, insinuarse, qual víbora, por assim dizer, no seio desse lar? – Se assim o desejar, vossa senhoria, esforçar-me-ei por me insinuar a contento de vossa senhoria. – Nobre sujeito. Em caso de processo por quebra de compromisso ou de quaisquer consequências desse género, as custas, evidentemente, ficarão a cargo da gerência.


– Os meus agradecimentos, vossa senhoria. Quando é que vossa senhoria deseja que eu comece? – Mal eu tenha escrito uma mensagem para Mr. Urquhart. Eu toco a sineta. – Muito bem, vossa senhoria. Wimsey sentou-se à escrivaninha. Ao fim de um momento, olhou para cima, um pouco malhumorado. – Bunter, tenho a sensação de uma presença a pairar sobre mim. Não me agrada. Não é habitual e enerva-me. Imploro-lhe que não paire. A proposta desagrada-lhe ou quer que lhe compre um chapéu novo? O que está a perturbar-lhe a mente? – Peço desculpa a vossa senhoria. Tinha-me ocorrido a ideia de perguntar a vossa senhoria, com todo o respeito... – Oh, meu Deus, Bunter, não esteja com paninhos quentes. Não suporto isso. Espete o punhal de uma vez e acabe com a criatura!18 O que se passa? – Gostaria de perguntar a vossa senhoria se vossa senhoria estava a pensar fazer alguma alteração no vosso lar. Wimsey pousou a caneta e fitou o homem. – Alterações, Bunter? Quando acabei de exprimir tão eloquentemente a minha predileção absoluta pela adorada rotina de café, banho, navalha, meias, ovos e bacon, e pelos velhos rostos familiares? Não está a avisar-me de que se vai despedir, pois não? – Não, efetivamente não, vossa senhoria. Teria muita pena de deixar o serviço de vossa senhoria. Mas achei que era possível que se vossa senhoria estivesse prestes a contrair novos laços... – Eu sabia que era alguma coisa relacionada com adereços! Esteja à vontade, Bunter, se acha que é necessário. Tinha algum padrão em mente para os tais laços? – Vossa senhoria não me compreendeu bem. Refiro-me a laços domésticos, vossa senhoria. Por vezes, quando um cavalheiro reorganiza o seu lar numa base matrimonial, a senhora pode preferir dar a sua opinião no que diz respeito à seleção do criado pessoal do cavalheiro, e nesse caso... – Bunter! – disse Wimsey, consideravelmente sobressaltado. – Posso perguntar-lhe onde foi buscar essas ideias? – Atrevi-me a fazer uma inferência, vossa senhoria. – É o que dá treinar as pessoas para serem detetives. Será que tenho andado a acalentar um investigador no seio do meu lar? Posso perguntar-lhe se já chegou ao ponto de dar nome à tal senhora? – Sim, vossa senhoria. Houve um momento de silêncio. – Bem? – disse Wimsey, num tom bastante mais ameno. – E então, Bunter? – Uma senhora muito agradável, se me permite dizê-lo, vossa senhoria. – Parece-lhe que sim? As circunstâncias são pouco usuais, claro. – Sim, vossa senhoria. Atrever-me-ia talvez a chamar-lhes românticas. – Pode atrever-se a chamar-lhes uma maldição, Bunter. – Sim, vossa senhoria – disse Bunter, num tom de compaixão. – Não vai abandonar o navio, Bunter? – De modo nenhum, vossa senhoria. – Então não me venha assustar outra vez. Os meus nervos já não são o que eram. Aqui tem a mensagem. Leve-a lá e dê o seu melhor.


– Muito bem, vossa senhoria. – Oh, e Bunter... – Vossa senhoria? – Parece que estou a ser óbvio. Não tenho qualquer desejo de ser nada disso. Se me vir a ser óbvio, chama-me a atenção? – Certamente, vossa senhoria. Bunter retirou-se com discrição e Wimsey dirigiu-se ansiosamente ao espelho. – Não consigo ver nada – disse para consigo. – Nem lírio na face humedecida com angústia e com o orvalho da febre19. Mas suponho que não vale a pena tentar enganar o Bunter. Não importa. Os negócios estão em primeiro lugar. Já abordei um, dois, três, quatro ângulos. E a seguir? E o tal Vaughan?

Quando Wimsey tinha investigações a fazer no mundo boémio, era seu costume procurar a ajuda de Miss Marjorie Phelps. Ela fazia figuras de porcelana para ganhar a vida e, por conseguinte, usualmente encontrava-se no seu estúdio ou no estúdio de outra pessoa. Uma chamada telefónica às dez da manhã provavelmente surpreendê-la-ia a fazer ovos mexidos no fogão de gás da sua casa. Era verdade que, na altura do caso do Clube Bellona, tinha havido situações entre ela e Lord Peter que tornavam algo embaraçoso e pouco caritativo envolvê-la no assunto de Harriet Vane, mas, com tão pouco tempo para selecionar os seus instrumentos, Wimsey não podia dar-se ao luxo de ter escrúpulos de cavalheiro. Fez a chamada e ficou aliviado ao ouvir um «Estou!». – Olá, Marjorie. É o Peter Wimsey. Que tal vai isso? – Oh, bem, obrigada. Muito me apraz ouvir de novo a tua voz melodiosa. O que posso fazer por Sua Senhoria o Grande Investigador? – Conheces um tal Vaughan, que está envolvido no caso do assassínio de Philip Boyes? – Oh, Peter! Estás a investigar isso? Que maravilha! De que lado estás? – Do da defesa. – Hurra! – A que vem esse júbilo todo? – Bem, é muito mais excitante e difícil, não é? – Receio bem que sim. Conheces Miss Vane, já agora? – Sim e não. Via-a com o grupo do Boyes e do Vaughan. – Gostas dela? – Mais ou menos. – Gostavas dele? Do Boyes, quero dizer? – Nunca me fez palpitar o coração. – Eu só perguntei se gostavas dele. – Não era pessoa de quem se gostasse. Ou se ficava apanhada por ele ou nada. Ele não era um compincha animado e bem-disposto, sabes? – Oh! E o Vaughan? – Era um pendura. – Oh? – Era o cão de guarda dele. Nada pode interferir com a expansão do meu amigo genial. Esse tipo


de pessoa. – Oh! – Não estejas sempre a repetir «Oh!». Queres conhecer o tal Vaughan? – Se não for muito incómodo. – Bem, aparece hoje à noite de táxi e vamos dar umas voltas. De certeza que o encontramos nalgum sítio. E também o gangue rival, se quiseres, os apoiantes da Harriet Vane. – Aquelas moças que prestaram depoimento? – Sim. Vais gostar da Eiluned Price, acho eu. Ela despreza tudo o que use calças, mas é uma boa amiga numa aflição. – Eu vou, Marjorie. Jantas comigo? – Peter, adorava, mas acho que não. Tenho imensas coisas a fazer. – Certíssimo! Apareço por volta das nove, então. Assim, às nove da noite, Wimsey viu-se num táxi com Marjorie Phelps, a dirigirem-se para uma ronda dos estúdios. – Fiz uma série de telefonemas – disse Marjorie – e acho que vamos encontrá-lo na casa dos Kropotky. Eles são pró-Boyes, bolcheviques e dados à música, e as bebidas deles não prestam, mas o chá russo que fazem pode tomar-se. O táxi espera? – Sim, dá a ideia de que talvez queiramos bater em retirada. – Bem, é agradável ser rico. É aqui ao fundo do pátio, à direita, por cima do estábulo dos Petrovitch. É melhor deixares-me ir à frente. Avançaram aos tropeções por umas escadas estreitas e atravancadas, ao cimo das quais um belo ruído confuso de um piano, de instrumentos de cordas e do tilintar de utensílios de cozinha anunciava que estava em decurso alguma espécie de entretenimento. Marjorie bateu à porta com força e, sem esperar por resposta, abriu-a para trás. Wimsey, entrando logo a seguir a ela, foi atingido no rosto, como se por uma mão aberta, por uma onda espessa e sufocante de calor, som, fumo e cheiro a fritos. Era uma sala muito pequena, fracamente iluminada por uma só lâmpada elétrica, oculta num quebra-luz de vidro pintado, e estava apinhada de pessoas, cujas pernas de meias de seda, braços nus e rostos pálidos se entreviam como pirilampos na escuridão. Círculos ondulantes de fumo de tabaco deslizavam lentamente de um lado para o outro no meio da sala. A um canto, um fogão a carvão, com chamas vermelhas e tóxicas, competia com um fogão a gás aceso no máximo noutro canto para elevar a temperatura do ar a níveis tórridos. No fogão encontrava-se uma enorme chaleira a ferver; em cima de uma mesa de apoio havia um enorme samovar a ferver também; entrevia-se uma pessoa junto ao fogão a gás a virar salsichas numa fritadeira com um garfo, enquanto um seu assistente se encarregava de algo no forno, que Wimsey, cujo olfato era seletivo, identificou entre os outros aromas naquele ambiente complexo, e identificou, corretamente, como sendo arenques fumados. Ao piano, que se encontrava mesmo ao lado da porta, um jovem com fartos cabelos ruivos acompanhava algo ao estilo checoslovaco tocado ao violino por uma pessoa extremamente desengonçada de sexo indeterminado envergando um camisolão de jacquard. Ninguém olhou para eles quando entraram. Marjorie abriu caminho por cima das pernas estendidas no chão e, selecionando uma jovem magra vestida de vermelho, berrou-lhe ao ouvido. A jovem acenou com a cabeça e fez sinal a Wimsey. Ele abriu também caminho e foi apresentado à jovem magra com a simples fórmula: – Este é o Peter. Esta é a Nina Kropotky.


– Muito prazer – bradou Madame Kropotky por entre o clamor. – Sente-se ao meu lado. O Vanya arranja-lhe alguma coisa para beber. É lindo, não é? Este é o Stanislas... é um génio... a nova obra dele sobre a estação de metro de Piccadilly é fantástica, n’est-ce pas? Andou cinco dias continuamente nas escadas rolantes para absorver os valores tonais. – Colossal! – berrou Wimsey. – Então... acha? Ah! Sabe apreciar! Compreende que é realmente para uma grande orquestra. No piano não é nada. Precisa dos metais, dos efeitos, dos tímpanos, b’rrrrrr! Assim! Mas apreende-se a forma, os contornos. Ah! Acabou! Soberbo! Magnífico! A tremenda cacofonia parou. O pianista enxugou o rosto e olhou à sua volta com um ar cansado. O violinista pousou o seu instrumento e pôs-se de pé, revelando, pelas pernas, ser do sexo feminino. A sala explodiu em conversas. Madame Kropotky saltou por cima dos seus convidados sentados e deu dois beijos nas faces ao transpirado Stanislas. A frigideira foi tirada do lume com a gordura a chispar para todos os lados, ouviu-se um grito a chamar «Vanya!» e daí a pouco um rosto cadavérico foi empurrado na direção de Wimsey e uma voz grave e gutural rosnou-lhe: – O que bebe? – enquanto, ao mesmo tempo, apareceu uma travessa com arenques fumados a pairar perigosamente sobre o seu ombro. – Obrigado – disse Wimsey. – Acabei de jantar... de jantar – berrou desesperado –, estou cheio, repleto! Marjorie veio em seu socorro com uma voz mais estridente e uma recusa mais terminante. – Tira-me daqui essas coisas horrorosas, Vanya. Põem-me enjoada. Dá-nos um chá, um chá, um chá! – Chá! – repetiu o homem cadavérico. – Eles querem chá! O que acham do poema tonal do Stanislas? Forte, moderno, heim? A alma da rebelião na multidão... o embate, a revolta no coração da maquinaria. Dá algo em que pensar à burguesia, se dá! – Balelas! – disse uma voz junto ao ouvido de Wimsey, quando o homem cadavérico se virou. – Não é nada. É música burguesa. Música de programa. Bonita! Havia de ouvir o «Êxtase sobre a Letra Z» de Vrilovitch. Isso é que é pura vibração sem qualquer padrão antiquado. O Stanislas... ele achase o máximo, mas a coisa é mais velha do que a proverbial sé... pressente-se a resolução por trás de todas as notas dissonantes. É mera harmonia camuflada. Não tem nada que se lhe diga. Mas ele engana-os a todos, porque tem cabelo ruivo e boa estrutura óssea. Quem assim falava é que certamente não cometia erros dessa natureza, porque tinha uma cabeça tão calva e redonda como uma bola de bilhar. Wimsey respondeu, apaziguador: – Bem, o que é que se pode fazer com os desgraçados dos instrumentos antiquados das nossas orquestras? Uma escala diatónica! Treze miseráveis semitons burgueses! Para exprimir a infinita complexidade das emoções modernas é necessária uma escala de trinta e duas notas por oitava. – Mas porquê agarrarmo-nos à oitava? – disse o homem gordo. – Até se conseguir largar a oitava e as suas associações sentimentais, anda-se agrilhoado pela convenção. – É mesmo esse o espírito! – disse Wimsey. – Eu dispensaria todas as notas definidas. Afinal, o gato não precisa delas para as suas melodias à meia-noite, potentes e expressivas como são. A fome de amor do cavalo não toma em consideração a oitava nem os intervalos quando solta o seu grito de paixão. É só o Homem, manietado por uma convenção que o paralisa... oh, olá, Marjorie, desculpa... o que foi? – Vem falar com o Ryland Vaughan – disse Marjorie. – Eu disse-lhe que és um enorme admirador


dos livros do Philip Boyes. Leste-os? – Alguns. Mas acho que estou a sentir-me um pouco estonteado. – Vais sentir-te pior daqui a cerca de uma hora. Por isso, é melhor vires agora. – Ela conduziu-o a um lugar retirado perto do fogão a gás, onde um homem extremamente alto e magro estava sentado todo enroscado em cima de uma almofada no chão, a comer caviar de um frasco com um garfo de picles. Cumprimentou Wimsey com uma espécie de entusiasmo lúgubre. – Que raio de sítio – disse –, que raio de situação. Este fogão é demasiado quente. Tome uma bebida. Que diabo é que uma pessoa há de fazer? Eu venho cá porque o Philip costumava vir cá. É o hábito, sabe? Detesto isto, mas não há mais para onde ir. – Conhecia-o muito bem, claro – disse Wimsey, sentando-se em cima de um cesto de papéis e pensando que gostaria de estar de fato de banho. – Eu era o único verdadeiro amigo que ele tinha – disse Ryland Vaughan num tom pesaroso. – Aos outros todos só lhes interessava explorar o intelecto dele. Macacos de imitação! Papagaios, toda essa cambada! – Eu li os livros dele e achei-os muito interessantes – disse Wimsey com alguma sinceridade. – Mas parecia-me uma alma infeliz. – Ninguém o compreendia – disse Vaughan. – Consideravam-no difícil. Quem não seria difícil com tanto contra que lutar? Sugavam-lhe o sangue e os malditos dos editores dele levavam-lhe todos os tostões a que conseguiam deitar a mão. E depois aquela cabra daquela mulher envenenou-o. Meu Deus, que vida! – Sim, mas o que é que a levou a fazê-lo... se é que foi ela? – Oh, foi ela com certeza. Foi por mero despeito e ciúme, foi só por isso. Só porque ela própria não conseguia escrever nada a não ser balelas. A Harriet Vane tinha o bichinho que todas estas malditas mulheres têm, julgam que são capazes de fazer certas coisas. Odeiam os homens e odeiam as suas obras. Seria de pensar que lhe bastaria ajudar um génio como o Phil e olhar por ele, não seria? Ora, que diabo, ele costumava pedir-lhe conselho sobre as suas obras... conselho, a ela! Santo Deus! – E ele aceitava-o? – Se o aceitava? Ela recusava-se a dar-lho. Dizia-lhe que nunca dava opiniões sobre o trabalho de outros autores. Outros autores! A impudência daquilo! É claro que ela estava fora do seu elemento no nosso meio, mas porque é que ela não conseguia compreender a diferença entre o intelecto dela e o dele? É claro que foi um caso perdido desde o início, o Philip envolver-se com aquele tipo de mulher. Os génios devem ser servidos, não questionados. Eu avisei-o na altura, mas ele estava pelo beicinho. E, depois, querer casar-se com ela...! – Porque é que ele se quis casar com ela? – perguntou Wimsey. – Por resquícios da educação religiosa que teve, suponho. Era realmente lastimável. Além disso, eu acho que aquele tipo, o Urquhart, lhe fez muito mal. Advogado de família cheio de lábia... conhece-o? – Não. – Ele ganhou ascendente sobre o Phil, a mando da família, imagino. Eu vi a influência dele a insinuar-se no Phil muito antes de começarem os verdadeiros problemas. Talvez seja bom que ele tenha morrido. Seria horrível vê-lo tornar-se convencional e assentar. – Quando é que o tal primo começou a ganhar ascendente sobre ele, então?


– Oh... há cerca de dois anos... um pouco mais, talvez. Convidava-o para jantar e coisas do género. Mal o vi, soube logo que ele estava decidido a dar cabo do Philip, de corpo e alma. O que ele queria... isto é, o que o Phil queria... era liberdade e espaço de manobra, mas com aquela mulher e o primo e o pai na retaguarda... oh, bem! Não vale a pena lamentá-lo agora. Deixou a obra, que é a melhor parte dele. Deixou-a a meu cargo, pelo menos. A Harriet Vane não lhe deitou a mão, afinal. – Tenho a certeza de que está muito bem entregue nas suas mãos – disse Wimsey. – Mas pensar no que poderia ter sido – disse Vaughan, virando os seus olhos injetados com tristeza para Lord Peter – basta para dar vontade de cortar os pulsos, não lhe parece? Wimsey exprimiu a sua concordância. – A propósito – disse –, você esteve com ele durante todo aquele dia, até ele ir para casa do primo. Não acha que ele tivesse algo na sua posse, como... veneno ou coisa do género? Eu não quero parecer insensível... mas ele estava infeliz... seria horroroso pensar que ele... – Não – disse Vaughan –, não. Isso posso jurar que ele nunca faria. Ter-me-ia dito; confiava em mim naqueles últimos dias. Eu partilhava todos os pensamentos dele. Ele sentia-se profundamente magoado por aquela maldita mulher, mas não teria tomado a própria vida sem me dizer ou se despedir de mim. E, além disso, não teria escolhido essa via. Porque é que havia de o fazer? Eu podia ter-lhe dado... Calou-se e deitou um olhar a Wimsey, mas, não vendo nada no seu rosto para além de uma atenção cordial, prosseguiu: – Lembro-me de falar com ele sobre drogas. Hioscina, veronal, esse tipo de coisas. Ele disse: «Se alguma vez eu me quiser despedir desta vida, Ryland, tu mostras-me como o fazer.» E eu tê-lo-ia feito, se ele realmente o quisesse. Mas arsénico! O Philip, que amava tanto a beleza... julga que ele teria escolhido arsénico? O recurso do envenenador suburbano? É absolutamente impossível. – Não há dúvida de que não é uma coisa agradável de se tomar – disse Wimsey. – Olhe lá! – disse Vaughan, num tom rouco e importante (tinha estado a emborcar uma sucessão de brandies a acompanhar o caviar, e começava a perder a atitude de reserva). – Olhe lá! Olhe para isto! – Tirou um pequeno frasco do bolso do peito. – Está à espera até eu acabar de rever os livros do Phil. É reconfortante tê-lo aqui e poder olhar para ele, sabe? Tranquilizante. Sair pelos portões de marfim... é dos clássicos... eu tenho uma educação clássica. Esta gente era capaz de se rir de mim, mas não tem de lhes contar que eu o disse... é engraçado, como certas coisas se colam a uma pessoa... «tende-bantque manus ripoe ulterioris amore, ulteriores amore, ulteriores amore»... como é aquela parte sobre as almas a acumularem-se como folhas em Vallombrosa... não, isso é Milton... amorioris ultore... ultoriore... que raio... pobre Phil! Neste ponto Mr. Vaughan desatou a chorar e deu uma palmadinha no pequeno frasco. Wimsey, que tinha a cabeça e os ouvidos a latejarem como se estivesse sentado numa casa de máquinas, levantou-se discretamente e afastou-se. Alguém tinha começado a cantar uma canção húngara e o fogão emanava um calor infernal. Fez sinais de aflição a Marjorie, que estava sentada a um canto com um grupo de homens. Um deles parecia ler poemas de sua autoria com a boca muito perto da orelha de Marjorie e outro fazia um esboço nas costas de um envelope, com o acompanhamento dos gritinhos de divertimentos dos restantes. O ruído que faziam desconcertou a cantora, que parou a meio de um compasso e berrou, furiosa: – Ah! Que barulho! Estas interrupções são intoleráveis! Eu perco-me! Parem! Vou recomeçar do princípio.


Marjorie pôs-se de pé de um salto, desculpando-se. – Sou uma besta... não estou a manter este teu circo na ordem, Nina. Estamos a ser um verdadeiro incómodo. Desculpa, Marya, estou de mau humor. É melhor pegar no Peter e pôr-me a andar. Vem cantar-me noutro dia, querida, quando eu me sentir melhor e houver mais espaço para os meus sentimentos se expandirem. Boa noite, Nina... divertimo-nos imenso... e, Boris, esse poema é do melhor que já fizeste, só que não consegui ouvi-lo em condições. Peter, diz-lhes como eu estou de mau humor esta noite e leva-me para casa. – É verdade – disse Wimsey –, está nervosa, sabem... tem mau efeito nas boas maneiras dela e coisas do género. – As boas maneiras – interveio de repente um cavalheiro barbudo em voz muito alta – são para os burgueses. – Tem toda a razão – disse Wimsey. – É de péssimo tom e provoca repressões naquilo que sabem. Anda daí, Marjorie, ou ainda ficamos todos muito bem-educados. – Eu recomeço – disse a cantora – do princípio. – Que alívio! – exclamou Wimsey nas escadas. – Sim, eu sei. Acho que sou uma perfeita mártir por aturar aquilo. Seja como for, viste o Vaughan. Um belo espécime do tipo meio marado, não achas? – Sim, mas não me parece que tenha assassinado Philip Boyes, não concordas? Eu tive de o ver para ter a certeza. Aonde vamos a seguir? – Vamos experimentar o Joey Trimbles. É o quartel--general do espetáculo da oposição. Joey Trimbles ocupava um estúdio por cima de uns estábulos. Ali encontraram o mesmo tipo de grupo, o mesmo fumo, mais arenques fumados, ainda mais bebidas e ainda mais calor e conversas. Para além disso, havia um clarão de luz elétrica, um gramofone, cinco cães e um cheiro forte a tinta de óleo. Esperava-se a chegada de Sylvia Marriott. Wimsey viu-se envolvido num debate sobre amor livre, D. H. Lawrence, a lascívia do pudor e o significado imoral das saias compridas. A tempo, contudo, foi salvo pela chegada de uma mulher de meia-idade de aspeto masculino com um sorriso sinistro e um baralho de cartas, que se pôs a deitar as cartas a toda a gente. Os presentes agruparamse à volta dela e, ao mesmo tempo, entrou uma rapariga a anunciar que Sylvia tinha torcido o tornozelo e não podia vir. Toda a gente disse calorosamente «Oh, que horror, pobrezinha!» e esqueceu imediatamente o assunto. – Vamos dar à sola – disse Marjorie. – Não te incomodes a despedir-te. Ninguém repara em ti. É uma sorte aquilo da Sylvia, porque assim ela vai estar em casa e não vai poder escapar-nos. Por vezes, apetecia-me que eles torcessem todos o tornozelo. E no entanto, sabes, quase todas aquelas pessoas andam a fazer trabalhos muito bons. Até aquela gente no estúdio dos Kropotky. Eu dantes apreciava este tipo de coisa. – Estamos a ficar velhos, tu e eu – disse Wimsey. – Desculpa lá, foi indelicado. Mas, sabes, eu vou a caminho dos quarenta, Marjorie. – Não pareces. Mas estás com um ar um bocado arrasado hoje, Peter, querido. O que se passa? – Nada, a não ser a meia-idade. – Ainda assentas, se não te pões a pau. – Oh, eu já assentei há anos. – Com o Bunter e os livros. Invejo-te por vezes, Peter. Wimsey não disse nada. Marjorie olhou para ele, quase alarmada, e enfiou o braço no dele.


– Peter... por favor, mostra-te contente. Quero dizer, tu sempre foste o tipo de pessoa de bem com a vida, a quem nada conseguia afetar. Não mudes, não? Era a segunda vez que pediam a Wimsey para não mudar: na primeira ocasião, o pedido tinha-o encantado; nesta, aterrorizou-o. Enquanto o táxi avançava pelo Embankment à chuva, sentiu pela primeira vez a vulnerabilidade surda e furiosa que é o primeiro sinal de aviso do triunfo da mutabilidade. Como Athulf envenenado na peça Fool’s Tragedy, poderia ter gritado: «Oh, estou a mudar, a mudar, a mudar assustadoramente.» Quer a sua atual iniciativa fracassasse ou resultasse, as coisas nunca mais voltariam a ser iguais. Não que ficasse com o coração destroçado por um amor desastroso – sobrevivera às agonias exuberantes dos ardores da juventude, e nessa mesma libertação da ilusão reconhecia a perda de algo. A partir de agora, todas as horas de despreocupação não seriam uma prerrogativa, mas um verdadeiro feito – mais um machado ou cantil ou espingarda salvos, ao estilo de Robinson Crusoe, de um navio a afundar-se. Pela primeira vez, também, duvidava da sua capacidade de levar a cabo o que tinha empreendido. Já deixara os seus sentimentos pessoais envolverem-se noutras investigações antes desta, mas eles nunca lhe tinham anuviado a mente. Andava a tatear, a agarrar frouxamente aqui e ali hipóteses fugidias e ridículas. Fazia perguntas ao acaso, duvidando do seu objetivo, e a falta de tempo, que no passado o teria estimulado, agora assustava-o e confundia-o. – Desculpa, Marjorie – disse, despertando do seu devaneio. – Receio bem que esteja a ser uma companhia maçadora. É a falta de oxigénio, provavelmente. Importas-te que abra a janela um bocadinho? Assim está melhor. Desde que me deem boa comida e um pouco de ar para respirar, vou saltitar, qual cabrinha, até uma provecta e desonrosa idade. As pessoas vão apontar para mim, a arrastar-me, careca e macilento e enfaixado em espartilhos discretos, para os clubes noturnos dos meus tetranetos, e vão dizer: «Olha, querido! É o malandro do Lord Peter, célebre por nunca ter dito uma palavra razoável que fosse nos últimos noventa e seis anos. Foi o único aristocrata que escapou à guilhotina na revolução de 1960. Temo-lo como animal de estimação para as crianças.» E eu vou acenar com a cabeça e exibir a minha dentadura moderna e dizer: «Ah, ah! Elas não se divertem como nós nos divertíamos nos meus tempos de juventude, as pobres criaturas bem disciplinadas!» – Nesse caso não vai haver clubes noturnos para tu te arrastares para dentro deles, se as pessoas forem tão disciplinadas como isso. – Oh, vai, vai... a Natureza terá a sua desforra. Elas vão esgueirar-se dos Jogos Comunitários Governamentais para jogarem solitário em catacumbas, com um copo de leite magro não esterilizado. É este o sítio? – É. Espero que esteja alguém cá em baixo para nos deixar entrar, se a Sylvia deu cabo da perna. Sim... ouço passos. Oh, és tu, Eiluned; como está a Sylvia? – Está bastante bem, só inchada... o tornozelo, quero dizer. Sobes? – Ela está apresentável? – Sim, perfeitamente respeitável. – Ótimo, porque eu venho acompanhada por Lord Peter Wimsey. – Oh – disse Eiluned. – Como está? Deteta coisas, não é? Veio à procura do cadáver ou coisa do género? – Lord Peter anda a investigar o caso da Harriet Vane. – Ai anda? Ainda bem. Fico contente por alguém estar a fazer alguma coisa. – Era uma jovem baixa e forte, com um nariz abatatado e um brilho nos olhos. – O que acha que aconteceu? Eu digo


que foi ele. Ele era do tipo cheio de pena de si próprio, sabe? Olá, Syl... está aqui a Marjorie, com um sujeito que vai tirar a Harriet da choça... – Apresenta-mo imediatamente! – foi a resposta vinda de dentro. A porta abriu-se, revelando um pequeno estúdio mobilado com extrema simplicidade e ocupado por uma jovem pálida e de óculos sentada num cadeirão e com o pé ligado pousado em cima de um caixote. – Não me posso levantar, porque, nas palavras de Jenny Wren20, as minhas costas estão mal e sinto as pernas esquisitas. Quem é o campeão, Marjorie? Wimsey foi apresentado e Eiluned Price perguntou imediatamente, num tom bastante truculento: – Ele toma café, Marjorie? Ou precisa de uma bebida mais masculina? – Ele é perfeitamente temente a Deus, um homem às direitas e abstémio, e bebe tudo menos chocolate quente e refrigerantes de limão. – Oh! Eu só perguntei porque alguns dos teus acompanhantes masculinos precisam de estímulos e nós não temos disso e o pub está quase a fechar. Ela dirigiu-se para um armário e Sylvia disse: – Não ligue à Eiluned; ela gosta de tratar os homens à bruta. Diga-me, Lord Peter, já encontrou algumas pistas ou coisa do género? – Não sei – disse Wimsey. – Já meti algumas fuinhas nalguns buracos. Espero que saia alguma coisa do outro lado. – Já esteve com o primo... o tal Urquhart? – Tenho encontro marcado com ele para amanhã. Porquê? – A teoria da Sylvia é que foi ele – disse Eiluned. – Isso é interessante. Porquê? – Intuição feminina – respondeu Eiluned, abruptamente. – Não gosta do penteado dele. – Eu só disse que é demasiado janota para se acreditar nele – protestou Sylvia. – E quem mais poderia ter sido? Tenho a certeza de que não foi o Ryland Vaughan; é um bronco, mas ficou genuinamente destroçado com aquilo tudo. Eiluned fungou com desprezo e saiu do apartamento para encher a chaleira numa torneira no patamar. – E, pense a Eiluned o que pensar, não consigo acreditar que o Philip Boyes se suicidou. – Porque não? – perguntou Wimsey. – Ele falava muito – disse Sylvia. – E tinha realmente uma opinião demasiado elevada de si próprio. Não me parece que ele fosse capaz de decidir privar o mundo do privilégio de ler os seus livros. – Mas era – disse Eiluned. – Era capaz de o fazer por despeito, para as pessoas crescidas se sentirem arrependidas. Não, obrigada – disse, quando Wimsey deu um passo para pegar na chaleira –, eu sou bem capaz de carregar com três litros de água. – Derrotado mais uma vez! – disse Wimsey. – A Eiluned desaprova os gestos convencionais de cortesia entre os dois sexos – explicou Marjorie. – Muito bem – disse Wimsey, de bom humor. – Adotarei uma atitude passiva de objeto decorativo. Faz alguma ideia, Miss Marriott, porque é que o tal advogado demasiado janota quereria despachar o primo? – Nem por sombras. Limito-me a seguir a velha teoria de Sherlock Holmes segundo a qual, depois


de se eliminar o impossível, o que restar, por mais improvável que seja, deve ser verdade. – Dupin disse-o antes de Sherlock Holmes. Aceito a conclusão, mas, neste caso, questiono as premissas. Não quero açúcar, obrigado. – Julguei que todos os homens gostavam de café muito doce. – Talvez, mas eu sou pouco usual. Ainda não tinha reparado? – Não tive muito tempo para o observar, mas contarei o café como um ponto a seu favor. – Obrigadíssimo. Ouçam... podem dizer-me qual foi exatamente a reação de Miss Vane ao assassínio? – Bem... – Sylvia pensou por uns momentos. – Quando ele morreu... ela ficou perturbada, claro... – Ficou sobressaltada – disse Miss Price –, mas na minha opinião sentiu-se aliviada por se ver livre dele. E não admira. A besta egoísta! Ele usou-a e deu-lhe cabo do juízo durante um ano e por fim insultou-a. E era daquele tipo de homem que se agarra e não desiste. Ela ficou aliviada, Sylvia, de que serve negá-lo? – Sim, talvez. Talvez tenha sido um alívio saber que ele tinha desaparecido do mapa. Mas ela não sabia nessa altura que ele tinha sido assassinado. – Não. O assassínio estragou um bocado a coisa... se é que foi assassínio, o que eu não creio. O Philip Boyes sempre esteve decidido a ser vítima e foi muito irritante da parte dele consegui-lo por fim. Acredito que foi por isso que ele o fez. – É um facto que as pessoas fazem esse tipo de coisa – disse Wimsey, pensativo. – Mas é difícil de provar. Quero dizer, um júri inclina-se muito mais para acreditar nalguma razão tangível, como dinheiro. Mas não consigo encontrar o motivo do dinheiro neste caso. Eiluned riu-se. – Não, nunca houve muito dinheiro, a não ser o que a Harriet ganhava. O ridículo público não apreciava Philip Boyes. Ele não conseguia perdoar isso à Harriet, sabe? – Mas não dava jeito? – É claro que sim, mas ele tinha esse ressentimento na mesma. Achava que ela devia apoiá-lo no seu trabalho, não ganhar dinheiro para ambos com os seus próprios livrecos. Mas os homens são mesmo assim. – Não tem grande opinião de nós, pois não? – Já conheci demasiados «cravas» – disse Eiluned Price – e demasiados que queriam que lhes desse a mão. De qualquer maneira, as mulheres são tão más como os homens, ou não os aturavam. Graças a Deus, nunca pedi emprestado nem nunca emprestei, a não ser a mulheres, e essas pagam sempre. – As pessoas que trabalham no duro usualmente pagam o que devem, suponho – disse Wimsey –, a não ser os génios... – As mulheres que são geniais não são mimadas – disse Miss Price, sombriamente – e por isso aprendem a não contar com isso. – Estamos a desviar-nos do assunto, não estamos? – disse Marjorie. – Não – respondeu Wimsey. – Está a ser lançada uma certa luz sobre as figuras centrais do problema, aquilo a que os jornalistas gostam de chamar os protagonistas. – Torceu a boca numa expressão sarcástica. – Obtém-se muita iluminação naquela luz forte que se abate sobre um cadafalso. – Não diga isso – implorou Sylvia.


Um telefone tocou algures lá fora e Eiluned saiu do apartamento para atender. – A Eiluned é contra os homens – disse Sylvia –, mas é uma pessoa de muita confiança. Wimsey acenou com a cabeça. – Mas está enganada em relação ao Phil... ela não o suportava, naturalmente, e inclina-se para pensar que... – É para si, Lord Peter – disse Eiluned, entrando no apartamento. – Fuja já... descobriu-se tudo. A Scotland Yard anda atrás de si. Wimsey apressou-se a sair para o patamar. – É você, Peter? Tenho andado a vasculhar toda a cidade de Londres a seu pedido. Encontrámos o pub. – Não acredito! – É um facto. E estamos no encalço de um pacote de pó branco. – Santo Deus! – Pode dar cá uma saltada amanhã logo de manhã? Talvez já o tenhamos. – Irei célere. Ainda havemos de lhe ganhar, Senhor Inspetor-Chefe Parker dum Raio. – Espero bem que sim – disse Parker, afavelmente, e desligou. Wimsey voltou a grandes passadas para o apartamento. – A aposta de Miss Price está com boas hipóteses – anunciou. – É suicídio, quase com certeza. Vou regressar como um cão e dar voltas pela cidade21. – Lamento não poder ir consigo – disse Sylvia Marriott –, mas fico contente se estiver enganada. – E eu fico contente por ter acertado – disse Eiluned Price com firmeza. – E você está certa e eu estou certo e tudo está certo22 – disse Wimsey. Marjorie Phelps olhou para ele e não disse nada. Sentiu-se subitamente como se algo dentro de si tivesse sido torcido. 16 Citação de «Locksley Hall», de Alfred Tennyson. (N. da T.) 17 Alusão a um conto popular sobre duas irmãs cortejadas pelo mesmo homem. (N. da T.) 18 De «Childe Roland to the Dark Tower Came», de Robert Browning. (N. da T.) 19 Alusão a uma balada de John Keats, «La Belle Dame sans Merci.» (N. da T.) 20 Personagem de O Amigo Comum!, de Charles Dickens. (N. da T.) 21 Referência ao Salmo 59. (N. da T.) 22 De Mikado, opereta de W. S. Gilbert e Arthur Sullivan. (N. da T.)


CAPÍTULO NOVE Só Mr. Bunter sabia por que meios insinuantes tinha conseguido transformar a entrega de uma mensagem na aceitação de um convite para tomar chá. Às quatro e meia do dia que terminou numa nota tão positiva para Lord Peter, estava sentado na cozinha da casa de Mr. Urquhart, a fazer torradas. Tinha sido treinado na arte de fazer torradas com uma destreza extraordinária e, se era um pouco perdulário na questão da manteiga, isso não fazia mal a ninguém a não ser à bolsa de Mr. Urquhart. Era natural que a conversa se virasse para o assunto do homicídio. Nada acompanha melhor uma lareira acesa e umas torradas a pingar manteiga do que um dia de chuva lá fora e uma boa dose de horrores reconfortantes dentro de casa. Quanto mais forte a chuva e mais horrendos os pormenores, tanto mais saboroso parecerá o lanche. Naquela ocasião, todos os ingredientes de um agradável convívio estavam presentes em todo o seu esplendor. – Branco com’ a cal, era como estava quando entrou – disse Mrs. Pettican, a cozinheira. – Eu vi-o quando me chamaram para trazer as botijas de água quente. Quiseram três, uma para os pés e outra para as costas e a grande, de borracha, para o estômago dele. Pálido e a tremer, era como ele estava, e enjoado que eu sei lá, não dava para acreditar. E gemia que metia dó. – A mim parecia-me esverdeado, cozinheira – disse Hannah Westlock –, ou podia dizer-se que estava de um amarelo esverdeado. Eu pensei que ele estava a ficar com icterícia... mais como aqueles ataques de fígado que ele teve na primavera. – Nessa altura também estava com má cor – concordou Mrs. Pettican –, mas nada que se comparasse a como ficou daquela última vez. E as dores e as cãibras nas pernas eram de cortar o coração. Isso chamou bastante a atenção da enfermeira Williams... era uma jovem bem simpática, não se dava ares como algumas que eu cá sei. «Mrs. Pettican», disse-me ela, o que acho melhores maneiras do que chamarem-me cozinheira como faz a maioria, «Mrs. Pettican», disse ela, «nunca vi tais cãibras a não ser num outro caso que era tal e qual este», disse ela, «e tome nota do que eu lhe digo, Mrs. Pettican, aquelas cãibras não são sem motivo.» Ah! Mal eu compreendia o que ela queria dizer na altura. – É uma característica usual destes casos de envenenamento por arsénico, assim mo disse sua senhoria – respondeu Bunter. – Um sintoma muito incómodo. Ele já alguma vez tinha tido uma coisa do género? – Não o que se poderiam chamar cãibras – disse Hannah –, embora eu me lembre que, quando esteve doente na primavera, ele se queixou de sentir as mãos e os pés dormentes. Uma espécie de formigueiro, acho que foi o que ele disse. Era uma preocupação para ele, porque estava a acabar à pressa lá um dos artigos dele e, com isso e com os olhos a darem-lhe problemas, escrever era um tormento para ele, pobrezinho. – Pelo que disse o advogado da acusação quando discutiu o assunto com Sir James Lubbock – disse Mr. Bunter –, eu deduzi que esse formigueiro e os problemas de visão e outros eram um sinal de que ele tinha ingerido arsénico regularmente, se me é permitido exprimir-me deste modo. – Ela devia ser uma mulher horrivelmente malvada – disse Mrs. Pettican – ... coma mais uma


torradinha, vá lá, Mr. Bunter... a torturar o pobre homem aquele tempo todo. Uma pancada na cabeça ou usar a faca de trinchar quando uma pessoa é provocada ainda posso entender, mas os horrores de um envenenamento lento são obra de um monstro com forma humana, na minha opinião. – Monstro é mesmo a palavra certa, Mrs. Pettican – concordou a sua visita. – E a malvadez daquilo – disse Hannah –, para além de causar uma morte dolorosa a um ser humano. Olhe, foi só por muita sorte que não ficámos todos sob suspeita. – Sim, é verdade – disse Mrs. Pettican. – Olhe, quando o patrão nos contou que tinham desenterrado o pobre Mr. Boyes e que o tinham encontrado cheio daquele tal arsénico horrível, deume tal tontura que senti que a sala andava à roda como os cavalinhos a galopar num carrossel. «Oh, senhor!» digo eu, «o quê, na nossa casa!» Foi o que eu disse, e diz ele, «Mrs. Pettican,» diz ele, «sinceramente espero que não.» Como este travo de tragédia que conferiu à história lhe agradou, Mrs. Pettican acrescentou: – Sim, foi isso que eu lhe disse. «Na nossa casa», disse eu, e o certo é que não preguei olho nas três noites a seguir, com a polícia e o susto e mais isto e mais aquilo. – Mas é claro que não tiveram dificuldade em provar que aquilo não tinha acontecido cá em casa – sugeriu Bunter. – Miss Westlock prestou tão bem o seu depoimento no julgamento que tenho a certeza de que ficou tudo o mais claro possível para o juiz e o júri. O juiz congratulou-a, Miss Westlock, e creio bem que não lhe fez total justiça... a menina falou tão claramente e tão bem perante todo o tribunal. – Bem, eu nunca fui tímida – confessou Hannah –, e também, depois de passar tudo em revista com tanto cuidado com o patrão e a seguir com a polícia, sabia quais iam ser as perguntas e estava preparada, por assim dizer. – Pergunto-me como conseguiu recordar com tal exatidão todos os pormenores, depois daquele tempo todo – disse Bunter, com admiração. – Bem, sabe, Mr. Bunter, logo na manhã a seguir a Mr. Boyes adoecer, o patrão veio cá abaixo e disse-nos, sentado aí nessa cadeira, simpático como tudo, como o senhor, «Receio bem que Mr. Boyes esteja muito doente», diz ele. «Ele julga que deve ter comido qualquer coisa que lhe caiu mal», diz ele, «e talvez fosse o frango. Por isso, quero que tu e a cozinheira» diz ele, «passem em revista comigo tudo o que comemos ao jantar ontem à noite, para ver se conseguimos descobrir o que poderia ter sido.» «Bem, senhor», disse eu, «não vejo como é que Mr. Boyes pode ter comido alguma coisa estragada aqui, porque a cozinheira e eu comemos o mesmo que ele, o que sobrou, senhor, e estava tudo em perfeitas condições», disse eu. – E eu disse o mesmo – interveio a cozinheira. – Um jantar tão simples... sem ostras nem amêijoas nem nada do género, porque é bem sabido que o marisco é veneno para o estômago de certas pessoas, mas uma boa sopa alimentícia e um bocadinho de peixe e um frango de caçarola com nabos e cenouras cozidos no molho, e uma omelete, o que é que podia ser mais leve e melhor? Há pessoas a quem caem mal os ovos, sejam eles cozinhados de que maneira forem, a minha mãe era uma delas, bastava dar-lhe uma fatia de bolo que tivesse sido feito com ovos e ela ficava doente e apareciamlhe manchas na pele como se tivesse urticária, era ver para crer. Mas Mr. Boyes era um cavalheiro que gostava muito de ovos, e em omelete era como os preferia. – Sim, foi ele próprio quem fez a omelete naquela noite, não foi? – Foi – disse Hannah – e bem me lembro disso, porque Mr. Urquhart fez perguntas sobre os ovos, se eram frescos, e eu recordei-lhe que eram os que ele tinha trazido, ele mesmo, nessa tarde daquela


loja à esquina da Lamb’s Conduit Street, onde os têm sempre frescos da quinta, e recordei-lhe que um deles estava com a casca estalada e que ele tinha dito «Usamos esse na omelete hoje à noite, Hannah», e eu trouxe uma taça limpa da cozinha e pu-los lá dentro, o estalado e mais três, e não voltei a tocar-lhes até os trazer para a mesa. «E além disso, senhor», disse eu, «ainda aqui estão os outros oito da dúzia e pode ver com os seus próprios olhos que estão bons, o mais frescos que é possível.» Não foi assim, cozinheira? – Foi, Hannah. E quanto ao frango, era uma verdadeira beleza. Era novo e tenro, eu até disse na altura à Hannah que era uma pena fazer uma caçarola, porque dava lindamente para assar. Mas Mr. Urquhart gosta muito de frango de caçarola; diz que assim tem mais sabor, e não digo que não tenha razão. – Se for cozinhado num bom caldo de carne de vaca – disse Mr. Bunter com autoridade –, com os legumes dispostos em camadas, sobre uma base de toucinho, não demasiado gordo, e tudo bem condimentado com sal, pimenta e colorau, há poucos pratos que batam um frango de caçarola. Pela minha parte, recomendaria um toque de alho, mas tenho noção de que não agrada a todos os paladares. – Eu não suporto o cheiro, nem vê-lo – disse Mrs. Pettican, com franqueza –, mas, quanto ao resto, sou da sua opinião, desde que os miúdos sejam acrescentados ao caldo, e eu cá aprecio cogumelos, na época deles, mas não dos de lata, que parecem muito bonitos mas não têm mais sabor do que botões, se tanto. Mas o segredo está no cozinhar, como bem sabe, Mr. Bunter, o testo tem de ficar bem posto para não deixar escapar o sabor, e tem de cozer lentamente, para os sabores se misturarem bem, por assim dizer. Não nego que assim seja muito apetitoso, que foi o que a Hannah e eu achámos, embora eu também goste de um bom frango assado, quando é bem recheado com um belo recheio para não ficar seco. Mas Mr. Urquhart nem quis ouvir falar de o assar e, como é ele quem paga as contas, tem o direito de dar as suas ordens. – Bem – disse Bunter –, o que é certo é que, se houvesse algo prejudicial no frango de caçarola, a senhora e Miss Westlock não teriam escapado. – Não, de facto não – disse Hannah –, porque eu não escondo que, como somos abençoadas com bom apetite, acabámos tudo, a não ser um pedacinho que dei ao gato. Mr. Urquhart pediu para ver as sobras no dia seguinte e pareceu ficar aborrecido ao descobrir que não tinha sobrado nada e que a travessa tinha sido lavada... como se alguma vez ficasse louça por lavar para o dia seguinte nesta cozinha. – Eu não suportava ter de começar o dia com pratos sujos – disse Mrs. Pettican. – Sobrou um bocadinho de sopa, não muito, só uma conchinha, e Mr. Urquhart levou-a lá acima para a mostrar ao médico, e ele provou-a e disse que estava muito boa, foi o que nos disse a enfermeira Williams, embora ela não a tenha provado. – E quanto ao vinho da Borgonha – disse Hannah Westlock –, que foi a única coisa que só Mr. Boyes tomou, Mr. Urquhart disse-me para o arrolhar bem e o guardar. E ainda bem que o fizemos, porque, claro, a polícia pediu para o ver quando chegou a altura. – Foi muito previdente de Mr. Urquhart tomar tais precauções – disse Bunter –, quando não havia nenhuma suspeita na altura de que o pobre homem não tivesse morrido de causas naturais. – Foi o que disse a enfermeira Williams – respondeu Hannah –, mas achámos que era por ele ser advogado e saber o que deve fazer-se em caso de morte súbita. E foi muito cauteloso, também. Mandou-me colar um adesivo na abertura da garrafa e escrever as minhas iniciais nele, para ela não


ser aberta acidentalmente. A enfermeira Williams disse que ele estava a contar com um inquérito, mas como o Dr. Weare estava lá para confirmar que Mr. Boyes tinha tido aquele tipo de ataques de bílis toda a vida, é claro que não se levantou nenhuma objeção a passar a certidão de óbito. – É claro que não – disse Bunter –, mas foi muita sorte, como viria a revelar-se, que Mr. Urquhart tivesse compreendido tão bem o seu dever. Sua senhoria já tem visto muitos casos em que um homem inocente esteve à beira da forca por falta de uma simples precaução como essa. – E quando eu penso que Mr. Urquhart só por um triz não se ausentou de casa naquela altura – disse Mrs. Pettican –, a ideia até me dá palpitações. Foi chamado a casa daquela maçadora senhora de idade que está sempre a morrer e não se resolve a morrer de uma vez. Olhe, ele está lá agora, em casa de Mrs. Wrayburn, lá para Windle. É podre de rica, segundo consta, e não anda cá a fazer nada, porque está como uma criança, é o que dizem. E também era uma indecente em nova, e os outros parentes nem querem ter nada a ver com ela, só Mr. Urquhart, e acho que mesmo assim é só porque é advogado dela e tem esse dever. – O dever nem sempre é agradável – comentou Mr. Bunter –, como ambos sabemos, Mrs. Pettican. – Os que são ricos – disse Hannah Westlock – não têm dificuldade em arranjar quem cumpra o dever. Atrevo-me a dizer que Mrs. Wrayburn não o conseguiria se fosse pobre, fosse ou não tia-avó, conhecendo como conheço Mr. Urquhart. – Ah! – disse Bunter. – Não faço comentários – disse Miss Westlock –, mas o senhor e eu, Mr. Bunter, sabemos como é o mundo. – Suponho que Mr. Urquhart vai ganhar alguma coisa quando a velha senhora bater a bota – sugeriu Bunter. – Talvez sim; ele não é de grandes falas – disse Hannah –, mas é evidente que não ia andar sempre a gastar o seu tempo para ir a correr a Westmorland por nada. Embora eu própria não quisesse deitar a mão a dinheiro que foi ganho por meios duvidosos. Seria dinheiro amaldiçoado, Mr. Bunter. – É fácil falar, minha menina, quando não é provável que alguma vez tenhas essa tentação – disse Mrs. Pettican. – Há muitas grandes famílias no reino de que nunca se teria ouvido falar se alguém não tivesse um estilo de vida mais solto do que aquele em que nós fomos criadas. Há esqueletos em muitos armários, se a verdade viesse a saber-se. – Ah! – exclamou Bunter. – Concordo. Já vi colares de diamantes e casacos de peles que deveriam ter a etiqueta «Pagamento de Pecados», se os atos cometidos às escuras fossem proclamados aos quatro ventos, Mrs. Pettican. E há famílias que andam de cabeça erguida e que nunca teriam existido se um rei qualquer não tivesse caçado na coutada delas, como costumava dizer-se. – Diz-se que houve homens importantes que não foram tão importantes que não reparassem em Mrs. Wrayburn quando ela era nova – disse Hannah, sombriamente. – A rainha Vitória nunca permitiu que ela atuasse perante a família real... sabia demasiado sobre aquilo em que ela andava metida. – Era atriz, é isso? – E muito bonita, diz-se, embora eu não me lembre do nome artístico dela – disse Mrs. Pettican pensativamente. – Era um nome esquisito, isso sei... Hyde Park ou coisa do género. O tal Wrayburn com quem ela se casou não era ninguém... foi só para abafar o escândalo, foi para o que ela se casou com ele. Teve dois filhos... mas de quem não me atrevo a afirmar... e morreram ambos numa epidemia de cólera, o que sem dúvida foi castigo divino.


– Não era isso que Mr. Boyes lhe chamava – disse Hannah, fungando reprovadoramente. – O Diabo encarregou-se dos seus, era o que ele dizia. – Ah! Ele não tinha tento na língua – disse Mrs. Pettican –, e não admira, com as companhias que tinha. Mas acabaria por assentar se não tivesse morrido. Tinha uns modos muito agradáveis quando estava para aí virado. Entrava aqui na cozinha e conversava sobre isto e aquilo, e bem divertido que era. – A senhora é demasiado branda com os cavalheiros, Mrs. Pettican – disse Hannah. – Quem tiver boas maneiras e pouca saúde cai-lhe no goto. – Então, Mr. Boyes sabia tudo sobre Mrs. Wrayburn? – Oh, sim... sabia-se tudo na família e com certeza Mr. Urquhart contava-lhe mais coisas a ele do que nos contaria a nós. Em que comboio é que Mr. Urquhart disse que vinha, Hannah? – Ele disse que queria jantar às sete e meia. Deve chegar no das seis e meia, acho eu. Mrs. Pettican olhou para o relógio na parede e Bunter, interpretando a sua intenção, pôs-se de pé e despediu-se. – E espero que volte, Mr. Bunter – disse a cozinheira, delicadamente. – O patrão não se opõe a visitas de cavalheiros respeitáveis à hora do chá. Às quartas-feiras à tarde estou de folga. – Eu é às sextas – acrescentou Hannah – e aos domingos de quinze em quinze dias. Se o senhor é evangélico, Mr. Bunter, o reverendo Crawford em Judd Street é um belo pregador. Mas talvez o senhor vá para fora no Natal. Mr. Bunter respondeu que a época festiva seria indubitavelmente passada em Duke’s Denver e partiu numa auréola brilhante de esplendor por associação.


CAPÍTULO DEZ – Aqui está, Peter – disse o inspetor-chefe Parker –, e aqui está a senhora que tanto ansiava conhecer. Mrs. Bulfinch, permita-me que lhe apresente Lord Peter Wimsey. – Muito prazer – disse Mrs. Bulfinch. Soltou uma risadinha e aplicou pó de arroz no seu rosto grande e pálido. – Mrs. Bulfinch, antes de se casar com Mr. Bulfinch, era a presença viva que animava o bar de Nine Rings, na Gray’s Inn Road – disse Mr. Parker –, e bem conhecida pelo seu encanto e espírito. – Deixe-se disso – disse Mrs. Bulfinch –, você é de mais, não é? Não lhe preste atenção, vossa senhoria. Sabe como são estes tipos da polícia. – Uns malandros – disse Wimsey, abanando a cabeça. – Mas eu não preciso do testemunho dele; posso confiar nos meus próprios olhos e ouvidos, Mrs. Bulfinch, e só posso dizer que, se tivesse tido a sorte de a conhecer antes de ser demasiado tarde, a ambição da minha vida seria passar a perna a Mr. Bulfinch. – O senhor é tão mau como ele – disse Mrs. Bulfinch, altamente lisonjeada –, e o que o Bulfinch lhe diria não sei mesmo. Ficou bem incomodado quando o agente veio pedir-me para eu dar uma saltada à Scotland Yard. «Isto não me agrada, Gracie», diz-me ele, «nós sempre fomos respeitáveis nesta casa e nunca tivemos problemas com desordeiros nem servimos bebidas depois da hora de fechar, e quando tu te vires entre esses sujeitos não sabes que coisas te podem perguntar.» «Não sejas um mole» digo-lhe eu; «aquela rapaziada conhece-me toda e não tem nada contra mim, e se for só para lhes falar do cavalheiro que se esqueceu do pacote no Rings, não tenho nada contra dizer-lhes o que sei, já que não fiz nada de que me arrependa. O que é que eles iam pensar», digo eu, «se eu me recusasse a ir? Aposto o que quiseres que iam pensar que havia qualquer coisa esquisita.» «Bem», diz ele, «eu vou contigo.» «Ai sim?» digo eu, «e o novo empregado de balcão que ias contratar hoje de manhã? Porque», digo eu, «a servir eu ao balcão na parte da taberna é que não me apanhas, nunca fui habituada a tal, por isso tu faz o que muito bem entenderes.» E saí e deixei-o lá a tratar dos seus assuntos. Apesar de que até gosto destas atitudes dele. Não estou a falar contra o Bulfinch, mas, polícia ou meia polícia, acho que sei bem tomar conta de mim própria. – Com certeza – disse Parker, pacientemente. – Mr. Bulfinch não precisa de se sentir alarmado. Nós só queremos que, tanto quanto se lembra, nos conte tudo sobre aquele jovem de quem falou e nos ajude a encontrar o pacote de papel branco. Poderá assim salvar uma pessoa inocente de uma condenação e tenho a certeza de que o seu marido não se oporia a isso. – Pobrezinha! – disse Mrs. Bulfinch. – Quando li a notícia do julgamento, disse ao Bulfinch... – Só um momento. Se não se importasse de começar pelo princípio, Mrs. Bulfinch, Lord Peter compreenderia melhor o que tem para nos dizer. – Ora, é claro. Bem, vossa senhoria, antes de eu me casar, era empregada de bar no Nine Rings, como diz o inspetor-chefe. Nessa altura era Miss Montague... é um nome melhor do que Bulfinch, e eu quase tive pena de me despedir dele, mas é a vida! Uma moça tem de fazer muitos sacrifícios quando se casa e mais um ou menos um não tem grande significado. Eu nunca lá trabalhei a não ser no


bar mais seleto, porque nunca me sujeitaria a tirar cervejas na parte da taberna, porque a zona não é lá muito fina, embora haja bastantes cavalheiros da advocacia a aparecerem ao fim do dia no lado do bar. Bem, como eu estava a dizer, trabalhei lá até ao meu casamento, que foi no feriado de agosto deste ano, e lembro-me de, uma noite, um cavalheiro entrar... – Acha que consegue lembrar-se da data? – Não do dia exato, porque não quero jurar o que não sei, mas foi por volta do dia mais longo do ano, porque me lembro de fazer esse comentário ao cavalheiro, para fazer conversa, sabe? – É quanto basta – disse Parker. – Por volta do dia 20 ou 21 de junho, por aí? – É isso, é o mais exata que posso ser. E, quanto à hora, isso posso dizer-lhe, sabendo como sei que vocês, os detetives, gostam sempre de saber a hora certa. – Mrs. Bulfinch soltou nova risadinha e olhou à sua volta à espera de aplausos. – Havia um cavalheiro lá sentado... eu não o conhecia, era desconhecido naquela zona... que me perguntou a que horas fechávamos e eu disse-lhe que era às onze e ele disse «Graças a Deus! Julguei que ia ter de sair às dez e meia», e eu olhei para o relógio e disse «Oh, de qualquer maneira, o senhor pode estar à vontade; nós adiantamos sempre aquele relógio um quarto de hora.» No relógio eram dez e vinte, por isso eu sei que deviam ser dez e cinco na realidade. E então começámos a falar sobre os proibicionistas e a maneira como eles andavam a tentar outra vez alterar a nossa hora de fechar para as dez e meia, mas nós temos um bom amigo no tribunal, o Dr. Judkins, e enquanto estávamos a falar sobre isto, lembro-me muito bem, a porta é empurrada a toda a pressa e um cavalheiro jovem entra, quase cai para dentro do bar, por assim dizer, e diz: «Dê-me um brandy duplo, depressa.» Bem, eu não queria servi-lo logo de seguida, ele estava tão pálido e tão esquisito que pensei que já vinha com um grão na asa, e o patrão era muito rigoroso em relação a esse tipo de coisa. Mas ele falava bem, bastante claramente e sem se repetir nem nada, e os olhos dele, embora tivessem um aspeto um pouco estranho, não estavam fixos, se me faço entender. Acabamos por conseguir avaliar bastante bem as pessoas no nosso negócio, sabem? Ele apoiou-se ao balcão, todo encolhido e dobrado, e diz: «Dê-mo puro, faça-me lá o jeito. Estou-me a sentir mesmo mal.» O cavalheiro com quem eu tinha estado a falar diz-lhe: «Aguente aí», diz ele, «o que se passa?» e o cavalheiro diz: «Vou vomitar.» E põe as mãos sobre o colete, assim! Mrs. Bulfinch agarrou-se à cintura e revirou dramaticamente os seus grandes olhos azuis. – Bem, então eu vejo que ele não estava bêbedo, por isso servi-lhe um Martell duplo só com um pouco de água mineral e ele emborca-o e diz: «Já me sinto melhor.» E o outro cavalheiro põe-lhe o braço à volta da cintura e ajuda-o a sentar-se. Havia muitas outras pessoas no bar, mas não prestaram atenção, porque estavam ocupadas com as notícias das corridas. Daí a pouco, o cavalheiro pediu-me um copo de água e eu servi-lho e ele disse: «Desculpe se a assustei, mas acabei de ter um forte choque e deve ter-me afetado a digestão. Sou atreito a problemas gástricos», diz ele, «e qualquer preocupação ou choque me afeta o estômago. No entanto», diz ele, «talvez isto resolva o problema.» E tira do bolso um pacote de papel branco com um pó dentro e deita o pó ao copo de água e mexe-o com uma caneta de tinta permanente e bebe-o. – Ficou efervescente? – perguntou Wimsey. – Não, era só um pó simples, e levou algum tempo a dissolver-se. Ele bebeu tudo e disse «Isto resolve a coisa» ou «Assim se vai resolver» ou alguma coisa desse género. E a seguir diz: «Muito obrigado. Já me sinto recomposto e é melhor ir andando para casa, não vá isto acontecer-me outra vez.» E ergueu-me o chapéu... era mesmo cavalheiro... e foi-se embora. – Quanto pó acha que ele deitou na água?


– Oh, uma boa porção. Não a mediu nem nada do género, deitou o pó diretamente do pacote na água. Quase uma colher de sobremesa, talvez. – E o que aconteceu ao pacote? – perguntou Parker. – Ah, pois é. – Mrs. Bulfinch lançou um olhar ao rosto de Wimsey e pareceu satisfeita com o efeito que estava a produzir nele. – Tinha acabado de sair o último cliente, por volta das onze e cinco, seria, e o George estava a fechar a porta à chave, quando eu vejo uma coisa branca no assento. O lenço de algum cliente, pensei eu, mas quando peguei na coisa vi que era o pacotinho de papel. Então, eu disse ao George: «Olá! O cavalheiro esqueceu-se do remédio dele.» E o George perguntou que cavalheiro e eu disse-lhe e ele disse «O que é?» e eu olhei para o pacote, mas tinha o rótulo arrancado. Era só um daqueles pacotinhos de farmácia, sabe, com as pontas viradas para cima e um rótulo colado, mas não restava nem um bocadinho do rótulo. – Nem sequer conseguiu ver se estava impresso a preto ou a vermelho? – Bem, isso... – Mrs. Bulfinch pôs-se a pensar. – Bem, não, não sei dizer-lhe. Agora que falou disso, parece que me lembro de haver qualquer coisa vermelha no pacote, nalguma parte dele, mas não consigo recordar claramente. Não posso jurar que tenha visto alguma coisa. Sei que não tinha nome nem letras de nenhum tipo, porque espreitei para ver o que era. – Não experimentou provar o pó, por acaso? – Nem pensar. Podia ser veneno ou coisa do género. Digo-lhe, ele era um cliente com ar esquisito. – (Parker e Wimsey trocaram um olhar.) – Foi o que pensou na altura? – perguntou Wimsey. – Ou só lhe ocorreu essa ideia mais tarde, depois de ter lido as notícias sobre o caso? – Pensei isso na altura, claro – retorquiu Mrs. Bulfinch rispidamente. – Não lhe estou a dizer que foi por isso que não provei o pó? Até o disse ao George na altura. Além disso, se não fosse veneno, podia ser droga ou coisa do género. «É melhor não lhe tocar», foi o que eu disse ao George, e ele disse: «Atira-o para o lume.» Mas eu não fazia uma coisa dessas. O cavalheiro podia voltar a procurar o que era dele. Por isso, pu-lo na prateleira por trás do balcão, onde temos as bebidas espirituosas, e nunca mais pensei no assunto até ontem, quando o seu agente foi lá fazer-me perguntas. – Andaram à procura do pacote – disse Parker –, mas não conseguiram encontrá-lo em lado nenhum. – Bem, não sei o que possa ter acontecido. Eu pu-lo lá e deixei de trabalhar no Rings em agosto, por isso não sei dizer o que foi feito dele. Se calhar deitaram-no fora quando estavam a fazer limpezas. Mas esperem lá... enganei-me quando disse que nunca mais pensei no assunto. Questioneime quando li o relato do julgamento no News of the World, e disse ao George: «Não me admirava nada se fosse aquele cavalheiro que veio ao Rings uma noite e parecia tão adoentado... imagina só!» Disse isto mesmo. E o George disse: «Ora, não te ponhas a imaginar coisas, Gracie, minha menina; não queres ver-te metida num caso de polícia.» O George sempre andou de cabeça erguida, sabe? – É uma pena que não tenha vindo comunicar-nos esta história – disse Parker, severamente. – Bem, como é que eu havia de saber que era importante? O taxista viu-o uns minutos depois e ele já estava doente, por isso o pó não podia ter nada a ver com isso, se é que era ele, o que eu não poderia jurar. E, de qualquer maneira, só soube depois de o julgamento terminar. – Mas vai haver um novo julgamento – disse Parker – e a senhora talvez tenha de prestar declarações.


– Sabe onde me encontrar – disse Mrs. Bulfinch, cheia de animação. – Não tenciono fugir. – Estamos-lhe muito agradecidos por ter vindo falar connosco – acrescentou Wimsey, amavelmente. – Não tem de quê – disse a senhora. – É tudo, inspetor- -chefe? – É tudo, para já. Se encontrarmos o pacote, talvez lhe peçamos que o identifique. E, já agora, é aconselhável não falar deste assunto com as suas amigas, Mrs. Bulfinch. Por vezes, as senhoras põem-se na conversa, uma coisa leva a outra e acabam por recordar incidentes que nunca aconteceram. Compreende o que eu quero dizer. – Eu nunca fui de grandes conversas – disse Mrs. Bulfinch, ofendida. – E, na minha opinião, no que diz respeito a juntar dois mais dois para fazer cinco, as senhoras não levam a palma aos cavalheiros. – Posso transmitir estas informações à defesa, suponho? – perguntou Wimsey depois de sair a testemunha. – É claro que sim – respondeu Parker –, foi por isso que lhe pedi que viesse ouvir, o que quer que valha esta informação. Entretanto, é evidente que vamos procurar afincadamente o tal pacote. – Sim – disse Wimsey, pensativo –, sim, vão ter de fazer isso, naturalmente.

Mr. Crofts não pareceu ficar muito contente quando esta história lhe foi comunicada. – Eu avisei-o, Lord Peter – disse ele –, das consequências que poderia ter mostrarmos o nosso jogo à polícia. Agora que eles se encarregaram deste incidente, vão ter todas as oportunidades de o usar a seu favor. Porque é que não deixou que a investigação ficasse a nosso cargo? – Que raio! – disse Wimsey, furioso. – Ficou a vosso cargo cerca de três meses e não fizeram absolutamente nada. A polícia descobriu tudo em três dias. O tempo é importante neste caso, sabe? – Muito provavelmente, mas não vê que agora a polícia não vai ter descanso até encontrar o tal precioso pacotinho? – E depois? – E depois? E se não for arsénico? Se Lord Peter tivesse deixado o assunto nas nossas mãos, poderíamos tê-los surpreendido com a coisa no último momento, quando já fosse demasiado tarde para mais investigações, e assim daríamos cabo das bases da acusação. Dê ao júri a história de Mrs. Bulfinch tal como está e eles vão ter de admitir que há provas de que o falecido se envenenou a si próprio. Mas agora, é claro, a polícia vai descobrir ou fabricar qualquer coisa e demonstrar que o pó era perfeitamente inofensivo. – E supondo que o encontram e que é mesmo arsénico? – Nesse caso, é claro – disse Mr Crofts –, conseguiremos uma absolvição. Mas acredita nessa possibilidade, vossa senhoria? – É perfeitamente evidente que o senhor não acredita – disse Wimsey acaloradamente. – De facto, pensa que a sua cliente é culpada. Bem, eu não. Mr. Crofts encolheu os ombros. – No interesse da nossa cliente – disse –, vemo-nos obrigados a considerar a faceta desfavorável de todas as provas, para prever as ilações que é provável que a acusação tire delas. Repito, vossa senhoria, que agiu de modo indiscreto. – Olhe lá – disse Wimsey –, eu não me contento com um veredicto de «não provado». No que diz


respeito à honra e à felicidade de Miss Vane, vem a dar no mesmo ser dada como culpada como ser absolvida com base numa mera dúvida. Quero vê-la absolutamente ilibada e a culpa atribuída a quem a tem. Não quero que fique a pairar nem uma sombra de dúvida sobre a questão. – Altamente desejável, vossa senhoria – concordou o advogado –, mas permitir-me-á recordar-lhe que não é meramente uma questão de honra ou de felicidade, mas também de salvar o pescoço de Miss Vane da forca. – E eu digo – afirmou Wimsey – que, para ela, seria melhor ser enforcada do que viver com toda a gente a acreditar que ela é uma assassina que foi ilibada por sorte. – Parece-lhe? – perguntou Mr. Crofts. – Receio que essa não seja uma atitude que a defesa possa de facto adotar. Permite-me que pergunte se é adotada pela própria Miss Vane? – Não me surpreenderia se o fosse – disse Wimsey. – Mas ela está inocente e eu estou decidido a fazer com que acreditem nisso. – Excelente, excelente – disse Mr. Crofts untuosamente. – Ninguém ficará mais encantado do que eu próprio. Mas repito que, na minha humilde opinião, seria preferível que vossa senhoria não fizesse demasiadas confidências ao inspetor-chefe Parker. Wimsey ainda estava a ferver interiormente por causa daquele seu encontro quando entrou no escritório de Mr. Urquhart em Bedford Row. O escriturário-chefe lembrava- -se dele e cumprimentou-o com a deferência devida a uma visita importante e esperada. Convidou sua senhoria a sentar-se por um momento e desapareceu para um gabinete. Uma datilógrafa, com um rosto forte, feio e bastante masculino, ergueu os olhos da máquina de escrever quando a porta se fechou e acenou abruptamente com a cabeça a Lord Peter. Wimsey reconheceu-a como um dos elementos d’ «O Gatil» e juntou mentalmente uma nota positiva ao nome de Miss Climpson pela sua organização rápida e eficiente. Não trocaram palavra, no entanto, e daí a uns momentos o escriturário-chefe regressou e convidou Lord Peter a entrar. Norman Urquhart levantou-se da sua secretária e estendeu a mão amigavelmente. Wimsey tinha-o visto no julgamento e observara o seu fato elegante, o seu cabelo farto, liso e escuro e a sua aparência geral de respeitabilidade despachada e profissional. Ao vê-lo agora mais de perto, notou que era bastante mais velho do que lhe parecera à distância. Calculou que andaria pelos quarenta e tal anos. Tinha a pele pálida e curiosamente lisa, para além de um certo número de pequenas sardas, como manchas do Sol, bastante inesperado naquela altura do ano e num homem cuja aparência a todos os outros títulos não transmitia uma sugestão de vida ao ar livre. Os seus olhos, escuros e astutos, pareciam um pouco cansados, e tinham rugas à volta, como se a ansiedade não lhes fosse desconhecida. O advogado deu as boas-vindas à sua visita num tom de voz agudo e agradável e perguntou em que podia ajudá-lo. Wimsey explicou que estava interessado no julgamento por envenenamento de Vane e que estava autorizado pela firma Crofts & Cooper a vir incomodar Mr. Urquhart com perguntas, acrescentando, como de costume, que receava estar a ser maçador. – De modo nenhum, Lord Peter, de modo nenhum. Fico encantado por poder ajudá-lo seja de que maneira for, embora de facto receie bem que o senhor já tenha ouvido tudo o que eu sei. Naturalmente, fiquei bastante abalado com o resultado da autópsia e bastante aliviado, devo confessar, por descobrir que não era provável que fosse lançada qualquer suspeita sobre mim, dadas as circunstâncias peculiares da ocorrência.


– Deve ter sido uma terrível provação para o senhor – concordou Wimsey. – Mas parece ter tomado as mais admiráveis precauções na altura. – Bem, sabe, suponho que nós, os advogados, nos habituamos a tomar precauções. Não que eu suspeitasse de envenenamento na altura, caso em que, escusado será dizer, teria insistido imediatamente numa autópsia. O que me passou pela cabeça foi algo mais da natureza de algum tipo de intoxicação alimentar; não botulismo, os sintomas eram errados para isso, mas alguma contaminação dos utensílios da cozinha ou de algum bacilo na própria comida. Muito me apraz que não tenha sido essa a causa, embora a realidade fosse infinitamente pior, de certo modo. Suponho, na realidade, que em todos os casos de doença súbita e inexplicável, deveria ser feita uma análise das secreções, por rotina, mas o Dr. Weare pareceu perfeitamente convencido e eu confiei inteiramente na sua avaliação. – Obviamente – disse Wimsey. – Como é natural, não se salta logo para a ideia de que a pessoa tenha sido assassinada... embora, atrevo-me a dizer, isso aconteça mais vezes do que se tende a supor. – Provavelmente acontece e, se eu alguma vez tivesse tratado de um caso de crime, essa suspeita talvez me tivesse ocorrido, mas dedico-me quase em exclusivo ao direito civil, a testamentos e divórcios e coisas desse género. – Por falar em testamentos – disse Wimsey num tom casual –, Mr. Boyes tinha algumas expectativas financeiras? – Nenhumas, que eu saiba. O pai dele não é de modo nenhum uma pessoa abastada, é o típico pastor de província com um pequeno estipêndio e um enorme vicariato e uma igreja a cair. De facto, toda a família pertence à desafortunada classe média de profissionais, sobrecarregada de impostos e com muito pouca segurança financeira. Julgo que Philip Boyes não herdaria muito mais do que umas centenas de libras, mesmo que tivesse sobrevivido à família toda. – Eu tinha a ideia de que havia algures uma tia rica. – Oh, não... a não ser que esteja a pensar na velha Cremorna Garden. É tia-avó, do lado da mãe. Mas ela não se dá com eles há já muitos anos. Nesse momento, Lord Peter teve um dos seus acessos de clareza que aparecem subitamente quando dois factos não relacionados estabelecem contacto na mente. Na excitação de ouvir as notícias de Parker sobre o pacote de papel branco, não tinha prestado suficiente atenção ao relato que Bunter lhe fizera do chá com Hannah Westlock e Mrs. Pettican, mas agora recordou-se de algo sobre uma atriz, «com um nome como Hyde Park ou coisa do género». O reajustamento na sua mente fez-se de um modo tão suave e mecânico, que a sua pergunta seguinte se sucedeu quase sem uma pausa. – Não é Mrs. Wrayburn, de Windle, em Westmorland? – É – disse Mr. Urquhart. – Acabei de vir de a visitar, de facto. É claro, pois, o senhor escreveume para lá. Ela está bastante infantil, pobre senhora, há cerca de cinco anos. Uma vida desgraçada, a arrastar-se assim, um sofrimento para ela e para todas as outras pessoas. Parece-me sempre uma crueldade não se poder acabar com estes pobres velhotes como se acabaria com um animal de estimação, mas a lei não nos autoriza a sermos tão misericordiosos. – Sim, as associações de defesa dos animais não nos perdoariam se prolongássemos o sofrimento de um gato – disse Wimsey. – É uma tolice, não é? Mas não admira, se as pessoas escrevem para os jornais sobre a crueldade de ter cães em canis com correntes de ar e não dão importância... nem um tostão furado... a que uma família de treze pessoas durma numa cave sem saneamento nem vidraças


nas janelas nem sequer janelas para lhes pôr vidraças. Realmente enfurece-me, por vezes, embora em regra eu seja um idiota pacífico. Pobre velha Cremorna Garden... mas já deve estar com uma certa idade. Com certeza não deve durar muito mais tempo. – De facto, julgámos todos que ela se finava no outro dia. O coração está-lhe a fraquejar; já passou dos noventa, a pobrezinha, e tem aqueles ataques de vez em quando. Mas há uma vitalidade incrível nalgumas destas senhoras antigas. – Suponho que é o único parente vivo que ela tem. – Suponho que sim, para além de um tio meu na Austrália. – Mr. Urquhart aceitou o facto de Wimsey estar a par dos seus laços familiares sem lhe perguntar como sabia. – Não que a minha presença lhe faça algum bem. Mas também sou o advogado dela, de modo que é boa ideia estar no local quando acontecer alguma coisa. – Oh, pois, pois. E, sendo advogado dela, é claro que sabe a quem é que ela vai deixar o dinheiro. – Bem, sim, claro. Embora não esteja bem a ver, se me permite dizê-lo, o que é que isso tem a ver com o assunto em questão. – Ora, sabe – disse Wimsey –, é que acabou de me ocorrer a ideia de que Philip Boyes talvez se tenha metido nalguma espécie de problema financeiro... acontece aos melhores... e, bem, talvez tenha tomado o caminho mais curto para sair dele. Mas, se ele contava com alguma coisa de Mrs. Wrayburn, e a velhota... quero dizer, a pobre senhora idosa... estava prestes a entregar a alma ao Criador, não lhe parece que ele teria esperado ou contraído um empréstimo a contar com o testamento ou coisa do género? Entende o que quero dizer, não entende? – Oh, estou a ver. Está a tentar provar que se tratou de suicídio. Bem, concordo consigo que é a melhor defesa que os amigos de Miss Vane podem apresentar e, a esse título, estou do seu lado. Ainda por cima porque Mrs. Wrayburn não deixou nada ao Philip. Nem, tanto quanto sei, ele tinha a mais pequena razão para supor que ela lhe deixaria alguma coisa. – Tem a certeza disso? – Absoluta. De facto – Mr. Urquhart hesitou –, bem, já agora posso dizer-lhe que ele mo perguntou um dia e eu vi-me obrigado a dizer-lhe que ele não tinha a mínima hipótese de receber nada dela. – Oh... ele fez-lhe essa pergunta? – Bem, sim, fez. – É um ponto importante, não é? Há quanto tempo foi isso? – Oh... há cerca de um ano e meio, acho eu. Não tenho a certeza. – E, como Mrs. Wrayburn está agora como uma autêntica criança, suponho que ele não poderia acalentar a esperança de que ela alguma vez alterasse o testamento? – Não, de modo nenhum. – Não, estou a ver. Bem, parece-me que podíamos usar esse dado. Uma grande deceção, é claro... poderemos dar a entender que ele tinha contado muito com isso. É muito, já agora? – Bastante, cerca de setenta ou oitenta mil. – Muito deprimente, pensar nessa fortuna toda a escapar a uma pessoa. A propósito, e o senhor? Não recebe nada? Peço-lhe desculpa, estou a ser terrivelmente intrometido, mas o que eu quero dizer é se, considerando que tem olhado por ela estes anos todos e é o seu único parente, por assim dizer, não seria uma injustiça. O advogado franziu a testa e Wimsey pediu desculpa.


– Eu sei, eu sei... estou a ser terrivelmente indiscreto. É um defeito meu. E, seja como for, vai aparecer tudo nos jornais quando a velha senhora bater a bota, por isso não sei porque é que hei de insistir que me diga. Esqueça... lamento muito. – Não há nenhuma razão para que não saiba – disse Mr. Urquhart, lentamente –, embora o meu instinto profissional me leve a evitar revelar os assuntos dos meus clientes. De facto, eu sou o legatário. – Oh? – disse Wimsey, num tom dececionado. – Mas, nesse caso, isso enfraquece bastante a história, não é verdade? Quero dizer, o seu primo seria bem capaz de ter achado, nesse caso, que poderia virar-se para si para... quer dizer, é claro que eu não sei quais seriam as suas ideias, Mr. Urquhart... Mr. Urquhart abanou a cabeça. – Estou a ver aonde quer chegar, e é um pensamento muito natural. Mas, na verdade, usar o dinheiro dessa forma opor-se-ia ao desejo expresso da testamentária. Mesmo que eu pudesse legalmente doá-lo, ver-me-ia moralmente obrigado a não o fazer, o que tive de deixar bem claro ao Philip. É claro que eu poderia tê-lo ajudado com dádivas ocasionais de dinheiro, mas, para dizer a verdade, não o faria. Na minha opinião, a única esperança de salvação para o Philip teria sido singrar no trabalho. Ele tendia um pouco... embora eu não goste de falar mal dos mortos... a... a apoiar-se demasiado nas outras pessoas. – Ah, compreendo. Sem dúvida, essa era também a opinião de Mrs. Wrayburn? – Não exatamente. Não. Era mais sério do que isso. Ela considerava que tinha sido maltratada pela família. Em suma... bem, como já chegámos a este ponto, não me importo de lhe transmitir as palavras dela, textualmente. Tocou a sineta em cima da sua secretária. – Não tenho o próprio testamento aqui, mas tenho o rascunho. Oh, Miss Murchison, não se importa de me trazer a caixa com a etiqueta «Wrayburn»? Mr. Pond diz-lhe onde está. Não é pesada. A senhora d’ «O Gatil» saiu silenciosamente em busca da caixa. – Isto é tudo bastante irregular, Lord Peter – prosseguiu Mr. Urquhart –, mas há ocasiões em que a discrição excessiva é tão reprovável como a falta de discrição, e eu gostaria que compreendesse bem porque é que me vi forçado a adotar esta atitude bastante inflexível para com o meu primo. Ah, obrigado, Miss Murchison. Abriu a caixa com uma chave de um porta-chaves que tirou do bolso das calças e folheou uma série de papéis. Wimsey observava-o com a expressão de um cão tonto à espera de um osso. – Oh, não! – exclamou o advogado. – Não parece estar aqui. Oh! Claro, que esquecimento o meu. Lamento muito: está no cofre em minha casa. Tirei-o para o consultar em junho passado, quando se deu o anterior alarme em relação à saúde de Mrs. Wrayburn, e na confusão que se seguiu à morte do meu primo esqueci-me completamente de voltar a trazê-lo para cá. No entanto, nas suas linhas gerais... – Não tem mal – disse Wimsey –, não há pressa. Se eu fosse a sua casa amanhã, talvez o pudesse ver nessa altura. – É claro, se pensa que é importante. Peço desculpa pelo meu descuido. Entretanto, há mais alguma coisa que eu possa dizer-lhe sobre o assunto? Wimsey fez algumas perguntas, cobrindo o terreno já desbravado por Bunter nas suas investigações, e em seguida despediu-se. Miss Murchison estava de novo a trabalhar no escritório.


Não olhou para cima quando ele passou. «É curioso» pensava Wimsey ao percorrer Bedford Row, «como toda a gente é tão notavelmente prestável neste caso. Respondem de bom grado a perguntas que ninguém tem o direito de fazer e desatam a dar explicações desnecessariamente. Nenhuma delas parece ter nada a esconder. É espantoso. Talvez o sujeito tenha realmente cometido suicídio. Espero que sim. Quem me dera poder interrogá-lo a ele. Apertava bem com ele, ó se apertava. Já tenho cerca de quinze análises do carácter dele... todas diferentes... É pouco cavalheiresco cometer suicídio sem deixar uma mensagem a dizer que foi o que se fez... metem-se as pessoas em trabalhos. Quando eu rebentar com os miolos...» Estacou. «Espero não querer nunca fazê-lo», pensou. «Espero não ter necessidade de querer fazê-lo. A mãe não ia gostar, e é uma confusão. Mas começo a não gostar deste trabalho de mandar pessoas para a forca. É terrível para os amigos delas... Não vou pensar em enforcamentos. É enervante.


CAPÍTULO ONZE Wimsey apresentou-se na casa de Mr. Urquhart às nove horas da manhã seguinte e encontrou esse cavalheiro a tomar o pequeno-almoço. – Pensei que talvez o encontrasse antes de ir para o seu escritório – disse sua senhoria a jeito de desculpa. – Agradeço-lhe muito, mas já comi. Não, a sério, obrigado... eu nunca bebo antes das onze. Faz mal ao organismo. – Bem, encontrei a minuta – disse Mr. Urquhart num tom agradável. – Pode dar-lhe uma vista de olhos enquanto eu tomo o café, se me dá licença de continuar. Expõe um pouco os esqueletos da família, mas é tudo história antiga agora. Foi buscar uma folha datilografada a uma mesa de apoio e entregou-a a Wimsey, que notou automaticamente que tinha sido datilografada numa máquina de escrever Woodstock, com um pê minúsculo ratado e um A maiúsculo ligeiramente fora do alinhamento. – É melhor eu esclarecer os laços de família entre os Boyes e os Urquhart – prosseguiu ele, regressando à mesa do pequeno-almoço –, para que possa compreender o testamento. O antepassado em comum é o velho John Hubbard, um banqueiro altamente respeitável do início do século passado. Vivia em Nottingham, e o banco, como era usual naquela época, era um banco privado, um negócio de família. Ele tinha três filhas, Jane, Mary e Rosanna. Deu-lhes uma boa educação e elas deveriam ter herdado uma maquia razoável, mas o velhote cometeu os erros do costume, especulou com pouca sensatez, deu demasiada corda aos clientes... a velha história. O banco foi à falência e as filhas ficaram sem um tostão. A mais velha, Jane, casou-se com um homem chamado Henry Brown. Era mestre-escola e muito pobre e bastante repelente do ponto de vista moral. Tiveram uma filha, Julia, que acabou por se casar com um cura, o reverendo Arthur Boyes, e foi a mãe de Philip Boyes. A segunda filha, Mary, saiu-se bastante melhor do ponto de vista financeiro, embora socialmente tenha casado abaixo do seu nível. Aceitou a proposta de casamento de um tal Josiah Urquhart, que estava envolvido no negócio das rendas. Aquilo foi um golpe para os pais, mas como Josiah era originário de uma família bastante decente e era uma pessoa de valor, acabaram por se conformar. Mary teve um filho, Charles Urquhart, que conseguiu afastar-se da associação degradante com o comércio. Entrou para um escritório de advogados, foi bem-sucedido e finalmente tornou-se sócio da firma. Era o meu pai, e eu sou o seu sucessor na firma de advocacia. «A terceira filha, Rosanna, era de outra estirpe. Era muito bela, uma cantora notável, dançarina graciosa e, no geral, uma jovem particularmente atraente e mimada. Para horror dos pais, fugiu de casa para pisar os palcos. Apagaram o nome dela da Bíblia da família. Ela decidiu justificar os piores receios dos pais. Tornou-se a coqueluche da sociedade londrina. Sob o nome artístico de Cremorna Garden, foi de triunfo desrespeitável em triunfo desrespeitável. Mas tinha cabeça, não era nada como a Nell Gwynne23. Era do tipo de deitar a mão ao que podia e guardá-lo. Deitou a mão a tudo, dinheiro, joias, appartements meublés, cavalos, carruagens, tudo e mais alguma coisa, e transformou-o em fundos consolidados. Nunca foi pródiga com nada a não ser consigo mesma, o que considerava ser paga suficiente para todos os favores, e atrevo-me a dizer que tinha razão. Eu só a


conheci quando já era velha, mas, antes de ela ter a trombose que lhe deu cabo da cabeça e do corpo, ainda tinha vestígios de uma beleza notável. Era uma velha astuta, à sua maneira, e gananciosa. Tinha umas mãos ávidas, pequenas, gorduchas e estreitas, daquelas que não dão nada... a não ser em troca de dinheiro. Conhece o tipo, com certeza. «Bem, para resumir, a irmã mais velha, Jane, a que se tinha casado com o mestre-escola, não quis ter nada a ver com a ovelha negra da família. Ela e o marido escudavam-se por trás da sua virtude e estremeciam quando viam o nome desonrado de Cremorna Garden nos cartazes à porta do teatro Olympic ou do Adelphi. Devolviam as cartas dela sem as abrirem e proibiram-na de lhes entrar em casa, um antagonismo que atingiu o auge quando Henry Brown tentou fazer com que a expulsassem da igreja no funeral da sua esposa. «Os meus avós eram menos rígidos. Não a visitavam nem a convidavam, mas ocasionalmente compravam um bilhete para um camarote para assistir aos espetáculos dela e enviaram-lhe uma participação do casamento do seu filho e eram delicados para com ela, embora mantivessem as distâncias. Por consequência, ela manteve um relacionamento afável com o meu pai e acabou por lhe entregar a administração dos seus bens. Ele era de opinião que propriedades eram propriedades, fosse qual fosse a maneira como tinham sido adquiridas, e disse que se um advogado se recusasse a tratar de assuntos relacionados com dinheiro sujo teria de pôr na rua metade dos seus clientes. «A velha senhora nunca esqueceu nem perdoou nada. A mera menção da ligação entre os Brown e os Boyes fazia-a espumar-se de raiva. Daí que, quando fez testamento, tenha incluído esse parágrafo que tem perante si. Eu fiz-lhe ver que Philip Boyes não tivera nada a ver com a perseguição, nem de facto o pai dele, Arthur Boyes, mas a velha ferida ainda estava aberta e ela recusava-se a ouvir uma palavra a favor dele. Por isso, redigi o testamento como ela queria; se não fosse eu, outra pessoa seria, sabe? Wimsey acenou com a cabeça e deu a sua atenção ao testamento, que datava de há oito anos. Nomeava Norman Urquhart como único executor testamentário e, para além de alguns legados a serviçais e a obras de caridade relacionadas com o mundo do teatro, dizia o seguinte: Deixo todo o resto dos meus bens, sejam eles quais forem e onde quer que estejam situados, ao meu sobrinho-neto Norman Urquhart de Bedford Row, advogado, para seu usufruto em vida e, à sua morte, a ser igualmente dividido entre os seus filhos legítimos, mas, se o já mencionado Norman Urquhart falecer sem filhos legítimos, os ditos bens passarão para [aqui seguiam-se os nomes das obras de caridade previamente especificadas]. E deixo deste modo os meus bens como sinal de gratidão pela consideração que me foi demonstrada pelo meu sobrinho-neto já mencionado, Norman Urquhart, e pelo seu pai, o falecido Charles Urquhart, ao longo das suas vidas e para me assegurar de que nenhuma parte dos meus bens passará para as mãos do meu sobrinho-neto Philip Boyes ou dos seus descendentes. E para este fim e para assinalar a minha consciência do tratamento desumano que me foi dado pela família do já mencionado Philip Boyes, insto o já mencionado Norman Urquhart, em cumprimento do meu desejo à morte, a não dar, emprestar nem transmitir ao já mencionado Philip Boyes nenhuma parte dos rendimentos resultantes dos ditos bens de que o já mencionado Norman Urquhart desfrute durante a sua vida, nem empregar esses mesmos rendimentos para prestar qualquer tipo de assistência ao já mencionado Philip Boyes.

– Hum! – disse Wimsey – isto é bastante claro e bastante vingativo. – Sim, pois é... mas que se há de fazer com senhoras de idade que se recusam a escutar a voz da razão? Ela esteve com bastante atenção a ver se eu tinha formulado a mensagem com suficiente dureza antes de assinar o documento. – Deve ter deprimido Philip Boyes, não há dúvida – disse Wimsey. – Obrigado. Fico contente por ter lido isto; torna a teoria do suicídio bastante mais provável.


Em teoria, talvez fosse esse o caso, mas a teoria não se encaixava tão bem como Wimsey desejaria com o que tinha ouvido dizer sobre o carácter de Philip Boyes. Pessoalmente, inclinava-se para acreditar mais na ideia de que o encontro final com Harriet tivesse sido o fator decisivo no suicídio. Mas esta hipótese também não era totalmente satisfatória. Não conseguia acreditar que Philip tivesse sentido aquele tipo particular de afeto por Harriet Vane. No entanto, talvez fosse meramente porque ele não queria ter boa opinião do homem. Receava que as suas emoções estivessem a toldar-lhe um pouco o raciocínio. Voltou para casa e leu as provas do romance de Harriet. Ela escrevia indubitavelmente bem, mas também sabia indubitavelmente demasiado sobre a administração de arsénico. Além disso, o livro era sobre dois artistas que viviam em Bloomsbury e levavam uma vida ideal, cheia de amor e de riso e de pobreza, até alguém malvadamente envenenar o jovem e deixar a jovem inconsolável e apaixonadamente decidida a vingar a sua morte. Wimsey cerrou os dentes e dirigiu-se à Prisão de Holloway, onde quase fez uma cena de ciúmes a Harriet Vane. Felizmente, o seu sentido de humor prevaleceu depois de interrogar a sua cliente quase até à exaustão e às lágrimas. – Desculpe – disse ele –, o facto é que sinto uns ciúmes terríveis deste tipo, o Boyes. Não devia sentir, mas sinto. – É isso mesmo – disse Harriet –, e sempre assim seria. – E, a ser esse o caso, não poderia viver comigo. É isso? – O Peter seria muito infeliz. Para além de todos os outros inconvenientes. – Mas, olhe lá – disse Wimsey –, se a Harriet se casasse comigo, eu não teria ciúmes, porque nesse caso saberia que realmente gostava de mim e tudo isso. – Acha que não teria ciúmes, mas teria. – Parece-lhe que sim? Oh, com certeza que não. Por que haveria de os ter? É tal e qual como se me casasse com uma viúva. Todos os segundos maridos têm ciúmes? – Não sei. Mas não é bem a mesma coisa. O Peter nunca confiaria realmente em mim e seríamos uns infelizes. – Mas, com um raio – disse Wimsey –, se a Harriet pelo menos dissesse uma vez que gostava um pouco de mim, tudo estaria bem. Eu acreditaria. É porque não o diz que eu imagino todo o tipo de coisas. – E continuaria a imaginar coisas, mesmo sem querer. Não me daria hipótese. Os homens nunca dão. – Nunca? – Bem, quase nunca. – Isso seria horroroso – disse Wimsey, muito sério. – É claro que, se eu me revelasse esse tipo de idiota, a situação seria bastante desesperada. Sei o que quer dizer. Conheci um sujeito em tempos que ficou com esse vírus da ciumeira. Se a mulher não lhe estivesse sempre pendurada do pescoço, ele achava que isso queria dizer que ele não significava nada para ela, e quando ela lhe demonstrava o seu afeto ele chamava-lhe hipócrita. Tornou-se impossível, e ela fugiu com alguém de quem não gostava nada, e ele fartava-se de dizer que, afinal, sempre tivera razão. Mas as outras pessoas todas diziam que a culpa era dele, o tonto. É tudo muito complicado. A vantagem parece ser da pessoa que fica com ciúmes primeiro. Talvez a Harriet conseguisse sentir ciúmes de mim? Quem me dera que assim fosse, porque provaria que se interessava um pouco por mim. Quer que lhe dê alguns pormenores do meu passado hediondo?


– Por favor, não o faça. – Por que não? – Não quero ficar a saber de todas as outras pessoas. – Ai não, por Deus? Acho que isso me dá esperanças. Quer dizer, se só tivesse sentimentos maternais para comigo, sentir-se-ia ansiosa por me ajudar e compreender. Odeio ser ajudado e compreendido. E, ao fim e ao cabo, nenhuma delas quis dizer nada... exceto a Barbara, claro. – Quem era a Barbara? – perguntou logo Harriet. – Oh, uma rapariga. Eu devo-lhe muito, na realidade – respondeu Wimsey pensativamente. – Quando ela se casou com o outro sujeito, eu dediquei-me ao trabalho de detetive para curar os meus sentimentos feridos, e tem sido realmente muito divertido, bem vistas as coisas. Deus meu, sim... eu fiquei bastante abalado daquela vez. Até frequentei uma cadeira especial de Lógica por causa dela. – Santo Deus! – Pelo prazer de repetir «Barbara celarent darii ferio baralipton»24. Havia uma espécie de aura romântica na coisa, que, de algum modo, exprimia paixão. Em muitas noites de luar a murmurei eu aos rouxinóis que frequentam o jardim do colégio de St. John’s... embora, é claro, eu frequentasse o colégio de Balliol, mas os edifícios são contíguos. – Se alguém se casar consigo alguma vez, vai ser pelo prazer de o ouvir dizer disparates – disse Harriet com severidade. – Uma razão humilhante, mas melhor do que nenhuma. – Dantes, eu também dizia disparates bastante bem – disse Harriet, com lágrimas nos olhos –, mas os embates da vida tiraram-me o jeito. Sabe... eu realmente estava destinada a ser uma pessoa bemdisposta... todo este abatimento e todas estas desconfianças não são quem eu sou. Mas perdi o ânimo, sem saber bem como. – Não admira, pobre garota. Mas vai ultrapassar isso. Limite-se a continuar a sorrir e deixe o resto ao tio Peter. Quando Wimsey chegou a casa, encontrou uma mensagem à sua espera: CARO LORD PETER, como viu, consegui o emprego. Miss Climpson mandou seis de nós, todas com histórias e cartas de recomendação diferentes, é claro, e Mr. Pond (o escriturário-chefe) contratou-me, sujeita à aprovação de Mr. Urquhart. Como só cá estou há um par de dias, não há muito a dizer-lhe sobre o meu novo patrão do ponto de vista pessoal, a não ser que ele gosta muito de doçarias e tem uma reserva secreta de bombons e gomas na sua secretária, que come sub-repticiamente enquanto dita as cartas. Parece uma pessoa bastante agradável. Mas há só uma coisa. Parece-me que seria interessante investigar as suas atividades financeiras. Eu tenho bastante experiência do mundo das finanças, sabe, e ontem, na ausência de Mr. Urquhart, atendi uma chamada para ele que não se destinava aos meus ouvidos. Não significaria nada para o comum dos mortais, mas para mim significou, porque eu sabia algo sobre o homem do outro lado da linha. Descubra se Mr. U. andou envolvido no Fundo Megatherium antes do grande colapso deste. Novos relatórios quando surgir alguma coisa. Cordialmente, JOAN MURCHISON

– O Fundo Megatherium? – disse Wimsey. – Que bela coisa para um advogado respeitável se envolver nela. Vou perguntar ao Freddy Arbuthnot. Ele é um tonto em relação a tudo menos a obrigações e ações, que compreende, por alguma razão abstrusa. Leu novamente a carta, reparando automaticamente que tinha sido escrita numa máquina de escrever da marca Woodstock, com um pê minúsculo ratado e um A maiúsculo ligeiramente fora do


alinhamento. Subitamente despertou e leu a carta uma terceira vez, reparando agora ativamente no pê ratado e no A maiúsculo irregular. Em seguida sentou-se, escreveu uma linha numa folha de papel, dobrou-a, endereçou-a a Miss Murchison e mandou Bunter pô-la no correio. Pela primeira vez neste caso irritante sentiu o vago movimento das águas com uma ideia viva a vir à tona, lenta e sombria, das profundezas mais recônditas da sua mente. 23 Atriz do período da Restauração que foi amante do rei Carlos II de Inglaterra. (N. da T.) 24 Mnemónica destinada a recordar os silogismos válidos. (N. da T.)


CAPÍTULO DOZE Wimsey costumava dizer, quando já era velho e ainda mais falador do que o costume, que a recordação daquele Natal em Duke’s Denver o assombraria em pesadelos, regularmente todas as noites, nos vinte anos seguintes. Mas é possível que o recordasse com interesse. Não há dúvida de que pôs severamente à prova o seu autodomínio. Começou nada auspiciosamente à mesa do lanche, quando Mrs. «Freak» Dimsworthy guinchou na sua voz aguda que se sobrepunha a tudo: – E é verdade, Lord Peter, meu caro, que está a defender aquela envenenadora horrível? – A pergunta teve um efeito semelhante ao de uma rolha de champanhe a ser tirada. A curiosidade sobre o caso Vane que todas as pessoas reunidas continham extravasou borbulhante num vendaval de espuma aos picos. – Não tenho dúvida de que foi ela, e não a censuro – disse o capitão Tommy Bates –; um sujeitinho perfeitamente horrendo. Tem a fotografia na sobrecapa dos livros dele, sabem?... É o tipo de badameco que ele era. É maravilhoso, os palermas por quem estas intelectuais se deixam levar. Essa cambada devia ser toda envenenada como ratazanas. Olhem só para o mal que fazem ao país. – Mas ele era um excelente escritor – protestou Mrs. Featherstone, uma senhora de trinta e tal anos, cujo corpo violentamente comprimido dava a entender que travava uma luta perpétua para calcular o seu peso de acordo com as primeiras sílabas do seu nome, não as últimas25. – Os livros dele são positivamente franceses na sua audácia e brevidade. A audácia não é rara, mas aquela perfeita concisão de estilo é um dom que... – Oh, se gosta de porcaria... – interrompeu o capitão, bastante grosseiramente. – Eu não lhe chamaria isso – disse Mrs. Featherstone. – Ele é franco, claro, e é isso que as pessoas deste país não perdoam. Faz parte da nossa hipocrisia nacional. Mas a beleza da sua prosa põe tudo num plano superior. – Bem, eu não quereria esse lixo em minha casa – disse o capitão com firmeza. – Apanhei a Hilda com um livro dele e disse: «Ora bem, devolve já esse livro à biblioteca.» Por regra, eu não me meto, mas há certos limites. – Como é que soube como era o livro? – perguntou Wimsey, inocentemente. – Ora, o artigo do James Douglas no Express bastou-me – disse o capitão Bates. – Os parágrafos que ele citou eram uma imundície... uma verdadeira imundície. – Ainda bem que todos nós os lemos – disse Wimsey. – Mais vale prevenir do que remediar. – Temos uma grande dívida de gratidão para com a imprensa – disse a duquesa viúva –; é muita bondade deles selecionarem as partes boas e pouparem-nos o trabalho de lermos os livros, não lhes parece, e proporcionam tal alegria às pobres pessoas que não têm posses para os comprar ou para se inscreverem numa biblioteca. Embora eu tenha a certeza de que sai bastante barato, se uma pessoa ler depressa. Não que as bibliotecas mais baratas disponibilizem esses livros, porque eu perguntei à minha criada, uma moça ótima, muito interessada em cultivar o espírito, que é mais do que posso dizer sobre a maioria das minhas amigas, mas com certeza é tudo devido à educação gratuita para o povo e eu até suspeito intimamente que ela vota nos trabalhistas, embora nunca pergunte, porque não


me parece justo e, além disso, se eu perguntasse, não podia fazer nada, não é? – De qualquer modo, não me parece que aquela jovem o tenha assassinado por causa disso – disse a sua nora. – Segundo consta, ela era tão má como ele. – Oh, vá lá – disse Wimsey –, não pode pensar uma coisa dessas, Helen. Que diabo, ela escreve histórias de detetives, e nas histórias de detetives a virtude triunfa sempre. São a literatura mais pura que temos. – O Diabo está sempre pronto a citar a Bíblia quando lhe convém – disse a duquesa mais jovem –, e dizem que as vendas dos livros da desgraçada mulher vão de vento em popa. – Acredito – disse Mr. Harringay – que a coisa toda é um golpe publicitário que deu para o torto. – Era um homem grande e jovial, extremamente rico e ligado ao mundo financeiro de Londres. – Nunca se sabe no que esses tipos da publicidade andam metidos. – Bem, parece que desta vez vão enforcar a galinha que pôs os ovos de ouro – disse o capitão Bates com uma sonora risada. – A não ser que aqui o Wimsey consiga fazer um dos seus truques de magia. – Espero que consiga – disse Miss Titterton. – Eu adoro histórias de detetives. Eu comutava a pena em trabalhos forçados na condição de ela escrever uma história nova de seis em seis meses. Seria muito mais útil do que fiar estopa ou coser sacos de correspondência para os Correios os perderem. – Não estará a ser um pouco precipitada? – sugeriu Wimsey num tom ameno. – Ela ainda não foi condenada. – Mas vai ser, da próxima vez. Contra factos não há argumentos, Peter. – É claro que não – disse o capitão Bates. – A polícia sabe o que faz. Não põe uma pessoa no banco dos réus se não houver alguma coisa bastante suspeita em relação a ela. Aquilo era uma gaffe terrível, porque, poucos anos antes, o próprio duque de Denver tinha ido a tribunal, erradamente acusado de homicídio. Fez-se um silêncio horrendo, quebrado pela duquesa, que disse gelidamente: – Francamente, capitão Bates! – O quê? Eh? Oh, é claro, eu queria dizer que sei que se cometem erros por vezes, mas isso é uma coisa muito diferente. Quero dizer, esta mulher, sem moral nenhuma, ou seja, quero dizer... – Tome uma bebida, Tommy – disse Lord Peter, bondosamente. – Hoje não está à altura do seu padrão usual de tato. – Não, mas diga-nos, Lord Peter – gritou Mrs. Dimsworthy –, como é essa criatura. Falou com ela? Eu achei que ela tinha uma voz bastante agradável, embora seja desengraçada. – Uma voz agradável, Freakie? Oh, não – disse Mrs. Featherstone. – Eu chamar-lhe-ia bastante sinistra. Assustou-me imenso. Fiquei com arrepios pela espinha abaixo. Um genuíno frisson. E acho que ela poderia ser bastante atraente, com aqueles seus olhos esquisitos, esborratados, se se vestisse em condições. Uma espécie de femme fatale, sabe? Ela tenta hipnotizá-lo, Peter? – Vi nos jornais – disse Miss Titterton – que ela teve centenas de propostas de casamento. – De uma forca para outra – disse Harringay, com as suas gargalhadas ruidosas. – Eu acho que não quereria casar com uma assassina – disse Miss Titterton –, especialmente uma que se especializasse em histórias de detetives. Estaria sempre a perguntar-me se não haveria nada de estranho no paladar do café. – Oh, essas pessoas são todas doidas – disse Mrs. Dimsworthy. – Anseiam morbidamente por serem famosas. É como os loucos que fazem confissões falsas e se vão entregar à polícia por crimes que não cometeram.


– Uma assassina poderia dar uma boa esposa – disse Harringay. – Houve o caso de Madeleine Smith, sabem... a propósito, ela também usou arsénico... casou-se com alguém e viveu feliz até uma idade respeitável. – Mas o marido dela também viveu até uma idade respeitável? – quis saber Miss Titterton. – Isso é que interessa, não é? – Quem envenena uma vez, envenena duas ou três, é o que eu acho – disse Mrs. Featherstone. – É um vício que se apodera da pessoa, como a bebida ou as drogas. – É a sensação inebriante de poder – disse Mrs. Dimsworthy. – Mas, Lord Peter, diga-nos lá... – Peter! – disse a mãe dele. – Não se importa de ir ver o que aconteceu ao Gerald? Diga-lhe que o chá dele está a arrefecer. Eu julgo que ele está nos estábulos a falar com o Freddy sobre a inflamação ou as gretas dos cascos dos cavalos ou coisa do género, é uma maçada como os cavalos andam sempre com maleitas. Helen, não treinou o Gerald em condições, ele costumava ser bastante pontual em criança. O Peter foi sempre o mais malcomportado, mas está a tornar-se quase humano, agora que caminha para velho. É aquele maravilhoso criado dele que o mantém na linha, é realmente uma pessoa notável, e tão inteligente, é mesmo da velha guarda, sabem, um perfeito autocrata, e tem tão boas maneiras também. Valeria uns bons milhares para um milionário americano, é impressionante, admira-me que o Peter não tenha medo de que ele se despeça um destes dias, mas acredito realmente que ele lhe está muito afeiçoado, o Bunter afeiçoado ao Peter, quero dizer, embora o inverso também deva ser verdade, tenho a certeza de que o Peter presta mais atenção à opinião dele do que à minha. Wimsey tinha escapado e nessa altura já ia a caminho dos estábulos. Encontrou Gerald, o duque de Denver, a regressar com Freddy Arbuthnot a reboque. Gerald recebeu o recado da duquesa viúva com um sorrisinho. – Lá tenho de aparecer, suponho – disse. – Quem me dera que o chá nunca tivesse sido inventado. Dá cabo dos nervos e estraga o apetite para o jantar. – É uma mistela horrorosa – concordou o Honourable Freddy. – Ouve cá, Peter, tenho andado à tua procura. – Eu também – disse Wimsey prontamente. – Sinto-me exausto com a conversa. Vamos até à sala de bilhar recuperar as forças antes de enfrentarmos fogo cerrado. – A melhor ideia do dia! – disse Freddy, entusiasticamente. Seguiu Wimsey todo contente até à sala de bilhar e atirou-se para um cadeirão. – Uma grande maçada, o Natal, não é? Todas as pessoas que mais detestamos reunidas em nome da boa vontade e essas coisas todas. – Traga dois uísques – disse Wimsey ao criado. – E, James, se alguém perguntar por Mr. Arbuthnot ou por mim, vai-lhe parecer que saímos. Bem, Freddy, à tua! Constou-se alguma coisa, como dizem os jornalistas? – Tenho-me fartado de investigar, na pista do teu homem – disse Mr. Arbuthnot. – Realmente, acho que, não tarda nada, posso montar um negócio como o teu. A nossa coluna financeira, editada cá pelo tio Buthie... esse tipo de coisa. Mas o nosso amigo Urquhart tem sido muito cuidadoso. É natural, sendo, como é, um respeitável advogado de família. Mas encontrei-me ontem com um homem que conhece um tipo que ouviu dizer a um sujeitinho que o Urquhart tem andado a meter-se alegremente em altas cavalarias. – Tens a certeza, Freddy? – Bem, não posso dizer que tenha a certeza absoluta. Mas o tal homem, estás a ver, deve-me um favor, por assim dizer, por eu o ter avisado contra o Megatherium antes de a banda começar a tocar, e


acha que, se conseguir encontrar o sujeitinho que sabe... não o tipo que lhe disse, compreendes, mas o outro... acha que talvez seja capaz de lhe sacar alguma coisa, estás a ver, especialmente se eu lhe apontar qualquer coisa que valha a pena, percebes? – E com certeza tu tens segredos para vender. – Oh, bem, parece-me que podia fazer com que valesse a pena ao outro sujeitinho, porque tenho a impressão, através do outro tipo que o meu sujeito conhece, que o outro sujeitinho está em apertos, por assim dizer, porque ficou desfalcado numas ações da Airways, e se eu o pusesse em contacto com o Goldberg, estás a ver, podia sair do buraco em que se meteu. E podemos contar com o Goldberg, porque, estás a ver, ele é primo do velho Levy que foi assassinado, sabes, e estes judeus todos são unha com carne e, para dizer a verdade, acho que fazem muito bem. – Mas o que é que o velho Levy tem a ver com o assunto? – perguntou Wimsey, passando mentalmente em revista os incidentes naquele episódio de homicídio meio esquecido. – Bem, de facto – disse o Honourable Freddy, um pouco nervoso –, eu... hum... cheguei-me à frente, por assim dizer. A Rachel Levy é... hum... de facto vai ser Mrs. Freddy e essa coisa toda. – Com mil diabos! – disse Wimsey, tocando a sineta. – Muitos parabéns. Já se arrastava há muito tempo, não era? – Bem, sim – disse Freddy. – Sim, já há muito tempo. Estás a ver, o problema é que eu era cristão... quer dizer, fui batizado e essas coisas todas, embora tenha feito notar que não era bom cristão, para além de ter o lugar da família na igreja e aparecer lá no dia de Natal e coisas assim. Só que parece que eles não se importavam tanto com isso como com o facto de eu ser gentio. Bem, quanto a isso, claro, não há orações que nos valham. E depois havia também o problema dos filhos, se os tivéssemos. Mas eu expliquei que não me importava o que eles fossem... e não me importo, sabes, porque, como estava a dizer, os diabinhos teriam toda a vantagem em se dar com o grupo dos Levy e dos Goldberg, especialmente se os rapazes enveredassem por uma carreira no mundo financeiro. E depois dei a volta a Lady Levy dizendo-lhe que já servia há quase sete anos pela mão da Rachel... foi bem propositado, não te parece? – Mais dois uísques, James – disse Lord Peter. – Foi brilhante, Freddy. Como é que te veio à ideia? – Na igreja – disse Freddy. – No casamento da Diana Rigby. A noiva atrasou-se cinquenta minutos e eu tinha de me entreter com alguma coisa e alguém tinha deixado uma Bíblia no banco e eu vi que... olha lá, o velho Labão era um bocado duro, não era? E eu disse para comigo «Vou meter isto na conversa na próxima vez que os visitar», e foi o que fiz, e a velha senhora ficou muito comovida com o que eu disse. – Então, para resumir, está tudo combinado – disse Wimsey. – Bem, tchim-tchim, à tua. Vou ser o teu padrinho, Freddy, ou a coisa vai ser na sinagoga? – Bem, sim... vai ser na sinagoga... tive de concordar com isso – disse Freddy –, mas parece-me que a cerimónia mete uma espécie de amigo do noivo. Vais estar ao meu lado, meu velho, não vais? Mas não se tira o chapéu, não te esqueças disso. – Não me esquecerei – disse Wimsey –, e o Bunter explica-me o comportamento a ter. Ele sabe, com certeza. Ele sabe tudo. Mas olha cá, Freddy, não te vais esquecer desta pequena investigação, pois não? – Não me esqueço, meu velho, palavra de honra que não. Digo-te mal saiba alguma coisa. Mas penso realmente que podes contar que haja alguma coisa nisto.


Wimsey encontrou algum consolo nessa ideia. De qualquer modo, recompôs-se o suficiente para animar os festejos bastante discretos em Duke’s Denver. A duquesa Helen, de facto, comentou azedamente com o marido que com certeza Peter estava a ficar demasiado velho para fazer de bobo da corte e que seria melhor se levasse as coisas mais a sério e assentasse. – Oh, não sei – disse o duque. – O Peter é esquisito... nunca se sabe no que está a pensar. Livroume uma vez de sarilhos e eu não vou agora intrometer-me na vida dele. Deixe-o em paz, Helen. Lady Mary Wimsey, que tinha chegado tarde na véspera de Natal, tinha outra opinião sobre o assunto. Marchou para dentro do quarto do irmão às duas da madrugada do dia a seguir ao Natal. Tinha havido jantar e baile e charadas do tipo mais cansativo e Wimsey estava de roupão, sentado pensativamente à lareira. – Olhe lá, meu velho – disse Lady Mary – está um bocado fora de si, não está? Passa-se alguma coisa? – É do excesso de pudim de ameixas secas – disse Wimsey – e do excesso de vida no campo. Eu sou um mártir, é o que sou... a ser queimado em brandy para estar presente na festa da família. – Sim, é horrendo, não é? Mas que tal vai a vida? Já não o via há séculos. Esteve ausente tanto tempo! – Sim... e a Mary parece muito absorvida com o negócio de decoração de interiores. – Tem de se fazer alguma coisa. Fico farta de não ter objetivos, sabe? – Pois. Ouça, Mary, tem-se encontrado com o velho Parker ultimamente? Lady Mary fitou o lume. – Jantei com ele uma ou duas vezes, quando estava na cidade. – Ah, sim? Ele é um tipo muito decente. De confiança, caseiro... esse tipo de coisa. Não é propriamente divertido. – Um pouco inflexível. – Como diz... um pouco inflexível. – Wimsey acendeu um cigarro. – Eu não gostaria que acontecesse nada que perturbasse o Parker. Ele ia aguentar mal. Quer dizer, não seria justo brincar com os sentimentos dele ou coisa do género. Mary riu-se. – Está preocupado, Peter? – N-não. Mas gostava que fizesse jogo limpo com ele. – Bem, Peter, eu não posso propriamente dizer que sim ou que não até ele me fazer a pergunta, ou posso? – Não pode? – Bem, não a ele. Iria contra as ideias dele do que é decoroso, não lhe parece? – Suponho que sim. Mas é provável que fosse igualmente contra as tais ideias dele fazer-lhe o pedido. Era capaz de sentir que a mera ideia de ouvir um mordomo anunciar «O inspetor-chefe Parker e Lady Mary Parker» conteria algo chocante em si mesmo. – É um impasse, então, não é? – Podia deixar de jantar com ele. – Podia fazer isso, claro. – E o mero facto de não o fazer... estou a ver. Valeria a pena eu exigir saber quais são as intenções dele, à boa maneira vitoriana? – A que se deve esta súbita vontade de se ver livre da família, meu velho? Peter... ninguém está a


ser horrível consigo, pois não? – Não, não, só estou a sentir-me como um tio benevolente, é tudo. A velhice a fazer das suas. Aquele impulso forte de ser útil que ataca os melhores de entre nós quando começamos a ultrapassar as nossas primícias. – Como eu com a decoração de interiores. A propósito, criei este modelo de pijama. Não acha que é bastante divertido? Mas suponho que o inspetor-chefe Parker prefira a antiquada camisa de noite, como o Dr. Spooner ou lá quem é que era. – Isso seria um sacrifício – disse Wimsey. – Não tem mal. Eu serei corajosa e dedicada. Aqui e agora rejeito para sempre o meu pijama! – Não, não – disse Wimsey –, não aqui e agora. Respeite o pudor de um irmão. Muito bem. Devo então dizer ao meu amigo Charles Parker que, se ele abandonar a sua modéstia natural e lhe propuser casamento, a Mary abandonará os seus pijamas e aceitará. – Será um grande choque para a Helen, Peter. – Que se dane a Helen. Parece-me que não será o pior choque que ela terá. – Peter, está a congeminar algum plano diabólico. Muito bem. Se quer que eu administre o primeiro choque para a dececionar a pouco e pouco... conte comigo. – Ótimo! – disse Wimsey com displicência. Lady Mary pôs um braço à volta do pescoço dele e fez-lhe uma das suas raras carícias de irmã. – É um velho idiota às direitas – disse ela – e parece arrasado. Vá para a cama. – Vá para o inferno – disse Lord Peter num tom afável. 25 Jogo de palavras com feather (pena) e stone (pedra). (N. da T.)


CAPÍTULO TREZE Miss Murchison sentiu um frémito de excitação no seu coração bem regulado quando tocou à campainha do apartamento de Lord Peter. A causa não foi o título ou a riqueza dele nem o facto de ser solteiro, porque Miss Murchison trabalhara toda a vida e estava acostumada a visitar homens solteiros de todos os tipos sem pensar duas vezes na questão. Mas a mensagem dele fora bastante excitante. Miss Murchison tinha trinta e oito anos e era pouco atraente. Trabalhara num escritório de gestão financeira durante doze anos. Tinham sido bons anos no geral e só nos últimos dois é que ela começou a compreender que o brilhante gestor financeiro que fazia malabarismos com tantos empreendimentos espetaculares estava a fazer malabarismos para salvar a pele em circunstâncias cada vez mais difíceis. Com o ritmo a acelerar-se, ele começou a acrescentar ovo atrás de ovo aos que já rodopiavam no ar. Há um limite ao número de ovos que podem ser manipulados por mãos humanas. Um dia, um ovo escorregou-lhe das mãos e caiu, a seguir outro, e depois fez-se uma verdadeira omelete. O malabarista fugiu do palco para o estrangeiro, o seu principal assistente rebentou com os miolos, a assistência vaiou o espetáculo, desceu o pano e Miss Murchison, aos trinta e sete anos, ficou sem emprego. Pôs um anúncio no jornal e respondeu a muitos outros. A maior parte das pessoas parecia querer secretárias jovens e que ganhassem pouco. Era desencorajador. E então o seu anúncio trouxe-lhe uma resposta de uma tal Miss Climpson, que dirigia um escritório de datilografia. Não era o que ela queria, mas foi à entrevista. E descobriu que, afinal, não era bem um escritório de datilografia, mas algo mais interessante. Lord Peter Wimsey, misteriosamente por trás de tudo aquilo, estava no estrangeiro quando Miss Murchison entrou para «O Gatil» e ela nunca o tinha visto até há algumas semanas. Esta seria a primeira vez em que falaria com ele. Era uma pessoa com um aspeto esquisito, pensou ela, mas diziase que era uma grande cabeça. De qualquer modo... A porta foi aberta por Bunter, que parecia estar à espera dela e a conduziu imediatamente a uma sala de estar com as paredes forradas a estantes. Havia algumas gravuras de grande qualidade nas paredes, um tapete Aubusson, um piano de cauda, um enorme sofá e uma série de cadeirões confortáveis estofados em pele castanha. Os cortinados estavam cerrados, crepitava o lume na lareira e diante desta encontrava-se uma mesa com um serviço de chá em prata cujas linhas maravilhosas eram um encanto para a vista. Quando ela entrou, o seu patrão desenroscou-se das profundezas de um cadeirão, pousou um livro antigo com letras góticas que tinha estado a estudar e cumprimentou-a no tom de voz calmo, rouco e lânguido que ela já tinha ouvido no escritório de Mr. Urquhart. – Grande bondade sua, ter vindo até cá, Miss Murchison. Está um dia horrível, não está? Com certeza que lhe apetece um chá. Gosta de panquecas? Ou prefere algo mais moderno? – Obrigada – disse Miss Murchison, com Bunter, solícito, ao seu lado. – Eu gosto muito de


panquecas. – Oh, ainda bem! Ora, Bunter, nós cá nos encarregamos do bule. Dê mais uma almofada a Miss Murchison e depois pode retirar-se. De volta ao trabalho, imagino? Como está o nosso Mr. Urquhart? – Está bem. – Miss Murchison nunca tinha sido de muita conversa. – Há uma coisa que eu queria dizer-lhe... – Temos bastante tempo – disse Wimsey. – Não deixe arrefecer o chá. – Serviu-a com uma espécie de cortesia ansiosa que lhe agradou. Ela exprimiu admiração pelos grandes crisântemos cor de bronze que estavam aos molhos aqui e ali pela sala. – Oh! Ainda bem que gosta. Os meus amigos dizem-me que dão um toque feminino à sala, mas é o Bunter quem trata disso, para dizer a verdade. Dão cor e tudo isso, não lhe parece? – Os livros parecem bastante masculinos. – Oh, sim... são o meu passatempo, sabe? Os livros... e o crime, claro. Mas o crime não é muito decorativo, pois não? Não me interessa colecionar cordas de carrascos e sobretudos de assassinos. O que é que se faria com eles? O chá está bom? Eu devia ter-lhe pedido que o servisse26, mas parece-me sempre bastante injusto convidar uma pessoa e depois obrigá-la a ter todo o trabalho. A propósito, o que faz quando não está a trabalhar? Tem uma paixão secreta por alguma coisa? – Vou a concertos – disse Miss Murchison. – E, quando não há concertos, ponho alguma coisa a tocar no gramofone. – Dedica-se à música? – Não... nunca tive posses para aprender devidamente. Eu devia ter sido música. Mas ganha-se mais como secretária. – Suponho que sim. – A não ser que se seja uma artista de primeira, o que eu nunca teria sido. E os músicos de terceira são uma verdadeira maçada. – E também passam mal – disse Wimsey. – Detesto vê-los nos cinemas, pobres diabos, a tocarem tretas horrorosas entre uns nacos de Mendelssohn e uns restos de sinfonia inacabada. Coma uma sanduíche. Gosta de Bach? Ou só de música moderna? Dirigiu-se para o banco do piano. – Deixo à sua escolha – disse Miss Murchison, bastante surpreendida. – Está-me a apetecer o Concerto Italiano hoje. É melhor no órgão, mas não tenho um aqui. Acho Bach bom para o cérebro. Uma influência calmante e tudo isso. Tocou o concerto na íntegra e em seguida, depois de uns segundos de pausa, passou para um dos quarenta e oito prelúdios e fugas. Tocava bem, dando uma curiosa impressão de força controlada, o que, num homem tão delgado e com modos tão excêntricos, era inesperado e até um pouco perturbante. Depois de terminar, disse, ainda sentado ao piano: – Investigou a questão da máquina de escrever? – Sim, foi comprada nova há três anos. – Ótimo. A propósito, deduzo que, provavelmente, tem razão quanto à ligação de Mr. Urquhart com o Fundo Megatherium. Foi uma observação muito útil da sua parte. Considere-se digna de um grande louvor. – Obrigada. – Mais alguma novidade?


– Não, a não ser que, ao fim do dia em que Lord Peter veio ao escritório de Mr. Urquhart, ele ficou lá muito tempo depois de nós sairmos, a datilografar qualquer coisa. Wimsey tocou um arpejo com a mão direita e perguntou: – Como sabe quanto tempo ele ficou lá e o que estava a fazer, se tinham todos ido embora? – O senhor disse que queria saber tudo o que se desviasse minimamente do habitual, por mais insignificante que fosse. Eu pensei que talvez não fosse habitual ele ficar sozinho no escritório fora de horas e por isso andei para cima e para baixo na Princeton Street e à volta da Red Lion Square até às sete e meia. E então vi-o apagar as luzes e ir para casa. Na manhã seguinte, reparei que uns papéis que eu deixara dentro da capa da minha máquina de escrever tinham sido remexidos. Por isso, deduzi que ele esteve a escrever à máquina. – Talvez a funcionária da limpeza tenha mexido neles? – Não foi ela. Ela nunca limpa o pó, muito menos mexeria na capa da máquina. Wimsey acenou com a cabeça. – Tem as qualidades de um detetive de primeira, Miss Murchison. Muito bem. Nesse caso, o nosso trabalhinho terá de ser feito. Ora bem, olhe cá... compreende perfeitamente que eu vou pedir-lhe que faça algo ilegal? – Sim, compreendo. – E não se importa? – Não. Suponho que, se for detida, o senhor pagará todas as custas necessárias. – Com certeza. – E se eu for para a prisão? – Não me parece que chegue a isso. Há um ligeiro risco, admito... isto é, se eu estiver enganado no que penso que está a acontecer... de que seja acusada de tentativa de furto ou de posse de ferramentas para arrombamento de cofres, mas isso é o pior que poderia acontecer. – Oh, bem, faz tudo parte do jogo, acho eu. – Está a falar mesmo a sério? – Estou. – Esplêndido. Bem... lembra-se daquela caixa com documentos que trouxe ao gabinete de Mr. Urquhart no dia em que eu lá fui? – Sim, a que tem a etiqueta Wrayburn. – Onde é guardada? Na sala exterior do escritório, onde a senhora poderia ter-lhe acesso? – Oh, sim, está numa prateleira com muitas outras. – Ótimo. Seria possível ficar sozinha no escritório um dia por uma meia hora? – Bem, à hora do almoço. Parte-se do princípio de que saio ao meio-dia e meia hora e regresso à uma e meia. Mr. Pond sai nessa altura, mas Mr. Urquhart por vezes regressa. Eu não posso ter a certeza de que ele não apareça de repente. E pareceria estranho se eu quisesse ficar depois das quatro e meia, acho eu. A não ser que fizesse de conta que tinha cometido um erro e que queria ficar para o corrigir. Podia fazer isso. Ou podia chegar mais cedo de manhã quando a funcionária da limpeza lá está... ou teria mal ela ver-me? – Não teria grande mal – disse Wimsey, pensativo. – Provavelmente, ela pensaria que a senhora tinha assuntos a tratar relacionados com a caixa. Deixo-lhe a si a escolha da hora. – Mas o que devo fazer? Roubar a caixa? – Não exatamente. Sabe estroncar uma fechadura?


– Lamento, mas nem pouco mais ou menos. – Pergunto-me muitas vezes para que é que andamos na escola – disse Wimsey. – Nunca aprendemos nada que seja realmente útil. Eu sei estroncar uma fechadura, mas, como não temos muito tempo e a senhora vai precisar de um treino intensivo, parece-me que é melhor levá-la a um especialista. Não se importa de vestir o casaco e de vir comigo visitar um amigo? – De modo nenhum. Fico encantada. – Ele vive na Whitechapel Road, mas é um sujeito muito agradável, se conseguir esquecer as opiniões dele sobre religião. Eu cá acho-as uma lufada de ar fresco. Bunter! Chame-nos um táxi, por favor. A caminho do East End, Wimsey insistiu em falar de música, para grande desassossego de Miss Murchison; esta começou a achar que havia algo um pouco sinistro naquela recusa clara de conversar sobre o objetivo da viagem. – Já agora – atreveu-se a dizer, interrompendo algo que Wimsey estava a dizer sobre fugas –, essa pessoa que vamos visitar... tem nome? – Agora que fala nisso, creio que sim, mas nunca o chamam pelo nome. É Rumm. – Não muito, talvez, se... hum... se dá lições sobre como estroncar fechaduras. – Eu queria dizer que o nome dele é Rumm27. – Oh! Como é que ele se chama, então? – Que diabo! Quero dizer que Rumm é o nome dele. – Oh! Peço desculpa. – Mas ele não gosta de o usar, agora que é totalmente abstémio. – Então o que é que lhe chamam? – Eu chamo-lhe Bill – disse Wimsey, quando o táxi estava a parar junto à entrada de um pátio estreito –, mas quando ele estava à cabeça da sua profissão chamavam-lhe «Bill Venda dos Olhos». Foi um grande homem no seu tempo. Depois de pagar ao taxista (que os tinha tomado obviamente por assistentes sociais até receber a sua enorme gorjeta, e agora não sabia o que pensar deles), Wimsey conduziu a sua companheira pelo beco sujo. Ao fundo havia uma pequena casa de cujas janelas iluminadas jorravam os sons altos de um coro de vozes acompanhado por um órgão e por outros instrumentos. – Oh, não! – disse Wimsey. – Chegámos na hora de uma reunião. Não se pode evitar. Aqui vamos nós. Esperando até aos acordes de «Glória, Glória, Glória» suceder o som de orações fervorosas, bateu com força à porta. Pouco depois, uma menina pequena espreitou para fora e, ao ver Lord Peter, soltou um grito estridente de encantamento. – Olá, Esmeralda Hyacinth! – disse Wimsey. – O papá está em casa? – Está sim, senhor, por favor, senhor, não quer entrar e, oh, por favor... – Sim? – Por favor, senhor, não se importa de cantar «Nazaré»? – Não, eu não vou cantar «Nazaré» de modo nenhum, Esmeralda. Estou admirado contigo. – O papá diz que «Nazaré» não é profano e o senhor canta tão bem! – disse Esmeralda, a fazer beicinho. Wimsey tapou o rosto com as mãos. – É o que dá ter feito uma tolice uma vez – disse ele. – Nunca mais se ultrapassa. Não prometo


nada, Esmeralda, mas veremos. Mas quero falar de negócios com o papá, quando acabar a reunião. A criança acenou com a cabeça; nesse momento, a oração dentro da sala parou, por entre exclamações de «Aleluia!», e Esmeralda, aproveitando a pausa momentânea, empurrou a porta e disse em voz alta: – Está aqui Mr. Peter e uma senhora. A sala era pequena, estava muito quente e apinhada de pessoas. A um canto estava o órgão, com os músicos agrupados junto a ele. No meio, de pé a uma mesa redonda coberta com uma toalha vermelha, encontrava-se um homem robusto e quadrado, cujo rosto parecia o de um buldogue. Tinha um livro na mão e parecia prestes a anunciar um hino, mas, ao ver Wimsey e Miss Murchison, avançou, estendendo uma grande mão calorosa. – Bem-vindos sejam! – disse. – Irmãos, aqui estão este nosso querido irmão e esta nossa querida irmã no Senhor, saídos dos antros dos ricos e da vida dessoluta do West End para nos acompanharem nos Cânticos de Sião. Cantemos e deiamos graças. Aleluia! Sabemos que muitos virão do Leste e do Oeste e se sentarão à mesa do Senhor, enquanto muitos que se julgam escolhidos serão arrojados para as trevas. Por conseguinte, não dígamos, lá porque este homem usa lunetas, que não será um dos escolhidos ou, lá porque esta mulher usa um colar de diamantes e anda de Rolls-Royce, que não usará vestes brancas e uma coroa de ouro na Nova Jerusalém, nem que lá porque estas pessoas viajam de comboio para a Riviera não serão vistas a arrojar de si as suas coroas douradas junto ao Rio da Água da Vida. Ouvimos essas conversas por vezes em Hyde Park aos domingos, mas são perversas e tontas e levam a conflitos e a inveja e não à caridade. Todos somos ovelhas tresmalhadas e bem posso dizê-lo, eu que fui uma ovelha tresmalhada, um pecador emperdenido até este cavalheiro, porque o é verdadeiramente, me deitar a mão quando eu estava a arrombar o cofre dele e ele foi o instrumento de Deus para me desviar do caminho que leva à destruição. Oh, irmãos, que dia feliz que esse foi para mim, aleluia! Que chuva de bênçãos caiu sobre mim pela graça do Senhor! Ajuntemos agora as nossas orações de graças pela misericórdia divina no Número Cento e Dois. (Esmeralda, dá aos nossos caros amigos um livro de hinos.) – Lamento muito – disse Wimsey a Miss Murchison. – Acha que consegue suportar isto? Julgo que é o cântico final. O órgão, a harpa, o trombone, o saltério, a cítara e todo o tipo de música irromperam atroadores, quase rebentando os tímpanos, a assembleia ergueu as vozes em uníssono e Miss Murchison, para sua surpresa, deu consigo a acompanhar aquele cântico exultante – ao princípio embaraçada e depois com um belo fervor. Passando os portões, Passando os portões da Nova Jerusalém, Lavados no Sangue do Cordeiro. Wimsey, que parecia achar tudo aquilo muito divertido, cantarolava alegremente, sem o menor embaraço; se por estar acostumado àquilo ou meramente por ser uma daquelas pessoas seguras de si que, estejam onde estiverem, nunca se julgam fora do seu elemento, Miss Murchison não saberia dizer. Para seu alívio, o serviço religioso terminou com o hino e os presentes despediram-se, com muitos apertos de mão a todos. Os músicos esvaziaram polidamente na lareira a humidade concentrada nos


seus instrumentos de sopro e a senhora que tinha estado a tocar órgão cobriu o teclado e aproximouse para cumprimentar as visitas. Foi apresentada simplesmente como Bella, e Miss Murchison deduziu, corretamente, que era a mulher de Mr. Bill Rumm e a mãe de Esmeralda. – Ora bem – disse Bill –, pregar e cantar fazem sede... Aceitam uma chávena de chá ou de café, não aceitam? Wimsey explicou que tinham acabado de tomar chá, mas insistiu que a família comesse a sua refeição. – Inda não é bem hora do jantar – disse Mrs. Rumm. – Talvez se tu tratasses lá dos teus assuntos com a senhora e o cavalheiro, Bill, eles se dispusessem a sentar-se à mesa com a gente depois. É chispe – acrescentou, esperançada. – É muito simpático da sua parte – disse Miss Murchison, hesitante. – O chispe precisa de ser bem batido – disse Wimsey –, e como o assunto a tratar vai demorar algum tempo, aceitaremos com prazer... se tem a certeza de que não é incómodo. – Incómodo nenhum – disse Mrs. Rumm, toda animada. – Oito belos pés de porco e com um bocadinho de queijo chega facilmente. Anda daí, Meraldy, o teu papá tem negócios a tratar. – Mr. Peter vai cantar – disse a criança, pregando um olhar de reprovação em Wimsey. – Ora bem, não incomodes sua senhoria – ralhou Mrs. Rumm. – Francamente, envergonhas-me. – Eu canto depois do jantar, Esmeralda – disse Wimsey. – Vai lá embora como uma boa menina, senão faço-te caretas. Bill, trouxe-lhe uma nova aluna. – É sempre um prazer servi-lo, Lord Peter, sabendo como sei que é um trabalho do Senhor. Deus seja louvado. – Obrigado – disse Wimsey modestamente. – É uma questão simples, Bill, mas como esta jovem não tem experiência com fechaduras e coisas do género, trouxe-a comigo para você a ensinar. Sabe, Miss Murchison, antes de o Bill ver a luz... – Deus seja louvado! – atalhou Bill. – Era o ladrão e arrombador mais competente dos três reinos. Ele não se importa que eu lhe diga isto, porque se emendou e acabou com tudo isso e é agora um comum serralheiro, excelente e muito honesto. – Graças Lhe sejam dadas, a Ele que traz a vitória! – Mas, de tempos em tempos, quando eu preciso de uma ajudinha numa causa meritória, o Bill proporciona-me o benefício da sua grande experiência. – E, oh, que alegria que é, menina, aplicar ao serviço do Senhor os talentos que tão pecaminosamente usei. Seja louvado o Seu santo nome por trazer o bem do mal. – Tem toda a razão – disse Wimsey, com um aceno de cabeça. – Ora bem, Bill, eu estou de olho numa caixa de documentos de um advogado, que pode ou não conter algo que me ajudará a tirar de apuros uma pessoa inocente. Esta jovem tem acesso à dita caixa, Bill, se puder mostrar-lhe como a abrir. – Se? – resmungou Bill, com um desprezo soberano. – É claro que posso. Uma caixa de documentos, isso não é nada. Não exige saber nenhum. É como arrombar o mealheiro de uma criança, com aqueles cadeados de faz-de-conta. Não há caixa de documentos nesta cidade que eu não conseguisse abrir vendado, com luvas de boxe e com um pau de massa cozida. – Eu sei, Bill; mas não é você quem tem de o fazer. Consegue ensinar aqui a esta senhora como o abrir?


– É claro que consigo. Que tipo de fecho é, minha senhora? – Não sei – disse Miss Murchison. – Um fecho normal, acho eu. Quer dizer, tem o tipo usual de chave... não é das especiais nem nada do género. Mr... quer dizer, o advogado tem uma chave e Mr. Pond tem a outra. São chaves simples, com cilindro e pinos. – Oh! – disse Bill. – Então, em meia hora ensino-lhe tudo o que precisa de saber, menina. – Dirigiu-se a um armário e tirou dele meia dúzia de fechaduras e um molho de ganchos finos de metal com um aspeto curioso, enfiados numa argola como se fossem chaves. – São gazuas? – perguntou Miss Murchison com curiosidade. – É mesmo isso que são, menina. Obra do Diabo! – Abanou a cabeça enquanto tocava com carinho no aço brilhante. – Muitas vezes chaves como estas fizeram entrar pobres pecadores pela porta traseira do inferno. – Desta vez – disse Wimsey –, deixarão sair uma pobre inocente da prisão para a luz do Sol... se ele brilhar, neste clima horrendo. – Louvado seja Deus pelas suas muitas bênçãos! Bem, menina, a primeira coisa a compreender é a construção de uma fechadura. Ora olhe cá. Pegou numa das fechaduras e mostrou-lhe como, segurando a mola, a lingueta podia ser puxada para trás. – Não há necessidade de palavras finas, está a ver, menina? O cilindro e a mola... é quanto basta. Ora exprimente lá. Miss Murchison experimentou e forçou várias fechaduras com uma facilidade que a espantou. – Ora bem, menina, a dificuldade está em que, quando a fechadura está montada, não se podem usar os olhos. Mas tem o ouvido e o tato, que a Providência lhe deu (louvado seja o Seu nome!) para esse fim. Agora o que tem de fazer, menina, é fechar os olhos e a modos que ver com os dedos quando a mola está puxada para trás o suficiente para a lingueta passar. – Lamento, mas sou muito desajeitada – disse Miss Murchison à quinta ou sexta tentativa. – Ora, não se preocupe, menina. Tenha calma e vai ver que descobre a maneira certa de fazer a coisa a modos que de repente. Sinta só quando se solta e use as mãos. O senhor não quer experimentar uma fechadura com segredo, já que aqui está? Tenho aqui uma que é uma beleza. Foime dada pelo Sam, sabe de quem falo. Muita vez já tentei fazer-lhe ver que anda por maus caminhos. «Não, Bill», diz-me ele, «a religião não me serve para nada», diz ele, pobre ovelha tresmalhada, «mas não tenho nada contra ti, Bill», diz ele, «e gostava de te dar esta pequena recordação.» – Bill, Bill – disse Wimsey, acenando-lhe com um dedo reprovador –, parece-me que isto não foi obtido por meios honestos. – Bem, senhor, se eu soubesse quem era o dono, entregava-lha com todo o prazer. É bastante boa, está a ver? O Sam pôs o explosivo nas dobradiças e rebentou com a parte da frente inteira, fechadura e tudo. É pequena, mas é uma beleza... o padrão é novo, pelo menos para mim. Mas dei-lhe a volta – disse Bill com um orgulho impenitente – num par de horas. – Teria de ser uma peça bem complicada para o vencer, Bill. – Wimsey pôs a fechadura diante de si e começou a manipular o puxador movendo os dedos com uma delicadeza milimétrica e com o ouvido inclinado para detetar o som das linguetas a descerem. – Meu Deus! – disse Bill, desta vez sem nenhuma intenção religiosa. – Que arrombador de primeira seria se estivesse para aí virado... que Deus, na Sua misericórdia, não o permita! – Seria uma vida de muito trabalho para mim, Bill – disse Wimsey. – Que raio! Escapou-me desta


vez. Rodou o puxador e começou de novo. Quando o chispe ficou pronto, Miss Murchison já tinha adquirido uma considerável competência nos tipos mais usuais de fechadura e um substancial respeito pelo furto como profissão. – E não esteja com pressas, menina – foi a recomendação final de Bill –, senão, deixa arranhões na fechadura, o que só lhe ficaria mal. Uma bela peça, essa, não é, Lord Peter? – Ultrapassa-me, lamentavelmente – disse Wimsey com uma gargalhada. – É a prática – disse Bill –, é só uma questão de prática. Se tivesse começado mais cedo, seria um belo artista. – Suspirou. – Já não há muitos nos dias que correm, Deus seja louvado, que saibam fazer um trabalho realmente artístico. Aperta-se-me o coração ao ver uma coisa assim elegante como essa rebentada em mil pedaços com gelenhite. O que é a gelenhite? Qualquer tolo a pode usar, se não se importar de fazer uma barulheira infernal. É brutal, é o que eu acho. – Vá lá, não te ponhas a cismar nessas coisas do passado, Bill – disse Mrs. Rumm reprovadoramente. – Vem daí, vá, anda jantar. Se alguém cometer a malvadez de arrombar um cofre, que importa se o faz artisticamente ou não? – Não é mesmo de mulher?... com a sua licença, menina. – Bem, tu sabes que é verdade – disse Mrs. Rumm. – O que eu sei é que esse chispe parece muito artístico – disse Wimsey –, e é quanto basta para mim. Depois de comerem o chispe e de «Nazareth» ser cantado como prometido e recebido com grande admiração pela família Rumm, o serão terminou agradavelmente com um hino e Miss Murchison deu consigo a subir a Whitechapel Road com um molho de gazuas no bolso e alguns conhecimentos surpreendentes na cabeça. – Tem uns conhecidos bastante interessantes, Lord Peter. – Sim... bastante divertido, não é? Mas o Bill Venda dos Olhos é um dos melhores. Encontrei-o em minha casa uma noite e fiz uma espécie de contrato com ele. Até me deu umas lições e tudo. Ao princípio, era um bocado tímido, mas foi convertido por um outro amigo meu... é uma longa história... e, para resumir, dedicou-se ao negócio da serralharia e está a sair-se muito bem. Já se sente razoavelmente competente em relação a fechaduras? – Acho que sim. O que devo procurar depois de abrir a caixa? – Bem – disse Wimsey –, a questão é a seguinte. Mr. Urquhart mostrou-me o que, alegadamente, é a minuta de um testamento feito há oito anos por Mrs. Wrayburn. Anotei as linhas gerais num papel para si, Miss Murchison. Aqui tem. Mas o problema é que essa minuta foi datilografada numa máquina de escrever que, como a senhora me disse, foi comprada nova ao fabricante só há três anos. – Quer dizer que foi isso que ele esteve a datilografar na noite em que ficou até mais tarde no escritório? – É o que parece. Ora bem, porquê? Se ele estava de posse do rascunho original, porque é que não mo mostrou? De facto, não havia necessidade nenhuma de ele mo mostrar, a não ser que fosse para me enganar a respeito de alguma coisa. E depois, embora ele dissesse que tinha o documento em casa, e devia saber que o tinha lá, fingiu procurá-lo na caixa de Mrs. Wrayburn. Mais uma vez, porquê? Para me levar a pensar que já existia quando eu fui visitá-lo. A conclusão que eu tirei foi que, se existe um testamento, o seu conteúdo não é igual ao do que ele me mostrou.


– É o que parece, sem dúvida. – O que eu quero que procure é o verdadeiro testamento, o original ou a cópia devem lá estar. Não o tire, tente memorizar os principais pontos nele, especialmente os nomes do legatário ou dos legatários principais e do legatário residual. Tenha presente que o legatário residual fica com tudo o que não for especificamente deixado a outros ou tudo o que reste à morte do legatário antes da testadora. Quero especialmente saber se foi deixada alguma coisa a Philip Boyes ou se há alguma menção à família Boyes no testamento. Se não houver testamento, pode ser que haja algum outro documento interessante, tal como um fundo fiduciário secreto com instruções para distribuir o dinheiro de alguma maneira especial. Em suma, quero informações sobre quaisquer documentos que possam parecer de interesse. Não perca demasiado tempo a tomar apontamentos. Memorize os dados se puder e anote-os mais tarde, quando sair do escritório. E assegure-se de que não deixa as gazuas onde possam ser encontradas. Miss Murchison prometeu seguir as instruções e, como se aproximava um táxi nesse momento, Wimsey meteu-a nele e mandou-a para casa. 26 A norma de etiqueta antiquada a que Wimsey se refere ditava que a senhora presente «fizesse de mamã» e servisse o chá. (N. da T.) 27 Miss Murchison supõe inicialmente que Wimsey está a dizer-lhe que o nome do ex-arrombador é estranho. Rum tem esse significado em inglês, para além de ser também o nome da bebida alcoólica. (N. da T.)


CAPÍTULO CATORZE Mr. Norman Urquhart lançou um olhar ao relógio de parede, que indicava quatro e um quarto, e disse pela porta aberta: – Essas declarações já estão quase prontas, Miss Murchison? – Estou neste momento na última página, Mr. Urquhart. – Traga-mas mal as acabe. Têm de ser enviadas hoje para os Hanson. – Sim, Mr. Urquhart. Miss Murchison pôs-se a martelar ruidosamente as teclas, fazendo deslizar a alavanca de retorno com uma violência desnecessária e levando Mr. Pond a lamentar mais uma vez a intrusão de escriturários do sexo feminino. Ela completou a página, ornamentou o rodapé com um matraquear de linhas e pontos decorativos, soltou a folha, rodou o carreto, arrancando as folhas de papel almaço com uma pressa indecorosa, atirou o papel químico para o cesto dos papéis, ordenou as cópias, batendo com os seus quatro lados vigorosamente para ficarem simétricas e levou-as de um salto ao gabinete de Mr. Urquhart. – Não tive tempo de as ler de uma ponta à outra – disse. – Muito bem – respondeu Mr. Urquhart. Miss Murchison retirou-se, fechando a porta atrás de si. Pegou nos seus pertences, tirou um espelho de mão e aplicou desenvoltamente pó de arroz no seu nariz bastante grande, encafuou um punhado de artigos diversos na sua mala de mão já a abarrotar, enfiou umas folhas debaixo da capa da máquina de escrever, já pronta para o dia seguinte, e arrancou o chapéu do bengaleiro e enterrou-o na cabeça, enfiando madeixas soltas debaixo dele com dedos vigorosos e impacientes. A sineta de Mr. Urquhart soou – duas vezes. – Oh, que maçada! – disse Miss Murchison, afogueada. Arrancou de novo o chapéu e respondeu à chamada. – Miss Murchison – disse Mr. Urquhart com uma expressão de considerável irritação –, sabia que se esqueceu de um parágrafo inteiro na primeira página desta declaração? Miss Murchison corou ainda mais vivamente. – Oh, esqueci? Peço muita desculpa. Mr. Urquhart empunhou um documento semelhante em volume àquele famoso outro do qual se disse que não havia suficiente verdade no mundo para preencher uma declaração assim tão longa. – É uma grande maçada – disse ele. – É o mais longo e o mais importante dos três e é urgentemente necessário amanhã de manhã. – Não sei como é que posso ter cometido um erro tão crasso – murmurou Miss Murchison. – Eu fico a fazer serão para voltar a datilografá-lo. – Receio bem que tenha de o fazer. É uma pena, porque eu não poderei revê-lo, mas não há mais nada a fazer. Por favor reveja-o cuidadosamente desta vez e assegure-se de que os Hanson o têm lá antes das dez horas da manhã. – Sim, Mr. Urquhart. Serei extremamente cuidadosa. Lamento muito. Eu asseguro-me de que está


totalmente correto e vou entregá-lo em mão. – Muito bem, pode ser – disse Mr. Urquhart. – Mas que não volte a acontecer. Miss Murchison pegou nos papéis e saiu, com um ar incomodado. Tirou a capa da máquina de escrever com muito som e fúria, puxou com força as gavetas da secretária até elas baterem contra o travão, sacudiu as folhas de cima, o papel químico e o papel vegetal como um terrier sacode uma ratazana e atacou a máquina de escrever tempestuosamente. Mr. Pond, que tinha acabado de fechar à chave a sua secretária e estava a enrolar um cachecol de seda à volta do pescoço, olhou para ela com algum espanto. – Tem mais alguma coisa para datilografar hoje à noite, Miss Murchison? – Tenho de fazer esta maldita papelada toda outra vez – disse Miss Murchison. – Esqueci-me de um parágrafo na página um... tinha de ser logo na página um, claro... e ele quer esta tolice nos Hanson até às dez da manhã. Mr. Pond gemeu discretamente e abanou a cabeça. – Essas máquinas tornam as pessoas descuidadas – disse, reprovadoramente. – Nos velhos tempos, os escriturários pensavam duas vezes antes de cometerem erros idiotas, quando implicava copiar o documento todo outra vez à mão. – Ainda bem que eu não vivi nesses tempos – disse Miss Murchison secamente. – Eram uns autênticos escravos de galé. – E também não saíamos às quatro e meia – disse Mr. Pond. – Nesses tempos, trabalhávamos no duro. – Talvez trabalhassem mais horas – respondeu Miss Murchison –, mas não despachavam tanto trabalho como agora. – Trabalhávamos com precisão e perfeição – disse Mr. Pond, enfaticamente, enquanto Miss Murchison soltava irritadamente duas teclas que tinham ficado presas sob o seu toque apressado. A porta do gabinete de Mr. Urquhart abriu-se e a resposta que a datilógrafa tinha na ponta da língua ficou silenciada. Ele disse boa noite e saiu. Mr. Pond seguiu-o. – Suponho que consegue acabar antes de a funcionária da limpeza ir embora, Miss Murchison – disse ele. – Senão, por favor lembre-se de apagar a luz e de entregar a chave a Mrs. Hodges na cave. – Sim, Mr. Pond. Boa noite. Os seus passos ouviram-se na entrada, soaram de novo altos quando ele passou pela janela e desvaneceram-se na direção de Brownlow Street. Miss Murchison continuou a datilografar até lhe parecer que ele estava já no metro em Chancery Lane. Então, levantou-se, com um rápido olhar à sua volta, e aproximou-se de umas prateleiras altas apinhadas com caixas pretas de documentos, cada uma das quais apresentava o nome de um cliente em nítidas letras brancas. WRAYBURN estava ali, sem dúvida, mas tinha misteriosamente mudado de lugar. Esse facto, por si só, era inexplicável. Ela lembrava-se claramente de ter voltado a pôr a caixa no seu lugar, mesmo antes do Natal, em cima da pilha MORTIMER – SCROGGINS – LORD COOTE – DOLBY BROS e WINGFIELD; e aqui estava, dois dias depois do Natal, no fundo da pilha, debaixo de BODGERS SIR J. PENKRIDGE – FLATSBY & COATEN – TRUBODY LTD e UNIVERSAL BONE TRUST. Alguém tinha andado a fazer limpezas durante os feriados, aparentemente, e Miss Murchison achava improvável que tivesse sido Mrs. Hodges. Era uma maçada, porque todas as prateleiras estavam cheias, e seria necessário tirar para baixo


todas as caixas e empilhá-las nalgum lugar para poder chegar à caixa de WRAYBURN. E Mrs. Hodges não tardaria a chegar e, embora Mrs. Hodges realmente não importasse, poderia parecer estranho... Miss Murchison pegou na cadeira da sua secretária (porque a prateleira era bastante alta) e, pondo-se em cima dela, tirou para baixo UNIVERSAL BONE TRUST. A caixa era pesada e a cadeira (que era do tipo giratório e não daquelas modernas, com uma perna fina e costas com molas duras, que magoam as costas e obrigam uma pessoa a concentrar-se no trabalho), tremia enquanto Miss Murchison baixou cuidadosamente a caixa e a equilibrou no topo estreito do armário. Voltou a estender o braço para cima e tirou para baixo a caixa TRUBODY LTD, colocando-a em cima de BONE TRUST. Ergueu o braço pela terceira vez e pegou em FLATSBY & COATEN. Quando se baixou com essa caixa na mão, soaram passos à porta e uma voz atónita disse por trás dela: – Está à procura de alguma coisa, Miss Murchison? Miss Murchison estremeceu com tal violência que a traiçoeira cadeira girou um quarto de volta, quase a projetando para os braços de Mr. Pond. Desceu da cadeira atabalhoadamente, ainda com a caixa preta de documentos contra o peito. – Que susto que me pregou, Mr. Pond! Pensei que se tinha ido embora. – Também eu pensei o mesmo – disse Mr. Pond –, mas quando cheguei à estação de metro descobri que me tinha esquecido de um pequeno embrulho. Uma maçada... tive de voltar para trás. Viu-o nalgum lado? É um boião pequeno, embrulhado em papel pardo. Miss Murchison pousou FLATSBY & COATEN no assento da cadeira e olhou à sua volta. – Não parece estar na minha secretária – disse Mr. Pond. – Ora, ora, vou chegar muito atrasado. E não posso ir sem ele, porque é preciso para o jantar... de facto, é um pequeno boião de caviar. Temos convidados hoje à noite. Ora bem, onde é que eu o terei posto? – Talvez o tenha pousado quando foi lavar as mãos – sugeriu Miss Murchison, toda prestável. – Bem, pois é, talvez o tenha feito. – Mr. Pond saiu apressado e ela ouviu a porta da pequena casa de banho no patamar abrir-se com um rangido. Subitamente, lembrou-se de que tinha deixado a mala de mão aberta em cima da secretária. E se as gazuas estivessem à vista? Correu para a mala de mão no momento em que Mr. Pond regressava, triunfante. – Muito obrigado pela sua sugestão, Miss Murchison. Era mesmo lá que estava. Mrs. Pond teria ficado muito incomodada. Bem, mais uma vez boa noite. – Virou-se para a porta. – Oh, já agora, andava à procura de alguma coisa? – Andava à procura de um rato – respondeu Miss Murchison com um risinho nervoso. – Eu estava sentada a trabalhar quando o vi correr ao longo do topo do armário e... hum... pela parede acima por trás daquelas caixas. – São uns bichos nojentos – disse Mr. Pond. – O prédio está cheio deles. Eu já disse muitas vezes que devíamos ter aqui um gato. Mas a menina não tem hipótese de o apanhar agora. Não tem medo de ratos, ao que parece? – Não – disse Miss Murchison, mantendo o olhar fixo no rosto de Mr. Pond com um substancial esforço físico. Se as gazuas estavam, como lhe parecia que deviam estar, a expor indecentemente a sua anatomia aracnídea na secretária, seria uma loucura olhar nessa direção. – Não. No seu tempo, suponho que as mulheres tinham medo de ratos. – Sim, tinham – admitiu Mr. Pond –, mas nessa época, é claro, usavam saias mais compridas. – Uma maçada para elas – disse Miss Murchison. – Davam-lhes um aspeto muito gracioso – disse Mr. Pond. – Permita-me que a ajude a voltar a pôr


as caixas no lugar. – Vai perder o comboio – disse Miss Murchison. – Já o perdi – respondeu Mr. Pond, olhando para o seu relógio. – Vou ter de apanhar o das cinco e meia. – Pegou delicadamente na caixa de FLATSBY & COATEN e subiu perigosamente com ela nas mãos para o assento pouco estável da cadeira giratória. – É muito amável da sua parte – disse Miss Murchison, vendo-o pôr a caixa no seu lugar. – De modo nenhum. Se tiver a bondade de me passar as outras... Miss Murchison passou-lhe TRUBODY LTD e UNIVERSAL BONE TRUST. – Aqui está! – disse Mr. Pond completando a pilha e sacudindo o pó das mãos. – Agora, esperemos que o rato tenha desaparecido de vez. Eu vou falar a Mr. Urquhart para arranjarmos um gatinho adequado. – Isso seria uma ótima ideia – disse Miss Murchison. – Boa noite, Mr. Pond. – Boa noite, Miss Murchison. Os seus passos ouviram-se pelo corredor, soaram novamente mais altos por baixo da janela e, pela segunda vez, desvaneceram-se na direção de Brownlow Street. – Ufa! – disse Miss Murchison. Correu para a sua secretária. Os seus receios eram infundados. A mala de mão encontrava-se fechada e as chaves não estavam à vista. Voltou a pôr a cadeira no sítio e estava a sentar-se quando o estrépito de vassouras e baldes lá fora anunciou a chegada de Mrs. Hodges. – Oh! – disse Mrs. Hodges, parando na soleira da porta ao ver a senhora escriturária a datilografar industriosamente. – Peço desculpa, menina, mas não sabia que estava alguém aqui. – Desculpe, Mrs. Hodges. Tenho um trabalhinho para acabar. Mas a senhora faça o seu. Não se incomode comigo. – Não tem mal, menina – disse Mrs. Hodges. – Eu posso limpar o escritório de Mr. Partridge primeiro. – Bem, se tanto lhe faz – disse Miss Murchison. – Eu só tenho de datilografar umas páginas e... hum... fazer um resumo... umas notas, sabe, de uns documentos para Mr. Urquhart. Mrs. Hodges acenou com a cabeça e voltou a desaparecer. Daí a pouco tempo, um ruído atroador no andar de cima anunciou a presença dela no escritório de Mr. Partridge. Miss Murchison não esperou mais. Arrastou de novo a cadeira para junto das prateleiras, tirou rapidamente, uma após outra, as caixas BONE TRUST, TRUBODY LTD, FLATSBY & COATEN, SIR J. PENKRIDGE e BODGERS. O coração batia-lhe fortemente quando por fim pegou em WRAYBURN e levou a caixa para a secretária. Abriu a sua mala de mão e esvaziou-a sobre a secretária. O molho de gazuas tilintou no tampo, à mistura com um lenço de bolso, uma caixa de pó de arroz e um pente. Os pinos finos e brilhantes pareciam queimar-lhe os dedos. Quando pegou no molho de gazuas, à procura da mais adequada, ouviu uma pancada forte na janela. Girou na cadeira, aterrada. Não estava lá ninguém. Enfiando as gazuas no bolso do seu casaco desportivo, foi em bicos de pés até à janela e espreitou lá para fora. À luz do lampião, viu três garotos a tentarem trepar pelo gradeamento de ferro que protege a zona reservada de Bedford Row. O garoto que estava mais à frente viu-a e gesticulou, apontando para baixo. Miss Murchison acenou com a mão e berrou: – Vão-se embora!


A criança berrou algo ininteligível e voltou a apontar. Juntando dois mais dois, Miss Murchison deduziu pela pancada na vidraça, pelo gesto e pelo berro que uma bola valiosa tinha caído naquele espaço. Abanou a cabeça com severidade e voltou à sua tarefa. Mas o incidente recordara-lhe que a janela não tinha estores e que, ao clarão da luz elétrica, os seus movimentos eram tão visíveis para qualquer pessoa que passasse na rua como se ela estivesse num palco iluminado. Não tinha razão para supor que Mr. Urquhart ou Mr. Pond se encontravam nas imediações, mas a sua consciência pesada incomodava-a. Além disso, um polícia que por ali passasse não conseguiria reconhecer umas gazuas a cem metros? Voltou a espreitar lá para fora. Seria só nervosismo ou estaria mesmo uma pessoa robusta de azul escuro a sair de Hand Court? Alarmada, Miss Murchison fugiu da janela e, pegando na caixa de documentos, levou-a em peso para o gabinete de Mr. Urquhart. Aqui, pelo menos, ninguém poderia vê-la. Se entrasse alguma pessoa – até mesmo Mrs. Hodges –, a sua presença poderia causar surpresa, mas ela ouvi-la-ia chegar e estaria prevenida. Tinha as mãos frias e a tremer e não se encontrava nas melhores condições para tirar todo o partido das instruções de Bill Venda dos Olhos. Respirou fundo algumas vezes. Tinha-lhe sido dito que não se apressasse. Muito bem, então não o faria. Escolheu cuidadosamente uma chave e enfiou-a na fechadura. Durante séculos, pareceu-lhe, escarafunchou sem resultado, até por fim sentir a mola pressionar a extremidade em gancho. Empurrando e erguendo firmemente com uma mão, introduziu a segunda chave. Sentiu a lingueta mexer – daí a um instante ouviu-se um estalido seco e a fechadura abriu-se. Não havia um grande número de documentos na caixa. O primeiro era uma longa lista de títulos, com o cabeçalho «Títulos depositados no Banco Lloyd’s». A seguir viu cópias de alguns títulos, cujos originais estavam igualmente depositados. Depois, uma pasta cheia de correspondência. Algumas eram cartas da própria Mrs. Wrayburn, sendo a última datada de cinco anos antes. Para além disso, havia cartas de inquilinos, de bancos e de corretores, com cópias das respostas enviadas do escritório e assinadas por Norman Urquhart. Miss Murchison apressou-se a folhear impacientemente todos aqueles documentos. Não havia sinal de um testamento ou da cópia de um testamento – nem sequer da dúbia minuta que o advogado mostrara a Wimsey. Restavam agora apenas dois documentos no fundo da caixa. Miss Murchison pegou no primeiro. Era uma procuração, datada de janeiro de 1925, concedendo a Norman Urquhart plenos poderes para representar Mrs. Wrayburn. O segundo tinha mais folhas e estava muito bem atado com fio vermelho. Miss Murchison soltou o fio e desdobrou o documento. Era uma escritura de transmissão de bens, transferindo todos os bens de Mrs. Wrayburn para Norman Urquhart, com usufruto para si própria, desde que ele depositasse na conta-corrente dela uma soma fixa anual para as suas despesas. A escritura estava datada de julho de 1920 e era acompanhada por uma carta, que Miss Murchison leu a toda a pressa. Appleford, Windle, 15 de maio de 1920 MEU QUERIDO NORMAN, Muito obrigado, meu querido rapaz, pela tua carta no meu aniversário e pelo lindo lenço de pescoço. É muito simpático da tua parte lembrares-te tão fielmente da tua velha tia. Ocorre-me que, agora que já tenho mais de oitenta anos, chegou a altura de pôr os meus negócios inteiramente nas tuas mãos. Tu e o teu pai administraram muito bem os meus assuntos todos estes anos e tu, evidentemente, sempre me consultaste


devidamente antes de tomares qualquer iniciativa em relação aos meus investimentos. Mas eu estou a ficar uma senhora tão velha que me sinto desfasada do mundo moderno e não posso continuar a fingir que as minhas opiniões têm algum valor real. Sou uma velha senhora cansada, também, e, embora tu me expliques sempre tudo muito claramente, ter de escrever cartas é uma maçada e um fardo para mim, na minha idade avançada. Por isso, decidi deixar-te os meus bens, com usufruto meu em vida, para que tu tenhas plenos poderes para administrar tudo à tua discrição, sem teres de andar sempre a consultar-me. E também, embora eu ainda seja forte e tenha saúde, apraz-me dizê-lo, e ainda esteja de posse das minhas faculdades mentais, essa situação pode alterar-se a qualquer momento. Eu posso ficar paralisada ou fraca de espírito ou querer usar o meu dinheiro de uma forma tonta, como já aconteceu antes a outras senhoras de idade. Por conseguinte, não te importas de redigir um documento desse tipo e trazer-mo para eu o assinar? E, ao mesmo tempo, darte-ei instruções quanto ao meu testamento. Agradeço-te uma vez mais pelos votos de bom aniversário. A tua afetuosa tia-avó, ROSANNA WRAYBURN

– Hurra! – disse Miss Murchison. – Sempre havia um testamento! E esta escritura... também é importante, provavelmente. Voltou a ler a carta, passou os olhos pelas cláusulas da escritura, verificando que Norman Urquhart era nomeado como único administrador, e por fim anotou mentalmente alguns dos itens maiores e mais importantes da lista de títulos. Em seguida, voltou a colocar os documentos pela sua ordem original, fechou a caixa – que se submeteu ao seu tratamento como um anjo –, levou-a para fora, pôla no seu lugar, empilhou as outras caixas em cima dela e estava de novo sentada à máquina de escrever quando Mrs. Hodges entrou no escritório. – Acabei agora mesmo, Mrs. Hodges – disse ela, num tom bem-disposto. – Julguei que ainda não tinha acabado – disse Mrs. Hodges. – Não ouvi a máquina de escrever. – Estava a tomar apontamentos à mão – disse Miss Murchison. Amachucou a primeira página da declaração e atirou-a para o cesto dos papéis juntamente com a folha que tinha começado a datilografar. Da gaveta da sua secretária tirou uma primeira página corretamente datilografada, anteriormente preparada para esse efeito, juntou-a ao maço de folhas, pôs o original e as cópias necessárias num envelope, fechou-o, endereçou-o a Messrs. Hanson & Hanson, vestiu o casaco e pôs o chapéu e saiu, despedindo-se amigavelmente de Mrs. Hodges à porta. Uma curta caminhada levou-a ao escritório dos associados Hanson, em cuja caixa do correio meteu o documento. Em seguida, com passos decididos e a cantarolar baixinho, dirigiu-se à paragem de autocarro no cruzamento de Theobalds Road e de Gray’s Inn Road. «Acho que mereço um jantarinho no Soho», disse Miss Murchison para consigo. Cantarolava de novo ao virar de Cambridge Circus para Frith Street. «Mas o que é esta horrenda melodia?» perguntou a si mesma abruptamente. Uma pequena reflexão recordou-lhe que era «Passando pelos portões, Passando pelos portões...» – Valha-me não sei o quê – disse Miss Murchison. – Estou a ficar passada do juízo, é o que é.


CAPÍTULO QUINZE Lord Peter deu os parabéns a Miss Murchison e ofereceu-lhe um almoço bastante especial no restaurante Rules, onde há um conhaque velho particularmente bom para quem aprecia esse tipo de coisa. De facto, Miss Murchison acabaria por chegar um pouco atrasada ao escritório de Mr. Urquhart e com a pressa esqueceu-se de devolver as gazuas. Mas, quando o vinho é bom e a companhia agradável, uma pessoa nem sempre consegue lembrar-se de tudo. O próprio Wimsey, exercendo um autodomínio admirável, voltou para o seu apartamento para pensar, em vez de se precipitar para a Prisão de Holloway. Embora fosse uma obra de caridade animar o espírito da prisioneira (era dessa maneira que ele justificava as suas visitas quase diárias), não podia esconder a si mesmo que seria muito mais útil e caritativo obter provas da inocência dela. Até àquele momento, ainda não tinha feito grandes progressos. A teoria do suicídio pareceu muito promissora quando Norman Urquhart lhe apresentou a minuta do testamento; mas a fiabilidade dessa minuta estava agora completamente minada. Havia ainda a vaga esperança de encontrar o pacotinho de pó branco do pub Nine Rings, mas, à medida que os dias iam passando, essa esperança ia-se dissipando a ponto de quase desaparecer. Incomodava-o não intervir ativamente na questão – queria precipitar-se para Gray’s Inn Road, contrainterrogar, pressionar, subornar, revistar todas as pessoas e todos os locais no pub e à volta deste, mas sabia que a polícia o faria melhor do que ele. Porque é que Norman Urquhart tinha tentado enganá-lo em relação ao testamento? Poderia facilmente ter-se recusado a prestar-lhe informações. Devia haver algum mistério naquilo. Mas se não fosse de facto o legatário, Urquhart estava a jogar um jogo bastante perigoso. Se a velha senhora morresse e a legalidade do testamento tivesse de ser provada, muito provavelmente os factos seriam tornados públicos – e a velha senhora poderia morrer a qualquer momento. Quão fácil seria, pensou ele, lamentavelmente, apressar um nadinha a morte de Mrs. Wrayburn. Ela tinha noventa e três anos e estava muito débil. Uma dose excessiva de alguma coisa, um abanão, até mesmo um ligeiro choque – não era correto ter pensamentos como esse. Perguntou-se quem viveria com a velha senhora e olharia por ela... Estava-se a 30 de dezembro e ele ainda não tinha nenhum plano. Os volumes majestosos nas suas prateleiras, fila atrás de fila de santos, historiadores, poetas, filósofos, troçavam da sua impotência. Toda aquela sabedoria e toda aquela beleza, e não eram capazes de lhe mostrar como salvar de uma morte sórdida por enforcamento a mulher que ele desejava imperiosamente. E ele que se julgara bastante esperto nesse tipo de coisa. A enorme e complicada imbecilidade das coisas rodeava-o como uma armadilha. Rangeu os dentes e enraiveceu-se desesperado, percorrendo a grandes passadas a sala sofisticada, rica e fútil. O enorme espelho veneziano por cima do fogão de sala refletia-lhe a cabeça e os ombros. Viu um rosto de pele clara e com um ar tonto, com cabelo da cor da palha acamado para trás; um monóculo preso incongruentemente sob uma sobrancelha que tremelicava absurdamente; um queixo barbeado na perfeição, sem um único pelo, imberbe; um colarinho bastante alto, engomado impecavelmente, uma gravata com um nó elegante e de cor a


condizer com o lenço que despontava timidamente do bolso do peito do casaco de um fato caro dos alfaiates de Savile Row. Pegou num bronze pesado da prateleira sobre o fogão de sala – um objeto belo; ao pegar nele, os seus dedos acariciaram a pátina – e sentiu-se dominado pelo impulso de estilhaçar o espelho e o rosto refletido nele, de soltar uivos de animal e fazer gestos descontrolados. Que tolice! Uma pessoa não podia fazer uma coisa dessas. As inibições herdadas de vinte séculos de civilização atavam uma pessoa de mãos e pés com as restrições do ridículo. E se ele estilhaçasse o espelho? Não aconteceria nada. Bunter entraria na sala, impávido e sereno, varreria os vidros para um apanhador, recomendaria um banho quente e uma massagem. E no dia seguinte seria encomendado um novo espelho, porque senão as pessoas que ali entrassem fariam perguntas e lamentariam educadamente os danos acidentais ao antigo espelho. E Harriet Vane seria enforcada na mesma. Wimsey recompôs-se, mandou vir o chapéu e o casaco e foi de táxi visitar Miss Climpson. – Tenho uma tarefa – disse-lhe ele, mais abruptamente do que era seu costume – de que gostaria que se encarregasse a senhora. Não posso confiar em mais ninguém. – Que simpático da sua parte dizê-lo dessa maneira – disse Miss Climpson. – O problema é que não posso de maneira nenhuma dizer-lhe como a fazer. Tudo depende do que a senhora encontrar quando lá chegar. Quero que vá a Windle, em Westmorland, e visite uma idosa senil e paralítica chamada Mrs. Wrayburn, que vive numa casa chamada Applefold. Não sei quem olha por ela nem como a senhora poderá entrar-lhe em casa. Mas tem de o fazer e de descobrir onde ela guarda o testamento e, se possível, vê-lo. – Ora, ora! – disse Miss Climpson. – E o que é ainda pior – disse Wimsey – é que só tem uma semana para o fazer. – Isso é muito pouco tempo – disse Miss Climpson. – Sabe – disse Wimsey –, a não ser que possamos dar uma razão muito boa para um adiamento, o mais certo é o caso Vane ser julgado logo no início das próximas sessões. Se eu conseguisse persuadir os advogados da defesa de que há a mínima probabilidade de obter novas provas, eles poderiam requerer um adiamento. Mas neste momento não tenho nada que pudesse ser considerado prova... só um palpite extremamente vago. – Estou a ver – disse Miss Climpson. – Bem, nenhum de nós pode dar mais do que o seu melhor, e é essencial manter a fé. Ela move montanhas, segundo nos dizem. – Então, por amor de Deus, mantenha uma boa reserva de fé – disse Wimsey sombriamente –, porque, tanto quanto vejo, esta tarefa é como mover os Himalaias e os Alpes, com uma parte do gélido Cáucaso e um nadinha das Montanhas Rochosas à mistura. – Pode contar comigo para dar o meu melhor – respondeu Miss Climpson –, e pedirei ao nosso querido vigário que diga uma missa por intenção de alguém envolvido numa difícil tarefa. Quando quer que parta? – Imediatamente – disse Wimsey. – Parece-me que é melhor que vá sem disfarces e que se instale no hotel local... não... numa pensão; terá mais oportunidades de ouvir mexericos. Não sei grande coisa sobre Windle, a não ser que há lá uma fábrica de calçado e que as vistas são boas, mas não é muito grande e suponho que toda a gente conheça Mrs. Wrayburn. Ela é muito rica e foi bastante famosa na sua época. A pessoa de quem terá de se aproximar é a senhora... deve haver alguma... que cuida de Mrs. Wrayburn e a serve e, genericamente, está sempre na companhia dela e junto ao leito dela e essas coisas todas. Quando descobrir o ponto fraco dela, explore-o quanto puder. Oh! A


propósito... é bem possível que o testamento não esteja lá, mas nas mãos de um tipo que é advogado, um tal Norman Urquhart, que tem escritório em Bedford Row. Se assim for, só terá de puxar pela língua às pessoas para descobrir alguma coisa, seja o que for, contra ele. Ele é sobrinho-neto de Mrs. Wrayburn e vai visitá-la às vezes. Miss Climpson tomou nota destas instruções. – E agora vou pôr-me a andar e deixar que trate da coisa – disse Wimsey. – Levante o dinheiro que precisar da conta da firma. E se tiver necessidade de alguma coisa em especial, mande-me um telegrama.

Ao deixar Miss Climpson, Lord Peter Wimsey viu-se mais uma vez dominado por Weltschmerz e por autocompaixão. Mas agora estes assumiam a forma de uma melancolia suave e generalizada. Convencido da sua própria futilidade, decidiu fazer o pouco bem que estivesse ao seu alcance antes de se retirar para um mosteiro ou para a vastidão gelada da Antártida. Dirigiu-se de táxi para a Scotland Yard e pediu para falar com o inspetor-chefe Parker. Parker estava no seu gabinete a ler um relatório que tinha acabado de chegar. Cumprimentou Wimsey com uma expressão que parecia mais de embaraço do que de encanto. – Veio cá por causa daquele pacote de pó branco? – Desta vez, não – disse Wimsey. – Suponho que nunca mais saberá nada sobre ele. Não... é uma matéria bastante mais... hum... delicada. É sobre a minha irmã. Parker sobressaltou-se e pôs o relatório de lado. – Sobre Lady Mary? – Hum... sim. Sei que ela tem andado consigo... hum... em jantares e coisas do género, não? – Lady Mary honrou-me... em uma ou duas ocasiões... com a sua companhia – disse Parker. – Eu não pensei... eu não sabia... quer dizer, eu compreendi... – Ah! Mas será que compreendeu mesmo, essa é que é a questão – disse Wimsey, solenemente. – Está a ver, a Mary é uma moça às direitas, embora o diga eu, e... – Asseguro-lhe – respondeu Parker – que não há necessidade de mo dizer. Julga que eu interpretaria erradamente a simpatia dela para comigo? Hoje em dia é habitual que as senhoras da mais elevada índole jantem sem pau de cabeleira com os seus amigos, e Lady Mary tem... – Não estou a sugerir um pau de cabeleira – disse Wimsey. – A Mary não aceitaria tal e eu acho que é tudo uma treta, seja como for. De qualquer maneira, como irmão dela e isso tudo... na realidade, este papel cabe ao Gerald, é claro, mas a Mary e ele não se dão bem, sabe, e não é provável que ela lhe murmurasse ao ouvido nenhuns segredos, especialmente já que tudo seria contado à Helen... o que é que eu ia dizer? Oh, sim... como irmão da Mary, sabe, suponho que é, por assim dizer, meu dever dar um empurrãozinho e uma palavrinha aqui e ali onde seja necessário. Parker pôs-se a picar o mata-borrão pensativamente. – Não faça isso – disse Wimsey –, estraga a caneta. Pegue num lápis. – Suponho – disse Parker – que não devia ter partido do princípio de que... – De que princípio partiu, meu velho? – perguntou Wimsey, com a cabeça tombada como um pardal. – De nenhum a que ninguém pudesse objetar – respondeu Parker acaloradamente. – Em que é que está a pensar, Wimsey? Eu bem vejo que não é apropriado, do vosso ponto de vista, que Lady Mary


Wimsey jante em público em restaurantes com um polícia, mas se imagina que alguma vez eu lhe disse uma palavra que não pudesse ser dita com a maior decência... –... na presença da mãe dela, está a cometer um erro contra a mulher mais pura e mais doce que alguma vez viveu e a insultar o seu amigo – interrompeu Peter, tirando-lhe as palavras da boca e rematando-as com uma conclusão apressada. – Que perfeito vitoriano que você é, Charles. Gostava de o meter numa redoma de vidro. É claro que o Charles não lhe disse uma palavra que fosse. O que eu quero saber é: porquê? Parker fitou-o. – Nos últimos cinco anos – disse Wimsey –, tem andado a olhar como um carneiro mal morto para a minha irmã e a saltar como uma lebre quando o nome dela é mencionado. Qual é o significado disso? Não é ornamental. Não é excitante. Você dá cabo dos nervos à moça. Faz-me ter uma fraca opinião da sua coragem, se me permite dizer-lho. Um homem não gosta de ver outro ficar todo tremelicante por causa da irmã... pelo menos, não um tremelique assim tão prolongado. Fica mal. É irritante. Porque não bater no seu peito másculo e dizer «Peter, meu velho nabo querido, decidi entrar para a família e ser seu irmão»? O que é que está a impedi-lo? É o Gerald? Ele é um asno, eu sei, mas não é mau rapaz, na verdade. É a Helen? Ela é um bocado incomodativa, mas não precisa de se dar muito com ela. Sou eu? Porque, se é isso, eu ando a pensar tornar-me eremita... houve um Pedro Eremita, não houve? Por isso, eu não me atravessaria no seu caminho. Confesse lá qual é a dificuldade, meu velho, e despachamo-la num veículo discreto. Ora vá! – Você.. está a perguntar-me...? – Estou a perguntar-lhe quais são as suas intenções, com os diabos! – disse Wimsey. – E se isso não é suficientemente vitoriano, não sei o que mais fazer. Compreendo perfeitamente que tenha dado tempo à Mary para ela recuperar daquele infeliz caso do Cathcart e do tal Goyles, mas, com mil diabos, meu querido amigo, uma pessoa pode exagerar na delicadeza. Não pode contar que uma moça fique à espera para sempre, não é? Está à espera de um ano bissexto ou coisa do género? – Olhe lá, Peter, não seja um tolo rematado. Como é que eu posso pedir à sua irmã que se case comigo? – Como o fazer é problema seu. Podia dizer «E que me diz a um matrimoniozinho, minha querida?» É atual, simples e inequívoco. Ou podia ajoelhar-se e dizer «Dá-me a honra da sua mão e do seu coração?», que é bonito e antiquado e tem o mérito da originalidade nos tempos que correm. Ou podia escrever-lhe uma carta, mandar-lhe um telegrama ou telefonar-lhe. Mas deixo isso à sua preferência pessoal. – Não está a falar a sério. – Oh, meu Deus! Alguma vez conseguirei superar esta minha reputação desastrosa de ser um brincalhão? Está a tornar a Mary terrivelmente infeliz, Charles, e do que eu gostava era que se casasse com ela de uma vez por todas. – A torná-la infeliz? – disse Parker, quase aos berros. – Eu... a ela... infeliz? Wimsey bateu com o dedo na testa, compenetrado. – Madeira... madeira sólida! Mas a última pancada parece ter penetrado. Sim, você... ela... infeliz... compreende agora? – Peter... se realmente julgou que... – Não se ponha com essas cenas comigo – disse Wimsey. – É um desperdício. Guarde-as para a Mary. Eu já cumpri o meu dever fraternal e acabou. Acalme-se. Volte lá para os seus relatórios...


– Oh, meu Deus, sim – disse Parker. – Antes que me esqueça, tenho um relatório para si. – Tem? Porque é que não disse logo? – Você não me deixou. – Bem, o que é? – Encontrámos o pacote. – O quê? – Encontrámos o pacote. – Encontraram-no mesmo? – Sim. Um dos empregados do pub... – Quero lá saber dos empregados do pub. Tem a certeza de que é mesmo o tal pacote? – Oh, sim, identificámo-lo. – Continue. Analisaram-no? – Sim, analisámo-lo. – Bem, e o que é? Parker olhou para ele com a expressão de quem vai dar más notícias e disse, com relutância: – Bicarbonato de sódio.


CAPÍTULO DEZASSEIS Mr. Crofts, compreensivelmente, comentou: «Eu bem lhe disse.» Sir Impey Biggs observou secamente: «Bastante lamentável.» Relatar a vida diária de Lord Peter Wimsey durante a semana seguinte não seria nem caritativo nem edificante. Uma inatividade forçada produz sintomas de irritação no melhor dos homens. Nem a felicidade imbecil do inspetor-chefe Parker e de Lady Mary Wimsey teve o condão de o reconfortar, acompanhada como veio de maçadoras demonstrações de afeto por ele. Como o homem na história de Max Beerbohm, Wimsey «detestava ser comovente». Só se sentiu moderadamente animado ao ouvir dizer a Freddy Arbuthnot que se descobrira que Mr. Norman Urquhart estava mais ou menos profundamente envolvido nos desastres do Fundo Megatherium. Miss Kitty Climpson, por outro lado, estava envolvida no que ela própria gostava de chamar «um redemoinho de atividade». Uma carta, escrita dois dias depois da sua chegada a Windle, fornece-nos uma grande abundância de pormenores.


Hillside View, Windle, Westmorland 1 de janeiro de 1930 MEU CARO LORD PETER, tenho a certeza de que estará ansioso por saber, o mais cedo possível, como estão a correr as coisas, e, embora eu só cá esteja há um dia, julgo realmente que não me saí tão mal como isso, considerando as circunstâncias! O meu comboio chegou bastante tarde na segunda- -feira à noite, depois de uma viagem extremamente maçadora, com uma paragem lúgubre em Preston, embora, graças à sua insistência para que eu viajasse em primeira classe, eu não tenha ficado realmente nada cansada! Ninguém imaginaria que grande diferença fazem estes confortos extras, especialmente quando a idade já não perdoa, e, depois das viagens desconfortáveis que tive de suportar nos meus tempos de pobreza, sinto que estou a viver num luxo quase pecaminoso! A carruagem estava bem aquecida – de facto, excessivamente, e eu teria gostado de abrir a janela, mas havia um homem de negócios muito gordo, agasalhado até aos olhos com casacos e coletes de lã, que objetava fortemente ao ar fresco! Os homens atualmente são umas tais FLORES DE ESTUFA, não é verdade? Nada como o meu querido pai, que nunca permitia que se acendesse a lareira em casa antes do dia 1 de novembro ou depois do dia 31 de março, mesmo que o termómetro marcasse temperaturas negativas! Não tive dificuldade em arranjar um quarto confortável no Hotel da Estação, embora fosse tarde. Antigamente, uma senhora solteira que chegasse sozinha à meia-noite com uma mala não seria propriamente considerada respeitável – que maravilhosa diferença se encontra hoje em dia! Sinto-me grata por ter vivido para ver tais mudanças, porque, digam o que disserem as pessoas sobre o maior decoro e modéstia das mulheres nos tempos da rainha Vitória, quem se lembra das condições nessa altura sabe como eram difíceis e humilhantes! Ontem de manhã, é claro, o meu primeiro objetivo foi encontrar uma pensão adequada, de acordo com as suas instruções, e tive a sorte de encontrar esta casa à segunda tentativa. É muito bem dirigida e refinada, e encontrei três senhoras de idade que são hóspedes permanentes e estão bem a par de todos os MEXERICOS da cidade, de modo que nada poderia ser mais vantajoso para o nosso objetivo! Mal assegurei o quarto, saí para fazer uma pequena expedição de reconhecimento. Encontrei um guarda muito solícito na rua principal e perguntei-lhe onde poderia encontrar a casa de Mrs. Wrayburn. Ele conhecia-a muito bem e aconselhou-me a apanhar o autocarro e disse que seria um penny até ao pub Fisherman’s Arms e, daí, cerca de cinco minutos a pé. Eu segui as indicações e o autocarro levou-me ao campo, a um cruzamento, com o Fisherman’s Arms numa esquina. O cobrador foi muito educado e prestável e indicou-me o caminho, pelo que não tive nenhuma dificuldade em encontrar a casa. É uma bela casa antiga, com um grande jardim a toda a volta – uma casa bastante grande, construída no século XVIII, com um pórtico italiano e um relvado encantador com um cedro e canteiros de flores, e no verão deve ser um verdadeiro jardim do Paraíso. Fiquei a olhar para ela da estrada durante algum tempo – não me pareceu que fosse um comportamento peculiar, se alguém me visse, porque qualquer pessoa poderia interessar-se por uma propriedade antiga como aquela. A maioria das persianas estava corrida, como se a maior parte da casa estivesse desabitada, e não vi nenhum jardineiro nem qualquer outra pessoa por ali – suponho que não há muito a fazer no jardim nesta época do ano. No entanto, saía fumo de uma das chaminés, pelo que havia alguns sinais de vida na casa. Dei um pequeno passeio pela estrada fora e depois voltei para trás e passei de novo pela casa, e desta vez vi uma criada a dobrar uma esquina da casa, mas é claro que ela estava demasiado longe para eu poder dirigir-lhe a palavra. Por conseguinte, apanhei o autocarro de volta e almocei na pensão Hillside View, para travar conhecimento com as outras hóspedes. Naturalmente, não quis parecer logo demasiado interessada, por isso não disse nada sobre a casa de Mrs. Wrayburn ao princípio, limitando-me a falar genericamente sobre Windle. Tive alguma dificuldade em aparar as perguntas das simpáticas senhoras, a quem intrigava muito a razão de uma estranha ter vindo para Windle nesta época do ano, mas, sem faltar muito à verdade, parece-me que as deixei com a impressão de que tinha recebido uma pequena fortuna (!) e andava a visitar a Região dos Lagos para encontrar um local adequado no qual me instalar no próximo verão! Falei sobre pintura – na nossa juventude, fomos todas ensinadas a dedicar algum tempo à aguarela, de modo que pude exibir um conhecimento técnico suficiente para as convencer! Isso deu-me uma oportunidade bastante boa para fazer perguntas sobre a casa. Que bela mansão antiga, disse eu, e perguntei se lá vivia alguém. (Evidentemente, não me saí com isto de chofre – esperei até elas me falarem dos muitos locais pitorescos na região que poderiam interessar a uma artista!) Mrs. Pegler, uma senhora muito robusta e DENGOSA com uma LÍNGUA AFIADA (!) disse-me tudo sobre a casa. Meu caro Lord Peter, o que eu não sei agora sobre a perversidade extraordinária da vida de Mrs. Wrayburn em jovem NÃO VALE A PENA SABER!! Mas o mais relevante é que Mrs. Pegler


me disse o nome da enfermeira e dama de companhia de Mrs. Wrayburn. Chama-se MISS BOOTH, é enfermeira aposentada, tem cerca de sessenta anos e vive sozinha na casa com Mrs. Wrayburn, para além das criadas e de uma governanta. Quando ouvi dizer que Mrs. Wrayburn era muito velha e estava paralítica e muito débil, perguntei se não seria muito perigoso que Miss Booth fosse a única pessoa a cuidar dela, mas Mrs. Pegler disse que a governanta era uma pessoa de extrema confiança que já estava ao serviço de Mrs. Wrayburn há muitos anos e era bastante capaz de olhar por ela na ausência de Miss Booth. Portanto, parece que Miss Booth sai ocasionalmente! Ninguém nesta pensão parece conhecê-la pessoalmente, mas dizem que é vista com frequência na cidade envergando o seu uniforme de enfermeira. Consegui obter uma descrição muito razoável dela, pelo que, se a encontrar por acaso, atrevo-me a dizer que saberei o suficiente para a reconhecer! Isto é realmente tudo o que consegui descobrir num dia. Espero que não fique muito dececionado, mas vi-me obrigada a escutar uma terrível quantidade de história local de um tipo ou de outro, e, evidentemente, não podia FORÇAR a conversa a desviar-se para Mrs. Wrayburn de alguma forma suspeita. Transmitir-lhe-ei mal as saiba todas as informações, por mais insignificantes que sejam. Com os meus melhores cumprimentos, KATHERINE ALEXANDRA CLIMPSON

Miss Climpson terminou a carta na privacidade do seu quarto e guardou-a cuidadosamente na sua espaçosa mala de mão antes de descer para o andar de baixo. Uma longa experiência de vida em pensões dizia-lhe que mostrar abertamente um envelope endereçado a um membro da nobreza, por menor que este fosse, seria atrair desnecessariamente a curiosidade. É verdade que consolidaria o seu estatuto aos olhos das outras pessoas, mas naquele momento Miss Climpson não queria propriamente que as luzes da ribalta ficassem assestadas sobre si. Esgueirou-se silenciosamente pela porta da entrada e dirigiu-se para o centro da cidade. No dia anterior, tinha visto uma casa de chá principal, duas em ascensão e em competição, uma ligeiramente ultrapassada e em declínio, da cadeia Lyons, e quatro obscuras e, no geral, não dignas de atenção, que combinavam o serviço de pastelaria com a venda de doçarias. Eram agora dez e meia. Na próxima hora e meia, poderia, com um pouco de esforço, passar em revista toda aquela parte da população de Windle que se dava ao luxo de tomar café a meio da manhã. Meteu a carta no correio e em seguida debateu consigo própria por onde começar. Inclinava-se para deixar a casa de chá da cadeia Lyons para outro dia. Era uma Lyons vulgar, sem orquestra nem bebidas gaseificadas. Pensou que a sua clientela seria predominantemente constituída por donas de casa e empregados de escritório. Das outras quatro, a mais promissora era, talvez, a Central. Era bastante grande, bem iluminada e acolhedora, e ouvia-se música vinda lá de dentro. As enfermeiras usualmente gostam de espaços grandes, bem iluminados e melodiosos. Mas a Central tinha uma desvantagem. Quem viesse da direção da casa de Mrs. Wrayburn teria de passar por todas as outras para lá chegar. Este facto desqualificava-a como posto de observação. Desse ponto de vista, a vantagem era da pastelaria Ye Cosye Corner, de onde se avistava a paragem do autocarro. Por conseguinte, Miss Climpson decidiu iniciar a sua campanha nesse local. Escolheu uma mesa junto à montra, mandou vir um café e um prato de bolachas digestivas e encetou a sua vigília. Ao fim de meia hora, período durante o qual nenhuma senhora com farda de enfermeira foi avistada, mandou vir outro café e uns pastéis. Várias pessoas – na sua maior parte mulheres – entraram no salão de chá, mas nenhuma delas poderia de algum modo ser identificada como Miss Booth. Às onze e meia, Miss Climpson sentiu que ficar ali mais tempo daria nas vistas e poderia irritar a gerência. Pagou a conta e saiu. A Central tinha bastantes mais clientes do que Ye Cosye Corner e era melhor em certos aspetos, com cadeiras de verga confortáveis em vez de cadeiras de carvalho envelhecido e empregadas de mesa despachadas em vez de lânguidas senhoras pretensamente da alta sociedade vestidas com indumentárias de linho. Miss Climpson mandou vir mais um café e um pão com manteiga. Não havia


mesas livres junto à montra, mas ela encontrou uma perto do lugar da orquestra, de onde poderia vigiar todo o salão. Um véu azul a esvoaçar à porta fez-lhe bater o coração, mas afinal pertencia a uma jovem robusta com duas crianças e um carrinho de bebé, e a sua esperança desvaneceu-se mais uma vez. Ao meio-dia, Miss Climpson reconheceu que não obtivera resultados na Central. A sua última visita foi à Oriental – um estabelecimento singularmente desadequado para a espionagem. Era constituído por três salas muito pequenas de forma irregular, fracamente iluminadas por lâmpadas de quarenta watts em quebra-luzes japoneses e ainda mais veladas por cortinados de contas de vidro e reposteiros. Miss Climpson, na sua missão de investigadora, percorreu todos os cantos e recantos, incomodando vários casais de namorados, antes de regressar a uma mesa perto da porta e consumir a sua quarta chávena de café. Chegou o meio-dia e meia, mas nada de Miss Booth. «Ela já não vem», pensou Miss Climpson; «tem de voltar para casa para dar o almoço à sua doente.» Regressou a Hillside View com pouco apetite para a perna de borrego assado. Às três e meia voltou a sair para se dedicar a uma orgia de chás. Desta vez, incluiu a Lyons e a quarta casa de chá, começando no outro extremo da cidade e avançando em direção à paragem do autocarro. Foi quando estava a debater-se com o seu quinto lanche, sentada à montra de Ye Cosye Corner, que uma pessoa apressada no passeio lhe chamou a atenção. A noite já caíra e os lampiões da rua não projetavam uma luz muito forte, mas viu distintamente uma enfermeira sobre o robusto, de meia-idade, com um véu preto e uma capa cinzenta, a caminhar no passeio da pastelaria. Inclinando a cabeça, viu que ela deu uma corridinha, entrou para o autocarro à esquina e desapareceu na direção do Fisherman’s Arms. «Que irritante!», pensou Miss Climpson, vendo o veículo desaparecer. «Não devo ter reparado nela nalgum sítio. Ou talvez ela estivesse a tomar chá na casa de alguém. Bem, foi um dia perdido. E sinto-me tão cheia de chá!» Por sorte, Miss Climpson tinha sido abençoada pelos Céus com uma boa capacidade de digestão, porque na manhã seguinte repetiu-se todo o processo. Evidentemente, era possível que Miss Booth só saísse duas ou três vezes por semana ou que só saísse à tarde, mas Miss Climpson não queria correr riscos. Pelo menos, tinha chegado à conclusão de que a paragem do autocarro era o local a vigiar. Desta vez, ocupou o seu posto na pastelaria Ye Cosye Corner às onze horas e esperou até ao meiodia. Não aconteceu nada e ela voltou para a pensão. À tarde, lá estava outra vez às três horas. A empregada de mesa já a conhecia e mostrou um certo interesse divertido e tolerante pelas suas idas e vindas. Miss Climpson explicou que gostava imenso de ver as pessoas passarem na rua e disse algumas palavras elogiosas sobre a pastelaria e o seu serviço. Admirou uma estalagem pitoresca do outro lado da rua e disse que pensava desenhá-la. – Oh, sim – disse a empregada –, há muitos artistas que vêm cá para esse fim. Isso deu a Miss Climpson uma ideia brilhante e na manhã seguinte trouxe um lápis e um bloco de desenho. Pela extraordinária perversidade das coisas em geral, mal ela mandou vir um café, abriu o bloco de desenho e começou a traçar as empenas da estalagem, apareceu um autocarro e dele saiu uma enfermeira robusta com o seu uniforme preto e cinzento. Não entrou na Ye Cosye Corner, mas avançou a largas passadas pelo passeio em frente, com o véu a esvoaçar como uma bandeira. Miss Climpson soltou uma exclamação de viva irritação que atraiu a atenção da empregada de mesa.


– Que maçada! – disse Miss Climpson. – Esqueci-me da borracha. Tenho de ir a correr comprar uma. Pousou o bloco de desenho na mesa e dirigiu-se para a porta. – Eu tapo-lhe o café, minha senhora – disse a empregada, prestável. – A melhor papelaria é a do Mr. Bulteel, perto do pub Bear. – Obrigada, obrigada – disse Miss Climpson, e saiu disparada. O véu preto ainda esvoaçava à distância. Miss Climpson seguiu-o ofegante, mantendo-se do outro lado da rua. O véu enfiou para uma farmácia. Miss Climpson atravessou a rua um pouco atrás dele e pôs-se a olhar para uma montra cheia de roupinhas de bebé. O véu saiu, esvoaçou indeciso no passeio, virou-se, passou por Miss Climpson e entrou numa sapataria. «Se forem atacadores, vai ser rápido», pensou Miss Climpson, «mas, se for para experimentar sapatos, pode demorar a manhã inteira.» Passou lentamente pela porta. Por sorte, um cliente estava a sair naquele momento e, espreitando para dentro, Miss Climpson teve um vislumbre do véu preto a desaparecer para as traseiras da loja. Abriu ousadamente a porta. Havia um balcão para a venda de artigos diversos na parte da frente da sapataria e por cima da entrada pela qual a enfermeira tinha desaparecido estava escrito «Secção de Senhora». Enquanto comprava um par de atacadores de seda castanhos, Miss Climpson debateu consigo mesma o que fazer. Deveria segui-la e aproveitar esta oportunidade? Experimentar calçado é usualmente um processo demorado. A pessoa fica encalhada numa cadeira por um longo período de tempo, enquanto o empregado trepa por escadotes e tira pilhas de caixas de cartão com sapatos. É também comparativamente fácil entrar em conversa com uma pessoa que esteja a experimentar sapatos. Mas há um senão. Para justificar a presença na sapataria, é preciso também experimentar sapatos. O que acontece? Em primeiro lugar, o empregado começa por pôr uma pessoa fora de ação arrancando-lhe o sapato do pé direito e desaparecendo. E se, entretanto, o alvo acabar de fazer a sua compra e sair da loja? Podemos segui-lo a pé-coxinho, à louca? Podemos despertar suspeitas calçando os próprios sapatos apressadamente e saindo disparados com os atacadores a esvoaçar e um murmúrio pouco convincente sobre um compromisso de que nos tínhamos esquecido? E, ainda pior, se uma pessoa estiver numa situação anfíbia, com um sapato seu num dos pés e no outro um do estabelecimento? Que impressão causaria sair subitamente porta fora com mercadoria a que não se tem direito? A perseguidora não se tornaria rapidamente a perseguida? Depois de ponderar este problema, Miss Climpson pagou os atacadores e saiu. Já se tinha escapulido de um salão de chá e uma infração numa manhã era o máximo com que poderia ter a esperança de se safar. O detetive do sexo masculino, particularmente quando anda vestido como trabalhador, moço de recados ou carteiro, tem boas condições para seguir alguém. Pode ficar parado na rua sem atrair as atenções. A detetive do sexo feminino não pode ficar parada às esquinas. Por outro lado, pode deixar-se ficar a olhar para as montras durante uma eternidade. Miss Climpson escolheu uma chapelaria. Examinou todos os chapéus em ambas as montras atentamente, voltando a fitar com uma expressão de grande interesse um manequim extremamente elegante, com um véu sobre os olhos e um par de excrescências semelhantes a orelhas de coelho. No momento em que qualquer observador teria pensado que ela se decidira por fim a entrar e perguntar o preço, a enfermeira saiu da sapataria. Miss Climpson abanou a cabeça com pena às orelhas de coelho, passou para a outra montra, olhou, pairou, hesitou – e afastou-se a custo.


A enfermeira estava agora a cerca de trinta metros, caminhando apressada como um cavalo que avista o seu estábulo. Atravessou de novo a rua, olhou para uma montra onde estavam empilhados novelos de lã de várias cores, decidiu não entrar, continuou a andar e entrou no Café Oriental. Miss Climpson estava naquela situação em que se encontra quem, após uma perseguição prolongada, conseguiu prender uma borboleta num copo. Por uns momentos, a criatura está ali presa e o perseguidor recupera o fôlego. O problema consiste em como tirar a borboleta do copo sem a danificar. É claro que é fácil seguir uma pessoa para dentro de um café e sentarmo-nos à sua mesa, se houver um lugar livre. Mas ela pode não aceitar bem essa atitude. Pode sentir que é incorreto impor-lhe a nossa presença quando há outras mesas livres. É preferível apresentar uma desculpa, tal como devolver um lenço de bolso que caiu ou chamar a atenção para uma mala de mão aberta. Se a pessoa não proporcionar nenhum pretexto, o melhor é inventarmos nós um. A papelaria ficava algumas portas adiante. Miss Climpson entrou e comprou uma borracha, três postais ilustrados, um lápis de grafite e um calendário e esperou enquanto lhe faziam o embrulho. A seguir, atravessou lentamente a rua e entrou no Oriental. Na primeira sala, encontrou duas senhoras e um garoto a ocuparem um compartimento, um senhor de idade a beber leite noutro e duas jovens a tomarem café e a comerem bolos num terceiro. – Desculpem – disse Miss Climpson às duas senhoras –, mas este embrulho pertence-lhes? Encontrei-o mesmo junto à porta. A mais velha das duas senhoras, que tinha andado às compras, passou rapidamente em revista uma série de embrulhos variados, beliscando cada um para refrescar a memória quanto ao seu conteúdo. – Não me parece que seja meu, mas na realidade não posso ter a certeza. Deixe-me ver. Este é de ovos e este de toucinho e... o que é isto, Gertie? Será a ratoeira? Não, espera lá, é o xarope para a tosse, é o que é... e isto são as palmilhas de cortiça da tia Edith e isto é graxa Nugget, para os sapatos... não, é tira-nódoas, este é que é o Nugget... oh, valha-me não sei o quê, parece-me que deixei cair a ratoeira nalgum sítio... mas não me parece que seja esse embrulho. – Não, mãe – disse a senhora mais nova –, não se lembra de que ficaram de ir entregar lá a casa a ratoeira juntamente com a banheira? – É claro, pois é. Bem, está explicado. A ratoeira e as duas frigideiras eram para ir com a banheira, e é tudo, menos o sabão, que és tu que tens, Gertie. Não, muito obrigada, de qualquer maneira, mas não é nosso; deve ter sido outra pessoa que o deixou cair. O senhor de idade repudiou o embrulho com firmeza, mas delicadamente, e as duas meninas limitaram-se a soltar uma gargalhadinha. Miss Climpson avançou. Na segunda sala, duas jovens com os seus acompanhantes igualmente jovens agradeceram-lhe, mas disseram que o embrulho não era delas. Miss Climpson avançou para a terceira sala. A um canto estava um grupo de pessoas bastante faladoras com um cão airedale, e nas traseiras, num dos cantos e recantos mais obscuros e recatados do Oriental, estava sentada a enfermeira, a ler um livro. O grupo de pessoas faladoras não tinha nada a dizer sobre o embrulho, e Miss Climpson, com o coração a bater-lhe acelerado, aproximou-se da enfermeira. – Perdão – disse, sorrindo delicadamente –, mas penso que este pequeno embrulho deve ser da senhora. Encontrei-o à porta e já perguntei a todas as outras pessoas no café. A enfermeira olhou para cima. Era uma mulher de idade, grisalha, com aqueles olhos azuis grandes


que desconcertam quem os vê com o seu olhar intenso e, usualmente, são indicativos de alguma instabilidade emocional. Sorriu a Miss Climpson e disse num tom agradável: – Não, não, não é meu. Muita bondade, a sua. Mas eu tenho todos os meus embrulhos aqui. Apontou vagamente para o assento estofado que cobria os três lados do compartimento, e Miss Climpson, aceitando o gesto como um convite, sentou-se logo. – Que estranho! – disse Miss Climpson. – Eu tinha a certeza de que alguém devia tê-lo deixado cair ao entrar aqui. Não sei o que hei de fazer com ele. – Beliscou ligeiramente o embrulho. – Não me parece que seja de valor, mas nunca se sabe. Suponho que devia levá-lo à esquadra da polícia. – Podia entregá-lo à menina da caixa – sugeriu a enfermeira –, para o caso de o dono voltar cá à procura dele. – Ora bem, pois podia! – disse Miss Climpson. – Que inteligente da sua parte pensar nisso. É claro, pois, seria a melhor maneira. Deve achar-me muito tonta, mas nem me passou pela cabeça essa ideia. Não sou uma pessoa muito prática, infelizmente, mas admiro imenso as pessoas que o são. Eu nunca poderia ter a sua profissão, pois não? Qualquer pequena emergência me deixa bastante atarantada. A enfermeira sorriu novamente. – Em grande medida, é uma questão de treino – disse ela. – E de autodisciplina também, evidentemente. Todas essas pequenas fraquezas podem ser curadas pondo a mente sob um Controlo Superior... não acredita nisso? Os seus olhos pousaram hipnoticamente nos de Miss Climpson. – Suponho que é verdade. – É um grande erro – prosseguiu a enfermeira, fechando o livro e pousando-o em cima da mesa – imaginar que seja o que for na esfera mental é grande ou pequeno. Os nossos pensamentos e os nossos atos mais ínfimos são igualmente dirigidos pelos centros superiores do poder espiritual, se conseguirmos acreditar nele. Chegou uma empregada de mesa para saber o que Miss Climpson queria. – Oh, meu Deus! Parece que estou a impor a minha presença à sua mesa...! – Oh, não se levante – disse a enfermeira. – Tem a certeza? A sério? Porque eu não quero interrompê-la... – Não interrompe nada. Eu levo uma vida muito solitária e fico sempre contente por encontrar uma amiga com quem falar. – Que simpatia da sua parte. Eu quero scones com manteiga, por favor, e um bule de chá. É um café tão agradável, não acha? Tão silencioso e sossegado. Se aquelas pessoas ali não estivessem a fazer tanto barulho com aquele cão. Eu não gosto desses animais enormes e acho que são muito perigosos, não lhe parece? Miss Climpson não ouviu a resposta, porque subitamente viu o título do livro em cima da mesa e o Diabo, ou um Anjo Ministrador (ela não sabia bem qual dos dois), estava, por assim dizer, a entregar-lhe uma enorme tentação numa bandeja de prata. O livro era publicado pela Spiritualist Press e chamava-se Os Mortos Podem Falar?. Num instante de iluminação, Miss Climpson viu o seu plano completo e perfeito em todos os pormenores. Implicava um processo de logro que a sua consciência rejeitava, abismada, mas era infalível. Debateu-se com o demónio. Mesmo tratando-se de uma causa justa, poderia justificar-se algo tão pecaminoso?


Disse mentalmente o que achava ser uma oração a pedir orientação, mas a única resposta que obteve foi um murmúrio ao ouvido: «Oh, belo trabalho, Miss Climpson!», na voz de Peter Wimsey. – Peço desculpa – disse Miss Climpson –, mas vejo que é uma estudiosa do espiritismo. Que interessante que isso é! Se havia algum assunto no mundo sobre o qual Miss Climpson poderia afirmar saber alguma coisa era sobre o espiritismo. É uma flor que floresce espontaneamente num ambiente de pensão. Uma e outra vez, Miss Climpson tinha escutado todo o esquema de planos e controlos, correspondências e comunicações verídicas, corpos astrais, auras e materializações ectoplásmicas ser exibido perante a sua inteligência em protesto. Que era um assunto proibido para a Igreja, sabia-o bem, mas tinha sido dama de companhia de muitas senhoras de idade e forçada muitas vezes a inclinar-se perante a Casa de Rimon. E tinha também havido aquele homenzinho excêntrico da Sociedade de Investigação Psíquica. Ele ficou quinze dias na mesma casa de hóspedes que ela em Bournemouth. Era especialista na investigação de casas assombradas e na deteção de poltergeits. Simpatizou bastante com Miss Climpson, que passou vários interessantes serões a ouvir falar dos truques dos médiuns. Sob a orientação dele, ela aprendeu a virar mesas e a produzir estalidos explosivos; ficou a saber como examinar um par de ardósias seladas para encontrar as marcas de sulcos que permitiam que o giz se deslocasse num arame preto comprido para escrever mensagens dos espíritos. Viu as engenhosas luvas de borracha que deixam a marca de mãos de espíritos num balde de parafina e que, quando esvaziadas, podem ser retiradas delicadamente da cera endurecida através de um buraco mais estreito do que o pulso de uma criança. Aprendeu também teoricamente, embora nunca o tivesse experimentado, como estender as mãos para lhas prenderem atrás das costas de modo a conseguir forçar aquele primeiro nó que torna inúteis todos os nós seguintes, e como saltitar por uma sala a tocar pandeireta ao crepúsculo depois de ser metida num armário escuro, atada e com as mãos cheias de farinha. Miss Climpson admirara-se bastante da tolice e da malvadez da humanidade. A enfermeira continuou a falar e Miss Climpson respondia-lhe mecanicamente. «Ela não passa de uma principiante», disse Miss Climpson para consigo. «Está a ler um manual... E é muito pouco crítica... Com certeza sabe que aquela mulher foi desmascarada há muito tempo... As pessoas como ela não deviam poder sair sozinhas – são um vivo incitamento à fraude... Não conheço esta Mrs. Craig de quem ela está a falar, mas parece-me que é tão torcidinha como um saca-rolhas... Tenho de evitar Mrs. Craig, provavelmente ela sabe demasiado... Se a pobre criatura iludida engole isto, é capaz de engolir qualquer coisa.» – Parece absolutamente maravilhoso, não parece? – disse Miss Climpson, em voz alta. – Mas não é um nadinha perigoso? Já me disseram que sou sensível aos espíritos, mas nunca me atrevi a tentar. Será sensato abrir a mente a essas influências sobrenaturais? – Não é perigoso se uma pessoa conhecer a forma correta de o fazer – disse a enfermeira. – Tem de se aprender a construir uma concha de pensamentos puros em torno da alma para que nenhumas influências malévolas possam penetrar nela. Eu já tive conversas maravilhosas com os entes queridos que passaram para o outro lado... Miss Climpson voltou a encher o bule e pediu à empregada de mesa um prato de pastéis. – ... infelizmente, não sou mediúnica... quer dizer, ainda não. Não consigo nada quando estou sozinha. Mrs. Craig diz que acabará por vir com a prática e a concentração. Ontem à noite tentei com o tabuleiro de ouija, mas ele só traçava espirais.


– A sua mente consciente é demasiado ativa, suponho – disse Miss Climpson. – Sim, julgo que sim. Mrs. Craig diz que eu sou maravilhosamente recetiva. Obtemos os resultados mais maravilhosos quando nos sentamos as duas. Infelizmente, ela está no estrangeiro neste momento. O coração de Miss Climpson deu um salto tão grande que ela quase entornou o chá. – A senhora é médium, então? – prosseguiu a enfermeira. – Foi o que me disseram – disse Miss Climpson, num tom reservado. – Pergunto-me – disse a enfermeira – ... se nos sentássemos as duas... Olhou avidamente para Miss Climpson. – Eu realmente não gosto de... – Oh, por favor! É uma pessoa tão recetiva. Tenho a certeza de que obteríamos bons resultados. E os espíritos estão tão pateticamente ansiosos por comunicar. É claro que eu não gostaria de experimentar a não ser que tivesse a certeza sobre a pessoa. Há tantos médiuns fraudulentos por aí – («Então, pelo menos isso sabes!» pensou Miss Climpson) –, mas com alguém como a senhora está-se em absoluta segurança. Descobriria que faz uma grande diferença na sua vida. Dantes eu sentia-me muito infeliz com toda a dor e toda a desgraça do mundo... vemos tanta, sabe... até me capacitar da sobrevivência e de como todas as nossas provações nos são meramente enviadas para nos preparar para a vida num plano mais elevado. – Bem – disse Miss Climpson lentamente –, estou disposta a tentar. Mas não posso dizer que realmente acredite, sabe? – Acabaria por acreditar, olhe que sim. – É claro, já vi acontecer uma ou duas coisas estranhas... coisas que não podiam ser truques, porque eu conhecia as pessoas em causa... e que não consegui explicar... – Venha visitar-me hoje à noite, por favor! – disse a enfermeira, persuasivamente. – Faremos só uma sessão tranquila e veremos se realmente é médium. Eu não tenho dúvidas de que é. – Muito bem – disse Miss Climpson. – Como se chama, já agora? – Caroline Booth. Miss Caroline Booth. Sou enfermeira de uma senhora de idade paralítica na mansão da Kendal Road. «Valha-nos ao menos isso», pensou Miss Climpson. Em voz alta, disse: – E eu chamo-me Climpson; parece-me que tenho algures um cartão de visita. Não... deixei-os na pensão. Mas estou na pensão Hillside View. Como é que vou para a sua casa? Miss Booth mencionou a morada e o horário do autocarro e acrescentou um convite para cear, que foi aceite. Miss Climpson voltou para a pensão e escreveu uma mensagem à pressa: CARO LORD PETER, tenho a certeza de que deve andar a perguntar-se o que me aconteceu. Mas finalmente tenho NOTÍCIAS! ATAQUEI A CIDADELA!!! Vou à casa HOJE À NOITE e pode contar com GRANDES COISAS!!! Apressadamente, Muito cordialmente, KATHARINE A. CLIMPSON

Miss Climpson voltou a sair depois do almoço. Primeiro, como era uma pessoa honesta, foi buscar o seu bloco de desenho ao Ye Cosye Corner e pagou a conta, explicando que tinha encontrado uma amiga por acaso nessa manhã e ficara a falar com ela. Em seguida, foi a uma série de lojas. Por fim, escolheu uma pequena saboneteira de metal que se adequava ao que pretendia. Tinha os lados


ligeiramente convexos e, quando fechada e ligeiramente premida, abria-se com um estalido bem sonoro. Com alguma perícia e adesivo forte, prendeu-a a uma liga elástica resistente. Quando atada ao joelho ossudo de Miss Climpson e apertada contra o outro joelho, a saboneteira emitia uma série de estalidos suficientemente satisfatórios para convencer a pessoa mais cética. Sentada ao espelho, Miss Climpson deu-se ao luxo de praticar durante uma hora antes do lanche, até conseguir produzir o estalido com um mínimo de movimentos físicos bruscos. A outra compra que fez foi um pedaço de arame duro envolto num material preto, como o que é usado nas abas dos chapéus. Dobrado e curvado em ângulo duplo e amarrado ao pulso, era o suficiente para fazer abanar uma mesa leve. Receava que não resultasse com uma mesa pesada, mas não tinha tido tempo para encomendar material de ferreiro. Poderia experimentar, de qualquer maneira. Procurou um casaco de veludo preto com mangas compridas e largas e certificou-se de que os arames ficariam suficientemente escondidos. Às seis horas, vestiu esse casaco, amarrou a saboneteira à perna – virando-a para fora, para não sobressaltar os outros passageiros com um estalido despropositado –, vestiu uma pesada capa larga para a chuva, pegou no chapéu e no guarda-chuva e meteu pernas ao caminho para roubar o testamento de Mrs. Wrayburn.


CAPÍTULO DEZASSETE A ceia terminou. Tinha sido servida numa bela sala apainelada com um teto de estuque e fogão de sala, e a comida era boa. Miss Climpson sentia-se revigorada e pronta. – Vamo-nos sentar na minha sala, pode ser? – perguntou Miss Booth. – É o único sítio verdadeiramente confortável. A maior parte desta casa está fechada, claro. Se não se importa, minha querida amiga, eu vou só num instante dar a ceia a Mrs. Wrayburn e pô-la confortável, pobre senhora, e depois podemos começar. Não demoro mais de uma meia hora. – Ela está inválida, suponho? – Sim, totalmente. – Fala? – Falar o que se chama falar, não. Murmura umas coisas por vezes, mas não se consegue compreender o que diz. É triste, não é, sendo ela tão rica? Será um alívio para ela passar para o outro mundo. – Pobre alma! – disse Miss Climpson. A sua anfitriã conduziu-a para uma pequena sala de estar airosa e deixou-a entre as capas de cretone e os ornamentos. Miss Climpson deu uma rápida vista de olhos aos livros, que na sua maioria eram romances, com a exceção de algumas obras sobre espiritismo, e em seguida voltou a sua atenção para a prateleira por cima do fogão de sala. Estava atulhada de fotografias, como é usual estarem as prateleiras das enfermeiras. Destacava-se, entre as fotografias de grupo em hospitais e retratos com a dedicatória «Do seu paciente grato», uma fotografia de estúdio de um homem com o vestuário e o bigode típicos dos anos 1890, ao lado de uma bicicleta, aparentemente numa varanda de pedra suspensa no ar, com uma paisagem distante de um desfiladeiro rochoso. A moldura era de prata, pesada e ornamentada. «Demasiado jovem para ser o pai», pensou Miss Climpson, virando-a e soltando o travão da moldura; «ou era um namorado ou o irmão preferido. Hum! ‘Para a minha querida Lucy do seu amado Harry.’ Não deve ser o irmão. Morada do fotógrafo: Coventry. No negócio das bicicletas, possivelmente. Ora bem, o que terá acontecido ao Harry? Não se casaram, obviamente. Morte ou infidelidade. Moldura de primeira e uma posição central; um ramo de narcisos de estufa numa jarra – acho que o Harry deve ter passado para o outro mundo. E a seguir? Grupo de família? Sim. Os nomes por baixo, muito convenientemente. A querida Lucy com franja, o papá e a mamã, o Tom e a Gertrude. Tom e Gertrude são mais velhos, mas talvez ainda estejam vivos. O papá era pastor da igreja. Casa sobre o grande – uma reitoria na província, talvez. Endereço do fotógrafo: Maidstone. Espera lá! Aqui está o papá noutro grupo, com uma dúzia de garotos. Mestre-escola, ou dava aulas particulares. Dois rapazes têm chapéus de palha com fitas em ziguezague – talvez uma escola, então. O que é aquela taça de prata? Thos Booth e outros três nomes – Colégio de Pembroke, 1883. Não era um colégio caro. Pergunto-me se o papá terá objetado ao Harry por causa da ligação à manufatura de bicicletas? Aquele livro ali parece um prémio escolar. E é. Colégio Feminino de Maidstone – por distinção em Literatura Inglesa. Tal e qual. Ela está de volta? – Não,


falso alarme. Um jovem vestido de caqui, ‘O seu querido sobrinho, G. Booth’ – ah! O filho do Tom, suponho. Será que sobreviveu? Sim – desta vez, ela vem mesmo aí.» Quando a porta se abriu, Miss Climpson estava sentada junto ao fogão de sala profundamente embrenhada na leitura de Raymond. – Lamento muito tê-la feito esperar – disse Miss Booth –, mas a pobre senhora está bastante desassossegada esta noite. Vai aguentar-se um par de horas, mas eu terei de voltar lá acima mais tarde. Começamos de imediato? Estou tão ansiosa por experimentar! Miss Climpson concordou prontamente. – Costumamos usar esta mesa – disse Miss Booth, trazendo uma pequena mesa redonda de bambu, com uma prateleira entre as pernas. Miss Climpson pensou que nunca tinha visto uma peça de mobiliário mais excelentemente adequada ao fingimento de fenómenos espíritas e aprovou vivamente a escolha de Mrs. Craig. – Sentamo-nos à luz? – perguntou. – Não em plena luz – disse Miss Booth. – Mrs. Craig explicou-me que os raios azuis da luz do dia ou da luz elétrica são demasiado fortes para os espíritos. Perturbam as vibrações, compreende? Por isso, costumamos apagar a luz e sentar-nos à lareira, que dá luz suficiente para tomar apontamentos. Escreve a senhora ou escrevo eu? – Oh, acho que é melhor ser a senhora a fazê-lo, porque está mais acostumada – disse Miss Climpson. – Muito bem. – Miss Booth pegou num lápis e num bloco de apontamentos e desligou a luz. – Agora, sentamo-nos e pomos os polegares e as pontas dos dedos levemente em cima da mesa, perto da beira. É melhor fazer um círculo, claro, mas não é possível com duas pessoas. E ao princípio penso que é melhor não falarmos... até se estabelecer um rapport, compreende? De que lado quer sentar-se? – Oh, este está bem para mim – disse Miss Climpson. – Não se importa de ficar de costas para a lareira? Miss Climpson não se importava absolutamente nada. – Bem, é uma boa maneira de nos colocarmos, porque evita que os raios incidam diretamente sobre a mesa. – Foi o que eu pensei – disse Miss Climpson com sinceridade. Pousaram os polegares e as pontas dos dedos na mesa e esperaram. Passaram dez minutos. – Sentiu algum movimento? – segredou Miss Booth. – Não. – Por vezes demora algum tempo. Silêncio. – Ah! Pareceu-me que senti alguma coisa. – Sinto um formigueiro nos dedos. – Eu também. Vamos conseguir alguma coisa daqui a pouco. Uma pausa. – Apetece-lhe descansar um bocadinho? – Doem-me bastante os pulsos. – É só até se habituar. É o poder a percorrê-los.


Miss Climpson levantou os dedos e massajou delicadamente os pulsos. Os ganchos pretos e finos desceram silenciosamente até ao punho das suas mangas de veludo preto. – Sinto que há um poder à nossa volta. Sinto um arrepio de frio na espinha. – Continuemos – disse Miss Climpson. – Já descansei o suficiente. Silêncio. – Sinto – segredou Miss Climpson – como se algo estivesse a agarrar-me a nuca. – Não se mexa. – E sinto os braços dormentes do cotovelo para baixo. – Chiu! Os meus também. Miss Climpson poderia ter acrescentado que sentia uma dor nos deltoides, se soubesse que era esse o nome deles. É um resultado frequente de uma pessoa se sentar com os polegares e os dedos pousados numa mesa sem apoiar os pulsos. – Sinto um formigueiro da cabeça aos pés – disse Miss Booth. Nesse momento, a mesa sacudiu-se violentamente. Miss Climpson tinha sobrestimado a força necessária para mover peças de mobiliário de bambu. – Ah! Depois de uma curta pausa para recuperar, a mesa começou a mover-se de novo, mas mais suavemente, até ficar a baloiçar com um movimento regular de vaivém. Miss Climpson descobriu que, se levantasse delicadamente um dos seus pés bastante grandes, conseguia tirar praticamente todo o peso dos ganchos dos pulsos. Ainda bem, porque duvidava que eles fossem capazes de aguentar a pressão. – Falamos com ele? – perguntou Miss Climpson. – Espere um momento – disse Miss Booth. – Quer ir de lado. Miss Climpson ficou surpreendida com aquela afirmação, que parecia indicar um elevado grau de imaginação, mas de boa vontade provocou um movimento ligeiramente giratório da mesa. – Pomo-nos de pé? – sugeriu Miss Booth. Era desconcertante, porque não é fácil manobrar uma mesa vibratória enquanto se está debruçada e apoiada num só pé. Miss Climpson decidiu cair em transe. Tombou a cabeça sobre o peito e soltou um ligeiro gemido. Ao mesmo tempo, recolheu as mãos, soltando os ganchos, e a mesa continuou a rodar sacudidamente, girando sob os dedos de ambas. Uma brasa caiu da lareira com estrondo, despedindo uma chama forte. Miss Climpson estremeceu e a mesa deixou de girar e parou com um pequeno baque. – Oh, não! – exclamou Miss Booth. – A luz dispersou as vibrações. – Está bem, minha querida? – Sim, sim – disse Miss Climpson, num tom vago. – Aconteceu alguma coisa? – O poder era tremendo – respondeu Miss Booth. – Nunca o tinha sentido tão forte. – Penso que devo ter adormecido – disse Miss Climpson. – Estava em transe – explicou Miss Booth. – O controlo estava a tomar posse de si. Sente-se muito cansada ou podemos continuar? – Sinto-me perfeitamente bem – respondeu Miss Climpson –, só um pouco ensonada. – É uma médium maravilhosamente forte – disse Miss Booth. Miss Climpson, sub-repticiamente fletindo o tornozelo, sentiu-se inclinada a concordar. – Pomos um biombo diante da lareira desta vez – disse Miss Booth. – Assim está melhor. Vamos lá!


Voltaram a pousar as mãos na mesa, que começou a balouçar-se quase imediatamente. – Não vamos perder mais tempo – disse Miss Booth. Pigarreou ligeiramente e dirigiu-se à mesa. – Está aqui um espírito? Um estalido! A mesa parou de se mexer. – Não se importa de dar uma pancada para «sim» e duas para «não»? Outro estalido! A vantagem deste método de interrogação é que obriga o inquiridor a fazer perguntas reveladoras. – É o espírito de alguém que passou para o outro lado? – Sim. – É a Fedora? – Não. – É um dos espíritos que já me visitaram? – Não. – É nosso amigo? – Sim. – Sente-se contente por nos ver? – Sim. Sim. Sim. – Sente-se feliz? – Sim. – Está aqui para pedir algo para si? – Não. – Está ansioso por nos ajudar pessoalmente? – Não. – Está a falar em nome de outro espírito? – Sim. – Ele quer falar com a minha amiga? – Não. – Comigo, então? – Sim. Sim. Sim. – (A mesa balouçou violentamente.) – É o espírito de uma mulher? – Não. – De um homem? – Sim. Uma pequena exclamação. – É o espírito com quem eu tenho andado a tentar comunicar? – Sim. Uma pausa e uma inclinação da mesa. – Fala connosco por meio do alfabeto? Uma pancada para A, duas para B e assim sucessivamente? («Uma cautela atrasada», pensou Miss Climpson.) Um estalido! – Como se chama?


Oito pancadas e uma longa inspiração. Uma pancada... – H-A... Uma longa sucessão de pancadas. – Isso foi um R. Está a ir demasiado depressa. Estalido! – H-A-R... é isso? – Sim. – É o Harry? – Sim, sim, sim. – Oh, Harry! Por fim! Como estás? Estás feliz? – Sim... não... sozinho. – A culpa não foi minha, Harry. – Sim. Fraca. – Ah, mas eu tinha de pensar no meu dever. Lembra-te de quem se meteu entre nós dois. – Sim. P-A... – Não, não, Harry. Foi a mã... – L-V-A-D-A! – concluiu a mesa, triunfante. – Como podes falar com tanta falta de caridade? – O amor está primeiro. – Eu sei isso agora. Mas era muito nova. Não me perdoas agora? – Tudo perdoado. A mãe também perdoada. – Fico muito contente. O que é que fazes, aí onde estás, Harry? – Espero. Ajudo. Expio. – Tens alguma mensagem especial para mim? – Vai para Coventry. (Neste ponto, a mesa ficou agitada.) A mensagem pareceu perturbar Miss Booth. – Oh, és realmente tu, Harry! Não te esqueceste da nossa velha piada, tão querida. Diz-me... A mesa deu sinais de grande excitação nesse momento e soltou um chorrilho de letras ininteligíveis. – O que queres? – G-G-G... – Deve ser outro espírito a interromper – disse Miss Booth. – Faça o favor de dizer quem é. – G-E-O-R-G-E – (muito rapidamente). – George! Eu não conheço nenhum George a não ser o filho do Tom. Será que lhe aconteceu alguma coisa? – Ah, ah, ah! Não é George Booth, é George Washington. – George Washington? – Ah, ah, ah! – (A mesa tornou-se convulsivamente agitada, de tal modo que a médium parecia mal conseguir segurá-la. Miss Booth, que estava a anotar a conversa, voltou a pôr as mãos sobre a mesa, que parou de saltitar e começou a balouçar.) – Quem está aqui agora? – Pongo.


– Quem é Pongo? – O seu controlo. – Quem é que estava a falar ainda agora? – Espírito mau. Já se foi. – O Harry ainda aí está? – Já se foi. – Mais alguém quer falar? – Helen. – Qual Helen? – Não se lembra? De Maidstone. – De Maidstone? Ah, refere-se a Ellen Pate? – Sim, Pate. – Vejam só! Boa noite, Ellen. Que agradável surpresa saber de ti. – Recorda zanga. – Referes-te à grande zanga no dormitório? – Kate menina má. – Não, não me lembro da Kate, a não ser da Kate Hurley. Não estás a referir-te a ela, pois não? – Kate malandra. Luzes apagadas. – Oh, eu sei o que ela está a tentar dizer. Os bolos, depois de se apagarem as luzes. – É isso mesmo. – Continuas a soletrar mal, Ellen. – Miss... Miss... – Mississípi? Ainda não aprendeste? – Engraçado. – Há muitas da nossa turma aí onde estás? – Alice e Mabel. Mandam beijinhos. – Que queridas. Manda-lhes beijinhos meus. – Sim. Só amor. Flores. Luz do Sol. – O que é que tu... – P – disse a mesa, impacientemente. – É o Pongo outra vez? – Sim. Cansado. – Queres que paremos? – Sim. Noutra ocasião. – Muito bem, boa noite. – Boa noite. A médium recostou-se na cadeira com um ar de exaustão que era perfeitamente justificado. É muito cansativo indicar as letras do alfabeto com pancadas e Miss Climpson receava que a saboneteira estivesse a soltar-se. Miss Booth acendeu as luzes. – Foi maravilhoso – disse. – Obteve as respostas que pretendia? – Sim, sem dúvida. Não as ouviu?


– Não segui tudo – disse Miss Climpson. – É um pouco difícil, o contar, até uma pessoa se habituar. Deve estar terrivelmente cansada. Paramos por aqui e eu vou fazer um chá. Da próxima vez, talvez pudéssemos usar o tabuleiro de ouija. Não demora tanto tempo a obter as respostas. Miss Climpson avaliou essa opção. Indubitavelmente, seria menos cansativo, mas não tinha a certeza se saberia manipulá-lo. Miss Booth pôs a chaleira ao lume e lançou um olhar ao relógio. – Oh, não! São quase onze horas. Como o tempo voou! Tenho de ir lá acima ver como está a velha senhora. Não se importa de ler as perguntas e as respostas? Acho que não vou demorar muito. Satisfatório até àquele momento, pensou Miss Climpson. Conquistara a confiança dela. Dentro de alguns dias, poderia concretizar o seu plano. Mas quase tinha metido o pé na argola com a menção a George. E era estúpido ter dito «Helen». Nellie teria servido para as duas – havia uma Nellie em todas as escolas há quarenta e cinco anos. Mas, ao fim e ao cabo, não importava muito o que se dissesse – o mais certo era a outra pessoa dar uma achega. Fatigada, pensou se teria perdido o último autocarro. – Receio bem que sim – disse Miss Booth, quando lhe foi feita a pergunta ao voltar à sala. – Mas chamamos um táxi. Pago eu, é claro, minha querida. Insisto, já que teve a bondade de vir até tão longe só para meu proveito. Não acha que as comunicações são maravilhosas? O Harry nunca veio antes... pobre Harry! Eu fui muito mazinha para com ele. Ele casou, mas, como vê, nunca me esqueceu. Vivia em Coventry e nós costumávamos dizer uma piada a esse respeito... era ao que ele se referia quando disse aquilo28. Quem serão a Alice e a Mabel? Havia uma Alice Gibbons e uma Alice Roach, ambas meninas muito simpáticas; acho que a Mabel deve ser a Mabel Herridge. Ela casou-se e foi para a Índia há anos e anos. Não me lembro do apelido dela de casada e nunca mais tive notícias dela, mas deve ter passado para o outro lado. O Pongo é um novo controlo. Temos de lhe perguntar quem é. O controlo de Mrs. Craig é Fedora... era uma escrava na corte de Popeia. – Não me diga! – disse Miss Climpson. – Ela contou-nos a sua história num serão. Tão romântica! Foi atirada aos leões por ser cristã e se recusar a ter fosse o que fosse a ver com Nero. – Que interessante! – É, não é? Mas não fala inglês muito bem e por vezes é difícil compreendê-la. E por vezes deixa entrar os espíritos enfadonhos. O Pongo foi muito rápido a livrar-se de George Washington. Volta cá, não volta? Amanhã à noite? – Com certeza, se quiser. – Sim, por favor, volte. E da próxima vez tem de pedir uma mensagem para si. – Fá-lo-ei, sem dúvida – disse Miss Climpson. – Foi tudo uma tal revelação... maravilhoso. Nunca sonhei que tivesse tal dom. E também isso era verdade. 28 A frase em questão, «Vai para Coventry», tem aqui um sentido literal, pois Harry vivia em Coventry, e um sentido figurado (e particularmente relevante, neste caso de amor proibido), pois a expressão «mandar para Coventry», em inglês, significa «ostracizar», «cortar relações». (N. da E.)


CAPÍTULO DEZOITO Evidentemente, não valia a pena Miss Climpson tentar ocultar das senhoras da pensão onde estivera e o que fizera. O seu regresso à meia-noite num táxi já tinha despertado a mais viva curiosidade, e ela contou a verdade para evitar ser acusada de piores tropelias. – Minha querida Miss Climpson – disse Mrs. Pegler –, espero que não me considere intrometida, mas devo avisá-la de que não é aconselhável ter seja o que for a ver com Mrs. Craig ou com as amigas dela. Não duvido de que Miss Booth seja uma excelente senhora, mas não me agradam as companhias dela. Também não aprovo o espiritismo. É sondar questões que não nos cabe saber e pode levar a resultados muito indesejáveis. Se a senhora fosse casada, eu poderia explicar-me mais claramente, mas acredite que essas atividades podem ter efeitos sérios sobre o carácter, de várias maneiras. – Oh, Mrs. Pegler – disse Miss Etheredge –, não acho que deva dizer isso. Uma das pessoas mais admiráveis que eu conheço... uma senhora que é um privilégio considerar minha amiga... é espírita e é uma verdadeira santa na sua vida e na influência que exerce. – É muito provável que sim, Miss Etheredge – respondeu Mrs. Pegler, empertigando a sua figura robusta com um aprumo impressionante –, mas essa não é a questão. Eu não digo que uma espírita não possa levar uma vida correta, mas digo que na sua maioria são pessoas muito duvidosas e muito pouco honestas. – Por acaso já conheci uma série de médiuns ao longo da minha vida – concordou Miss Tweall, azedamente – e todos eles, sem exceção, eram pessoas em quem eu não confiaria além do que podia ver... se tanto. – Isso é bem verdade em relação a um grande número deles – disse Miss Climpson – e tenho a certeza de que ninguém poderia ter melhores oportunidades de o julgar do que eu própria. Mas penso que alguns são pelo menos sinceros, embora iludidos no que reclamam, é o que espero. O que lhe parece, Mrs. Liffey? – acrescentou, virando-se para a proprietária da pensão. – Bem – disse Mrs. Liffey, obrigada pela sua profissão a concordar tanto quanto possível com todas as partes –, devo dizer que, pelo que li, que não foi muito, porque tenho pouco tempo para ler, penso que há algumas provas que revelam que, em certos casos e sob condições estritamente controladas, possivelmente existe alguma base de verdade por trás do que reclamam os espíritas. Não que alguma vez eu quisesse ter algo a ver com isso, pessoalmente; como diz Mrs. Pegler, em regra não me agradam por aí além as pessoas que se dedicam a isso, embora sem dúvida haja muitas exceções. Penso que talvez a questão devesse ser deixada a investigadores devidamente qualificados. – Nesse ponto, concordo com a senhora – disse Mrs. Pegler. – Não há palavras que exprimam a repugnância que sinto pela intrusão de mulheres como essa tal Mrs. Craig em domínios que deveriam ser sagrados para todos nós. Imagine, Miss Climpson, que essa mulher, que eu não conheço nem tenho intenção de vir a conhecer, teve a impertinência de me escrever uma vez e de dizer que tinha recebido uma mensagem numa das suas séances, assim lhes chama, alegadamente do meu querido


marido. Nem lhe sei dizer o que senti. Ouvir o nome do General dito em público, relacionado com esses disparates reprováveis! E é claro que era a mais pura invenção, porque o General seria o último homem a ter fosse o que fosse a ver com tais atividades. «Tolices perniciosas» era o que lhes chamava com os seus modos militares francos. E quando me foi dito, a mim, a sua viúva, que ele tinha ido a casa de Mrs. Craig e tinha tocado acordeão e pedido que fossem ditas orações especiais para o salvar de um local de punição, só pude considerar aquilo como um insulto deliberado. O General ia regularmente à igreja e opunha-se completamente a orações pelos mortos ou a qualquer outra manifestação papista; e quanto a estar num local indesejável, ele era o melhor dos homens, embora por vezes fosse um pouco brusco. Quanto ao acordeão, espero que, esteja ele onde estiver, tenha algo melhor com que ocupar o tempo. – Um caso extremamente vergonhoso – disse Miss Tweall. – Quem é esta tal Mrs. Craig? – perguntou Miss Climpson. – Ninguém sabe – respondeu Mrs. Pegler, sombriamente. – Consta-se que é viúva de um médico – disse Mrs. Liffey. – É minha opinião – comentou Miss Tweall – que ela não é melhor do que devia ser. – Uma senhora da idade dela – disse Mrs. Pegler – com o cabelo pintado com hena e brincos enormes... – E a andar por aí com aquelas roupas extravagantes – disse Miss Tweall. – E a receber em casa pessoas muito estranhas – acrescentou Mrs. Pegler. – Lembra-se daquele homem preto, Mrs. Liffey, que usava um turbante verde e costumava dizer as orações no jardim da frente, até a polícia intervir? – O que eu gostaria de saber – disse Miss Tweall – é de onde lhe vem o dinheiro. – Se quer saber o que penso, minha cara senhora, ela anda a aproveitar-se dos outros. Deus sabe o que ela convence as pessoas a fazerem naquelas sessões espíritas. – Mas o que a trouxe a Windle? – perguntou Miss Climpson. – Seria de supor que Londres, ou uma cidade grande qualquer, seria melhor lugar para ela, se é o tipo de pessoa que descreve. – Não me admiraria nada se ela andasse fugida – disse Miss Tweall, sombriamente. – Há quem tenha de dar à sola de certos sítios. – Sem concordar totalmente com a vossa condenação geral – disse Miss Climpson –, aceito que a investigação psíquica pode ser de facto muito perigosa nas mãos erradas, e, pelo que Miss Booth me diz, duvido muitíssimo que Mrs. Craig seja uma guia adequada para os mais inexperientes. De facto, senti que era meu dever pôr Miss Booth de sobreaviso, e é o que estou a tentar fazer. Mas, como sabem, tem de se fazer esse tipo de coisa com muito tato, porque de outro modo pode-se meramente, por assim dizer, pôr a pessoa na retranca. O primeiro passo é obter a confiança dela e depois, pouco a pouco, poderá conseguir-se induzir nela um estado de espírito mais são. – Isso é uma grande verdade – disse Miss Etheredge convictamente, com os seus pálidos olhos azuis iluminados com algo que era quase animação. – Eu própria quase caí sob a influência de uma pessoa terrível, fraudulenta, até uma querida amiga me mostrar o bom caminho. – Talvez – disse Mrs. Pegler –, mas na minha opinião é preferível não se meter nessas coisas. Sem se deixar demover por aquele excelente conselho, Miss Climpson compareceu ao encontro combinado. Depois de um espetáculo animado de balouços da mesa, Pongo consentiu em comunicar por meio de um tabuleiro de ouija, embora ao princípio fosse bastante desajeitado. Atribuiu-o ao facto de nunca ter aprendido a escrever quando ainda era vivo. À pergunta sobre a sua identidade,


explicou que era um acrobata italiano do período da Renascença e que o seu nome completo era Pongocelli. Tinha levado uma vida tristemente irregular, mas redimira-se recusando heroicamente abandonar uma criança doente durante a Grande Peste em Florença. Tinha apanhado a peste e morrera disso, e estava agora a cumprir o período de expiação dos seus pecados servindo de guia e intérprete a outros espíritos. Era uma história comovente e Miss Climpson sentiu-se bastante orgulhosa dela. George Washington estava sempre a intrometer-se e a séance também se ressentiu de uma série de interrupções misteriosas daquilo que Pongo descreveu como uma «influência invejosa». No entanto, «Harry» reapareceu e pronunciou algumas mensagens consoladoras e houve também mais comunicações de Mabel Herridge, que fez uma descrição vívida da sua vida na Índia. No geral, e tomando em consideração as dificuldades, foi um serão bem-sucedido. No domingo não houve séance devido aos problemas de consciência da médium. Miss Climpson sentiu que não seria capaz de o fazer. Em vez disso, foi à igreja e escutou a mensagem de Natal com um peso no espírito. Na segunda-feira, contudo, as duas inquiridoras mais uma vez ocuparam os seus lugares à mesa de bambu e o seguinte é o relato da séance tal como o anotou Miss Booth:

19h30 Nesta ocasião, a sessão foi iniciada imediatamente com o tabuleiro de ouija; ao fim de alguns minutos, uma série de pancadas sucessivas anunciou a presença de um controlo.

Pergunta: Boa noite. Quem é? Resposta: Aqui Pongo. Boa noite. Que Deus vos abençoe. P: Estamos muito contentes por o ter connosco, Pongo. R: Ainda bem... muito bem. Cá estamos de novo! P: És tu, Harry? R: Sim, só para mandar cumprimentos. Que multidão! P: Quantos mais melhor. Ficamos contentes por nos encontrarmos com todos os nossos amigos. O que podemos fazer por si? R: Assistam. Obedeçam aos espíritos. P: Faremos tudo o que pudermos, se nos disserem o que fazer. R: Cozam as cabeças! P: Vá-se embora, George, não o queremos. R: Saia da linha, tontinho. P: Pongo, não pode mandá-lo embora? (Neste ponto, o lápis desenhou um esboço de uma carantonha.) P: É o seu retrato? R: Sou eu, o G. W. Ah, ah! (O lápis ziguezagueou violentamente e fez com que o tabuleiro caísse da mesa. Depois de o tabuleiro ser colocado de novo em cima da mesa, o lápis começou a escrever com a caligrafia que associamos a Pongo.)


R: Mandei-o embora. Muito barulho hoje. F. ciumento e manda-o para nos incomodar. Não importa. Pongo mais poderoso. P: Quem é que está ciumento? R: Não interessa. Má pessoa. Maladetta. P: O Harry ainda aí está? R: Não. Outros assuntos. Há um espírito aqui que pretende a vossa ajuda. P: Quem é? R: Muito difícil. Esperem. (O lápis traçou uma série de arcos amplos.) P: Que letra é essa? R: Tontinhas! Não sejam impacientes. Há dificuldade. Vou tentar de novo. (O lápis fez uns rabiscos durante alguns minutos e a seguir escreveu um grande C.) P: Temos a letra C. É isso? R: C-C-C... P: Temos o C. R: C-R-E... (Neste momento houve outra interrupção violenta.) R: (na caligrafia de Pongo) Ela está a tentar, mas há muita oposição. Tenham pensamentos positivos. P: Quer que cantemos um hino religioso? R: (Pongo novamente, muito zangado): Estúpido! Está calado! (Neste momento, a caligrafia mudou outra vez.) M-O... P: Pertence à mesma palavra? R: R-N-A. P: Quer dizer Cremorna? R: (Na nova caligrafia) Cremorna, Cremorna. Comunico. Contente, contente, contente! Nessa altura, Miss Booth virou-se para Miss Climpson e disse num tom de perplexidade: – Isto é muito estranho. Cremorna era o nome artístico de Mrs. Wrayburn. Espero bem... com certeza ela não faleceu subitamente. Estava perfeitamente bem quando a deixei. Não será melhor eu ir ver? – Talvez seja outra Cremorna – sugeriu Miss Climpson. – Mas é um nome tão pouco comum! – Porque não perguntar quem é? P: Cremorna, qual é o seu segundo nome? R: (O lápis escreveu muito rapidamente) Rosegarden... mais fácil agora. P: Não compreendo. R: Rose... Rose... Rose... tontinha! P: Oh! (Minha querida, ele está a confundir os dois nomes.) Quer dizer Cremorna Garden? R: Sim. P: Rosanna Wrayburn? R: Sim. P: Passou para o outro lado? R: Ainda não. No exílio. P: Ainda está no corpo?


R: Nem no corpo nem fora do corpo. À espera. (Pongo interpôs-se.) Quando aquilo a que chamam a mente parte, o espírito espera em exílio pela Grande Mudança. Porque é que não conseguem compreender? Apressem-se. Grandes dificuldades. P: Lamentamos muito. Está preocupada com alguma coisa? R: Muito preocupada. P: Espero que não seja alguma coisa no tratamento do Dr. Brown ou no meu. R: (Pongo) Não seja tonta. (Cremorna) O meu testamento. P: Quer alterar o seu testamento? R: Não. Miss Climpson: Ainda bem, porque julgo que não seria legal. O que quer que façamos quanto a isso, Mrs. Wrayburn? R: Mandem-no ao Norman. P: A Norman Urquhart? R: Sim. Ele sabe. P: Ele sabe o que fazer quanto a ele? R: Ele quere-o. P: Muito bem. Pode dizer-nos onde encontrar o testamento? R: Esqueci-me. Procurem. P: Está na casa? R: Já vos disse que me esqueci. Águas profundas. Sem segurança. A fraquejar, a fraquejar... (Neste ponto, a escrita tornou-se muito ténue e irregular.) P: Tente lembrar-se. R: B... B... B... (uma confusão, e o lápis a mover-se à toa) não adianta. (Subitamente, numa caligrafia diferente e muito vigorosamente) saia de linha, saia de linha, saia de linha. P: Quem era? R: (Pongo) Ela já se foi. A má influência de regresso. Ah! Ah! Saia! Acabou agora. (O lápis soltou-se do controlo da médium e, ao ser colocado de novo em cima da mesa, recusou-se a responder a mais perguntas.) – Que grande maçada! – exclamou Miss Booth. – Suponho que não faz ideia de onde se encontra o testamento? – Não faço a mínima ideia. B... foi o que ela disse. Ora bem, a que estaria a referir-se? – No banco, talvez – sugeriu Miss Climpson. – Pode ser. Nesse caso, é evidente que Mr. Urquhart seria a única pessoa que poderia ir buscá-lo. – Então porque é que não o fez? Ela disse que ele o queria. – É claro. Então deve estar algures na casa. A que se referirá a letra B? – Baú, bolsa, biblioteca? – Balcão? Pode ser praticamente qualquer coisa. – Que pena ela não ter conseguido terminar a mensagem. E se tentássemos outra vez? Ou se procurássemos em todos os locais prováveis? – Vamos procurar primeiro e, depois, se não conseguirmos encontrá-lo, poderemos tentar de novo. – É uma boa ideia. Há umas chaves nas gavetas da escrivaninha que são de baús e das outras coisas dela.


– Porque não experimentá-las? – disse Miss Climpson ousadamente. – É o que vamos fazer. Vem ajudar-me, não vem? – Se lhe parece aconselhável. Eu sou uma estranha nesta casa, sabe? – A mensagem foi-lhe dirigida tanto a si como a mim. Preferia que viesse comigo. Poderia sugerir alguns sítios. Miss Climpson não se fez mais rogada e dirigiram-se para o andar de cima. Era uma situação estranha – praticamente roubar uma senhora indefesa no interesse de alguém que ela nunca tinha visto. Estranho. Mas o motivo devia ser bom, se era de Lord Peter. Ao cimo da bela escadaria com a sua ampla curva havia um corredor comprido e largo com as paredes cobertas do teto ao chão com retratos, esboços, cartas autografadas emolduradas, programas e todo o bric-à-brac reminiscente dos camarins. – Toda a vida dela está aqui e nestas duas salas – disse a enfermeira. – Se esta coleção fosse vendida, renderia muito dinheiro. Suponho que o será, um dia. – Para quem vai o dinheiro, sabe? – Bem, eu sempre pensei que iria para Mr. Norman Urquhart; ele é parente dela, praticamente o único, julgo. Mas nunca me disseram nada sobre o assunto. Abriu uma porta alta e graciosa, com painéis curvos e uma arquitrave clássica e acendeu a luz. Era um salão grandioso, com três janelas altas e um teto com grinaldas de flores em estuque e lustres. A pureza das suas linhas, no entanto, era conspurcada por um horrendo papel de parede com rosas entrelaçadas e por pesados reposteiros de veludo de um carmesim vivo, com franjas e cordões dourados, como o pano de cena de um teatro vitoriano. Cada metro quadrado estava atulhado de mobiliário – armários marchetados incongruentemente ao lado de cómodas altas de mogno; mesinhas de apoio pejadas de bibelots aninhados junto à base de mármores e bronzes alemães; biombos lacados, escrivaninhas Sheraton, vasos chineses, candeeiros de alabastro, cadeiras, otomanas de todos os feitios, cores e períodos, como plantas apinhadas a lutarem pela sobrevivência numa selva tropical. Era a sala de uma senhora sem gosto nem moderação, que não recusava nada e não prescindia de nada, para quem o facto da posse se tinha tornado a única realidade constante num mundo de perda e de mudança. – Pode estar aqui ou no quarto – disse Miss Booth. – Eu vou buscar as chaves. Abriu uma porta à direita. Miss Climpson, com a sua curiosidade inesgotável, seguiu-a em bicos de pés. O quarto ainda era um pesadelo maior do que a sala de estar. Um pequeno candeeiro com uma luz fraca estava aceso junto da cama, que era enorme e dourada, com cortinados de brocado cor-de-rosa pendendo em longas dobras de um dossel sustentado por rechonchudos cupidos dourados. Fora do círculo limitado de luz agigantavam-se guarda-fatos monstruosos, mais armários e cómodas altas. O toucador, com folhos e rendas, sustentava um espelho largo de três partes e um monstruoso espelho no centro do quarto refletia sombriamente as vagas formas enormes do mobiliário. Miss Booth abriu a porta do meio do guarda-fatos maior. Esta abriu-se para trás com um rangido, deixando sair uma forte baforada de frangipani. Era evidente que nada fora alterado naquele quarto desde que o silêncio e a paralisia se abateram sobre a sua dona. Miss Climpson aproximou-se da cama com passos silenciosos. O instinto levava-a a mover-se cautelosamente como um gato, embora fosse evidente que nada sobressaltaria ou surpreenderia a sua ocupante.


Um rosto muito velho, tão minúsculo na vastidão dos lençóis e da almofada que poderia ser de uma boneca, fitou-a sem pestanejar nem ver. O rosto estava coberto por finas rugas superficiais, como uma mão demolhada em água com sabão, mas todas as rugas esculpidas pela experiência tinham sido alisadas pelo relaxamento dos músculos inativos. Estava ao mesmo tempo inchado e amarrotado. Recordou a Miss Climpson um balão cor-de-rosa de uma criança, do qual tivesse saído quase todo o ar. A respiração soltava-se através dos lábios relaxados em pequenos sopros sonoros e contribuía para aumentar a semelhança com um balão. Debaixo do barrete com folhos escapavam-se algumas madeixas moles de cabelo grisalho. – Estranho, não é? – disse Miss Booth. – Pensar que, com ela aí deitada, o seu espírito mesmo assim consegue comunicar connosco. Miss Climpson sentiu-se dominada por uma sensação de sacrilégio. Foi só com um grande esforço que se impediu de confessar a verdade. Tinha puxado a liga com a saboneteira acima do joelho por uma questão de segurança e o elástico estava a apertar-lhe dolorosamente os músculos da perna – uma forma de lhe recordar a sua iniquidade. Mas Miss Booth já se tinha virado e estava a abrir as gavetas de uma das escrivaninhas.

Passaram-se duas horas e elas continuavam a procurar. A letra B abria um campo de investigação particularmente alargado. Miss Climpson tinha-a escolhido por esse motivo e a sua previdência foi recompensada. Com algum engenho, aquela útil letra podia ser distorcida e adaptar-se a praticamente qualquer esconderijo na casa. As coisas que não eram bengaleiros, baús, bolsas, baldes, barris nem mesas de bibelots podiam ser razoavelmente descritas como bonitas, brancas, beges ou buriladas, aplicando-se a descrição ao mobiliário do quarto de dormir ou do quarto de vestir, e visto que todas as prateleiras, todas as gavetas e todos os cacifos em todos os objetos estavam atafulhados de recortes de jornais, cartas e recordações variadas, as duas investigadoras não tardaram a ficar com a cabeça, as pernas e as costas a doerem com o esforço. – Não fazia ideia – disse Miss Booth – de que podia haver tantos lugares prováveis. Miss Climpson, sentada no chão, com o seu cabelo preto a soltar-se e a sua combinação preta decente arrepanhada quase até à saboneteira, concordou numa voz de cansaço. – É terrivelmente fatigante, não é? – disse Miss Booth. – Não lhe apetece parar? Eu posso continuar a procurar amanhã. É uma pena cansá-la assim desta maneira. Miss Climpson ponderou a proposta. Se o testamento fosse encontrado na sua ausência e enviado a Norman Urquhart, será que Miss Murchison conseguiria apoderar-se dele antes de ele voltar a ser escondido ou destruído? Duvidava. Escondido, não destruído. O mero facto de o testamento ser enviado ao advogado por Miss Booth impedi-lo-ia de o destruir, porque haveria uma testemunha da sua existência. Mas ele poderia conseguir escondê-lo por um período de tempo considerável – e o tempo era um fator crucial. – Oh, eu não estou nada cansada – disse ela num tom animado, acocorando-se e arranjando o cabelo de forma a assemelhar-se mais ao seu penteado usualmente cuidado. Tinha um bloco de apontamentos de capa preta na mão, tirado de uma gaveta num dos armários japoneses, e estava a folheá-lo mecanicamente. Uma linha de números prendeu-lhe a atenção, 12, 18, 4, 0, 9, 3, 15, e perguntou-se vagamente ao que se refeririam. – Já revistámos tudo aqui – disse Miss Booth. – Não creio que nos tenha escapado alguma coisa, a


não ser, é claro, que haja uma gaveta secreta algures. – Acha que poderia estar na biblioteca, dentro de um livro? – Num livro! Claro que é possível. Que tolice da nossa parte não pensar nisso! Nas histórias de detetives, os testamentos estão sempre escondidos em livros. «Mais frequentemente do que na vida real», pensou Miss Climpson, mas levantou-se, sacudiu a poeira da roupa e disse animadamente: – Tem toda a razão. Há muitos livros nesta casa? – Milhares – disse Miss Booth. – Lá em baixo, na biblioteca. – Não esperava que Mrs. Wrayburn fosse uma grande leitora. – Oh, não me parece que fosse. Os livros foram comprados com a casa, pelo que me disse Mr. Urquhart. São quase todos antigos, sabe, uns tomos grandes com encadernações de pele. Terrivelmente maçadores. Nunca lá encontrei nada para ler. Mas são mesmo o tipo de livros onde se poderia esconder um testamento. Saíram para o corredor. – A propósito – disse Miss Climpson –, as criadas não acharão estranho que andemos a vaguear pela casa assim tão tarde? – Dormem todas na outra ala. Além disso, sabem que por vezes eu tenho visitas. Mrs. Craig já cá tem estado até tarde quando temos sessões interessantes. Há um quarto de hóspedes que eu posso usar quando quiser. Miss Climpson não levantou mais nenhumas objeções e desceram e percorreram o corredor até à biblioteca. Esta era grande e as paredes e as alcovas das janelas estavam forradas a livros – uma visão de partir o coração. – É claro – disse Miss Booth – que se a comunicação não tivesse insistido que começava por B... – Sim? – Bem... eu suporia que quaisquer documentos estariam aqui em baixo no cofre. Miss Climpson gemeu interiormente. O lugar óbvio, naturalmente! Se o seu engenho equivocado... bem! Tinha de se tirar o melhor partido possível do erro. – Porque não procurar? – sugeriu ela. – A letra B pode referir-se a algo bastante diferente. Ou pode ter sido uma interrupção de George Washington. Seria mesmo dele usar palavras começadas por bê, não lhe parece? – Mas, se estivesse no cofre, Mr. Urquhart saberia da sua existência. Miss Climpson começava a sentir que permitira que a sua invenção ganhasse asas desmesuradas. – Não fazia mal nenhum verificarmos – sugeriu. – Mas eu não sei a combinação do cofre – disse Miss Booth. – Mr. Urquhart sabe-a, claro. Podíamos escrever-lhe a perguntar. Miss Climpson teve uma inspiração. – Acho que sei qual é! – exclamou. – Havia uma linha de sete números naquele bloco de apontamentos de capa preta que eu estive a folhear mesmo agora, e passou-me pela cabeça que poderia ser um registo de alguma coisa. – Bloco! – gritou Miss Booth. – Ora, é isso mesmo! Como é que podemos ter sido tão tontinhas? É claro que Mrs. Wrayburn estava a tentar dizer-nos onde encontrar a combinação do cofre! Miss Climpson abençoou mais uma vez a utilidade genérica da letra B. – Eu vou lá acima buscá-lo – disse.


Quando voltou a descer, Miss Booth estava de pé diante de uma parte das estantes, que se deslocara revelando a porta verde de um cofre embutido na parede. Com mãos trémulas, Miss Climpson tocou no botão estriado e rodou-o. A primeira tentativa não foi bem-sucedida, devido ao facto de o apontamento não deixar claro para que lado deveria rodar-se o botão, mas à segunda tentativa o ponteiro passou pelo sétimo número com um belo estalido. Miss Booth agarrou o puxador e a pesada porta abriu-se. Havia um maço de papéis lá dentro. Por cima, bem à vista, estava um envelope comprido selado. Miss Climpson apoderou-se dele. Testamento de Rosanna Wrayburn 5 de junho de 1920 – Bem, não é maravilhoso? – exclamou Miss Booth. No geral, Miss Climpson concordava com ela.


CAPÍTULO DEZANOVE Nessa noite, Miss Climpson ficou no quarto de hóspedes. – O melhor – disse ela – será a senhora escrever uma carta a Mr. Urquhart a explicar a séance e a dizer que achava que o melhor e o mais seguro era enviar-lhe o testamento. – Ele vai ficar muito surpreendido – disse Miss Booth. – Pergunto-me o que dirá. Em regra, os advogados não acreditam em comunicações dos espíritos. E vai achar estranho que tenhamos conseguido abrir o cofre. – Bem, mas o espírito levou-nos diretamente até à combinação, não foi? Ele não poderia propriamente esperar que a senhora ignorasse uma mensagem como aquela, pois não? A prova da sua boa-fé é que vai mandar o testamento diretamente para ele. E também seria boa ideia pedir-lhe que viesse cá verificar o conteúdo do cofre e alterar a combinação, não lhe parece? – Não seria melhor se eu ficasse com o testamento e lhe pedisse que viesse buscá-lo? – Mas talvez ele necessite dele urgentemente. – Então porque é que não veio cá ele buscá-lo? Miss Climpson notou com alguma irritação que, quando não eram mensagens dos espíritos que estavam em causa, Miss Booth dava sinais de estar a desenvolver capacidades de avaliação próprias. – Talvez ele ainda não saiba que precisa dele. Talvez os espíritos tenham previsto uma necessidade urgente que só surgirá amanhã. – Oh, sim, é bastante provável que assim seja. Se as pessoas aceitassem mais completamente a maravilhosa orientação que lhes é dada, muito mais poderia ser previsto e resolvido! Bem, pareceme que tem razão. Vamos procurar um envelope grande para meter o testamento e eu vou escrever uma carta e enviamo-la no primeiro correio amanhã. – É melhor ser registada – disse Miss Climpson. – Se ma confiar, eu levo-a comigo aos correios logo de manhã. – Faz-me esse favor? Seria um grande alívio para mim. Ora bem, como tenho a certeza de que está tão cansada como eu, vou pôr a chaleira ao lume para as nossas botijas e vamo-nos deitar. Fique à vontade na minha sala de estar. Só tenho de fazer a sua cama. O quê? Não, de modo nenhum, eu façoa num instante, por favor, não se incomode. Estou muito habituada a fazer camas. – Então eu trato da chaleira – disse Miss Climpson. – Tenho mesmo de me tornar útil de alguma maneira. – Muito bem. Não demora muito tempo. A água do cilindro na cozinha está bastante quente. Sozinha na cozinha, com uma chaleira a estremecer e a silvar ao lume, quase a ferver, Miss Climpson não perdeu tempo. Saiu em bicos de pés e pôs-se à escuta ao fundo das escadas, a ouvir os passos da enfermeira a afastarem-se. Em seguida, esgueirou-se para dentro da pequena sala de estar, pegou no testamento no seu envelope selado e num corta-papéis fino e comprido que já tinha reconhecido como uma arma útil e apressou-se a voltar para a cozinha. É espantoso o tempo que uma chaleira que parece estar quase a ferver demora antes de o esperado


jato de vapor constante sair do seu bico. Pequenas baforadas enganadoras e pausas ilusórias na cantiga atormentam interminavelmente quem espera. Parecia a Miss Climpson que teria havido tempo para fazer vinte camas antes de a água ferver na chaleira. Mas nem mesmo uma chaleira observada pode absorver calor para sempre. Depois do que deu a impressão de ser uma hora, mas foram na realidade sete minutos, Miss Climpson, culposa e furtiva, pôs-se a segurar a aba do envelope por cima do vapor escaldante. «Não devo apressar-me», pensou Miss Climpson. «Oh, abençoados santos, não posso apressar-me ou ainda o rasgo.» Enfiou o corta-papéis debaixo da aba; ela levantou-se; abriu-se sem deixar marca no momento em que os passos de Miss Booth soaram no corredor. Miss Climpson deixou cair o corta-papéis por trás do fogão e meteu o envelope, com a aba levantada, para não voltar a colar-se, por trás de um tampo para pratos que estava na parede. – A água já ferveu! – gritou jovialmente. – Onde estão as botijas? Diz muito sobre o seu sangue-frio que tenha conseguido enchê-las com mão firme. Miss Booth agradeceu-lhe e voltou para o andar de cima com uma botija em cada mão. Miss Climpson puxou o testamento do seu esconderijo, retirou-o do envelope e leu-o rapidamente. Não era um documento longo e, apesar da fraseologia legal, facilmente se deduzia o seu sentido. Daí a três minutos, voltou a metê-lo no envelope, humedeceu a cola e voltou a colar a aba. Pôs o envelope no bolso da combinação – pois que as suas peças de vestuário eram de um tipo utilitário e antiquado – e foi à despensa. Quando Miss Booth regressou, estava a fazer chá, tranquilamente. – Achei que nos cairia bem depois daquela trabalheira toda – observou. – Uma ótima ideia – disse Miss Booth. – De facto, eu ia sugerir isso mesmo. Miss Climpson levou o bule para a sala de estar e Miss Booth seguiu-a com as chávenas, o leite e o açúcar num tabuleiro. Com o bule no tripé da lareira e o testamento mais uma vez pousado inocentemente sobre a mesa, ela sorriu e respirou fundo. A sua missão estava cumprida.

Carta de Miss Climpson para Lord Peter Wimsey Terça-feira, 7 de janeiro de 1930 MEU CARO LORD PETER, como o meu telegrama desta manhã o terá informado, fui BEM-SUCEDIDA! Embora que desculpa poderei encontrar na minha consciência para os métodos que usei, não SEI! Mas acredito que a Igreja toma em consideração a necessidade de ludíbrio em certas profissões, tais como a de detetive policial ou a de ESPIÃO em tempos de GUERRA, e acredito que os meus subterfúgios possam ser considerados nessa categoria. No entanto, com certeza não quer ouvir-me falar dos meus escrúpulos religiosos! Por isso, apresso-me a comunicar-lhe o que DESCOBRI! Na minha última carta, expliquei o plano que tinha em mente, pelo que sabe o que fazer quanto ao próprio testamento, que foi devidamente enviado por correio registado esta manhã para Mr. Norman Urquhart. Como ele ficará surpreendido quando o receber!! Miss Booth escreveu uma excelente carta a acompanhar, que eu vi antes de ser enviada, em que explica as circunstâncias sem mencionar nomes!! Telegrafei a Miss Murchison, a avisá-la de que conte com a encomenda e espero que, quando chegar, ela consiga arranjar maneira de estar presente na sua abertura, para constituir assim mais uma testemunha da sua existência. De qualquer modo, não me parece que ele se atreva a alterá-lo fraudulentamente. Talvez Miss Murchison consiga examinar o testamento pormenorizadamente, o que eu não tive tempo para fazer (foi uma aventura extraordinária e mal posso esperar por lhe contar tudo sobre ela quando regressar!), mas, para o caso de ela não poder fazê-lo, transmito-lhe agora as linhas gerais. Os bens são constituídos por imóveis (a casa e os terrenos) e por bens móveis (não sei grande coisa de termos legais??) que


não consigo calcular exatamente. Mas em traços gerais é o seguinte: Os bens imóveis são deixados a Philip Boyes, em absoluto. Cinquenta mil libras são deixadas a Philip Boyes também, em dinheiro. O restante (não é aquilo a que se chama remanescente?) é deixado a Norman Urquhart, que é nomeado único testamenteiro. Há alguns pequenos legados a obras de caridade estatais, das quais não consegui memorizar nenhuns pormenores. Há um parágrafo especial a explicar que a maior parte dos bens é deixada a Philip Boyes em sinal de que a testadora perdoa o mau tratamento que lhe foi dado pela família dele, pelo qual ele não foi responsável. A data do testamento é 5 de junho de 1920 e as testemunhas foram Eva Gubbins, governanta, e John Briggs, jardineiro. Espero, caro Lord Peter, que esta informação seja suficiente para os seus fins. Eu tinha a esperança de, mesmo depois de Miss Booth meter o testamento noutro envelope, poder tirá-lo e examiná-lo à vontade, mas infelizmente ela selou-o para maior segurança com o selo particular de Mrs. Wrayburn, que eu não tive suficiente destreza para remover e voltar a colocar, embora julgue que tal é possível usando uma faca quente. Compreenderá decerto que não posso partir de seguida de Windle – pareceria muito estranho fazê-lo imediatamente depois desta ocorrência. Além disso, tenho a esperança de, numa outra série de «sessões», pôr Miss Booth de sobreaviso contra Mrs. Craig e o seu controlo «Fedora», já que tenho a certeza de que esta pessoa é tão charlatã como eu!!! E sem os meus motivos altruístas!! Por conseguinte, não se surpreenda se eu continuar ausente da cidade por, digamos, mais uma semana! Sinto-me um pouco preocupada com a despesa adicional que isto acarreta, mas, se não lhe parecer justificado por uma questão de segurança, informe-me – e alterarei os meus planos de acordo com as suas instruções. Com desejos de muito sucesso, caro Lord Peter, Muito cordialmente, KATHARINE A. CLIMPSON P.S. – Consegui fazer o «trabalhinho» quase todo na semana estipulada, como vê. Lamento não o ter terminado completamente ontem, mas aterrorizava-me poder dar cabo de tudo com as pressas!!

– Bunter – disse Lord Peter, levantando os olhos da carta –, eu sabia que havia algo duvidoso naquele testamento. – Sim, vossa senhoria. – Há algo nos testamentos que faz vir à tona a pior faceta da natureza humana. Pessoas que em circunstâncias normais são perfeitamente às direitas e cordiais tornam-se tão retorcidas como sacarolhas e espumam pela boca sempre que ouvem as palavras «deixo em testamento». A propósito, uma taça de champanhe não é má ideia para comemorar. Traga para cima uma garrafa de Pommery e diga ao inspetor-chefe Parker que eu gostaria de lhe dar uma palavrinha. E traga-me aqueles apontamentos de Mr. Arbuthnot. E, Bunter? – Vossa senhoria? – Telefone a Mr. Crofts, transmita-lhe os meus cumprimentos e diga que já encontrei o criminoso e o motivo e que espero poder dentro em breve apresentar provas da maneira como o crime foi cometido, se ele se encarregar de adiar o julgamento cerca de uma semana. – Muito bem, vossa senhoria. – De qualquer maneira, Bunter, realmente não sei como o crime foi mesmo cometido. – Indubitavelmente, tornar-se-á evidente dentro de pouco tempo, vossa senhoria. – Oh, sim – disse Wimsey com ligeireza. – É claro. É claro. Não estou preocupado com uma bagatela dessas.


CAPÍTULO VINTE – Tch! Tch! – disse Mr. Pond, dando estalidos com a língua contra a dentadura. Miss Murchison ergueu os olhos da máquina de escrever. – Passa-se alguma coisa, Mr. Pond? – Não, nada – disse o escriturário-chefe, num tom irritado. – Uma carta tonta de um membro tonto do seu sexo, Miss Murchison. – Isso não é novidade nenhuma. Mr. Pond franziu a testa, suspeitando que o tom da voz da sua subordinada era impertinente. Pegou na carta e no documento incluído e levou-os para o gabinete de Mr. Urquhart. Miss Murchison aproximou-se célere da secretária de Mr. Pond e lançou um olhar ao envelope registado que se encontrava aberto em cima dela. O carimbo do correio era de Windle. «É uma sorte», disse Miss Murchison para consigo. «Mr. Pond é melhor testemunha do que eu seria. Ainda bem que foi ele a abri-lo.» Voltou para o seu lugar. Daí a uns minutos, Mr. Pond saiu do gabinete, com um ligeiro sorriso. Cinco minutos depois, Miss Murchison, que tinha estado a olhar para o seu bloco de estenografia com uma expressão de perplexidade, levantou-se da cadeira e aproximou-se dele. – Sabe ler estenografia, Mr. Pond? – Não – disse o escriturário-chefe. – Nos meus tempos, não era considerado necessário. – Não consigo decifrar esta abreviatura – disse Miss Murchison. – Parece «dar consentimento a», mas pode ser «dar consideração a»... há uma diferença, não há? – Sem dúvida que há – disse Mr. Pond, secamente. – Talvez seja melhor eu não arriscar – disse Miss Murchison. – Tem de seguir esta manhã. É melhor eu ir perguntar. Mr. Pond resmungou – não pela primeira vez – alguma coisa sobre o descuido da datilógrafa. Miss Murchison atravessou a sala em grandes passadas e abriu a porta do gabinete de Mr. Urquhart sem bater primeiro – uma informalidade que fez Mr. Pond resfolegar mais uma vez. Mr. Urquhart estava de pé, de costas para a porta, a fazer qualquer coisa junto à prateleira do fogão de sala. Virou-se abruptamente, com uma exclamação de irritação. – Eu já lhe disse, Miss Murchison, que gosto que bata à porta antes de entrar. – Peço imensa desculpa; esqueci-me. – Que não volte a acontecer. O que é? Não voltou para a secretária, deixando-se ficar encostado à prateleira. A sua cabeça com o cabelo bem penteado, delineada contra os painéis de madeira pintados de uma cor parda, estava um pouco atirada para trás, como se – pensou Miss Murchison – ele estivesse a proteger ou a desafiar alguém. – Não consigo decifrar bem os meus apontamentos estenográficos da sua carta para Tewke & Peabody – disse Miss Murchison – e pensei que era melhor vir perguntar-lhe. – Gostaria – disse Mr. Urquhart, fitando-a com severidade – que tomasse os seus apontamentos claramente na altura devida. Quando eu ditar demasiado depressa para si, deve dizer-me. Acabaria


por poupar trabalho, não acha? Miss Murchison recordou-se de uma pequena série de regras que Lord Peter Wimsey – meio a brincar, meio a sério – tinha em tempos preparado para orientação d’ «O Gatil». Recordou-se em particular da Regra Número Sete, que dizia: «Desconfiem sempre do homem que vos olhar nos olhos. Quer evitar que vejam alguma coisa. Procurem-na.» Desviou os olhos do olhar do seu patrão. – Lamento muito, Mr. Urquhart. Não voltará a acontecer – murmurou. Havia uma curiosa linha escura por trás da cabeça do advogado na borda do painel, como se este não se encaixasse perfeitamente na sua moldura. Ela nunca tinha reparado nisso antes. – Bem, então, qual é o problema? Miss Murchison fez a sua pergunta, obteve a sua resposta e retirou-se. Ao sair, lançou um olhar à secretária. O testamento não estava lá. Voltou para a sua secretária e acabou de datilografar as cartas. Quando as levou a Mr. Urquhart para serem assinadas, aproveitou a oportunidade para olhar para o painel mais uma vez. Não se via nenhuma linha escura. Miss Murchison saiu do escritório às quatro e meia em ponto. Tinha a sensação de que não seria boa ideia deixar-se ficar mais tempo. Afastou-se atravessando a passo estugado Hand Court, virou à direita pela Holborn, enfiou à direita de novo atravessando Featherstone Buildings, fez um desvio por Red Lion Street e desembocou na Red Lion Square. Em cinco minutos estava no seu velho caminho à volta da praça e a subir Princeton Street. Daí a pouco tempo, a uma distância segura, viu Mr. Pond sair, magro, empertigado e corcovado, e descer Bedford Row em direção à estação de Chancery Lane. Pouco tempo depois, seguiu-se Mr. Urquhart. Ficou um instante à porta, a olhar para a esquerda e para a direita, e a seguir atravessou a rua direito a ela. Por um momento, julgou que ele a tinha visto e escondeu-se à pressa por trás de uma carrinha que estava estacionada. Assim ocultada, afastou-se para a esquina, onde há um talho, e examinou uma montra cheia de carne de borrego da Nova Zelândia e de carne de vaca refrigerada. Mr. Urquhart aproximou-se. Os seus passos soaram mais altos – e a seguir pararam. Miss Murchison colou os olhos a um naco de carne com a tabuleta a indicar 2 quilos/3,4 xelins. Ouviu uma voz: – Boa noite, Miss Murchison. Está a escolher uma costeleta para o jantar? – Oh, boa noite, Mr. Urquhart. Sim... estava só a desejar que a Providência se decidisse a fornecer nacos de carne mais adequados a uma pessoa solteira. – Sim... uma pessoa cansa-se de bife e de borrego. – E a carne de porco tem tendência a ser indigesta. – Tem toda a razão. Bem, devia deixar de ser solteira, Miss Murchison. Miss Murchison soltou uma gargalhadinha. – Mas isto é tão repentino, Mr. Urquhart. Mr. Urquhart corou sob a sua pele curiosamente sardenta. – Boa noite – disse abruptamente e com uma frieza extrema. Miss Murchison riu-se para consigo enquanto ele se afastava a grandes passadas. «Acho que aquilo arrumou com ele. É um grande erro dar-se a familiaridades com os subordinados. Estes aproveitam-se logo.» Ficou a vê-lo desaparecer de vista do outro lado da praça e a seguir regressou ao longo de Princeton Street, atravessou Bedford Row e voltou a entrar no prédio do escritório. A funcionária da


limpeza vinha a descer nesse momento. – Bem, Mrs. Hodges, cá estou eu de novo! Faz-me o favor de me abrir a porta? Perdi uma amostra de seda. Acho que devo tê-la deixado na minha secretária ou que a deixei cair ao chão. Não a viu? – Não, menina, ainda não limpei o seu escritório. – Então eu vou procurá-la. Quero ir ao Bourne’s antes das seis e meia. É uma maçada. – Pois é, menina, e há sempre tanta gente nos autocarros e coisas assim. Faça o favor, menina. Abriu a porta e Miss Murchison entrou de imediato. – Quer que a ajude a procurar, menina? – Não, obrigada, Mrs. Hodges, por favor não se incomode. Acho que não deve estar longe. Mrs. Hodges pegou num balde e foi enchê-lo no pátio das traseiras. Mal ouviu os seus passos pesados a subirem para o primeiro andar, Miss Murchison dirigiu-se ao gabinete do patrão. «Tenho de ver o que está por trás dos painéis.» As casas em Bedford Row são antigas, altas e simétricas, com o encanto de tempos melhores ainda visível. Os painéis no gabinete de Mr. Urquhart, embora desfigurados por muitas camadas de tinta, eram bonitos, e por cima da prateleira do fogão de sala havia um friso de flores e frutos, bastante ornamentado para o período, com um laço e um cesto no centro. Se o painel era controlado por uma mola oculta, provavelmente o manípulo que a acionava encontrar-se-ia naquele friso decorativo. Miss Murchison puxou uma cadeira para junto do fogão de sala e passou os dedos rapidamente sobre o friso, empurrando e premindo com ambas as mãos ao mesmo tempo que se mantinha atenta à aproximação de intrusos. Este tipo de investigação é fácil para os especialistas, mas os conhecimentos de Miss Murchison sobre esconderijos secretos provinham somente de obras de ficção sensacionalista; não estava a conseguir apanhar o jeito à coisa. Depois de quase um quarto de hora, começou a desesperar. Bum... bum... bum... Mrs. Hodges estava a vir para baixo. Miss Murchison afastou-se do painel tão apressadamente que a cadeira escorregou e ela teve de se atirar com força contra a parede para não cair. Saltou para baixo, voltou a pôr a cadeira no seu lugar, olhou para cima – e viu que o painel estava aberto. Ao princípio, pensou que era um milagre, mas logo se apercebeu de que ao escorregar tinha batido de lado na moldura do painel. Um pequeno quadrado de madeira tinha-se deslocado para o lado, deixando à vista um painel interior com um buraco de fechadura no meio. Ouvia Mrs. Hodges na outra sala, mas estava demasiado excitada para se incomodar com o que ela pudesse pensar. Empurrou uma cadeira pesada para junto da porta, para que ninguém pudesse entrar sem fazer barulho e sem dificuldade. Num instante, tinha as gazuas de Bill Venda dos Olhos nas mãos – que sorte não as ter devolvido! Que sorte, também, que Mr. Urquhart tivesse confiado no secretismo do painel e não tivesse pensado que valia a pena pôr uma fechadura segura no seu esconderijo. Alguns instantes de trabalho rápido com as gazuas e a fechadura desandou. Ela abriu a pequena porta. Dentro estava um maço de papéis. Miss Murchison folheou-os – ao princípio rapidamente – e depois de novo, com uma expressão de perplexidade no rosto. Recibos de valores mobiliários... certificados de ações... Fundo Megatherium... com certeza os nomes desses investimentos eram familiares... onde é que ela tinha...? Subitamente, Miss Murchison sentou-se, sentindo-se desfalecida, com o maço de papéis nas


mãos. Compreendia agora o que tinha acontecido ao dinheiro de Mrs. Wrayburn, que Norman Urquhart administrava ao abrigo da sua procuração, e porque é que a questão do testamento era tão importante. Sentiu a cabeça a andar à roda. Pegou numa folha da secretária e começou a anotar à pressa, em estenografia, os pormenores das várias transações das quais estes documentos eram prova. Alguém bateu à porta. – Está aí dentro, menina? – Só um momento, Mrs. Hodges. Acho que devo tê-la deixado cair no chão aqui dentro. Empurrou com força a cadeira grande, barrando efetivamente a porta. Tinha de se apressar. De qualquer modo, conseguira anotar o suficiente para convencer Lord Peter de que os negócios de Mr. Urquhart precisavam de ser investigados. Voltou a meter os documentos no armário, no local exato de onde os tinha tirado. O testamento também ali estava, reparou, colocado de lado sozinho. Espreitou para dentro. Havia mais alguma coisa, encafuada na parte de trás. Enfiou a mão e puxou para fora o misterioso objeto. Era um pacote de papel branco com o nome de uma farmácia estrangeira na etiqueta. A ponta tinha sido aberta e voltada a fechar. Abriu o pacote e viu que continha cerca de 55 gramas de um pó branco e fino. Para além de um tesouro escondido e de documentos misteriosos, nada é mais sensacionalmente sugestivo do que um pacote de um pó branco não identificado. Miss Murchison pegou noutra folha de papel limpo, deitou um dedal de pó em cima dela, voltou a colocar o pacote na parte de trás do armário e fechou a porta com a gazua. Com dedos trémulos, empurrou o painel para a sua posição habitual, tendo o cuidado de o fechar completamente de modo a não mostrar uma linha escura que traísse o que se passara. Afastou a cadeira da porta e disse em voz alta e alegre: – Já a encontrei, Mrs. Hodges! – Ainda bem – disse Mrs. Hodges, aparecendo à porta. – Imagine só! – disse Miss Murchison. – Eu estava a ver as minhas amostras quando Mr. Urquhart me chamou e esta deve ter-se colado ao meu vestido e caiu no chão aqui. Empunhou um pequeno pedaço de seda triunfalmente. Tinha-o rasgado do forro da sua mala de mão nessa tarde – uma prova, se tal fosse necessário, da sua devoção ao trabalho, porque a mala de mão era de boa qualidade. – Valha-me Deus – disse Mrs. Hodges. – Que sorte que foi encontrá-la, não foi, menina? – E quase não a encontrei – disse Miss Murchison –; estava mesmo aqui, neste canto escuro. Bem, tenho de me apressar para chegar à loja antes que feche. Boa noite, Mrs. Hodges. Mas muito antes de os prestáveis senhores da loja. Bourne & Hollingsworth terem encerrado as suas portas, Miss Murchison estava a tocar à campainha do segundo andar do número 110A em Piccadilly.

Foi encontrar uma reunião em decurso. Estavam presentes o Honourable Freddy Arbuthnot, com um ar cordial, o inspetor-chefe Parker, com um ar preocupado; Lord Peter, com um ar sonolento; e Bunter, que, depois de a anunciar, se retirou para uma posição nas franjas do grupo reunido e pairou ali com um ar muito correto. – Trouxe-nos notícias, Miss Murchison? Em caso afirmativo, chegou no momento exato para


encontrar as águias reunidas. Mr. Arbuthnot, inspetor-chefe Parker, Miss Murchison. Sentemo-nos e sejamos felizes juntos. Já tomou chá? Ou aceita outra bebida? Miss Murchison recusou. – Hum! – disse Wimsey. – A paciente recusa alimentos. Os seus olhos brilham desvairadamente. A expressão é de ansiedade. Tem os lábios entreabertos. Os seus dedos abrem agitadamente o fecho da mala de mão. Os sintomas apontam para um ataque agudo de vontade de comunicar. Dê-nos já as más notícias, Miss Murchison. Miss Murchison não precisou de ser mais instada. Contou as suas aventuras e teve o prazer de prender a atenção da assistência da primeira à última palavra. Quando finalmente apresentou o pacotinho de papel com o pó branco, os sentimentos dos presentes exprimiram-se numa salva de palmas à qual Bunter se juntou discretamente. – Está convencido, Charles? – perguntou Wimsey. – Admito que estou profundamente abalado – disse Parker. – É claro que o pó tem de ser analisado... – Sê-lo-á, cautela personificada – disse Wimsey. – Bunter, prepare os instrumentos. O Bunter tem andado a ter lições sobre o teste de Marsh e realiza-o admiravelmente. Também sabe tudo sobre ele, não sabe Charles? – O suficiente para uma análise provisória. – Prossigam então, meus meninos. Entretanto, façamos o resumo das nossas descobertas. Bunter saiu e Parker, que tinha estado a tomar apontamentos num bloco, pigarreou. – Bem – disse ele –, o assunto está no seguinte pé, deduzo eu. Lord Peter diz que Miss Vane está inocente e encarrega-se de o provar encontrando uma acusação convincente contra Norman Urquhart. Até este momento, as suas provas contra ele relacionam-se quase exclusivamente com o motivo, reforçadas com as provas da intenção dele de obstruir a investigação. Diz que as suas investigações levaram o caso contra Urquhart a um ponto no qual a polícia pode, e deve, encarregar-se dele, e eu inclino-me para concordar consigo. Aviso-o, no entanto, de que terá ainda de encontrar provas dos meios e da oportunidade de cometer o crime. – Eu sei isso. Não é novidade nenhuma. – Certo, desde que o saiba. Muito bem. Philip Boyes e Norman Urquhart são os únicos parentes vivos de Mrs. Wrayburn, ou Cremorna Garden, que é rica e tem dinheiro para deixar. Há uma série de anos, Mrs. Wrayburn pôs todos os seus assuntos nas mãos do pai de Urquhart, o único membro da família com quem continuava a manter relações cordiais. À morte do pai, Norman Urquhart encarregou-se ele próprio desses assuntos e em 1920 Mrs. Wrayburn passou-lhe uma procuração em que lhe dava plenos poderes exclusivos para administrar os seus bens. Fez também um testamento, dividindo os seus bens desigualmente entre os seus dois sobrinhos-netos. Philip Boyes receberia todos os imóveis e cinquenta mil libras, enquanto Norman Urquhart receberia o restante e era também o único testamenteiro. Norman Urquhart, quando questionado sobre este testamento, disse-lhe deliberadamente algo que não era verdade, afirmando que a maior parte do dinheiro lhe era deixada a ele e chegando até a apresentar um documento que, pretensamente, seria a minuta desse testamento. A pretensa data dessa minuta é posterior à do testamento descoberto por Miss Climpson, mas não há dúvida de que a minuta foi redigida por Urquhart, com certeza nos últimos três anos e provavelmente nos últimos dias. Além disso, o facto de o verdadeiro testamento, embora se encontrasse num local acessível a Urquhart, não ter sido destruído por ele sugere que não tinha de facto sido ultrapassado


por qualquer disposição testamentária subsequente. Já agora, Wimsey, porque é que ele não se limitou a pegar no testamento e destruí-lo? Como único herdeiro sobrevivente, herdaria então tudo sem disputa. – Talvez não lhe tenha ocorrido essa ideia. Ou talvez houvesse outros parentes vivos. E aquele tio na Austrália? – É verdade. Seja como for, ele não o destruiu. Em 1925, Mrs. Wrayburn ficou completamente paralisada e demente, de modo que não havia qualquer possibilidade de ela alguma vez vir a questionar o seu legado ou a fazer outro testamento. «Por volta desta altura, como sabemos através de Mr. Arbuthnot, Urquhart deu o perigoso passo de se meter em especulações. Cometeu erros, perdeu dinheiro, afundou-se ainda mais para recuperar o que perdera e esteve envolvido em grande escala na queda do Fundo Megatherium Ltd. Não há dúvida de que perdeu muito mais do que podia e vemos agora, através das descobertas de Miss Murchison (as quais, devo dizer, não gostaria de reconhecer oficialmente), que ele tem abusado consistentemente da sua posição como procurador de Mrs. Wrayburn e tem empregado o dinheiro nas suas especulações pessoais. Depositou as ações como garantia para obter grandes empréstimos e aplicou o dinheiro assim obtido no Fundo Megatherium e noutros esquemas duvidosos. «Enquanto Mrs. Wrayburn fosse viva, ele estaria em segurança, porque só teria de pagar as quantias necessárias para sustentar a casa. De facto, todas as contas da casa e outras despesas eram pagas por ele enquanto seu procurador, todos os salários eram pagos por ele e, enquanto ele continuasse a fazê-lo, não era da conta de ninguém querer saber o que ele fizera com o capital. Mas, mal Mrs. Wrayburn morresse, ele teria de prestar contas do capital de que se tinha indevidamente apropriado ao outro herdeiro, Philip Boyes. «Em 1929, por volta da altura em que Philip Boyes se zangou com Miss Vane, Mrs. Wrayburn teve um sério problema de saúde e quase morreu. O perigo passou, mas poderia voltar a acontecer a qualquer momento. Quase de seguida, vemo-lo a mostrar-se muito amigo de Philip Boyes e a convidá-lo para viver em sua casa. Enquanto viveu na casa de Urquhart, Boyes esteve doente em três ocasiões, uma doença diagnosticada pelo seu médico como gastrite, mas cujos sintomas poderiam igualmente resultar de envenenamento por arsénico. Em junho de 1929, Philip Boyes vai para o País de Gales e a sua saúde melhora. «Na ausência de Philip Boyes, Mrs. Wrayburn tem mais um ataque alarmante e Urquhart apressa-se a ir a Windle, possivelmente com a ideia de destruir o testamento para o caso de acontecer o pior. Não acontece, e ele regressa a Londres a tempo de receber Boyes no seu regresso do País de Gales. Nessa noite, Boyes adoece com sintomas similares aos da primavera anterior, mas muito mais violentos. Ao fim de três dias, morre. «Urquhart está agora perfeitamente seguro. Como legatário residual, à morte de Mrs. Wrayburn receberá todo o dinheiro deixado a Philip Boyes. Ou antes, não o receberá, porque já o tirou e perdeu, mas já não será chamado a apresentá-lo e os seus atos fraudulentos não serão revelados. «Até aqui, as provas quanto ao motivo são extremamente claras e muito mais convincentes do que as provas contra Miss Vane. «Mas há um senão, Wimsey. Quando e como foi o veneno administrado? Sabemos que Miss Vane estava de posse de arsénico e que poderia facilmente ter-lho dado sem testemunhas. Mas a única oportunidade de Urquhart foi ao jantar que partilhou com Boyes e, se alguma coisa é certa neste caso, é que o veneno não foi administrado naquele jantar. Tudo o que Boyes comeu e bebeu foi também


comido ou bebido por Urquhart e/ou pelas criadas, com a única exceção do vinho da Borgonha, que foi preservado e analisado, tendo-se demonstrado que era inofensivo. – Eu sei – disse Wimsey –, mas isso é que é tão suspeito. Já alguma vez ouviu falar de uma refeição contornada com tantas precauções? Não é natural, Charles. Há o xerez, servido pela criada da sua garrafa original; a sopa, o peixe e o frango de caçarola; impossível envenenar uma porção sem envenenar tudo. A omelete, tão ostensivamente preparada à mesa pela própria vítima; o vinho, selado e marcado; os restos da refeição, consumidos na cozinha... Dá a impressão de que o homem fez todos os possíveis por organizar uma refeição acima de qualquer suspeita. O vinho é o toque final que torna a coisa incrível. Parece-vos que naqueles primeiros momentos, quando toda a gente supunha que a doença tinha causas naturais e quando o primo afetuoso devia estar dominado por ansiedade pelo estado do doente, é natural ou crível que passe pela mente de uma pessoa inocente uma acusação de envenenamento? Se ele próprio estava inocente, então suspeitava de alguma coisa. Se tinha suspeitas, porque é que não as comunicou ao médico, para este mandar analisar as secreções do doente? Porque é que ele havia de pensar em proteger-se de acusações quando nenhuma acusação tinha sido feita, a não ser que soubesse que uma acusação teria bons fundamentos? E depois há a questão da enfermeira. – Exatamente. A enfermeira tinha as suas suspeitas. – Se ele sabia delas, devia ter tomado medidas para as refutar devidamente. Mas não me parece que ele estivesse a par delas. Eu estava a referir-me ao que você nos disse hoje. A polícia voltou a contactar a enfermeira, Miss Williams, e ela disse-lhes que Norman Urquhart tomou todas as precauções para nunca ficar sozinho com o doente e nunca lhe deu quaisquer alimentos ou medicamentos, mesmo quando ela própria estava presente. Isso não indicia uma consciência pesada? – Não encontrará nenhum advogado nem nenhum júri que acredite nisso, Peter. – Sim, mas olhe cá, não lhe parece estranho? Ouça isto, Miss Murchison. Um dia, a enfermeira estava a fazer qualquer coisa no quarto e tinha o medicamento na prateleira por cima do fogão de sala. Algo foi dito sobre o medicamento e o Boyes comentou: «Oh, não se incomode, senhora enfermeira. O Norman pode dar-me o remédio.» Norman diz «Tudo bem, meu velho!», como eu ou a senhora diríamos? Não. Diz: «Não, deixo isso à senhora enfermeira, eu podia fazer asneira.» É um argumento bastante fraco, não lhe parece? – Muitas pessoas sentem-se nervosas se tiverem de cuidar de doentes – disse Miss Murchison. – Sim, mas a maior parte das pessoas consegue deitar um remédio de um frasco para um copo. O Boyes não estava às portas da morte, estava a falar bastante racionalmente e tudo. Na minha opinião, o homem estava a proteger-se deliberadamente. – É possível – disse Parker –, mas, afinal, meu velho, quando é que ele administrou o veneno? – Provavelmente, não foi ao jantar – disse Miss Murchison. – Como diz, as precauções parecem bastante óbvias. Talvez se destinassem a levar as pessoas a concentrarem atenções no jantar e a esquecer outras possibilidades. Ele tomou um uísque quando chegou a casa ou antes de sair? – Infelizmente, não. O Bunter tem andado a arrastar a asa à criada, Hannah Westlock, quase ao ponto de poder vir a ser processado por incumprimento de promessas, e ela diz que abriu a porta ao Boyes quando ele chegou, que ele foi diretamente para o seu quarto, que o Urquhart não estava em casa nessa altura e só regressou um quarto de hora antes do jantar e que os dois se encontraram pela primeira vez quando tomaram o famoso cálice de xerez na biblioteca. As portas de correr entre a


biblioteca e a sala de jantar estavam abertas e a Hannah andou a cirandar por ali todo o tempo, a pôr a mesa, e tem a certeza de que o Boyes bebeu o xerez e nada mais. – Nem sequer uma pastilha para a indigestão? – Nada. – E depois do jantar? – Depois de acabarem de comer a omelete, o Urquhart disse qualquer coisa sobre tomarem um café. O Boyes olhou para o relógio e disse: «Não tenho tempo, meu velho; tenho de me pôr a caminho de Doughty Street.» O Urquhart disse que mandava chamar um táxi e saiu da sala para o fazer. O Boyes dobrou o guardanapo, levantou-se e saiu para o átrio. A Hannah seguiu-o e ajudou-o a vestir o casaco. O táxi chegou. O Boyes entrou nele e lá se foi sem voltar a ver o Urquhart. – Parece-me – disse Miss Murchison – que a Hannah é uma testemunha extremamente importante para a defesa de Mr. Urquhart. Não pensam... custa-me sugeri-lo... não pensam que o Bunter possa estar a permitir que os seus sentimentos dominem a sua razão? – Ele diz – respondeu Lord Peter – que acredita que a Hannah seja uma mulher sinceramente religiosa. Já se sentou ao lado dela na igreja e leu pelo livro de hinos religiosos dela. – Mas isso pode ser mera hipocrisia – disse Miss Murchison bastante acaloradamente, porque era uma racionalista militante. – Não confio nessas pessoas muito santinhas. – Não o apresentei como prova da virtude da Hannah – disse Wimsey –, mas da invulnerabilidade do Bunter. – Mas ele parece um verdadeiro diácono. – Nunca viu o Bunter nos dias de folga. – disse Lord Peter sombriamente. – Eu já, e posso garantirlhe que um livro de hinos religiosos teria o mesmo efeito sobre o coração dele que o de um uísque puro no fígado de um alcoólico. Não; se o Bunter diz que a Hannah é honesta, então é porque ela é mesmo honesta. – Então, isso decididamente exclui as bebidas e o jantar – disse Miss Murchison, ainda não convencida, mas disposta a manter alguma abertura de espírito. – E a garrafa de água no quarto dele? – Que diabo! – gritou Wimsey. – Marcou um ponto, Miss Murchison. Não pensámos nisso. A garrafa de água... sim... uma ideia perfeitamente frutuosa. Decerto se lembra, Charles, de que no caso Bravo foi sugerido que uma criada descontente tinha posto tártaro emético na garrafa de água. Oh, Bunter... aí está! Da próxima vez que dê a mão à Hannah, não se importa de lhe perguntar se Mr. Boyes bebeu água da garrafa que tinha no quarto antes do jantar? – Perdoe-me, vossa senhoria, mas essa possibilidade já se tinha apresentado à minha mente. – Já? – Sim, vossa senhoria. – Nunca lhe escapa nada, Bunter? – Esforço-me por cumprir o meu dever, vossa senhoria. – Bem, então não fale como o Jeeves. Irrita-me. O que sabe sobre a garrafa de água? – Eu estava prestes a dizer, quando esta senhora chegou, que tinha obtido informação sobre uma circunstância algo peculiar relativa à garrafa de água. – Agora estamos a chegar a algum lado – disse Parker, alisando uma nova página do seu bloco de apontamentos. – Eu não diria tanto, senhor inspetor-chefe. A Hannah informou-me de que conduziu Mr. Boyes ao


seu quarto quando ele chegou e que se retirou, como lhe competia. Mal tinha chegado ao cimo das escadas quando Mr. Boyes pôs a cabeça fora da porta e voltou a chamá-la. Pediu-lhe então que enchesse a sua garrafa de água. Ela ficou bastante espantada com o pedido, porque se recordava perfeitamente de a ter enchido antes, quando arrumou o quarto. – Ele poderia tê-la esvaziado? – perguntou Parker animadamente. – Não para dentro de si mesmo, senhor... não teve tempo. O copo também não tinha sido utilizado. Além disso, a garrafa não estava meramente vazia, estava seca. A Hannah pediu desculpa pela falha e passou imediatamente a garrafa por água e encheu-a na torneira. – Curioso – disse Parker. – Mas é provável que ela não a tenha enchido antes. – Perdão, senhor, a Hannah ficou tão surpreendida com o caso que o mencionou a Mrs. Pettican, a cozinheira, que disse que se recordava claramente de a ver encher a garrafa nessa manhã. – Ora bem – disse Parker. – O Urquhart ou alguém devem tê-la esvaziado e secado. Mas porquê? O que faria naturalmente uma pessoa ao encontrar a garrafa de água vazia? – Tocaria a sineta – disse Wimsey prontamente. – Ou chamaria a criada – acrescentou Parker. – Ou – disse Miss Murchison – se uma pessoa não estivesse acostumada a ser servida, poderia usar a água do jarro do lavatório. – Ah!... é claro, o Boyes estava habituado a uma vida mais ou menos boémia. – Mas, com certeza – disse Wimsey –, isso são rodeios idiotas. Seria muito mais simples envenenar a água da garrafa. Porquê chamar a atenção para a coisa tornando-a mais difícil? Além disso, não se podia contar que a vítima recorresse ao jarro do lavatório... e, de facto, ele não o fez. – E foi envenenado – disse Miss Murchison –, por isso o veneno não estava nem no jarro nem na garrafa. – Não... receio bem que não haja nada a obter nem do jarro nem da garrafa. Oco, oco, oco, todo o encanto. Tennyson. – Seja como for – disse Parker –, esse incidente convence-me. É demasiado completo, de certo modo. O Wimsey tem razão; não é natural que uma defesa seja assim tão perfeita. – Meu Deus – disse Wimsey –, convencemos Charles Parker. Nada mais é necessário. Ele é mais renitente do que qualquer júri. – Sim – disse Parker, modestamente –, mas sou mais lógico, penso eu. E não estou a ser pressionado pelo procurador-geral. Ficaria mais satisfeito se houvesse provas de um tipo mais objetivo. – Pois ficaria. Quer algum arsénico verdadeiro. Então, Bunter, que me diz? – O equipamento está pronto, vossa senhoria. – Muito bem. Vamos lá ver se podemos dar a Mr. Parker o que ele quer. Indique o caminho e nós segui-lo-emos. Numa pequena divisão usualmente dedicada ao trabalho fotográfico de Bunter e equipada com um lava-louças, uma bancada e um bico de Bunsen, encontrava-se o equipamento necessário para fazer um teste Marsh de arsénico. A água destilada já estava a ferver no recipiente e Bunter pegou no pequeno tubo de vidro sobre a chama. – Pode verificar, vossa senhoria – observou ele –, que o equipamento está livre de contaminação. – Eu não vejo nada – disse Freddy. – Isso, como diria Sherlock Holmes, é o que pode esperar ver quando não há lá nada – disse


Wimsey delicadamente. – Charles, confirma que a água e o recipiente e o tubo e tudo o resto estão livres de arsénico? – Confirmo. – Promete amá-la, respeitá-la e sustentá-la, na doença assim como na saúde... desculpem lá! Virei duas páginas seguidas. Onde é que está o pó? Miss Murchison, identifica este envelope selado como sendo o que trouxe do escritório, contendo o misterioso pó branco do esconderijo secreto de Mr. Urquhart? – Identifico. – Pode beijar o livro. Obrigado. Ora bem... – Espere um segundo – disse Parker. – Não testou separadamente o envelope. – É verdade. Há sempre algures um senão. Suponho, Miss Murchison, que não trouxe outro envelope do escritório. Miss Murchison corou e remexeu na mala de mão. – Bem... tenho uma mensagem que escrevi esta tarde a uma pessoa amiga... – Durante as horas de trabalho, no papel do patrão – disse Wimsey. – Oh, que razão tinha Diógenes quando pegou na lanterna para procurar uma datilógrafa honesta! Paciência. Venha ele de lá. Os fins justificam os meios. Miss Murchison puxou o envelope da mala de mão e retirou o papel de dentro dele. Bunter, recebendo-o respeitosamente num prato, cortou-o em pequenos pedaços, que meteu no recipiente. A água fervilhou, mas o pequeno tubo de ensaio manteve-se incólume de uma ponta à outra. – Vai começar a acontecer alguma coisa dentro em breve? – perguntou Mr. Arbuthnot. – Porque acho que falta alguma animação a este espetáculo. – Se não te sentares muito quietinho, ponho-te lá fora – retorquiu Wimsey. – Continue lá, Bunter. Aprovamos o envelope. Bunter abriu o segundo envelope e deixou cair delicadamente o pó branco na abertura larga do recipiente. As cinco cabeças inclinaram-se ansiosamente sobre o equipamento. E instantaneamente, decididamente e como por magia, começou a formar-se uma fina mancha prateada no tubo de ensaio onde a chama incidia. Segundo a segundo, alastrou e escureceu até se transformar num anel de um castanho escuro quase preto, com um centro metálico brilhante. – Oh, maravilhoso, maravilhoso – disse Parker, com um encanto de profissional. – A lamparina está a deitar fumo ou coisa que o valha – disse Freddy. – Isso é arsénico? – murmurou delicadamente Miss Murchison. – Espero que sim – disse Wimsey, soltando com cuidado o tubo de ensaio e erguendo-o à luz. – Ou é arsénico ou é antimónio. – Dê-me licença, vossa senhoria. Adicionando uma pequena quantidade de soluto de cal clorada, a questão deve ficar decidida terminantemente. Realizou mais aquele teste num ambiente de tenso silêncio. A mancha dissolveu-se e desapareceu sob o efeito da solução de cloro. – Então, é arsénico – disse Parker. – Oh, sim – respondeu Wimsey, displicentemente –, é claro que é arsénico. Eu não vos disse? – A sua voz tremia um pouco com um tom de triunfo reprimido. – E é tudo? – disse Freddy, dececionado. – Não basta? – perguntou Miss Murchison.


– Não totalmente – respondeu Parker – mas é um bom avanço. Prova que o Urquhart tem arsénico na sua posse e, fazendo uma investigação oficial em França, é provável que consigamos descobrir se este pacote já estava de posse dele em junho passado. Reparo, a propósito, que se trata do vulgar ácido de arsénico branco, sem qualquer mistura de carvão ou de índigo, o que está de acordo com o que se descobriu na autópsia. Isso é satisfatório, mas seria ainda mais satisfatório se conseguíssemos provar que Mr. Urquhart teve oportunidade de o administrar. Até agora, só demonstrámos claramente que ele não poderia tê-lo dado ao Boyes antes, durante ou depois do jantar, durante o período necessário para que os sintomas se desenvolvessem. Concordo que uma impossibilidade assim tão confirmada por testemunhos é, por si só, suspeita, mas, para convencermos um júri, eu preferiria algo melhor do que um credo quia impossibile. – Andamos às voltas – disse Wimsey, imperturbado. – Escapou-nos alguma coisa, é tudo. Provavelmente, algo bastante óbvio. Deem-me o roupão e o cachimbo da praxe e eu encarrego-me de deslindar este assunto num abrir e fechar de olhos. Entretanto, sem dúvida que o Parker tomará medidas, de modo laborioso e oficial, para garantir a segurança das provas que aqui os nossos bondosos amigos conseguiram já reunir tão capazmente com métodos pouco convencionais e se compromete a mandar prender o homem certo quando chegar o momento? – Fá-lo-ei – disse Parker –, com todo o gosto. Para além das considerações pessoais, preferia de longe ver aquele sujeito todo cheio de brilhantina no banco dos réus a ver lá qualquer mulher, e se as forças policiais cometeram um erro, quanto mais cedo o emendarmos melhor para todos os interessados.

Nessa noite, Wimsey ficou até tarde na biblioteca preta e amarela, com os fólios a olharem-no de alto. Representavam a acumulação de sabedoria amadurecida e de beleza poética do mundo, já para não falar de milhares de libras a pronto. Mas todos esses conselheiros se mantinham em silêncio nas suas prateleiras. Espalhados pelas mesas e pelas cadeiras encontravam-se os volumes de encadernações escarlates dos Julgamentos Britânicos Famosos – Palmer, Pritchard, Maybrick, Seddon, Armstrong, Madeleine Smith, os grandes especialistas no uso de arsénico – juntamente com as principais autoridades em medicina forense e em toxicologia. As multidões que tinham ido ao teatro regressaram a casa em carros e táxis, as luzes brilharam sobre a extensão vazia de Piccadilly, os pesados camiões noturnos rolaram lentos e raros sobre o asfalto negro, a longa noite desvaneceu-se e a relutante madrugada do inverno estendeu-se a custo sobre os telhados de Londres. Bunter, em silêncio e ansioso, ficou sentado na cozinha, a fazer café e a ler a mesma página do British Journal of Photography uma e outra vez. Às oito e meia, soou a sineta da biblioteca. – Vossa senhoria? – O meu banho, Bunter. – Muito bem, vossa senhoria. – E café. – Imediatamente, vossa senhoria. – E ponha nas estantes todos os livros, menos estes. – Sim, vossa senhoria. – Sei agora como foi.


– Ah, sim, vossa senhoria? Permita-me que lhe dê os meus respeitosos parabéns. – Ainda me falta prová-lo. – Uma questão de somenos, vossa senhoria. Wimsey bocejou. Quando Bunter regressou daí a um momento com o café, ele estava a dormir. Bunter arrumou os livros silenciosamente e olhou com alguma curiosidade para os poucos escolhidos que tinham ficado abertos em cima da mesa. Eram: O Julgamento de Florence Maybrick; Medicina Forense e Toxicologia, de Dixon Mann; um livro com um título alemão, que Bunter não sabia ler; e A Shropshire Lad, de A. E. Housman. Bunter examinou estes livros por uns momentos e depois bateu levemente na coxa. – Ora, é claro – disse entredentes. – Mas que data de imbecis desmiolados que nós fomos! Sacudiu levemente o ombro do patrão. – O café, vossa senhoria.


CAPÍTULO VINTE E UM – Então não se casa comigo? – disse Lord Peter. A prisioneira abanou a cabeça. – Não. Não seria justo para si. E além disso... – Sim? – Tenho medo do casamento. Não se pode sair dele. Viverei consigo, se quiser, mas não me caso. O tom dela era tão indizivelmente abatido, que Wimsey não conseguiu sentir nenhum entusiasmo por aquela proposta generosa. – Mas esse tipo de coisa nem sempre resulta – argumentou ele. – Com mil diabos, a Harriet devia sabê-lo... perdoe-me por aludir a isso... mas é terrivelmente inconveniente e têm-se tantas zangas como se se estivesse casado. – Eu sei isso. Mas podia acabar com tudo a qualquer momento, se quisesse. – Mas eu não quereria tal. – Oh, sim, ia querê-lo. O Peter tem família e tradições, sabe? A mulher de César e essa coisa toda. – Que se dane a mulher de César! E quanto às tradições da família... elas estão a meu favor, valha isso o que valer. Tudo o que um Wimsey faça é correto e que Deus ajude a pessoa que se lhe atravesse no caminho. Temos um lema de família antiquíssimo, «Eu mantenho o meu Whimsy»29, que é muito correto. Não posso dizer que, quando me vejo ao espelho, pareça tal e qual o original Gerald de Wimsey, que cirandou pelo Cerco de Acre numa cavalgadura, mas tenho a firme intenção de fazer o que me apetecer no que diz respeito ao casamento. Quem é que me impediria? Não me podem comer. Nem me podem deserdar, se chegar a esse ponto. É uma piada não intencional, senhores guardas, só para esta ocasião. Harriet riu-se. – Não, suponho que não podem deserdá-lo. Não teria de se esgueirar para o estrangeiro e viver com a sua mulher impossível em termas obscuras na Europa como as personagens dos romances vitorianos. – Com certeza que não. – As pessoas esqueceriam que eu tinha tido um amante? – Minha querida menina, esquecem esse tipo de coisa todos os dias. São especialistas nisso. – E que, supostamente, o assassinei? – E foi triunfalmente ilibada do assassínio, por mais que tivesse motivos para o cometer. – Bem, eu não me caso consigo. Se as pessoas conseguem esquecer tudo isso, podem esquecer que não somos casados. – Oh, sim, elas poderiam esquecê-lo. Mas eu não, é tudo. Não parecemos estar a avançar muito rapidamente nesta conversa. Deduzo que, no geral, a ideia de viver comigo não a repugna irremediavelmente. – Mas isto é tudo tão disparatado! – protestou Harriet. – Como posso dizer o que faria ou o que


não faria se estivesse livre e convicta de que... sobreviveria? – Porque não? Eu consigo imaginar o que faria mesmo nas circunstâncias mais improváveis, ao passo que isto é uma certeza absoluta, direta da fonte. – Não posso – disse Harriet, começando a soçobrar. – Por favor, deixe de me fazer a pergunta. Não sei. Não consigo pensar. Não consigo ver para além... para além... para além das próximas semanas. Só quero ver-me livre disto e que me deixem sozinha. – Muito bem – disse Wimsey –, eu não continuo a incomodá-la. Não é justo. Estou a abusar dos meus privilégios. Como a Harriet não pode dizer «Que lapa!» e pôr-se a andar, nestas circunstâncias, eu não volto a repetir. De facto, vou mas é pôr-me eu a andar, porque tenho uma marcação... com uma manicura. Uma pequena simpática, mas com pronúncia um pouco afetada. Adeuzinho!

A manicura, que tinha sido descoberta com a ajuda do inspetor-chefe Parker e dos seus investigadores, era uma moça com um rosto de gatinha, modos cativantes e olhar astuto. Não hesitou em aceitar o convite do seu cliente para jantar e não mostrou surpresa quando ele murmurou confidencialmente que tinha uma pequena proposta para lhe apresentar. Pousou os cotovelos rechonchudos na mesa, inclinou a cabeça num ângulo sedutor e preparou-se para vender cara a sua honra. À medida que a proposta se foi revelando, os seus modos sofreram uma alteração quase cómica. Os seus olhos perderam a expressão arregalada de inocência, até o seu cabelo pareceu ficar menos macio, e franziu as sobrancelhas, genuinamente espantada. – Ora, é claro que eu podia – disse ela finalmente –, mas para que é que as quer? A mim parece-me esquisito. – Digamos que é só uma piada – disse Wimsey. – Não. – A sua boca endureceu. – Não me agrada. Não faz sentido, se entende o que quero dizer, parece uma piada esquisita e esse tipo de coisa pode meter uma pessoa em trabalhos. Ouça, não é um daqueles, como é que lhe chamam?... Vinha qualquer coisa sobre o assunto na coluna da Madame Crystal na semana passada na revista Susie’s Snippets... Um feitiço, sabe, bruxaria... o oculto, esse tipo de coisa? Eu não gostaria de me meter nisso se fosse para fazer mal a alguém. – Não vou fazer uma figura de cera, se é a isso que se refere. Olhe cá, é o tipo de moça que consegue guardar um segredo? – Oh, eu não falo. Nunca fui de dar com a língua nos dentes. Não sou como as outras moças. – Pois não, eu achei logo que não era. Por isso é que a convidei para sair comigo. Bem, escute, e eu explico-lhe tudo. Inclinou-se para a frente e falou. O pequeno rosto maquilhado erguido para o seu ficou com uma expressão tão absorvida e excitada que uma sua amiga do peito, a jantar a uma mesa distante, sentiuse irritada com inveja, com a certeza de que estavam a ser oferecidos à querida Mabel um apartamento em Paris, um Daimler e um colar no valor de mil libras, e zangou-se fatalmente com o seu acompanhante. – Por isso, está a ver – disse Wimsey –, significa muito para mim. A querida Mabel soltou um suspiro extasiado. – Isso tudo é verdade? Não está a inventar? É melhor do que os filmes. – Sim, mas não pode dizer nem uma palavra. É a única pessoa a quem eu contei. Não me vai


desmascarar perante ele, pois não? – Perante ele? Ele é um sovina horroroso. Nem por sombras eu lhe daria fosse o que fosse. Conte comigo. Eu faço-lhe o favor. Vai ser um bocado difícil, porque vou ter de usar as tesouras, o que em regra não fazemos. Mas eu cá me arranjo. Confie em mim. Mas não vão ser grandes, sabe? Ele vai lá com muita frequência, mas eu dou-lhe tudo o que obtiver. E trato do Fred. É sempre o Fred que o atende. O Fred faz isso, se eu lho pedir. O que é que eu faço com elas quando as obtiver? Wimsey tirou um envelope do bolso. – Fechadas aqui dentro – disse ele, solenemente –, há duas caixinhas para comprimidos. Não deve tirá-las até obter os espécimes, porque foram cuidadosamente preparadas para ficarem absolutamente limpas do ponto de vista químico, se me faço entender. Quando estiver pronta, abra o envelope, tire as caixinhas, ponha as aparas de unhas numa e o cabelo na outra, feche-as imediatamente, meta-as num novo envelope e mande-as por correio para esta morada. Compreendeu? – Sim. – Ela estendeu ansiosamente a mão. – Boa menina. E nem uma palavra. – Nem... uma... palavra! – Fez um gesto de cautela exagerada. – Quando faz anos? – Oh, não faço. Nunca fico mais velha. – Certo. Então posso mandar-lhe um presente de não-aniversário em qualquer dia do ano. Na minha opinião, seria muito bom vê-la de vison. – «Bom vê-la de vison» – disse ela, trocista. – O senhor é um poeta, não é? – A menina inspira-me – disse Wimsey, delicadamente. 29 Trocadilho baseado na semelhança entre o nome da família, Wimsey, e a palavra whimsy (capricho). (N. da T.)


CAPÍTULO VINTE E DOIS – Vim cá – disse Mr. Urquhart –, em resposta à sua carta. Interessa-me muito saber que tem algumas informações novas sobre a morte do meu desafortunado primo. É claro que terei todo o prazer em ajudá-lo no que possa. – Obrigado – disse Wimsey. – Sente-se, por favor. Já jantou, evidentemente? Mas toma um café. Prefere café turco, suponho. O meu criado fá-lo bastante bem. Mr. Urquhart aceitou a oferta e deu os parabéns a Bunter por ele ter usado com êxito o método correto de fazer aquela bebida curiosamente parecida com melaço, tão pouco ao gosto do ocidental médio. Bunter agradeceu-lhe gravemente a sua boa opinião e apresentou-lhe uma caixa da igualmente repugnante doçaria chamada Turkish Delight, que não só se cola ao palato e aos dentes, mas também envolve quem a consome numa nuvem farinhenta de açúcar branco. Mr. Urquhart imediatamente arrolhou a boca com um grande pedaço, murmurando indistintamente que era a variedade genuinamente oriental. Wimsey, com um sorriso austero, bebeu uns goles de café forte sem açúcar nem leite e serviu-se de um cálice de aguardente velha. Bunter retirou-se e Lord Peter, pousando um bloco de apontamentos aberto no joelho, lançou um olhar ao relógio de parede e começou a sua narrativa. Recapitulou demoradamente as circunstâncias da vida e da morte de Philip Boyes. Mr. Urquhart, bocejando sub-repticiamente, comeu, bebeu e escutou. Wimsey, ainda de olho no relógio, embarcou em seguida na história do testamento de Mrs. Wrayburn. Mr. Urquhart, consideravelmente espantado, pousou a chávena de café, limpou os dedos pegajosos ao lenço de bolso e olhou-o fixamente. Ao fim de algum tempo, disse: – Posso perguntar-lhe como obteve estas informações extraordinárias? Wimsey acenou com a mão. – Pela polícia – disse. – Coisa maravilhosa, a organização da polícia. É surpreendente o que descobrem quando querem. Não nega nada disto, suponho. – Estou a escutar – disse Mr. Urquhart, sombriamente. – Depois de o senhor terminar esta tirada extraordinária, talvez eu descubra o que é que tenho de negar ao certo. – Oh, sim – disse Wimsey –, eu tentarei deixá-lo bem claro. Não sou advogado, evidentemente, mas estou a tentar ser tão claro quanto possível. Prosseguiu impiedosamente e os ponteiros do relógio deram uma volta completa. – Tanto quanto compreendo – disse, depois de ter passado em revista a questão do motivo –, era seu interesse livrar-se de Mr. Philip Boyes. E, na verdade, o sujeito era, na minha opinião, um empecilho sem préstimo nenhum e, no seu lugar, eu sentiria por ele o mesmo que o senhor. – E é a isso que se resume a sua acusação descabelada? – perguntou o advogado. – De modo nenhum. Chegarei agora ao que interessa. «Devagar se vai ao longe» é o lema aqui


deste seu criado. Reparo que tomei setenta minutos do seu precioso tempo, mas, acredite, esta hora não foi mal gasta. – Admitindo que toda esta disparatada história fosse verdadeira, o que nego enfaticamente – disse Mr. Urquhart –, interessar-me-ia sobremaneira saber como imagina que eu ministrei o arsénico. Já lhe ocorreu alguma ideia engenhosa? Ou supõe que eu subornei a minha cozinheira e a minha criada de fora para elas serem minhas cúmplices? Seria um pouco precipitado da minha parte, não lhe parece? E proporcionaria boas oportunidades para chantagem. – Tão precipitado – disse Wimsey – que está completamente fora de questão para um homem tão cauteloso como o senhor. O facto de ter mandado selar aquela garrafa de vinho da Borgonha, por exemplo, aponta para um espírito atento às possibilidades... invulgarmente atento. De facto, esse episódio atraiu a minha atenção desde o princípio. – Ah, sim? – Pergunta-me quando e como ministrou o veneno. Não foi antes do jantar, penso eu. A premeditação demonstrada ao esvaziar a garrafa de água do quarto... oh, não! esse ponto não passou despercebido... o cuidado exibido em encontrar-se com o seu primo diante de testemunhas e nunca ficar sozinho com ele... penso que esses factos excluem o período antes do jantar. – Parece-me que sim. – O xerez – prosseguiu Wimsey, pensativamente. – Era uma garrafa nova, decantada recentemente. O desaparecimento do que restava poderia ser alvo de comentários. Parece-me que podemos excluir o xerez. Mr. Urquhart inclinou ironicamente a cabeça. – A sopa... também foi comida pela cozinheira e pela criada de fora, que sobreviveram. Inclino-me para excluir a sopa, e o mesmo se aplica ao peixe. Seria mais fácil envenenar uma porção de peixe, mas tal envolveria a cooperação de Hannah Westlock, o que contradiz a minha teoria. Uma teoria é uma coisa sagrada para mim, Mr. Urquhart... quase aquilo a que se chamaria... um dogma. – Uma atitude mental pouco sensata – comentou o advogado –, mas, nestas circunstâncias, não a questionarei. – Além disso – disse Wimsey –, se o veneno fosse dado na sopa ou no peixe, poderia começar a fazer efeito antes de o Philip... posso tratá-lo pelo nome próprio, espero? Antes de o Philip sair de casa. E chegamos ao frango de caçarola. Mrs. Pettican e Hannah Westlock podem afiançar que estava em boas condições sanitárias, acho eu. E, já agora, pela descrição que foi feita, devia estar delicioso. Falo como alguém com uma considerável experiência em questões gastronómicas, Mr. Urquhart. – Sei-o bem – disse Mr. Urquhart, delicadamente. – E resta-nos apenas a omelete. Um prato admirável, quando bem feito e comido... isso é muito importante... comido imediatamente. Uma ideia encantadora, trazer os ovos e o açúcar para a mesa e prepará-la e cozinhá-la ali mesmo. Já agora, suponho que não sobrou omelete para ser consumida na cozinha? Não, não! Não se deixa ir meio por comer um prato assim apetitoso. Seria muito melhor que a cozinheira fizesse uma bela omelete para ela e para a colega. Ninguém a não ser o senhor e o Philip comeu a omelete, tenho a certeza. – E tem razão – disse Mr. Urquhart –, não me dou ao trabalho de o negar. Mas tenha presente que eu também a comi, sem quaisquer efeitos indesejáveis. E, além disso, foi o meu primo quem a fez. – Assim foi. Quatro ovos, se bem me lembro, com açúcar e compota do que poderia chamar-se a


reserva comum. Não... não havia nada de errado no açúcar nem na compota. Hum... suponho que tenho razão ao dizer que um dos ovos estava estalado quando veio para a mesa? – Possivelmente. Não me recordo. – Não? Bem, não está a falar sob juramento. Mas Hannah Westlock recorda-se de que, quando o senhor trouxe os ovos... foi o senhor quem os comprou, sabe, Mr. Urquhart? Ela recorda-se de que o senhor mencionou que um deles estava estalado e deu indicações claras para que fosse usado na omelete. De facto, foi o próprio senhor quem o pôs na taça para esse fim. – E que tem isso? – perguntou Mr. Urquhart, talvez um pouco menos à vontade do que antes. – Não é muito difícil introduzir arsénico em pó num ovo estalado – disse Wimsey. – Eu próprio fiz essa experiência com uma pequena pipeta. Talvez com um pequeno funil fosse ainda mais fácil. O arsénico é uma substância bastante pesada, sete ou oito grãos cabem numa colher de chá. Acumula-se numa das extremidades do ovo e quaisquer vestígios na casca podem ser rapidamente limpos. O arsénico líquido é ainda mais fácil de ser vertido para dentro de um ovo, é claro, mas, por uma razão particular, eu fiz a experiência com o comum pó branco. É bastante solúvel. Mr. Urquhart tinha tirado um charuto da sua cigarreira e estava muito ocupado a acendê-lo. – Está a sugerir – perguntou – que, ao bater quatro ovos, um deles, envenenado, foi de algum modo milagrosamente mantido separado do resto e depositado com a sua carga de arsénico numa das extremidades da omelete? Ou que o meu primo se serviu deliberadamente da extremidade envenenada e me deixou o resto? – De modo nenhum, de modo nenhum – disse Wimsey. – Estou meramente a sugerir que o arsénico estava na omelete e entrou nela através do ovo. Mr. Urquhart atirou o fósforo para a lareira. – Parece haver algumas falhas tanto no ovo como na sua teoria. – Ainda não acabei de expor a minha teoria. A parte seguinte assenta em indícios bastante menores. Permita-me que os enumere. O facto de não beber ao jantar, a sua tez, algumas aparas de unhas, uma ou duas madeixas do seu cabelo bem penteado... junto tudo isto, acrescento um pacote de arsénico branco encontrado no armário secreto do seu escritório, esfrego um pouco as mãos... assim... e obtenho... cânhamo, Mr. Urquhart, cânhamo. Esboçou ligeiramente a forma de um nó no ar. – Não o compreendo – disse o advogado com voz rouca. – Oh, o senhor sabe – disse Wimsey. – Cânhamo... o material de que se fazem as cordas. É um ótimo material, o cânhamo. Sim, bem, quanto ao tal arsénico. Como sabe, não faz bem às pessoas, em geral, mas há algumas... aqueles maçadores camponeses da Estíria de que tanto se ouve falar... que, supostamente, o ingerem por diversão. Dá-lhes energia, pelo que dizem, torna-lhes a tez mais límpida e o cabelo mais brilhante e dão-no aos seus cavalos pelas mesmas razões; excetuando a questão da tez, claro, porque os cavalos não têm propriamente tez, mas compreende decerto o que eu quero dizer. E houve também aquele horrível homenzinho, o Maybrick... costumava tomar arsénico, ao que consta. Seja como for, é bem sabido que algumas pessoas tomam arsénico e conseguem consumir grandes quantidades com alguma prática, o suficiente para matar uma pessoa normal. Mas o senhor sabe tudo isto. – É a primeira vez que ouço tal coisa. – Para onde é que julga que vai? Deixe lá. Faremos de conta que isto é tudo novidade para o senhor. Bem, um sujeito qualquer... esqueci-me do nome dele, mas está tudo no livro de Dixon


Mann... perguntou-se como é que a coisa funcionava e fez a experiência com cães, dando-lhes arsénico e matando uma data deles, mas por fim descobriu que, ao passo que o arsénico líquido era processado pelos rins e era muitíssimo nefasto para o organismo, o arsénico na sua forma sólida podia ser ministrado dia após dia, numa dose um pouco maior de cada vez, de modo que com o tempo as entranhas... aquilo a que uma velha senhora que eu conheci em Norfolk chamava «os tubos»... se habituavam a ele e eram capazes de o processar sem mossa, por assim dizer. Li algures num livro que a coisa é toda feita pelos leucócitos... esses lindos corpúsculos brancos, como sabe... que arrebanham o arsénico e o expelem para que ele não possa causar danos. Seja como for, a questão é que se tomar arsénico em forma sólida durante muito tempo... digamos, cerca de um ano... cria a tal coisa, a tal imunidade, e poderá tomar seis ou sete grãos de cada vez sem sequer ficar com indigestão. – Muito interessante – disse Mr. Urquhart. – Aparentemente, é assim que esses horrendos camponeses da Estíria o fazem, e têm o cuidado de não beber durante cerca de duas horas depois de o tomarem, por receio de que possa ir parar aos rins e tornar-se venenoso. Lamento não estar a explicar muito bem os pormenores técnicos, mas é isso, em traços gerais. Bem, ocorreu-me, sabe, meu caro, que, se o senhor tivesse tido a brilhante ideia de se imunizar primeiro, poderia facilmente ter partilhado uma omelete com arsénico com um amigo. Matá-lo-ia a ele e não lhe faria mal a si. – Estou a ver. O advogado lambeu os lábios. – Bem, como digo, o senhor tem uma bela tez límpida, mas reparo que o arsénico pigmentou a pele aqui e ali (acontece, por vezes), e tem o cabelo brilhante e tudo, e reparei que teve o cuidado de não beber ao jantar e disse para comigo: «Peter, meu esperto rapaz, que me dizes a isto?» E quando foi encontrado um pacote de pó branco no seu armário... não interessa como, para já!... eu disse: «Olá, olá, há quanto tempo é que isto se passa?» O seu prestável farmacêutico estrangeiro disse que há dois anos... é verdade? Por volta da altura da queda do Fundo Megatherium, não foi? Pronto, não me diga se não quiser. A seguir, apoderámo-nos de alguns cabelos e de aparas de unhas seus e não é que estavam cheios de arsénico? E dissemos: «Ena pá!» Foi por isso que o convidei para vir até cá ter uma conversinha comigo. Pensei que talvez quisesse apresentar alguma sugestão, sabe? – Só posso sugerir – disse Mr. Urquhart com uma expressão agastada mas modos estritamente profissionais – que pense bem antes de comunicar essa absurda teoria a alguém. O que o senhor e a polícia... que, francamente, acredito ser capaz de tudo... têm andado a pôr no meu escritório não sei, mas divulgar que eu sou viciado em drogas é uma difamação e um ato criminoso. É verdade que tomo há algum tempo um medicamento que contém ligeiros vestígios de arsénico... o Dr. Grainger pode facultar-lhe a receita..., o que muito provavelmente me deixou alguns vestígios na pele e no cabelo, mas, para além disso, essa monstruosa acusação não tem fundamento. – Nenhum? – Nenhum. – Então, como é que – perguntou Wimsey, friamente, mas com algo ameaçador na sua voz rigidamente controlada –, como é que consumiu esta noite, aparentemente sem qualquer efeito adverso, uma dose de arsénico suficiente para matar duas ou três pessoas normais? Essas gomas repugnantes que tem estado a enfardar de uma forma, permita-me dizer-lho, totalmente desadequada à sua idade e à sua posição, estão cheias de arsénico branco. Comeu-as, que Deus lhe perdoe, há cerca


de uma hora e meia. Se o arsénico lhe fizesse mal já deveria estar a rebolar-se com dores agonizantes há uma hora. – Seu diabo! – Não consegue fingir alguns sintomas? – disse Wimsey, sarcasticamente. – Quer que lhe traga uma bacia? Ou que mande chamar o médico? Arde-lhe a garganta? Tem as entranhas em convulsões de agonia? Já é um pouco tarde para isso, mas, com um pouco de boa vontade, com certeza conseguiria exibir alguma reação, até mesmo agora. – Está a mentir. Não se atreveria a fazer tal coisa! Seria homicídio. – Não neste caso, parece-me. Mas estou disposto a esperar para ver. Urquhart fitou-o. Wimsey levantou-se da cadeira num só movimento rápido e postou-se diante dele. – Eu não recorreria à violência, se fosse a si. A sua especialidade é o veneno. Além disso, eu estou armado. Perdoe o melodrama. Vai vomitar ou não? – Você está louco. – Não diga isso. Vá lá, homem... controle-se. Tente vomitar. Quer que lhe indique onde fica a casa de banho? – Estou a sentir-me mal. – É claro; mas o seu tom de voz não é convincente. Sai por esta porta, vai pelo corredor e é a terceira porta à esquerda. O advogado saiu aos tropeções. Wimsey voltou para a biblioteca e tocou a sineta. – Parece-me, Bunter, que Mr. Parker talvez precise de ajuda na casa de banho. – Muito bem, vossa senhoria. Bunter saiu e Wimsey aguardou. Daí a pouco tempo, ouviram-se sons de uma luta à distância. Apareceu um grupo à porta – Urquhart, muito pálido, com o cabelo despenteado e a roupa em desalinho, ladeado por Parker e Bunter, que o seguravam firmemente pelos braços. – Ele vomitou? – perguntou Wimsey, com interesse. – Não – disse Parker sombriamente, algemando a sua presa. – Amaldiçoou-o fluentemente durante cinco minutos e depois tentou sair pela janela, mas, ao ver que seria uma queda de um terceiro andar, irrompeu pela sala de estar e deu de caras comigo. Não estrebuches, meu garoto; só te magoas. – E ele continua sem saber se está ou não envenenado? – Não parece achar que está. De qualquer modo, não fez nenhum esforço em relação a isso. A única ideia dele era fugir. – Isso não convence – disse Wimsey –; se eu quisesse que as pessoas pensassem que eu tinha sido envenenado, faria uma cena melhor do que essa. – Pare de falar, por amor de Deus – disse o detido. – Apanhou-me com um vil truque desprezível. Não basta? Pode calar-se. – Oh – disse Parker –, apanhámos-te, foi? Bem, eu avisei-te para não falares e se queres fazê-lo a culpa não é minha. Já agora, Peter, suponho que não o envenenou mesmo, pois não? Não parece terlhe feito mal nenhum, mas condicionaria o relatório do médico. – Não, de facto não o envenenei – disse Wimsey. – Só queria ver como ele reagiria à sugestão. Bem, adeuzinho! Posso deixar o caso nas suas mãos agora. – Nós olhamos por ele – disse Parker. – Mas poderia pedir ao Bunter que nos chame um táxi? Depois de o prisioneiro e a sua escolta partirem, Wimsey virou-se pensativamente para Bunter, de


copo na mão. – Mitridates morreu velho30, diz o poeta. Mas duvido, Bunter. Neste caso, duvido muito. 30 Alusão a um poema de A. E. Housman sobre Mitridates (132-63 a.C.; rei do Ponto, na Anatólia, inimigo dos romanos), que consumia veneno regularmente e assim resistiu às tentativas de envenenamento dos seus inimigos. (N. da T.)


CAPÍTULO VINTE E TRÊS Havia crisântemos dourados na mesa do juiz: pareciam bandeiras a arder. Também a prisioneira tinha uma expressão nos olhos que era um desafio ao tribunal cheio de gente enquanto o escrivão lia a acusação. O juiz, um homem idoso e rechonchudo com um rosto do século XVIII, olhou com um ar expectante para o procurador-geral. – Meritíssimo, tenho instruções para dizer que a Coroa não apresenta provas contra esta prisioneira. A exclamação abafada que percorreu a sala parecia o restolhar das folhas das árvores quando se levanta o vento. – Posso deduzir que a acusação contra a prisioneira é retirada? – São essas as minhas instruções, Meritíssimo. – Nesse caso – disse o juiz impassivelmente, virando-se para o júri –, nada mais vos resta a não ser pronunciar um veredicto de «inocente». Senhor oficial de justiça, mantenha a ordem na galeria. – Um momento, Meritíssimo. – Sir Impey Biggs levantou-se, grande e majestoso. – Em nome da minha cliente, em nome de Miss Vane, Meritíssimo, peço a sua indulgência para me permitir dizer algumas palavras. Foi feita contra ela uma acusação, Meritíssimo, a terrível acusação de assassínio, e eu gostaria que ficasse bem claro, Meritíssimo, que a minha cliente sai deste tribunal sem qualquer mancha no seu carácter. Fui informado, Meritíssimo, de que não se trata de a acusação ser retirada por falta de provas. Sei, Meritíssimo, que a polícia obteve mais informações que provam decididamente a total inocência da minha cliente. Sei também, Meritíssimo, que foi efetuada nova detenção e que se seguirá um inquérito a seu devido tempo. Meritíssimo, esta senhora deve sair para o mundo ilibada, não só neste tribunal, mas também no tribunal da opinião pública. Qualquer ambiguidade seria intolerável e tenho a certeza, Meritíssimo, que tenho o apoio do douto procuradorgeral no que digo. – Com certeza – disse o procurador. – Tenho instruções para dizer, Meritíssimo, que ao retirar a acusação contra a prisioneira a Coroa procede com base na convicção da sua absoluta inocência. – Muito folgo em o ouvir – disse o juiz. – Prisioneira na barra, a Coroa, retirando sem quaisquer reservas a terrível acusação contra si, demonstrou a sua inocência da maneira mais clara que é possível. A partir de agora, ninguém poderá supor que a mínima imputação lhe é atribuída e congratulo-a do fundo do coração por este final muito satisfatório da sua prolongada provação. Agora, por favor... compreendo bem as pessoas que estão a dar vivas, mas isto não é um teatro nem um desafio de futebol e, se não se calarem, terão de ser expulsas. Membros do júri, declaram a prisioneira «culpada» ou «inocente»? – Inocente, Meritíssimo. – Muito bem. A prisioneira é absolvida sem qualquer mancha no seu carácter. Caso seguinte. Assim terminou, sensacionalista até ao fim, um dos julgamentos de assassínio mais sensacionalistas do século.


* Harriet Vane, agora uma mulher livre, encontrou Eiluned Price e Sylvia Marriott à sua espera ao descer as escadas. – Querida! – disse Sylvia. – Três grandes vivas! – disse Eiluned. Harriet cumprimentou-as um pouco vagamente. – Onde está Lord Peter Wimsey? – perguntou. – Tenho de lhe agradecer. – Não vais poder fazê-lo – disse Eiluned, bruscamente. – Vi-o partir de carro mal foi pronunciado o veredicto. – Oh! – exclamou Miss Vane. – Ele vai-te visitar – disse Sylvia. – Não vai nada – disse Eiluned. – Porque não? – perguntou Sylvia. – É demasiado decente – disse Eiluned. – Receio bem que tenhas razão – disse Harriet. – Eu gosto desse jovem – disse Eiluned. – Não te ponhas a sorrir. Gosto mesmo dele. Não vai pregar-te a partida do rei da Cofétua31 e tiro-lhe o chapéu por isso. Se queres vê-lo, vai ter de dar o primeiro passo. – Não faço tal – disse Harriet. – Oh, sim, fazes – disse Sylvia. – Eu acertei no assassino e vou acertar nisto também.

Lord Peter Wimsey partiu para Duke’s Denver ao fim da tarde desse dia. Foi encontrar a família num estado de perturbação, todos menos a duquesa viúva, que estava placidamente sentada a fazer tapeçaria no meio da algazarra. – Olhe lá, Peter – disse o duque –, você é a única pessoa que tem influência sobre a Mary. – Tem de fazer alguma coisa. Ela quer casar-se com aquele seu amigo polícia. – Eu sei – disse Wimsey. – E porque é que não havia de o fazer? – É ridículo – respondeu o duque. – De modo nenhum – disse Lord Peter. – O Charles é do melhor que há. – Acredito que sim – disse o duque –, mas a Mary não se pode casar com um polícia. – Ora bem, olhe cá – disse Wimsey, enfiando o braço da irmã no seu –, deixe a Polly32 em paz. O Charles cometeu uns erros ao princípio neste caso de assassínio, mas em regra não comete muitos, e um destes dias vai ser um grande homem, não me admirava nada que recebesse um título de nobreza, e só tem qualidades. Se quer zangar-se com alguém, zangue-se comigo. – Meu Deus! – disse o duque –, não vai casar-se com uma mulher-polícia? – Não exatamente – respondeu Wimsey. – Tenciono casar-me com a prisioneira. – O quê? – disse o duque. – Por Deus, o quê? – Se ela me quiser – disse Lord Peter Wimsey. 31 Personagem imaginária a que Shakespeare alude em mais do que uma peça. Rei africano que se apaixonou por uma mendiga. (N. da T.)


32 Polly ĂŠ um diminutivo de Mary. (N. da T.)


WIMSEY, Peter Death Bredon, d.s.o.; nascido em 1890, 2.o filho de Mortimer Gerald Bredon Wimsey, 15.o duque de Denver, e de Honoria Lucasta, filha de Francis Delagardie de Bellingham Manor, Hants. Educação: Colégio de Eton e Balliol, Oxford (licenciatura com nota máxima, Escola de História Moderna, 1912); serviu nas Forças de Sua Majestade 1914/18 (Major, Brigada de Infantaria). Autor de «Notas sobre o Colecionismo de Incunábulos», «Vade-Mécum do Assassino», etc. Passatempos: criminologia; bibliofilia; música; críquete. Clubes: Marlborough; Egostists’. Residências: 110A Picadilly, W.; Bredon Hall, Duke’s Denver, Norfolk. Pedra d’armas: zibelina, três ratos a correr, prata; brasão: um gato doméstico pronto a saltar; lema: «Ao sabor dos meus caprichos.»


Uma breve biografia de Lord Peter Wimsey, atualizada (maio de 1935) e comunicada pelo seu tio Paul Austin Delagardie. Pede-me Miss Sayers que preencha certas lacunas e corrija alguns erros factuais menores no seu relato da carreira do meu sobrinho Peter. Fá-lo-ei com prazer. Ser publicado é a ambição de todos os homens, e, desempenhando o papel de uma espécie de escudeiro dos triunfos do meu sobrinho, só patentearei uma modéstia adequada à minha idade avançada. A família Wimsey é antiga – demasiado antiga, se me é permitido dar a minha opinião. A única coisa sensata que o pai do Peter alguma vez fez foi aliar a sua casta exaurida ao ramo vigoroso da família franco-inglesa dos Delagardies. Mesmo assim, o meu sobrinho Gerald (o atual duque de Denver) não passa de um morgado inglês com o cérebro de um boi e a minha sobrinha Mary era bastante inconstante e tonta até se casar com um polícia e assentar. O Peter, apraz-me dizê-lo, sai à mãe e a mim. É verdade que ele é todo nervos e faro – mas isso é preferível a ser só músculos sem cérebro como o pai e o irmão dele, ou um mero feixe de emoções, como o filho do Gerald, o SaintGeorge. Pelo menos, ele herdou o cérebro dos Delagardies para compensar o desafortunado temperamento dos Wimseys. O Peter nasceu em 1890. A mãe dele andava muito preocupada na época com o comportamento do marido (o Denver sempre deu maçadas, embora o grande escândalo só tenha rebentado no ano do Jubileu), e talvez as suas ansiedades tenham afetado o garoto. Ele era uma criança débil, muito inquieto e maroto, e sempre demasiado esperto para a idade. Não tinha nenhuma beleza física robusta, mas desenvolveu o que eu poderia chamar uma espécie de esperteza corporal, mais assente na habilidade do que na força. Tinha olho rápido para a bola e belas mãos para um cavalo. Tinha também a coragem do diabo: o tipo inteligente de coragem que vê o risco antes de o correr. Sofria com pesadelos em criança. Para consternação do pai, cresceu com uma verdadeira paixão por livros e pela música. Os seus primeiros tempos na escola não foram felizes. Era uma criança com gostos delicados, e suponho que era natural que os colegas lhe chamassem «Flimsy»33 e o tratassem como se fosse uma espécie de piada. E, para se proteger, ele poderia ter aceitado essa posição e degenerado num mero bobo da corte, se um professor de Educação Física em Eton não tivesse descoberto que ele possuía uma extraordinária aptidão natural para o críquete. Depois disso, evidentemente, todas as suas excentricidades foram aceites como prova de sentido de humor, e o Gerald sofreu o choque salutar de ver o seu desprezado irmão mais novo tornar-se uma personalidade maior do que ele. Ao chegar ao último ano do liceu, o Peter tinha já conseguido tornar-se a moda da escola – atleta, estudioso, arbiter elegantiarum – nec pluribus impar. O críquete teve muito a ver com isso – muitos homens de Eton se recordam do «Grande Flim» e do seu desempenho contra o colégio de Harrow –, mas eu posso gabar-me de lhe ter apresentado um bom alfaiate, orientado na vida social em Londres e ensinado a distinguir um bom vinho de um mau vinho. O Denver não quis saber dele – tinha demasiados problemas próprios e além disso estava ocupado com o Gerald, que nessa altura andava a fazer uma bela figura de tolo em Oxford. De facto, o Peter nunca se deu bem com o pai, era um jovem crítico implacável dos pecadilhos paternais, e a sua solidariedade com a mãe teve um efeito


destrutivo no seu sentido de humor. O Denver, escusado será dizer, era a última pessoa a tolerar as suas próprias fraquezas na sua prole. Custou-lhe bastante dinheiro salvar o Gerald do caso de Oxford e mostrou-se disposto a entregar-me o seu outro filho. De facto, aos dezassete anos o Peter veio viver comigo por iniciativa própria. Era muito maduro para a idade e extraordinariamente razoável, e eu tratei-o como um homem. Instalei-o em segurança em Paris, dando-lhe instruções para que conduzisse os seus casos numa boa base de negócios e os terminasse com boa vontade de ambas as partes e generosidade da sua. Justificou plenamente a confiança que depositei nele. Julgo que nenhuma mulher alguma vez teve motivo de queixa do tratamento do Peter; e pelo menos duas delas casaram-se recentemente com membros da realeza (de uma realeza bastante obscura, admito, mas realeza, mesmo assim). Nisto, de novo insisto no meu quinhão de crédito; por melhor qualidade que tenha o material com que se trabalha, é ridículo deixar a educação social de qualquer jovem ao acaso. O Peter deste período era realmente encantador, muito franco, modesto e com bons modos e um bonito espírito animado. Em 1909 foi para Balliol com uma bolsa de estudos frequentar o curso de História e aqui, devo confessar, tornou-se bastante intolerável. O mundo estava a seus pés, e ele começou a dar-se ares. Adquiriu afetações, uns modos exagerados à Oxford e um monóculo, e arejava bastante as suas opiniões, tanto dentro como fora da Associação de Estudantes, embora eu lhe faça a justiça de dizer que nunca tentou dar-se ares junto da mãe ou de mim. O Peter estava no segundo ano quando o Denver partiu o pescoço na caça e o Gerald lhe sucedeu no título. O Gerald revelou mais sentido de responsabilidade na gestão do património do que eu esperava; o seu pior erro foi casar-se com a sua prima Helen, uma puritana magricela de raça excessivamente apurada, morgada de província da ponta da cabeça à ponta dos pés. Ela e o Peter detestavam-se cordialmente; mas ele podia sempre refugiar-se com a mãe na Casa da Viúva. E depois, no seu último ano em Oxford, o Peter apaixonou-se por uma criança de dezassete anos e esqueceu de uma assentada tudo o que alguma vez lhe tinham ensinado. Tratou a moça como se ela fosse feita de cristal e a mim como um velho monstro empedernido de depravação que o tornara indigno de tocar na delicada pureza dela. Não nego que faziam um belo par – só brancos e dourados –, um príncipe e uma princesa de luar, diziam as pessoas. De trevas seria mais próximo da verdade. O que o Peter faria daí a vinte anos com uma mulher que não tinha nem miolos nem personalidade, ninguém, a não ser a mãe e eu próprio, se deu ao trabalho de perguntar, e ele, claro, estava completamente embeiçado. Felizmente, os pais da Barbara decidiram que ela era demasiado nova para se casar; assim, o Peter fez os seus exames finais no estado de espírito de um Sir Eglamore34 a despachar o seu primeiro dragão; depositou a nota máxima aos pés da sua dama como se fosse a cabeça do dragão e conformou-se com um período de virtuosa espera. E depois veio a Guerra. É claro que o jovem idiota ficou louco por se casar antes de partir. Mas os seus honrosos escrúpulos tornavam-no cera moldável nas mãos de outras pessoas. Foi-lhe lembrado que se ele voltasse mutilado seria muito injusto para a moça. Ele não tinha pensado nisso e, num acesso de abnegação, apressou-se a libertá-la do compromisso. Eu não tive nada a ver com isso; fiquei bastante contente com o resultado, mas não teria coragem para advogar os meios para o conseguir. Ele saiu-se muito bem em França; era um bom oficial e os seus homens gostavam dele. E depois, quando voltou de licença com a sua patente de capitão em 1916, encontrou a moça casada – com um dissoluto de um major Qualquer Coisa, de quem ela tinha cuidado como enfermeira voluntária no


hospital de campanha e cujo lema com as mulheres era apanhá-las depressa e tratá-las mal. Foi bastante brutal; porque a moça não tinha tido a coragem de contar ao Peter antes. Eles casaram-se a toda a pressa quando souberam que o Peter vinha para casa e tudo o que ele teve foi uma carta a anunciar o fait accompli e a recordar-lhe que ele a tinha libertado do compromisso. Direi em abono do Peter que ele veio ter diretamente comigo e admitiu que tinha sido um tolo. «Muito bem», disse eu. «Já aprendeu a sua lição. Não vá agora fazer figura de tolo na outra direção.» Por isso, ele voltou para o seu trabalho com (tenho a certeza) a intenção fixa de se deixar matar; mas o que conseguiu foi ser promovido a major e uma condecoração pela sua atividade de espionagem de grande audácia na frente alemã. Em 1918, foi apanhado numa explosão e soterrado numa cratera perto de Caudry, o que lhe provocou um severo colapso nervoso que se prolongou por dois anos, intermitentemente. Depois disso, montou um apartamento em Piccadilly, com o seu serviçal Bunter (que tinha sido seu sargento e lhe era, e é, absolutamente dedicado), e começou a tentar recomporse. Eu posso confessar que estava preparado para praticamente qualquer coisa. Ele tinha perdido toda a sua bela franqueza, não fazia confidências a ninguém, nem mesmo à mãe ou a mim, adotou uns modos frívolos impenetráveis e uma pose de diletante, e tornou-se efetivamente um comediante rematado. Era rico e podia fazer o que quisesse, e proporcionou-me algum entretenimento sardónico observar os esforços do setor feminino da Londres do pós-guerra a tentar capturá-lo. «Não pode», disse uma solícita mãe de família, «ser bom para o pobre Peter viver como um eremita.» «Minha senhora», disse eu, «se ele o fizesse, não seria bom.» Não; desse ponto de vista, o Peter não me provocava nenhuma ansiedade. Mas eu não podia deixar de pensar que era perigoso para um homem com as capacidades dele não ter um trabalho para lhe ocupar a mente, e disse-lho. Em 1921, deu-se o caso das Esmeraldas Attenbury. Esse caso nunca foi relatado, mas causou bastante estrondo, até mesmo nesse período tão ruidoso. O julgamento do ladrão foi uma série de sensações escaldantes, e a maior sensação delas todas foi quando Lord Peter Wimsey ocupou o banco das testemunhas como principal testemunha da acusação. Foi uma notoriedade assombrosa. De facto, para um oficial experiente dos serviços secretos, suponho que a investigação não oferecesse grandes dificuldades; mas um «detetive nobre» era algo excitantemente novo. O Denver ficou furioso; já eu não me importava com o que Peter fizesse, desde que fizesse alguma coisa. Pareceu-me mais feliz por estar a trabalhar e gostei do homem da Scotland Yard que ele tinha escolhido no decurso do caso. Charles Parker é um sujeito calmo, sensato e bem nascido, e tem sido um bom amigo e cunhado do Peter. Possui a valiosa qualidade de gostar de pessoas sem querer virá-las do avesso. O único problema do novo passatempo do Peter era que tinha de ser mais do que um passatempo para ser um passatempo de um cavalheiro. Não se pode fazer com que os assassinos sejam enforcados só por alta recreação própria. O intelecto do Peter puxava-o para um lado e os seus nervos para outro, até eu começar a recear que o despedaçasse. No final de cada caso, lá vinham de novo os velhos pesadelos e o trauma da guerra. E o Denver, logo ele – o Denver, o grande palerma, no meio das suas recriminações contra as degradantes e notórias atividades policiais do Peter, arranja maneira de ser acusado de assassínio e é julgado na Câmara dos Lords, com uma cobertura nas notícias que fez com que todas as atividades do Peter nessa área parecessem uma brincadeira de criança. O Peter conseguiu salvar o irmão desse imbróglio e, para meu alívio, foi suficientemente humano


para se embriagar com essa justificação. Admite agora que o seu «passatempo» é o seu trabalho legítimo para a sociedade, e desenvolveu entretanto um interesse suficiente pelo bem público para aceitar ocasionalmente missões diplomáticas sob a égide do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Ultimamente, tem-se revelado um pouco mais disposto a mostrar o que sente e um pouco menos receoso de ter sentimentos a mostrar. A sua última excentricidade foi apaixonar-se por aquela moça a quem ilibou da acusação de envenenar o amante. Ela recusou-se a casar com ele, como qualquer mulher de carácter faria. A gratidão e um humilhante complexo de inferioridade não são alicerces para o matrimónio; a posição em que se encontravam era falsa à partida. O Peter teve o bom senso, desta vez, de aceitar os meus conselhos. «Meu rapaz», disse-lhe eu, «o que era errado para si há vinte anos é agora correto. Não são as jovens inocentes que precisam de ser tratadas com cuidado – são as que sofreram sustos e foram magoadas. Comece de novo – mas aviso-o de que precisará de toda a autodisciplina que adquiriu ao longo da vida.» Bem, ele tentou. Parece-me que nunca vi tal paciência. A moça tem cabeça e carácter e honestidade; mas ele tem de lhe ensinar como receber, o que é muito mais difícil do que aprender a dar. Acho que acabarão por se encontrar os dois, se conseguirem evitar que a sua paixão se antecipe à sua força de vontade. Ele compreende, sei-o, que neste caso não pode haver consentimento que não seja dado livremente. O Peter tem agora quarenta e cinco anos, já é hora de assentar. Como compreenderão, eu fui uma das influências formativas mais importantes na carreira dele, e, no geral, sinto que não me deixa ficar mal. É um Delagardie, com pouco dos Wimseys, a não ser (devo ser justo) aquele sentido subjacente de responsabilidade social que impede que a nobreza latifundiária inglesa seja, espiritualmente, uma total perda de tempo. Detetive ou não, é um estudioso e um cavalheiro; apreciarei observar que tipo de marido e pai será. Estou a ficar velho e não tenho filhos meus (que saiba); gostaria de ver o Peter feliz. Mas, como a mãe dele diz, «o Peter sempre teve tudo, menos as coisas que realmente quer», e suponho que tem mais sorte do que a maioria. PAUL AUSTIN DELAGARDIE 33 Jogo de palavras baseado na semelhança entre o nome da personagem e flimsy (franzino). (N. da T.) 34 Personagem de um romance em verso medieval. (N. da T.)


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