Revista HC 3ed

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HIPERATIVO

REVISTA

EDIÇÃO JULHO, N° 03 ANO 01

30 anos de censura e transgressão O furor do conservadorismo diante da produção poética mais controversa das últimas três décadas na Paraíba. O tempo passou, mas os gritos agônicos daqueles versos ainda ecoam no cotidiano de uma cidade perdida


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Novo álbum do cantor e compositor paraibano Chico César, Estado de Poesia, traz canções de amor e de crítica sociopolítica

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30

literatura

música

CAPA

SUMÁRIO

Julho é um bom mês para morrer traz no enredo os conflitos internos do universo feminino

Poema A Cidade Perdida, do dramaturgo Paulo Vieira, completa 30 anos após intensa crítica da sociedade pré-democrática

LEIA+ 08 10

Música Conheça a história de superação do instrumentista paraibano Aleijadinho de Pombal

tributo Uma década e meia sem o poeta do rock, Cazuza

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colaborações Crônicas e poesia dos nossos leitores já tem seu lugar garantido

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ensaio

40

Dois olhares distintos do cotidiano, pelo fotógrafo Thercles Silva

crítica

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W. J. Solha faz crítica do mais recente livro do poeta Antônio Mariano, O dia em que comemos Maria Dulce

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cinema O Abutre, filme indicado ao Oscar de melhor roteiro, tem enredo marcado pela indústria da comunicação

Moda Estilista Ronaldo Fraga prepara nova coleção com artesãs paraibanas e lança novo livro


EDITORIAL

Q

uanto pode nos confrontar o que é novo? Medo, insegurança e até rejeição ao que foge de nossa rotina nos faz perder oportunidades, podendo ser elas de crescimento, de felicidade ou daquilo que tanto se espera. E esperar é tarefa para os fortes, já dizia o ditado popular. Uma das oportunidades que a sociedade paraibana perdeu nos últimos 30 anos foi de apreciar um momento raro do dramaturgo Paulo Vieira. Seu lado poético, que teve seu auge na adolescência, com versinhos experimentais para as namoradas, nem de longe teriam traços da sua despedida como poeta. O jovem Paulo utópico e rebelde provocou e chocou. Inconformado com a repressão das ruas que a ditadura militar impôs ao país por décadas e mais revoltado por assistir João Pessoa caindo aos pedaços, Paulo esquadrinhou sua alma, usou doses nada homeopáticas de uma linguagem nua de sutilezas e condescendências para transformar em morfemas e fonemas sua visão de uma cidade que julgava perdida. E talvez ainda esteja. Talvez. Assim nasceu o poema A Cidade Perdida. Com influências das produções poéticas de Oswald de Andrade, Augusto dos Anjos, Manoel Bandeira, Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade, Paulo teceu seu poema e tocou na ferida de muitos e que ainda sangra por aí. Sua poesia foi recolhida de circulação e mais: foi queimada, assim como na Inquisição, assim como no Nazismo. Ato triste e tacanho para uma sociedade ávida por liberdade de expressão. Mas a mão pesada da censura, que agonizava seus últimos suspiros, foi bem mais evidente. A Revista Hiperativo resgatou essa história. Nesta edição temos um material especial, fruto de uma pesquisa feita por dois meses, por várias tentativas, algumas exitosas, outras frustrantes, de dar voz aos principais protagonistas (vivos) da história. Na reportagem, temos o relato de Paulo sobre o acontecido e a opinião de uma galera que viveu ou participou da publicação. O poema está na íntegra, com ilustrações exclusivas dos artistas visuais GigaBrow e Thiago Trapo, meninos de talento inegável e que acredita no nosso trabalho. Mas o que faltou à epoca foi uma crítica literária, estética, dos versos de A Cidade Perdida. O jornalista, músico e poeta Walter Galvão analisou-os e faz correlações surpreendentes do poema. Por fim, a Revista Hiperativo se tornou uma produção independente, por ora. Por enquanto não estamos vinculados a algum site. Estamos sob nova gestão. Ganhamos novos horizontes, novo fôlego e muitas ganas de evoluir cada vez mais. Contamos com a colaboração de você, caro leitor. Boa leitura! Edilane Ferreira Editora Geral

EXPEDIENTE

CAPA: Foto: Arquivo pessoal de Paulo Vieira

O HIPERATIVO CULTURAL É: DIRETOR PRESIDENTE Leonardo Accioly DIRETORA FINANCEIRA E MARKETING Thatiuska Lima DIRETORA DE PRODUÇÃO San Vilela DIRETORA DE CRIAÇÃO Carol Caldas DIRETORA ADMINISTRATIVA E EDITORA GERAL Edilane Ferreira EDITOR ADJUNTO Sandro Alves de França EDITORES SETORIAIS Carol Caldas, Carina Queiroz e Samara Mello FOTOGRAFIA Delosmar Magalhães Leonardo Accioly PROJETO GRÁFICO Carol Caldas Edilane Ferreira ARTE E DIAGRAMAÇÃO Bruno Fernandes Carol Caldas JORNALISTA RESPONSÁVEL Edilane Ferreira DRT/PB: 2730 CONSELHO EDITORIAL Edilane Ferreira, Carol Caldas, Delosmar Magalhães, Sandro Alves de França, André Luiz Maia COLABORADORES DESTA EDIÇÃO André Luiz Maia, GigaBrow, Lucas Duarte, Rodrigo Rodrigues, Thiago Trapo, Waldemar J. Solha, Walter Galvão CONTATO hiperativocultural@gmail.com


EQUIPE 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

1.

Leonardo Accioly é fotógrafo profissional,

graduando em Comunicação em Mídias Digitais e diretor presidente.

2.

Thatiuska Lima é graduada em História e diretora financeira e marketing.

3.

San Vilela é graduanda em Jornalismo e diretora

4.

Edilane Ferreira é radialista, jornalista, grad-

5. 6. 7.

de produção.

uanda em Letras, diretora administrativa editora geral. Carol Caldas é graduanda em Mídias Digitais,

designer, diagramadora e diretora de criação. Sandro Alves de França é licenciado em Letras,

graduando em Jornalismo e editor adjunto. Delosmar Magalhães é radialista, cinegrafista e

editor de vídeo.

8.

Carina Queiroz é graduanda em Design de

9.

Samara Mello é bailarina, graduanda em Jornal-

Moda e editora setorial.

ismo e editora setorial.

10. Gráfico e editor de arte.

bRUNO fERNANDES é graduando em Design


EM PLENA

EFERVESCÊNCIA POÉTICA


Novo disco do cantor e compositor paraibano quebra jejum de seis anos sem canções inéditas no mercado e traz canções românticas e de cunho social. Turnê inicial de Estado de Poesia conta com uma data na Paraíba ANDRÉ LUIZ MAIA

O

que é preciso para viver em estado de poesia? Ao que tudo indica, tem a ver com amor. Também é preciso de uma dose de saudade, outra de nostalgia e respingos de consciência política e responsabilidade social. Como não poderia deixar de ser, Chico César, em seu mais novo disco, Estado de Poesia (Urban Jungle/Natura Musical), chega romântico, político e, sobretudo, questionador. O álbum pode ser ouvido através das principais plataformas de streaming, como Spotify, Deezer, Rdio e pode ser adquirido através do iTunes, 6

Google Play Store e em formato físico, pela Pommelo Distribuições. O álbum, com exceção da música-título, é completamente inédito. Até mesmo “Estado de poesia”, interpretada por Maria Bethânia no DVD Carta de Amor é “quase inédita”, pois não foi usada como faixa promocional. Já no primeiro single, “Da taça”, liberado no início do mês, é possível perceber a predominância de temas românticos, inspirados em seu novo amor, Bárbara Santos (citada nominalmente em “Caracajus”). À exceção de “Alberto” (na qual divide

“o estado de poesia é um estado de espírito alterado, de dentro para fora, a partir dos afetos”


os vocais com Jonathas Falcão, vocalista da banda paraibana Seu Pereira e Coletivo 401) e “Reis do agronegócio” (escrita a quatro mãos com Carlos Rennó), doze das catorze músicas foram compostas durante os seis anos de estadia na Paraíba. “O estado de poesia é um estado de espírito alterado, de dentro para fora, a partir dos afetos. É um reencontro de uma pessoa com seu estado interior, com o estado geopolítico, no meu caso, a Paraíba”. Mas, como o título “Reis do agronegócio” pode dar uma pista, há espaço para um ser poético consciente e preocupado com questões sociais. Trata-se de uma música de protesto que empurra o dedo no fundo da ferida a respeito da bancada ruralista e o agronegócio no país, canção esta que o próprio Chico César cantou no púlpito da Câmara dos Deputados. Em toada de bardo, a forma como Chico canta e toca o violão lembra Bob Dylan – embora haja espaço para sua interpretação sempre certeira. “Negão”, na qual divide os vocais com o baiano Lazzo Matumbi, vai direto a outro tema bem específico, a questão racial, algo que sempre aparece na obra de Chico César. “A questão racial é muito mascarada no nosso país. Mais de 50% da nossa população é negra e ainda ocupamos os lugares estratégicos. Quando pensei nessa música, me inspirei na bandeira da Paraíba, que tem a inscrição ‘Nego’ e fiquei me perguntando quando é que iremos colocar ‘Negão’ em seu lugar, mesmo que metaforicamente”. Portanto, Estado de Poesia poderia ser dividido em duas partes: o lado A, com canções que tratam de coisas mais particulares, a exemplo de “Estado de poesia”, “Caracajus”, “Museu”, “Caninana”, e o lado B, com

canções de cunho mais social, como as já citadas “Reis do agronegócio”, “Negão” e “No Sumaré” – esta última com participações de Escurinho. Mas, apesar de, à primeira vista, parecerem temáticas difusas, é possível enxergar o álbum como uma cena de um filme, que começa em plano detalhe e vai expandindo seu olhar, até nos entregar um plano geral, com o cenário completo. Chico concorda. “O cidadão pleno tem o direito de amar, se manifestar através desse sentimento. Não existe cidadania sem a manifestação plena dos afetos. A questão do estado de poesia tem a ver com o sonho, com o desejo de liberdade, e isso parte de algo particular, do íntimo, para algo geral, amplo. Primeiro, as reivindicações mais pessoais, o direito de sonhar, de namorar, de amar e vai ampliando para se juntar aos desejos coletivos”, resume.

Colaborações A torrente criativa de Chico César também deu frutos que podem ser ouvidas em outros lugares, para além de Estado de Poesia. Há poucos meses, Elba Ramalho cantou em seu álbum recente Do Meu Olhar Pra Fora a canção “Pa-

tchuli”, que faz uma referência à essência de perfume bastante usada nos anos 1970. “É uma canção divertida, com menos seriedade que as canções do meu disco. Vi que a Elba inclusive borrifou essência de patchuli durante a apresentação da turnê dela do Rio. Infelizmente, eu não estava lá”, lamenta. A canção pode ser ouvida gratuitamente através do serviço de streaming Rdio. Outro filho que ganhou o mundo recentemente é “Vertigem da inocência”, gravada pelo quarteto paraibano A Troça Harmônica, que lançou o primeiro álbum homônimo recentemente nas redes sociais gratuitamente. “Compus essa música na época do Meus Quintais de Bethânia, mas ela acabou não entrando nem no disco dela nem no meu. É uma música bem nova”. Quando Chico Limeira o procurou pedindo uma composição para o álbum, Chico não pensou duas vezes. “Ofereci ‘Vertigem...’ de cara. Acho que é uma boa música para esse início de carreira, essa ingenuidade que existe durante esta época, é muito gostoso. Eu adorei a ve-rsão dos meninos, inclusive”, diz Chico César. Fotos: Marcos Hermes

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Fotos: Otávio Ivson

uma história

de superação através do forró Instrumentista paraibano com mais de 20 anos de carreira, Aleijadinho de Pombal continua com pé na estrada, em suas apresentações pelo Nordeste. Ele se diz eclético, mas o seu ponto forte é o forró pé-de-serra LUCAS DUARTE

E

xemplo de superação. Assim podemos definir um dos artistas mais respeitados dentro da música nordestina. Aleijadinho de Pombal é ex integrante da Banda Alegria e, atualmente, se apresenta em shows ao lado do amigo sanfoneiro, João André e Forró na Faixa. Para muitos, Aleijadinho é ícone do forró pé-deserra. O músico já se apresentou na Suíça, no evento conhecido como

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‘Uma noite brasileira’, dentro do Festival de Montreaux. Aleijadinho participou recentemente de um filme ‘Paraíba, meu amor’, com produção estrangeira, sobre a música nordestina em que é chamado de ‘bluesman’ do forró, no qual intercala entrevistas e apresentações do artista. Aleijadinho já participou de programas culturais locais, a exemplo do Programa Cantos & Contos (TV Correio) e Programa Sala de Reboco (TV Tambaú). Ele,

que é paraibano, é reconhecido por ter um repertório eclético, apesar de sempre destacar sua preferência pelo estilo pé-deserra. Para o cantor, esse estilo tem a sonoridade de músicos tradicionais do interior do Nordeste e principais representantes da música, como Dominguinhos e Luiz Gonzaga. Aleijadinho de Pombal tem como instrumento preferido o acordeon, o qual utiliza em seus shows, ao lado de


sua banda. Sobre o resgate do autêntico do forró, o artista diz que é “um grande defensor do forró, desta música nordestina que tão bem nos representa”. Entre suas canções de sucesso, estão “Filho do dono”, “Mulher comprometida”, “Sua ingratidão”, “Mulher casada”, entre outras que falam com humor das aventuras do homem nordestino.

início José Roberto, conhecido artisticamente como Aleijadinho de Pombal, é um velho conhecido dos fãs, tanto pela sua habilidade no manuseio da sanfona quanto pelo vozeirão na interpretação da músi-

Arte: Luciano Luz

Fotos: Divulgação/Internet

ca nordestina. Nascido no alto Sertão da Paraíba, a infância foi dificultada pela pobreza da família e pela poliomielite, que o deixou de cadeira de rodas e lhe deu o nome artístico. O forró foi a válvula de escape usada por ele para dar um novo rumo à vida. Com a ajuda de amigos conseguiu dinheiro para comprar a primeira sanfona. Começou se apresentando nas praças públicas e feiras livres. De artista anônimo, em busca de dinheiro para sobrevivência, logo construiu reputação de instrumentista, cantor e compositor respeitado pelos forrozeiros. Nos anos 90, lançou discos com a Banda Alegria. 9


Foto: Ultrad.com.br

Mais uma dose do poeta exagerado

‘Cem gramas, sem dramas’, a Revista Hiperativo relembra a vida e obra de Cazuza. Mito do rock brasileiro nos anos 80, quando ainda integrava o Barão Vermelho, o cantor e compositor de versos de amor e corrosão há 25 anos deixa legião de fãs orfã RODRIGO RODRIGUES

E

m sete de julho de 1990, partia em um trem para as estrelas a eterna criança do Leblon. O poeta exagerado, mimado e revolucionário em seu tempo, Agenor de Miranda Araújo Neto, Cazuza – ou “Cajú” para os mais “chegados” – nascera em quatro de abril de 1958, e de tão ferrenha, voraz e fugaz passagem, logo aos 32 anos deixou órfã uma legião de fãs apaixonados por sua poesia que expressava perfeitamente a vida de toda sua geração. No Nordeste, a palavra cazuza significa um moleque levado ou também como vespa solitária de ferroada muito dolorosa. Quantas coincidências! “Vespa solitária de ferroada doloro-

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sa”, “moleque levado”. Pelo visto o destino cumpriu bem com seu legado etimológico. De fato, segundo seus amigos mais próximos (e também sua própria mãe), Cazuza faz jus a todos esses significados. Filho único de um produtor fonográfico, o jovem Cazuza não poderia seguir outra carreira. Até tentou estudar fotografia, mas não pegou gosto pela coisa. Preferia a vida boêmia e vagabunda nas praias do Rio de Janeiro. Era a vida fácil. Segundo sua mãe, Lucinha Araújo, Cazuza era um menino comportado até os 14 anos e só começou a “dar trabalho” depois dos 15. Seu pai nunca quis o filho envolvido com o que ele mais fazia na vida: música.

Pobre João Araújo, mal sabia que em breve as boas novas trazidas por Cazuza, preguiçoso e que odiava acordar cedo, ia fazer parte de seu show. João Araujo, conhecido no meio artístico por seu trabalho, não ia demorar muito para ficar conhecido como o pai de Cazuza, o menino que ia “voar” sozinho pelos palcos do Brasil afora. O início – Barão Vermelho Cazuza descobriu que suas poesias poderiam virar letras de músicas aos 17 anos. Mas só aos 23, quando entrou no Barão Vermelho, assumiu seu lado poeta. Quando decidiu ser cantor, Caju resolveu procurar saber tudo sobre teatro. Sabia que era um bom meio para


se tornar um “frontman” de sucesso. Então se matriculou em um curso no Circo Voador. Lá conheceu Léo Jaime. Léo comentou com o jovem estreante no meio artístico que um grupo musical procurava um vocalista. Cazuza é apresentado a Roberto Frejat, Dé Palmeira, Maurício Barros e Guto Goffi. Logo no primeiro ensaio todos gostaram do jeito despojado e da voz rasgada do novato. Nascia ali o Barão Vermelho. Cazuza trazia letras que havia escrito e também passava a compor junto com Frejat, formando uma das parcerias mais marcantes do rock nacional de todos os tempos. Ezequiel Neves, que futuramente se tornaria parceiro musical e amigo íntimo de Cazuza, percebeu o potencial e apostou no grupo. Conseguiu convencer Guto Graça Mello, diretor artístico da Som Livre e a João Araújo, pai de Cazuza, que relutava em não levar o projeto a sério, a gravar a banda. O álbum Barão Vermelho, lançado em 1982, foi gravado em dois dias e com uma baixa produção orçamentária. Não obteve uma boa aceitação do público, vendendo apenas sete mil cópias. Com uma vendagem maior, o álbum Barão Vermelho 2 foi lançado no ano seguinte. Nessa fase, o grupo teve uma melhor projeção e o nome de Cazuza foi mencionado por Caetano Veloso durante um de seus shows no Rio. Caetano apontou o maior abandonado como o poeta de sua geração e criticou as rádios por não tocarem o Barão Vermelho. As palavras de Caetano surtiram efeito e abriram os olhos de João Araújo, e a banda, a partir daquele álbum, ganhou notoriedade pelo público, emplacando sucessos como “Pro dia nascer feliz”, “Maior

Foto: Divulgação/Internet

Abandonado”, “Bete Balanço”, “Por mento nos Estados Unidos. No final que a gente é assim?”, entre outros. daquele ano o poeta retorna para Brasil e grava um dos álbuns de maior sucesso em sua carreira, “Ideologia”. Carreira solo – Morte O sucesso era fato para os jovens ga- Nesse álbum, o artista mistura sua rotos do Barão. A satisfação era plena, luta pela vida com diferenças sociomenos para o rapaz que adorava um culturais enfrentadas pela nação, a examor inventado. Ele estava insatisfeito, emplo de “Brasil” e em “um trem para não gostava das definições para a ban- as estrelas”, em que o poeta descreve da, queria mudar, tocar outros estilos, as dificuldades enfrentadas pelo povo atingir outros públicos. O gênio dentro brasileiro. Em “Ideologia”, ele relata de Agenor estava para despertar, logo sua luta pessoal na escolha de um esdescobriria que não era a toa que seu tilo de vida, um norte, uma ideologia nome também era o mesmo de Car- para viver. tola. Cazuza rompe com o Barão na Após o sucesso de “O tempo não pára”, gravação do quarto álbum da banda o último álbum de Cazuza em vida é em 1985. Tão meteórico quanto seu “Burguesia”. Nele, a faixa “Cobaias de Deus” é o delírio derradeiro da tranauge no grupo foi sua saída dele. O álbum solo “Exagerado” é lançado scendência entre o ser e a mensagem, e a canção hit homônima se torna seu é a forma que o artista encontrou, a sua cartão de visita. O poeta exagerado, maneira, de definir sua passagem por junto ao turbilhão de flashes, apre- está vida e a razão para sua morte. senta febres diárias estranhas, e logo Cazuza morre no ano seguinte aos 32 é internado com suspeita de pneumo- anos. Há exatos 25 anos, um meteoro nia. Era a AIDS dando seus primeiros passou por nós e deixou o legado que, sinais. Ele decidiu fazer um exame para a meu ver, é o que temos de mais belo saber se estava ou não com HIV, porém como seres humanos. O poder através da arte de influenciar e contribuir para o resultado deu negativo. A AIDS se manifesta em 1987, um novo motivar as pessoas a sorrirem através teste revela que o cantor era portador da mais profunda essência da alma hudo vírus. Cazuza é levado para trata- mana, a poesia. 11


CAPA

Quem diria que apenas seis páginas de uma poesia poderiam causar tanto alvoroço na sociedade pessoensse em 1985? Paulo Vieira foi ousado ao declarar seu amor pela cidade, que acabara de completar seu quarto centenário. A poesia A Cidade Perdida se perdeu nas mãos erradas, foi atirada como pedras para a opinião pública, queimada e deixada num cantinho que, para muitos, seria justo o esquecimento. A Revista Hiperativo relembra como aconteceu, traz à luz o poema, que mesmo escrito há 30 anos, continua atual. EDILANE FERREIRA SANDRO ALVES DE FRANÇA

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provoc


cação

Foto: Rafael Passos

Fotos: Arquivo pessoal Paulo Vieira

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H

avia um garoto de 22 anos na cidade de João Pessoa inquieto ao que acontecia ao seu redor. Ele assistia embasbacado a opressão da ditadura militar, a censura nos veículos de comunicação, em que estes não diziam quase nada do que realmente acontecia nas ruas. As vias públicas de João Pessoa, cidade em que guardava amor, padeciam de problemas crônicos de infraestrutura e as autoridades pareciam estar alheios àquela realidade. Era meados de 1985, tempo em que a ditadura saía de cena para a tão sonhada democracia. Era um garoto universitário, mas que desde a adolescência escrevia poesias de amor. Mas diante da cidade que amava, escreveu seu último poema. Um poema triste, sarcástico, corrosivo, com forte poder de denúncia dos contrastes sociais, da alienação, ideologias plásticas e hipocrisia política. Esse garoto é Paulo Vieira, que se tornou, anos depois daquele 1985 provocativo, dramaturgo e professor universitário. O poema é “A Cidade Perdida”. O poema foi publicado na revista Presença Literária, que era de responsabilidade da Secretaria Estadual de Educação, na gestão do governador Wilson Braga. A edição que continha este poema era simbólica, pois comemorava os 400 anos da cidade e procurava ter um conteúdo alusivo à data. Mas o que seria apenas um poema declarando seu amor pela cidade, apontando as críticas de um cidadão que se sentia culpado por não participar ativamente das transformações sociais dela, por não ter entendido o que houvera em 1964 com a tomada dos militares ao poder, pois ele estava ocupado em “bater a primeira punheta”, ganhou repercussão muito maior do que se imaginava. Ao poema, o destino dado foi a incineração. A Paulo, isolamento e preocupação. Militares da Escola Superior de Guerra estavam fazendo um tour pelo Nordeste, a fim de checar se estava tudo operando dentro do sistema. Uma dessas paradas foi João Pessoa, em que realizaram um evento. Um dos funcionários da secretaria de Educação, para agradar aos visitantes, resolveu presenteá-los com um mimo: a revista Presença Literária, com o poema “A Cidade Perdida. Ao folhear as páginas, o choque. “Eu não estava presente, mas uma sobrinha minha estava no Colóquio da Escola Superior de Guerra. O fato é que um tenente se levantou e perguntou ao vice-governador, que estava no evento, se o que estava escrito naquela re-

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vista representava o pensamento do Governo do Estado. Ele não entendia do que se tratava e passou a palavra para o secretário de Educação, que também não sabia o que era. Então o oficial resolveu esclarecer e o recitou na íntegra. A minha sobrinha me relatou que o clima era de grande revolta”, relatou Paulo. Daí em diante, todos os noticiários da cidade dava conta de um “louco” que “desonrava” a cidade, que “deveria ser expulso” ou “ter a cidadania paraibana revogada pela Assembleia Legislativa”. O poema foi lido e tido como algo criminoso. A lembrança ainda é forte para Paulo. “Foram 30 dias em que meu nome não saiu dos xingamentos de todas as rádios e jornais da cidade. Minha mãe ficava desesperada porque tinha um programa de rádio popular que falavam no meu nome todo santo dia. Ela me perguntou “porque você não escreveu uma coisa elogiando? Mas eu era um jovem cheio de fantasias e com uma certa dose de rebeldia também”. A repercussão histérica nas ondas do rádio, nas páginas amareladas dos jornais motivaram o governador para uma atitude histórica e paradoxa ao clima de liberdade que se clamava nas ruas e que estava por chegar. “Ele mandou recolher e teve ordem de incineração da revista. Isso aconteceu no nazismo, quando os livros que não interessavam aos nazistas eram empilhados em praça pública e queimados em uma grande fogueira. Foram chamados de autores degenerados. Eu, autor degenerado, fui queimado numa pilha nazista. Foi uma coisa impressionante”, refletiu.

“diante da cidade que amava, escreveu seu último poema. um poema triste, sarcástico, corrosivo, com forte poder de denúncia dos contrastes sociais, da alienação, ideologias plásticas e hipocrisia política”


Arte: Carol Caldas


Fotos: Arquivo pessoalPaulo Vieira

“Eu era um jovem cheio de fantasias e com uma certa dose de rebeldia também.”

CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS

A

ntes mesmo da publicação de “A Cidade Perdida”, Paulo e o editor da revista Presença Literária, Juca Pontes, já previam o que poderia acontecer. “Conversamos e foi aí que pensamos que poderiam haver reações. Ele me disse, ‘não, eu estou sabendo, mas é administrável’. Obviamente que seria, se fosse apenas a nível municipal e não a proporção que tomou”, disse. “Meu olhar para o poema de Paulo sempre foi literário. Não houve nenhuma censura minha ou de tentar discriminar a literatura que era impressa na revista. O que houve foi que a revista foi distribuída num momento inoportuno. Como era 16

uma revista literária, não era o momento para se distribuir num evento como aquele”, pontuou Juca. Enquanto radialistas cuspiam negativamente contra a produção literária de seis páginas de Paulo Viera nos microfones, motivando a população a compartilhar o julgamento ferrenho dela e o recolhimento e queima das revistas, várias setores se manifestaram contrários ao ato. “Movimentos culturais, políticos, sindicatos, entidades de classe ligados de alguma maneira à cultura, fizeram um manifesto enviado ao governador pedindo que não fosse incinerada a revista e que ela fosse publicada. Mas nem uma coisa, nem outra foram aceitas”, lamentou.

Mas também houveram heróis da resistência à maioria que condenava. “Meus amigos me enviavam diariamente os recortes de jornais e graças a isso pude fazer um dossiê. A qualidade estética não estava em jogo. Eu acho que quem ainda se expressaram positivamente ou que fizeram uma crítica nesse sentido foram os jornalistas Henrique Magalhães, Walter Galvão, Marcos Tavares e Wellington Pereira. Mas isso passou de forma imperceptível. Henrique, me recordo, escreveu um artigo condenando toda a histeria que tomou conta da cidade. Ele me defendeu muito claramente e defendendo a poesia também. A coisa ficou irracional”, afirmou.


O debate sobre se “A Cidade Perdida” tinha ou não valor literário era muito incipiente. Em julho de 1985, as pessoas ainda não estava preparadas para entender algum valor poético que existia no poema. “A discussão era mas a provocação política, estética do non sense, que não diz nada e ao mesmo tempo diz tudo, a ferinidade (sic) do poema, uma construção poética um tanto quanto caótica, randômica. Tudo isso perturbava muito e isso ficava muito mais numa discussão de caráter político e conservador do que havia propriamente de proposição estética do poema, ou a sua possível forma revolucionária”, explicou. Nesses 30 dias de calvário, Paulo estava em São Paulo e relata que montou um esquema de alerta, pois os familiares e amigos temiam seu desaparecimento. “Me sentia ameaçado. Eu tinha um acor-

do com a avó da minha filha de que eu ligaria para ela todos os dias, uma vez de manhã e outra à tarde. Se eu deixasse de ligar, ela tinha o contato do meu orientador de mestrado e ela o acionaria. Então era esse o esquema. Era garantir que eu não iria desaparecer”, revelou. INQUIETAÇÕES E DESCRENÇAS O jovem garoto não escreveu o poema de maneira compulsória. Foram fragmentos de vários dias de inquietude, provocação, indignação e encontrou na poesia linguagem para extravasar todas estas sensações. “Ela não foi escrita de uma vez só. Fiz um trecho, depois fiz outro pedaço. E aí eu fui montando o mosaico fazendo o poema final. Na verdade é muito esquisito porque eu tenho a leve sensação de que há uma certa atualidade do poema

no que ele tem de mais inquietante de ordem metafísica, pessoal e social. Essas coisas ainda permanecem e não foram superadas no tempo, nem na história. Isso me faz pensar que não é o poema que está atual. É a cidade, é o país que está atrasado”. Um dos trechos do poema que explicita uma dessas inquietações é “vossos discursos políticos, as idéias de reforma social, o interesse pelo destino do povo mal esconde a náusea o cheiro vos induz”. Paulo expõe sua descrença à realidade atual. “Confesso que não vejo perspectiva para o Brasil. As coisas estão como estão e permanecerão por muito tempo. Infelizmente. Posso estar errado e até adoraria estar, mas eu creio que nesse trecho não fala de uma coisa específica, fala de uma conjuntura, sabe? Nesse sentido, a conjuntura permanece a mesma”.


Para o crítico literário e poeta Hildeberto Barbosa Filho, “A Cidade Perdida”, de fato tem elementos que ainda persistem no imaginário social e realidade. E vai mais além na sua análise. “Mas ele (o poema) está amarrado a uma circunstância histórica, pois tem a linguagem poética como mecanismo de denúncia de um sistema arbitrário e ao mesmo tempo fazer uma leitura da cidade. Foi uma leitura disfórica (sic), ou seja, não foi para elogiar ou teve intenção de passar uma visão turística da cidade. Foi uma leitura crítica, trazendo à tona uma série de problemas, que inclusive, não foram resolvidos pelos gestores públicos até hoje. Para mim é uma leitura crítica e paródica do momento da cidade, que eu acho pertinente”. Hildeberto ainda concorda que o poema é, na verdade, uma declaração de amor à cidade, por alguém que a via perdida e padecendo de problemas que seriam facilmente resolvidos caso houvesse engajamento daqueles que estavam no poder. “Ele traz uma visão avessa, desconstrói um certo paradigma oficial, mas em nenhum momento denigre a imagem da cidade. Pelo contrário, é uma forma de ler amorosamente João Pessoa. Apesar de trazer à tona elementos negativos, o poema deixa transparecer uma ligação visceral e afetiva com a cidade e é uma voz que se consolida 18

Capa de uma edição do jornal ‘Correio da Paraíba’ com uma nota do manifesto assinado por várias entidades de classe, dentre elas a Associação Paraibana de Impressa, presidida pelo jornalista Carlos Aranha

no poema. A repercussão realmente foi muito tacanha, criaram um estereótipo de um poema que ofendia”, disse. Mesmo sabendo que os tempos eram de pouca tolerância, Paulo arriscou e demonstra que não há arrependimentos. “É porque existem coisas mais fortes do que o medo. Havia uma vontade de expressão. Não sei se seria capaz de escrever hoje uma poesia que tivesse a mesma contundência. Até porque

não se trata de saber, mas de expressar o sentimento que não pode deixar de ser expresso naquele momento. A criação estética é, ao mesmo tempo, a vontade do artista em construir, mas é mais do que isto. É um desejo inexorável que está dentro e que precisa sair. Eu não me arrependo. Mas não gostaria de passar por tudo aquilo mais vez. Só me arrependo dos beijos de amor que eu não roubei”, brincou.


Não sei se ele é paraibano. Se fosse, mereceria um ato inédito que era o da Assembleia destitui-lo da cidadania paraibana, por motivos óbvios, e se não, ele estaria fazendo jus a uma deportação do Estado por força de um movimento uníssono de todas as vozes – do operário ao intelectual – de todas as classes de modo a força-lo a abandonar a terra que não está sabendo nem honrar. Abelardo jurema

Tá na hora de se acabar com essa besteira de “houve censura/não houve” e mais outras baboseiras do gênero. O poema é uma besteira, a revista está recolhida e sugiro à secretaria que destaque as páginas onde está o famoso poema e mande para o grupo de intelectuais. Anco Márcio

O filhote do professor Jomard Muniz de Brito, o poeta Paulo Vieira, tem tudo paa internar-se numa clínica psiquiátrica. O poema do filhote de Muniz é de uma grosseria estética esfuziante. arlindo almeida

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Incrível a movimentação provocada no mais ouvido, o Correio Debate, pelo poema fajuto de autoria de um Paulo não sei o quê. Centenas de telefonemas revoltados nos chegaram ao ar, solidários com o nosso assunto. luís otávio

Não pode fazer censura quem nunca aceitou ser censurado. wilson braga, governador na época, sobre a incineração das edições da revista

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A CIDADE

(Antiode polibian

a paraíba é um ponto abstrato no mapa, um acidente na geografia, um fedor de merda no parque solon de Lucena, espinhos de mandacaru no bodocongó. uma carcaça de boi no alto sertão. é a terra que foi prometida. são 12 meses de sol pela pb-tur. É um orgasmo feito ferrugem na moenda. ou um dicionário sem signficados. ou um poema concreto. senhoras e senhores não me sufoquem com o vosso desatino vossa demência incompetência incoerência incongruência vossa resistência os bagaços apodreceram, os engenhos estão de fogo morto e das cinzas um novo tempo é chegado pulsa no peito é verdade a saudade do chiado do carro de boi fermenta o caldo que sobrou na caldeira multiplicam-se os vermes que nascem do bagaço e os vossos corpos bagaceiras sem odor nem teor bagaços de prazer não moído a vossa idéia de cultura é rapadura cagada pelas moscas a vossa literatura, in-postura vossa dramaturgia, monódica liturgia vossos discursos políticos, as idéias de reforma social o interesse pelo destino do povo mal esconde a náusea o cheiro vos induz como eu rio que me vem do sertão trazendo no arrasto 20

PAULO


PERDIDA

na ou manifesto gagá)

O VIEIRA

canga corda e boi cachorro cabrito jararaca vaca veado paca coração tripa esperma bosta pela boca vomito vôo mito urubu de perna partida asas partidas e gozo rijo cafute que deu no canto bonito da américa no cu lambido da américa mulher de américo múmia que o atlântico trouxe nos porões de cabral dos culhões de cabral saltaram em bando urubus sobrevoaram tambaus sombrearam corpos nus de pudor taparam os cus ai américa américo do meu corpo eu vos ex pus cio asso mato casso asso mato um punhal partido um olho perdido na escuridão do silêncio o último cangaceiro vivo lampião acoitado em angicos o fogo do fuzil alumiando o luar do sertão oh gente oh não 21


uma flor na coroa dos bispos um espinho no pé do bumba meu boi a poeira do cha xado cobrindo teus olhos um poema modernoso de paulo vieira mato asso casso mato asso manifestadamente eu digo mani festa da mente autoantropocosmoalfabetofagico ou 23 annus de rapaz de província onde qualquer coisa é qualquer coisa sem razão de ser como é qualquer coisa mas que qualquer coisa é como toda coisa manifesto despudorado pela cultura a cu ummm putu ra fratura exposta ou putaria outra do que não é próprio lugar escuso entre as pernas fumaça de querer o desejo penúltima vogal da consciência primária onde se afia o punhal sanguinário para o princípio de tudo destruir consoantemente cada letra cada símbolo cada nota retida ao fole partido a hora hoculta do prazer adiando o que tem que ser agora esquerda direita em cima em baixo entre minha américa minha terra imprevista um doce para quem acertar: entre comunista fascista capitalista que diferença há? o jogo do poder é tão engraçado que se não fosse trágico eu morreria de rir o poder só pode porque o deixam phoder diria outras palavras foucault 22

todo poder é fascista e não me falem que democracia é governo do povo pelo povo para o povo raiz do povo é macaxeira inhame batata doce quando vejo alguém falando mal do poder em nome do povo esqueço que também sou pagão inocente da decadência e digo: meu deus livrai-nos do mal fascista, amém artigo 1: de que não existi antes de viver artigo 2: de que existo por um infortuito acaso ou ironia do destino ou atraso histórico da ciência que naquele tempo não inventara o anticoncepcional artigo 3: que quando aqui cheguei o mundo já estava apodrecido artigo 4: que sou inocente do mal estar na civilização artigo 5: que a herança cultural que me legaram é uma cagada arqueológica enrustida pelos annus artigo 6: que vossa arte, vossa política, vosso amor também me fraganciam desse fedor de merda mofada artigo 7: que mesmo sabendo-a abjeta não tenho como não lambuzar-me nela artigo 8: que não sou comunista fascista ou capitalista artigo 9: que não tenho meios de ação ou produção artigo 0: que trago restrita a possibilidade de amar senhoras e senhores desse cheiro de suor, desse copo de cerveja, dessa embriaguez medonha, algo há de fazer com que o bagaçoo se reporte ao bagaço, e do limbo putrefescido de nossa inteligência brotem amebas minhocas cobras lagartos que hão de se intrometer em nosso sono e sonhos de verão, e hão de nos pisar e nos comer fustigar cutucar incomodar importunar lamber morder remoer feder, e se ainda assim nada mudar, se tudo continuar como no princípio agora e sempre por todos os séculos seculorum amém, só quero que deus me dê uma coisa: vontade de rir rir rir rir rir rir rir rir rir rir rir rir rir rir rir até mijar do cume da antena da telpa eu grito: quem me ouve? quem me houve?


hå um våcuo entre a minha boca e os teus ouvidos entre a tua e a minha antena e a tua meu grito sem voz no ar, a irressonância do meu olhar, busco uma cidade perdida no horizonte


por favor, senhoras senhores por favor não fujam, não me queiram mal: vou pular do mais alto edifício nos vossos braços não me espere meu amor que a vida urge e eu vou e vou e vôo e não sei para onde qualquer caminho não me leva a lugar algum qualquer esperança ‚ tardia qualquer volúpia, pecado entro e saio dos “ônibus, cinemas e bares entro e saio meu tempo para te beijar gasto-o com os meus cigarros e ao invés de a ti é o barulho da cidade que ouço, a buzina dos carros, os pregões dos camelôs o riso dos amantes, um discurso político não meu amor me espere a vida urge ressurge insurge muge não me desespere é a senhora dos destinos a palavra vivemos de sua vontade e glória e eu sou o que dizem as palavras o que sou e pensar é uma palavra e o pensar, palavras palavras palavras 24


amor lambendo os amora beiços sujos amaro de semântica deitar e rolar em todas as letras é tudo o que eu quero fazer e além do Z o que há? há alguma coisa além do Z? um marinheiro bonito com tatuagem no braço, um vale de ninfas nuas ao luar, ou os braços de deus sorrindo às suas graçolinhas?

calma, paulo, não se avexe, deus também é uma palavra viver é uma palavra amar é uma palavra 25


e se você pichasse o meu coração com as palavras mais imorais, e se você enchesse os meus ouvidos com os sussurros mais indecentes, se você lambesse as minhas esquinas, minhas quinas, se você mordesse as minhas carnes e me deixasse marcado pelos seus dentes, sangrando pela sua voracidade, gozando pela sua feracidade, e se você se me entregasse e todos os espelhos se partissem, e todos os folhetins se queimassem, e a gente se perdesse, e a gente se rasgasse, se amasse, se botasse pelo avesso?

quando 1964 explodira nas ruas eu acabara de bater minha primeira punheta. abril aconteceu e eu não estava nas ruas. não vi os soldados empunhando suas armas, ameaçando destruir o mundo com seu orgasmo de fogo. não vi o povo vomitando pedras e impropérios sobre a triste soldadesca. 26


não vi o regozijo dos generais, a aflição das mães, os corpos dos massacrados, os camponeses sem terra, os comunistas sem pátria, nada. quando 1964 explodira eu me trancara no banheiro. quando a metralha dos soldados silenciava o povo nas ruas eu solitário gemia de orgasmo, e era o único na manhã de abril,

e fui talvez o único a ejacular o sangue das vítimas. dançam as horas. o pêndulo monótono marca o compasso das eras. há uma aurora nascendo e morrendo em meio a madrugada. mãos temem perder-se do contato de outras. acenam os dedos tristonhos adeus.

adeus. teu cheiro teu suor teu orvalho irão nas mãos que partem até quando perderem a cor.

27


Crítica

o c i t é o p o d a t n Ate O Ã V L A G R E T L A W R PO

A

publicação do poema de Paulo Vieira, “A cidade perdida”, no contexto das comemorações dos 400 anos de fundação da capital da Paraíba, e numa revista editada pelo Governo do Estado, funcionou como um cartum rebelionário. Aquele som, aquela fúria estabeleciam um contraste com a gosma do oficialismo que, no ano de 1985, do espasmo agônico da ditadura militar de 1964, exalava na Paraíba um odor asfixiante de mofo. Nas páginas em papel couchê da publicação, os versos compunham uma espalhafatosa e explosiva caricatura de alto teor crítico. O poema integra a galeria daquela arte que provoca, e insulta, é criação que cutuca o conformismo e que abala certas estruturas. Impacta pela linguagem crua. Proclama que o rei está nu. Os versos projetam imagens e produzem sensações que estabelecem uma saga anti-lírica que parece fixar a desnecessidade do que é solene onde deveriam estar apenas as belezas e contradições do humano, demasiado humano, ao mesmo tempo em que vomitam nojo sobre valores provincianos excitados pelo pitoresco onde deveriam latejar os germes do cosmopolitismo urbano da náusea e do tédio da pósmodernidade. Há nesse discurso, empapado de iconoclastia, a desorganização de um sistema autoritário que se apropria da arte e da cultura na perspectiva de celebrar o canônico contra o dionisíaco experimental que amplia os repertórios da sensibilidade e força a expansão da linguagem artística. 28

O poema “A cidade perdida” é a denúncia de que a vida é mais do que ficar no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar. O seu teor altamente político de corte panfletário é o exoesqueleto de sua vinculação estética integrada à estilística do romantismo. Romantismo naquilo que o gênero propôs no início do século XIX , proposta resgatada no século XX pela contracultura hippie, também a do rock, e ainda pela literatura beat: a subjetividade e o individualismo, o hibridismo que inocula na obra o feio, o monstruoso e o anárquico, a paixão e a “santificação”, o martírio e principalmente o desejo de liberdade. Outras codificações artísticas, o fluxo da consciência de James Joyce, a desconstrução psicossocial proposta pela obra de Raul Seixas, o radicalismo experimental de Pedro Osmar e Paulo Ró, tudo está embutido em “A cidade perdida”, atentado poético que fez história. Sua pegada declamatória, seu fluxo musical, viajam clandestinos no gregarismo excêntrico dos selvagens da motocicleta, no atrevimento do cangaço e na pompa herética dos punks. Uma provocação memorável.

eria “O poema integra a gal oca, daquela arte que prov ue e insulta, é criação q e que cutuca o conformismo s” abala certas estrutura



ultraemocional

e intimista como marcas de um tempo fugaz

SANDRO ALVES DE FRANÇA

A

s angústias, desejos e dilemas de uma jornalista frustrada que busca um rumo para sua vida, se defronta com seus fantasmas e encara a realidade que se impôs sobre ela. Esse é o eixo central de Julho é um Bom Mês Para Morrer, do escritor paraibano Roberto Menezes da Silva, também conhecido como Beto Menezes. Escrito em primeira pessoa, numa narrativa intimista e ultraemocional, o livro traça o percurso intersubjetivo de Laura, a narradora-protagonista que vai dissecando verbalmente sua alma num monólogo interior que é desvelado em formato de mensagem direcionada. A narração da protagonista é feita como se ela escrevesse uma carta e nela falasse de si mesma, de situações e pessoas que lhes foram importantes, como a mãe, a avó, alguns amigos e amores. Uma espécie de bate-papo virtual onde a interlocução é feita por um dos lados que expõe seus sentimentos a os outros interlocutores sem que haja uma resposta explícita. Um verdadeiro divã textual onde se faz uma leitura de sentimentos e vivências de uma mulher em crise, mas que podem muito bem ser os nossos, tamanha carga de humanização que a narrativa traz. Sobre a construção do enredo e a estrutura narrativa da obra, Beto relata que foi um processo gradativo, feito por etapas. “Primeiro veio a ideia da história, queria falar sobre a adolescência da personagem paraibana que se passa no final da década de noventa. Tinha várias possibilidades de formato da narrativa, escolhi começar o livro no estilo carta por ser a maneira mais confortáv30


el de começar uma história”, explica. Ele ainda esclarece que não utiliza esse recurso narrativo de modo convencional. “Como pode ser visto no livro, eu não levo tão a sério o formato carta. Quanto mais a história vai sendo desenvolvida, eu abandono ele”, ressalta o escritor. Tendo como personagem central uma jornalista que abandona a profissão por não conseguir se estabelecer na área, o autor explica que se baseou em histórias de amigos e conhecidos. “Ela (Laura) é da minha geração, conheço muitos de jornalismo que não trabalham na área. Abandonaram. Acho que jornalismo muitos fazem por romantismo. Assim como física. Na física o povo nem chega a concluir”, enfatiza o escritor que é também físico de formação e professor da Universidade Federal da Paraíba. A relação de Roberto com a literatura é estreita. Ele a coloca num mesmo patamar de importância que sua carreira como professor universitário e vê a produção literária como um desafio. “Literatura é uma coisa que gosto de fazer. Sempre admirei muito escritores, achava incrível como eles inventavam os livros saindo de uma página em branco. Eu queria fazer igual, criar algo só meu, que saísse da minha mente. Isso é desafiador. Eu adoro desafios”, afirma. Com quatro livros lançados, Pirilampos Cegos (romance), O Gosto Amargo de Qualquer Coisa (romance), Despoemas (contos), Palavras Que Devoram lágrimas (romance) morrer, este último vencedor do Prêmio José Lins do Rego de Melhor Romance (2011, Julho É um Bom Mês pra Morrer é seu quinto livro. Publicado pelo Editora Patuá, de São Paulo, Julho prenuncia, já pelo nome, uma viajem literária densa e corrosiva. “O título do livro veio por causa de momentos trágicos que marcam a vida de Laura, como também as vidas de sua mãe e de sua avó. Mas não foi só por isso”, esclarece o autor deixando no ar um certo mistério sobre o desenrolar da história.

“CANSEI DE ACORDAR PENSATIVA. É EXAUSTIVO PENSAR O TEMPO TODO SOBRE SI PRÓPRIO E ONDE SE ENCAIXAR NO MUNDO. ESSAS BESTEIRAS, TEM VEZ QUE AINDA ME PEGO FAZENDO ISSO... DE QUE MANEIRA EU, PARAIBANA, COISA NENHUMA, TITICA DE NADA, DAQUELE TIPO DE GENTE QUE SE MORRER PASSA NEM NO JPB, DE QUE MANEIRA, DE QUE DIFERENÇA EU, SE DESAPARECESSE DE ONTEM PARA HOJE, FARIA NO MUNDO. SÉRIO, JÁ PENSEI TANTO NISSO QUE HOJE, QUANDO OLHO ALGUÉM COM ESSES DILEMAS, ACHO RIDÍCULO E ME VEJO A RIDÍCULA QUE FUI. HOJE É DIA DE JOGAR A PÁ DE CAL. VOU DEIXAR DE VEZ AS EXCLAMAÇÕES OCAS” *trecho do livro 31


Fragmentos de um romance perdido W. S. SOLHA

O

novo livro de contos de Antonio Mariano – O Dia em que Comemos Maria Dulce vem com aval de Paulo Bentancur, lá do Rio Grande do Sul. Quando escrevi Relato de Prócula, mandei seus originais pra três autores do Rio e um de São Paulo, buscando opiniões competentes que eu teria por aqui, acrescidas da suficiente distância que lhes permitisse, caso necessário, ... rigor. Esdras do Nascimento e Hugo Almeida me erguerem o polegar com ênfase, enquanto Carlos Trigueiro e Ivo Barroso baixaram-no com firmeza. Com tal empate, preferi ouvir as críticas negativas e refiz o romance, que mandei, em seguida, para esse escritor gaúcho, que fora o editor de minha História Universal da Angústia pela Bertrand Brasil. O comentário dele foi tão decisivo, que mudei o nome do meu narrador para o dele. E é dele o texto, na quarta capa do livro do Mariano, que termina dizendo sobre o volume: “chamá-lo de obra-prima não é favor algum”. E Mariano realmente está ótimo. A começar pela escrita. Veja este trecho que, se fosse num filme, concorreria ao prêmio de sonoplastia: “Tenta se apoiar em alguma força lá fora que o faça se desligar dali: um barulho de motor na oficina à frente, o riso alto e a pornografia dos mecânicos, uma cigarra no jambeiro, o aparelho de som do vizinho e a música horrível no último volume, a histeria dos galos e galinhas na tarde pouco azul, o recado em Morse do vento batendo nas janelas mal fechadas, a mínima interferência entre o seu ouvido e a voz do filho”. Os contos do livro parecem... fragmentos de um romance perdido, ilustrado por xilogravuras, tão triste e enxuto quanto Vidas Secas, até porque – coincidência ou não – na última narrativa, o vilão é conhecido como Amarelo, tal como o soldado de polícia que azucrina

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“Trata-se da exceção mágica num corpus extremamente realista. Uma peça que já vejo trasnferida para o cinema, num curta.”


Fabiano na(s) obra(s) máxima(s) de Graciliano e Nelson Pereira dos Santos. Triste e enxuto, eu disse. Disso aflora a frase de Mariano que dá o tom a tudo que ele relata, e que me pegou pelo pé, porque exprime o que – até então indizível – senti em tantas más fases da vida: “uma estranha sensação de prejuízo”. Claro que um livro de contos tem a sina de motivar preferências quase nunca as mesmas, nos leitores. O próprio autor elege um desses cortes transversais da vida ao dar ao conjunto o seu título. Trata-se da exceção mágica num corpus extremamente realista. Uma peça que já vejo transferida para o cinema, num curta. Mas me apeguei a três outras dessas criações, aquelas em cuja margem terminei anotando “contundente”: Herói Interrompido, Olhos no Chão e Três Cruzes. Não me cabe dizer em que se resumem, mas na primeira me deslumbrou um detalhe genial, justamente na sua metade, e que só se ilumina no final da leitura: um rapaz pobre – honesto, persegue um rapaz pobre – ladrão. E Mariano conta: “O nosso herói gritava ladrão, pega ladrão, mas as pessoas seguiam indiferentes. Não iriam se intrometer em questão de homens tão iguais”. Maravilha. Com isso, nosso poeta contista acaba de me livrar de uma de minhas enormes.. e estranhas sensações de prejuízo.

CONFIRA OUTRAS OBRAS DO AUTOR: Publicou anteriormente três livros de poemas e um de contos: O gozo insólito (1991), Te odeio com doçura (1995), Guarda-chuvas esquecidos (2005) e Imensa asa sobre o dia (2005). Publicou anteriormente três livros de poemas e um de contos: O gozo insólito (1991), Te odeio com doçura (1995), Guarda-chuvas esquecidos (2005) e Imensa asa sobre o dia (2005).

Foto: Divulgação/Internet

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crônica

morre a amante. morre o poeta. ELISA DAMANTE

O

medo do não estar provoca em nós delírios de sinceridade súbita. Num pronto atendimento, ouço uma senhora conversar por horas a fio no telefone. Suas primeiras palavras contavam ao destinatário as dores que a levaram até lá “eu passei muito mal, fiquei com medo e vim”. Verdade, perdi partes da conversa, mas nada que pudesse comprometer uma interpretação daquilo tudo: era, com certeza, um ex amor. Talvez mal resolvido, não sei. Dizia com lágrima nos olhos o quanto ele era especial. Insistia, talvez, numa ilusão: afirmava que ele ainda não havia esquecido ela. “Impossível”. Tentava avidamente se retratar com o passado, e as feridas que possivelmente tenha aberto em outros corações. “Eu não tirei ninguém de ninguém, quando eu te conheci, você disse que seu coração estava vazio.” Aplaudo suas atitudes internamente: nada mais justo que preencher o vazio de um coração com amor. Lia um texto de Drummond. Ele perdeu sua filha, Maria Julieta, não com o glamour da Julieta Shakespeariana: perdeu para o câncer. Em doze dias, Drummond definhou: perdeu sua vida pela falta de Julieta. Reflito com pesar na morte da Julieta de mim, não quis matá-la, mas ela morreu. Não para o câncer, mas por esses fatores da vida que fogem ao nosso controle. Lamento por sua morte. Espero que um dia ela regresse. O que me dói, é que em doze dias, morreu o Drummond de mim, e essa é minha morte imperdoável. Morrer o Drummond de mim é tirar dos meus olhos a poesia para ver as coisas. Levaram minhas cores. Agora sou preto e branco. Ouvi uma frase de Mario Quintana. Das mais tristes. Tento nela me consolar: “só o que está perdido será nosso para sempre”. Minhas mortes serviram para que se um dia renasçam, eu as cuide melhor. Morreu Julieta de mim, de desamor. Morreu Drummond de mim, de saudade.

Ilustração: Aldo Jeffrey

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crônica

CRÔNICA DE UM DIA rodolfo marques

H

oje acordei com trinta anos, e queria ser o senhor do meu castelo, possuidor dos problemas de pessoas também senhores de seus mundos. Me vi imerso em meus problemas de gente grande. Às dez para o meio dia eu já tinha meus quinze anos de volta, e desejara que fosse lícito todo o meu choro, assim como é lícita a raiva de um adolescente contra as injustiças que são impostas ao seu mundo. Em seu mundo injusto, me encontrei perdido, mais uma vez. Às quatorze e trinta eu tinha oito anos. Tinha oito e queria tanto que alguém me pegasse nos braços e dissesse que tudo daria certo, como uma mãe que nos conforta dizendo que tudo dará. Me vi necessitando de toda aquela segurança que só crianças na minha idade conseguem ver em seus pais. Às dezesseis horas, tinha meus primeiros pesadelos como alguém que acabara de chegar aos seus dois anos. Não conseguia dormir - inquieto como se estivesse sem sono, mas obrigado a deitarme mais cedo. Às vinte horas já estava de pé novamente, a sonhar como criança sobre os castelos que construiria ao amanhecer de gente grande. Na madrugada sonho tranqüilo como um recém-nascido, mas, pela manhã, ainda acordo eu, com os meus trinta anos.

Ilustração: Duy Huynh

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poesia

camburão mara farias

A polícia subiu o morro, Vai sair menino morto... pow pow pow A polícia tá com sangue no olho Operação Copa, Carnaval... Segurança para o povo! Escuto o primeiro pipoco Vem mais bala, e não é de borracha. Dia seguinte o rádio, a televisão, A manipulação está ligada... O que irão falar? Jovem-bandido-morto a tirosTraficante-periferia... É o mantra diário! O cortejo desce o morro, Vem mulheres chorando... Morreram dois, e não tem documento 36

Vai enterrar indigente... A polícia acompanha o corpo, Para certificar a ação, Enterra-põe a cruz com númeroIndigente... Qual o nome dele? Não sei... D inho, Moleque... Indigente... Era envolvido, devia morrer, Você vai fazer o mesmo? Fazer como o outro? Ser pego no morro? É bom estudar seu moço... ‘’Jovem de periferia é pego tentando roubar livros na livraria, o meliante afirma ser para escola.’’

Ilustração: Noma Bar


poesia

Flor sem par

William de lucca I Um Poema é uma procissão de versos Uma caminhada sem rumo de pés descalços Com andor pesado por sobre os ombros Rumo a uma Igreja que não há. Cada palavra é uma reza. Cada poeta, um deus. II Queria eu ter morrido Antes de te conhecer. Quem sabe hoje não quisesse morrer. III Ó bromélia acesa, toda cheia de si, com gosto de nova e cheiro tão nobre, pensando assim em mim, ó cravo tão bem fincado neste vaso afastado de um futuro comum.

IV Andando em um jardim de não ser, pisei, meio sem querer, na flor mais bela, a mais amarela, de toda aquela paragem. as outras flores, desdenhosas, se jogaram aos horrores do chão, num suicidio, floricidio, floral e coletivo. em 18 de novembro, eu matei a primavera.

Flor de enterro, Flor sem par. Ilustração: W. Strempler

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poesia

OSSO A OSSO marcus alves

A cidade é um osso percorro, de osso a osso, suas mãos seus braços em relâmpago abraço desfaço-me como pé de osso

a cidade é um osso, como disse o Alvim, é um aço elefante azul botequim blues cosmético arquitextura musas verdes e eu aqui desbotado frente à máquina fria (amiga de uma ausência de alma) roendo de osso a osso o poema dos meus dias

Ilustração: Juliana Alves

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poesia

JORGE ANDRADE MANGUEIRA exploda

entrega

Sim, pode entrar Arrombe a porta Sim, vamos jogar Não perca a seta Ligue o furacão Turbine a minha vida Funda-­‐‑se com o meu coração Cure toda ferida Misture as tintas Me espanque, arranque As manchas e fique Por favor, não mintas No meu peito finque Uma paixão e o fogo risque

Entre o seu olhar E a sua mordida, Fico a declamar A minha poesia despida. No tempo de amar, O coração inflama E a paixão derrama Todo o seu mar. É lindo se entregar, Andando devagar Dentro das suas medidas. O corpo transpira E o amor respira Sem despedidas.

Foto: Paul Himmel

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ENSAIO

Luz e movimento POR THERCLES SILVA

O

fotógrafo Thercles Silva tem seu trabalho marcado pela diversidade e ousadia na construção de suas fotos. Fazendo jus a origem espistemológica do termo fotógrafo - aquele que escreve com a luz – Thercles traça formas, desenha as tonalidades e texturas fotográficas com singularidade artística e precisão – ética e estética da arte de fotografar, eternizar os momentos e signos através das imagens. Na edição de julho da Revista Hiperativo, apresentamos dois de seus ensaios, cada um com uma proposta distinta. As Bicicletas de Marselha tem seu foco na interação da população de cidade francesa com as bicicletas, um recorte humanístico do cotidiamo. Em Linhas Luminosas há um recorte abstrato de objetos e caracteres da casa dos avós de Thercles, feito com o auxilio de software de edição de imagem. Explosão de cores e luzes que compõem um caleidoscópio visual. Duas abordagens diferentes que trazem em comum a excelência e a criatividade.

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MODA

Foto: Daniel Amaral

como canal de eXpresssão O estilista Ronaldo Fraga veio a João Pessoa para o lançamento da segunda edição do seu livro “Cadernos de Roupas - Memórias e Croquis”. Ao público, ele defendeu um novo modelo de expressar suas ideias utilizando-se da moda CARINA QUEIROZ

O

estilista Ronaldo Fraga aproveitou sua passagem por João Pessoa, onde está mais uma vez trabalhando com as artesãs do projeto “Sereias da Penha”, para reafirmar seus laços com a cidade. Em sua palestra, ele encantou os presentes e afirmou que escolheu a capital paraibana para lançar nacionalmente a segunda edição do livro “Caderno de Roupas – Memórias e Croquis”. O lançamento foi no auditório da Estação Cabo Branco – Ciência, Cultura e Arte.

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No bate-papo com o público foram discutidos vários temas. O estilista se mostrou preocupado com senso crítico e analítico das época atual, que muitas veze não existe ou é ínfimo. Falou que a moda, diferente do que muitos pensam, não se resume ao São Paulo Fashion Week, e que ela quer se expressar sobre outros assuntos, como política e arquitetura. Lembrou aos estudantes de moda e profissionais da área que produto conceito não é aquele produto que não vende, o conceito é a alma do produto.

E que o produto tem de trazer traços de onde ele foi criado, que o mundo “não quer mais consumir aquilo que é de qualquer outro lugar”. Mostrando que devemos levar nossa cultura em tudo que fizermos, ele citou a arquiteta italiana Lina Bo Bardi, “eu sonho um dia em que os talheres para se comer, as mesas para se sentar, as casa para se morar e as roupas p se vestir, desenhadas nesse pais tragam o mínimo da grandiosidade da cultura desse lugar” Ainda falando sobre cultura, Ronal-


do comentou sobre o projeto com as Sereias da Penha. “Economia criativa, se apropriar da cultura que é rica no momento em que a globalização perdeu a euforia e o novo luxo é o genuíno, aquilo que a produção asiática não consegue reproduzir”, defendeu ele. Os vídeos apresentados pelo estilista foram um capítulo à parte. Cheios de grafismos, emoção, fortes, deslocaram o públcio para outro momento, deixando quem assitia à flor da pele. Um verdadeira aula. Voltando para o livro em si, ele é uma seleção de recortes, de páginas dos estudos feitos por Ronaldo em cada uma de suas coleções. Eles servem de referência na construção das coleções. Com vários desenhos, colagens, retalhos, e trechos que remetem aos temas

Foto: Daniel Amaral

ginas, e foi muito difícil, porque você imagina escolher uma média de três à cinco páginas por caderno que são enormes. Então, tive que fazer um exercício de desprendimento, falei assim, o que que tem mais a ver, o que foi mais significativo Foto: Daniel Amaral graficamente de cada coleção. Revista Hiperativo Por que João Pessoa? Ronaldo Fraga: Por que amo João Pessoa, por que adoro João Pessoa. Porque tenho uma relação de afeto muito grande por João Pessoa. Porque a Paraíba, pra mim ela tem cultura resistente maravilhosa, e que coincidiu porque vim fazer o trabalho com as sereis. Não, então não vou começar por São Paulo, vou das coleções, pode-se perceber um Revista Hiperativo: Como foi o pro- começar por João Pessoa. pouco do seu processo criativo. Arte cesso pra reunir os recortes, como Revista Hiperativo: E o trabalho com para se olhar, apreender e se deliciar. escolheu as imagens para colocar no as Sereias continua? Em entrevista exclusiva para Revista livro? Ronaldo Fraga: Continua, agora vaHiperativo o estilista falou sobre seu Ronaldo Fraga: Na verdade são pá- mos para a linha de casa. processo criativo. Ronaldo Fraga se mostrou ma pessoa humilde, acessível e preocupada com os caminhos que a moda está trilhando, que demonstra seu engajamento através de coleções extremamente bem trabalhadas.

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CINEMA

no limite da ética,

no auge da sociedade do espetáculo

SANDRO ALVES DE FRANÇA

O

Abutre (EUA, 2014. Direção: Dan Gilroy) é um daqueles filmes despretensiosos que você assiste sem muita expectativa gosta e chega a se surpreender – positivamente. O enredo gira em torno do mercado de cinegrafistas em Los Angeles, nos EUA, que vendem para as TVS locais imagens exclusivas que retratam eventos chocantes: acidentes, vítimas, assassinatos, incêndios e outros desastres. Jake Gyllenhaal interpreta, Louis Bloom, um desses cinegrafistas que “cai de paraquedas”, no meio. Ele vê como funciona o processo, se interessa, compra uma câmera e um rádio que capta as ocorrências registradas pela polícia de Los Ange-

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les e começa a ir em busca dos incidentes mais escabrosos. Jake está muito bem no papel, consegue imprimir o tom preciso, nem muito frio, nem muito histriônico, uma figura possível apesar de repulsiva. Seu personagem expõe uma realidade presente na sociedade da informação, extremamente midiatizada. Hoje qualquer pessoa com equipamento e algum direcionamento técnico e editorial pode ser um cinegrafista. Nos EUA esse é um mercado já muito consolidado e a concorrência faz com que haja uma busca desenfreada pela informação e por registros exclusivos – quanto mais impactante maior é o valor pago a esses profissionais. As TVs se alimentam desse material. O filme

mostra como é comum os limites éticos e humanos serem violados para conseguir a imagem mais sangrenta e eletrizante. As pessoas são apenas peças nesse processo. A personagem de Gyllenhaal é o exemplo perfeito disso: calculista, de uma frieza e indiferença olímpicas, ele capta as situações mais dramáticas, faz closes invasivos, registra a violência e o horror como se fossem a coisa mais banal do mundo. É apenas um negócio para ele. E vai mais além, interfere na cena dos crimes e tragédias, arma situações, joga com a desgraça alheia e faz dela seu meio de vida. O nome “O Abutre”, referência a ave que espera que seres vivos morram para poder comer sua carne, vem bem à cal-


har. Uma boa adaptação do título original, Nightcrawler, que em tradução livre significa do tipo rastreador da noite. A caraterização visual de Jake como Louis fez de tudo para reforçar o caráter frio e repugnante da figura. Há uma clara alusão ao perfil do psicopata interpretado por Javier Bardem em Onde os Fracos Não tem Vez, filme dos irmãos Coen. Uma similaridade intencional que imprime um aspecto sinistro e abominável. Pode-se encontrar muitas semelhanças entre os programas policialescos exibidos no Brasil e o modus operandi dos “abutres”. O filme suscita a reflexão sobre os limites éticos da cobertura jornalística televisa. A espetacularização da violência através de uma abordagem apelativa, a estética do sangue e da adrenalina são ilustrativos da intencionalidade desse tipo de programa: a audiência

a todo custo, não importando o tipo de exposição que se faz das pessoas. O roteiro do filme é bem direcionado, a direção segura, com narrativa consistente, embora convencional. O elenco está bem, com destaque para o já citado Gyllenhaal, protagonista, e para Rene Russo, que interpreta uma das diretoras do canal de TV que sele-

ciona e negocia as imagens feitas pelos “abutres”. Poderia ter melhor aprofundamento e uma carga dramática mais arrojada, tornando a abordagem mais madura e consistente. Mas apesar de ter algumas lacunas narrativas e utilizar certas fórmulas prontas do gênero, é um trabalho notável. Um thriller que envolve, faz refletir e impacta quem vê.


REVISTA

HIPERATIVO


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