Religião e Solidariedade (Carlos Coléct)

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Por Carlos Coléct – Cept- 11/11/2015 |1

Religião e Solidariedade

A reflexão a seguir nasce, após a leitura dos artigos “O Bom Samaritano é ateu”1 e “Crianças sem religião são mais solidárias e menos egoístas”2, com a proposta de observar a religião e a solidariedade por outro ângulo, ampliando os seus sentidos sobre tais conceitos. O título da matéria, em si, desperta o leitor ao espanto, a surpresa, a ideia de que a solidariedade e generosidade são sempre boas e, assim, produz uma interrogação e exclamação interior: “nossa, como pode isso acontecer, crianças sem religião não são tão “boas” como as que não têm religião (ateias no senso comum)?!”. A intenção é quebrar um paradigma que envolve a moralidade religiosa, contudo, pergunto: "Crianças sem religião"? O que isto significa? Crianças que não foram criadas dentro de uma instituição eclesiástica ou clériga, em obediência a algum livro sagrado? Isto é ser uma criança sem religião? O que é solidariedade, o que é fazer o bem? Dar e doar é sempre sinal de bondade? Partilhar é fruto da crença em alguma divindade ou consequência da participação em um grupo que professa a mesma fé ou cosmovisão? Como sabemos o que é bom e mau, como esses conceitos se formam e se interiorizam em nós? — Os estudantes e professores de filosofia sabem o quão amplas e inacabadas podem ser essas respostas. Voltando-se, porém, para o prisma da religião (religare - latim), bem como para o "ideal de deus", — ênfase da matéria —, em meu ponto de vista psicanalítico, é algo muito mais amplo, é um fenômeno psíquico intrínseco em cada Ser Humano, desde o seu nascimento. É uma busca constante — gerada da angustia existencial pelo rompimento do cordão umbilical e desligamento do ventre materno (local de esquecimento da dor e sofrimento — por se RELIGAR a algo que lhe propicie algum tipo de paraíso, melhor, que lhe permita um retorno as sensações de aconchego, bem-estar, felicidade, amor,.... vivenciados na vida intrauterina e, assim, registrados na psique. Todos, desta forma, possuem uma religião (meio de religação), seja institucional, deísta ou não, acredite num Ser Criador ou não, todos possuem uma crença (fidelidade – fé) em algo ou alguém que lhe conecte a um estado de completude, ou que pelo menos lhe prometa tal condição utópica. Este seria um ponto de vista ampliado e simplificado sobre a religiosidade humana. Agora, no que tange a bondade e solidariedade, podemos questionar o seguinte: Se avaliarmos a crença institucionalizada chamada Cristianismo e sondarmos as suas Escrituras Sagradas, como exemplo, o Cristo não foi solidário com a mulher cananeia ao negar a cura a sua filha, dizendo “não vim senão para as ovelhas perdidas de Israel [...] Não é bom tomar o pão dos filhos e 1

Acesso em > http://brasil.elpais.com/brasil/2015/11/05/ciencia/1446717405_450204.html

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Acesso em > http://pensadoranonimo.com.br/criancas-sem-religiao-sao-mais-solidarias-menos-egoistas/


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lançá-lo aos cachorrinhos. (Mt 15.24,26)? E quando Ele diz: Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis ante os porcos as vossas pérolas, para que não as pisem com os pés e, voltando-se, vos dilacerem. (Mt 7.6); ou: Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada. (Mt 10.34); ou ainda: Se alguém vem a mim e não aborrece a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs e ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. (Lc 14.26). Que tipo de “amor” e “bondade” (ou evangelho para o cristão) está expressando essas palavras? Não dar o que é santo – reter para si, desobedecer aos pais, aborrecer amigos e irmãos, levantar espada, divisão e discórdia em prol de uma mensagem de boas novas? Seria isto? Bom, o que se tem são palavras, a conceptualização e interpretação estão sob responsabilidade de quem tem contato com elas, conforme a instrução recebida. Bondade, maldade, amor, solidariedade são conceitos que caminham e se modificam em cada época, civilização e contexto histórico. O que a Igreja Cristã, em seus concílios iniciais, estabeleceu como PECADOS CAPITAIS, hoje já não são tão capitais assim. Em outras civilizações antigas, matar os filhos e sacrificá-los não era maldade, mas pelo contrário, era uma honra aos seus deuses. Para eles, não havia maldade nisso. Mesmo Abraão, o pai das três grandes religiões institucionalizadas do mundo, moveu-se para sacrificar o filho ao seu Deus (Yhwh), e em nenhum momento isto foi colocado como MAL, naquele momento, porém, posteriormente, o mesmo Deus que pediu o filho a Abraão ordenou ao seu Povo que não sacrificassem seus filhos a Moloque, porque esta atitude, agora, seria abominável. Há pouco tempo, na sociedade civil atual, uma palmada ou varada nas nádegas do filho era considerada uma correção legítima, hoje, entretanto, é considerado crime. Surge a pergunta: Por que o que outrora era bondade para com o filho, atualmente, é MALDADE? Dentro dos templos cristãos, espíritas, judaicos, culturas ocidentais e orientais, não é diferente, o conceito do que é bom e mal, evangelho ou boas novas, se modificaram e se modificam ao longo dos caminhos da história. O que quero dizer é que a solidariedade e generosidade não são conceitos e comportamentos estabelecidos exclusivamente dentro de templos e livros reconhecidos como sagrados ou divinamente inspirados por um Ser Criador, existe uma variedade de fatores que constroem a forma de agir do Homem. Fatores históricos, genéticos, sociais, familiares, e isto pelo simples fato da constituição Biopsicohistoricossocial do Ser Humano. A moral, ou a consciência moral (superego - na psicanálise), parte psíquica que determina as ações solidárias e generosas, está para além da ligação direta a uma instituição eclesiástica (cristianismo, judaísmo, islamismo...), pode sim estar sob influência de tais ensinos doutrinários, no entanto, ela se estabelece no indivíduo pela interação sociofamiliar, ainda que a família não tenha crença alguma em alguma divindade, pois o ensino moral é um ensino universal, estabelecido e outorgado segundo as regras de uma cultura familiar ou social específica. Além dos cuidadores paternos, os meios de comunicação sociais (internet, rádio, televisão) também são importantes na construção da cultura de um povo e,


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consequentemente, na formação da consciência moral de um indivíduo, ou seja, são determinantes na forma como o indivíduo vê a si mesmo, o outro e o mundo que o cerca. O ensino de um Deus moral e ético não é a única forma de ensino que produz consciência moral (conjunto de valores e princípios que formam a visão e percepção de si mesmo e do outro) no ser humano. No presente tempo, numa fase de transição social, em que a tradição dos pais e avós tem adquirido outros comportamentos, a desconfiguração familiar (cuidadores paternos) afeta mais a consciência moral das crianças do que a ausência de religião ou fé institucionalizada, pois o que determina se uma criança vai ser moral, generosa ou solidária, está, em grande parte, nos espelhos familiares, relações, interações, mediações, nos processos de imitação, nos ensinos, ... As relações familiares (mais próximos) influenciam até mesmo como a criança se relacionará e verá o Sagrado. Por exemplo, crianças que sofreram algum tipo rejeição expressiva na primeira infância, tendem a comportamentos extremos de bondade ou maldade. Alguns serão muito bons, obedecerão a todas as regras e leis, serão éticos e morais, caminharão dentro dos padrões estabelecidos por figuras de autoridade, terão dificuldade para dizer “não”, carregarão muita culpa e peso quando houver uma desobediência, frequentarão as Igrejas, Templos e serão devotos e beatos a Deus (Figura Paterna) sem ousar questioná-lo; outros, na via contrária, serão extremamente desobedientes às regras estabelecidas por superiores, serão violentos, “maus”, desrespeitosos a qualquer figura de autoridade, inclusive “Deus”, e dificilmente carregarão culpa por isso. Ambos os comportamentos são uma forma de verbalizar o medo de sofrer uma rejeição novamente. Acredito, então, que o foco é o ENSINO, maneira como a criança é EDUCADA por ações ou palavras, mais que isso, é como a criança absorve o ensino recebido (pois cada indivíduo absorve de forma diferente um ensino). O ponto essencial, a meu ver, não é se a criança é nomeada “cristã”, “judia”, “muçulmana”, “católica” ou “espírita”, e sim a forma como ela foi educada. Se as crianças são conduzidas a direcionarem a sua religiosidade natural em uma instituição com ensinos fundamentalistas e legalistas, elas, em sua maioria, crescem em um ambiente fechado, inseridos em um povo escolhido pelo divino, em que todo aquele que está fora desse povo separado é estigmatizado como rebelde, fora da vontade de deus (Ser Supremo). Este tipo de ensinamento, fundamentado em uma verdade absoluta, torna-se, naturalmente, muito excludente, visto as babarias relatadas na história: cruzadas, inquisição, holocausto, estado islâmico, enfim, milhares e milhares de mortes e atrocidades em nome de "deus" e da "fé institucionalizada", além de outras ações atuais e mais sutis no dia a dia. A moral, neste caso, torna-se amoral. Numa perspectiva sincera, a maioria que participa de um contexto de fé institucionalizada que prega o amor e a paz, realiza o bem proposto pelo seu Sagrado, simplesmente porque é mandamento, é uma obrigação cumprir o dogma santo; há pouca motivação altruísta de si mesmo voltada para o outro,


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todavia, muita motivação gerada pelo pensamento de que há uma condenação para o desobediente ou recompensa para o obediente. O jovem rico citado na Bíblia, por exemplo, não mata, não rouba, honra os pais; em outras palavras, ele é moral e bom porque deseja uma recompensa – a Vida: Bom Mestre, que farei para herdar a vida eterna?

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[...] Sabes os mandamentos: Não matarás, não adulterarás, não

furtarás, não dirás falso testemunho, não defraudarás ninguém, honra a teu pai e tua mãe. 20 Então, ele respondeu: Mestre, tudo isso tenho observado desde a minha juventude. (Mt 10.17-20). Em outro episódio, João – o Batista, ao pregar sobre arrependimento e sobre uma condenação aos injustos, é questionado pela multidão acerca do que deveriam fazer para não serem condenados, e ele responde: Quem tiver duas túnicas, reparta com quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo.

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Foram

também publicanose para serem batizados e perguntaram-lhe: Mestre, que havemos de fazer?

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Respondeu-lhes: Não cobreis mais do que o estipulado. 14 Também soldados lhe perguntaram: E nós, que faremos? E ele lhes disse: A ninguém maltrateis, não deis denúncia falsa e contentai-vos com o vosso soldo (não aceitem propina). (Lc 3.10-14). Aqui se percebe que a solidariedade e bondade dentro de uma crença institucionalizada por doutrinas e dogmas são regidas muito mais pelo medo de uma condenação do que por altruísmo. No entanto, acredito que esta forma de ser é uma representação que reside em cada um de nós. Todos nós, humanos, enquanto seres religiosos em uma busca, incosciente ou consciente, por um paraíso, não estaríamos sendo bons e solidários — quando assim entendemos que estamos sendo —, por que estamos fugindo de uma condenação ou por que desejamos alcançar esse “paraíso – bem estar” interior, esteja esta condição desejada na aprovação divina (Ser Criador) ou na aprovação de nós mesmos ou na aprovação dos olhares alheios da sociedade ou comunidade na qual estamos inseridos?

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3.12 Lc 7.29


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