Tropeços em Ruinas

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Escola de Belas Artes Universidade Federal do Rio de Janeiro

Teorias da Arte Contemporânea 2 | 2019.1

Disciplina ministrada pela Drª Liliane Banetti Aluno: Carlos Augusto Tavares Bittencourt


Tentativas No âmbito em que deixo para depois o que pensei. Está na fuga as vezes este não pensar em que escrever escrevendo, tornando as frases estranhas e desmotivadas em uma terceira, quarta leitura. Fragmentário é o modo de organização das palavras nas prateleiras da significação. A mensagem, pelo contrário vislubra uma realidade de transmissão, pois se trata de uma frase fim ao intenso método de dizer. É possível organizar no mundo um curto espaço limite para estas tentativas descritas, mesmo essa escrita sobre outra escrita? O formato são estes fragmentos possíveis: “Na verdade, não existe teoria que não seja fragmento cuidadosamente preparado de alguma autobiografia” Paul Valery, 2007. Os tropeços em ruinas poderiam ser soluções, riscos na folha branca do papel, em que me arrisco a uma prática de processos de libertar a imagem das palavras construindo associações possíveis. Escrever, portanto escrever em gestos curtos, feitos de movimentos do pulso e agora dos dedos em queda sobre o teclado.

Sem título. Registro do gesto e da ação escultórica. Carvão e argila. Ano de 2019.

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Tenho deixado que a materialidade inconsistente do pó da terra ou mesmo dos processos que a princípios fiz em cerâmica, transmutasse as imagens de sua menor partícula esculpida pelo tempo-espaço. Procuro raspar as imagens da matéria.

Texto que poderia adiantar sobre as

Meu desejo é uma consideração sobre a escultura. Me

entradas e as saídas do

lanço à materialidade ao trabalhar a argila nos seus

que possa ser um

processos de comunhão e embate: percorro o fundo da

trabalho de arte, uma

terra, agacho sobre sua pele, ouço-a por dentro, sinto

outra tentativa de

esta mesma terra que as plantas penetram para sua

comunicar sobre o

sustentação e para sua nutrição, com isso vivo esta terra

dispersar, com exibições

que envolve a materialidade aquecida sobre esta fricção,

nos processos que venho

diluindo em mim o deserto que transfigura em escultura.

trabalhando.

Fiz questão de ouvir a terra por dentro. Fotografia. 42,5 29,5 cm. 2018

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Como em parábolas, discorrendo uma tentativa de uma escrita intima possível, seguram incertos movimentos desenhados a grafite que tentam despertar em mim uma certa organização, reconstruindo uma forma de dizer Cubo, pensamento, poeira (2018). Pode-se visitar as primeiras linhas entrópicas de Robert Smithson para talvez descrever o processo pelo qual o meu trabalho perambula: “ rios mentais derrubam encostas abstratas, ondas cerebrais desgastam rochedos de pensamento, ideias se decompõem em pedras de desconhecimento, e cristalizações conceituais desmoronam em resíduos arenosos de razão”. Robert Smithson, 1968.

Cubo, pensamento, poeira. Escultura. Pó de argila. 13 x 13 x 13 cm. 2018.

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Fiz questão de ouvir a terra por dentro, nº 3. Fotografia digital. 2018

Como composição de alguns trabalhos, utilizo os materiais encontrados em meu entorno, que por vezes me surpreendem com sua aparição inesperada. Experimento os elementos que a própria paisagem pode manifestar com sua enunciação carregada de operações simbólicas. A criação passeia despretensiosamente por esses fenômenos “ pois a criação não pode esta condicionada, tem que ser livre ” - Artur Barrio, 1970.

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Pássaros são seres dotados da capacidade de transitar

Persegui a materialidade

tanto o céu quanto a terra, têm essa possibilidade graças

de onde a terra anda em

à leveza do voo. Quando assovio sinto uma dor danada

mim quando vou a ela.

(2017) é uma escultura de terra crua, composta por

materialidade que

pássaros de ponta cabeça pendurados com pregadores

retorna a ela mesma,

em uma corda de um ponto a outro no canto de uma sala

desdobrando em uma

a 1,60 do chão.

ideia em 2017, que me despertou o íntimo.

Quando assovio sinto uma dor danada. Fotografia digital. 2017

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Me preparo então para um esforço de perceber no trabalho as suas refrações, que consistem em me despertar para as diversas possibilidades de significados que ele pode transbordar. Começo a exercitar o olhar para essas minúcias como Claes ao perceber “ a arte da conversa entre a calçada e a bengala de metal do cego”, Claes Oldenburg, 1961.

Percorro um perímetro no sentido ao imaginário, tomando

Desterrado, o homem

um tipo de deslocamento: me lembro de uma dada situa-

fragmentado sede para

ção, na qual perseguia os grãos que me encalçavam

uma ritualística nostál-

a sola do pé. Eu os transformava em ação, friccionando

gica, procurando construir

repetidamente, rearranjava os textos\trabalhos, introduzin- o “pensamento” escultórido a poeira no AR, a pedra num sopro, o estado sólido

co assim como o poeta

desse pensamento transformado em pó, a escultura

procura encostar as

de dentro da minha cabeça ou a escultura para

palavras à ideia.

si mesma no espaço.

Sopro para mercúrio. Gif. 2019

(...)

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Talvez tenha depurado pouco. Olhos aquosos nas coisas e nas palavras, nos cantos, nos lugares. Colho palavras que estão encostadas uma às outras no lugar mudo. Leio agora uma entrevista que Nuno Ramos, 2007, em conversa com Samuel Beckett, declara: “Eu sempre quis ouvir apenas as palavras, cada palavra, de preferência separada das demais. (...) meu trabalho quer apenas prestar a atenção para as coisas que ninguém liga” ele prossegue dizendo sobre sua “imobilidade e tolerância para o desconforto”. (...) Estes textos são ações de escrita automática, reescritos em reações propostas a fazer testes. O texto, ou mesmo “sua força num instante de criar” Paul Valery, 2007, desmorona como poeira na terra seca. O sol brilha, no cair da tarde. Talvez seria um deserto reconhecer uma melancolia revelada por signo a uma realidade que está aquém ou além da consciência ao dizer: considero a dinâmica do trabalho escultórico como o mito de Sísifo, que consiste em um ato constante de remanejamento de matéria. Apesar do ritmo fatigante, ele repõe as forças, recomeça constantemente numa garantia da capacidade do homem da natureza do tempo que passa.

Bibliografia: COTRIM, C.; FERREIRA, G. Escritos de Artistas anos: anos 60/70. Tradução: Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Editora Zahar. 2006 BARRIO, Artur. Manifestos. 1970 OLDENBURG, Claes. Sou a favor de uma arte. 1961 SMITHSON, Robert. Uma sedimentação da mente: projetos de terra. 1968. RAMOS, Nuno. Ensaio geral: roteiro, ensaio, memória. São Paulo : Editora Globo. 2017 VALERY, Paul. Variedades. São Paulo: Editora Iluminuras. 2007

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