Blasfêmia e Apostasia (Carlos Coléct)

Page 1

Por CARLOS COLÉCT |1

1. Blasfêmia contra o Espírito Santo

O que é blasfemar contra o Espírito Santo? O que significa este verbo tão temido por aqueles que bebem da fonte da crença cristã? É compreensível que muitos tenham medo de praticar tal ato, afinal, não há perdão, como assim é interpretado o texto de Marcos 3.22-30 - analisado no decorrer desta presente análise.

Blasfêmia

Para este momento, acredito que é proveitoso nos atermos brevemente às expressões “blasfêmia e Espírito Santo”; pontos centrais desta reflexão. A palavra “blasfêmia”, pelo seu uso histórico dentro dos tribunais impiedosos e inquisitoriais, carrega um grande peso. No entanto, entendo que o peso incorporado a ela pode ser aliviado se observarmos o texto — que faz uso dela — através de outra possibilidade de tradução. É importante lembrarmos que qualquer texto sob o julgamento de uma tradução está sujeito às interpretações tendenciosas, e isto devido as muitas possibilidades de se compreender uma palavra, principalmente em se tratando de uma língua antiga como o hebraico ou o grego; é praticamente impossível haver uma tradução exata e fiel, uma palavra pode ter muitas variações e significados, ficando sob o critério do copista — por sua concepção ou por influências de autoridades do clero ou império — decidir pela melhor compreensão do texto em questão. O Dr. Gilberto Pikering, em seu livro Qual o Texto Original do Novo Testamento?, afirma que, hoje, ninguém tem o conhecimento de qual foi a redação original do Novo Testamento. A maioria das variantes textuais do Novo Testamento foi criada por motivos teológicos ou doutrinários. Não foi por descaso que os livros foram alterados, e sim por serem um tesouro religioso (Pikering, p 3;28). Há outra citação pertinente de Metzger1: “ Irineu, Clemente de Alexandria, Tertuliano, Eusébio, e muitos outros Pais da Igreja acusaram os hereges de terem adulterado as Escrituras com a finalidade de prover apoio para seus pontos de vista particulares. Na metade do Segundo Século, Márcion eliminou de suas cópias do Evangelho segundo Lucas todas as referências feitas a formação judaica de Jesus. A Harmonia dos Evangelhos de Taciano 1

Bruce M. Metzger é um dos estudiosos do Novo Testamento considerado do mais alto nível, na América do Norte;

tem sido professor titular-catedrático na Universidade de Princeton, por muitos anos; e é o autor de muitas obras eruditas, inclusive do The Text of the New Testement, 1964.


Por CARLOS COLÉCT |2

contem várias alterações textuais que deram apoio ao ponto de vista ascético ou da seita incratita.”(Metzger, The Text of the New Testament, Pag 201). Existem muitas outras questões sobre as alterações textuais — tendenciosas ou não — que poderiam ser ditas, mas não vem ao caso. É conveniente apenas trazer que em um dado momento da história, o copista decidiu usar a palavra “blasfêmia”, sendo esta, provavelmente, a que mais comunicava um medo entre os membros da instituição religiosa da época, favorecendo a permanência da instituição por meio da imposição do medo, dificuldando a saída e a desmembração de seus adeptos. Obviamente que ninguém gostaria de ser réu de um pecado eterno, por isso, calavam-se diante dos dogmas das autoridades. Não blasfemar passou a ser compreendido como “não falar, não julgar alguma ação do clero, manter-se calado diante de atitudes da Igreja”, agindo desta maneira não haveria o risco de ser condenado. Neste contexto de inquisições e julgamentos impiedosos, correntes no início da Igreja Romana, o termo “blasfêmia”, no sentido de contestar algo visto, internalizou um grande temor. Por este motivo, decido observar a palavra em hebraico ‫ קלל‬qalal, usada no verso da Torah Êxodo 22.28 “Contra Deus não blasfemarás (qalal)...”; entre alguns possíveis significados, “desprezo” é cabível nesta reflexão. Na ação de desprezar, inclui-se o abandono e a rejeição, ou seja, quando desprezo algo ou alguém, estou rejeitando, abandonando; estou deixando de lado, ou por um momento ou para sempre. Neste sentido, “blasfemar” não é apenas “falar contra”, é também uma rejeição, um abandono, uma separação. Mais a frente contextualizaremos o sentido de “blasfêmia”, no que diz respeito ao texto de Marcos, referente ao “não haver perdão” para quem blasfema contra o Espírito Santo.

Qalal Blasfêmia

(Desprezo – difamação)

Rejeição, abandono, afastamento...

Espírito Santo

Agora, convém manter a atenção na expressão “Espírito Santo”, que no latim é “spiritum Sancti”, adentrou as Bíblias por influências dos pensamentos dos Pais grego-romanos da Igreja, a partir do séc. II. Tertuliano, segundo relata a história, foi quem disseminou o entendimento personificado de um Espírito divino, impulsionando a criação doutrinária da Trindade. O Espírito passou a ser visto como uma pessoa. Haveria outra possibilidade de se conceber o Espírito citado na


Por CARLOS COLÉCT |3

Bíblia? Obviamente. Espírito em hebraico é Ruach e em grego é pneuma, ambas significam “ar, fôlego, sopro”. Desta forma, formam-se palavras como: pneumático, pneumonia... Espírito, nesta concepção, é como o ar dentro de um pneu, ele é impulsionado e se move por esta força em seu interior; sem um sopro interno, o pneu perde o seu sentido e propósito. Semelhantemente, é como o ar nos pulmões, produz energia para o movimento do corpo, e sem ele o corpo padece. É como muito se diz em certas ocasiões: “preciso tomar fôlego!” para a realização de uma ação. Esta fala expressa um sentido possível para pensarmos o Espírito, isto é, o espírito pode ser pensado como uma força, uma intenção e uma motivação que impulsionam e potencializam o agir dos homens (neste caso, cada crença o coloca conforme suas doutrinas, alguns dirão que esta força provém de uma ser chamado Deus, outros dirão que é uma força interior ou da mente, enfim, cada crença o veste conforme seus ensinos). O relato de Gênesis exemplifica o agir potencializado pelo espírito (fôlego) de Deus; convém pensar que a palavra no texto hebraico usada para Deus é Elohim, cujo um dos significados é “poderes”, assim, podemos visualizar um fôlego que potencializa; um fôlego de poder; um fôlego que produz capacidade de realização: “o espírito (ruach – ar) de Deus (elohim – poder) pairava sobre a face das águas” (Gn 1.2); a partir deste momento, ocorreu uma ação: houve uma reorganização do mundo. Em outros textos, relata-se que pessoas receberam esta motivação e fôlego interior (espírito) para a realização de um trabalho específico: Disse mais o SENHOR a Moisés: 2 Eis que chamei pelo nome a Bezalel, filho de Uri, filho de Hur, da tribo de Judá, 3 e o enchi do Espírito (fôlego) de Elohim, de habilidade, de inteligência e de conhecimento, em todo artifício, 4 para elaborar desenhos e trabalhar em ouro, em prata, em bronze, 5 para lapidação de pedras de engaste, para entalho de madeira, para toda sorte de lavores (Ex 31.1-5). O Espírito (fôlego) do SENHOR está sobre mim, porque o SENHOR me ungiu para pregar boas-novas aos quebrantados, enviou-me a curar os quebrantados de coração, a proclamar libertação aos cativos e a pôr em liberdade os algemados; (Isaías 1.1 / Lucas 4.18). Nestes exemplos, Bezalel foi impulsionado por um fôlego (espírito) para realizar a obra artística do tabernáculo; Jesus, da mesma forma, recebeu fôlego (espírito) para cumprir o seu serviço ministerial. Portanto, espírito santo pode ser observado para além de uma pessoa, como observa o dogma do cristianismo, pode ser visto apenas como um fôlego, um ar que inspira, motiva e potencializa uma ação. A personificação, como visto, nasce depois do I séc; nos textos do chamado velho testamento, a personificação não é tão evidente como no Novo Testamento. As doutrinas estabelecidas e formalizadas nos concílios da Igreja Romana trouxeram esta nova percepção sobre a expressão “Espírito Santo” (Fôlego separado).


Por CARLOS COLÉCT |4

Espírito de Deus

ESPÍRITO Ruach (hebraico) Pneuma (grego) (ar, fôlego, sopro)

DEUS Elohim (Poder absoluto)

Energia, intenção, força interior... Motivação e potencialização para a realização de um trabalho.


Por CARLOS COLÉCT |5

1.1 Contextualização da blasfêmia: Marcos 3.20-30 / Lucas 11.14-23 / Mateus 12.22-32

Sobre estes pontos de vista, podemos elaborar algumas questões para pensarmos: “Em qual contexto a ação da blasfêmia (desprezo) está sendo empregado? Como entender esta blasfêmia (desprezo); é apenas uma fala esporádica ou uma ação contínua? Será que realmente não há perdão? As possíveis respostas estão no âmbito da crença bíblica, baseando-se nas possíveis interpretações dos textos, em outras palavras, as respostas se aplicam aos ensinos que se baseiam na Bíblia. Pois bem, em mais uma situação corriqueira de Jesus, ele se deparou com um enfermo e o curou: Os escribas, que haviam descido de Jerusalém, diziam: Ele está possesso de Belzebub. E: É pelo maioral dos demônios que expele os demônios. 23 Então, convocando-os Jesus, lhes disse, por meio de parábolas: Como pode Satanás expelir a Satanás? 24 Se um reino estiver dividido contra si mesmo, tal reino não pode subsistir; 25 se uma casa estiver dividida contra si mesma, tal casa não poderá subsistir.

26

Se, pois, Satanás se levantou contra si mesmo e está dividido, não pode

subsistir, mas perece.

27

Ninguém pode entrar na casa do valente para roubar-lhe os bens, sem

primeiro amarrá-lo; e só então lhe saqueará a casa.

28

Em verdade vos digo que tudo será

perdoado aos filhos dos homens: os pecados e as blasfêmias que proferirem.

29

Mas aquele que

blasfemar (verbo aoristo) contra o Espírito Santo não tem perdão para sempre, visto que é réu de pecado (Krisis – julgamento) eterno. 30 [Isto, porque diziam: Está possesso de um espírito imundo]. Cabe, de início, atentar para algumas colocações textuais: primeiro, o verbo traduzido pela versão Almeida como “blasfemar” está no aoristo, o qual não tem uma definição exata no português, comumente é usado no passado, porém, não é exato; segundo, a palavra traduzida como “pecado” é “krisis” no texto grego, cujo significado é “julgamento”; terceiro, o que está entre colchetes não se encontra nos escritos mais antigos, foi um acréscimo posterior. Estas colocações facilitarão a compreensão da sentença de não haver perdão para a transgressão de basfêmia.

Os escribas – doutores da lei

É importante compreendermos que Jesus estava falando com escribas, homens versados na Lei de Moisés, doutores da Lei e membros do Sinédrio (tribunal judaico). Estavam na posição de juizes, como assim pode ser observado em dois textos: Ele era escriba versado na Lei de Moisés, b

3.22 Mt 9.34; 10.25


Por CARLOS COLÉCT |6

dada pelo SENHOR, Deus de Israel; e, segundo a boa mão do SENHOR, seu Deus, que estava sobre ele, o rei lhe concedeu tudo quanto lhe pedira. [...] Porque Esdras tinha disposto o coração para buscar a Lei do SENHOR, e para a cumprir, e para ensinar em Israel os seus estatutos e os seus juízos.11 Esta é a cópia da carta que o rei Artaxerxes deu ao sacerdote Esdras, o escriba das palavras, dos mandamentos e dos estatutos do SENHOR sobre Israel: [...] (Esdras 7.7 ; 7.10,11). Logo pela manhã, entraram em conselho os principais sacerdotes com os anciãos, os escribas e todo o Sinédrio; e, amarrando a Jesus, levaram-no e o entregaram a Pilatos (Marcos 15.1). Temos, portanto, Esdras como um escriba versado na Lei, conhecedor dos mandamentos; e a presença dos escribas no Sinédrio, em uma ocasião de julgamento. Assim sendo, Jesus falava com homens conhecedores da Legislação mosaica, pela lógica, ele precisava refutar as acusações de acordo com o que a própria Lei declarava. Deste modo, é lícito relacionarmos o tema da blasfêmia decorrente na discussão descrita em Marcos com o que a Lei diz a respeito.

A Lei da blasfêmia

No livro de Levítico — a base da disputa entre Jesus e os escribas — declara uma situação de blasfêmia, e posteriormente, o estabelecimento de uma lei (caso de jurisprudência2) ao Povo: Apareceu entre os filhos de Israel o filho de uma israelita, o qual era filho de um egípcio; o filho da israelita e certo homem israelita contenderam no arraial.

11

Então, o filho da mulher israelita

blasfemou o nome do SENHOR e o amaldiçoou, pelo que o trouxeram a Moisés. O nome de sua mãe era Selomite, filha de Dibri, da tribo de Dã.

12

E o levaram à prisão, até que se lhes fizesse

declaração pela boca do SENHOR.[...] Disse o SENHOR a Moisés: 14 Tira o que blasfemou para fora do arraial; e todos os que o ouviram porão as mãos sobre a cabeça dele, e toda a congregação o apedrejará. 15 Dirás aos filhos de Israel: Qualquer que amaldiçoar o seu Deus levará sobre si o seu pecado. 16 Aquele que blasfemar o nome do SENHOR será morto; toda a congregação o apedrejará; tanto o estrangeiro como o natural, blasfemando o nome do SENHOR, será morto (Levítico 24.1016). Na situação descrita, um homem blasfemou e amaldiçoou o Deus dos israelitas. É relevante dizer que a palavra traduzida no verso 11 como “amaldiçoou” cabe melhor dentro do sentido de “blasfêmia”, no texto hebraico é “qalal” (desprezo, insignificante), por outro lado, a palavra traduzida como “blasfemou” no sentido da palavra no texto hebraico é “naqav” (furou). Levando estas questões de tradução em consideração, é muito pertinente perceber a condição verbal piel da

2

Pelo exemplo de uma situação ocorrida, estabelece-se um modo de agir em situações parecidas.


Por CARLOS COLÉCT |7

palavra “qalal” no verso 11, a qual se traduz como “amaldiçoou”; o verbo é piel, na língua hebraica, indica uma ação continua e prolongada, ou seja, aquele homem estava desprezando o Deus dos israelitas constantemente. Lembremo-nos que a palavra “blasfêmia” carrega uma mentalidade de desprezo, abandono e rejeição, entretanto, podemos perceber algo mais no texto de Marcos e Levítico, isto é, não se trata apenas de um desprezo, mas também se relaciona a uma difamação. A pessoa despreza e dissemina entre o povo as suas palavras, é uma atitude que contamina o Povo. Assim, o homem — filho de egípcio — descrito em Levítico estava contaminando o Povo com palavras e ações de desprezo para com o Deus dos israelitas. Visando a preservação do Povo e sua crença, ele foi levado para fora do arraial (fora da convivência com a comunidade) e se estabeleceu a sentença de morte por apedrejamento.

O não perdão para sempre

Na percepção aqui proposta, a blasfêmia é um ato contínuo que contamina as crenças de um Povo. É sobre esta perspectiva, creio eu, que Jesus discorria com os escribas. Os escribas, por muitas vezes estavam disseminando entre o povo palavras de desprezo pelas ações de Jesus, dizendo que a sua intenção e motivação (espírito) em realizar tais obras não proviam de Deus, e sim de Belzebu3. Desta forma, Jesus afirma que: Em verdade vos digo que tudo será perdoado aos filhos dos homens: os pecados e as blasfêmias que proferirem. Ele afirma que há perdão para tudo, e posteriormente declara algo: Mas aquele que blasfemar (verbo aoristo) contra o Espírito Santo não tem perdão PARA SEMPRE, visto que é réu de pecado (Krisis – julgamento) eterno. Portanto, parece haver uma contradição: “como Deus perdoa tudo, mas depois não perdoa?”. Não há contradição. Jesus, primeiramente, afirma que qualquer blasfêmia (difamação e desprezo) pode ser perdoada, entretanto, não para sempre, ou seja, traz aos escribas (doutores da lei) à memória da lei 3

Belzebu pode se referir a Baal – Zebube (Senhor das Moscas) dos Filisteus, adorado em Ecrom. Há um episódio que

retrata o rei Acazias, em sua doença, enviando mensageiros para consultar Baal-Zebube, e ao fazer isto, é repreendido pelo profeta Elias: E caiu Acazias pelas grades de um quarto alto, em Samaria, e adoeceu; enviou mensageiros e disselhes: Ide e consultai a Baal-Zebube, deus de Ecrom, se sararei desta doença. 3 Mas o Anjo do SENHOR disse a Elias, o tesbita: Dispõe-te, e sobe para te encontrares com os mensageiros do rei de Samaria, e dize-lhes: Porventura, não há Deus em Israel, para irdes consultar Baal-Zebube, deus de Ecrom? 4 Por isso, assim diz o SENHOR: Da cama a que subiste, não descerás, mas, sem falta, morrerás. Então, Elias partiu. (1 Reis 1.2-4). Este caso, documentado no livro dos Reis de Israel pode ter motivado a fala dos escribas, acusando Jesus (Yeshua) de fazer o mesmo que Acazias, isto é, buscar a cura por meio de uma consulta a Baal-Zebube.


Por CARLOS COLÉCT |8

de Levítico que retrata a situação do homem que — continuamente — contaminava o Povo com suas palavras e desprezo. Em outras palavras, Jesus estava relembrando aos escribas que, se continuassem a difamar a sua intenção (espírito) para com o Povo, teriam a condenação eterna — morte. A ação contínua não teria absolvição para sempre. O que está em questão não é o perdão, e sim o tempo do recebimento do perdão. Se os escribas continuassem com a atitude de contaminar o Povo, seriam conduzidos para “fora do arraial”; seriam levados para fora do Povo. A ótica de Mateus sobre a mesma situação traz um adendo que complementa esta ideia. Mateus relata que Jesus, após dizer estas palavras, ainda diz aos escribas: Ou fazei a árvore boa e o seu fruto bom ou a árvore má e o seu fruto mau; porque pelo fruto se conhece a árvore. 34 Raça de víboras, como podeis falar coisas boas, sendo maus? Porque a boca fala do que está cheio o coração. 35 O homem bom tira do tesouro bom coisas boas; mas o homem mau do mau tesouro tira coisas más. 36 Digo-vos que de toda palavra frívola que proferirem os homens, dela darão conta no Dia do Juízo;

37

porque, pelas tuas palavras, serás justificado e, pelas tuas palavras, serás

condenado (Mateus 12.33-37). O prisma de Mateus colabora para percebermos que Jesus está relembrando a Lei aos escribas, alertando-os quanto as suas más palavras, pois elas lhes condenarão no Dia do Juízo; eles estão como réus no julgamento eterno, como disse Jesus no texto de Marcos. Eles não só estavam falando contra a intenção (espírito) que motivava Jesus, como também estavam se opondo, procurando impedir o agir. Jesus, nesta interpretação, não está declarando que não há perdão para quem julga uma ação ou uma situação, tendo em vista que ele mesmo instrui a julgar quando fala: “pelo fruto se conhece a árvore”; como conhecer algo se não houver uma análise de julgamento? O julgamento está presente na análise de um fruto, para saber se é bom ou mau é preciso julgar (não condenar, julgar), entretanto, não é este o foco; o que não permite um perdão é a constância na ação de difamação e contaminação do Povo, em oposição ao agir de Jesus. Logicamente, se eles permanecessem naquela atitude intencionalmente, nada mais restaria senão a condenação pelas suas próprias palavras (dentro da crença que circunda a lei e os profetas israelitas).

Blasfêmia

AÇÃO CONTÍNUA

Qalal (Desprezo – difamação) Rejeição, abandono, afastamento...

Disseminação e contaminação dos que estão à volta

Configura transgressão de Lv 24.10 Se houver permanência na ação, só resta a condenação.

Sem Mudança não há absolvição.


Por CARLOS COLÉCT |9

2. Apostatar da Fé

Fé é uma palavra muito abrangente, porém, creio que é viável observá-la, nesta ocasião, dentro do pensamento hebraico expressado no termo “emunah”, cujo significado é “fidelidade”. Apostatar, por sua vez, é “meshuvah” no hebraico, comunica a ideia de uma separação, uma retorno ao caminho anterior; no grego é “apostasion”, traz a mesma ideia de afastamento, entretanto, acrescenta o pensamento de um divórcio. Sendo assim, “apostatar da Fé” pode significar um divórcio, uma quebra do contrato de fidelidade (para com alguém, propósito ou algo); uma situação de retorno ao estado anterior.

O contrato matrimonial

No contexto do Israel bíblico, a Torah (contituição legal) é o contrato de casamento entre Deus e o Povo; é um acordo de fidelidade entre ambas as partes — um casamento (aliança) estabelecido. Está, assim, retratado no livro de Êxodo, quando o Povo de Israel disse “sim” diante do contrato oferecido pelo legislador Moisés: Veio, pois, Moisés e referiu ao povo todas as palavras do SENHOR e todos os estatutos; então, todo o povo respondeu a uma voz e disse: Tudo o que falou o SENHOR faremos. [...] E tomou o livro da aliança e o leu ao povo; e eles disseram: Tudo o que falou o SENHOR faremos e obedeceremos. 8 Então, tomou Moisés aquele sangue, e o aspergiu sobre o povo, e disse: Eis aqui o sangue da aliançaa que o SENHOR fez convosco a respeito de todas estas palavras.b (Êxodo 24.3;7,8). O texto citado revela um contrato de fidelidade firmado, cuja condição primordial é permanecer em obediência aos mandamentos e estatutos transpostos ao Povo por meio de Moisés, o qual confirma a união matrimonial com uma aspersão de sangue; o mesmo sangue da aliança referido no Novo Testamento e comunicado no seio cristão. Isto me faz perceber que o sangue citado no chamado Novo Testamento não é um Novo, propriamente dito, mas se refere a restauração do contrato matrimonial (testamento) antigo estabelecido em Moisés, o que nada mais é do que um retorno a obediência aos estatutos e mandamentos firmados no Sinai — Torah; uma volta à fidelidade matrimonial – ketubá (contrato matrimonial) em hebraico. Enfim, a quebra, ou seja, deixar este contrato (torah – legislação revelação no sinai) é uma condição de divórcio (apostasia). Não se trata de uma desobediência eventual, mas de uma separação, uma anulação do a

24.8 Mt 26.28; Mc 14.24; Lc 22.20; 1Co 11.25; Hb 10.29

b

24.6-8 Hb 9.19-20


P o r C A R L O S C O L É C T | 10

contrato; trata-se de se aliançar com outro marido; isto está no contexto de iniquidade, o que em grego é “anomia” – literalmente “sem lei”; um posicionamento fora da legislação do contrato ou da constituição proposta. Para exemplificar, cito o oráculo do profeta Jeremias contra a divorciada Israel: Quando, por causa de tudo isto, por ter cometido adultério, eu despedi a pérfida Israel e lhe dei carta de divórcio, vi que a falsa Judá, sua irmã, não temeu; mas ela mesma se foi e se deu à prostituição (Jeremias 3.8) Dize-lhes mais: Assim diz o SENHOR: Quando caem os homens, não se tornam a levantar? Quando alguém se desvia do caminho, não torna a voltar? 5 Por que, pois, este povo de Jerusalém se desvia, apostatando (divorciando – retornando) continuamente? Persiste no engano e não quer voltar. 6 Eu escutei e ouvi; não falam o que é reto, ninguém há que se arrependa da sua maldade, dizendo: Que fiz eu? (Jeremias 8.4-6). Israel, portanto, afastou-se do caminho de Jerusalém, aliançou-se com outros maridos, anulou o contrato feito no Sinai e o divórcio (apostasia) foi concretizado. Esta era a condição de um Israel divorciado do seu Marido (YHWH – deus): Deveras, como a mulher se aparta perfidamente do seu marido, assim com perfídia te houveste comigo, ó casa de Israel, diz o SENHOR (Jeremias 3.20); situação encontrada por Jesus no I séc. Israel precisava de um sangue da aliança para reparar o contrato, tal como aquele aspergido sobre o Povo por Moisés. Entendeu-se, por muitos israelitas, que Jesus (Yeshua) era o cordeiro que aspergiria seu sangue para restaurar o casamento entre Deus e o Povo, assim como ele mesmo diz na última ceia: A seguir, tomou um cálice e, tendo dado graças, o deu aos discípulos, dizendo: Bebei dele todos; 28 porque isto é o meu sangue, o sangue da [nova] aliança, derramado em favor de muitos, para remissão de pecados (Mateus 26.27,28) – o [nova] entre conchetes não está nos textos antigos, é um acréscimo por parte dos copistas cristãos.

O livro de Hebreus – Yom Kippur (Dia da Expiação)

No livro aos Hebreus, o autor, em muitos momentos, fala sobre este sangue da aliança e de um cordeiro que reestabelece a aliança. Afinal, ele está se dirigindo aos Hebreus, buscando persuadí-los de que Yeshua (Jesus) era o cordeiro esperado, cujo sangue restauraria Israel. Ele se refere ao Dia de Yom Kippur, uma festividade estabelecida ao Povo de Israel, conhecida como Dia do Perdão (ou Expiação). É uma santa convocação em que o Povo era redimido dos seus pecados coletivos por intermédio dos sacrifícios (dentro das especificações cabíveis); era um dia anual, onde só uma vez por ano o sumo sacerdote estrava no santo lugar do templo para fazer expiação pelos pecados do Povo, neste dia o Povo tinha sua aliança (casamento) restaurado: Disse mais o SENHOR a Moisés:

27

Mas, aos dez deste mês sétimo, será o Dia da Expiação; tereis santa convocação e


P o r C A R L O S C O L É C T | 11

afligireis a vossa alma; trareis oferta queimada ao SENHOR.

28

Nesse mesmo dia, nenhuma obra

fareis, porque é o Dia da Expiação, para fazer expiação por vós perante o SENHOR, vosso Deus (Levítico 23.26-18). Assim, o autor, procura mostrar que Yeshua é tanto a representação do cordeiro como a imagem do sumo sacerdote que adentra o Santo dos Santos no Dia da Expiação (Yom Kippur). Em Hebreus 10, no contexto do Dia do Perdão, o autor ainda declara: Tendo, pois, irmãos, intrepidez para entrar no Santo dos Santos, pelo sangue de Jesus, 20 pelo novo e vivo caminho que ele nos consagrou pelo véu, isto é, pela sua carne, Deus,

22

21

e tendo grande sacerdote sobre a casa de

aproximemo-nos, com sincero coração, em plena certeza de fé, tendo o coração

purificadoe 3 de má consciência e lavadof o corpo com água pura. 23 Guardemos firme a confissão da esperança, sem vacilar, pois quem fez a promessa é fiel.

24

Consideremo-nos também uns aos

outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras. 25 Não deixemos de congregar-nos, como é costume de alguns; antes, façamos admoestações e tanto mais quanto vedes que o Dia se aproxima.26 Porque, se vivermos deliberadamente em pecado, depois de termos recebido o pleno conhecimento da verdade, já não resta sacrifício pelos pecados; 27 pelo contrário, certa expectação horrível de juízo e fogog vingador prestes a consumir os adversários.

28

Sem misericórdia morre

pelo depoimento de duas ou três testemunhash quem tiver rejeitado a lei de Moisés. 29 De quanto mais severo castigo julgais vós será considerado digno aquele que calcou aos pés o Filho de Deus, e profanou o sangue da aliançai com o qual foi santificado, e ultrajou o Espírito da graça? (Hebreus 10.19-29). Observamos que a fala se volta para uma permanência no Santo Lugar, o lugar onde o sumo sacerdote entrava, porém, agora, Yeshua (Jesus), segundo o autor, entra para nunca mais sair, e admoesta para que os Hebreus não deixem de se ajuntar, pois se aproxima o Dia (qual dia? O Dia do Yom Kippur – Dia do Perdão), isto é, ele convoca os hebreus para aceitarem ao cordeiro e se ajuntarem no dia da festividade. Aquele que rejeitasse o sangue da aliança derramado pelo Cordeiro (Jesus - Yeshua) — vivesse deliberadamente no pecado - na transgressão do contrato —, não teria como ser absolvido de seus pecados, não teria quem o remisse no Dia do Perdão, não teria a aliança restaurada, por isso, só lhe restaria uma expectação horrível de juízo. Quem assim permanece, é um apostata da fé, porque permanece divorciado, em quebra de fidelidade; retrocede ao estado anterior de afastamento. Deste modo, o autor de Hebreus conclui: [...] todavia, o meu

e

10.22 Lv 8.30

3

10.22 purificado: aspergido

f

10.22 Lv 8.6

g

10.27 Is 26.11

h

10.28 Dt 17.6; 19.15

i

10.29 Êx 24.8


P o r C A R L O S C O L É C T | 12

justo viverá pela fé (fidelidade); e: Se retroceder, nele não se compraz a minha alma m .

39

Nós,

porém, não somos dos que retrocedem para a perdição; somos, entretanto, da fé, para a conservação da alma. (Hebreus 10.38,39) Esta é uma possibilidade de pensar a apostasia da fé no contexto bíblico, visando a Bíblia para além da doutrina cristã.

FÉ – Emunah (hb) (Contrato de Fidelidade) APOSTATAR DA FÉ Apostatar – Apostasion (Gr) (divórcio, quebra de contrato)

Israel quebrou o contrato matrimonial (torah) estabelecido no Sinai. APOSTATOU, afastouse. E precisava do sangue da aliança para reestabelecê-la.

CONTEXTO BÍBLICO

m

10.37-38 Hc 2.3-4


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.