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Vou usar meus privilégios para ajudar
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A história de um universitário trans em Brasília que entende ser necessário atuar por quem precisa garantir direitos e dignidade
POR CLÁUDIO PY TEXTO E FOTO
“A maioria das pessoas transexuais que eu conheço estão na prostituição ou vivendo em condições precárias. Então, eu reconheço meus privilégios de poder estudar em uma das maiores universidades do país. Além disso tudo, sou branco e moro no centro da cidade. A minha realidade é diferente”. O estudante de relações internacionais Rafael Duarte, de 20 anos, reflete sobre a própria trajetória em um olhar apaixonado entre livros e notebook em uma estreita sala de estudos da Universidade de Brasília (UnB). Entre as inspirações literárias do universitário, estão os estudos das norte-americanas bell hooks e Margot Weiss. Para as autoras, quanto mais grupos minoritários a pessoa pertencer, mais ataques vai receber. Rafael sabe bem disso. A partir dessas pesquisas, Rafael salienta a importância de entender que as discussões
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sobre gênero devem abarcar questões raciais e sociais, pois a transfobia, na visão dele, é mais intensificada com pessoas negras e periféricas. “Todas as notícias que vejo sobre transexuais na televisão envolvem tragédias. Como futuro professor universitário, pretendo mostrar uma nova versão da história. Nós somos muito mais do que a nossa morte”. Rafael afirma que um dos maiores entraves que sentiu no primeiro estágio da transição de gênero foi a apreensão de não conseguir seu espaço na sociedade. Para ele, ocorrem poucas coberturas jornalísticas que acompanham carreiras bem-sucedidas de homens transexuais no Brasil. A expectativa de vida na casa dos 35 anos, os dados de violência exorbitantes e a falta de oportunidade são, para o jovem, as principais informações veiculadas
sobre os transexuais nos meios tradicionais de comunicação do país. Essas denúncias precisam ser feitas para o combate da transfobia. No entanto, assim como afirma a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, é importante mostrar as diferentes narrativas dos povos marginalizados para evitar os estereótipos. Rafael afirma que os transgêneros não devem ser resumidos a números estatísticos de uma triste realidade brasileira. Um dos maiores sonhos do jovem é se tornar professor universitário. Ele afirma que a educação é um dos únicos caminhos para melhorar a sociedade. “Não existem muitos professores universitários transexuais. Para ser bem sincero, eu não conheço nenhum. Essa é uma das áreas mais complicadas para as pessoas que são iguais a mim, pois os familiares acham que queremos influenciar negativamente os filhos deles. Mas, sinceramente, não quero basear a minha vida no medo”, relata enquanto segura com bastante força dois livros envelhecidos que estão em cima de uma mesa. O silêncio toma conta do ambiente por alguns instantes. Com o olhar fixado em um quadro negro e a respiração acelerada, pensa alto: “Eu entendo que quase tudo que eu fizer vai soar como um pioneirismo. Vou usar todas as minhas possibilidades e privilégios para inspirar outras pessoas. Um dos meus maiores objetivos é me tornar uma referência e abrir caminho no mercado de trabalho para outros transexuais”.
As primeiras descobertas No dia oito de dezembro de 1998, Karla Monteiro Duarte deu à luz gêmeos em um pequeno hospital próximo ao bairro Bebedouro, que fica localizado em Maceió – AL. Rafael Kennedy e Luiza Duarte, pai e irmã dos recém-nascidos, ficaram encantados assim que conheceram os novos membros da família. No entanto, apesar da semelhança física entre os irmãos, a personalidade deles era completamente distinta. Segundo Karla, o Rafael sempre foi bastante tímido e, com o passar do tempo, essa característica foi intensificada. Durante a infância, o jovem questionou-se sobre suas preferências no vestiário junto a outras meninas, brincadeiras com outras crianças e, principalmente, seus sentimentos em relação às outras pessoas. Na adolescência, a confusão aumentou gradualmente. Ele, nessa época, se considerava uma mulher lésbica. No entanto, ainda não se sentia verdadeiramente completo. A sua irmã, Luiza, foi a primeira pessoa da família que ele contou abertamente sobre sua sexualidade. “Eu sempre tive o apoio de minha irmã. Até hoje ela me apoia em tudo que eu preciso”. Seus pais, após um tempo, descobriram sua sexualidade e, depois de muitas conversas, o aceitaram.
Quem eu sou? Era uma quarta-feira, dia dezoito de janeiro de 2017. Enquanto o céu escurecia lentamente em sua cidade, o jovem foi positivamente surpreendido com o resultado do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Ele foi aprovado para relações internacionais na instituição que ele almejava desde a infância. Depois de alguns dias que o resultado foi divulgado, Rafael arrumou suas malas para começar uma nova vida em uma cidade diferente, a capital do país. Poucas roupas, mas muitos sonhos. Algumas fotografias, porém, a memória recheada de bons momentos com seus familiares e amigos. A despedida no aeroporto foi, para Rafael, emocionante. Sua mãe, Karla, de 49 anos, aos prantos, abraçou-o e sentiu um grande aperto em seu coração, pois uma de suas maiores preciosidades viraria um pássaro e voaria para longe do ninho. Emocionados, os dois choraram até a hora do embarque. Seus irmãos, Pedro, de 20 anos, e Luiza, de 23 anos, se despediram do jovem com um beijo no rosto e um sorriso aberto. De repente, sua ex-namorada, que ele prefere não mencionar o nome, foi ao encontro e os dois se tocaram pela última vez. Seu pai embarcou junto com ele para Brasília. Os dois, na primeira semana em Brasília, passaram muitas horas procurando apartamentos próximos à universidade. Assim que chegou, estranhou o clima que era diferente de Maceió, o tratamento das pessoas e, principalmente, a comida. No entanto, ele afirma que estava tão animado com a nova etapa de sua vida que, apesar das adversidades, nada o incomodava verdadeiramente. Após encontrar o apartamento, o pai voltou para Maceió. Inicialmente, Rafael afirma que sentiu bastante medo, mas estava com o coração aberto para novas experiências. “Eu sempre quis me mudar para Brasília, pois é um dos melhores lugares para quem quer trabalhar com relações internacionais. Além disso, queria ter a experiência de morar fora de casa para entender melhor quem eu era. Sentir a sensação de liberdade”. Nota-se que, apesar de seus pais terem aceitado sua sexualidade desde a adolescência, ele tinha medo de explorar outras possibilidades em sua terra natal. Os estudos sobre gênero e sexualidade começaram na adolescência, porém o aprofundamento ocorre em Brasília. Muitas barreiras, medos e conflitos foram descontruídos por um menino que tinha apenas 18 anos. Ele entrou em uma verdadeira batalha interna para entender quem realmente era. Enquanto as pessoas enxergavam uma mulher, ele se sentia uma farsa. Vivendo uma mentira que ele não pediu para entrar. Amarrado em um corpo que nunca lhe pertenceu verdadeiramente. Para ele, apesar de não ser um processo fácil, foi libertador. No meio de todas essas descobertas, ele entrou em contato com sua verdadeira essência. Rafael recebeu
Refúgio
respostas que procurou desde a infância. Uma nova vida, com o corpo diferente do que nasceu, em uma cidade estranha. Ele iniciou a transição de gênero aos poucos, mas com a certeza de que isso traria sua felicidade. O acompanhamento de profissionais e o apoio de seus familiares e novos amigos foi essencial para essa nova estrada. Além disso, ele conheceu Iara Tereza, que mudou sua vida completamente.
O alagoano e a paraense em uma cidade estranha Diversos encontros e desencontros acontecem em Brasília diariamente. Desde a sua inauguração em 1960, a quantidade de pessoas que se mudam o Distrito Federal aumenta substancialmente. Com o crescimento e desenvolvimento da UnB, esse número se amplia ainda mais. O Instituto de Ciências (ICC), desenhado por Oscar Niemeyer, é um dos ambientes mais movimentados da instituição. Também conhecido como Minhocão, o ICC foi um dos principais cenários de romance dos estudantes de relações internacionais Rafael Duarte, de 20 anos, e Iara Tereza, de 19 anos. Os dois se aproximaram em uma aula de sociologia, no primeiro semestre de 2017, no anfiteatro oito do ICC Norte. Iara, que nasceu em Belém (PA), se interessou por Rafael assim que o conheceu. “Eu o achava lindo, mas eu achava que nunca teria chance. Nós ficamos muitos próximos um do outro, pois fazíamos as mesmas disciplinas e estávamos no mesmo projeto de pesquisa”, relata com um sorriso no rosto. Depois de algumas semanas, o contato entre eles, que começa como uma amizade, se transforma em um relacionamento intenso e amoroso. Durante os primeiros meses de namoro, Rafael estava no processo de aceitação de sua transexualidade. Ele não contou nada para Iara. “Eu não participei da luta que ele travava internamente. Eu não sabia o que estava acontecendo. Ele, que na época era a minha namorada, me enviou mensagem no WhatsApp, na época ele estava viajando, pedindo para que eu o chamasse de Rafael”, comenta a jovem. Foi uma grande surpresa para ela. No primeiro momento, Iara negou o pedido dele e falou que ele deveria conversar sobre isso com um especialista. “Eu falei no impulso, pois tinha medo disso afetar o nosso relacionamento. Depois de refletir muito e conversar com amigos sobre o assunto, eu o chamei para uma
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conversa e fiz o que deveria ter feito desde o início, ou seja, ajudá-lo”. Ela afirma que, inicialmente, confundia os pronomes na hora de falar com ele. No entanto, depois de algumas semanas, ela se acostumou e, atualmente, afirma que nem consegue imaginar o chamando de “ela”.
“Mas, sinceramente, não quero basear a minha vida no medo”
RECOMEÇO
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C o r e o g r af i a de recomeço
A história de Ana Luísa que encontrou na dança de rua uma terapia durante o tratamento de câncer POR SABRINA SOARES Fotos por Carla Queiroz
Rafael afirma que Iara foi muito importante para o processo de transição dele. “É muito bom poder confiar em uma pessoa. Ela me ajuda bastante em todos os momentos”. Iara, em contrapartida, conta que a força e a coragem do jovem a inspira. Os dois continuam juntos e comemoraram dois anos de namoro em março.
Os desafios continuam Nos dias atuais, Rafael continua no processo de transição. Ele confessa que sente dores ao injetar os hormônios, mas se sente feliz com todos os resultados adquiridos. O seu corpo conversa cada vez mais com a sua mente. Os seus traços combinam cada vez mais com o seu interior. No entanto, todo dia é uma batalha diferente, mas ele prefere ser positivo e se concentrar nos aspectos positivos. O objetivo de seguir carreira acadêmica permanece, pois a educação, para ele, é o único caminho para as mudanças concretas.
A arte de dançar é definida pela série de movimentos executados com o corpo, de forma ritmada e coreografada. A vida pode ser vista como uma dança, com passos repetidos ou até mesmo avançados, coreografados e surpreendidos. A estudante Ana Luísa Soares Guimarães, 17 anos, cabelos negros e um sorriso que abraça, é uma dançarina envolvente não só por sua dança mas também por sua história. A jovem já coleciona 26 premiações, e dentre elas uma foi de mais importância, desenvolveu um solo em uma “coreografia” com ritmos pulsantes : o tratamento de dois anos para combater a leucemia até o dia em que ela venceu a doença. O espetáculo nomeado “Por um Fio” foi intenso e enternecedor, levando Ana a conquistar o segundo lugar no evento Hip Hop District na cidade de Jundiaí-SP e o terceiro lugar no Rota Convida em Brasília, DF. “Representei na dança solo aquele sentimento de querer fazer as coisas e não poder e as restrições do meu tratamento. Fiz minha coreografia junto com uma poltrona e aquele suporte de soro, era uma representação das minhas sessões de quimioterapia. Dançava inquieta e a partir de um momento me desprendia”, relembra. Ela, na ocasião, usava um turbante na cabeça para parecer que estava careca. “Por fim, eu tirava e mostrava meu cabelo e isso representou uma das coisas que mais me afetou, a falta do cabelo. Essa coreografia significou minha história e a de outras pessoas, foi uma mensagem de que às vezes você tá passando por momentos difíceis mas tem uma pessoa que queria ta fazendo mil coisas que você faz reclamando, e ela não pode por estar debilitada”, desabafa Ana.
Mudanças chegam Ela recebeu o diagnóstico da leucemia quando tinha apenas nove anos de idade. A notícia de que um câncer se movimentava em seu corpo veio à tona e os pensamentos mais tristes a dominaram. O que gostava tinha per-
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Recriação da coreografia “Por um Fio” apresentada por Ana Luísa mostrando sua luta contra a leucemia e a dança como libertação.
dido o sentido e ela não imaginava mais nada positivo, e assim, Ana começou a apresentar alguns sintomas depressivos “Quando eu descobri que tinha, eu fui ficando muito desacreditada. Não via sentido em querer voltar a estudar, querer voltar a fazer as coisas que eu fazia, eu sempre fui uma criança muito ativa, sempre fiz capoeira, ballet, natação, então não via sentido em voltar a fazer essas coisas. Durante meu tratamento eu tive que ficar quatro meses sem ter muito contato com as pessoas, por conta da imunidade que ficou muito fraca, foram quatro meses longe da escola, quatro meses só indo para casa e hospital, ficava muito triste e pra baixo e isso não ajudava em nada no meu tratamento”. Como uma melodia em ritmos de sobressaltos e intensos, assim ficou o coração dela ao saber que era necessário o afastamento das coisas que amava para começar com os medicamentos. A rotina durante o tratamento era hospital e casa, até que ao completar cinco meses, pôde finalmente ser liberada para a rotina. Os pais de Ana, Wilvani Sousa Soares e Eduardo Guimarães de Araújo, foram essenciais nas rotinas de