Revista Esquina - Terceira Edição - Jul./2018

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ISSN 2594-6900 PUBLICADA DESDE 1975

Equipe de alunos Editores Chefes Brunna Pires e Thales Augusto Editoras Executivas Larissa Lustoza e Nathália Caeiro Direção de Arte Ana Luísa Amaral e Vítor Mendonça Diagramação Ana Luísa Amaral, Isabella Vitor, Larissa Lustoza, Lucas Schalcher, Monique Rossi, Matheus de Azevedo e Vítor Mendonça Direção de Fotografia Tayná Fernandes com supervisão dos professores Alan Marques e Lourenço Cardoso Editores Alexandra Kalogeras, Anna Russi, Bruno Santa Rita, Cézar A. Camilo, Clarice Rosa e Silva Elisa Borges, Gabriella Nery, Larissa Galli, Tayná Fernandes e Vitor Albuquerque ... Professor Responsável Luiz Cláudio Ferreira Supervisão de arte e finalização André Ramos Trabalho interdisciplinas Esquina On-line Carolina Assunção Materiais em Rádio Angélica Córdova e Katrine Boaventura Materiais em TV Isa Stacciarini e Katrine Boaventura Coordenador do Curso de Jornalismo Henrique Moreira E-mail da Redação revistaesquina.uniceub@gmail.com Telefone: (61) 3966.1293

Reitor Getúlio Américo Moreira Lopes Vice-Reitor Edevaldo Alves da Silva Secretário-Geral Maurício de Souza Neves Filho Pró Reitoria Acadêmica Elizabeth Regina Lopes Manzur Pró Reitor Administrativo e Financeiro Gabriel Costa Mallab Diretor Adminstrativo e Financeiro Geraldo Rabelo Diretor Acadêmico Carlos Alberto da Cruz Diretor de Ensino a Distância e da FATECS José Pereira da Luz Filho Diretora da FACES Dalva Guimarães Diretor da FAJS Fernando Herren Aguillar Diretor do ICPD José Herculino de Souza Lopes Filho


opinião Nas Esquinas, vidas em revista Um pedaço de rua não resume o caminho. A estrada vazia não tem mais velocidade. Nem os silêncios são traídos por sobressaltos. No trecho, no trevo, na confluência. Histórias em intersecções e interceptadas. Daquelas que erguem e caem. Encontram e desencontram, abrem e fecham semáforos. Fazer jornalismo é viver em uma esquina olhando para todos os lados. Nas ruas, o combate. A reportagem acompanha, vive ao lado, atenta os ouvidos, dilata os olhares. Quem sabe... arrepia os pelos e os polos, de quem escreve, de quem lê, de quem vê. Curioso é olhar a fundo e chamar de “perfil”. Não se engane. Estão os outros lados em perspectiva. Curioso é chamar o repórter e saber-se aluno. Cada um de nós, profissionais ou estudantes desse ofício, somos alunos do imponderável ou da crueza-beleza-secreta do asfalto, do barro, da dor, das tragédias. Estudantes humildes diante dos sábios que nos explicam, do segredo espalhado e entalhado, jamais resumido. As esquinas do fazer jornalístico surpreendem. O inesperado muda o texto, a foto, o caminho. Somos alertas que gritam com bandeiras de interesse público, solidariedade, tolerância, direitos humanos. Nos desencontros, há também caminho espelhado em formatos convexos em que buscamos mais do que a forma. Diante daqueles que sofrem, que sobrevivem, que lutam, que buscam abrigo ou o sorriso passado, o jornalismo pode ser mais vivo. Histórias longas como são as memórias. Costumamos perguntar aos alunos: o que te trouxe até aqui? O que faria com que continuasse caminhando? Quando estão nas esquinas, eles se lembram da viagem toda, das placas que nem sempre sinalizavam a rota. Quem chegou até aqui sabe bem como a tecnologia pode nos ajudar a contar melhor as histórias, sabe bem o quanto precisa ter compromisso para olhar de frente. As esquinas atravessam nosso coração. Nestas páginas de papel ou nas virtuais, remontarão as lembranças. Seria apenas um pedaço de rua, se olharmos de perto. Seria uma estrada, ao observamos de cima. Na lama, a pavimentar o que não pode nem deve ser esquecido. Nem as pautas, nem os que cederam o tempo. O silêncio esvai diante da barulheira que sempre podemos fazer. Professor Luiz Claudio Ferreira


Personagens além da superfície

O texto, nós e eles

O coração do perfil jornalístico é a apuração: o quanto nos debruçamos para aprofundar a história de alguém. Ir além dos fatos, captar os gestos, os sentimentos, as memórias são tarefas das mais dolorosas e ao mesmo tempo prazerosas. Investigar remete ao exame cuidadoso, sistemático e profundo de acontecimentos que não estão prontos nem acessíveis com facilidade. Na prática, significa a compreensão de um tema pela perspectiva do personagem, um mergulho na intimidade do outro, a responsabilidade de transformar trechos de uma vida em palavras.

Escrever é um desafio. Foi uma longa jornada quando começamos a escrever o perfil dos nossos personagens. Cada frase, cada palavra, cada vírgula e até o ponto final podiam mudar completamente o sentido da história de alguém. Essa é só mais uma dificuldade que enfrentaríamos nesse caminho. Estava nas nossas mãos a responsabilidade de tornar a história daquela pessoa em um texto que muitos iriam ler e o peso do dever de ser correto e fiel está representado em cada parágrafo desta revista.

É olhar pelo espelho de toda a produção de uma drag queen a poucos minutos de se apresentar, perceber o que há atrás da maquiagem e encontrar desafios e lágrimas que foram deixadas em casa. Adentrar por baixo da lona dos circos ou dos picadeiros no meio da rua. Essa maquiagem também encobre ou desvenda a trajetória de alguém. Como faz para se aproximar de alguém em situação de rua? Como sair da zona de conforto para reviver junto com os personagens os dramas e as tragédias? Não é simples. Praticar a ética jornalística é também exercitar a empatia, o respeito, a educação e se colocar no lugar do outro. Sobre as camas de concreto, e os papelões que fazem o papel de colchão, há tantas histórias que podem ser recuperadas por pegadas, rastros invisíveis e que demoram a ser revelados. Encontrar o Distrito Federal é ir além dos muros, do concreto, dos caminhos, dos ladrilhos. Quem reconstrói a memória da antiga piscina de ondas não são os azulejos ou o silêncio que ficou, mas as lembranças molhadas do que eles chamam de “melhor lugar do mundo”. Recuperar a infância dos personagens é tarefa que vai além de abrir álbuns de família. Precisa olhar nos olhos. As respostas vêm engasgadas, como de uma ex-prostituta que hoje trabalha para tirar pessoas do vício em drogas.

Nosso maior desejo é que nossas palavras pudessem transmitir tudo que sentimos quando conversamos com os personagens, mas sabemos que isso é impossível porque nada se compara à experiência que tivemos. Mas queremos que você, leitor, saiba que o desafio da escrita foi trabalhado e batalhado com seriedade para entregar os 35 perfis que estão contidos nesta revista. Até este ponto em nossa jornada universitária, aprendemos a escrever para o jornal do dia a dia, aquele que você lê para saber o que aconteceu ou vai acontecer em um pequeno período de tempo. Agora, o desafio era produzir um texto atemporal, que tenha significado para um leitor no lançamento desta revista e para leitores em anos que estão por vir. O perfil demanda que os repórteres tenham criatividade, conhecimento e dedicação. Saber construir o texto e decidir qual a melhor forma de contar aquela história por meio de palavras, conhecer o gênero interpretativo e como inserir as características no texto, e por último ter consciência de que o texto será reescrito várias vezes, pois o cuidado é grande quando o tema é a vida de outros.

Decifrar histórias de quem teve a intimidade exposta nesse mundo de difusão acelerada de informações é como revelar as cicatrizes não aparentes. São tantas histórias… Nunca mais olharemos trajetórias de vida na superfície. Essa experiência nos encoraja para olhar mais de frente o que chamamos de perfil.

O processo foi cansativo. Foram mais de dois meses de edição. A turma que antes acostumada a assistir à aula, se tornou uma redação, cada um com uma função. Os editores e chefes, além de acompanhar a produção dos repórteres, também tinham de produzir os próprios textos. Os finais de semana e feriados que passamos apurando, escrevendo ou editando, não foram perdidos, garantem qualidade e são sacrifícios pequenos em relação à grandiosidade das histórias presentes nesta revista. Fizemos o nosso melhor e nos sentimos orgulhosos com a terceira edição da Revista Esquina.

Alunos do Campus Asa Norte

Alunos do Campus Taguatinga


nossa EQUIPE Turma Esquina 1°/2018

Pedro Fonseca

Victor Jardim

Victoria Kortbawi

Karoliny Lima

Thales Augusto

Lucas Schalcher

Márcia Torres

Prof. Luiz Claudio Ferreira

Isabela Nóbrega

Lucianna Rodrigues

Laura de Oliveira

Larissa Lustoza

Kelly Wollmann

José Gustavo Felix

Breno Algarte

Danilo Esteban

Tayná Fernandes

Natália Caeiro


Brunna Pires

Vinicius Barros

Gabriella Nery

Elisa Borges

Clarice Rosa e Silva

Bruno Santa Rita

Monique Rossi

Maria Theodora

CĂŠzar A. Camilo

Bruna Alves

Matheus de Azevedo

Isabela Vitor

Mariane Rodrigues

Barbara Fontinele

Amanda Gil

LetĂ­cia Silveira

Jornan Rocha

Anna Russi


sumário LUTA As 9 vidas de Juma e como ela sobreviveu a todas .................................. 8 Superação e luta pela igualdade de gênero ............................................... 14 A responsável pela creche que faz a diferença na Estrutural ............... 22 A professora que entrega lenços e esperança ............................................ 25 A sobrevivência contra anemia falciforme ................................................... 29 Decisão de uma jovem diante de uma gravidez surpresa ...................... 32 Estomia: a bolsa que deixou de ser tabu para um servidor ................... 38 A sensação de um renascimento ..................................................................... 41 30% na visão, 100% na pedalada .................................................................... 44 Ela sobreviveu ao país que mais mata transexuais no mundo ............ 46

PERSONA Relatos de um artista que transforma vidas ............................................... 48 Dhi Ribeiro - histórias e as dificuldades da cantora brasileira ............... 52 Rainha Melina: transformação da dor em arte ......................................... 57 Drag Life ..................................................................................................................... 61 Palhaçada é fazer de si o picadeiro .................................................................. 63 Circo na rua ............................................................................................................... 66 Sinal vermelho, começa a apresentação ........................................................ 68 Mentora do coletivo cultural “Só na Maldade” ............................................ 71 Uma profissão em extinção ................................................................................ 73 Do cheiro do incenso ao som da rua ................................................................ 76 Vigia da solidão ........................................................................................................ 79 O peso de um nome ............................................................................................... 82


Trajetórias de superação e transformação no Distrito Federal em formato de 34 perfis jornalísticos

REFÚGIO Trabalho voluntário para mudar o mundo ...................................................... 86 O vendedor de frutas trouxe na bagagem o recomeço .............................. 91 A passagem só de ida da Venezuela ao Brasil ...................................... 94 A primeira web-rádio esportiva do Centro-Oeste ....................................... 102 Abrigo sob os ponteiros da praça do relógio .................................................. 104

MEMÓRIA Sorria, presidente ................................................................................................ 106 Ex-triatleta de Brasília recorda o que há por trás das medalhas...... 109 Um Taguatinguense que serviu o Exército americano .......................... 112 Ex-controlador de voo relembra o apagão aéreo de 2007 ............. 115 O conquistar de uma nova vida ..................................................................... 118 Mergulho nas lembranças da antiga piscina de ondas ......................... 120 Sexo, sexo… Ele só queria apagar as imagens compartilhadas ........ 126


FORÇA

A INVENCÍVEL JUMA Prostituição, encarceramento e a vida nas ruas. Hoje, Juma é redutora de danos, militante e figura de liderança

Por Alexandra Kalogeras

A palestra estava marcada para às 10h, mas Juma estava pronta no campus Darcy Ribeiro da Universidade de Brasília desde às 7h. Os alunos entravam na sala aos poucos, mas ela aguardava pacientemente, sentada na mesa dos professores. Em 30 minutos, a sala enche de estudantes de psicologia. O tema, “Redução de Danos”. Na camiseta, o perfil de Mariele Franco, vereadora morta no Rio. No momento de começar, sob os olhares admirados de universitárias que já a conheciam, dos que a viam pela primeira vez e da observação atenta da professora que a tinha convidado, ela se apresenta: “Eu sou a Juma. Sou redutora de danos, prostituta, moradora de rua e usuária de drogas”.

PATINHO FEIO 20 anos antes de apresentar aquela palestra para universitários, Juma Santos costumava ser Gilmara, que só teve duas idades na vida: 16 e 33 anos. “Às vezes eu me esqueço da minha idade. Aí, tenho que perguntar pro meu marido”, e ri, alto e livremente. O Juma, 2003. Foto: Arquivo Pessoal. motivo é comercial: são as melhores idades para uma garota de programa. Com pouco mais de 1,60 metro, cabelos loiríssimos (“A gente não fica velha, fica loira!”) e um sorriso travesso, Juma possui a tranquilidade dos fortes. Feminista, ela é devota de Nossa Senhora Aparecida, madrinha e “mãe da rua”, como diz. “Sempre fui muito católica, mesmo quando era prostituta. Uma coisa não exclui a outra”. Seu corpo é marcado por história; uma armadura de pele e sangue que enfrentou violência, noites de frio ao relento, brigas e fome. Os olhos às vezes ficam cansados e se umedecem ao falar não dos horrores que já presenciou, mas da mãe. “Eu já não te falei que não queria mais falar desse assunto?”, reclama comigo. Natural de Brasília, Juma passou a infância em Alexânia, um município no interior de Goiás, a 88 km do DF. Filha única, ela morava com a mãe, conhecida como Dona Inês, em uma casa com um quintal pequeno, uma goiabeira, galinhas sob uma amoreira e um pé de mamão. Ela e a mãe costumavam fazer caminhadas pelo mato, iam à feira e Juma ouvia. “A gente não conversava, não, mulher, era só ‘Sim, senhora’, ‘Não, senhora’. Eu era até corcunda!”. A mãe gostava de contar histórias da Mula-Sem-Cabeça, Saci e Curupira. Dona Inês era analfabeta, mas tinha um espírito empreendedor: para sustentar a si e a filha, vendia pamonhas no terminal de ônibus de Alexânia e lavava roupa. Da horta que tinha em casa, tirava cheiro verde, tomate e alface para vender. Conseguiu ajuda do padre local para garantir que Juma frequentasse uma escola de freiras.

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luta A VIDA ATROPELADA Mas a infância no interior terminou de maneira abrupta e violenta quando Dona Inês foi atropelada e morta por um caminhão em Alexânia. Estranhamente, a avó de Juma, que tinha problemas de alcoolismo, morreu assim também. O dinheiro da indenização pela morte da avó construiu a casa com a horta e a goiabeira onde Inês morava com a filha. Subitamente sozinha, Juma, que não tinha outros parentes, acabaria indo para o orfanato. “Além de ter medo do orfanato, eu achava que era lugar de criança ruim”. Decidida, ela pegou os pertences e retornou para a Brasília de carona em caminhões. “Naquela época, eu não sabia das coisas, não entendia o perigo”, analisa. Apesar do risco, nada de mau lhe aconteceu durante a viagem e ela chegou à Rodoviária do Planalto Central sã e salva. “Que linda que era aquela rodoviária em (19)85!”, sorri. A primeira coisa que fez ao chegar foi procurar uma escola para se matricular. Na Escola Classe da 104 norte, a diretora, Graça, recusou-se a matriculá-la por causa da falta de documentação e de adultos que se responsabilizassem por ela: Juma só trazia consigo a certidão de nascimento e o boletim escolar do colégio de freiras. “Nesse momento, o Estado falhou comigo! Porque eu queria estudar e eles não me deixaram”. Sem ter para onde ir, Juma não aceitou a negativa. “Por uma semana, eu dormi na porta da escola, até ela aceitar me matricular!”, lembra em um momento de orgulho. A diretora cedeu e fez a matrícula “por baixo dos panos” e ficou responsável por ela até a 6ª série. Assim, Juma voltou a frequentar as aulas que eram dividas entre a Escola Classe e a Escola Parque. Sem ter onde ficar, Juma passava os dias na escola e as noites no Hospital Regional da Asa Norte (HRAN). “Dormia nas cadeiras, com um cobertorzinho”. Quando, por um motivo qualquer, era impedida de dormir nos bancos do hospital, Juma escalava um pé de manga que ficava em frente e lá mesmo passava a noite. “Tinha medo daquelas coisas que minha mãe contava, do Saci, Mula-Sem-Cabeça, dos fantasmas da minha infância, mas também do Homem. Da maldade humana, sabe?”. Assistir às aulas lhe trazia alegria e foi por isso que Juma suportou virar alvo dos colegas. “Aquilo era normal. Adolescente bater em uma menina do cabelo ‘ruim’ que não tinha casa”. Um episódio em particular que ficou marcado na memória aconteceu durante a aula de artes. A tarefa era criar uma história em quadrinhos e seus colegas fizeram a deles que relatavam agressões contra Juma do lado de fora da Escola Parque, depois das aulas. Ao ver o trabalho exposto aos olhos de todos no mural da escola, Juma tirou o cartaz da parede, rasgou-o e levou para a diretora. “Aí, eu, revoltada, falei, ‘Diretora, eles ‘tão falando de mim! Sou eu que apanho todo dia, nessa historinha! A escola inteira ‘tá rindo de mim!’. Você acredita que a desgrama da diretora da Escola Parque me fez colar o cartaz de volta, todinho? Ridícula”.

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Ironicamente, foi a mesma Escola Parque palco de um bom acontecimento: o primeiro beijo de Juma em um garoto que “tinha olhos muito verdes”. Naqueles dias, as crianças faziam uma brincadeira com nome de flor, na qual quem perdesse tinha que pagar um castigo. E o castigo dele foi ter que beijar o ‘patinho feio’ da escola.

noite de horror Em junho de 1985, uma chuva torrencial caiu, mas o vigia noturno do Hospital Regional da Asa Norte (HRAN) não se sensibilizou com o clima e não permitiu que Juma dormisse lá. Por causa da chuva pesada, o refúgio no pé de manga também não era uma opção. Juma, então com 13 anos, ao se ver subitamente sem ter onde passar a noite, retornou para a rodoviária. Em busca de um lugar seguro, dirigiu-se ao posto da Polícia Militar. Naquela noite, havia sete guardas de plantão. “Eu ainda mandei um migué (uma mentira) e disse que tinha perdido o ônibus, mas eles devem ter percebido que eu era da rua, que eu não tinha ninguém”. Os homens que deveriam garantir sua segurança durante a noite se revezaram para violentá-la e espancá-la. Questionada pela Revista Esquina, a Assessoria da PMDF não tem informações sobre o episódio relatado, já que nenhuma denúncia foi registrada à época, mas a corporação garante que “ao longo do tempo, vem aperfeiçoando seu processo seletivo para inclusão de novos policiais” e que “todo desvio de conduta é apurado rigorosamente pela Corporação”. Entre as fases do exame para ingressar na PM, hoje, estão inclusas avaliação psicológica e investigação da vida pregressa do candidato. Quando o dia raiou, a chuva havia parado e Juma chorava deitada no chão da rodoviária. As dores e as feridas permaneceriam. Quando confrontada com a crueldade e a indiferença que se seguiu a ela, a mulher na qual a menina se tornou não parece saber qual a machucou mais. “Ninguém olhou para mim!”, revolta-se e seus olhos se enchem d’água por trás dos óculos escuros”. Foi um menino, também em situação de rua, que se aproximou dela, solidário com outra vítima da mesma violência que deve tê-lo atingido em alguma de suas noites. Tudo o que ele tinha era uma lata de tíner, um solvente para tintas que foi, por muito tempo, usado como o entorpecente favoritos das crianças. Então, foi isso que ele ofereceu. “A droga entrou na minha vida como um pedido de socorro e por um bom período foi fundamental na minha sobrevivência. A cola e o tíner foram fundamentais na minha infância pra poder crescer junto com as outras crianças, aqui no Plano Piloto e Rodoviária”.


FIM DO MUNDO Juma abandonou a escola na 6ª série e foi para uma escola diferente, a das ruas, onde aprendeu a fina e dura arte da sobrevivência. “Eu aprendi a usar as armas que tinha, minha palavra, meu corpo, minhas ideias”. Ela lembra da primeira vez em que levou um tapa na cara e que aquilo lhe causou vergonha. “A gente tava numa roda cheirando cola, não sei qual foi a lombra do moleque”, diz. Até bater de volta, Juma conta que levou inúmeras outros tapas como aquele. A primeira briga em que não houve opção a não ser lutar foi depois de levar uma coronhada na cabeça. “Mulher sozinha na rua, não vive. Não precisa nem ter beleza. Você tinha que arrumar um homem pra ficar do seu lado, senão virava massacote dos outros. As pessoas falam, ‘ah mulher gosta de bandido’. A gente é obrigada a ficar do lado dessas p***!”. Juma abandonou a cola por causa de uma estranha profecia: passou a ter visões do mundo acabando toda vez que a cheirava. “A cola e o tíner tiram a gente dessa realidade. Eu acho que eles mostram seu medo ou o que você tem de melhor. Quando eu via o mundo acabando, pensava, ‘pelo amor de Deus, eu não quero morrer agora’”. Na adolescência, o álcool tornou-se seu principal entorpecente, mas hoje é a droga que ela considera mais perigosa. “Todas as violências que eu passei, tirando a primeira, foram por causa do álcool. Às vezes não era nem eu quem consumia, mas as pessoas próximas. Hoje, com R$ 1,50, se mata uma mãe de família dentro de casa”.

LUZES DA CIDADE No final dos anos 80, Brasília era uma cidade glamourosa com boates como a Bataclan e a Zoom no Gilberto Salomão, que chegou a receber celebridades como Xuxa e Pelé. No Conic, o Cine Ritz, que passava filmes pornôs, funcionava a pleno vapor e as garotas de programa dominavam a noite. Uma delas, Madonna, foi quem encorajou Juma a fazer seu primeiro programa. Na época com 15 anos, Juma ganhou 5 mil cruzeiros. “Fiquei com medo, mas fiquei maravilhada quando vi o dinheiro na minha mão”. A violência passada na rodoviária e a falta de orientação fizeram com que ela ficasse indiferente para relações sexuais. “Hoje, eu entendo, mas naquela época achava que era só abrir as pernas”. O dinheiro saía com a mesma rapidez com que chegava: vaidosa, Juma comprava casacos, roupas e sapatos novos, além dos entorpecentes que a mantinham sã. Ela se lembra dessa época com carinho e um sorriso divertido. “A vida noturna de Brasília era muito rica! Quando comecei o trabalho sexual no Conic, era um luxo (...) O crack foi o que destruiu a vida noturna do Conic”. Quando a cocaína não mais lhe satisfazia, Juma também passou a usar merla, entrando em uma espiral de decadência paralela à da cidade que tanto adora. Acabou indo dormir com os ratos em bocas de bueiro. Uma noite, enquanto ela dormia sob efeito da droga, alguém colocou fogo nela. “A merla baixou muito minha guarda. Foi assim que eu acabei com 40% do meu corpo queimado, fui esfaqueada, baleada…”.

Mãe de Juma, Dona Inês. Foto: Arquivo Pessoal.

Juma (direita) e amiga Catiane, adolescentes em situação de rua. Foto: Arquivo Pessoal. Juma nos anos 90 como garota de programa. Foto: Arquivo Pessoal.

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nhas dores e resgatava algo que tinha morrido em mim”. Hoje, Juma é militante pela legalização da maconha e está à frente da ala feminista da Marcha da Maconha de Brasília. Quando foi solta, Juma não tinha família e nem para onde ir. “O Estado é assim: te prende e depois te joga na rua”. No primeiro dia em liberdade condicional, rumou para o Conic, lugar que por tanto tempo tinha sido o centro de seu mundo. Lá, tomou uma cerveja gelada e reviu os amigos. Um em especial, Parazinho, tinha um quiosque durante o dia e pela noite, uma barraca de cachorro-quente que alimentava as profissionais do sexo. Ele arrumou para ela um quartinho para alugar em Brasilinha (em Planaltina - GO) por R$ 50.

Juma e amiga. Foto: Arquivo Pessoal.

Na pré-adolescência nas ruas, Juma teve a primeira e única filha. Naquele tempo, além de tentar manter a si e a filha em segurança, tinha que fugir do Serviço Social que via como “um monstro que podia lhe tomar a criança”, visão que ela afirma ser muito comum entre pessoas em situação de rua. Quando dormia, Juma colocava um pedaço de madeira sob a cabeça para garantir a proteção das duas. Uma noite, Juma relata, o pedaço de madeira foi usado contra um homem que ela, ao acordar, viu levantar o vestido da filha. “Tentaram violar minha filha e eu acabei tendo que defendê-la. Mas mulher moradora de rua não tem direitos, viram que eu quase matei o cara de paulada, mas ninguém viu a defesa”. Juma acabou encarcerada e enviada para a PFDF (Penitenciária Feminina do Distrito Federal), a Colmeia. “Sofri muito no sistema penitenciário, mais do que na rua. Porque na rua você passa por várias violências, mas a liberdade nos proporciona algumas saídas”.

A GAIOLA Entre beliches e colchões espalhados pelo chão, Juma dividiu uma cela com mais 60 mulheres. Ela ficou dois anos e oito meses encarcerada, período em que sofreu com a abstinência da merla. A filha foi adotada por uma mulher que já tinha dois filhos, mas queria uma menina e que cuidou dela até mesmo depois de Juma ter sido solta. Nesse período, a maconha se fez importante para ajudá-la com as dores físicas, a rotina do sistema prisional e o difícil processo de abstinência. Uma droga tranquilizante, Juma afirma que a maconha entra com facilidade dentro do sistema prisional para apaziguar os ânimos dos encarcerados. “Eu comecei a usar maconha de manhã e de noite, e aquilo me fez bem. Ela tirava mi-

A filha, ela optou por deixar na casa da mulher evangélica que se dispôs a cuidá-la, visando poupá-la do estilo de vida duro que levava. “Eu ainda estava muito fragilizada e ela estava numa estrutura tão boa financeiramente. Era melhor do que a rua”. Contudo, Juma sempre se recusou a assinar os papéis oficiais que dariam a guarda da menina para a mãe adotiva definitivamente, e ia visitá-la com frequência, levando-a consigo por alguns dias para a rua e devolvendo-a à casa depois. “Participei muito da vida dela. Fui virada pra escola, na formaturazinha dela, toda fedida de fumaça de cigarro. Cheguei com uma roupa horrorosa, foi arrasante esse dia. Minha filha me chamou pra ir lá pra frente de mão dada e eu morta de vergonha”, recorda. Hoje, mãe e filha conversam diariamente e Juma tem um neto e que lhe provoca sorrisos sempre que é mencionado.

DESCOBERTA DO AMOR Na noite em que os caminhos de Juma e Marcos se cruzaram, Juma parou na barraca de Parazinho com as amigas. “As raparigas queriam ir pro Barulhos”, lembra, em referência ao local onde hoje funciona o Bar Barulhos no Parque da Cidade. Marcos acabou sendo a carona, e chegou na boate com o carro cheio de garotas de programa. Parazinho, que era amigo de Marcos, confiou em Juma para guiá-lo naquele universo desconhecido. Desde o início, Marcos nunca foi um cliente, mas Juma o viu como um investimento a longo prazo. “Via no sexo oposto uma oportunidade, então usava meu corpo e minha sensualidade. No momento em que bati o olho no Marcos, eu o vi como uma oportunidade de sair da rua”. O amor entre Juma e Marcos veio aos poucos e, então, subitamente. “Gostei da personalidade dela”, conta 13 anos depois, sentado no sofá da casa na Vila Planalto que os dois dividem com dois gatos e uma cachorra recém-adotada. Ele também foi visitá-la quando Juma estava encarcerada. Anos de parceria e companheirismo construíram a relação que se mantém até hoje. Na casa aconchegante, Juma mantém nas paredes fotos da filha, da mãe, do neto e do casal. No quarto, uma penteadeira com maquiagem e cosméticos. “Maquiagem é tudo, menina”.


REVIRAVOLTA Em 2002, recém-saída da Colmeia, Juma lembra que tinha medo de ser pega na rua após seu toque de recolher, às 22h, pois isso significaria perder a liberdade provisória. Uma noite, enquanto fazia programa no Conic, um homem a abordou com uma proposta diferente: ele lhe perguntou se ela queria um trabalho. “Eu tinha o segundo grau, mal fiz a 6ª série, usuária de droga, sem dente na boca! Moradora de rua! Ex-presidiária! ‘Que emprego é esse, doido?’”. O homem era Claudiney Alves, um dos primeiros redutores de danos de Brasília e conhecia Juma como uma figura de liderança entre seus pares da rua, vendo ali uma possibilidade de alcançar mais pessoas através dela. A primeira reunião foi numa sexta-feira, pela manhã. “Ou eu comprava o meu miojo, ou comprava um reloginho pra não perder a hora da reunião. Comprei o reloginho. Olha aí a oportunidade de um empreguinho. (risos). Acordei 4h30 da manhã, doida, peguei uma carona e desci no posto de saúde. Banguela, toda sem-graça, daquele jeito. Vamos ser redutora de danos”. O programa de Redução de Danos do DF nasceu em 1999, vinculado à Secretaria de Saúde e, inicialmente, visava prevenir a contaminação de Aids entre usuários de drogas. Por isso, os primeiros redutores distribuíam camisinhas e kits de seringa. Em 2013 quando a atuação do SUS foi intensificada no DF, a redução de danos passou a abordar também outras questões. “Redução de Danos não é um tratamento, ela vai ao encontro ao que a pessoa deseja. Se a pessoa quiser abstinência, a redução ajuda nisso. Se a pessoa quer mudar de droga, a redução também colabora”, explicou Juma durante a palestra. O programa de redução de danos complementa o sistema de saúde para as populações mais vulneráveis, e tenta compreender e satisfazer as necessidades dessas populações. O princípio básico é a defesa do usuário. “É chegar em alguém da rua e não querer saber da droga dele, mas da boca dele que tá machucada. Explicar que ele pode pegar AIDS ou hepatite, dividindo o cachimbo, o baseado. Na hora eles perguntam ‘como? por quê?’, porque a gente pode até morrer de facada, de tiro, mas morador de rua nenhum quer morrer em cima de uma cama de hospital”, conta Juma. Assim, ela explica, as pessoas em situação de rua veem que a preocupação principal não é a droga que eles consomem, mas eles enquanto seres humanos. “A sociedade enxerga o cachimbo de merla, mas temos que enxergar a pessoa por trás daquele cachimbo. E isso ninguém enxerga. Eu falo isso porque senti na pele. Se bem que hoje eles enxergam, a loira platinada sentada na rua, caríssima (risos)”. Juma e Marcos, 2006. Foto: Arquivo Pessoal.

Aniversário de dois anos de sua filha. Foto: Arquivo Pessoal.

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Pelos primeiros seis meses, Juma trabalhou sem retorno financeiro, mas o pagamento veio de outra forma. Ser ouvida e respeitada por quem era e pelo que tinha vivido abriu as portas para seu processo de empoderamento. “Não me exigiram nada, só o compromisso de estar presente nas ações. Só queriam que a minha história servisse pra me aproximar das pessoas. E isso era o que eu tinha pra dar, eu não tinha outra coisa”, diz. “Eu comecei a sentir prazer nessas coisas, no trabalho, em ajudar as pessoas. Em ser elogiada no serviço. Isso pra mim era melhor do que os R$ 250 que eu passei a receber”. Através da Redução de Danos, ela se tornou militante e entrou para o Rebrade, um projeto da UnB que durou um ano e acolheu 3500 usuários de drogas. Os redutores de danos chamados para o projeto eram todos igualmente usuários e tinham patologias como HIV e hepatite. Juma é a única membra sobrevivente. “Eram pessoas que o Estado não queria e que nunca teriam oportunidade de trabalho, mas fizeram um trabalho muito grande. A Redução de Danos de Brasília existe graças a eles”.


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Passei minha vida inteira estudando na rua, que foi a melhor faculdade da minha vida”. Hoje, ela é considerada a última redutora de danos nativa da rua. "Eu tenho muito orgulho de ser redutora de danos. Mas eu acho que eu vou ser a última”. Equipe de Redutores de Danos de 2008 (Juma e Claudiney no centro). Foto: Arquivo Pessoal.

Equipe da Namastê, 2018 para matéria da Revista Traços. Foto: Thaís Mallon, arquivo da Revista Traços.

BATALHA Hoje, Juma continua o trabalho como redutora de danos na ONG Namastê, vinculada à Revista Traços (um projeto social e jornalístico com pessoas em situação de rua). Além disso, faz visitas semanais ao Setor Comercial Sul e entornos para trabalhar junto aos “pares” (como gosta de chamar as pessoas com quem trabalha) e oferecer a eles dicas para tratar feridas, reforçar a importância de beber água, oficinas de cuidados com a saúde e DST’s, ou mesmo companhia e um bom papo. Ela é membra da Diretoria da Associação de Redutores de Danos e representante da entidade no DF. “A rua ´tá sempre com a gente. A gente sai da rua, mas a rua nunca sai da gente”. Por iniciativa própria, ela terminou os estudos no supletivo em 2007 e chegou a fazer um curso de brigadista. Ela criou a ONG Tulipas do Cerrado, que continua o trabalho de redução de danos do antigo Rebrade, mas adiciona entre seu público as profissionais do sexo. “É muito difícil a gente falar da mulher em situação de rua, ou falar de redução de danos sem falar de profissionais do sexo. Quantas mulheres têm direitos violados por que essa profissão não é regulamentada? Porque não é ilegal ser prostituta, mas é ilegal procurar um ambiente seguro para trabalhar. Quando corremos atrás do direito dessas mulheres, lembramos que essas mulheres são trabalhadoras, são mães”, explica. A Tulipas do Cerrado atua desde 2005 em Brasília, mas não possui CNPJ porque não há uma sede, exigência para oficializar uma ONG. Além do trabalho na ONG Namastê, Juma faz palestras e leva estudantes de psicologia e serviço social a viagens de campo junto a moradores de rua e usuários de drogas para apresentar os próximos redutores de danos a seus pares. Ela participa de projetos como o Cine Rua, que leva sessões de cinema para pessoas em situação de rua por todo o DF com uma tela e um projetor. Por causa da nova exigência de um diploma de graduação em Serviço Social para quem atua em sua área, ela iniciou o curso de Serviço Social na UnB. Orgulhosa da herança e da trajetória, ela teme que a nova exigência desanime ou impeça outros redutores de danos nativos das ruas a fazer o que ela faz. “É muito cruel que digam pra mim hoje que eu precise de um diploma pra trabalhar.

Logo quando nos conhecemos, ela me disse: “Eu não suporto que me coloquem como mulher vulnerável. ‘Ah, tadinha daquela menina lá. Coitada dela’. Não existem pessoas vulneráveis na rua, pelo contrário: somos muito fortes, principalmente as crianças. Olha eu aqui, moro nas ruas desde os 10 anos de idade, ‘tô viva e saudável. Não tenho nenhuma patologia, fora ser um pouco louca (risos)”. Naquela mesma oficina que ela ministrou, Juma confessa que, às vezes, até ela se sente cansada. “Mas aí, eu penso: o que vai acontecer com essas pessoas se eu não conseguir mais fazer essa caminhada?”. Nos slides, ela nos mostra fotos de conhecidos e amigos e nos conta as histórias dessas personagens beckettianas: um senhor que foi abandonado pela família e está nas ruas há 40 anos, um homem que aprendeu a usar sacos plásticos para absorver o calor do sol e espantar o frio, um menino de 11 anos que é usuário de crack e para quem eles fizeram uma festa junina de presente, uma jovem de 18 anos que estava grávida do 9º filho quando foi levada para fazer o primeiro teste de HIV, uma mulher trans que ela conheceu quando era um garoto que dormia na Rodoviária. Histórias reais e cheias de humanidade.

E NO FINAL DA PALESTRA... “Me chamo Juma Santos, fundei a Tulipas do Cerrado, faço parte de outros movimentos feministas nacionais, como a Rede Feminista Antiprotecionista. Hoje, venho à frente de uma ala feminista das mulheres daqui de Brasília na Marcha da Maconha. Sou referência no Movimento de Trabalhadores Sexuais e pretendo me formar em Assistência Social porque o Estado não permite que eu assine minha carteira de Redutora de Danos sem meu ensino completo”.

A palestra termina e todos aplaudimos de pé.


I N S P I R AÇ ÃO

Aula de inspiração Gina Vieira atravessou preconceitos e depressão para fazer da sala de aula o lugar dos sonhos

POR Amanda Gil Da vida difícil dos pais analfabetos, nasceu o sonho de ir para a escola e estudar. Do primeiro ano na escola, nasceu o medo, a tristeza de sofrer preconceito pela primeira vez por “culpa” da cor da pele. Do preconceito, nasceu a vergonha de se manifestar, de aparecer, o que fez com que ela não aprendesse a ler e escrever. Da falta de conhecimento, surgiu o colo de uma professora, que se esforçou para ensiná-la o que foi tirado pelo preconceito. Do colo da professora, abriu-se uma nova porta. Nasceu, então, um novo mundo para a professora Gina Vieira Ponte de Albuquerque, 46 anos. Um mundo no qual ela iria crescer, estudar, se formar, criar um projeto vencedor de prêmios nacionais e internacionais e fazer o que ela faz de melhor: inspirar e realizar. “Ninguém faz ninguém feliz, a gente que se faz feliz”. De sapatos de salto preto, calça preta, blusa colorida, paletó branco, colares e brincos, ela está pronta para contar mais uma vez a própria história. Dessa vez, em uma palestra no evento Mulheres de Cooperativas, em Brasília, em um pequeno auditório no Brasília Imperial Hotel, com cerca de 20, 25 pessoas. A organizadora do evento, e colega de Gina na época em que dava aula na Ceilândia, a apresenta com um pequeno relato: “Depois que o sinal tocava, determinando o início da aula, eu e ela éramos as primeiras a levantar, pegar nossas bolsas e ir para a sala de aula”. Ela tem um discurso orgulhoso sobre a amiga, mas que não revelarei imediatamente, já que ainda temos um caminho cheio de relatos emocionantes até o fim desta história.

CONHEÇA HISTÓRIAS DE MAIS MULHERES QUE INSPIRAM

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17 “Esse moço bonito aí se chama Moisés”. O homem de pele branca, cabelo preto e traços afilados que aparece no primeiro slide da apresentação, é o pai de Gina. “Nasceu em Sobral, no Ceará, e por uma série de razões meu pai nunca aprendeu a ler e a escrever. Quando Juscelino Kubitschek chamou os nordestinos para vir construir a Capital, ele atendeu ao pedido. Vendeu um burrinho que ele tinha, que era o único bem que meu avô tinha para dar para ele, botou o dinheiro do bicho numa mala e veio para a Capital”. Não demorou muito e caiu em um golpe. “Um homem não alfabetizado, numa cidade grande, com uma mala de dinheiro… Imagina se isso ia dar certo”. O rosto que agora está estampado no telão da apresentação de Gina, é o de Djanira, a mãe. Uma mulher negra, com expressão forte, de quem já passou por muita coisa na vida. E não é que passou mesmo? “Aos 5 anos de idade, a Dona Djanira ganhou uma enxada para capinar terra”, relata a filha que, na voz, deixa escapar o que imagina do sofrimento da mãe. “O sonho dela era frequentar a escola, mas na infância, o que apresentaram para ela foi o trabalho”. “Num dado momento, ela cansa daquela vida dura que tinha na roça e também vem para Brasília. Esse encontro improvável entre um homem branco, filho de um pequeno fazendeiro, com uma mulher negra, filha de agricultores, trouxe existência a essa família (ela mostra a foto que parece ser o quintal de casa), que é a minha família”. A grande família de Gina era composta pelos pais dela e mais cinco irmãos e irmãs. Dois já faleceram. A que veio antes dela e um dos que veio depois. Eles moravam em Ceilândia. A cidade foi fundada em 1971 e a Gina nasceu em 1972, a primeira nascida na cidade, que na época não tinha água encanada, nem rede elétrica e os barracos chegavam em caminhões. Era Natal. O Natal mais incrível da vida da pequena Gina, do qual ela ouviu falar três meses antes. A expectativa para a data era grande. Ela ficava imaginando o Papai Noel sobrevoando sua casa, as renas… Mas, claro que não teve nada disso. Outros motivos fizeram deste Natal tão especial. “Primeiro, porque os primos estavam reunidos e isso não acontecia sempre. Segundo que a gente teria duas coisas que nunca tínhamos ao longo do ano: sobremesa, e foi aí que, pela primeira vez, eu comi o pudim de leite condensado, e Coca-Cola”.

Gina na infância quando criança. Ao lado, a mãe e o pai. Fotos: Arquivo Pessoal.

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Apesar de seus pais não terem tido acesso à educação (sua mãe estudou até a quarta série primária, mas não tinha curso superior), eles tinham uma narrativa sobre o que era a escola, que era muito poderosa, principalmente para seu pai. “Ele dizia para mim assim: ‘Minha filha, eu não sei ler, mas você vai para a escola, porque no dia em que você souber ler, você vence o mundo! Ninguém te segura, você ganha tudo se fizer o que você quiser!’ E ela, uma menina negra, ainda criança, pensava que quando entrasse na escola iria ganhar superpoderes. A ansiedade para ir logo para a escola era tanta, que quando lançaram a base, o alicerce de onde seria, Gina foi acompanhar a construção do lugar que ela imaginava ser colorido, um lugar onde haviam muitas brincadeira, que era muito divertido, onde ela seria muito feliz. Mas logo cedo, ela sofreu com a dura realidade de ser quem ela era, “uma menina magrinha, franzina, desnutrida, negra, que estava sempre com a roupa puída e com o sapato furado”, é como ela mesma se descreve na época em que, finalmente, entrou na escola. “Eu entro na escola e descubro que é um lugar tão racista quanto qualquer outro”. É nesse momento que a imagem que ela tinha criado sobre aquele lugar cheio de cor, diversão e felicidade, desaparece. “Xingamentos, agressões, às vezes indiferença de alguns professores, às vezes baixas expectativas”, foram fatores que motivaram a pequena Gina a se esforçar muito para ter um poder que não era o que ela imaginava, que era ser invisível.


O poder adquirido até então não adiantava muito. Foram vários episódios de perseguição. Ela recorda da infância, nos primeiros anos na escola. Imagens se fundem na imprecisão do tempo. Um dos momentos traumáticos que ela lembra, aconteceu quando ela voltava da escola para casa, quando estudava no Centro Educacional 7, da Ceilândia. “Um garoto veio me seguindo o percurso inteiro, me jogando pedra e me chamando de urso do cabelo duro, gratuitamente. Eu acho que eu não tinha feito absolutamente nada para ele”. Ela tem até uma explicação preparada para isso. “Quando você é criança, não tem elementos para elaborar isso” e as consequências disso, eram maiores nela, claro. “Eu acho que o impacto na auto-estima ainda é maior”. Uma foto dela de escola, retrata exatamente a criança que ela era: zangada, de cara fechada, triste, assustada… “Eu entrava muda, saia calada, sentava na última carteira e não fazia perguntas” e para uma criança é impossível aprender dessa maneira, sem fazer questionamentos, e Gina foi para a segunda série sem saber ler. Ela enganava a professora na hora que a leitura era tomada dos alunos. “Eu decorava e quando chegava a minha vez eu recitava para ela. Mas eu sabia que eu não sabia ler. A gente sempre sabe das nossas fragilidades”. Então, com 8 anos, a pequena Gina vai para o seu segundo ano de escola sem saber o que estava prestes a acontecer. Ela conheceu a professora que mudaria a vida dela (“que a carregou no colo”). Na sala de aula da segunda série e se chamava Creusa Pereira dos Santos Lima e era outra que enxergava a Gina, apesar do esforço para ser invisível. “Ela me chamou até a carteira dele e eu falei ‘pronto, ela descobriu que não sei ler. Ela vai chamar meu pai e minha mãe, e vai me devolver para a primeira série”. Mas esse sentimento de medo, logo foi tomado por um outro, diferente de tudo que Gina havia passado dentro da escola.

Almoço de Natal (Gina no canto inferior esquerdo). Foto: Arquivo Pessoal.

“Para a minha surpresa, ela não queria me dar bronca, ela não queria me bater. Ela me colocou no colo. Mas não foi qualquer colo. Foi um colo que foi o primeiro grande marco da minha existência. Ela me colocou no colo e se esforçou para que aprendesse. Eu lembro que a primeira reação que eu tive foi de estranhamento. Aquilo foi tão poderoso. Primeiro, que eu me senti uma criança passiva de ser amada. Depois, eu me senti uma criança em condições de aprender”. A partir desse momento, a concepção dela sobre o que a escola representava, mudou. “Eu associei a escola a pertencimento, a acolhimento. Embora eu sofresse racismo, aquele primeiro amor que a professora Creusa me apresentou, era uma espécie de elemento que me motivava a continuar na escola, porque no fundo eu acreditava que, em algum momento, eu encontraria aquilo de novo”. Tanto carinho fez com que Gina se esforçasse muito nos estudos, “ela mandava fazer cinco, eu fazia dez. Eu precisava garantir que aquele carinho ia continuar chegando para mim”.

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Moisés e Djanira, pais orgulhosos na formatura. Foto: Arquivo Pessoal.


19 Quando aprendeu a ler e a escrever, Gina começou uma nova prática. As duas habilidades se tornaram algo muito prazeroso para a menina de 8 anos, mas na sua casa não tinham livros a não ser os três dicionários que a mãe comprou com muita dificuldade, e esses, Gina leu rápido. Então, ela passou a escrever diários. “Eu sentava todos os dias e anotava o que tinha acontecido comigo. Depois eu voltava e lia o que eu tinha escrito”. Segundo ela, isso foi muito poderoso porque acabou virando um espaço onde ela compartilhava o que ela sentia, as dores, as dificuldades que ela passava, os conflitos. “Até hoje a escrita é um processo terapêutico para mim”. No lugar onde ela vivia, o destino das meninas negras já estava predestinado. Ou elas se envolviam na criminalidade, ou com traficantes, ou virariam trabalhadora doméstica, ou babá. Claro, que ela não via problema algum em ser trabalhadora doméstica e babá, mas a mãe, Dona Djanira, sonhava coisas maiores para ela. “Ela dizia: ‘Minha filha, eu não vou me sacrificar à toa, eu quero que você estude’. E depois que encontrei a professora Creusa, eu disse para mim mesma que eu seria professora. Porque não deve haver na vida nada mais importante para fazer do que o que ela fez por mim”. Isso que Gina conta que a professora fez, mudou a forma como ela olhava para si mesma e deu a ela mais um sonho, o de seguir os estudos e se formar. Com 17 anos, então, a Gina se formou professora no ano de 1989.O pai dela, humilde e guerreiro, Moisés, ficou tão orgulhoso, que fretou uma kombi para a família toda. Ela não sabe como ele conseguiu o automóvel, mas lembra que a família inteira foi para a formatura dela. “Eu comecei a dar aula me sentindo a pessoa mais importante do mundo”. A filha de Moisés e Djanira trabalhou durante oito anos com as séries iniciais e chegou o momento que ela quis trabalhar com as mais avançadas. “No meu primeiro dia de aula com os adolescentes, eu entro na sala para dar aula numa turma de 6º ano e eu vi uma cena que foi uma das mais chocantes que já vi”, relatou Gina. “Entrei na sala de aula e tinha um menino pendurado na janela, tinha menino ‘quicando’ na carteira, tinha menino rolando no chão com o dedo enfiado no olho do outro, dando soco… E eu entrei e tentava dar aula. Eu dizia (calmamente) ‘meu filho, desça da janela. Meu amor, não pule na carteira…’ Me deixaram falando sozinha”.

Depressão

“Aquele foi o gatilho para um processo depressivo” e o tiro foi na mosca, bem no sonho dela. Diante da situação, Gina se viu incapaz de exercer a função que ela tanto desejava, que ela viu pela primeira vez com a professora Creusa. “Eu queria ser professora para fazer parte da história dos meus alunos e ajudá-los a escrever grandes histórias para a vida deles. Quando eu entro na sala e vejo jovens virando as costas para a escola, a sensação que eu tenho é de fracasso, de impotência”.

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Isso aconteceu no ano de 2003. Ela já tinha 31 anos e ficou afastada da sala de aula por quase um ano. “Eu precisei tomar medicação psicotrópica, remédio tarja-preta, procurar psiquiatra, terapeuta… Cheguei a pesar, na época, 37 quilos, porque eu não comia, eu não dormia, eu não sentia prazer em absolutamente nada. Porque a depressão não é tristeza. É muito pior. É falta de prazer, satisfação e de sentido”. E no meio disso tudo, no meio do tratamento da doença, no meio de outubro, aconteceu uma coisa que a quebrou no meio. “Eu estava em casa, de licença médica, muito próxima da minha mãe porque ela não trabalhava, ela era aposentada e nós saímos para comprar um colchão para a cama dela, que ela tinha acabado de encomendar uma cama para o marceneiro”. Do lado uma da outra elas foram andando até a loja onde iriam comprar o colchão. Em um determinado momento os passos da mãe foram desacelerando. Direita, esquerda… Direita, esquerda… Direita… Ela parou e falou “minha filha, eu preciso ir ao banheiro agora! Porque se não vou fazer coco na roupa”. A reação de Gina foi achar aquilo muito estranho. “Xixi é difícil de segurar, mas o número dois a gente segura bem”, pensou ela. “Eu perdi a minha avó com câncer de estômago, uma tia já tinha tido a mesma doença, então tem um histórico na minha família”, Gina ficou com essa pulga atrás da orelha e decidiu ir a um médico. Quando vieram os resultados, veio a certeza do que ela suspeitava. O diagnóstico foi de adenocarcinoma gástrico, um câncer de estômago em um estágio já avançado. “Eu estava tentando me levantar, quando recebo essa pancada”. Agora ela fala diretamente comigo, se abre de forma pura e sincera. “Eu juro para você… Eu quase enlouqueci, porque eu descobri que ela estava doente, eu tive que dar a notícia”. Elas foram em dois médicos. Um tinha a informação de que Djanira não tinha nem 15 dias a mais de vida. O outro dizia que, se ela operasse, ela ficaria boa. “Esse segundo médico, era o que acompanhava a minha mãe há 7 anos, porque ela tinha Lúpus Eritematoso Sistêmico (LES) e de 3 em 3 meses a gente tinha que ir nele para monitorar, fazer exames. Então, acabamos (ela e os irmãos) ficando com o parecer dele”. Djanira fez a cirurgia de remoção do tumor. Mas o médico errou na previsão quando disse que ela ficaria boa depois de operar. Antes de voltar para casa, ainda no pós-operatório, ela teve pancreatite. Ela convivia há 7 anos com o lúpus, acabará de operar um câncer, mas foi uma inflamação no pâncreas que causou seu falecimento. Quase no fim do tratamento da depressão, então, Gina perdeu a mãe. “Eu surtei. Eu, literalmente, enlouqueci. Fiquei muito mal. Foi um susto”. Três anos antes ela tinha perdido seu pai. Moisés viveu até os 52 e a Djanira até os 66. A licença médica de Gina chegava ao fim e com todas as coisas que aconteceram, com “a maior perda” de sua vida, ela teve que fazer da fraqueza, a


força. “A Secretaria de Educação não entendia que não tinha condições de eu voltar a trabalhar”. Ela foi obrigada a voltar ao trabalho. “Eu estava dilacerada pela morte dela e eles dizendo ‘mas tem quase um ano que você está de licença’ e eu pensava: ‘Tudo que eu construí de tratamento da minha depressão foi por água abaixo com esse novo acontecimento!’”. Ela voltou a dar aula mesmo com toda a dor que sentia no peito, mesmo com um pedaço faltando. “Eu sentia que não estava pisando no chão. Ainda estava a base de medicação e tive que fazer uma força descomunal para voltar a trabalhar”. Ela chegou a pensar em desistir do seu sonho de ser professora. Mas recebeu uma visita da pequena Gina. Aquela de 8 anos que ainda vive dentro da Gina mais velha, que sentou no colo da professora Creusa. “Ela disse para mim, ‘mas foi tão importante para você ser professora, você vai desistir na primeira dificuldade?’ E aí no lugar de desistir, eu fui estudar mais”, contou. Gina começou a se perguntar por que os jovens odeiam a escola, por que eles querem tanto sair dela e ela diz que, nas pesquisas e análises feitas por ela, “o jovem vira as costas para a escola, porque primeiro a escola vira as costas para ele”. Uma das ideias elaboradas por ela é que a geração de hoje é a geração nativa digital, que já nasce sabendo mexer no touchscreen e que, quando essa geração vai para a escola, no momento em que a criança ou o adolescente passa pelo portão da escola, é como se dissessem para eles: “Bem-vindo à máquina do tempo. Você acaba de voltar para o século 17”. A escola espera que o(a) aluno(a) fique quieto, sentado na carteira, quando o que eles mais querem é voltar para casa e para o mundo tecnológico. “Não é que estudar tem que ser prazeroso”, explica Gina. “Estudar é penoso também. O problema é que a gente está transformando estudar em tortura, em sofrimento”.

ela percebeu que as meninas fazem isso, porque a sociedade ensina a elas. Gina explica: “Sabe onde isso começa? No conto de fadas. Os ingênuos contos de fadas são muito importantes para as meninas. Eles ensinam que a coisa mais importante que elas podem fazer na vida é ser escolhida por um homem para casar”. Segundo ela, as princesas não têm protagonismo nenhum, só sofrem e ainda rivalizam com outras mulheres para ter atenção dos homens.

Foi aí que ela buscou observar o que os alunos falavam, o que os interessava, do que eles gostavam, pois ela queria fazer algo que mudasse essa postura dos jovens na escola e sabia que a mudança tinha que partir dela, do trabalho dela. E a resposta que ela ouviu não poderia ter sido outra: redes sociais. “Criei uma conta no Orkut (rede social popular da época, entre os anos de 2009 e 2011). Nem sabia para que lado ia, mas criei mesmo assim, porque eu queria saber que negócio era aquele”. Ela utilizava da rede social como ferramenta de comunicação com os alunos, para dar feedback de textos e entre outros trabalhos em sala. Mas não demorou muito, surgiu o Facebook e todos que amavam o Orkut migraram para a rede social do americano Mark Zuckerberg.

“A Branca de Neve briga com a madrasta, porque as duas querem atenção, querem ser as mais belas diante do príncipe. A Cinderela briga com as irmãs, porque querem ir para o baile para ser escolhida pelo príncipe. Além disso, a vida dessas princesas não tem sentido, não tem um propósito. O sentido da vida da princesa é ser escolhida pelo príncipe”. Para ela, a mensagem que esses filmes passam é que “você (menina/mulher) por si só não tem valor. Você só tem valor com um homem do seu lado e para ter um homem do lado é preciso sensualizar, violentar o corpo para caber dentro do padrão que o homem espera”. Claro, que não tem problema algum em ser bonita, gostosa e sensual, o problema, segundo Gina, “é quando a cultura diz que esse é o único valor que você tem, porque as nossas meninas acreditam nisso”.

E mais uma vez, Gina descobriu que causou nela um desconforto misturado com certa indignação. “Descobri que esse comportamento tem nome, chama-se ‘sexting’ e está relacionado a essa prática cada vez mais recorrente, não só nos adolescentes, mas nos adultos também”. E refletindo sobre esses comportamentos,

“Você olha e vê uma mulher tão plena, tão feliz, tão encontrada em si mesma, e ela não depende que um homem a faça feliz. Ninguém faz ninguém feliz, a gente que se faz feliz”, ressalta Gina, que ainda aponta a necessidade da menina/mulher encontrar um objetivo de vida. “A gente constrói o nosso projeto de vida e as mulheres ficam tão absolutas naquilo que estão fazendo,

Desprincesamento

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Ela nunca vai descansar na luta pela igualdade de gênero. Foto: Amanda Gil.


21 que ela faz bem feito, ela se torna referência, se torna uma grande pesquisadora e aí é possível olhar para ela e dizer ‘é possível ser feliz assumindo um projeto de vida, assumindo outras responsabilidades identitárias”. “Eu comecei por uma coisa que eu gosto muito, que é a leitura”. Apaixonada pelo ato de ler desde quando aprendeu, ela propôs que lessem obras de autoria feminina, como “O Diário de Anne Frank”, “Eu Sou Malala”, “O Quarto de Despejo” e três obras de uma grande escritora daqui de Brasília, Cristiane Sobral. Em seguida, propôs que estudassem a biografias de mulheres como Carolina Maria de Jesus, que no lugar de mulher negra, favelada, semi-alfabetizada, escreveu seu nome na história da literatura brasileira e deu voz a quem nunca era ouvido: os favelados; Irena Sendler, que salvou 2.500 crianças judias do extermínio nazista; Malala, jovem paquistanesa que, por defender o direito das meninas frequentarem a escola, sofreu um atentado terrorista, levou um tiro e sobreviveu por milagre; Maria da Penha; Nise da Silveira, uma das primeiras mulheres a cursar medicina; e mulheres da sua própria comunidade, como a professora Creusa, que se reencontrou com a Gina 34 anos depois. Seguindo o projeto, Gina e seus alunos fizeram uma campanha pelas redes sociais. Eles fizeram um trabalho com a Lei Maria da Penha, conscientizando os alunos sobre a Lei, confeccionaram cartazes com dizeres como “nós dizemos não (destacado em vermelho) a qualquer forma de violência (também destacado) contra a mulher (destacado)”, chamou a comunidade para tirar foto os segurando e publicou nas redes sociais. Depois, eles montaram a Primeira Amostra de Vídeo sobre o Uso Consciente Seguro e Ético das Redes Sociais, onde os alunos produziram vídeos que seriam reproduzidos para os alunos mais novos, para ensiná-los a maneira mais correta de usar as redes sociais. Na última etapa do projeto, então, a professora Gina disse aos alunos: “Vocês conheceram mulheres inspiradoras do mundo, do Brasil e da nossa comunidade. Então, qual é a mulher inspiradora da vida de vocês?” Com essa pergunta, ela conta que seu objetivo era “trabalhar a produção de texto. Eles iriam a campo escolher uma mulher inspiradora, entrevistá-la, gravar a entrevista e transformá-la em um texto” e segundo ela, essa foi a parte mais surpreendente do projeto. “Eles me falava assim: ‘Nossa, professora! Agora que você me falou dessas mulheres, eu só posso dar esse título de mulher inspiradora para a minha mãe, para a minha avó ou para a minha bisavó’”.

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Foi quando Gina percebeu mais uma coisa. Os alunos eram de uma geração que não conversa muito com os pais e familiares para saber sobre a história deles. Quando eles voltavam das entrevistas, eles estavam diferentes, conta a professora. “Eles voltavam com o olho brilhando, o peito estufado, falando ‘professora, a minha mãe é muito mais inspiradora do que pensava!’” De um ela ouviu “descobri que quando a minha mãe era criança, lá na roça, tiraram ela da escola para ajudar a cuidar dos irmãos e ela foi trabalhar como quebradeira de coco. Chegou em Brasília com uma mão na frente e a outra atrás e hoje é empresária” e outra aluna disse: “A minha bisavó ficou viúva com 10 filhos para criar. Trabalhou anos costurando, na máquina de costura, e não perdeu nenhum filho”. Depois da produção de texto, Gina começou a ler cada e foi achando tudo tão maravilhoso, tão rico, tão “precioso”, como ela mesma descreveu, que ela decidiu transformar tudo aquilo em um livro e nesse livro ela deixou registrado para sempre as histórias de todas as mulheres inspiradoras para cada aluno. Deu visibilidade a elas para valorizar a realização feminina e dizer “que é possível ser mulher de outras formas”. Chegou o fim do projeto, mas Gina não imaginava que, na verdade, ele estava só começando. Começaram a vir os resultados do projeto Mulheres Inspiradoras e alguns surpreenderam a professora. “Um deles foi ouvir das mães o quanto o projeto provocou uma reaproximação delas com os filhos. Os meninos me diziam que quando eles chegavam com a carta, porque a gente preparou uma carta bem bonita dizendo ‘você foi escolhida para ser entrevistada, porque você é uma mulher inspiradora’, eles diziam que as mães não acreditavam ser mulher inspiradora”. Foi importante para que elas soubessem a função delas no mundo. A campanha que foi feita nas redes sociais, ganhou uma visibilidade imensa. Alguém viu a movimentação feita pela turma e sugeriu que a Gina inscrevesse o projeto no 4º Prêmio Nacional de Educação e Direitos Humanos. “A gente concorreu com 600 projetos no Brasil inteiro e para a nossa surpresa, nós conquistamos o primeiro lugar”, lembra ela, cheia de orgulho com o primeiro prêmio conquistado. “Levamos para a escola um troféu bonito e R$ 15 mil”. Ela achava que já tinha ido longe demais ganhando esse prêmio. Mas logo depois veio o 8º Prêmio Professores do Brasil, no qual o projeto foi escolhido como a Melhor Experiência Pedagógica do Centro Oeste, que levou a professora a São Paulo para concorrer com outros da mesma profissão. Em seguida veio o Prêmio Extra de Melhor Experiência Pedagógica do país, o 10º Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero (não perca as contas, até agora são quatro prêmios, no total)... E no dia 29 de maio de 2015, uma surpresa no jornal Correio Braziliense. “A gente abre o jornal e tem uma matéria informando que o projeto tinha sido escolhido pelo Mi-

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nistério da Educação para representar o Brasil em um prêmio internacional”. Sim, a Gina iria para Lima, no Peru, com tudo pago pelo MEC para representar o Brasil em um prêmio. Em seguida, o projeto cresceu ainda mais. “Eu apresentei o projeto em um evento chamado Brasília, Cidade Internacional e tinha um cara que fez perguntas super-complexas, no final me deu seu cartão e pediu para que eu o mandasse tudo o que tinha sobre o projeto”. Assim Gina o fez, mas achava que o figurão estava apenas interessado em saber mais sobre o projeto. Novamente, ela estava enganada e se surpreendeu. “Ele era um executivo representante da CAF, um banco com sede na Colômbia, de desenvolvimento social e ela falou que tinha levantado dinheiro para que o projeto chegasse em mais escolas”. Esse grande empurrãozinho fez com que, desde o ano passado, o projeto fosse transformado em programa de governo. “Chegamos a mais de 15 escolas públicas no Distrito Federal, já atingimos mais de 3 mil estudantes, distribuímos mais de 1560 obras de literatura de autoria feminina e, esse ano, com o projeto se fortalecendo como política pública, vamos chegar a mais 15 escolas”. O raio de atuação do projeto aumentou e Gina foi sendo cada vez mais reconhecida por seu trabalho. Um projeto que começou da vontade dela de entender o motivo dos alunos estarem desmotivados a estudar, passou por uma descoberta acerca do que acontecia com o uso das redes sociais, tornou-se uma ação de conscientização e aprendizado dentro de sala de aula e saiu de Ceilândia, ganhou o mundo primeiro para depois ganhar o resto de Brasília e do Brasil. Ela analisa o crescimento do projeto. “Eu acho que o que conta é que ele não é um simulacro. É um projeto que tem muita verdade, que acumula quase 30 anos de uma caminhada. Tem muito sangue, suor e lágrima.

Reencontro com a professora O primeiro reencontro com a tão querida professora aconteceu muito antes do projeto existir. “Eu estava em uma formatura de uma amiga e a sobrinha da professora Creusa, por coincidência, também estava se formando” e já neste primeiro momento, Gina contou a ela o tamanho de sua importância na vida dela. “Conversamos por volta de três horas e eu pude conhecer detalhes muito preciosos da vida dela. Conversamos sobre a sua infância, o fato dela ter sido dada em adoção, sobre como ela migrou do Maranhão para Brasília, como conheceu seu marido…” E uma pergunta que Gina tinha muita vontade de fazer, era “o que fez com que você, apesar de todo meu esforço para ser invisível, ainda assim me percebesse?” E ela o fez e ainda perguntou se a professora a olhava e percebia que ela era uma criança assustada, tímida, danificada pelo racismo… E a resposta da professora foi a mais surpreendente possível: “Eu só via uma criança que queria aprender”.


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Dentro da casa de Gina Gina é casada há 13 anos e tem um filho, que acaba de completar 7 anos, o Luís Guilherme. A tarefa de educar um ser humano é algo muito complicado, sem dúvidas. Mas Gina diz, o que ela tem feito na educação dele está dando certo. “Ele é uma criança super tranquila, maravilhoso, só ouço elogios dele na escola”. Ela explica que não acredita na pedagogia da palmada, que isso não funciona para ela. “Eu acredito que, se as palavras convencem, o exemplo arrasta”. E a questão de gênero também está bem viva na educação dele. “Desde pequeno eu falo para ele que não tem essa de ‘coisa de menino’ e ‘coisa de menina’, que a menina pode brincar com o que ela quiser, com o que ela se sentir feliz, e o menino também. Procuro deixar ele livre para fazer aquilo que ele gosta”.

As coisas no lugar

“Pode parecer loucura, mas eu sou muito grata pela depressão ter vindo, porque ela foi o caminho para eu me ressignificar, me reinventar e rever a minha vida inteira, porque eu observei que tinham questões na minha

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profissão, mas na terapia, eu pude olhar para a minha vida e tentar colocar várias coisas no lugar”. Ela deixa um recado para aquelas pessoas que estão passando pela mesma coisa que ela passou: “Quando ela (a doença) vem, você precisa ter força para fazer essa travessia, porque certamente, depois da depressão, alguma coisa muito boa vai acontecer na sua vida. É preciso ter coragem de passar pela tempestade para você ver o que vai acontecer no dia seguinte”. Todos que conhecem esta mulher, que têm o prazer de ouvir a sua história e suas ideias ficam completamente embasbacados com o que ela representa. Fazem questão de cumprimentá-la e dizer: “Que inspirador!” Quando sua palestra acaba, por exemplo, a vontade de contida, presa dentro de cada um que presencia o momento, finalmente é libertada quando no final ela diz: “Obrigada”. Instantaneamente todos se levantam para aplaudir essa mulher inspirada por tantas outras mulheres e que, agora, cumpre o papel de ser fonte de inspiração para tantas outras, porque outra coisa que ela ouve do público de suas palestras é: “Você que é a mulher inspiradora!”.

Ela com o Prêmio Iberoamericano. Foto: Amanda Gil.


C U I DA D O

A mãe da Estrutural “Quero muito que a minha filha mais velha seja minha sucessora, tudo começou por causa dela”, diz Maria de Jesus, fundadora da creche Alecrim

por Isabela Nóbrega Texto e fotos

Era uma tarde comum para Maria de Jesus Pereira de Souza, 32 anos. Ao amamentar a filha mais nova, de nove meses de vida, ela senta no sofá da creche e me recebe. Os olhos dela eram tão fixos nos meus, que desisti de fazer anotações. Quis ir além do que as palavras diziam. “Foi difícil, mas eu levantei! E não me deixei abater”. Hoje, Maria é responsável pela creche Alecrim na Estrutural e explica como a vida a encaminhou para essa jornada. A piauiense foi trazida pelos pais para Brasília aos nove meses e morou por muito tempo com os nove irmãos. Aos 12 anos, começou a trabalhar no lixão. Dava para sobreviver com o dinheiro que conseguia lá, mas sabia que era pouco e por isso não desistiu de estudar. Morava na cidade Estrutural, em Brasília, e tinha que caminhar uma hora e meia até chegar à escola, que fica no Guará. Na época, não tinha ônibus onde morava e, mesmo que tivesse, o dinheiro era pouco para pagar passagem todos os dias. Maria tinha dois caminhos para escolher: ou estudava e melhoraria de vida, ou ia para o subterrâneo das drogas. “Eu sabia que o fim do caminho das drogas era a morte. Mesmo que aceitasse isso, eu nunca tive jeito para essas coisas”. A estrutura da creche não é a mais adequada para a quantidade de crianças, mas é uma das poucas entidades na cidade Estrutural. Com o fechamento do lixão (em janeiro de 2018) a situação piorou. Aumentou o número de meninos e meninas, principalmente no fim da tarde, quando está na hora da janta. À noite, as voluntárias

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fazem sopa e distribuem pães para que eles não fiquem com fome até o dia seguinte, uma situação bem difícil. Aos 18 anos, casou-se e, aos 19, teve o primeiro filho, Mauricio Eduardo. Maria tem dificuldades para relatar tudo o que aconteceu. Engole a seco as próprias palavras. Ainda escuta a voz dele chamar “mamãe”. Às vezes, ela acorda no meio da noite e pensa que ele está ali no berço, quando na verdade não está desde um ano e seis meses. “Ele morreu porque tinha problema no coração, teve três paradas cardíacas. Até hoje eu não consegui superar isso”. Aos 23 anos, teve a segunda filha, Helen, que também apresentou problemas de cardiopatia e precisou de uma cirurgia com quatro meses de vida. No pós-operatório da filha, Maria teve que deixar o lixão. Começou a ficar em casa e olhar os filhos das vizinhas que iam trabalhar. Foi então que o marido saiu para o trabalho e não voltou mais. Morreu de infarto fulminante.

“NAQUELE MOMENTO ERA EU E EU” Nessa época, Maria já cuidava de 32 crianças e não teve tempo para viver o luto. Ela considera isso uma lembrança boa porque evitou outros problemas. “Foi muito difícil, mas eu levantei e não me deixei abater. Eu tinha um foco, criar minha filha”, destaca. A renda que Maria tinha, vinha da pensão na qual teve direito após a morte do marido. A ex-catadora começou a ter complicações de saúde. Portadora da doença de Chagas (do-


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As crianças fazem as três principais refeições na creche e, ao final do dia, levam comida para casa.

ença normalmente transmitida pelo mosquito Barbeiro), tem tendinite nos dois ombros e diabetes. Devido ao trabalho repetitivo no lixão, perdeu 30% do movimento do braço esquerdo, afirma. Mesmo com todas essas situações, nunca abandonou o trabalho. Ainda que quisesse, ela não conseguiria deixar as crianças. O apego está no olhar de Maria, ela diz que se fortalece a cada dia ao cuidar dos pequenos e fazer a diferença na comunidade. Com o passar do tempo, tudo o que Maria queria era reconstruir a vida. Casou-se com Wenceslau, com quem teve mais duas filhas: Inara, com dois anos de idade, e Aila, de dez meses. “Essa minha nova família me deu a oportunidade de viver e ter forças para continuar na luta”. No início, o marido não quis aceitar o fato de Maria se dedicar integralmente à creche. Com o passar do tempo, compreendeu e percebeu a importância dela na vida das crianças. Atualmente, Wenceslau é um dos maiores colaboradores da associação. Todo o trabalho é voluntário e o material fruto de doações. Quando falta algo, a venda de biscoitinhos caseiros de coco, que derretem na boca, e os bazares geram recursos financeiros. O nome da instituição, Alecrim, se formou a partir da sigla Associação Luciano de Esporte, Cidadania, Recreação, Interação e Motivação. Uma homenagem que Maria fez para o primeiro marido. Hoje, a entidade atende 87 meninas e meninos, e conta com três salas: uma para crianças de três a cinco anos, outra para dormir e um berçário, onde ficam os bebês de qua-

tro meses a dois anos. Há dois banheiros infantis. A cozinha tem um fogão, geladeira, forno e um espaço para armazenar os alimentos. “NUNCA IMAGINEI QUE A MINHA VIDA SERIA ASSIM” Em um sexta-feira, a creche recebeu uma conta de água de R$ 17 mil. “Essa foi a situação que não consegui me controlar, desabei na frente da minha equipe”. Maria fez uma reunião com as voluntárias e falou que desistiria da creche porque não tinha condições de arcar com aquele prejuízo. O combinado foi de que, no início da semana, ao deixar as crianças, os pais fossem avisados do fechamento da instituição. Na segunda-feira seguinte, Maria chegou mais cedo. Antes do horário da entrada, uma mãe bateu no portão. “Ela estava desesperada, gritando. Fui abrir e ela me pediu para dar um leite para uma criança que estava desmaiada. Quando me aproximei, a mãe me falou que a última refeição tinha sido na sexta-feira antes de ir embora da creche”. Ao ouvir esse relato, não há como não se emocionar. Maria disse que, naquele dia, decidiu que podia acontecer o que fosse, mas ela não fecharia a creche de forma alguma. Dividiu o valor em 23 parcelas, que acabam em julho de 2018. Essa dívida se deu porque alguns voluntários ofereciam, como ajuda, o pagamento da conta de água. Mas algumas vezes, não pagaram e não avisaram, o que gerou multas que se acumularam nesse valor.


“O AMOR É PRIMORDIAL” A situação de maior apuro da creche foi o incêndio que ocorreu em 7 de fevereiro deste ano. As voluntárias colocaram o almoço no fogo e, de repente, um barulho alto veio da cozinha. Era como o estouro de uma panela de pressão, mas na verdade foi bem pior: o forno tinha explodido. “Naquele momento as monitoras foram muito profissionais, tiraram todas as crianças brincando para que elas não se assustassem. Eu não tive medo de entrar no local, a minha maior preocupação era saber se todos tinham conseguido sair. Graças a Deus, não houve nenhum ferido, mas o cômodo ficou completamente destruído. Em uma semana, a cozinha foi reconstruída com doações de pessoas que se mobilizaram com a situação, divulgada na mídia, e hoje está melhor do que antes”.

Não é fácil ser mãe, principalmente quando se tem muitos filhos.

“No começo era difícil compreender tamanha dedicação da Maria na creche, mas hoje eu entendo e faço questão de ajudar”. Wenceslau, esposo e voluntário na instituição.

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Na creche, chegam muitos relatos de violência, principalmente de caráter sexual e que Maria é quem toma as providências para a denúncia. “A maioria dos abusos acontecem à noite. E com certeza é um dos fatores mais preocupantes para mim, porque quando estão em casa, eu não estou lá para proteger. O monstro sempre tem cara de anjo! Converso com as mães para tomarem cuidado com quem deixam entrar em casa”. Já houve caso do pai ter abusado da filha e Maria ter que levar a vítima ao Instituto Médico Legal (IML) para realizar exames e denunciar o crime. A comunidade ficou sabendo do caso e não perdoou o pai, que morreu antes da Polícia Civil chegar. A mãe era conivente com a situação e foi presa. A menina teve que ir para abrigo. “Com fé em Deus, ela há de encontrar uma família maravilhosa, que dê para ela o que faltou: amor de verdade”. Ela acredita que “a creche é lotada por falta de instrução. Algumas mães têm apenas 11 anos, são meninas ainda, que não estavam preparadas para lidar com filho”. Maria ajuda no que pode, mas sem recursos fica cada vez mais difícil lidar com os problemas da comunidade. “Quando as crianças estão comigo, eu tento orientar da melhor forma possível, mas o mundo das drogas, do crime, e da violência é muito grande. A parte que mais me dói é ter que enterrar um deles. Já perdi as contas de quantas vezes peguei uma certidão de nascimento e fui fazer o reconhecimento. O pessoal do IML já me conhece”. Maria se sente decepcionada quando pensa que os que foram para o caminho errado poderiam ter outro futuro. No início havia cobrança pessoal, ela se perguntava onde errou com os que se desviaram. Concluiu que a desestruturação familiar influencia na vida das pessoas. A creche Alecrim foi registrada em 28 de dezembro de 2013. A associação é sem fins lucrativos e não recebe ajuda governamental. Todo o serviço é voluntário. Em um levantamento feito por uma das colaboradoras, foram contabilizados 3,5 mil cadastros. Em alguns casos de crianças em situação de vulnerabilidade, a responsável pela entidade tem a guarda provisória ou compartilhada. O fato de ser importante para maior parte da comunidade e por cuidar de crianças, torna o local um dos mais respeitados da cidade. Apesar das dificuldades, a vontade de ajudar a quem precisa é maior que qualquer desafio. “Meu maior sonho é ter uma sede própria para a instituição, o espaço que usamos é alugado por R$ 1,8 mil e todo mês precisamos de campanha para adquirir fundos. Já tentei parar com esse trabalho, mas não consegui. É algo mais forte do que eu. Se eu pudesse, transformaria a creche em abrigo para não ver criança sofrendo em casa à noite”. Maria sonha em um dia fazer faculdade de serviço social. “Vai ser mais uma forma de agradar minha comunidade”.


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ESPERANÇA

a batalha sem fim Eunice Leite e a batalha contra o câncer de mama para ter uma vida normal

por Kelly Wollmann Texto e fotos

Era a “Noite da Biblioteca”. O objetivo era ter leitura de livros e diversão. Acontecia logo ali, em uma escola pública, a EC-304, na Asa Norte. A diretora convidou Eunice Leite, professora da escola, para participar e ver a turma que já não via faz quase dois anos. Ela não deixaria de comparecer mesmo passando por um momento difícil. Nessa noite, a licença médica pelo câncer de mama que enfrentava não iria impedi-la de ver seus alunos. Então, animada, ela senta na frente de todos os estudantes, juntamente com as demais professoras. Logo mais, as apresentações começam. No primeiro momento, ela era irreconhecível. No entanto, as boas lembranças que as crianças guardavam por sua professora os fizeram questionar. “Tia Eunice?”. Os alunos, que tinham tanto carinho por ela, finalmente correram para abraçá-la e matar a saudade. Tia Eunice, agora, estava fisicamente mudada. O forte tratamento de quimioterapia, com SAIBA MAIS COMO O ESPORTE PODE um total de 16 sessões, deixou níPREVENIR E AJUDAR tido o inchaço corporal e fez cair os NO TRATAMENTO DO seus cabelos. A cabeça agora era CÂNCER coberta por lenços que recebia do projeto Lencinho com Carinho, que, apesar dela ser madrinha, sempre teve ajuda e apoio das outras madrinhas, recebendo vários lenços para uso próprio. A surpresa com os alu-

nos foi mágica. No entanto, na volta para a casa teve outra surpresa. Dessa vez, negativa. “Quando eu entrei no carro para ir embora, comecei a chorar. Fui para casa chorando”, ela conta com uma certa melancolia. Por fim, a ficha caiu do quanto a vida havia mudado. A descrição de quem é Eunice Leite Silva, de 43 anos, vai muito além do que “uma pessoa com câncer”. Para a família, ela é companheira, amiga, “uma das pessoas mais guerreiras que eu conheço, muito generosa, e pensa muito mais nos outros do que em si mesma”, a cunhada e enfermeira Nanci Fernandes fala sobre ela, admitindo estar emocionada. Eunice é casada com o sargento Antônio Maria da Silva e mãe do estudante de Direito de 24 anos, Caio Nogueira da Silva, ela é formada em artes plásticas, concursada na Secretaria de Educação do Distrito Federal e lecionava em uma escola pública com séries iniciais até o início de 2013. Vinda de uma família com mais nove irmãos, sendo ela a do meio entre as mulheres, Eunice se mudou da cidade natal, Ipueiras, no Ceará (CE), para Brasília aos dois anos de idade. De todas suas irmãs, ela afirma ser a que menos se abala diante de situações difíceis. O que foi comprovado na jornada contra o câncer. Com um sorriso no rosto, a cunhada dela fala sobre isso. “A gente sabia que ela estava naquele momento difícil, e muitas vezes eu via ela tentando esconder até a própria dor para que a gente não sofresse”.


conta própria. No retorno de 15 dias após a cirurgia, o mastologista afirmou que seria necessária uma segunda operação. “Olha, pelos exames aqui a gente vai precisar fazer outra cirurgia”, disse o médico. Indignada, a professora questionou várias vezes o motivo. “Tem alguma coisa grave? Eu sou uma pessoa esclarecida e quero saber se tem alguma coisa” e, mesmo sem entender o porquê exatamente, confiou no médico, cedeu e enfrentou a segunda cirurgia ainda em julho de 2013. “Não, pode ficar tranquila, não é nada”, era tudo que ele falava.

Uma das formas de Eunice ajudar os outros é participando de grupos de apoio e projetos como o Lencinho com Carinho.

O procedimento da segunda cirurgia foi igual a primeira: a abertura do mamilo e biópsia do cisto. Quase sem tempo para se recuperar e sem licença médica, Eunice não teve outra opção senão voltar a trabalhar. Era época de festa junina e ela trabalhou na barraca de pescaria da festa que a escola realizou. Suas tarefas eram repetitivas e exigiam bastante movimentação de seu corpo. Em pé, torcendo para a criança conseguir pescar o peixe de brinquedo, abaixando para pegar o prêmio e levantando para entregá-lo. E foi assim durante o dia todo. Nesse meio tempo, ao abaixar para pegar a recompensa de uma das crianças, seu mamilo direito começou a sangrar. Não pensou em outra coisa, a não ser reunir as amigas de trabalho em um canto da escola para mostrar o que estava acontecendo. Todas elas foram incisivas e só falavam “volta nesse médico!“.

Sempre que podem, Eunice e seu marido participam de corridas de combate ao câncer. ^

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NEGLIGENCIA MEDICA Aventureira e levando a vida de forma saudável, em suas férias do trabalho de 2013 ela viajou para o Rio de Janeiro com o objetivo de voar de asa delta. Um dia, enquanto colocava seu biquíni para ir à praia, notou a presença de um nódulo indolor no seio direito e estranhou. A preocupação aumentou na semana seguinte, quando ela percebeu que o nódulo começou a crescer. Além disso, o cansaço tomava conta de seu corpo logo de manhã, antes mesmo de realizar tarefas simples. “Isso não é coisa da minha cabeça”, repetia para si mesma. Sabia que algo estava errado. De qualquer forma, ela não fez nada de imediato e resolveu aproveitar as férias o quanto pôde, mesmo desistindo de realizar o seu objetivo principal...

Só que o que ela não esperava era que, ao procurar o médico, não conseguiria encontrá-lo. Eunice explicou tudo que havia acontecido à atendente dele e demonstrou grande preocupação, pois já sabia que algo estava errado, mas tudo que a funcionária disse foi “ele está afastado do trabalho”. Ela não poderia deixar de lado algo que, cada vez mais, se tornava mais sério e perigoso. As amigas sugeriram para ela ir à uma clínica especializada em mama que era referência de qualidade da cidade, e que o pagamento de uma consulta particular valeria a pena. Ao chegar lá, mostrou os exames que tinha em mãos e contou das duas operações realizadas. Por conta das cirurgias, a médica se recusou a atendê-la. Eunice começou a sentir um turbilhão de sentimentos, e, naquele ponto, já imaginava qual poderia ser o diagnóstico. “Pronto, agora tenho certeza que é coisa séria mesmo”, pensava. Com seu jeito destemido de ser, ela foi atrás de médicos competentes e que poderiam ajudá-la, e então descobriu uma equipe de um hospital militar. O mastologista, sem enrolação, fez a análise com a mesma biópsia anterior, evitando outra cirurgia. Feita a comparação, os médicos confirmaram o diagnóstico de câncer e contaram somente para Antônio.

Logo depois que voltou para Brasília, ela foi atrás de um mastologista para descobrir o que era. Ela realizou mamografia e ecografia e entregou o resultado para o médico. Em maio de 2013, ela fez a primeira cirurgia, decisão feita pelo médico para analisar o cisto. O procedimento seria a abertura do mamilo para biópsia que, Na consulta seguinte, o médico abriu o jogo e contou para possibilitaria uma análise melhor. Ela aceitou realizá-la ela sobre o diagnóstico, mas surpreendentemente sua rescom tranquilidade, pois só pensava na saúde. A primeira posta foi apenas “eu já sabia”. Espantados com a resposta de tantas cirurgias que viriam. tranquila e racional, ela explicou: “por todo esse caminho A omissão do médico quanto ao diagnóstico fez com que passei, eu já sabia“. Com a voz firme, ela pergunta “Qual que Eunice descobrisse a doença de forma dedutiva, por o primeiro passo? O que temos que fazer?“. Ela foi diag-

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29 nosticada com um câncer de subcategoria triplo negativo, um tipo de câncer que é considerado o mais agressivo, sem tratamento específico e com maior propensão de retorno porém é possível vencê-lo. Ou seja, ela precisava começar o tratamento o mais rápido possível. ´

FAMILIA Eunice sempre foi unida à família, que mora atualmente em Luziânia, Goiânia (GO). Por receio do sofrimento que sua família sentiria, ela não contou sobre o câncer assim que soube. Mas a família notou que havia algo diferente. “Ela tem mania de esconder as coisas, tem que ficar cutucando. Depois de muito tempo que ela contou”, sua irmã Maria Evanilde falou, enquanto mexia os dedos indicadores, como se estivesse cutucando algo imaginário. Eunice arrisca dizer que a “parte triste” e o melancolismo veio da família, que começaram a ficar mais lastimosos e cuidadosos, enquanto ela sempre se manteve muito animada e com psicológico são. “Não é para chorar”, ela sempre dizia para eles. Até brincava com o marido para ele deixá-la, pois ele não iria querer vê-la careca e debilitada, mas ele se recusava e, conforme o tempo passava, mais ficava ao lado dela. Além disso, o amor que tem pela sua família foi de onde vieram as forças para continuar firme. O filho era sua maior motivação, pois é um desejo enorme de Eunice ver Caio se formar no curso de Direito e começar a carreira profissional. “Eu vou atrás, eu tenho meu filho, eu quero ver meu filho formado ainda. Vamos à luta!”. Ela ainda tinha como motivação conhecer o bebê da irmã Ana Dulce, que estava prestes a nascer. E assim aconteceu. Em setembro de 2013, Eunice foi com Ana para o nascimento do bebê e conta que sempre teve muita conexão com ele. “Ele foi um anjinho sabe?”, ela fala com muito apego e sensibilidade enquanto conta sobre o bebê que se tornou seu afilhado. Sempre que ele fica no colo dela, desde o início, ela conta que ele passava a mão com delicadeza no seu rosto, como se estivesse dizendo que toda aquela situação iria passar. TRATAMENTO Assim que a doença foi, finalmente, descoberta, formou-se uma equipe médica (oncologista, mastologista e cirurgião plástico) para realizar o tratamento de Eunice da melhor forma possível. Vários exames foram feitos e foi decidido que seria necessário fazer uma mastectomia, ou seja, a retirada das mamas. “Se é para fazer, vamos fazer”, ela respondeu aos médicos, sempre otimista, “tira tudo logo, pode tirar as duas”. Ao retirar por completo, os médicos colocaram próteses no lugar das mamas. O que ela não esperava era que, por causa da negligência do primeiro médico e das duas primeiras cirurgias realizadas sem cautela, ela acabou perdendo o mamilo direito e, pior ainda, teve que ser feito uma linfadenectomia, mais conhecida como esvaziamento de axila, o que significava que ela perderia a força muscular do braço direito. Quando Eunice soube da notícia, foi um dos momentos mais tristes duran-

te o processo, pois sabia o quanto sua vida iria mudar. Não seria mais possível tirar a cutícula da unha, tirar sangue ou machucar o braço, e, pior ainda, cuidar das crianças que ela trabalhava, como pegá-las no colo. “Na hora que ele falou que eu ia ter que esvaziar a axila, aí que eu caí em si, porque ele ia mexer com o braço. Eu adoro minha profissão, de cuidar de crianças e tudo mais. E pronto, agora não vou fazer mais nada disso”. Em outubro foi realizada a mastectomia, em novembro foi implantado um cateter perto de sua clavícula esquerda (para não ser necessário furar as veias durante a quimioterapia), e em dezembro a quimioterapia foi iniciada. Ao total foram 16 sessões de quimioterapia. Eunice ficou com o físico muito debilitado logo na primeira. Além de começar o tratamento com doses muito fortes, ela ainda estava se recuperando de uma cirurgia grande e difícil de lidar. Por conta disso, sua rotina acabou se tornando monótona e, para passar o tempo, começou a completar um álbum de fotos que contasse sua trajetória desde que sentiu o nódulo pela primeira vez até a cura. Uma forma de completá-lo era ficar tirando várias fotos sozinhas e com suas irmãs. Assim que o álbum é aberto, é impossível não se comover com a história que é formada pelas fotografias. Entre uma foto e outra, há frases de motivação e carinho, como “eu sou mais forte que o câncer” e mensagens para a família e amigos. O médico informou à Eunice que seu cabelo cairia em 14 dias, por conta das doses fortes que estava tomando, e, ao saber disso, ela começou a cortar o cabelo cada vez mais curto, até seu filho ajudá-la a raspar sua cabeça. Em exatos 14 dias todos os pêlos do seu corpo caíram e ela até brincou que a parte boa era não precisar depilar as pernas, enquanto passava as mãos nas pernas lisas e dava gargalhadas. Foram seis meses de quimioterapia, de dezembro de 2013 até maio de 2014. Os pensamentos de Eunice sempre foram focados na cura, e nunca se vitimizou com perguntas como “porque comigo?” e “mais outra cirurgia?”. A urgência e correria contra o tempo para ser curada não deixava espaço para pensamentos negativos, tanto de sua parte quanto de sua família. A irmã, Maria Evanilde, sonhou que um anjo ia até Eunice, pegava a doença e voltava para o céu, curando-a; e ela diz que isso foi um sinal. Ela ainda diz que, a fé de toda a família, amigos, e, principalmente, da própria Eunice, ajudou muito a alcançar a cura.

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Ao começar a quimioterapia, Eunice recebeu um folheto explicando todos os direitos que tinha, por lei, por ter câncer. Direitos os quais conseguiu apenas um, de comprar um carro com desconto e ficar isenta de pagar o IPVA. Mas ela está correndo atrás, até hoje, de outros até mesmo mais importantes, como a aposentadoria, ou pelo menos a readaptação na escola, dispensando-a de trabalhar dentro de uma sala de aula. Seus anos de luta em busca dos seus direitos resultou em um processo contra o Governo de Brasília (GDF), que espera entrar em andamento na justiça há quatro anos. Isso é o que lhe mais perturba, por ter tantos direitos escritos em um papel, que quando devem ser postos em prática, nada acontece. Em 2015, ela tentou fazer a reconstrução do mamilo, removendo um pequeno pedaço da pele de sua virilha. Porém não deu certo, pois houve rejeição do organismo. Não se deixando abalar e se recusando a desistir, ela marcou uma outra cirurgia para a segunda tentativa da reconstrução. A cirurgia foi feita somente em dezembro de 2017. Dessa vez, com sucesso. Ela conta que foi realizada uma nova técnica, a qual a reconstrução é feita com a própria pele do seio. E, ainda em 2018, ela fará a tatuagem no mamilo, para ficar com a cor original, e não mais da cor da pele dela. LENCINHO COM CARINHO Durante a quimioterapia, um outro passatempo que adquiriu era procurar pessoas e projetos que apoiavam quem tinha câncer, até que ela encontrou um grupo de mulheres, predominantemente idosas, de São Paulo, na qual lançou o projeto Lencinho com Carinho. O projeto consiste em arrecadar o máximo de lencinhos, bordá-los, e doar para aquelas mulheres que estão sem cabelo por conta da quimioterapia para que elas possam usar na cabeça. Uma forma divertida de utilizar a moda a seu favor diante das situações. Com o objetivo de apoiar e ficar perto de quem passava pela mesma situação, Eunice conversou com o grupo do projeto, se tornou amiga e, por fim, foi a primeira madrinha do Lencinho com Carinho em Brasília. Com muito orgulho, ela já apareceu até mesmo em telejornal para divulgar o projeto, o que aumentou a popularidade e expandiu o número de lencinhos e madrinhas do Distrito Federal. Ela arrecada até hoje lenços de todas as cores, formatos e tamanhos, os envia para o grupo bordar e personalizar, depois devolvem à Eunice, que vai aos hospitais para entregar os lenços bordados. Apesar da frequência de ida aos hospitais nunca ter sido muito grande por conta da doença a ter fragilizado, ela se cansa muito rápido. Mas o impacto causado às mulheres que estão no local é sempre satisfatório. Palavras de carinho, como “isso vai passar, é só uma fase”, inspiram fé e motivação em todas as vítimas de câncer, principalmente por Eunice mostrar, literalmente, de corpo e alma, que ela mesma superou a situação, e que foi sim só uma fase. É assim que ela espera que aconteça com todas as pessoas. A LUTA CONTINUA O tipo de câncer que Eunice tem é o mais difícil de lidar, o acompanhamento é rigoroso e exames são feitos periodicamente durante os cinco primeiros anos desde que o diagnóstico. Se após esse período a doença não voltar, o ritmo do acompanhamento diminui e os exames se tornam anuais.

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PARA ENTENDER MAIS: MASTOLOGISTA: Ramo da medicina que estuda a anatomia, a fisiologia e as patologias da mama. SUBCATEGORIAS: Os cânceres de mama foram classificados em quatro subtipos: câncer de mama luminal (A e B), câncer de mama HER2 positivo e câncer de mama triplo negativo. Esses nomes foram dados de acordo com as características das células cancerosas. MASTECTOMIA: Cirurgia de retirada total ou parcial da mama, associada ou não à retirada dos gânglios linfáticos da axila (esvaziamento axilar). ONCOLOGISTA: Especialidade médica que estuda tumores. Fontes: Inca, Dicionário Aurélio e Espaço de Vida

Depois da quimioterapia, ela não teve outro nódulo e estava entusiasmada, pois, finalmente, em 2018 poderia tirar o cateter e receber alta médica. Porém, em uma última bateria de exame, dois nódulos apareceram. Um no útero e outro no pulmão. “Eunice, a gente não vai tirar o cateter agora devido a essas novas informações. Vamos ver e analisar o que é isso na área do pulmão”, informou o oncologista. O ginecologista e o mastologista também informaram que uma outra cirurgia seria feita para a retirada do nódulo no útero e, se necessário, retirar o órgão por completo. Apesar da situação ter desanimado Eunice, principalmente por ter que manter o cateter, ela não perde as esperanças e sua fé não é abalada. “Nunca passou pela minha cabeça que ia dar errado”, ela declara com um sorriso. Sua ideia agora é realizar a cirurgia e remover todos os nódulos, se recuperar e ser uma pessoa saudável. Mais tarde, ela pretende tirar o cateter, se aposentar junto ao seu marido e comprar uma casa. Observar seu afilhado crescer e seu filho ingressar no mercado de trabalho também estão nos planos, além de ajudar cada vez mais mulheres vítimas do câncer, doando lencinhos e distribuindo compaixão através de palavras confortantes para a alma.


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PERSEVERANÇA

POR TRÁS DA MÁSCARA DE ELVIS O aposentado, que venceu a anemia falciforme, foi o primeiro transplantado mais velho do mundo e hoje é um dos líderes pelos direitos de que tem a doença

por Karoliny Lima São 10h30, quarta-feira, um dia de abril de 2018, e o céu está nublado em Brasília. Sentado em uma cadeira de madeira com um dos braços sobre a mesa de jantar, um homem de cabelos pretos com fios grisalhos explica a convivência com uma doença que podia tirar a vida dele a qualquer momento. Com a respiração abafada por uma máscara cirúrgica, Elvis Magalhães de 51 anos de idade, é chaveiro aposentado, escritor de dois livros (um dos quais foi premiado na Bienal de 2014), o fã do Legião Urbana e morador do Guará II no Distrito Federal. Ele é casado há 29 anos com a professora Márcia Cristina com quem teve o filho Gabriel de 28 anos. Desde os dois anos, Elvis conviveu com transfusões de sangue e internações por dores imensuráveis (a mais longa o deixou 2 meses no hospital para tratar uma pneumonia). Tudo isso em decorrência da anemia fal-

ciforme, uma doença que se não tratada pode levar o portador a graves complicações, como o acidente vascular cerebral (AVC), segundo a hematopediatra Silvana Fahel. O próprio Elvis, por conviver diretamente com várias pessoas que têm falciforme, conhece algumas que tiveram derrame cerebral em decorrência da doença. Recuperando-se de um transplante de fígado em decorrência do excesso de ferro no órgão, mas se esforçando para falar o mais alto que podia, seu olhar brilhava ao relembrar momentos de dor e alegria vividos na infância, adolescência e vida adulta. Elvis Magalhães se define como um “milagre improvável da medicina brasileira”. Atualmente, viaja o Brasil e o mundo em conferências médicas a convite do Ministério da Saúde. É um dos fundadores da ABRADFAL, Associação Brasiliense de Pessoas com Doença Falciforme, instituição que luta pela democratização e por melhores condições de tratamento para os portadores da doença no Distrito Federal. Ele resolveu abraçar a causa porque foi um teste para medicina. “Se deu certo para mim, por que não vai dar certo para os demais, hoje a minha bandeira é a falciforme”.

T EMPO DE VIDA

Elvis Magalhães em sua casa, se recuperando do transplante de figado com a máscara branca. Foto: Karoliny Lima.

Interior de Goiás, março de 1966, Maria Policena, quatro meses antes do nascimento de Elvis, enterra a pequena Eliane, aos dois anos de idade, com os sintomas clássicos da Anemia falciforme, a pele esbranquiçada e os olhos amarelados, o mesmo mal que seria diagnosticado no pequeno Elvis. Com pouco mais de um ano de vida, Elvis é diagnosticado com Anemia Falciforme, e a luta que levaria 38 anos para ser vencida, começava com a dura sentença proferida pelo estado de saúde, com duras palavras do médico aos pais de Elvis - o filho não passaria dos cinco anos de vida. De mudança do interior de Goiás, a família busca uma chance de sobrevida para Elvis em Brasília. Apesar de todas as limitações imCONFIRA UMA postas os anos foram se passando e REPORTAGEM ESPECIAL SOBRE A DOENÇA ANEMIA FALCIFORME


a expectativa de vida foi aumentando. O tempo foi um amigo para Elvis, que quando tinha 12 anos de idade, se deu conta que tinha uma doença grave. Ele recorda que a adolescência foi bem difícil entre as muitas idas e vindas ao hospital. A vontade de ter uma adolescência normal, onde pudesse brincar na rua sem preocupações era o que ele mais queria. Mesmo com as limitações que a doença colocava a sua frente, ele não deixava de brincar. “Eu sabia que se eu fosse jogar futebol eu iria pagar o preço depois”. Um simples futebol acabava em uma internação de no mínimo uma semana. Contrariando as “previsões” do fim da sua vida, Elvis casa-se com Márcia. E em uma consulta de rotina, ao noticiar que sua esposa estava grávida, recebeu o pior ultimato que poderia ouvir de uma médica. “Você é louco?! Você quer deixar uma mãe viúva?! Você não vai passar dos 25 anos de idade!”, relembra. Brasília, 18 de junho 1988. A banda Legião Urbana se apresenta na capital, e pela milésima vez, Elvis tinha ido ao HSU (Hospital dos Servidores da União). Enquanto aguardava ser atendido, ele sabia que estava encrencado: tinha uma ferida no tornozelo que precisaria de um curativo profundo, ou até mesmo uma internação. Ele entrou mancando no consultório do médico e de lá, foi direto para a emergência que conhecia muito bem. No outro dia, a médica de plantão propôs um tratamento mais agressivo para fechar a úlcera que já acompanhava Elvis há 2 anos. Para isso deveria seguir internado por tempo indeterminado. “Não tive como contra-argumentar, era necessário o tratamento pois a úlcera além de dolorosa e profunda, apresentava um odor. Seria apenas uma questão de tempo até amputação” relembra. Ainda assim, Elvis não podia abrir mão de ouvir Legião Urbana ao vivo e pediu para médica uma liberação para ir ao show. Após muita insistência, conseguiu permissão para assistir a banda de rock sob algumas condições: deveria ficar na frente do palco e quando o show acabasse ele teria que voltar imediatamente para o hospital.

Elvis e o irmão Elder Magalhães que foi o doador da medula. Foto: Arquivo Pessoal.

irmãos seriam compatíveis num possível transplante de medula óssea. O resultado foi animador, o irmão Elder Magalhães é 100% compatível. Do exame de compatibilidade até as consultas para o possível transplante foram longos seis anos. Maio de 2005, Elvis está no Hospital das Clínicas em Ribeirão Preto, aguardando os exames necessários para autorização médica para o transplante de medula óssea. No consultório, Elvis é alertado pelos médicos que o transplante seria muito arriscado. O excesso de ferro no fígado por causa das muitas transfusões de sangue tinha comprometido o órgão e a quimioterapia poderia levá-lo a óbito. Ele preferiu arriscar a morte do que continuar vivendo como estava, “Onde assino os papéis me responsabilizando pelo transplante?”, relembra Elvis em objeção à orientação da equipe que logo mais acatou a decisão pelo transplante da medula óssea.

Em 1988, o show, tão marcante para história da capital, marcado por conflitos na plateia e entre Renato Russo e o público, foi a última vez que o Legião tocou para os brasilienses. Houve uma badernaço no estádio que se estendeu pelo eixo monumental e várias pessoas ficaram feridas. Mas para Elvis, que ainda teve que lidar com a doença e a dor, o que ficou foi a recordação do sonho de ver sua banda preferida cantar ao vivo. “Foi a melhor noite da minha vida”.

A POSSIBILIDADE DE CURA Hospital Universitário de Brasília, 1998. A anemia falciforme era uma doença até então sem cura, todas as direções apontavam para uma vida de convivência com as dores, com as úlceras e as várias transfusões, até que Elvis é encaminhado pelos médicos Sérgio Mesiano e Jorge Vaz a fazer um exame para verificar se um dos

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Elvis Magalhães, 51 anos, que recebeu um transplante aos 38 anos. Foto: Karoliny Lima.


33 A medula óssea é o órgão responsável pela produção do sangue e seus componentes, as plaquetas, os glóbulos vermelhos e os glóbulos brancos. “No transplante de medula óssea, ocorre a troca da fábrica do sangue. Sai a fábrica ruim e é transplantada outra boa” explica Elvis. Até 2005, os transplantes de medula óssea para a cura da anemia falciforme só tinham sido realizados em uma jovem de 18 anos, em Ribeirão Preto. Elvis foi o transplantado com falciforme mais velho do mundo, aos 38 anos. “Saí de uma condição em que tinha que fazer transfusões a cada quatro dias, fazer curativos diários por causa de úlcera no tornozelo e priapismo (ereção peniana dolorosa involuntária), lamenta. “Imagine passar 38 anos enfrentando essa doença e, de um dia para o outro, sou transplantado e simplesmente passei os primeiros seis meses após o transplante sem acreditar, nunca mais tive crise de dores, nunca mais tive úlcera nem nada”. “É uma vida totalmente diferente e é isso que eu sonho para todos aqueles que portam a doença.”, declara. Nos dias de internações, as palavras de Renato Russo o acompanhavam: ele aproveitava os momentos para ler. A música “Mais uma Vez” do cantor, define sua trajetória de vida “Quem acredita sempre alcança”, cita.

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“É uma vida totalmente diferente e é isso que eu sonho para todos aqueles que portam a doença"

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A DOENÇA Segundo a médica Silvana Fahel, a anemia falciforme é uma doença genética caracterizada pela produção de uma hemoglobina anormal chamada hemoglobina S. “As pessoas que herdam a mutação genética de um dos pais (heterozigotos) têm traço da doença, e aqueles herdam a mutação dos DOIS pais (homozigotos) têm anemia falciforme”. A especialista explica que a anemia falciforme é uma doença crônica, grave, que pode ter o comportamento clínico muito amplo e variável. “A forma como ela se manifesta é bem ampla e varia de paciente para paciente, e muitas vezes também de acordo com a faixa etária”. Alguns dos sintomas da anemia falciforme incluem a anemia crônica, crises de dor, olhos e pele amarelados, e infecções frequentes Recentemente, um grupo de cientistas publicou um estudo que relata que a mutação que originou a anemia falciforme se originou na África, há 7300 anos. Mais comum, mas, não exclusiva, na população negra, estima-se que cerca de 300 mil crianças nasçam, anualmente, com anemia falciforme, no mundo. Cerca de 50 mil pessoas são afetadas pela doença no Brasil. O diagnóstico da anemia falciforme (homozigoto para hemoglobina S) e de outras doenças falciformes (assim chamada quando o indivíduo tem uma dupla heterozigose, ou seja, é heterozigoto para a HbS e para outra hemoglobina anômala) é realizado por meio de um exame de sangue no qual se analisa os tipos e quantidade das hemoglobinas. Atualmente, a doença é diagnosticada no teste do pezinho e o Programa Nacional de Triagem Neonatal foi idealizado para garantir o diagnóstico neonatal e sua confirmação, o acompanhamento médico e tratamento necessários. Na capital Federal os hospitais referência para a doença são o Hospital da Criança de Brasília e o Hospital de Base.

Elvis e esposa Márcia Cristina. Foto: Arquivo Pessoal.


MINHA ESCOLHA

Até que aconteceu comigo

O impacto da decisão de realizar um aborto na vida de uma jovem

POR ANNA RUSSI

“E quando a luz do dia chegar eu vou ter que ir Mas essa noite vou te abraçar bem forte

Porque quando a luz do dia chegar nós estaremos separados” CONFIRA A REALIDADE DO ABORTO CLANDESTINO NO BRASIL

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35 Uma respiração engasgada e ofegante tentava recuperar o fôlego entre uma lágrima e outra. Muitas lágrimas por sinal. Daquelas que inundam o rosto e molham o que tiver pela frente, daquelas que parecem que não vão acabar até que esgotem toda a água que hidrata o corpo, daquelas que quando param libertam algo: o peso, o sentimento. E trazem, finalmente, o alívio. A visão que embaçava a pista e os carros à sua frente ao escutar a melodia composta pelos versos acima seria resultado do sentimento de angústia que as dificuldades de um namoro, que comemorava quatro anos, lhe traziam? Não. D. passou, há seis anos, por um processo abortivo e esse tema veio à tona durante a terapia do bodytalk. Mas ela não imaginava o quanto isso ainda tinha de impacto em sua vida. Alguns dias depois percebeu que, na verdade, o momento que a canção Daylight de Maroon 5, tocada ocasionalmente na rádio dentro do período de sete semanas após aquela sessão significativa, lhe trouxe a “incorporação”, um momento de liberação de toda a energia negativa que D. ainda tinha relacionada com o episódio. O bodytalk é uma terapia que parte do princípio de que o próprio corpo sabe se curar. Em sua última sessão, seu “bodytalker” havia dito que levaria cerca de sete semanas para que acontecesse a incorporação. E assim ocorreu. O resultado desta última sessão lhe trouxe de volta a memória de seis anos atrás. Quando em uma tarde de outono, daquelas em que Brasília começa a ficar fria e dar sinal de que o inverno está para chegar, ela pausou a maratona de filmes do Harry Potter que fazia com a mãe. Foi ao banheiro, pegou os comprimidos de cytotec pelos quais havia pago cerca de R$ 1 mil em uma compra via internet, pela segunda vez, e introduziu na vagina. Voltou para o sofá e continuaram a assistir aos filmes do órfão bruxo que estudava na escola de magia Hogwarts. Após algumas horas teve um pouco de febre, muita cólica e mal-estar, mas como estava deitada, quietinha e com cobertor não teve muito problema. Durante a noite foi ao banheiro e sentiu algo maior sair. Não quis olhar, deu a descarga e pronto, a gravidez que alcançava cerca de 10 semanas acabaria ali. No entanto, seis anos mais tarde, uma de suas sessões de “bodytalk” revelaria que, possivelmente, o aborto que realizou poderia estar mais presente na sua vida do que imaginava. Ela deu início ao tratamento de “bodytalk” após uma série de exames que apontaram que não havia nada de errado com seu corpo fisicamente, embora ela continuasse com enjoos, vômitos e mal-estares. Logo ela, que vem de uma criação católica e estudou em colégio religioso. Logo ela, que achava que ter filho era o seu maior sonho. A menina a qual os avós paternos eram muito cristãos e frequentavam a igreja uma vez por semana. Ela que teve uma criação voltada para

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o catolicismo e cresceu acostumada com o fato de que suas ações, ou pecados e culpas, teriam consequências diante de Deus. A menina que, no primeiro semestre da faculdade, no debate sobre o aborto ficou no grupo que era 100% contra.

“Eu fui criada com uma visão negativa em relação ao aborto. Acreditava que era meio que culpa da falta de responsabilidade das pessoas. Até que aconteceu comigo” D., hoje com 31 anos, se mudou para São Paulo com 18 para fazer faculdade de moda. Lá ela teve um namoro que durou seis anos, mas que era, definido por ela mesma, como um relacionamento tóxico e muito ruim. Antes de sair de Brasília, ela namorou quem ela acreditava ser o amor da sua vida, seu primeiro amor. Apesar de terem terminado, eles continuaram ‘meio enrolados’: perdia o contato, voltava o contato, ficavam, perdia o contato novamente. Após terminar a faculdade, D., mesmo sem querer, voltou para Brasília. Já com 25 anos, começou a trabalhar com o tio, ganhando R$ 600 por mês, e voltou a morar na casa dos pais. Ela reencontrou o ex-namorado por acaso, no entanto, não se relacionaram porque ela manteve o namoro de São Paulo a distância por um tempo. Um mês depois de ter voltado para a capital, D. foi para São Paulo visitar o namorado.

“Ele me tratou como se tivesse me encontrado no dia anterior. Tipo, não me tocou nem nada…” A decepção do reencontro fez com que ela terminasse o relacionamento de São Paulo. De volta a Brasília ela foi atrás do ex-namorado e os dois marcaram um encontro para relembrar os velhos tempos.

“Você está tomando anticoncepcional? ”, perguntou ele. “Não, mas está de boas. Até parece que vai rolar”, respondeu D. “Quer ir na farmácia comprar um remédio? ”, ofereceu o ex-namorado. “Não, nada a ver. Não vai rolar nada”, disse ela com convicção. Essa foi a conversa após a relação sexual com o ex-namorado, que na época ela ainda julgava como o seu grande amor. Na mesma época em que voltou para Brasília, D. começou a ter enjoo quando andava de carro. A mãe dela resolveu levá-la a uma homeopata e a médica passou um remédio de dose única. “Você vai tomar esse remédio e pode ser que os seus sintomas piorem por um tempo, mas depois vai melhorar”, foram as palavras da médica. O remédio que, mal sabia ela, se tornaria um grande álibi. Ela tomou o remédio na sexta-feira e na segunda-feira os sintomas ficaram mais fortes e frequentes: ela começou a vomitar mais vezes, ficar enjo-


ada com cheiro. A menstruação já não vinha há algum tempo pelo problema de saúde. Duas amigas dela, que tiveram filho com 18 anos e tinham passado por uma gravidez surpresa, lhe perguntaram se ela não estava grávida.

“Não, sem a menor chance”, afirmou D.

“Mas tem alguma mínima chance? ”, perguntaram as amigas. “Assim, tem…”, confessou D.

“Vamos fazer o teste? ”, as amigas insistiram. Na hora em que as amigas lhe fizeram essa pergunta ela já sabia qual seria o resultado. O teste da farmácia deu positivo. Fez exames de sangue para confirmar a gravidez, que deram positivo. O desespero veio junto, já que a situação era “totalmente errada”. O ex-namorado, com quem ela havia tido a relação sexual, se afastou, começou a sumir, estava ocupado quando ela chamava ele para sair, mesmo que ainda não soubesse da gravidez.

o que estava acontecendo. Era um acompanhamento médico a distância, por mensagens do celular. Após ficar sabendo que não teve muito sangramento, a médica pediu que D. fosse segunda-feira ao hospital em que ela trabalhava, o hospital da marinha nas quadras 700 da asa sul. Como o hospital da marinha só pode atender membros e seus dependentes, a médica fez um ultrassom às escondidas.

“Sai fugida do trabalho para ir lá fazer. Foi tudo mega escondido”, relatou D. O exame mostrou que não tinha acontecido nada. Teria dado uma raspadinha no útero, apenas. O feto estava ótimo e tudo estava “do jeito que não era para estar”. O desespero de D. aumentou ao saber que na verdade o feto estava bem e continuava ali.

“Quer ouvir o coração? ”, a médica perguntou.

“Não, não quero nem olhar. Não quero ver nada”, respondeu D.

Um dia após descobrir que estava grávida, a avó de D. morreu. No caminho do enterro, acabou sabendo também da gravidez surpresa. Por alguma razão que não soube explicar, ela resolveu compartilhar com uma de suas irmãs mais novas, a irmã do meio, com 22 anos na época.

Em nenhum momento D. tinha sentido uma conexão com o feto. Em nenhum momento tinha se sentido grávida. “Não quis escutar o coração para não tornar mais real. Para mim, eu sabia que estava ali dentro mas acho que você ver e ouvir fica uma coisa… mais real mesmo. Essa é a palavra”.

O ex-namorado com quem teve uma relação sexual tomava um remédio para crises de convulsão, um remédio pesado. Ele começava um novo relacionamento com outra pessoa e não queria ter um filho. “Tínhamos conversado sobre assunto de filhos no dia que ele foi concebido, inclusive. Já sabia que ele não queria”, lembrou ela. Após saber da notícia de que D. estava grávida, ele falou que um amigo médico ajudaria a resolver a situação.

Sem querer, a médica utilizou o ultrassom e ouviu o coração do feto. “Foi a primeira e única vez que eu me senti tipo: tem um ser dentro de mim, que tive algum tipo de conexão”. Como ela estava passando muito mal, com dois, quase três meses de gestação ela emagreceu dois quilos. A barriga não cresceu. E o remédio que tomou para os enjoos e vômitos se tornou o álibi para justificar o mal-estar, causado pela gravidez, para as perguntas que surgiram por parte da mãe. “Obviamente eu não falei com a médica. Mas falei para minha mãe que eu havia ligado e que ela disse que era assim mesmo”, confessou.

“São dois remédios: um para matar o feto e outro para ser aplicado 4 vezes a cada duas horas”, disse o médico. Para não ficar sozinha, D., sua irmã e algumas amigas, que já estavam sabendo, fizeram uma noite da legalização. Se reuniram na casa de uma delas - que morava sozinha -, na noite em que seu filho não fosse estar com ela. Então D. tomou o cytotec, remédio antiácido e antiulceroso inicialmente usado para tratar gastrites e úlceras de estômago, mas que hoje em dia só é encontrado no Brasil em hospitais para ser utilizado como facilitador no parto, em caso de feto sem vida ou para indução do parto. Ela então tomou as doses orais e aplicou as outras na vagina. No entanto, quase não teve sangramento. A irmã de D., que acompanhava tudo, repassava para uma amiga que estava fazendo residência médica, tudo

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Depois de a primeira tentativa de aborto não ter dado certo, D. começou a começou a se sentir julgada pelas pessoas que sabiam da gravidez. Uma de suas amigas dizia que ela tinha que ter a criança de qualquer jeito. A irmã que acompanhava tudo achava que os pais iriam adorar receber um neto.

“Cara, eu quero ter um filho para mim sabe? Não quero ter um filho para os meus pais. Eu estou morando na casa dos meus pais, não estou em um relacionamento, não estou ganhando quase nada… mal dá para me sustentar. E vou ter um filho para os meus pais carregarem? Não! Não vai rolar”


37 Depois ela foi falar com o ex-namorado para avisar que nada tinha acontecido no dia em que ela tentou abortar. Mas ela deixou claro que queria pensar sozinha no que iria fazer. E falou isso para todo mundo. “Eu já sei a opinião de todos vocês, já ouvi. Quero ficar uma semana sem ouvir esse assunto de ninguém. Eu quero pensar por mim! ”, resolveu. Veio o pensamento da culpa católica, de ser um sinal de Deus, de que é para o neném nascer. Um dos momentos mais tensos para D. foi descobrir que não tinha acontecido nada. “Foi o pior de tudo”, definiu. Na mesma noite em que ela decidiu que iria pensar sozinha, ela teve um sonho, o qual não se recorda, mas ao acordar no meio da noite ela só conseguia ter um único pensamento.

“Cara, como que eu vou ter um filho que eu tentei tirar?” Um pensamento psicologicamente pesado. “Por mais que eu tenha o bebê, por mais que eu ame, por mais que possa ser tudo maravilhoso, eu tentei tirar ele. Eu não sei se isso é uma coisa legal para se fazer”, recordou. E foi nesse momento em que ela decidiu que não iria ter a criança. A irmã, formada hoje em psicologia, disse que aceitaria a decisão somente depois de ter certeza de que D. havia realmente pensado em tudo e decidido que era isso que queria. “Na minha cabeça eu entendia, mas eu não conseguia colocar isso para fora”, recordou. A irmã a fez ir a um terapeuta para conversar sobre o assunto. Após consultar o terapeuta, o especialista chegou à conclusão de que ela tinha total consciência do que queria. Ela foi conversar com a médica que era amiga de sua irmã para explicar que não iria ter o bebê e saber qual seria a melhor opção, já que já havia tomado o remédio e estava com medo de tomar novamente e não dar certo de novo. Ao mesmo tempo, o medo de ir em uma clínica fazer um procedimento clandestino e ter problemas depois também a assombrava. Além disso, a logística para achar uma clínica e ir lá, tratar de uma cirurgia em casa sem que os pais soubessem era difícil, apesar de uma de suas amigas ter mencionado uma clínica em Goiânia, onde uma conhecida havia feito o procedimento. Mas essas clínicas mudam de localização e de contato muito rápido.A médica disse que iria pesquisar a respeito para ver qual seria a melhor opção. Alguns dias depois

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lhe retornou e disse que a melhor opção para D. seria o remédio mesmo, porque em uma clínica, por mais bem feito que seja, é um tubo que se enfia no útero para sugar o feto e isso poderia machucar e trazer maiores chances de infertilidade. O remédio seria mais seguro. O jeito que a médica passou de como D. deveria fazer com o remédio foi completamente diferente do que o primeiro médico havia passado. Desta segunda vez, ela deveria somente introduzir os comprimidos na vagina. A dose foi mais forte também. Nesse dia, não houve rolou a noite da legalização na casa de nenhuma amiga. Ela decidiu tomar no dia em que combinou de fazer uma maratona de Harry Potter com a mãe, que era fã. Depois, visitou a médica novamente, fez outro ultrassom e estava tudo ok: o feto tinha saído.


BODYTALK Apesar de ter sido uma decisão muito bem resolvida para D., anos depois do episódio do aborto, um pouco antes de seu sobrinho nascer, ela teve algumas crises de doença, com vômitos e enjoos. Fez vários exames e dava tudo normal, não conseguia descobrir o que era. “Em algum momento eu cheguei a pensar que pudesse ter alguma associação”, confessa. Ela então resolveu começar a fazer a terapia de Bodytalk, uma terapia desenvolvida nos anos 90 pelo australiano Jonh Veltheim que parte do princípio da medicina tradicional chinesa de que o ser humano tem a capacidade inata de equilibrar corpo e mente. A terapia é usada para tratar diversos problemas de saúde combinada com tratamentos convencionais. A abordagem começa com a anamnese, uma entrevista em que o paciente descreve seu histórico de saúde e explica a razão de estar ali. Na sequência, a pessoa se deita ou fica sentada e pelo punho do paciente o terapeuta aciona as respostas do corpo. Neste procedimento o especialista é capaz de vasculhar todos os níveis do complexo corpo-mente. O Bodytalk deduz que o sintoma existe por uma falha de comunicação dos sistemas que compõem o corpo. A sessão se encerra com a técnica de implementação, com toques sutis no topo da cabeça e na altura do coração. Em sua primeira sessão, sua mãe entrou com ela e na hora da entrevista, a consteladora fez diversas perguntas e dentre elas se D. já tinha tido gravidez. E foi no momento em que ela respondeu “já” que sua mãe descobriu sobre a gravidez e o aborto.

“E quantos filhos você tem? ”, perguntou a consteladora “Não, eu não tenho filhos”, respondeu D.

“Não. Você tem filho. Você não tem um filho fisicamente, mas espiritualmente você tem um filho. E esse aborto foi natural? ” “Não”

Nesse momento D. ficou surpresa, mas foi um momento importante e a última incorporação serviu para liberar qualquer energia negativa que tivesse atrelada a situação. Ela poderia ter mentido para a mãe. Mas com 30 anos de idade, ela cansou de guardar o segredo. A mãe de D. nunca fez nenhuma pergunta sobre o assunto após ficar sabendo.

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A bodytalker é consteladora familiar, uma terapeuta que trabalha determinado tema com base nas informações factuais das relações do grupo familiar do cliente. Em sua última crise apareceu que, talvez, seus sintomas estivessem relacionados com o aborto de anos atrás. “Foi estranho porque isso para mim, na minha cabeça, era algo muito bem resolvido”, afirmou. Para não falar que ela não pensa no assunto, em alguns momentos, após a irmã ter tido filho, ela pensa que hoje poderia ter um filho de mais ou menos seis anos. “Mas é algo tipo: nossa que bizarro. Nunca algo tipo: ah, que pena”, frisou. Na sessão em que o aborto apareceu, a constelação foi para pedir perdão, e falar que um dia D. e o feto se encontrariam novamente. “Foi aquela coisa mais voltada para o pensamento religioso. Até percebi nas minhas conversas com a consteladora que ela tem uma coisa de que Deus decide. Eu acho isso algo radical”, descreveu. Ao comentar isso com seu terapeuta, o mesmo que consultou na época em que fez o aborto, ele disse que ela não tem que se sentir culpada porque é como se as almas, dela e do feto, estivessem destinadas a passar por isso. E esse é o pensamento de D. também.

“Eu acho que é isso, eu tinha que passar por isso e tinha que ser assim” Para D., a história toda ajudou a terminar um relacionamento interminável. Depois de tudo, ela e o ex-namorado foram cada um para um canto. “Teve aquela coisa de porra, se é para passar por isso com alguém, que bom que é com você. Ele realmente foi meu primeiro amor e foi alguém em quem eu confiava muito”, contou. Hoje em dia, os sonhos de D. mudaram e aquele, que era um dos mais importantes, que era ter um filho também mudou. Ela acha que o ser humano é doutrinado a construir uma família tradicional: crescer, casar, reproduzir e trabalhar para se sustentar. “Pode ser que um dia isso mude, mas a princípio hoje em dia eu não tenho nenhuma vontade”, diz. Conforme ficou mais velha e depois de ver sua irmã mudar toda a sua vida em função de um filho, a vontade só diminuiu para ela. Depois de ter passado por um aborto, D. começou a ser a favor da legalização do procedimento no Brasil. Ela acha que, se for para o procedimento ocorrer de qualquer forma, é preferível que seja do melhor modo possível, o mais saudável. . “Eu fui muito privilegiada e eu sei disso. Eu pude ter uma médica acompanhando o tempo inteiro. Não tive complicações e não precisei ir a um hospital”, destaca.


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Uma cena que passou por sua cabeça diversas vezes foi como contar para seu futuro companheiro que ela já havia realizado um aborto. “Depois que diz o aborto, eu pensava: cara como que vou falar para o meu futuro marido ou um futuro relacionamento que eu fiz um aborto? Como vai ser isso”. Hoje, D. namora há quatro anos com um de seus melhores amigos. “A gente resolveu completar dez anos de amizade começando a namorar”, conta. O namorado sabe do aborto, já que pouco tempo depois do ocorrido ela contou para ele, em um programa tradicional entre os dois: sair para beber vinho e falar besteiras. “A gente sempre teve um relacionamento de amizade muito só nós dois. Ele já saber é ótimo, assim agora tá de boas”, afirma. D. fala abertamente sobre sua decisão de ter abortado, apesar de não deixar que isso a defina como pessoa. “Acho que é importante para todas nós nos sentirmos à vontade para discutir o tema. Mas não é algo que eu levo no dia a dia comigo”, diz. Para ela, o aborto foi um momento em que a vida lhe chamou atenção e também uma oportunidade para assumir a própria vida.

“Eu sempre deixei as coisas rolarem. Foi um momento de pegar as rédeas da minha vida: dessa vez eu não vou deixar rolar. É minha decisão” *As fotos desta reportagem foram realizadas com uma modelo e são ilustrativas. Fotos: Luca Valério.

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E S TO M I A

UM PASSO DE CADA VEZ Há 5 anos, Guilherme Lucas vive com uma bolsa de ileostomia. Viu na caminhada uma chance de mudança de hábito e retomada da qualidade de vida e autoestima

SAIBA MAIS SOBRE O PRECONCEITO QUE AS PESSOAS ESTOMIZADAS SOFREM

POR Breno Algarte

Receber a notícia que irá usar uma bolsa coletora de excrementos fecais externa ao seu corpo não é fácil para muita gente, mas não foi o caso do empregado público, Guilherme Caetano Lucas, de 45 anos, viu na estomia uma chance de cura. Diagnosticado com retocolite ulcerativa, uma doença inflamatória intestinal, Guilherme foi submetido a uma cirurgia de estomia, que consiste em uma incisão na área abdominal utilizada para expelir fezes numa bolsa. A única solução para parar as crises de ir frequentemente ao banheiro foi a retirada do intestino grosso, local onde a doença estava instalada.

que um grande desafio preocupou o jovem casal: uma gravidez inesperada.

Nascido em Uberaba (MG), filho de um dentista e de uma professora, passou a infância e o começo da adolescência em Patos de Minas (MG), a 430 km de Brasília. Um acontecimento marcante para o jovem foi a separação dos pais quando ele tinha 14 anos. Diante de toda a situação, com 17 anos, teve que ir morar em São Paulo com o pai, para começar a vida adulta e ter mais oportunidades.

Após cinco anos, Guilherme começou a trabalhar como psicólogo, de forma autônoma. Foi uma fase profissionalmente instável, pois não tinha experiência. Ele ainda tinha o agravante de ter que sustentar uma nova família, o estresse e preocupação eram inevitáveis. Ainda assim, no auge da juventude, sem perceber, descuidou da alimentação e dos exercícios físicos, o que afetou a saúde.

De volta à terra natal, após três anos, em Uberaba, conheceu Ana Paula, aos 22 anos, em uma loja de discos onde ele trabalhava. A jovem morava em Boa Vista (RR), mas após a morte do pai, se mudou para Uberaba. Conheceram-se através do primo de Guilherme e se aproximaram pela afinidade musical. Um encontro ao acaso e já se passaram 23 anos, e o relacionamento está cada dia mais forte. Foram dois anos juntos, até

Nota: Neste texto, foi utilizado o termo estomia, palavra de origem grega que significa "abertura", "boca", "orifício” ou "poro diminuto”. Segundo o Dicionário de termos médicos, “as formas estoma («orifício ou poro diminuto»), estomia (formação de um orifício de uma víscera na pele e que pode ser espontânea e adquirida), estomizar (realizar estomia em), e estomizado (que tem um estoma ou pessoa que é portadora de um estoma) afiguram-se mais corretas que as que exibem o- inicial, uma vez que e-, é a vogal que tradicionalmente se junta (prótese) a étimos de origem grega e latina começados por s seguido de consoante: grego skopiá «local de observação”. Contudo, nas associações brasileiras de representação das pessoas com essa deficiência o termo utilizado é ostomia.

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Com a chegada da primeira filha, Vitória, aumentaram as responsabilidades. Ana Paula com 18 anos e Guilherme com 23, ainda no início da graduação em psicologia, sem muita estrutura, iniciaram uma família. Construíram uma casa e, com dificuldades, acabaram se adaptando à situação. Nada foi programado e não havia como fugir. Era tempo de transformações, foram necessárias adaptação e força.


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atendimento. A situação piorou, chegou a evacuar de 15 a 20 vezes por dia, o que levou a uma hemorragia durante uma crise forte. Só assim conseguiu a internação no pronto socorro do Hospital Universitário de Brasília (HUB) em maio de 2013. Iniciados os procedimentos para internação, a equipe de gastroenterologia e de coloproctologista assumiram o caso para fechar uma investigação precisa da doença. Além da falta de recursos do hospital, havia divergência entre os médicos em relação ao diagnóstico e medicação. Fizeram várias tentativas de tratamento e todas fracassaram. A doença se desenvolvia de forma rápida e intensa, e o organismo de Guilherme se debilitava ainda mais. Após 30 dias de internação, em junho, foi diagnosticado com retocolite ulcerativa. Sem sucesso nos tratamentos, foi necessário fazer uma cirurgia para retirar o intestino grosso. Quando foi realizado o último exame para constatar a gravidade da doença, era grave. Guilherme foi operado na emergência e, segundo os médicos, só tinha 10% de chances de vida.

Guilherme caminhando no parque, em Taguatinga. Foto: Camila Gonçalves.

Com um estilo de vida estressante e pouco saudável, os problemas começaram a surgir. Ele conta que “sempre” teve problemas gástricos, devido a questões genéticas. A principal surpresa veio aos 40 anos, quando fez uma viagem para Sacramento (MG), em janeiro de 2013. Sentiu um desconforto no estômago, que poderia ser algo relacionado com a gastrite. Em princípio, não teve grandes preocupações, pois já tinha um histórico da doença. Durante a viagem, surgiram sintomas parecidos com uma dengue. Ao retornar para Brasília, com tratamento em casa, os sintomas diminuíram, mas o desconforto no estômago persistia. Procurou um primeiro atendimento médico com um gastroenterologista (especialista em doenças gástricas e do fígado) amigo de Guilherme, que não identificou nenhuma alteração significativa durante a endoscopia. Por isso, foi encaminhado para o coloproctologista (especialista em doenças do intestino grosso, reto e ânus) para fazer tratamento. O início da medicação começou com antibióticos, exames de sangue e colonoscopia, um exame específico para identificação de doenças no intestino grosso. Os custos desses procedimentos eram bastante onerosos. Nem Guilherme e nem os familiares tinham condições de arcar com a despesa, o que o impediu de continuar com o tratamento. Após explicar a situação ao médico, foi dado um laudo e um encaminhamento para que ele pudesse prosseguir no sistema público de saúde, mas Guilherme não conseguiu

O pós-operatório foi um período difícil. Ele perdeu 36 kg. Estava magro ao extremo e mal falava devido a magnitude da cirurgia. Houve cortes profundos na área abdominal, o que levou a formação de muito pus. Ficou mais 30 dias internado devido ao grande quadro infeccioso que adquiriu dentro do hospital. Foi um período de sofrimento para ele e a família. Quando voltou para casa, houve estranhamento da parte filha, que não sabia da gravidade de seu estado, e de “Chocolate”, o cachorrinho da família que não o reconheceu depois de uma grande perda de peso.

O QUE É UMA ESTOMIA? Uma estomia é uma abertura criada no abdômen através da superfície da pele para a descarga de resíduos do corpo, substituindo o sistema usual de eliminação. O objetivo da estomia é manter um corpo que não possui reto, cólon ou bexiga urinária funcionais. Há um número de diferentes tipos de cirurgia de estomia, os três tipos principais, sendo: colostomia, ileostomia e urostomia (desvio urinário). O cuidado no dia-a-dia e de gestão é diferente para cada tipo. Um estoma pode ser formado como uma medida temporária, como parte de outros procedimentos cirúrgicos, e pode ser revertida depois de várias semanas ou meses. Fonte: Portal São Francisco


NOVOS AMIGOS Ele afirma que o uso da bolsa de estomia não o incomodava porque o importante para ele era “estar vivo”. Porém, o período de adaptação foi lento. Não conseguia fazer a fixação da bolsa na pele, o que causava vazamentos e queimaduras na região. A dificuldade de achar uma prótese adequada ao relevo do seu abdômen era grande. Precisava experimentar diferentes bolsas que obtinha com os profissionais de enfermagem, trocava de técnica, tipo e de placa, mas nada resolvia. Demorou para achar uma adequada à sua situação para viver com qualidade. No dia a dia, passava por constrangimentos. A bolsa se soltava e sujava a roupa. As pessoas, por falta de informação, quando viam, ficavam chocadas, assustadas e com medo. Achavam que ele andava armado de revólver, devido ao volume aparente na camisa, causado pela bolsa. “Eu ficava muito mal porque a bolsa não funcionava. Se ela não funciona, ela descola, suja a sua roupa. Já estive em lugar cheio de gente e a bolsa descolou, me sujou e sujou as pessoas. Você passa esse tipo de vergonha”. Para se recuperar, Guilherme ficou dois anos recluso, sem trabalhar e distante das pessoas, por causa da dificuldade da adaptação A família ajudou a cobrir as despesas, já que a Ana Paula teve que fechar o brechó que tinha em Vicente Pires para cuidar do marido doente.

Diante desses problemas de adaptação, Guilherme procurou a Associação dos Ostomizados, no HUB, para pedir orientação e ajuda. Passou a participar ativamente dos encontros, churrascos e comemorações, fazendo bastante amigos e chegando a ser vice-presidente no final de 2015. Inserido nesse contexto de grupo de apoio e na companhia de pessoas em estados semelhantes, houve uma transformação interna. Via na bolsa a esperança de continuar vivendo. Começou a fazer atividades mais leves, caminhadas e pequenas corridas. E assim, saia de casa e passou a estudar para concurso, para se ocupar. Prestou o da Companhia Elétrica Brasileira e foi aprovado. Assumiu em maio de 2015 o cargo de Assistente Administrativo. Atualmente, Guilherme encontra-se com a doença em situação estável se prepara para o processo de reconstrução do sistema intestinal e para fazer uma reversão do estoma. A família, que atualmente já se acostumou com a bolsa, teme que a reversão possa acarretar a perda de qualidade de vida que Guilherme conquistou. Após tantos processos de adaptação intensos (a separação dos pais, o nascimento da filha e a doença), ele se prepara para um quarto: a vida após reversão do estoma. Um passo de cada vez.

LEGISLAÇÃO APONTA ESTOMIA COMO DEFICIÊNCIA A Lei Federal 5.296, de 2004, caracteriza aos estomizados o amparo dos direitos das pessoas com deficiência. O conceito de uma pessoa estomizada na lei, é aquela que foi submetida a uma intervenção cirúrgica que cria um estoma (abertura, ostio) na parede abdominal, para adaptação de bolsa de coleta; ou seja, realizou um processo cirúrgico que visa à construção de um caminho alternativo e novo na eliminação de fezes para o exterior do corpo humano.

Guilherme leva uma vida saudável. Foto: Camila Gonçalves.

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Em 2009 foi aprovada, pelo Conselho Nacional de Saúde, uma portaria que regulamenta a implantação de serviços de atenção e saúde das pessoas estomizadas em todo o território brasileiro no âmbito do sistema público de saúde, o SUS. Tanto a bolsa coletora e outros materiais são fornecidos pelos hospitais públicos e pelos planos de saúde. No Brasil, 43 associações de estomizados prestam mais informações sobre atendimento e adaptação a essa condição.


43 R E N A S C I M E N TO

O acidente que mudou a vida da jovem Rebecca não foi suficiente para fazê-la desistir de seus sonhos Foto: Arquivo Pessoal.

POR ELISA BORGES

Um dia normal, e ensolarado no centro de Brasília. Uma criança atravessando a rua para chegar à escola quando, de repente, tudo fica escuro. Rebecca Vergara, na época com 12 anos, não imaginava que naquela bela manhã de quarta-feira, em maio de 2011, uma boa parte da sua vida seria afetada por conta de um acidente. Ser atropelada por um carro em alta velocidade deixou um rastro de experiências que contribuíram para a sua caminhada em busca de uma nova vida, literalmente. Na habitual missão de ir pegar um ônibus, Rebecca Vergara atravessou a rua fora da faixa de pedestres às pressas, se desequilibrou e caiu. O semáforo ainda brilhava verde para os carros quando ela sente a pancada na parte esquerda de sua cabeça. Aquela menina de cabelos castanhos e ondulados, com seus 12 anos chegou ao hospital praticamente sem vida e durante 30 dias ficou “fora de órbita”. O estado clínico de quase morte contabilizou 16 dias em coma natural e 14 dias em coma induzido. O atropelamento da jovem, que hoje já tem 20 anos (e bastante certeza das coisas que quer na vida) aconteceu na altura da quadra 508 da Asa Norte, área central de Brasília, em uma das avenidas mais movimentadas, a W3. Tudo decorreu de um fato imprevisível e inevitável, um simples tropeço. Enquanto explica detalhes sobre o acidente, ela vira um copo de cerveja e segura seu violão esperando a minha deixa para que ela volte a tocar. “Tive que fazer uma cirurgia complicada na cabeça. Tiraram uma parte do meu crânio pra colocar na parte de baixo da minha barriga e depois colocar de volta na minha cabeça com titanium”, DESCUBRA COMO OS ACIDENTES DE TRÂNSITO COMPROMETEM VIDAS

Quando Rebecca acordou do coma, veio o choque. Ela havia descoberto que estava tetraplégica. Ficou assim por um mês e meio, e paraplégica por mais dois, tempo que parece pouco, mas que durou uma eternidade para ela. Ali nesse momento, se deu conta de que sua vida havia começado novamente. É nessa parte da história que ela

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Rebecca foi vítima de atropelamento em 2011. Foto: Arquivo Pessoal.

se tornou uma pessoa totalmente diferente. Renasceu. O processo de “auto reconstrução” foi lento e paciente, já que teve que aprender a fazer tudo de novo, como um bebê que acabara de nascer. Falar, andar, escrever e até mesmo pensar, se tornaram grandes desafios. Sob os cuidados do hospital Sarah Kubitschek, ela recebeu atendimento de pedagogos, fisioterapeutas, psicólogos e psiquiatras que a ajudaram em todo o processo de aceitar aquela condição e lutar com aquilo. E assim, depois dos seus três primeiros meses de tratamento intensivo, começou a notar os primeiros resultados positivos. Passou anos sob tratamentos psicológicos junto com o uso de Ritalina e Centralina, além da fisioterapia. Aos poucos, ela começou a mover braços e pernas novamente, e com isso, a esperança de voltar a ter uma vida normal. Educada e bem-humorada, quem olha para Rebecca hoje em dia jamais imagina pelo que passou pois, apesar do seu passado, ela não apresenta traumas ou sequelas perceptíveis, apesar de tê-los. Por causa do impacto do atropelamento, sofreu um traumatismo intracraniano. Esse tipo de traumatismo é caracterizado pelo acúmulo de sangue no cérebro, que pode causar a perda da consciência, coma, paralisia e dificuldade em respirar. Algumas dessas consequências ainda estão presentes na vida da garota, “marcas” as quais ela lida até hoje. Têm algumas sequelas relacionadas à memória e à lógica por exemplo, além de não conseguir mexer os dedos do pé direito e não possui sensibilidade na perna esquerda. Apesar de tudo, ela já sabe conviver com isso. Atual-

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mente (e depois de anos de luta), a jovem estudante de educação física consegue andar, mexer os braços, falar e viver normalmente. Quando perguntei se ela sabia sobre a pessoa que a atropelou, ela não hesita em dizer “Sei sim. Prestou socorro, ofereceu ajuda na recuperação, até porque não foi culpa dele”.

Há dois semestres na faculdade, ela faz questão de dizer que o curso que escolheu tem tudo a ver com ela e com o que viveu. “Sempre gostei de educação física, sempre fui esportista, sempre joguei futsal, apesar de me interessar por todos os esportes. A educação física além de me ajudar, ajuda muitas pessoas que passaram pelo mesmo ou por coisas piores”. Enquanto reparo nos alargadores e piercings de “Bequinha”, comumente chamada assim por seus amigos e familiares, ela solta que quer mudar de penteado. A garota que estudou em colégios considerados “rígidos” na adolescência, depois do acidente, hoje em dia não traz muito dessa seriedade para sua vida. Depois de sair do hospital e conseguir voltar à realidade, ela decidiu experienciar tudo que sempre teve vontade. Adora frequentar bares, andar de skate, viajar e usar as roupas que bem entender. Defende os direitos LGBT’s e em um de seus posts no Instagram dela afirma: “Nada me impede de ser livre”.


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Apaixonada por música, geralmente não tem medo de tocar e soltar a voz por aí. Quem acompanha Rebecca nas redes sociais consegue apreciar seu talento. Vários vídeos de covers e de músicas autorais, além de fotos da menina sorridente que posa com o violão. Em um bar popular da Asa Norte, depois de me contar parte da sua história, ela vira sua cadeira de frente para a mesa vizinha à nossa, onde um grupo de jovens está cantarolando, e começa uma nova música... Malandragem, da Cássia Eller, uma de suas artistas favoritas. Dá para perceber, sem esforços, que para Bequinha, a música não é só uma ferramenta de prazer, mas também de terapia. Toca violão há 14 anos, o que a ajudou muito na recuperação dos movimentos de seus braços e dedos. Além disso, a música também ofereceu ajuda psíquica, já que ela tem o poder de fazer nosso cérebro liberar a dopamina, hormônio que nos dá prazer.

Amante da música, não desgruda de seu violão. Foto: Arquivo Pessoal.

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Mariana, uma de suas amizades de longa data, relembra os tempos gloriosos de descobertas e experiências ao lado de Bequinha, e conta “Ela sempre foi a mesma pessoa, desde o primeiro dia que a conheci. É uma das pessoas mais fortes que conheço, por tudo que ela passou. Sempre admirei muito, tem um talento que não cabe nela e que precisa compartilhar com a gente. Além de amiga, sou fã”. Apesar de todos os procedimentos longos que exigiram paciência de Rebecca e pessoas próximas a ela, por conta dos tratamentos demorados, exames mensais e anuais, e medicação, a garota que passou por momentos de desespero e angústia hoje adora a vida que vive, e agradece o apoio moral das pessoas que ama e dos profissionais que cuidaram de tudo isso. Sonha com uma vida tranquila, viagens e paixões.


I N C L U S ÃO N O E S P O R T E

PEDALADAS MAIS FORTES

Universitário com deficiência visual percorre mais de 40 km do Paranoá com a rosinha, sua bicicleta inseparável

por Victor Jardim Texto e foto

Werveson Silva e a bicicleta Rosinha.

Era início de uma tarde comum. “Um dia” em 1998. Menino de família humilde, Werveson Silva Ferreira, de apenas cinco anos de idade na época, nem imaginava que ao ganhar sua primeira bicicleta, estaria escrevendo as primeiras linhas da história de sua vida. Passado de geração em geração pelos seus irmãos William Ferreira, 31, e Wesley Ferreira, 29, o presente enfim chegou nas mãos de Werveson: a bike era sua. E mesmo com correntes que soltavam e o guidão duro, nada poderia pará-lo. Nem mesmo o problema de visão que viria.

Para ir do Paranoá ao Palácio da Justiça, onde trabalha, o estudante tem bastante chão para enfrentar. São 20 km que separam a casa do jornalista para o seu emprego. Quem o acompanha nesse percurso é a melhor amiga: a “Rosinha”. A mountain bike, emprestada por Ana Carine, 22, sua namorada, é usada como forma de transporte.

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Seja nos 40 km de ida e volta para o trabalho, ou até mesmo nos 50 km que percorre para ir e voltar da faculdade – no fim da Asa Sul –, a “Rosinha” está sempre com Werveson. “Não tenho muitas condições. Por isso, passei a usar a bicicleta como forma de mobilidade há uns dois anos. Claro que também por conta da saúde. Sou um atleta. Mas o custo das passagens acabou sendo um problema, então resolvi usá-la”, contou o jornalista. ~

Adaptação ~

Aos 25 anos, hoje, Weverson é estudante de jornalismo e assessor de comunicação. Morador do Paranoá, leva uma vida simples. Sem condições financeiras para pagar a faculdade, os programas Fies e ProUni lhe deram a oportunidade de estudar e alcançar o estágio no Ministério da Justiça.

“Eu gosto de vê-lo pedalando. Ir para o trabalho, para a faculdade de bicicleta. Isso o deixa feliz, eu gosto muito. Ele diz que fica muito melhor fisicamente e psicologicamente, só é meio perigoso”, relatou Ana Carine.

A adaptação para a atividade, apesar do seu problema de visão, foi fácil. Werveson já estava acostumado com atividades desportivas, pois foi corredor durante a adolescência. Quando mais novo, chegou a participar de provas de resistência e maratonas na cidade. A alimentação sempre foi fundamental. Segundo a mãe, Maria de

CONFIRA O FUNCIONAMENTO DAS CICLOFAIXAS EM BRASÍLIA


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Ciclofaixas A partir do Lago Sul, começam as ciclofaixas. Diferentes de ciclovias, elas são uma faixa da pista que é aproveitada para o uso da bicicleta e tem uma cor diferenciada para destacar. “É legal, é no asfalto, você pega velocidade e tal, só que além de ser um pouco perigoso por conta dos carros, que tiram fino da gente, é também por conta da manutenção. Às vezes é inviável andar pelas ciclofaixas por causa dos buracos, aí temos que andar na rua mesmo”, explicou. Apesar da preocupação, o assessor nunca sofreu um acidente com carro. Inclusive, já vê uma evolução no comportamento de alguns motoristas, principalmente de ônibus. “Motoristas de ônibus estão respeitando mais a gente, pelo menos no meu trajeto. Eles não tiram fino, dão passagem, existe uma relação”, contou. O ministério onde trabalha incentiva o uso de bicicletas, com bicicletários e vestiários. Já na faculdade é diferente. De acordo com o Weverson, tem um lugar pequeno para deixar a bicicleta e um vestiário comunitário. Não há um incentivo. “É importante ter um lugar pra se limpar, para as pessoas que vêm de longe, por conta do suor. E isso é muito difícil ainda”, reclamou.

Jesus, 47, o filho mais novo sempre comeu de tudo. “Como besteira, claro. Mas lá em casa, a gente sempre teve uma alimentação mais tranquila, sem refrigerante, comida enlatada. A gente prefere coisas mais orgânicas, por conta do meu pai. Pizza, hambúrguer: essas coisas só uma vez na semana e olhe lá”, declarou Weverson. O sério problema de saúde surgiu na adolescência. Uma deformação na córnea do olho esquerdo tirou quase 70% da visão. A corrente voltara a cair. Até hoje, às vezes, o problema de visão atrapalha bastante por conta da sensibilidade à luz solar. Porém, isso nunca o impediu de andar na sua bicicleta. “Ás vezes não posso vir (de bicicleta) por conta de conjutivite ou outros problemas no olho e tudo mais. Mas assim, atrapalhar de não enxergar as coisas nunca aconteceu não”, compartilhou. As mulheres da vida de Weverson - sua namorada, Ana Carine, e a mãe Maria de Jesus - se preocupam com a atividade do filho, principalmente por conta dos perigos do trânsito. “É perigoso. Muitas vezes o motorista não respeita o ciclista”, comenta Maria de Jesus. Esse risco não é ignorado por Werveson. No trajeto que faz até o trabalho, passando pelo Paranoá e Lago Sul, ele se preocupa bastante com a barragem. “Se até pra carro tá perigoso lá, imagine para o ciclista?!”.

No ambiente de trabalho, há uma mistura de seriedade, quando existe demanda, com muita descontração e amizade com os companheiros. Uma colega do ministério ainda brincou durante a entrevista, dizendo que se sente “aliviada” por Werveson se dirigir ao trabalho de bicicleta. “Imagina se esse menino viesse de carro, gente? Vindo de bicicleta pelo menos gasta um pouco da energia e azucrina menos a gente”, brincou a jornalista. “O Werveson sempre foi um cara que eu sempre admirei muito. Uma pessoa lúcida, que percebe o mundo em volta dele diferente dos outros. Vejo nele alguém que enxerga a realidade do outro e a sua própria. Vejo nele uma capacidade de transformação do meio muito grande, porque ele é uma pessoa que faz. Tenho admiração pelo homem que ele é e que tenho certeza que vai se tornar”, contou a amiga Aline Aguiar, colega de faculdade. Em cima da bicicleta, Werveson se tornou uma pessoa melhor. Não aos próprios olhos, mas sim nos das pessoas que estão à sua volta. Família, amigos, colegas de trabalho. Depoimentos que comprovam a força de vontade para ser uma pessoa saudável e a completa aceitação do problema no olho. A falta de 70% da visão parece não ser problema.


O P R E S S ÃO

”Pensei que era o fim da minha vida”, conta ao relembrar o ataque sofrido na lanchonete Subway, em Águas Claras.

Conheça a história da transexual que foi agredida por três homens em lanchonete de Brasília

POR maria theodora Texto e fotos

“Depois do que aconteceu, eu pensei que era o fim da minha vida. Que estava com meus dias contados”. Com voz pesada e respiração em pausas, Jessica Oliveira da Silva revive o episódio o qual mulher alguma gostaria de lembrar. Universitária, a jovem de 28 anos comenta o episódio que viveu na lanchonete Subway do Alameda Shopping quando foi atacada por três agressores. Ela leva a vida como várias outras pessoas do Distrito Federal: ouve as músicas que gosta, “pega” um cinema quando pode, passeia no shopping aos domingos, encontra os amigos sempre que possível, “brinca” de Youtuber nas horas vagas - ocupações que definem centenas de milhares de garotas Brasil afora, Jéssica é uma mulher transexual. O nome de batismo, ela omite por nunca ter considerado completamente seu. “Não faz mais parte da minha vida”. Desde a infância, na época que ainda era menino, a jovem sentia o desejo de viver como mulher, mas não sabia nomear esse sentimento. “Foi complicado descobrir a minha transexualidade, eu não tinha conhecimento de nada”. De uma coisa, entretanto, o pequeno moleque, que gostava de brincar de pipa e também de boneca, sabia: será longa e dolorosa a batalha pelo direito de ser mulher. A estrada em busca da identidade de gênero continua sendo demorada, visto que já fazem mais de 9 anos que Jéssica tenta a cirurgia de troca de sexo pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A jovem precisou de cada um desses 3.285 dias para se entender e se aceitar no corpo de mulher. “Só nesses últimos anos tenho me sentido mais à vontade para usar as minhas roupas femininas”. Nunca deixou de ser doloroso. Além de combater o próprio corpo, Jéssica também enfrenta o preconceito - e as feridas deixam marcas inapagáveis. Para sará-las, faz uso de medicamentos calmantes e visitas psiquiátricas, dos quais mostra nas mãos finas as receitas já amassadas.

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49 Nos recreios da escola, nas brincadeiras de rua, nos encontros entre coleguinhas, Jéssica fazia de tudo para ser “apenas mais um dos garotos”, mas a vontade de usar uma voz com tom afeminado e de soltar os trejeitos de menina não passava despercebida “Tinha sempre uma cobrança da postura masculina. Eu tentava imitar, achava que estava enganando alguém”, relembra. No dia primeiro de março de 2018, às 4h04 da manhã, o principal oponente bateu a porta. Vestido de preto, vermelho, casacos de capuz e bonés escuros, o preconceito se escondia por trás da face de três homens armados com pedras. Assim, sem motivos ou razões aparentes, rapazes se tornaram criminosos, e adicionaram Jéssica à estatística de transgênero agredidas: após minutos de pancadas, chutes e apedrejamentos, a universitária provou da realidade do transgênero brasileiro.

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O pai, falecido há mais de 20 anos, deixa boas lembranças na memória da jovem, que encontrou nele um ombro amigo e protetor.“Os amigos do meu pai mexiam comigo e ele me defendia. Mesmo desconfiando de algo, ele dizia que eu ‘era homem’”, conta. “Até alguns anos atrás eu chorava quando lembrava dele”. O desconsolo, entretanto, se mistura com a força de mulher batalhadora, que usa a voz forte para esconder as lágrimas que os olhos teimam em desaguar. “Eu estava muito isolada. Minha família deixa muito a desejar”. Durante o andamento desse perfil, Jéssica fez uma visita à avó Hilda, o simpática aposentada de 74 anos “Tô me sentindo tão bem! Foi um alívio!”, contou logo após o encontro.

Dados da ONG Transgender Europe, organização que visa criar uma rede de organizações pró-trans no mundo inteiro, apontam o Brasil como nação que mais mata pessoas transgênero no mundo, um total de 868 mortes de travestis nos últimos 8 anos. E Jessica, a menina dos olhos doces e cabelos escuros, poderia ser um deles. As filmagens fornecidas pela câmera de segurança da lanchonete Subway em Taguatinga mostram as agressões contra a jovem, detalhes de um ato violento chocam. “Eu procurei a ajuda com muita gente, principalmente pelas redes sociais”. E foi pela Internet que a história de Jessica ganhou uma nova proporção: pela primeira vez no Distrito Federal, uma agressão contra transgênero foi classificada como tentativa de feminicídio. Que fim levaram os agressores? Os três adultos envolvidos confessaram participação durante o depoimento e estão presos. O quarto integrante do grupo tem menos de 18 anos e foi autuado por ato infracional análogo a tentativa de feminicídio. O caso foi encaminhado para a Vara da Infância e Juventude. Mas ele vai além das penas e grades de prisão. Condenada ao ostracismo pela família que não a aceita, a estudante deixa a emoção transparecer ao falar dos irmãos, mãe e tios, que pouco se envolveram nessa triste história. “Eles não estão nem aí. Nem minha irmã, que mora comigo, se importou. Minha mãe me acusou de estar querendo apenas chamar atenção”.

A estudante visita a Decrin com frequência para prestar queixas contra a transfobia.

O apoio que pouco encontra entre os familiares, a formanda acha inspiração nos ícones LGBT+ da cultura brasileira, mais precisamente na “drag queen” maranhense Pabllo Vittar, no filho da cantora Gretchen, Tammy Miranda, e na atriz e comediante Nany People. “Nany revelou num livro que é trans mas que não vai fazer cirurgia. No livro eu guardei uma frase muito especial da mãe dela antes de morrer: Sobreviva às pessoas!”. O livro em questão se trata da autobiografia “Ser Mulher Não É Para Qualquer Um”. Jéssica gosta de pensar no futuro. No Brasil, a expectativa de vida de uma pessoa transexual é de 35 anos. A estudante quer viver até os 100. Certa vez, em uma caminhada pelos arredores do Tagua Park, Jessica conta que encontrou um dançarino, e logo os dois engataram em uma conversa. Ele, solícito, elogiou a moça, enalteceu o bom condicionamento físico da jovem. “Não bebe, não fuma, não usa drogas e ainda faz caminhada… Deve viver até uns 45!” disse o moço. “Eu me assustei, quando fiquei sabendo da média. Fiquei espantada. Não quero só isso. Eu mereço mais”. *As fotos desta reportagem foram realizadas com uma modelo e são ilustrativas.

Quando violentada ou caluniada, Jéssica grava videos para acusar agressores.


“ M O R T E E V I DA ...”

Professor da rede pública transformou espaço no Gama em teatro para ajudar pessoas em situação de risco

Sementes

POR Vinícius Barros Texto e fotos

Um prédio em formato de hexágono, rodeado de um cercado verde. Paredes cobertas por desenhos feitos por grafiteiros destoavam das demais construções que o cercavam no centro da cidade satélite do Gama. Fui recebido por um homem que vestia apenas bermuda e sandálias. Ao me convidar para conhecer o restante do local, ele explica com orgulho planos para um futuro que nem ele próprio sabia se seria possível. Não seria a primeira vez que a palavra “Impossível” passaria pela vida de Valdeci Ribeiro. Nascido e criado no Gama, teve, desde cedo, uma vida muito difícil. Viu de perto amigos morrerem ou serem presos por falta de opção. Provavelmente seu destino seria o mesmo, se não tivesse encontrado a arte em seu caminho. Ele é diretor e co-fundador do Espaço Semente. Um homem que transforma a realidade da comunidade em que vive por meio do teatro. Ele trazia consigo um pequeno pote no qual regava algumas mudas recém-plantadas ao redor do teatro, a segunda casa, como me confessou mais tarde. “Logo esses Ipês irão desenvolver e vou conseguir construir uma área de convivência sob suas sombras”, dizia empolgado sobre o futuro das árvores que começavam a crescer, assim como seu projeto. “O que faço não é para ganhar dinheiro ou fama. Faço isso para ajudar, para devolver um pouco do que a sociedade me ofereceu”, responde prontamente.

Palco e 80 cadeiras Conforme avançava com os relatos de vida, foi me encaminhando para a única entrada do lugar. Com felicidade, me convidou para adentrar no seu refúgio do mundo. Tão logo entrei no espaço, percebi que estava no centro de um aconchegante teatro arena, rodeado de 80 cadeiras de estofado confortável, “Fruto de uma doação do Ministério do Trabalho, porque antes não tínhamos esse conforto”, faz questão de destacar.

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Assim, como quem recebe a visita de um parente distante, tentou me deixar à vontade e pediu para não reparar na bagunça, pois estava à espera de um amigo pedreiro que iria consertar uma falha em um dos azulejos localizados no centro do palco. Logo Valdeci retomou o relato de suas memórias e lembrou com grande ternura dos seus grandes incentivadores. “A vida te mostra diversos caminhos, só depende das suas escolhas, de um ambiente familiar que você tenha. Meu pai e minha mãe sempre foram rígidos


ao palco

PERSONA

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Porém, com um suspiro de quem recobra a consciência da realidade, Valdeci observa que foi obrigado a parar com o teatro por 12 anos, enquanto se dedicava ao sustento de casa. Trabalhava em outra área que nada lembrava a sua paixão. Durante esse período tentou enveredar pelo caminho da arte. Concluiu com muito sacrifício a graduação em artes cênicas. Mas a sensação de que lhe faltava algo estava sempre presente. Foi daí que surgiu um dos maiores sonhos. Com poucas economias, resolveu oferecer aulas de teatro para as crianças do antigo bairro, na periferia do Gama. Procuro saber como foi a recepção do seu trabalho. Valdeci sentencia sem pensar: “a recepção foi uma das melhores, começamos com quase 60 pessoas e no final quando encerrei a montagem do espetáculo, só restavam quatro”. Depois conversando com os alunos que estavam na casa, fiquei sabendo que o grande número de desistências na primeira montagem de “Morte e Vida” não foi considerado um fracasso, e sim, reflexo da exigência e comprometimento solicitado pelo professor. Requisitos esses que são marcas registradas, porém ninguém reclama. Valdeci é comparado como um membro da família. O esforço e a dedicação de Valdeci logo ganharam frutos. Anos depois, com a remontagem da peça de João Cabral, ganhou reconhecimento e seus primeiros prêmios. Mesmo assim, ele relata o preconceito que sofreu e sofre até hoje com seu grupo, mesmo após tanto sucesso. “Somos vistos como marginalizados. Muitos grupos rejeitam parcerias com a gente, falam que o nosso teatro não está no circuito”, lamenta. As apresentações não têm frequência definida. Acontece sempre ao final de cada oficina.

Valdeci recepcionando seus alunos em mais um dia de oficina.

e me ensinaram o caminho correto até chegar no ensino médio, onde eu tive um grande professor chamado Simon de Miranda”, conta. Com entusiasmo, relata que a vida mudou completamente ao ter contato com o teatro ainda no ensino médio, por meio das mãos do seu mentor Simon de Miranda, ao interpretar o texto “Morte e Vida Severina”, obra de João Cabral de Melo Neto. “Foi um divisor, pois foi um grande sucesso, nós percorremos outras escolas com essa peça, dali em diante eu nunca mais parei”, nostalgia-se.

Bastidores Novamente o que parecia “impossível” marcava presença na vida do artista. Contudo, o destino reservava passos maiores. Em um dos corredores de uma faculdade de teatro, onde fazia uma especialização, Valdeci conheceu o seu maior parceiro e apoiador: Ricardo Oliveira. “Eu estava quase concluindo um curso e o Ricardo estava começando. Um dia estávamos no mesmo elevador e ele me cantou. Eu dei um fora nele, mas nascia ali uma grande amizade. O Ricardo trabalha muito com o criativo, eu trabalho mais na ação, então um completa o outro”, recorda-se.


A amizade foi o potencializador que faltava para o projeto alçar vôos mais altos. Após três anos, a loja no subsolo de um prédio comercial no setor sul da cidade já não era suficiente para comportar o projeto do Espaço Semente, como também os sonhos de Valdeci e Ricardo. Começava ali o desafio de encontrar algo tão especial quanto o amor pela arte. Após muita procura, um pequeno prédio abandonado há mais de 16 anos, em uma área considerada perigosa pelas autoridades e população, foi o escolhido pelo grupo. Nada mais simbólico: a construção abrigava anteriormente o antigo Espaço do Artesão, onde artistas locais exibiam e vendiam suas obras, ou seja, ali era um lugar dedicado a arte. Mas a mudança não foi fácil. Valdeci se recorda que novamente passou por apuros e a quantidade de pessoas que apontaram o desejo como “impossível” foi incontável. “É engraçado, porque quando consegui a liberação desse espaço eu chamei todos os meus alunos e apresentei a eles a futura sede do teatro Semente, e todos queriam me bater”, comenta. Valdeci não desanimou, após realizar um empréstimo pessoal de R$ 40 mil e recolher doações de comerciantes e dos próprios alunos, conseguiu reerguer o lugar que antes era inabitável, hostil e que poderia ser confundido com uma obra inacabada, ou com as ruínas da batalha secular entre Sadako Ring e Grudge’s Kayako, em um filme de Koji Shiraishi. Após três meses de trabalho intenso, o Espaço Semente foi reaberto em outubro de 2015. Na estreia Valdeci surpreendeu mais uma vez. Na primeira fila fez questão de colocar os antigos habitantes do lugar, quatro moradores de rua que buscavam refúgio na construção abandonada. Na estreia foi programado a exibição da peça Macunaíma, um clássico do escritor brasileiro Mário de Andrade que conta a história de um menino que logo muito pequeno é abandonado pela mãe na mata brasileira e tenta a todo custo superar as adversidades que aparecem em seu caminho. Pergunto a Valdeci o motivo da escolha, e com o olhar emocionado, vem a resposta: “Quando criei esse espaço, coloquei como premissa a possibilidade de que meus alunos não apenas iriam fazer teatro. Eles iriam se aprofundar na leitura e buscar conhecer todo o contexto social e histórico das obras e autores que trabalhamos aqui dentro. Meu aluno tem a percepção da semiótica das obras trabalhadas. Eu formo um ser crítico. Não formo atores, formo cidadãos”. Utopia ou não, a peça teve repercussão. Nos meses seguintes, o espaço foi bastante frequentado. Os comerciantes comemoraram a ativação do lugar que antes servia de refúgio para marginais. “Aqui era muito perigoso, ninguém passava perto daquele lugar, era tudo abandonado, mas agora dá orgulho de ver”, conta-me empolgado o feirante José Ricardo Marques, que é vendedor de salgados,, que trabalha próximo ao local há mais de 20 anos.

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Mesmo com a repercussão Valdeci ainda mantém um trabalho modesto. O espaço de pouco mais de 80 metros quadrados carece de algumas coisas: desde figurinos, que, em sua grande maioria, são garimpados em brechós da cidade, até aparelhos de ar-condicionado, que serviriam para amenizar o calor produzido pela aglomeração de pessoas no local. Porém ele acredita que tudo tem o tempo e que conseguirá as melhorias com recursos próprios. “Os empresários têm muito preconceito com esse teatro de periferia, teatro feito pela comunidade. Eles só querem patrocinar grupos do Plano Piloto, quando se fala em teatro na periferia do Gama, as pessoas têm receio”, queixa-se. Volto algumas semanas depois ao Espaço Semente para acompanhar o segundo dia de mais uma nova oficina de capacitação de atores. O desafio agora é montar um texto de Guimarães Rosa. Logo na chegada me deparo com um grupo de 24 jovens sentados em um círculo, ao ar-livre, ouvindo atentamente a explicação de Valdeci sobre um trecho da obra “Ator e método”, do professor e diretor de teatro russo radicado no Brasil, Eugênio Kusnet. Já passava das dez horas quando Valdeci anunciou que iria começar os exercícios corporais e de vivência. A partir daquele momento vi um treinamento digno de preparadores de elencos consagrados, como Fátima Toledo e Sérgio Penna. Os alunos são levados ao limite físico e mental, onde sentimentos de confiança, pertencimento e responsabilidade são explorados durante quatro horas. A movimentação intensa chama a atenção de quem passa por perto do pequeno teatro, e é possível ver o olhar de apreensão de cada participante, porém o mentor do grupo justifica o método como uma forma de proporcionar um autoconhecimento aos atores. “Esses garotos vêem aqui como uma forma de fugir de seus problemas, como uma forma de ajuda. Eu só ofereço ferramentas para eles lidarem com suas realidades e descobrirem emoções que eles nem sabiam que existiam”, confessa Valdeci no final da oficina. O treinamento pesado não afugentou os participantes. Ao final da manhã já eram 37 pessoas que voltavam a se sentar sob a sombra de uma árvore para compartilhar os sentimentos vividos naquela manhã. Frases de agradecimento e de comoção se propagaram. Valdeci comprova ali o real motivo para manter o projeto: fazer a diferença na vida dos jovens da comunidade. Apesar da falta de incentivo, vislumbra um futuro grandioso para a companhia Espaço Semente. “Queremos crescer, mas sem perder a nossa essência. Porém sei que aqui em Brasília o nosso teatro sofre com barreiras, então, num futuro próximo, teremos que sair Brasil afora para mostrar o nosso trabalho e tentar ganhar reconhecimento”. O professor chama os aprendizes de atores ao palco, cidadãos em construção diante do espetáculo que é aprender.


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Alunos durante exercĂ­cio corporal proposto pelo Professor Valdeci.


SOLTA A VOZ

DHI RIBEIRO

MÚSICA

E CONTA AS DIFICULDADES DO ARTISTA BRASILEIRO

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A carioca que se radicou em Brasília canta em locais como barzinhos, shows, feijoadas, participações especiais e também em lançamentos de grifes…

POR MÁRCIA TORRES

“Eu vivo para a música, eu vivo com a música, a música é minha vida, eu larguei tudo o que eu fazia só para fazer música” No backstage, enquanto a entrada é anunciada, as luzes são preparadas e os fãs esperam ansiosos na frente do palco com os celulares a postos. Começa o show. A música de abertura é “Milagres do Povo”, de Caetano Veloso. Ela brinca com os fãs à beira do palco e não para de cantar. O repertório anteriormente ensaiado, deixa de existir e a cantora segue os pedidos do público. Nos três shows que a reportagem acompanhou, sempre apareceu uma cantora de sorrisos e interação permanente. Dhi Ribeiro, batizada como Edilza Rosa Ribeiro, tem 52 anos e nasceu em Nilópolis, cidade da baixada fluminense do Rio de Janeiro. Quando tinha 9 meses, mudou com os pais para Salvador (BA). É a filha mais velha de três irmãs. Cantora de samba, a “baianidade” é marca da personalidade e do repertório. Há 20 anos, mudou para Brasília e se considera daqui.

Influência Musical Familiar A música, na sua família, vem do sangue. Seu avô paterno Herondino Joaquim Ribeiro foi um dos fundadores do Bloco Afoxé Filhos de Gandhy, bloco tradicional da Bahia que só tem integrantes homens. As cores azul e branco e os tradicionais colares enfeitam as ruas do carnaval de Salvador desde fevereiro de 1949. O gosto do samba veio das lembranças musicais dos domingos da infância, quando o pai Hélio Ribeiro colocava discos para tocar. “Eu ouvia de tudo. Fundo de quintal, Benito de Paula, Bezerra da Silva, Cartola. Era uma salada muito grande de ritmos. A cultura de rádio e televisão. O samba é minha veia”. ~

Família e Religiao A família é sua inspiração. A avó paterna, Maria de Lourdes Ribeiro era umbandista e mantinha um centro em casa, que semanalmente reunia em média 50 pessoas. A lembrança do dia de Cosme e Damião, comemorado no dia 27 de setembro, permeia a lembrança emotiva da cantora. O caruru é uma das tradições que ela faz questão de seguir. Morou com a avó até os 12 anos, quando ela faleceu precocemente vítima de um infarto. A avó paterna era quem agregava a família, conta sua irmã mais nova Heli Rosa Ribeiro.

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Há cinco anos, a mãe da cantora também foi vítima de um ataque cardíaco e faleceu. Filha mais velha de pais separados, a mãe era merendeira em uma escola e o pai, químico. Após a morte da mãe, Dhi decidiu trazer sua irmã mais nova para perto de si. Mesmo sendo 12 anos mais velha, a irmã conta que ela sempre foi uma mãe em sua vida. Hoje a cantora conta orgulhosa do seu sobrinho e afilhado Enzo.

Modelo e Trio Elétrico A cantora que já foi modelo e professora de técnica em passarela por 11 anos em Salvador, começou a carreira cantando músicas de axé. Ganhou o prêmio de cantora revelação de trio elétrico em 1993. Foi convidada para fazer teste em uma banda de axé, mas não foi aprovada. No mesmo ano, foi convidada para vir ser cantora da banda Trem das Cores em Brasília. A partir de sua vinda para Brasília, começou a se dedicar exclusivamente a música “Aqui eu vim só para ser artista, e aí sim, eu vi como é difícil. Você viver da música. Hoje eu vivo da música com um pouco mais de folga, mas não é tão grande assim”

Brasília

Na época, era cantora de baile. Uma verdadeira crooner comandando sua plateia. Em uma ocasião, tinha um baile importante para fazer mas não tinha roupa adequada. Deitada, se questionando qual seria a solução, olhou para cima e viu a cortina de cetim “Meu Deus, o que é que eu faço? Eu estava deitada, olhando para cima, quando olhei para a parede e disse: É você cortina! Tirei ela da parede, joguei/ ela no chão e fiz um vestido lindo e uma bolsa linda. Ninguém imaginava isso”. Sempre da prioridade ao trabalho pois sabe o quanto é difícil ter uma agenda como as dos dias atuais. “Eu imagino para outros artistas que também não deve ser fácil. No início da carreira, eu pagava para trabalhar. Pagava a banda toda e ficava sem dinheiro. Só com o do combustível. E na semana seguinte ia de novo até dar certo. ” O lado artístico também ajudou na carreira musical. Desenha seus figurinos até hoje. Além de costurar, também sabe pintar em tecido. Conta que a criatividade foi algo que ajudou muito, muitas vezes, ela mesmo ia fazer a decoração do palco. No seu tradicional baile de dia das mães, as mesas estavam enfeitadas com garrafas pintadas de branco com

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Tobias e Luna Observando o público, foi dessa forma que a cantora conheceu o marido Tobias, como ela carinhosamente chama de Bial. Conta que durante os shows começou a reparar no moço que ficava parado ao lado esquerdo do palco. “Um dia, ele me convidou para tomar uma cerveja depois da minha apresentação. Sempre observava ele ali. ” Um dia foi surpreendida com a ligação de um amigo avisando que iria na sua casa acompanhando de um outro amigo. “Estava à vontade. Quando abri a porta, vi o Bial. Bati a porta e saí correndo para me arrumar. Depois de me arrumar, abri novamente a porta. Estava querendo ir embora, querendo desistir, queria voltar para Salvador. Estava tudo muito difícil. E aí conheci ele, me deu outro gás. Quando vi já estávamos vivendo juntos. A Luna chegou dois anos depois. E a vida seguiu e ele está aí comigo para tudo. É um anjo. Ele largou tudo que ele fazia para cuidar de mim. E desde então, já são 20 anos juntos. ” Dessa união, nasceu Luna Vitória, hoje com 18 anos, estudante de farmácia da UNB. Seus olhos brilham contado quando a filha foi aprovada no ENEM.

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Dyrma - A Mae do Coracao ~

No começo da sua carreira, em Brasília, as dificuldades foram muitas. Se mudou para cá por ter sido contratada pela banda Trem das Cores. Depois cantou nas bandas Companhia do Swing e Coisa Nossa. Chegou na cidade solteira, com apenas duas mochilas com todas as suas coisas. Tinha que se manter da música. “Da grana da música, tinha que pagar o transporte, tinha que se preparar, tinha que comprar discos para aprender as músicas”.

flores dentro. “Fazia tudo cedo para que o público não a cantora fazendo a decoração. “ O clima no baile é aconchegante. O público formado por casais, dançavam ao ritmo da cantora e seus convidados.

Mesmo não tendo sua mãe de sangue presente nos dias atuais, a vida lhe presenteou com uma mãe adotiva em Brasília. Emocionada, fala do amor que recebe há 18 anos da “mãemiga” Dyrma. Ela está presente em todos os momentos de sua vida e sempre que pode acompanha a filha adotiva. Em seu tradicional baile em homenagem aos dias da mãe realizado anualmente na escola de samba ARUC no Cruzeiro Velho, a cantora faz questão de dedicar e homenagear suas duas mães. Dona Dyrma, hoje com 81 anos, conheceu a cantora através da filha Daniela, que Dhi Ribeiro deu carona em uma saída de um dos seus shows. Quando a filha da cantora tinha 1 ano e 10 meses, foram numa festa de criança e se reencontraram. Seu filho tinha um estúdio e ela ofereceu para gravar um CD de demonstração. Depois de um mês, dona Dyrma ligou perguntando se o repertório estava pronto e foram gravar. A amizade entre as duas começou a crescer. A mãe adotiva começou a frequentar seus bailes semanalmente. Depois começaram a frequentar a casa uma da outra. Quando Dhi ficou doente, foi ela que cuidou como mãe, já que a de sangue estava longe. A amizade foi crescendo com o tempo, como mãe cuidadosa, dá conselhos também sobre a carreira. Luna até a chama de vó. Os filhos de Dyrma, Daniela e André, se tornaram seus irmãos e o natal da família, é sempre na casa da cantora.


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“Ela é minha mãe mesmo. Os filhos dela são como se fossem meus irmãos. Temos uma união muito bacana. O destino faz coisas que a gente não sabe. Ninguém nunca sabe. A gente não sabe o que vai acontecer amanhã. A vida vai te dando coisas. Eu tenho muitas oportunidades na vida e eu sei abraçar as oportunidades. É importante que a gente saiba aproveitar as oportunidades”.

Itália Em julho de 2001, a cantora foi trabalhar no Circo Lidia Togni na Itália, quando a filha ainda tinha um ano e meio. “Apesar de ter sido um momento difícil mas

necessário para meu aprendizado” Na sua visão, o artista circense é produtor, treinador, coreografo, costureiro. Foi costurando para outros artistas que ela conseguiu juntar o dinheiro para levar sua família, porque a passagem era muito cara. Trabalhava o dia todo no circo fazendo shows e meia noite e meia, horário que acabava seu turno, sentava na máquina de costura até 4 horas da manhã. “Comecei com uma máquina de costura emprestada. Depois comprei minha própria máquina”. Seus olhos marejam quando conta sobre o tempo que ficou distante da filha, quando a menina ainda era pequena. “Foi um tempo de provação. Estava lá na Itália trabalhando e minha filha e meu esposo aqui aguardando a liberação da documentação. Onze meses de muita saudade”. Dhi voltou para o Brasil em 2004.

Com a “mãemiga”, Dhyma, que lhe deu nova vida. Foto: Arquivo Pessoal

Trinca Invoncada Saiu de Brasília contratada por uma banda, que fazia parte o baterista Mangá Vieira, o baixista Emanuel Santos e Evandro Barcelos. “ Uma trinca invocada” Estão juntos na estrada há 20 anos. Prometeu a eles e outros músicos que quando voltasse da sua temporada fora estariam juntos novamente. A cantora conta que não teve um momento em que não chamavam ela para participar de bandas. Foi quando decidiu ir para a Itália para se capitalizar e ter sua própria banda. “Não vai não me chamar não? Não tem mais espaço na banda de baile para mim? Uma negona de quase 1 metro e 90? Então vamos fazer a nossa própria banda. com um diferencial que eu venho do Axé e eu canto samba e as bandas de baile não tem visto esse swing todo então a gente tava arrasando o baile só pegar um monte de festa” conta soltando uma bela gargalhada. Mangá, seu baterista, fala com carinho das histórias do início da carreira. Conta quando levava ela depois do show com crises de bronquite para o hospital. A doença respiratória que poderia ter sido um dos fatores para atrapalhar seu sucesso, foi seu trampolim para vencer e cantar.

Primeiro Disco Acima, a família da cantora Dhi Ribeiro reunida. Foto: Arquivo Pessoal.

Os anos como modelo não são esquecidos. Foto: Arquivo Pessoal.

“É dengoso, é gentil, cavalheiro Elegante demais, tipo assim Muitas flores me traz, como já não se faz. Abre a porta do carro pra mim. Quando desço barraco com ele, debocha Me diz que é de paz “Ai que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”. (Para uso exclusivo da casa)


Seu primeiro CD, chamado Manual da Mulher trouxe sorte em sua carreira. A música Para uso exclusivo da casa, foi tema de dois casais de duas diferentes novelas na televisão. A primeira foi a novela Lado a lado, do casal Celinha (Isabela Garcia) e Guerra (Emílio de Mello) em “Lado a Lado” em 2012. No de ano de 2017, a música foi a trilha sonora na novela “A força do querer”, da autora Gloria Perez, em 2017, do casal Bibi (Juliana Paes) e Rubinho (Emílio Dantas). O personagem de Juliana Paes, retratou a história da bandida Bibi Perigosa, mais conhecida como Fabiana Escobar. Durante 14 anos, a mulher foi casada com o traficante Saulo Silva, o Barão do Pó, de 1996 a 2010. Com a música na trilha sonora da novela, a cantora participou de programas como Jô Soares, Faustão, mas em 2010 a vida lhe deu um susto e trouxe momentos dolorosos. A cantora descobriu um câncer de útero. “Meu carrinho teve que descer a ladeira e estacionar, cuidar da saúde e tal”.

Câncer Em 2010, é surpreendida com o diagnóstico de um câncer de útero. Chamou seu esposo Bial e sua mãe Dyrma e avisou da doença. Por alguns percalços de tratamento, o câncer afetou outros órgãos. A cantora já enfrentou a luta contra um câncer e realizou algumas cirurgias. Em uma delas, teve complicações. Seu médico descobriu um furo bem pequeno que estava causando infecção. Assim que recebeu alta, saiu do hospital direto para seus compromissos profissionais que muitas são firmados com 6 meses até 1 ano de antecedência.

Rotina Diária

Ela relembra com carinho o apoio da escola adventista onde sua filha estudava na época que passou por esse sufoco. Como tinha gasto seu dinheiro com uma cirurgia, ficou complicado bancar os estudos de Luna. Quando a escola soube da situação financeira de Dhi eles resolveram dar à menina uma bolsa integral por um ano. A cantora mantém uma rotina diária para manter seu pique nos shows que duram em média 3 horas. Começa cedo com caminhadas, faz pilates, massagem, acompanhamento fonoaudiólogo para cuidar da sua voz. Faz tudo a pé perto da sua casa. Vai na manicure, na massagista. Ao contrário do que todos seus fãs imaginam, por ter participado do programa The Voice na TV Globo, no time de Carlinhos Brown, teria repentinamente enriquecido. A cantora trabalha diariamente para se manter e o time que trabalha com ela. Sua família trabalha unida em seus shows. Seu marido Tobias a acompanha, ajuda na organização desde o palco até com a montagem e desmontagem de equipamentos. Muitas vezes confundido como segurança da cantora por seus fãs é seu principal apoio e “anjo da guarda”. Sua irmã vende acarajé com seu trailer com sua decoração tipicamente baiana. As fitas da Igreja do Nosso Senhor do Bonfim estão presentes na decoração. Hoje a cantora tem seu próprio selo, e a empresa D.R produções e conta com um trio elétrico que leva o carnaval para as cidades satélites. Sua equipe é formada por 25 pessoas.

Poucos sabiam da sua luta. Só sua família e os amigos mais íntimos. “Voltou a trabalhar depois de sua primeira cirurgia com 12 dias de operada enfaixada. Tinha uma roda de samba em homenagem à cantora Dona Ivone Lara. Contava com a participação de Diogo Nogueira e Jorge Aragão como convidados. Um evento que segundo ela não podia deixar de fazer. Em 2013 foi surpreendida novamente por um tumor. Operou em janeiro. Em fevereiro saiu no seu bloco de carnaval. “Se eu não cantar no carnaval, eu morro. Carnaval é minha vida. Eu sou louca por carnaval”. Saiu costurada do hospital para fazer o carnaval. As pessoas perceberam que tinha emagrecido, então foi no programa de rádio de um amigo que tinha acompanhado sua batalha para contar a história. Sua filha foi a razão para vencer a doença. Na véspera da cirurgia, parou e pensou que precisava vencer por causa da filha, que tinha 13 anos de idade. “Eu posso até não sair dessa mesa hoje de madrugada eu acho que eu tenho que rezar muito por que minha filha precisa de mim. Tinha a vida toda pela frente se eu preciso levantar e sair dançando sambando literalmente”.

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Banda completa no show Leme da Libertação. Foto: Arquivo Pessoal.

E o Show Tem Q ue Ter minar O show vai se encerrando. A cantora, apresenta para seu público sua banda que a acompanha. Ela agradece a presença de todos naquela noite. Guerreira. Mãe. Mulher. Esteio. Família. Amor. Filha. Samba. Música. Estrada que não termina. Sua história de vida é uma verdadeira história de superação. As luzes do palco se apagam e a música se cala naquela noite. Mas sua história de vida continua … e que venham mais 30 anos de muito sucesso…


T R A N S F O R M AÇ ÃO

As dores e os prazeres da rainha Melina

De um lado do espelho está Melina, famosa e adorada. No outro lado está Gabriel, que experimenta solavancos da vida até onde menos imaginava

por tayná FERNANDES Aos 21 anos Gabriel Sims, sob a identidade de Melina Impéria, é uma das drag queens mais famosas de Brasília. Com a agenda cheia em quase todos os fins de semana, ele consegue ganhar R$ 400 por evento. Considerada pelos fãs a realeza da Victoria Haus, uma famosa boate LGBT da cidade, Melina sempre é parada pelo público durante as festas. “É impossível andar com ela na boate, todo mundo para e pede para tirar foto”, testemunha Arthur Nóbrega, amigo da artista. “Acredito que isso se dá muito por conta do amor que ela coloca toda vez que vai se montar”. O reconhecimento do nome Melina Impéria e o carinho dos fãs é resultado de muito amor e esforço. Mas a vida nem sempre é feita de fotos, autógrafos ou de generosidade para Gabriel. Ainda no terceiro ano do ensino médio, aos 17 anos, Matinho, como é chamado pelos amigos, começou a descobrir a sexualidade. Gabriel morava com a mãe, o padrasto e dois irmãos, um mais velho, de 25 anos, e o outro mais novo, de nove. Ele relata que sempre se considerou muito independente. “Minha mãe é enfermeira, então passa muito tempo no hospital e eu tive que aprender a me virar desde os nove anos.” Por ter uma relação tranquila com a mãe, decidiu contar a ela como se sentia sobre a orientação sexual. “De primeira ela pareceu aceitar bem o fato de eu gostar de homens também. Foi depois da conversa com meu padrasto que minha mãe mudou completamente”, relata. Era nesse momento que Gabriel mais sentia falta do pai que perdeu aos 12 anos, em 2009. A família desconfia que a morte tenha ocorrido por causa de um erro médico. Glauco Sims trabalhava com consertos em geral e tinha uma relação muito próxima com o filho. Os médicos da rede pública o tratavam como se tivesse pneumonia, mas o estado de Glauco só piorava. “Meu pai chegou a fugir do hospital para não tomar os remédios”. A família então decidiu procurar um médico particular. CONFIRA A REPORTAGEM COMPLETA SOBRE O MOVIMENTO DRAG QUEEN

Foto: Amina Freitas.

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O pai de Gabriel foi diagnosticado com problemas no coração, que se agravaram por conta dos remédios para pneumonia. No mesmo dia em que foi finalmente diagnosticado, Glauco não resistiu e faleceu aos 36 anos de idade. “No dia em que ele morreu, acho que sentiu o que ia acontecer, já que me chamou no quarto, disse que me amava e que eu nunca mudasse meu jeito de ser. Eu tenho certeza que ele sabia”. Após ter contado em casa sobre a orientação sexual, Gabriel foi proibido, pela própria mãe de manusear utensílios da cozinha. A ele não era permitido utilizar talheres, pratos ou copos. “Ela dizia ter nojo de mim”, conta. Foi impedido também de lavar a própria roupa junto com a dos outros integrantes da casa. O padrasto também não facilitava para o rapaz; “Durante um almoço de família, se passasse na televisão alguma reportagem sobre LGBTs, ele dizia que gay tinha mais é que apanhar para virar homem”. Ainda que fosse colaborativo em casa, já que Gabriel cozinhava, limpava e cuidava do irmão mais novo, ele só ouvia reclamações do padrasto. “Foi aí que realmente parei de fazer as coisas e minha mãe percebeu que ele só queria fazer minha caveira. Eu não aguentava ficar em casa”. Matriculado na escola pública, Gabriel começou a se envolver em atividades extraclasse para passar o dia na escola e evitar voltar para casa. “Até curso de dentista eu fiz, mas gostava mesmo era das aulas de teatro. Era uma vez por semana, né Padu?”, Pergunta ao, agora, colega de apartamento, mas que na época do ensino médio era seu colega de classe. Paulo Eduardo, o Padu, foi testemunha dos abusos verbais que o amigo sofria. Durante a entrevista, todas as vezes em que Gabriel mencionava o padrasto, Padu balançava a cabeça e falava mais para si do que para mim: “Ele era um monstro”. Matinho sempre foi muito palhaço e gostava de alegrar os outros, mas depois que começaram os problemas em casa o rapaz mudou. “A gente viu uma pessoa que era sempre tão feliz, desmoronar”, relata Padu. A única refeição de Gabriel no dia era a oferecida pela escola já que ele não podia comer em casa. “Tinham dias que eu chegava a não comer nada já que a comida na escola era algum prato que eu não gostava, e se eu não gostasse, paciência, não ia ter mais nada para comer naquele dia”. Com o tratamento recebido em casa e a falta de nutrientes, Gabriel passou mal e desmaiou na escola. Foi encaminhado ao Hospital Regional de Taguatinga, o HRT, onde trabalham a mãe, o padrasto e a avó, todos enfermeiros. A única deles que se moveu para ajudá-lo foi sua avó. Depois do atendimento, ela o chamou para conversar e o levou para sua casa. “Na casa dela, ela me deu comida, amor e carinho” conta Gabriel. Após conversarem sobre a situação na casa de Matinho, a avó disse que a filha estava “fazendo tempestade em copo d’água”. E decidiu dar um basta na situação, conversando com a mãe do rapaz. “Eu não sei o que elas falaram nessa conversa, mas minha mãe voltou a falar comigo depois de 6 meses”.

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escoberta do palco

A formatura do ensino médio chegou. Matinho já ganhava o próprio dinheiro como promoter de festas e vendia também bolos no pote com a amiga Walesca Fleury, mas para ele, o negócio não ia tão bem assim. “Para trabalhar com ramo alimentício em casa, fica difícil com mais de uma pessoa. O lucro não é suficiente para dividir”. Por isso, decidiu sair do negócio e começou a trabalhar em um cinema em Taguatinga, o Cinemark no Taguatinga Shopping. A energia do teatro, descoberta na época do ensino médio, ainda estava lá e acumulada. “Eu precisava descarregar aquela energia em alguma coisa” desabafou. E foi aí que ele decidiu se montar pela primeira vez. Em 2015, com a ajuda de Nathalie Guimarães, uma amiga e estudante do 1º ano do ensino médio, Gabriel se maquiou pela primeira vez. “Eu não sabia nada, não sabia nem o que era côncavo”, brincou. Ele conta que juntos fizeram o que sabiam e o que podiam. Mesmo assim o público adorou, parou para tirar foto e elogiar. Desde a primeira montação ele sabia que queria fazer algo diferente das outras drags “Eu não queria fazer uma drag feminina”, frisou. E na noite de 9 de outubro nasceu Melina Impéria. “O nome estava na minha cabeça e o sobrenome procurei em um dicionário de latim”. Na segunda vez que se montou Gabriel homenageou a drag queen Sharon Needles, vencedora da quarta temporada de RuPaul’s Drag Race, um famoso reality show de drag queens. “Eu sempre admirei a Sharon e no momento que ela notou meu trabalho e ainda me elogiou, eu me senti demais”. Em casa, Gabriel mostrou para a mãe fotos da primeira vez em que se montou. “Ela achou muito legal e disse que eu era muito bom. Na segunda vez ela elogiou novamente, mas na terceira ela ficou com o pé atrás”. No primeiro trabalho como drag queen, Melina foi convidada para recepcionar o público na porta de uma boate e recebeu um cachê de R$ 100. “Eu me senti muito mal, era um monte de drag feminina, de cabelão, roupa cara e eu lá toda palhaça. As pessoas me olhavam torto e não queriam tirar foto comigo, por eu ser muito caricata”. Na mesma noite, a artista participou de um concurso na boate, a vencedora ganharia um show solo. Melina conta que a roupa usada na apresentação custou apenas R$ 8 e foi feita por ela, mas que a empolgação para se apresentar já não era mais a mesma. “Eu já estava desanimada por causa do que aconteceu na porta. Mas quando subi ao palco dei tudo de mim, porque é isso que eu amo fazer”. O esforço foi recompensado, o público vibrou com a apresentação e transformou Melina na vencedora do concurso. “O pessoal me jogava dinheiro, acho que fui a primeira drag queen em Brasília a receber gorjeta durante uma performance, mas eu sou míope e não enxergava”, brincou. No final da performance, Melina venceu o concurso e ainda recebeu R$ 16 em notas de 2. A responsável pela escolha da campeã foi Raja, vencedora da terceira temporada de RuPaul’s Drag Race.


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Melina durante o concurso em que foi campeã com um figurino que custou apenas R$ 8. Foto: Dávini Ribeiro.

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“Eu consegui vencer com um look de R$ 8, enquanto as outras meninas estavam super produzidas e até mesmo com mais de uma roupa”

A situação em casa por conta da revelação de Gabriel tinha ficado mais calma, mas a paixão dele pela arte drag foi um novo empecilho na relação da família com o rapaz. Até que chegou o momento crítico na vida de Matinho. “Minha mãe disse que estava na hora de eu procurar um lugar para ficar. E em três dias eu estava com tudo pronto para sair de casa”. A maior preocupação de Gabriel ao deixar a casa de sua família era o irmão mais novo, recém diagnosticado com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). “Ele precisava de ajuda para estudar e quem ajudava era eu. Queria ter certeza que depois que eu saísse ele não ficaria desamparado”. Depois de ter expulsado o filho de casa, a mãe se arrependeu, pediu desculpas e disse que a situação tinha fugido do controle dela. “Eu disse para ela que não tinha do que se desculpar, ela fez as próprias escolhas, preferiu um homem ao seu próprio filho”. O padrasto também mudou. “Ele se desculpou e passou a ter um novo comportamento comigo”. Procurada pela reportagem, a família decidiu não se pronunciar. Mas para Gabriel, hoje, a mãe é uma figura importante na vida dele. “Minha mãe é o meu bebê mais lindo e a maior apoiadora da minha arte”, afirma. O novo lar de Gabriel era uma república comandada por Larice Pacheco, 22 anos, autônoma e também parte da comunidade LGBT. Eles se conheceram por conta de uma amiga em comum, que soube da vaga no apartamento. Larice conta que teve receio no momento em que soube que Gabriel precisava de um lugar para ficar. “Nos encontramos uma vez em uma boate e achei que ele não tinha ido com a minha cara. Além disso eu tinha acabado de ter experiências ruins com outros moradores”, comentou. Mas assim que Gabriel chegou, ficou nítido que tudo seria diferente. “A primeira coisa que ele me disse foi que, se íamos dividir um apartamento, estaríamos juntos em tudo e que eu podia contar com ele para qualquer coisa”, completou. Matinho encontrou em Larice uma nova forma de família. “Eu considero ela uma irmã”, declarou. A moça também se sentiu acolhida por ele. “O Matinho me ajuda muito com a minha depressão”, relatou. Cerca de três meses depois, o amigo da época de ensino médio, o Padu, foi morar na mesma república, indicado por Gabriel. “Nós que moramos aqui somos como uma família”, afirmou.

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Melina em sua roupa intitulada “Baphomet”, a mesma usada no show em que foi reconhecida por Leona Luna, a drag queen que admirava. Foto: Fernando Cysneiros para o projeto “The Drag Series”.

Melina agora integrava a festa de drag queens mais famosa da cidade, e por ser nova no meio, era natural que a artista admirasse alguém já consolidado. “Eu adorava uma drag chamada Leona Luna, ela era o rosto da festa, queria de todo jeito que ela me notasse, mas ela não gostava de mim”. Melina considera que Leona nunca estava satisfeita com a montação que a artista fazia. “Uma vez pedi uma foto para ela, e ela disse que só tiraria foto comigo quando eu melhorasse”. Foi durante uma apresentação que Melina foi reconhecida por quem tanto admirava. Com sua “montação Baphomet”, a artista apresentou a música Alive, da cantora Sia e ao descer do palco encontrou Leona. “Eu encontrei com ela no meio da multidão e ela disse que me devia uma foto. Eu quase caí para trás”. A festa estava tão movimentada que a foto ficou para depois, mas o depois nunca veio. Leona perdeu a luta contra a pneumonia aos 23 anos e faleceu, deixando a foto tão sonhada por Melina, para um outro palco. “Por isso a roupa de Baphomet é tão importante para mim, foi o momento que a pessoa que eu admirava me notou”.


Conciliar o trabalho no cinema, atendendo na bilheteria ou cuidado da pipoca, durante o dia, e as apresentações como Melina a noite, começaram a fazer mal para Gabriel, que perdeu até mesmo viagens de trabalho como drag. “Eu trabalhava no cinema porque sentia que precisava daquilo, era a minha segurança financeira, mas eu detestava”. O ambiente de trabalho o deixou doente. “O ar-condicionado era muito forte, parecia que a Elsa estava cantando Let It Go dentro da bilheteria”. Durante um mês, Gabriel precisou ir ao hospital duas vezes por semana, já que seu corpo apresentava resistência aos remédios e o tratamento não surtia efeito. Esse foi o estopim para ele largar o emprego que tanto odiava. “Estava me fazendo mal física e psicologicamente, por isso decidi sair e focar na minha arte, no que eu amo”. E deu certo, cerca de três meses após sair do emprego, Gabriel conseguiu faturar em dois eventos como Melina, mais do que ganhava no cinema. “É preciso ter foco para conseguir viver de fazer drag”, ressaltou.

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Para Gabriel, a arte que ele pratica é única. “Em Brasília ninguém faz o que eu faço com maquiagem”, afirma. Mas entende que o mercado da cidade não favorece as artistas. Gabriel explica que leva seu trabalho muito a sério, sempre que é convidado para participar de algum evento coloca no papel todos os gastos que vai ter e dessa forma define de quanto será seu cachê. “Não costumo cobrar menos de R$ 200, porque gasto muito com a caracterização”. Em contrapartida, outras artistas da cidade não pensam da mesma forma. “É complicado eu cobrar R$ 200 e outras meninas aceitarem como pagamento uma garrafa de bebida por exemplo, não dá, isso desvaloriza muito o nosso trabalho”. Ele ainda ressalta que os dois lados precisam se comprometer. “As meninas que fazem drag precisam entender que é um trabalho, é a nossa arte e não dá pra aceitar qualquer coisa como pagamento”. Os interessados em contratar uma artista também precisam fazer sua parte. “Quem contrata nosso trabalho precisa entender que aquilo custa dinheiro e energia. E que precisamos do nosso pagamento tanto para evoluir como artista quanto para pagar as contas”. Gabriel também toma cuidado para não sujar a imagem das drag queens quando está caracterizada. “Eu não performo usando drogas ou bêbado”, garante. Para o artista, é importante diferenciar Gabriel de Melina. “Eu começo a me sentir a Melina quando inicio o processo de maquiagem e escondo todas as expressões do Gabriel”. No início foi bem difícil aprender todo o procedimento da maquiagem, mas atualmente Gabriel afirma que consegue se transformar em quem ele quiser. “Toda drag queen aprende que as sobrancelhas são irmãs não-gêmeas, menos as minhas que são perfeitas”, brincou. É visível o quanpara Gabriel. A passa desa sua

to Melina é importante dedicação à sua arte não percebida para os que estão volta. “A Melina é a liberdade dele, é o sonho. Ele é 100% feliz sendo ela”, afirma Padu. Larice relata que Melina é a forma que Gabriel encontrou para se expressar. “As músicas das apresentações seguem o estado de espírito dele, quando ele performa uma música triste é porque ele está triste”. Ser Melina Impéria mudou a vida de Gabriel, ela o ajudou com a auto estima e também a se auto descobrir. “Ela me ensinou a me amar, ser a Melina e trabalhar com a arte drag é o meu sonho”. Gabriel continua construindo a própria história, Melina ainda vai travar muitas batalhas na ascensão de seu império. Mas, enquanto isso, o tempo é curto, o público anseia e o palco a espera. Foto: Amina Freitas.

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M O N TAÇ ÃO

A vontade de fazer o que gosta fez o estudante se tornar centro das atenções no palco como drag queen

POR victória kortbawi QUER SABER MAIS SOBRE DRAG QUEEN? ACESSE A NOSSA MATÉRIA ONLINE

A drag Cassandra agita as noite do DF. Foto: Arquivo Pessoal.

Alívio. Nenhuma outra palavra pode descrever melhor a sensação de poder tirar os saltos depois de ficar mais 4 horas em pé dançando, com um sorriso de orelha a orelha, cumprimentando todos os convidados. Tem que ter paciência com algumas pessoas que exageram na bebida, sorrir para as fotos é essencial. Hora de tirar a maquiagem. Primeiro, os cílios postiços, em seguida a aplicação do demaquilante em um algodão para remover todo o resíduo da base e do blush. Tirar a sombra é um das partes mais difíceis, é preciso cuidado para não machucar o olho. Lenço umedecido ajuda bastante e lavar o rosto com sabão é importante. Por último... a peruca. Entrou no banheiro como a drag queen Cassandra Morgan, dançarina, hoster e apresentadora de festas e saiu como Gabriel Paulin, estudante de artes cênicas, amante da arte e dançarino. Meu primeiro encontro com Paulin foi na Universidade de Brasília, onde estuda. Ele usava uma camiseta e bermuda e me recebeu no bloco de Artes Cênicas. Parecia ansioso com a entrevista. Fomos até o lado de fora e sentamos num banco próximo à concha acústica. 14h horas. O sol começava a baixar. Ele cruzou as pernas, colocou as mãos por cima com a coluna bem ereta e começamos a conversar. O interesse do estudante pelo mundo drag começou há um ano, na aula de maquiagem e figurino. A professora Cynthya Carla, conhecida como mãe drag, foi uma das grandes inspirações para Paulin, já que segundo ele, tudo

começou “sem querer”. “Quando fiz essa disciplina eu comecei a entender um pouco de maquiagem, ai eu pensei ‘Ai que legal! Maquiagem! Gostei!’. Entrei de férias e eu não queria parar de ficar me maquiando, porque a maquiagem é um treino”. Apesar de assistir o reality show Rupaul’s Drag Race religiosamente - e gostar apenas das brasileiras - Paulin nunca teve a pretensão de ser drag queen. Com seus 21 anos e ainda morando com a mãe, é amante das festas e faz delas um costume nos seus finais de semana em madrugadas a fio. Em uma dessas farras, um amigo comentou que Gabriel deveria se vestir de drag pois achava que daria muito certo. “Fiz essa montação toda, coloquei aquelas perucas de carnaval, passei a maquiagem da minha mãe e fui pra boate. Eu tava horrorosa, ridícula, com sapato horrivel, hor -rí-vel , mas fui”. Mesmo não gostando muito do que viu no espelho, ele me conta que quando chegou na boate teve um sentimento totalmente diferente do que esperava, segundo ele foi uma coisa “mágica”. Fala com orgulho que se sentiu a mulher mais linda e poderosa do mundo. Para ele, as drags queens são “pouco apreciadas” em Brasília. Raramente recebem cachê e quando recebem, é pouco e acabam ganhando “privilégios” como levar um acompanhante para o evento e o direito a open bar, o que não é muito útil já que essas artistas não costumam beber em festas. “O retorno financeiro é ruim, quando recebemos nosso cachê, mal dá pra cobrir os gastos com os figurinos”, conta o estudante.


Rotina Quando o termo drag queen aparece, poucas pessoas lembram que todos esses artistas têm uma vida normal, como a de qualquer outra pessoa. Gabriel não é diferente. Acorda, prepara pão e leite com nescau, se arruma e pega o famoso “baú” (ônibus) até a rodoviária. Seria bom sentar, mas o seu destino está perto. O próximo passo é espera na fila para pegar o segundo baú do dia, para a faculdade. Na universidade, ele segue para a primeira aula. Paulin é monitor de ‘prática de montagem’, onde organiza, faz chamada e ajuda a professora. Meio dia e quarenta e cinco bate aquela fome e segue para o Restaurante Universitário (R.U.), ou come uma marmita em algum lugar mais calmo. Depois, segue para o prédio da faculdade e tira uma soneca antes de pegar o terceiro baú do dia em direção ao prédio de Educação Física, do outro lado do campus, para aula de Trampolim. Terminada esta primeira parte do seu dia, está na hora de voltar para o prédio de Artes Cênicas. Agora ele é monitor na aula que teve grande influência na sua vida: maquiagem e figurino. “Ajudo a professora, todo dia é uma maquiagem diferente, fico auxiliando os outros alunos desesperados, porque o povo sofre naquela aula”, ele ri. Nove horas, hora de correr pro último ônibus do dia. Chega em casa cansado, prepara sua janta, toma banho e vai dormir. Segundo Paulin, aquele foi um dia até tranquilo, não teve reunião do centro acadêmico de Artes Cênicas, o qual é presidente, não teve ensaio da drag e nem teve que passar horas na biblioteca estudando para as provas. Sábado, cinco da tarde, ele chega na casa da avó no Guará 2 para começar a se arrumar. Escolhe a roupa, os sapatos, a maquiagem e a peruca. À noite, quase quatro horas mais tarde, o estudante de artes cênicas da UnB tem uma apresentação marcada no Minas Tênis Clube. O tema da festa é anos 1980. A avó de Paulin, Dona Maria, é uma senhora calma, bem estilo vovó de novela. Quando cheguei ela perguntou se eu estava com fome e ofereceu todo o menu da casa. Pessoas mais velhas não estão acostumadas com drag queens ou LGBTs, e muitas vezes não têm tolerância, mas a avó de Paulin é bem diferente. O apoio Gabriel é estudante de artes cênicas na UnB. Foto: Arquivo Pessoal.

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Com suas perfomances, Cassandra chama atenção por onde passa. Foto: Arquivo Pessoal.

que ela oferece ao neto é uma coisa rara de se ver, inclusive a lingerie que ele usou em uma das apresentações foi presente dela. Enquanto Gabriel se arrumava, ela passava pelo banheiro sempre fazendo comentários como “Não vai esquecer a base ...Esse batom ficaria melhor em você. …Acho que sua mãe levou o corretivo, você tá linda.” Segundo Paulin ter o apoio da família significa tudo para ele “Família é a nossa base, se eles nos apoiam nas nossas decisões é mais um motivo pra continuar seguindo o que a gente quer.” A relação com o pai é diferente, apesar de morar do outro lado da rua de onde Paulin se monta, ele é “neutro” sobre o assunto “ Ele nunca comentou nada, sei que ele não gosta, mas também não enche o saco. Não moramos juntos”, comenta o estudante.

Montação

Ele começa prendendo o cabelo e limpando o rosto, em seguida passa uma base para esconder um pouco a barba, contorna o rosto com um tom mais escuro no alto da testa, abaixo das maçãs e laterais do nariz, para “afinar” o rosto. Durante todo o processo da maquiagem, o estudante se olha no espelho com a mão na cintura prestando bastante atenção em cada detalhe, se ficou bom ele manda um “beijinho”, se ele não gostou respira profundamente e esbraveja “Ah, não. Vou me atrasar”. Depois da maquiagem era hora de colocar a roupa, um collant verde e rosa com detalhes amarelos, a peruca loira, e pronto. Não era mais Gabriel Paulin, estudante de artes cênicas da UnB, era Cassandra Morgan com o look todo preparado e pronta para a festa. Anda pela casa como se estivesse desfilando na passarela da Victoria’s Secret, cantando I Feel You Tonight da artista G.E.M e relembrando a coreografia que seria feita mais tarde. O caminho para a boate é animado, quando liguei o carro já pensando em colocar uma Britney Spears ou Lady Gaga, começou a tocar sertanejo e pensei que ele não iria gostar, não poderia estar mais errada. Olhei no espelho e foi a primeira vez que vi uma drag curtindo um modão de roça, falando de cachaça e a famosa “sofrência”. Na boate era bem nítido que, ali ,se apresentando, não era o estudante diário de Artes Cênicas, o rapaz que chega a pegar 4 ônibus por dia, acordar cedo pra aula e ter que esperar quase 1 hora na fila do R.U para almoçar. Era Cassandra a Drag Queen de Brasília. Um salto por dia.


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E S P E TÁC U LO

o circo está na cidade! Um perfil sobre a artista circense, Erika Mesquita, 38 anos, que juntamente com a família leva o Circo Rebote e apresentações individuais para o Brasil e o mundo

POR Nathália Caeiro Texto e fotos

“Respeitável público, deixe que cada um exercite a arte que conhece. Recebam com aplausos o Circo Rebote!”, anuncia o apresentador. O rufar dos tambores ao fundo ritmam o coração das crianças e adultos que aguardam ansiosamente sentados nas 50 cadeiras brancas de plástico, imersas no cheiro de fritura que emana da pastelaria. Atentas, mal piscam. Samambaia Norte recebe mensalmente o Sarau Complexo, que em sua 104º edição aconteceu no centro da Praça do Zé do Pastel, e passou a ser o palco principal para a arte circense. O rosto pintado de branco e os narizes de vermelho, as sobrancelhas expressivas marcadas com tinta preta, ressaltavam o largo sorriso no rosto de Erika Mesquita e o Marido Atawalpa Coelho. Ao palhaço está permitido se permitir, reconhecer e se refazer. Ser a graça das próprias desgraças, rir e fazer sorrir. “Uma caricatura de si, um exagero”, assim Erika, ou palhaça Berinjela, descreve a arte do circo. Ali começa mais uma apresentação, a sexta da semana. Aos 38 anos, Erika Mesquita reencontra a criança que lhe cabe, em cada apresentação. Em 2001 conheceu o companheiro Atawalpa Coelho, ele já era circense e ela do teatro. “Me apaixonei por ele e pelo circo”, juntos construíram a Companhia Circo Rebote, que desde 2004

levam alegria para diversos países, comunidades e já se apresentou em todas as regiões brasileiras. As acrobacias deixam o público maravilhado, por breves minutos me perco por entre as luzes, as caretas e piruetas no ar. Tudo se parece com brincadeiras, ou sonhos. As crianças extasiadas e boquiabertas parecem não acreditar no que está diante deles, seriam pássaros, super heróis, ou tudo não passara de um efêmero devaneio. Na música Tempo e Artista, do cantor e compositor, Chico Buarque, um trecho diz “No anfiteatro, sob o céu de estrelas, um concerto eu imagino. Onde, num relance, o tempo alcance a glória. E o artista, o infinito”, naquela noite o principal holofote era a lua, que mesmo tímida por trás de algumas nuvens, cuidava de iluminar aquela praça composta por alguns brinquedos enferrujados e a pasteCONFIRA UMA REPORTAGEM SOBRE A laria do Seu Zé. Dançando por entre o público, o casal de palhaços não foge da mira dos olhares vívidos das crianças e adultos. E ao fim da apresentação, o suor se mistura com as lágrimas e a gratidão é mútua. O retorno do

PROFISSÃO CIRCENSE NO DISTRITO FEDERAL


público é imediato, risadas, aplausos, lágrimas e gritos insistentes que pediam “De novo, de novo, de novo!”, a cortina vermelha se fechou mas o show não acabou. Me aproximo da parte de trás do palco com menos de um metro de altura, decorado com tecidos floridos, e me deparo com o casal brincando com uma criança que estava em uma cadeira de rodas, sem qualquer regalia ou exigência. Um simples número de malabarismo se torna o bastante para aquela criança esquecer, mesmo que por alguns instantes, a sua dor. A mãe ainda mais emocionada chora ao ver as gargalhadas da filha. Após a apresentação, ficam apenas os dois atrás das cortinas, ainda não repararam a minha presença ali e prefiro me manter invisível. Eles se abraçam e os olhos estão cheios de lágrimas, ali está a maior recompensa para ambos, o carinho do público.

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O quão irônico me parecia aquela cena. Ali eu soube que as lágrimas de um palhaço são o sintoma mais inusitado que o riso pode proporcionar. “Amo meu trabalho, tocar as pessoas e trocar com as pessoas. O riso, cura a todos, artistas e público”, relatava Erika, enquanto enxugava as lagrimas e tirava a tinta do rosto.

As palhaças Madame Froda e Marmota, Beringela (Erika) realiza o espetáculo: Palhaças Tri Legais.

O nariz vermelho: entre o improviso e o espetáculo “O nariz vermelho é a menor máscara do mundo”, disse Erika. Uma máscara que não esconde, e sim revela. Ali o artista está exposto, vulnerável e todas as suas dores, fracassos, alegrias e medos. A vida no circo tem suas quedas, mas o importante é fazer o show continuar. “Estamos sempre nos inscrevendo em editais e desenvolvendo projetos culturais, com isso temos sempre apoio e patrocínio dos organizadores”. Toda a família de Erika está envolvida com o circo. Os filhos Iacy Coello e Ariam Coello, 16 e 3 anos, respectivamente, cresceram nesse universo, entre palhaços, artistas e viajando por festivais. Seguem os passos dos pais, brincando com malabares, cambalhotas e narizes vermelhos. Em 2017, a família fez uma circulação pela Região Centro-Oeste levando o espetáculo “Columpio e Tome Sua Poltrona”, por cidades do Goiás e Mato Grosso. Viajaram de Kombi, montando uma estrutura de aéreos com 7m de altura. Em uma das cidades, Nova Xavantina (MT), chegaram a apresentar na beira do Rio das Almas, para um imenso público com famílias indígenas na plateia. Ali eles alegraram até as almas que por ali repousavam. “Foi lindo e emocionante, acho incrível chegarmos a estas comunidades com nosso trabalho”, afirma Erika.

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Erika Mesquita apresenta no SESC Paulo Autran, em Taguatinga Norte.

A artista garante que, por trás de todo trabalho, existe muito esforço. O palhaço, por si só, é a sombra do homem. A irreverência e toda a sua maestria, revela um estado de espírito. No segundo dia de apresentação, em que estive presente, o ambiente parecia um pouco mais estruturado. Um teatro no Sesc de Taguatinga Norte com poltronas, iluminação especial, palco e sonorização. Antes de entrar, de fato, no local da apresentação, uma sala serena com algumas poltronas, acomoda o público. Ao menos


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15 pessoas aguardam o início do espetáculo, a classificação indicativa é para 16 anos. Já são 20h, o dia chuvoso pode ter afastado o público. “Entrem, entrem! Já podem se acomodar!”, um senhor de aproximadamente 60 anos, gesticula na porta lateral do teatro. Os óculos caídos sobre o nariz, um sorriso no rosto e o cabelo grisalho são a porta de entrada para o espetáculo das “Palhaças Tri legais”. Dessa vez, o público já não era infantil. Erika, Tina Carvalho e Ana Luiza Bellacosta formam a apresentação “Mulher do Mundo”. Com alguns números de dança descompassados, caras e bocas, as palhaças Berinjela, Madame Froda e Marmota conquistam o carisma do público. Dentre muitas apresentações, a engolidora de facas, palhaça Marmota, foi a que mais impressionou. Afinal, a mágica do circo pode ser explicada? O que faz com que pessoas com mais de 20 anos se emocionem e se impressionem com àquelas palhaçadas? Acontece que o circo desperta o melhor de nós, as crianças que na correria do dia-a-dia ficam adormecidas, imersas em responsabilidades e obrigações. Quase todas as noites a família faz espetáculos de mais de uma hora. Só neste ano o circo já realizou 45 apresentações, e possuem uma extensa agenda de festivais para os próximos meses. A força da arte circense está no público, em cada gargalhada ou lágrima nascida da emoção. “Se ganharmos ao menos um sorriso, todo esforço vale a pena”, garante Erika. Assim como na história de Peter Pan e Sininho, a trupe aposta que enquanto uma pessoa acreditar, a magia vai existir.

O casal de palhaços entretêm o público com instrumentos musicais.

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M A L A B A R E S DA V I DA

Picadeiro no meio da estrada A rua é o ofício do artista circense que saiu do Pará para viver na capital

POR LAURA DE OLIVEIRA

Sábado à tarde. Um sol escaldante de aproximadamente 30ºC. Via Epia (Estrada Parque Indústria e Abastecimento). Carros apressados. Semáforo vermelho. Espera para uns, oportunidade para outros. Cezar Augusto Nascimento Anunciação, paraense de 29 anos de idade, munido de facas, bola, malabares, tochas de fogo e uma quantidade de querosene, que auxilia em suas pirofagias, faz suas apresentações entre dois e três minutos. Ele é um artista circense, que aproveita a oportunidade para mostrar a sua arte e ganhar a vida em cima da faixa de pedestre. Calçava chuteiras, calção preto e blusa roxa, que prestava homenagem ao jogador de futebol Neymar. Cabelo estilizado e customizado. Topete, pele negra e olhos atentos. Para ouvi-lo, é preciso ir para longe dos ruídos e sons dos motores, a voz era enérgica e entusiasmada. Nascido em Belém (PA), veio de uma comunidade desassistida e sempre teve convicção do que queria para o futuro. Com oito anos de idade, pediu aos pais para o inscreverem em uma Escola de Circo. Foi então que começou a praticar a arte.

ABRE E FECHA

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Cezar realiza apresentações em semáforos da Epia, próximo à entrada do Cruzeiro Novo ou próximo a semáforos do Gilberto Salomão, no Lago Sul. Se apresenta em locais de acordo com suas possibilidades. Morador de São Sebastião, a 30 km do local de trabalho, em Brasília, costuma ganhar em um dia de apresentações R$ 25. “Primeiramente, o que eu ganho, não é porque quero enriquecer, tenho o rei na barriga, por ter vários conhecimentos, mas é Deus quem me abençoa. É R$ 30, R$ 20 ou vem uma cesta básica. Uma roupa, um calçado, sendo de coração. Eu agradeço”, afirma. Procura fazer tudo com cautela, para poder antecipar e fazer o que ele pretende. Já recebeu elogios em suas participações em aniversários, festas de casamento e até como freelancer. “Bastante agradável. Não tenho nada a recla-

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69 mar. É uma oportunidade, quem me dera fosse assim todos os dias, com bastante tempo na carga horária. Preciso descansar para ter mais resistência” ressalta. Mas nem sempre foi visto com bons olhos nesses eventos. “É preciso que você tenha documentos para poder apresentar e fazer acontecer, se não tiver em mãos, a polícia vem e pede pra você se retirar”. O estilo de vida é um exemplo para os integrantes do sexo masculino, pois tenta transmitir o que sabe. “Um pouquinho do conhecimento que eu tenho, passo para as outras pessoas, que na humildade querem aprender”, diz. A maior dificuldade consiste em associar, aprender ou manipular acima de seis ou sete aparelhos. Ele diz que aprendeu pela internet, para aperfeiçoar suas habilidades, pessoas mexendo e pessoalmente também.

MERGULHO NO PASSADO Ele garante que veio para Brasília de bicicleta e faz quatro anos que mora aqui. Trouxe a família e a mantém através da arte. “Muitos não entendem o que é arte, discriminam e dizem que quem faz cultura é usuário de droga. Mas é... vida que segue”, acrescenta. Arriscou-se em outras profissões, mas nenhuma que se igualasse à sua arte. “Tentei na área de construção civil, pedreiro. Não tenho nada em mente, nenhuma proposta, que não seja na minha área mesmo”, revela. Admira a receptividade de alguns motoristas de carro ao vê-lo realizando suas artes, e ao mesmo tempo, se sente motivado a fazer seus espetáculos a céu aberto, mesmo quando recebe vaias. Denomina “corajoso”, aquele que não o aprecia artisticamente. Certa vez, em um de seus dias rotineiros de trabalho, um casal forjou que fora atacado por Cezar com a faca que usa nas apresentações. Os policiais chegaram e lançaram spray de pimenta em seus olhos. Fora algemado, mas não reagiu. “Não consegui ver a fisionomia de quem estava me acusando. Mas estão entregues nas mãos de Deus”, pontua. Sofreu um acidente durante a pirofagia, quando engoliu querosene sem querer. “Quando estamos aprendendo algo, todos nós erramos. E estamos sujeitos a qualquer acidente ou fatalidade. Mas hoje, com vinte e um anos de prática, já consigo evitar erros”, reforça.

BOLINHA Nas embaixadinhas feitas com os pés, chama a atenção por sua dedicação e equilíbrio. Aprendera por ver outros praticando. Em meio aos olhares de todos ao seu redor, aplausos e vaias. A saga é marcada por uma trajetória. Um momento feliz na história foi quando, já em Brasília, assistiu a um jogo de futebol no estádio Mané Garrincha. Queria ver assistir a partida e fez tudo o que podia para realizar esse sonho. Comprou com o dinheiro de suas apresentações. Em um jogo de malabares, iniciou sua saga rumo à capital federal e coração do Brasil tornando o jogo da vida um espetáculo ao vivo e a cores.

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R E S P E I TÁV E L R U A

“Eu escolhi ser palhaço!“ O belenense Márcio Henrique de Souza mostra como é necessário ser um verdadeiro malabarista para viver há 15 anos na arte de rua

POR Claudiane Brito

Verde, amarelo, vermelho e AÇÃO! Param-se os carros e o espetáculo começa ali mesmo, na rua. No palco de asfalto, demarcado por faixas brancas, está Márcio Henrique Mata de Souza fazendo malabarismos. Joga uma bolinha, joga duas, três, quatro, em cima de longas pernas de pau. Acrobacias e movimentos inesperados. Ele tem poucos minutos para se apresentar antes do semáforo abrir para os carros. Motoristas ficam boquiabertos, outros olham pro além, outros contam os segundos para passar daquele sinal e seguir viagem. Ele se apresenta em cruzamentos de avenidas do Distrito Federal. Ele entra no ônibus e, por instinto, decide onde vai se apresentar. Márcio tem 34 anos na “arte da vida” (como ele mesmo descreve) e 15 de arte circense. Nascido em Belém (PA), podemos notar um leve sotaque belenense misturado com o tradicional “véi” aqui de Brasília. Estudou apenas até o ensino fundamental, trabalhou em madeireira no Pará, mas depois largou tudo para viver da arte. Um homem de porte médio, físico magro e em forma. Se alonga antes de ir trabalhar, é praticante de yoga, meditação e acredita que isso é o que traz equilíbrio e leveza para seus dias. Na pele, algumas tatuagens, cada uma feita em viagens diferentes. A última foi feita no peito, o desenho de um diabolô, um dos instrumentos que ele usa para fazer malabarismo. Na íris do seu olho direito, uma mancha branca de nascença, que não afeta em nada na sua visão pois consegue enxergar

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perfeitamente. “Quando você vai me conhecer já tem uma pergunta, que é sobre a manchinha no meu olho”. Essa característica, além de despertar a curiosidade, também o fez ser vítima de apelidos maldosos na escola, como “olho de vidro”, Robocop, Galo cego, Olhinho (que ele até já aderiu). “Me zoavam muito, de todos os jeitos, mas eu entrava na brincadeira. Eu era rebelde. A diretora me dava bilhetes para minha mãe assinar, mas nunca entreguei de volta, dizia que minha mãe não podia e chamava uma prima pra ir no lugar”. Ele gargalha ao lembrar da infância. Criado pela avó, Márcio é o mais novo de três irmãos, e foi o único a seguir para o lado artístico. “Sou a ovelha negra”, sorri, falando de si mesmo. A decisão de largar os estudos e procurar um trabalho não foi fácil, pois os primeiros a criticá-lo foram pessoas da sua família. “Algumas pessoas rejeitam nossa forma de querer ser na vida”, ressalta essa frase quando vai falar de sua mãe biológica, Adelaide. Ela nunca aceitou o fato do filho não ter um emprego fixo, registro em carteira, diplomas, e ofereceu a ele a oportunidade de pagar seus estudos e largar a arte circense. Por conta dessa diferença de pensamentos, o único vínculo que eles têm é de “- Benção mãe!’ ‘- Deus te abençoe, meu filho”. “Não falo com minha mãe por não aceitar a liberdade de eu ser eu. Se eu quiser estudar, estudo e pronto. Ela quer que eu seja doutor, mas eu escolhi ser palhaço!”. Ele engrossa um pouco a voz e bate no peito com orgulho.


71 Caminhos de felicidade Tudo começou quando Márcio fez amizade com o pessoal do teatro da Universidade Federal do Pará. O local era aberto ao público e então ele passou a frequentar e treinar malabares. Nada muito sério na época, ia para se divertir mas acabou fazendo desta sua profissão. Saiu de casa aos 14 anos e se aventurou por vários estados do Brasil. Não contente em ficar apenas em terreno nacional, passou também por países da América Latina como Argentina, Bolívia, Uruguai e Paraguai. “Minha universidade foi viajar, conhecer outros países, outras pessoas. Falo espanhol, uma coisa que não aprendi na escola.”, orgulha-se. Todas as viagens foram feitas de ônibus e algumas vezes carona, mas ele não gostava muito da segunda opção pelo fato de achar perigoso e só aceitava quando estava com mais amigos. Márcio relatou sobre uma das vezes que viajou de carona. “Já sofri abuso, da pessoa querer se aproveitar de mim, e eu dizia -‘ não véi, não curto essas paradas, quero uma carona, me deixa aí e segue seu caminho’ – você nunca sabe quem vai ver na estrada, é muito perigoso”. Dentre suas aventuras, ele também já viajou com vários circos de família, aprendendo coisas novas e superando os seus limites. O que antes era apenas “jogar bolinhas para o alto”, hoje são diferentes números e performance como malabarismo, equilibrismo, mastro chinês, números com faca, fogo e palhaço. Cada artista de rua tem sua peculiaridade, a dele é se apresentar jogando diabolô em cima da perna de pau e ainda com passos de capoeira. Em uma de suas viagens, Márcio teve a oportunidade de participar de um festival internacional de circo. Lá ele se encantou e se surpreendeu ao ver tantas pessoas com habilidades diferentes. Arregala os olhos ao relembrar do que viu: “As pessoas mais talentosas’ de toda a galáxia. Tu olha pro lado: um cara jogando sete, oito, nove bolinhas… Que isso?! To num planeta cheio de gente doida”, ri alto. Recentemente, o artista recebeu a proposta de ir para Dubai, mas não aceitou porque ficaria muito tempo longe dos seus três filhos. “Às vezes dou dinheiro, mas isso não é nada. Dinheiro vai e vem. Só que isso não se compara com a vivência, estar com a pessoa”. Os filhos estão em lugares diferentes. Um no Pará, um no Piauí e outra no Chile, frutos de três relacionamentos. Ele conta que a saudade é grande pois não é fácil morar longe de quem ama. Márcio não têm lugar definido para se apresentar. Entra em algum ônibus e decide de última hora em qual semáforo vai descer e por ali fica cinco horas por dia, com apenas uma folga na semana. Nessa folga, ele gosta de ir no cinema. “Gosto de filmes de comédia. Não assisto filmes de terror, não consigo, tem muita violência”. E por falar em violência, ele assume que não assiste nenhum noticiário pelo mesmo motivo. O único meio que usa para se manter informado é pela Internet, onde pesquisa muito sobre políticas públicas. O artista trabalha todos os dias de 4 a 6 horas em cima da perna de pau. Foto: Arquivo Pessoal.

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União dos artistas de rua Além da rua A rua não é o único palco em que se apresenta, já que Márcio fez parceria com um DJ e, na noite, ele se fantasia de um mega robô de led para animar festas. Recebe um cachê de 200 reais por evento. É uma “grana suada” porque usar uma fantasia pesada a noite inteira não é para qualquer um. Ele nunca imaginaria que um dia chegaria a participar de um programa de TV. Já esteve no quadro o “Se vira nos 30”, do Domingão do Faustão, onde ganhou um prêmio de três mil reais. O talento e o desejo de espalhar seus conhecimentos sobre a arte circense é forte. Márcio visita algumas escolas e faz apresentações para os alunos. De sala em sala, ele convida as crianças para assistirem seu espetáculo, mas antes ele explica, de forma simples, qual a importância do chapéu para o artista. Pergunta para as crianças, com a voz e os trejeitos de um bom palhaço: “Olha, vocês sabem o que é o chapéu? O chapéu não é só pra usar na cabeça, ele foi feito para o artista”. Ele tira o chapéu da cabeça e as crianças respondem: “Para receber palmas”. A explicação continua: “Mas ele come, né? Ele paga ônibus... O artista vive de ganhar mo-e-di-nhas no chapéu. Quando ele passa o chapéu, é pra colocar o dinheiro que você tiver no coração”. As crianças alvoroçadas continuam e querem participar da cena: “Eu tenho 1 real! Tenho 2! Eu tenho 10!”. “Não! 10 é muito”. Ri, ao lembrar da brincadeira que faz com os pequenos. Para ele, é importante conscientizar as crianças que existem artistas no Brasil que vivem de apresentações em vias públicas. Com esse trabalho, Márcio deseja conscientizar também os pais dessas crianças, que levam para casa um pequeno comunicado informando a data do seu espetáculo e que a contribuição é no chapéu, sem estipular valor.

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Entre tantas acrobacias perigosas, perna de pau, monociclo, faca, fogo, ele nunca sofreu um acidente com seus equipamentos. Mas certo dia, estava andando de bicicleta, e por um “pequeno” vacilo se desequilibrou e caiu. Na queda fraturou a clavícula, que o impossibilitou de trabalhar por dois meses. Daí pode surgir a dúvida de como ele está fazendo para se manter, já que a única renda que faz é nos sinais e apresentações. Mas, nesse mundo dos artistas circenses há uma união de uns com os outros. Alguns amigos de Márcio se mobilizaram, fizeram rodas de circo e toda arrecadação no chapéu foi doada para ele. Discriminação e amor à arte Em suas apresentações no sinal ou em praças públicas surgem alguns comentários maldosos, como “vai trabalhar vagabundo!”. Segundo Márcio, existe uma grande marginalização dos artistas de rua. Quando algumas pessoas contribuem, elas dizem “Olha, toma esse dinheiro mas não vai usar drogas, não vai comprar cachaça... Muitos não têm a visão de que temos que pagar ônibus, contar e ainda comer”. Márcio passou a se preocupar mais com figurinos em suas apresentações de rua. E isso custa dinheiro. “Você vale o que você veste”. Ele desabafa que as pessoas não enxergam esse tipo de artista com bons olhos, não lembram que eles precisam comer, se locomover, comprar roupas, pagar contas… Afora que como se trata de uma atividade sem seguridade social, cada vez que se machuca, fica sem rendimentos. Ao falar do seu maior sonho, o olhar de esperança é notável, a sua voz exprime a bondade e vontade de levar a arte para todos e de graça. “Meu sonho é levar a arte para os ribeirinhos, quero fazer um circo em um barco. Eu morei no interior do Pará, sei como é e nunca vi um circo. Eu sei que as crianças vão ficar enlouquecidas quando verem”. O palhaço deseja tirar as crianças da rua e ocupá-las com as aulas de malabares, acrobacias e apresentações teatrais, para isso, ele trabalha hoje em dia em cima de um projeto que levará oficinas de reciclagem, circo, teatro e música para bairros carentes.

Márcio também faz apresentações em escolas para os pais e alunos. Foto: Arquivo Pessoal.


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MÚSICA

No ritmo da mina

Conheça a história de Fernanda Assunção, de 20 anos, uma das mentes precursoras do “Só na Maldade”, coletivo cultural que surgiu com a intenção de colaborar na cena eletrônica na cidade

Fernanda representa um grupo pequeno, mas em ascensão, que são as DJs femininas em Brasília. “Ser mulher em um meio onde homens são a maioria, às vezes, pode ser bem complicado. Muita gente acha bonito e acaba sensualizando e objetificando as DJs. Isso é bem chato de lidar, mas atualmente a conscientização é maior”, diz Fernanda. Ela também trabalha em prol do aumento de conscientização sobre minorias. “Nossa cidade é repleta de DJs mulheres muito talentosas, então festas com line-ups (lista de artistas) totalmente masculinos já não fazem mais sentido. Às vezes ocorre algum episódio ou aparece alguém tentando diminuir essa luta por espaço, mas no final sabemos que a cena está mudando e se tornando um lugar mais democrático. Ainda temos muito chão pela frente, mas já estamos melhores que alguns anos atrás”. Sexta feira, 16h20. Fernanda Assunção acaba de acordar de seu cochilo após o almoço. Ela já cumpriu as tarefas acadêmicas. Agora está na hora de destinar um tempinho do dia para o seu trabalho, para pesquisar e estudar músicas. E é assim que ela divide as responsabilidades ao longo dos dias: Pela manhã, segue para a faculdade e lá fica até meio dia. Pela tarde, Fernanda deixa o curso de publicidade “de lado” para dedicar boa parte do tempo para estudar música. Ela é uma das mentes por trás do “Só na Maldade”, coletivo cultural que nasceu com o objetivo de fomentar a cena eletrônica na cidade, e promover eventos gratuitos. A vida de Fernanda deu muitas voltas inesperadas nos últimos três anos. Os sonhos eram outros. Ela ainda era menor de idade e estudava Jornalismo. Fernanda gostava muito de comunicação e de explorar o lado criativo presente nisso. A vontade era desenvolver essas carac-

POR Danilo Esteban terísticas para depois unir tudo e seguir o rumo da moda. Quem conviveu com ela nessa época não esperava que algum dia ela iria seguir o rumo da música, talvez nem mesmo ela. Mas para sua mãe ou irmão, com quem convive há mais tempo, essas transições eram inevitáveis. Ela cresceu em um meio rodeado por música. O irmão, Vitor Assunção, que discoteca em festas além do coletivo, teve um papel fundamental em estimulá-la nessa área. Ela sempre sentiu que a música a representava muito. Fernanda tem um apreço por diferentes estilos musicais além da música eletrônica. Quando era mais nova, acompanhou a grande “explosão” da música eletrônica, onde a house music se modificou e ganhou características do pop. Nessa época, era muito comum ouvir músicas e assistir a clips de alguns DJs famosos como Beni Benassi, Bob Sinclair, David Guetta. Mas ela não entendia isso na época por ser apenas uma criança. Até que um dia, por sorte ou por ironia do destino, o álbum “Cromophobia”, do renomado DJ brasileiro Gui Boratto, chegou a ela e começou a mudar as suas opiniões a respeito do gênero. Já em 2016 ela resolveu ir à festa “Grau”, promovida pelo coletivo “Ímã”, que, para surpresa dela, era dedicada à cena alternativa, mais precisamente ao techno. Era a primeira festa do coletivo, e da Fernanda também. Foram necessários minutos para ela se encantar com aquilo tudo. Ela ainda não sabia, mas esse foi um divisor de águas.

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Garcia, Lucas Mota e Guilherme Augusto. Eles perceberam que poderiam agregar à cena eletrônica na cidade. Para eles, as festas deveriam ser palco para defender causas, fazer intervenções artísticas, promover e compartilhar conhecimento e, consequentemente, explorá-los como artistas também.

Fernanda em ação durante o evento “tetatronica”. Foto: Nina Quintana.

Depois dessa festa, o interesse dela aumentou e as pesquisas musicais, também. A curiosidade com o assunto crescia gradualmente na mesma proporção que a busca por novidades e para conhecer mais gêneros, como pesquisas por selos e gravadoras e também para ficar por dentro dos lançamentos dos djs. Fernanda já sabia que era discotecagema a partir também do que o irmão havia ensinado. Em novembro surgiu uma oportunidade de tocar em um evento chamado “Jardim Elétrico”, do coletivo “Sinestesia”. Nessa festa, além dos próprios DJs do coletivo, eles davam oportunidade para entusiasmados, como Fernanda, que nunca haviam tocado antes. Essa oportunidade serviu como um empurrão. O encantamento pela música trouxe inquietações em relação ao movimento local “que se resumia às mesmas festas e ao mesmo som no DF”. Ela passou a levantar sugestões, junto com o irmão e mais três amigos, Paula

Vitor Assunção, irmão de Fernanda, na venda de vinis do primeiro evento do coletivo, o SnM Sessions #1. Foto: Luca Valério.

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O grupo passou o ano de 2016 em planejamento de atividades. A ideia era contribuir para as localidades onde se apresentam e até o contato com pessoas em situação de rua para tratar sobre a importância da música e do evento. Após um intercâmbio de dois meses na Austrália, Fernanda voltou determinada. Após o retorno de Fernanda, o grupo decidiu então que não dava mais para esperar. O coletivo cultural deles, enfim, nasceu. O grupo fez, então, o primeiro evento, o “SnM Sessions #1”. O Setor Comercial Sul deu espaço para uma festa diferente do que a cidade estava acostumada. Além da música, proporcionada pelos DJs do coletivo (Fernanda ainda não tocava nas festas nessa época), o grupo ainda trouxe uma exposição de fotos e fez uma feira de vinis. O evento era gratuito O grupo sustentou a festa pelos ganhos do bar. O Sessions #1 foi um sucesso, então eles levaram a ideia adiante. Fernanda foi radical nesse período de transição. Depois do sucesso do evento, Fernanda percebeu também que conseguiria conciliar aprendizados do curso de Publicidade (que ela passou a cursar depois de desistir do jornalismo) com objetivos em conjunto com o grupo. Passou, então, a se dedicar para o crescimento do coletivo.

Fernanda curtindo o terceiro evento do coletivo. Foto: Luca Valério.

Ela encontrou o amor na música. Aprendeu a discotecar ao acaso. Mas, ser DJ não é apenas um hobby dela para apoiar o coletivo cultural. Ela pretende se especializar ao longo dos anos em produção musical, e para cumprir alguns dos projetos em conjunto ao coletivo. Pro futuro do coletivo, o grupo tem projetos para realizar mais trabalhos voltados ao compartilhamento de conhecimentos com a população local, e também de transformar o Só na Maldade em um lugar físico, um ponto cultural, onde a troca de experiências seja mais acessível. O que eles arrecadam é revertido em outros eventos, como alocação de espaço, montagem de estrutura e equipamentos de som, além de compra de bebidas para o bar da festa. As vendas do bar compensaram o gasto total e reverteram um lucro que ficou guardado para investir no próximo evento.


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V I DA E O B R A

Em sua casa, Ivan guarda mais de 200 mil livros.

O homem de 400 mil livros Ivan Presença tem 69 anos e é um livreiro dedicado a profissão que está desaparecendo


CAPITULO 1

POR Jornan Rocha de Oliveira Texto e foto

T

odos os dias, Ivan acorda às 7 horas da manhã e começa o trabalho em um dos galpões que tem em casa no Jardim Botânico. No primeiro galpão, há 200 mil livros (metade da coleção), além dos discos vinis. Esse é o local onde ele começa a rotina de trabalho. Ali atrás está a casa, onde ele mora com a companheira há 45 anos, Hilda Amaral. Passando pela lateral da casa, pode-se ver o outro galpão - onde se encontram mais 200 mil livros - e uma linda vista de árvores e do córrego Taboquinha. Sentado numa cadeira, em frente a um computador de mesa, Ivan começa a rotina diária entrando no site de vendas de livro e vê quais encomendas deve levar para entregar e quais pedidos recebeu, além de acrescentar no site informações sobre os livros: categoria, condições físicas, dedicatória e sinopse. Ele explica que foi complicado realizar esse trabalho pelo computador no início. “O mais difícil é porque eu tinha medo do computador, eu não sabia nem como ligava esse negócio. Então surgiu no Conic, um cursinho de noções gerais disso e eu entrei à noite para fazer. Fiquei um mês e aprendi como era, o que era internet e e-mail.” Ele ainda enfrenta diversas dificuldades com a tecnologia, mas demonstra tranquilidade, acreditando que aprenderá quando for o tempo certo. Ele trata com os clientes pela internet. Fecha os galpões e pega o carro para ir ao local de trabalho atual. No centro de Brasília, no Conic, fica uma banca de livros chamada Quiosque Cultural. É um local pequeno, em formato cilíndrico, apinhado de prateleiras altas e com uma grande diversidade de livros, pintada de amarelo por fora, com a porta grafitada. Um lugar aconchegante, que resiste em meio às mudanças tecnológicas que chegaram junto com o século 21. Ele chega na banca às 14 horas, coloca nas prateleiras mais leves alguns livros e gibis do lado de fora, duas mesas e algumas cadeiras para quem quiser se sentar. Segue o dia vendendo e trocando livros, vinis. Além dos clientes que vão até a banca, Ivan sempre recebe a visita de alguns velhos conhecidos que passam alguns minutos do dia em conversas com ele. Também gosta de indicar livros que acha interessante, e outra parte frequente do trabalho é a entrega das encomendas feitas pela internet. No fim da tarde, Ivan recolhe tudo o que precisa, guarda as prateleiras e fecha a pequena banca. Entra no carro, preparado para fazer a jornada de volta a sua casa, onde terminará o dia assistindo noticiário e lendo alguma obra literária que o ajude a realizar o trabalho.

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UMA VOCACAO ~

“Eu sempre apoiei ele. Se eu pudesse eu daria uma coisa muito melhor do que isso aqui para ele, eu daria uma livraria bem grande para ele trabalhar”

Para entender como Ivan Presença se apaixonou pela profissão, é preciso voltar a histórias de quando ele ainda morava no Rio de Janeiro, ao lado da Universidade Rural. Ele conta que as professoras da escola primária onde ele estudava eram casadas com os professores da universidade, portanto elas costumavam levar as crianças para a biblioteca, e lá Ivan se encantou pelo lugar. “A primeira vez que entrei numa biblioteca na minha vida foi lá. Na minha casa não tinha nem livro nem jornal, meu pai não lia, minha mãe não lia. Pois bem, quando eu entrei, parecia a Catedral ali do Oscar Niemeyer.” Muito tempo depois, quando tinha 12 anos e morava com a tia no centro do Rio de Janeiro, ele começou o primeiro trabalho, entregando cartas. Durante a entrega ele passava por livrarias e, encantado, entrou numa delas, fazendo amizade com um dos vendedores. Essa amizade começou através da curiosidade de Ivan, que sempre perguntava sobre a profissão dele, esse interesse cresceu e foi quando descobriu sua vocação, livreiro.

Ainda interessado em conseguir ler livros que não podia comprar, Ivan sugeriu que seus colegas de trabalho levassem livros que não queriam mais para emprestar no trabalho. No início os livros ficavam numa mesa, com o tempo Ivan propôs a criação de uma sala onde as pessoas de seu trabalho podiam pegar e doar livros. Aos 17 anos, insatisfeito com o trabalho de entregador, pois o salário era pouco, Ivan recebeu a proposta de vir a Brasília para trabalhar em uma livraria e receber um salário melhor. Quando chegou à cidade, em 1967, começou na livraria que ficava na Galeria do Hotel Nacional. No ano seguinte, buscando novas experiências, se mudou para Goiânia e em 1969, voltou ao Rio de Janeiro com o objetivo de fazer o curso de livreiro, e se dedicar à essa profissão. Um famoso livreiro que ele conheceu quando morava em Goiânia, o convidou a voltar a Brasília para abrir a Livraria Técnica – que vendia apenas livros didáticos – na rua das farmácias, na Asa Sul. Ivan trabalhou ali por nove anos. Em 1980, a Livraria Galilei, no Setor de Diversões Sul, quase fechou as portas. O dono era seu amigo e lhe ofereceu a livraria para que ele continuasse com o negócio. Ivan fez um acordo de que pagaria a ele com os primeiros lucros da livraria,e foi assim que tudo começou. Ivan inaugurou então a Livraria Presença, onde ele se dedicou a criar eventos de lançamento de livros, com o foco em manter o lugar sempre cheio e aproveitar da sede de conhecimento e curiosidade dos estudantes de artes que frequentavam o Conic. Depois de alguns anos o projeto foi interrompido, devido ao período de hiperinflação no país que o levou a falência, deixando-o com uma quantidade admirável de livros e vinis. Há 18 anos, Ivan decidiu retomar o trabalho e criou o Quiosque Cultural, na banca de jornal projetada por Oscar Niemeyer. Um de seus sonhos é conseguir verba para melhorar o espaço e voltar a oferecer atividades culturais. Esses eventos presentearam Ivan com uma amizade de longa data, 20 anos compartilhando experiências. José Costa de Oliveira era garçom e costumava servir os convidados e visitantes nos lançamentos. José afirma que foi um dos melhores lugares em que ele trabalhou, chegando a deixar de aceitar outros trabalhos, e mesmo depois de tantos anos, demonstra muito carinho e gratidão por Ivan e por sua família. “Eu sempre apoiei ele. Se eu pudesse eu daria uma coisa muito melhor do que isso aqui para ele, eu daria uma livraria bem grande para ele trabalhar”. Ivan se manteve no Conic desde 1980, atualmente ele ainda vê diariamente o local da livraria onde passou anos se divertindo com o que amava fazer, uma época onde ele acredita que a leitura era mais valorizada. É impossível esquecer os tempos antigos, quando o Setor de Diversões Sul era frequentado por artistas ou quando o Teatro Dulcina estava no auge.


AROMA

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ARTESÃO, MÚSICO E TAL; TARARAU Do interior de Minas para o mundo. Conheça a história de Milton Tosta, um hippie contemporâneo que vive de sua arte

POR Bruno Santa Rita Texto e fotos

E se a essência da vida fosse dada em cheiros? Difícil a missão de se cheirar a vida. Interpretá-la em um tipo de aroma...hum…ainda mais trabalhoso. Por falar em trabalho, a essência do viver pode ser muito significada a partir da ocupação que essa pessoa tem na sociedade. Imagine só... Viajou de cidade em cidade, de país em país, bancou tudo com venda de artesanato e arte nas ruas, além de uma sala quitada em 2015, na Asa Norte. Cheiro de sândalo. “O sândalo é uma essência global. Aonde você vai, existe o sândalo”. Como se autodefine um cara simples e prático -, Milton Leite Tosta, o Tararau, um ambulante que vende incensos de R$3,50 a R$10, músico de rua itinerante e aderente da cultura “hippie”, iria caminhar ao lado do sândalo por muitos outros anos. No mundo e na capital federal. O início foi em um vilarejo chamado Sertãozinho, cidade de Borda da Mata, no sul de Minas Gerais. Lá, no interior do estado mineiro, cresceu Tararau. Na época, anos 1960/70, não havia muitas opções senão o campo. Dessa forma, até os 12 anos de idade, o trabalho foi ali mesmo, no campo, como ajudante dos familiares na agricultura. Mas os tempos passam e logo Tararau teve que ir atrás de outro emprego. A agricultura familiar e manual já não era mais o centro das atividades da região. Quando foi se aproximando a adolescência, foi a hora de dar um passo e voltar para o estado onde nasceu. São Paulo. “Todo mundo que era camponês tinha que ir para alguma cidade”, disse, relembrando seus primeiros anos de vida. Na época, todos que estavam no campo eram, de certa forma, expulsos para as cidades com o advento da mecanização da agricultura. O pequeno camponês de Minas Gerais - que não tinha dinheiro para lidar com as caras máquinas que chegavam ao mercado - tinha duas opções: mineiro do sul, para São paulo; mineiro do norte, Belo Horizonte. E, assim, o recém ex-camponês seguiu o fluxo dos mineiros do sul e foi buscar por emprego em São Paulo. Para o cheiro da cidade natal voltou. Cheiro de nostalgia. Não era Bragança Paulista, onde havia, de fato, nascido, mas Paulínia, um município no interior de São Paulo. Lá, já com 13 anos, Tararau, achou amparo no ofício de mecânico. Trabalhou como ajudante em uma pequena oficina da cidade. A metamorfose dos ofícios da vida de Tararau apareceu mais uma vez quando, de mecânico, foi se tornar ajudante de confeiteiro, ainda em Paulínia. Quatro anos depois, se tornou o próprio confeiteiro da mesma padaria. Mas mais mudanças viriam na vida de Tararau, que estava prestes a largar de mão o aroma matinal de manteiga e ovo dos brioches preparados.

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CONHEÇA MAIS SOBRE A MÚSICA DE RUA DE BRASÍLIA


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Agora era hora de aspirar um cheiro mais burocrático, mais formal. Tararau percorreu pela carreira de escriturário em alguns do bancos da cidade. Primeiro, no Bradesco. A experiência com clientes, conferência de relatórios e outros serviços durou um ano nesse banco. Logo, mudou para ser escriturário no extinto banco Bamerindus, que faliu em 1997. Mas antes do fim do banco, Tararau já havia dado início à uma nova jornada. Dessa vez, em busca de aventura. O cheiro que aspiramos agora é o de terra nova. No ano de 1982, Tararau decidiu que precisava conhecer o mundo. E começar pelo Brasil era uma ótima ideia. Ele foi para o Norte e Nordeste. Minas já estava presente em sua essência. Agora o Oeste do Centro-Oeste, o pantanal mato grossense, e o Sul, como em Santa Catarina, ficaram só na vontade - que um dia pretende sanar. Em 1984, foi o ano de conhecer a capital federal. Passou os próximos três anos aqui e, em 1988, veio a primeira viagem internacional. “Vive la France”! Nessa época, Tararau já era artesão. Até antes de 88, os produtos eram feitos a partir de suas habilidades. As matérias primas eram sementes, cordas de couro, metal e tudo o que Tararau definiu como artesanato comum. Em 1985, veio a prata. Uma mudança financeira na vida do artesão. Também foi o que causou a mudança do estilo de vida. Imerso na cultura “hippie”, ele aumentou as suas habilidades em Pirinópolis, onde passou um ano para conhecer melhor o ofício da prata. Era a época do governo Sarney e vigorava no Brasil o Plano Cruzado. Lá, o mercado da prata era muito grande e isso melhorou a vida financeira dele categoricamente. Agora, com o dinheiro que veio da prata, o “hippie” estava pronto para ganhar o mundo.

Com o trabalho valorizado lá fora, o trio conseguiu comprar uma Kombi modelo Transporter que usaram para dar continuidade para as viagens. Uma hora o grupo teve que se separar. Tararau, no entanto, continuou com o carro e conheceu mais a fundo a Suíça. Lá, descobriu que ser músico itinerante era uma profissão de valor, que permitia ganhar dinheiro e promover o auto-sustento das viagens.

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“No Brasil, viajava vendendo artesanato. Lá fora, tinha mais retorno e reconhecimento para o músico de rua”

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“Padaria é muito cansativo, você trabalha todo sábado, final de semana, dia santo, etc e tal, Tararau”

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Foi então que, em 2000, Tararau resolveu fazer de Brasília a própria casa. Estabeleceu-se e aqui construiu um estúdio de música na Asa Norte, que também é a sua casa. O imóvel foi financiado pela Caixa em 2010 e quitado em 2015. Ao entrar, percebe-se um acabamento improvisado. Logo à direita da entrada da sua casa/estúdio, há um mini escritório, onde Tararau produz artesanatos com a prata e também onde guarda os incensos que vende pela noite, nos bares. Atrás do escritório, fica a cozinha e área de serviço. Dentro do estúdio, uma das portas leva ao quarto e outra ao banheiro. O local também complementa a renda, já que o espaço também é reservado para que músicos aluguem o estúdio para ensaios.

“Eu era considerado hippie. Eu gosto desse slogan. Me considero hippie. ‘Don’t you worry, be hippie’” Na França, o ganha pão passou por uma diferença. Ainda era ambulante, mas agora vendia a música pela rua. Acompanhado por um amigo de viagem que jogava capoeira, por um violão que arranhava um som e um berimbau, Tararau trabalhou como músico itinerante nas terras francesas. A motivação da viagem: aventuras. Logo após a França, ele percorreu também países próximos na Europa, como Alemanha, Áustria, Portugal, Holanda e Suiça. Em Amsterdã, trabalhou para juntar dinheiro para trazer mais um companheiro do Brasil para a Europa e assim fechar o trio de capoeira que iria rodar as ruas. “A gente formou um trio meio que capoeira, berimbau, violão, pandeiro. Eram dois jogando capoeira, um tocando e revezando”, compartilhou.

Tararau viajou por países como França, Suíça e Portugal apenas com o dinheiro que as apresentações musicais na rua lhe traziam.


O vendedor de incensos Os incensos entraram na vida de Tararau de tabela. Em 1998, ele tinha uma loja onde vendia artesanatos comuns, feitos de linhas de couro e sementes, suas obras de prata, incensos e outras especiarias. Além disso, ele tinha um ônibus de 49 lugares que usava para promover viagens. Como ficou difícil manter a loja e conciliar o espaço físico de venda com as viagens aventureiras, ele decidiu fechar a loja, colocar tudo dentro do ônibus e prosseguir com o ritual de viagens. “Notei que sobrou um monte de incensos e que eu precisava vender esses incensos”. Foi assim que Tararau percebeu que o incenso é muito prático de ser vendido, não precisava ser fabricado e era facilmente comprado pela internet.

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E aí! Tudo em órbita! A frase marcante é o passe livre do ambulante nas mesas de bar. Em cada mesa, com o mesmo bordão, Tararau oferece os incensos para todos os frequentadores de bar. Em um domingo, na quadra SCLN 410, ele efetuou vendas de três pacotes de incensos, em duas mesas que demonstraram interesse. Porém, era um dia fraco. Uma das compradoras explicou que sempre que vê o Tararau vendendo os incensos, sente vontade de comprá-los. “Ele é muito alternativo”, admirou. O namorado argentino, Frederico, crê que o trabalho dele é importante para as pessoas que não conseguem achar outro tipo de sustento.

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Filho de camponeses, o hippie agora vive da venda de artesanatos e música de rua.

De bar em bar, de história em história, Tararau vive a sua rotina que está fora dos padrões do trabalhador comum. E mesmo assim, ele também está sujeito às exigências de uma sociedade que cobra dinheiro do trabalhador para manter o padrão de vida. Tempo livre é uma expressão que não existe no seu dicionário. “Um cidadão comum dorme 8 horas por dia, passa uma horinha rezando o terço, come de três em três horas como recomenda o médico, passa duas horas no trânsito, como recomenda os mecanismos de transporte, uma ou duas horas cuidando da higiene pessoal, como recomenda o ministério da saúde, algumas horas em uma fila de banco, como recomenda do sistema financeiro. Ninguém sabe o que é tempo livre”, criticou.

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“É um pequeno comércio de bugigangas. Aí você mistura um pouco a história do hippie, artesão e do camelô” dieta

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Em Brasília, o processo do ambulante em bares começa em casa. Quando veste o colete bege característico, arruma a bolsa com os vários tipos de incensos e sobe as escadas saindo do subsolo do prédio em direção à moto tornado 2003 vermelha. Coloca o capacete também vermelho sem viseira e avisa: “não pode andar sem viseira”, e coloca os óculos de lentes amarelas no rosto. A moto ronca e ele está pronto para seguir o itinerário a partir da quadra 16 da Asa Norte, seguindo para a 12, 11, 10 e outros pontos na Asa Sul, como o bar Piauí e Simpsons. “Em Brasília é obrigatório faturar no mínimo R$ 50 por dia e trabalhar todos os dias da semana para sobreviver e pagar as contas. Se em um dia você fatura menos, no outro dia tem que se esforçar mais para compensar o dia que ficou abaixo da média. Se faltar um dia de trabalho, no outro dia tem que ganhar o dobro... regra geral que vale para todo vendedor ambulante que vive exclusivamente desta profissão”.

O “hippie” também mudou a alimentação nessa jornada. Tararau come apenas uma vez por dia, às 17h, quando senta para comer um mix de frutas com saladas. Após o “almoço”, ele tira uma soneca. Segundo ele, isso permite que fique forte para poder trabalhar as longas horas de caminhada e venda pelos bares.


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T E R C E I R A I DA D E

Gabriel Alves Ximenes de Aragão.

O aposentado Gabriel Aragão diz que vai para as ruas principalmente por solidão

POR Bruna Alves Texto e fotos

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OS MEIOS PARA Olhos para quem vai sair, olhos para quem vai estacioESCAPAR DA nar. Nem todos os olhares serão recíprocos. Às vezes, só SOLIDÃO vidro fechado, ou moedas mal contadas. Em uma rua de mão dupla que fica entre dois prédios da quadra 04 do Guará, bairro de classe média do Distrito Federal, diariamente, centenas de pessoas circulam na “selva de pedra” em que ele se encontra. Gabriel Alves Ximenes de Aragão tem 77 anos e a aposentadoria não dá conta de deixá-lo em casa. Já eram 20h quando ele encerrou expediente, mas a figura cheia de histórias e de conversa fácil não se opôs nem resistiu a conversar com a reportagem. “Nem sempre a gente está entusiasmado. Se não estiver bom podemos continuar depois”, deixa avisado. Ele nasceu em Fortaleza no dia 11 de novembro de 1941. Teve uma infância humilde, casou-se com 28 anos, com Maria Euna Ramos. Veio para Brasília com um mês de casado. Quando chegou, passou fome e dormiu na rua com sua esposa, só depois de dois meses conseguiu um trabalho como porteiro na quadra 412, na Asa Norte. A esposa fazia faxina em algumas casas. A síndica do prédio no qual trabalhava disponibilizou um quartinho nos pilotis, um local apertado que só cabia uma beliche. Lá sempre caía lixo e o local ficava com mal cheiro, mas viveu ali durante cinco anos e relata que foi muito feliz.


Com 15 anos de casado, se separou. Ele prefere não falar sobre isso. Com a separação, há 34 anos, Euna, agora ex-esposa, levou os filhos e sumiu sem dar notícia. Depois de 26 anos, Gabriel se aposentou. Ele relata que “não foi por anos trabalhados e sim por idade”. Comprou um terreno, construiu sua casa e hoje vive sozinho. Esse é o problema dele hoje. Aposentado, sem ter uma atividade para praticar e sem sua família por perto, encontrou a solução para a solidão que sentia quando foi ao estacionamento de um supermercado do Guará e reparou que no local circulavam muitas pessoas. Desse dia em diante decidiu ser vigia no estacionamento do supermercado, onde trabalhou durante 10 anos, até escolher sair do ambiente porque muitos “malandros” começaram a aparecer. Foi aí que resolveu “mudar” para o estacionamento da QI 4 daquele bairro, onde está atualmente. Logo após, ele foi reconhecido e credenciado pelo Governo do Distrito Federal, em 2006 como vigia de carros. A história do Gabriel no atual estacionamento tem oito anos. O período parece curto, mas foi suficiente para que ganhasse a simpatia dos vizinhos. O vigia faz questão de cantar a canção “Asa Branca”. Orgulhoso, não consegue somente escutar a composição preferida, logo começa a cantar junto. “Todos aqui conhecem, é o vigia mais amoroso do pedaço. Ele coloca o sonzinho para tocar ali e a gente fica ouvindo a música. Não são lá essas coisas, mas dá para ouvir”, brinca Adriano Lima, que trabalha na farmácia próxima ao estacionamento.

Sempre que vê uma oportunidade, ele para os donos dos carros estacionados para conversar.

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Quando o sol fica forte, ele encosta na farmacia até o sol baixar um pouco.

Antes mesmo da canção preferida acabar, alguém que vai estacionando o carro nas vagas grita: “coloca aí, ‘Corno Xerém’, de Sirano e Sirino”. Gabriel justifica ser uma música do disco que a “turma gosta aqui”, mas que não agrada muito as mulheres. A composição “Tradução para corno xerém” remete a uma história de traição. O vigia conta que o desejo é ter uma sanfona, para o trabalho ficar mais feliz. Apesar de afirmar que não precisa do dinheiro que ganha como vigia, foi na rua que ele encontrou a companhia que precisava, é lá que encontra o seu aconchego. Gabriel Aragão se conforta. “Amo estar aqui”. São muitas vidas circulando diariamente no cotidiano desse senhor. A solidão “vem de momentos”, mas não é tão simples escrever. “Viver aqui é mais fácil do que estar em casa sozinho, ficar lá só me dá um nó na garganta”. Alguns nós já foram desatados várias vezes pelo vigia. Quando o sol está muito forte, ele se esconde dentro da farmácia, e fica jogando conversa fora. Um dia, conversando com a dona do estabelecimento, descobriu que o sobrenome dela era o mesmo que o seu. “Ele já é (como) meu parente. São tantos anos de convivência que mesmo que não tivesse o mesmo sobrenome eu o consideraria como minha família”.


83 Acostumado a parar os donos dos carros que ele vigia para contar sua história (muitas vezes não ouvida), não perde a oportunidade de mostrar sua identidade e dizer “Olha, meu sobrenome é Aragão, sabia que sou primo do Didi?”. Sempre é questionado sobre o parentesco. Aí ele diz: “sou um primo mais distante, mas sou primo”. A necessidade de companhia em sua vida é tão grande que afirma que paga por carinho. No momento que o observava pude presenciar ele oferecendo R$ 100 para uma funcionária da farmácia lhe dar um abraço. A moça recusou o dinheiro e o abraçou. “As pessoas normalmente não me dão carinho porque querem, descobri que assim consigo sempre um abraço”. O vigia do estacionamento conta que ganha muitos presentes nas datas comemorativas do ano, como roupas e comida. As cestas básicas que ganha normalmente são doadas, já que não realiza muitas refeições em sua casa. Ele diz que não há necessidades de receber alimentos. “Prefiro doar para aqueles que precisam e que possuem dentes”. Aragão realiza a maioria das refeições no estacionamento, come sempre bolachas e rapadura.

Gabriel mora sozinho em uma casa no Guará. Com raros móveis, o som ecoa ao se conversar lá dentro. A cozinha só tem a lixeira, mesa e pia. Na sala, apenas uma cadeira e um rádio, grande cenário de solidão... Sem “muita vida”. Ele relata que só vai para casa para tomar banho e dormir. Pai de quatro filhos, Gabriel se perdeu deles depois da separação da esposa. Tentou contato diversas vezes, mas nunca teve sucesso. A surpresa veio quando sua única filha conseguiu localizá-lo. “Quando ela chegou perto de mim, senti meu coração bater mais forte, ela está muito parecida com a Euna”. A filha mora em Brasília e trabalha no aeroporto. Mas o encontro foi curto e não deu para saber mais. Soube que outro filho, o mais velho, “também está por perto, em Goiás, e os outros filhos retornaram para o Ceará com a mãe”. Após todos esses anos trabalhando como vigia no estacionamento no Guará I, Gabriel Aragão encontrou descanso em meio à movimentação dos carros. “Todo mundo gosta dele pelo jeito de conversar. É uma figura aqui na quadra, gente boa”, conta o balconista Ledson Ferreira, outro funcionário da farmácia. “Só vou parar de vir aqui quando eu morrer, pois aqui eu sou mais feliz”. Gabriel encerra a conversa. Fica à espera do próximo carro, da próxima moeda, do próximo abraço.

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C O N F L I TO S I N T E R N O S

Agora, a bola tá com a Luiza Como a estudante de psicologia Luiza Estevão se tornou o pilar da família, dirigente de clube, encara a prisão do pai e ainda é uma devoradora de pizzas

por clarice rosa e silva Texto e fotos

Uma mansão do Lago Sul, em meio de antigas árvores e um gigante jardim com direito à piscina é onde essa história começa e não termina. Na sala de recreação e através de três andares, encontra-se o gigante tronco de uma árvore que é cenário de uma tentativa de recomeço. Em um dos quartos atravessado pela árvore foi onde a jovem Luiza cresceu. O quarto repleto de figuras de ação, skates, consoles de videogames e livros que marcam o desenvolvimento da criança que precisou amadurecer rápido demais. Quando criança, os amigos, todos meninos, passavam noites nesta mansão jogando videogames e jogos de tabuleiro até que o tronco da árvore deixou de ser algo novo e passou a ser apenas uma estrutura que carrega o peso do lar. Luiza viu o pai, o ex-senador Luiz Estevão, ser preso quatro vezes, teve que assumir a direção de um time de futebol e ainda se manter como membro de uma das mais conhecidas famílias de Brasília. Um bloco escondido da Asa Sul, num apartamento de um quarto, onde vive hoje, rodeado pelo design clean e minimalista. As estantes são decoradas com livros de cinema, de jogos como “The Legend of Zelda: Hyrule Historia”, e misterios clássicos como a série completa de Sherlock Holmes. Na mesa de centro, jogos de cartas como “Cards Against Humanity” e “Joking Hazard” rodeiam o livro exposto ao centro. O bar pessoal, feito na bancada que separa a cozinha da sala de estar, é repleto de saquês e uísques que refletem hábitos da jovem de 21 anos. A cozinha carrega em si pratos e tige-

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las pretas e vermelhas com caracteres japoneses. Na sala ao lado, uma TV de tela plana serve de apoio para seu Wii U cujos jogos – todos da forma física – adornam a estante ao lado. O apartamento é quase vazio pois ela acabou de se mudar da casa dos pais. No quarto, uma bolsa de ginástica abriga o kimono e espadas para seus treinos de esgrima japonesa. Escondidos em uma gaveta estão alguns álbuns físicos de grupos de k-pop como BTS e Block B. “É engraçado. Me sinto mais em casa aqui do que na outra casa. Fui eu que comprei as coisas, eu decidi o que ficava e o que saía. Às vezes dou uma crise e tiro tudo, guardo tudo porque é muita ‘nerdice’ exposta”, sorri. “Quando eu era criança eu só escutava rock clássico”, ri. “Hoje em dia eu já me abro a outros gêneros de música, como rap – incluindo coreano”. Entre as almofadas de seu sofá na sala de TV há uma bola de futebol – uma de suas paixões e grande parte de seu trabalho como diretora do Brasiliense F.C. Na estante escondida abaixo da janela há travesseiros com os rostos de Mario e Luigi, os principais personagens da Nintendo. “Quando eu vi esse jogo de cama, eu tive que comprar”. “A Nintendo é minha companhia de videogames favorita, mas às vezes fica difícil porque eles interromperam suas atividades no Brasil. Como eu gosto de ter o jogo físico mais do que o digital, eu passo muito tempo no Mercado Livre”, ri. Luiza Estevão é a caçula entre os seis filhos de


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CONFIRA MAIS DETALHES SOBRE O ESPORTE FAVORITO DE LUIZA

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Luiza (direita) filma um vídeo para o Metrópoles com Gabriel Foster (esquerda) e Ricardo Corbucci (centro)

Cleucy Meireles, que é casada com Luiz desde os 17 anos. É estudante de psicologia, repórter do portal Metrópoles (de propriedade do pai) e diretora de um time de futebol. O nome dela carrega um grande peso na capital federal. Ela preferiu arranjar o próprio espaço. Queria ter mudado ainda mais cedo. Mas aos 20 foi morar sozinha. Na “casa de mãe”, como a denomina, Luiza trocou de quartos duas vezes. Passando do quarto das crianças ao quarto que pertencia à sua irmã até ela ir estudar nos Estados Unidos, e então a outro onde fez uma reforma que incluiu sua própria pequena sala de estar. Hoje em dia, prefere passar tempo no apartamento na Asa Sul onde recebe visitas. “Quando eu disse a minha mãe que eu tava querendo me mudar para um apartamento, acho que ela ficou com meio que uma sensação de ninho vazio, mas aqui eu me sinto muito mais confortável”, relembra. Todos os irmãos tiveram uma experiência de morar fora de casa – sobretudo fora do país – e ela queria ter a mesma experiência. As grandes decisões são comunicadas aos pais. Com a mãe tem comunicação fácil, porém às vezes não consegue explicar com antecedência o bastante. Hoje em dia é difícil para Luiza conseguir contatar o pai. Tem de esperar um advogado ou marcar uma visita com uma semana de antecedência no Complexo Penitenciário da Papuda, onde ele está agora, condenado a 31 anos de prisão.

O que Luiza passa com a prisão do pai não é nada com o qual não tenha tido experiência antes. “Dessa última vez, [a família] já estava se preparando. Sabíamos que ele poderia ser preso de novo, mas claro que a gente esperava que não acontecesse”, diz, olhando para baixo. Não é a primeira vez que lhe perguntam sobre o pai. A garota já foi entrevistada, em especial nos últimos anos, após ter assumido a direção do Brasiliense F.C. (clube que o pai comprou há 18 anos). Depois que o time ganhou o Campeonato Brasiliense em 2017, ela já teve que aprender muito mais sobre como lidar com a mídia. Ela lembra que seu pai sempre teve aversão à mídia, pois o principal veículo de notícias em Brasília agarrava todas as chances que tinha de “bater” nele. Hoje, após três anos no cargo de diretora, ela já negocia um contrato com uma agência de comunicação para aproximar o time aos torcedores. Luiza, Paulo Henrique Lorenzo, o gerente de futebol, e um candidato a assessor de comunicação se fecham na sala de recreação improvisada do Campo de Treinamento do Brasiliense. O ar-condicionado é ligado. De dentro do vestiário ao lado ouve-se uma mistura de sertanejo e funk. Durante essa conversa, ela ri imaginando como será difícil convencer seu pai de que esse é um passo na direção certa. Enquanto os jogadores se aquecem no campo, Luiza e Paulo Henrique discutem a condição dos jogadores e novas escalações para os jogadores em uma sala separada.


Paulo Henrique conhece Luiza desde que ela era criança, quando seu pai a levava aos jogos, nova demais para imaginar que um dia os dois estariam administrando um time juntos. Ainda mais absurdo, um time que leva três “medalhões”, ou jogadores mais experientes que levam consigo grandes vitórias, como Lúcio, zagueiro pentacampeão do mundo com a seleção de 2002. Ao final do treino, a jovem anda pelo gramado tranquila enquanto uma equipe de filmagem da TV Globo termina uma matéria sobre o recém-contratado zagueiro. As bolas de futebol voam de um pé para o outro em direção ao gol, no treino de uma nova jogada. Ela para a alguns metros do gol e observa os jogadores. Um deles pede as fotos que estão sendo tiradas enquanto descansa do lado do gol e ri. “Todo cheio de gracinha esse aí”, ela brinca na volta. Com os outros jogadores, Luiza se diverte, mas sempre mantém sua distância, por conta do profissionalismo requerido de seu cargo como diretora do time. Às cinco horas, deve partir para o próximo compromisso: a filmagem de uma matéria em vídeo para o site com o antigo amigo André Rochadel, repórter de Gastronomia do portal. Os dois foram provar o novo hambúrguer de “bolovo” em uma hamburgueria da Asa Sul. Essas gravações já tornaram-se costumeiras para ela. No próximo dia, ela encontra o YouTuber Ricardo Corbucci, famoso por conseguir devorar pizzas de 80cm de diâmetro em 23 minutos, para um desafio boca-a-boca em uma pizzaria da Asa Sul. Desta vez, seu parceiro de filmagem é Gabriel Foster, editor de vídeo para o Metrópoles e vocalista de uma banda. O resultado final é Luiza, 17 fatias; Gabriel 18 fatias; e Corbucci 60 fatias. O vídeo será editado e postado em ambos canais ao longo das próximas semanas. E o dia de Luiza ainda não terminou. “Saí do ensino médio querendo muito estudar matemática. O que não foi surpresa para ninguém”. Luiza conta que sempre gostou de física e matemática, jogos de estratégia, probabilidade, estatística, etc. “Como é um campo com pouco mercado, e não sabia que ia acabar virando dirigente de um time de futebol tão cedo”, ela conta rindo. “Acabei fazendo engenharia [civil] mesmo”. Ela segue então para casa para estudar, e, enfim, viver algo semelhante à norma de uma estudante da faculdade. Ela hoje cursa psicologia após passar dois semestres em engenharia civil. “Eu sempre gostei de matemática, mas eu queria algo prático. Não me encontrei na engenharia civil então decidi estudar uma coisa na qual nunca fui muito boa: pessoas”, diverte-se. Luiza sempre foi uma criança tímida. Ela conta com humor que foi testada por autismo três vezes por três terapeutas diferentes, mas que nunca deu nenhum resultado. No futuro, ela espera juntar

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a tão-amada matemática com sua educação de psicologia, tornando-se uma pesquisadora. “Não sei exatamente quanto aos meus planos para o resto da minha vida. Sei que eu nunca vou querer parar de estudar. Adoro aprender coisas novas. Quero um dia fazer uma faculdade de matemática, talvez até de cinema”, olha para cima como se conseguisse visualizar o resto de sua vida. Ela conta que antigamente se via saindo do país para nunca mais retornar, mas que hoje a realidade é diferente. Ela prefere ficar em Brasília.

Uma identidade O estigma vem atrelado ao nome: Estevão. “Antes eu tinha muito mais problema com isso. Esse negócio de ‘Ah, é a filha do Luiz Estevão, ah essa é a irmã da Cleuci’. Era como se você não tivesse uma identidade. Hoje em dia eu não tenho mais esse problema”, conta. Sua mãe costuma dizer “Ai você é muito Luiza Estevão”, pois as personalidades dela e de seu pai são muito mais parecidas em comparação ao resto dos irmãos. “Hoje em dia, com [a visibilidade do Brasiliense], passei a não ser conhecida como só a filha do Luiz Estevão”, explica. “Sou Luiza Estevão, filha do Luiz Estevão. Tem uma vírgula no meio”, ri. Ela tem seis irmãos mais velhos. “A única coisa que eu lamento é nunca ter ficado muito próxima deles. Quando eu nasci, quatro estudavam no exterior. Hoje são mais tios do que irmãos”. Luiza, ao mencionar sua família, recua e habilmente evita o assunto. Embora sua família sempre esteve debaixo de um microscópio escrúpulo, a menina que antes era apreensiva com os outros ao mencionarem o histórico de sua família agora ri com as gafes cometidas pelos que não associaram seu nome e sua aparência ao seu pai, sobretudo na escola. Ela lembra de um professor de português que durante muito tempo falou muito mal de seu pai para o grupo de alunos que lecionava, sem ter percebido que a filha dele estava lá. Era essa uma precaução que seus colegas de turma tomavam na Escola Americana de


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Luiza (direita) observa o treino do Brasiliense F.C. com o resto do grupo de administração.

Brasília, a mais cara do Distrito Federal e a que educa parte da elite brasiliense. No ensino fundamental, os filhos de políticos, zeladores e porteiros brincavam sem abandono, mas conforme cresciam a diferença social gritante lhes era apresentada através de aulas de história e pelas excitantes histórias das férias de cada um no início do ano letivo. Luiza, porém, fora diferente de outros estudantes com grandes nomes na escola. Sempre preferiu ficar com o fiel grupo de amigos, jogando futebol até a professora exigir que voltassem para a sala. “Me lembro que ela gritava, ‘meninos e menina, voltem por favor’ toda vez que a gente passava do horário”. Até seu último ano lá, todos conheciam Luiza como uma das estudantes mais inteligentes da turma, que tinha um grande futuro à sua frente. Anos depois, Luiza sofre para conseguir um pouco de tempo livre para si mesma. Seja para estudar, trabalhar, para jogar um videogame ou até para conhecer pessoas novas. “No último ano ficou difícil. Tenho muitas poucas relações

fora de trabalho e faculdade”. Ela aprendeu desde nova que poderia fazer diversas atividades ao longo do seu dia. “Me sinto mal se eu jogar videogame. Eu penso que poderia estar estudando ou fazendo alguma outra coisa”. Com o exemplo do pai, que fazia “trocentas outras coisas” além de dirigir o time, Luiza não se preocupa com o peso que vai acumulando em suas costas. Com apenas 21 anos, a jovem Luiza Estevão sente nos ombros um peso semelhante ao que o velho tronco de árvore que atravessa a casa carrega. O tronco sustenta, em um quarto, um time completo de futebol, repleto de trocas de jogadores e partes da administração. Em outro, livros e mais livros de psicologia, matemática e cinema enchem cada vez mais os cantos do cômodo, abrigando as ambições de Luiza para o futuro, os cursos que deseja fazer. A sala de estar se enche e pesa com a família: o pai, Luiz Estevão, a mãe, Cleucy Meirelles, seus cinco irmãos: Fernanda, Ilka, “Luizão”, “Cleucizinha” e Luiz Eduardo além de seus sobrinhos, o chão forrado pelo afeto de cada. Do outro lado da casa, como em uma balança, seus amigos de escola, trabalho, parceiros de esgrima japonesa riem e a chamam para se juntar a eles. Ela permanece entre os dois grupos, contente em se misturar ora com um ora com o outro. Há apenas um quarto para Luiza, no primeiro andar da casa. É onde ela guarda o coração e seus sentimentos. Nele há videogames e livros de mistérios, jogos digitais, cadernos rabiscados por desenhos e anotações de escola. Esta porta, a que dá acesso à complexa mente da jovem, está sempre fechada. Qualquer um que passe por lá ainda precisa bater para entrar.


L I D E R A N Ç A J OV E M

A empoderada de olho no mundo

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refúgio

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Superação de preconceitos e até de desconfiança pessoal para presidir entidade que envolve jovens em ambientes desafiadores.

POR Thales Augusto Texto e fotos

Em um corredor longo, no primeiro andar de um prédio de três andares, estão várias portas não identificadas. É possível escutar barulhos como o bater de panelas e pessoas conversando. Ali está a entrada para o escritório da AIESEC, organização presente em todo o mundo com o objetivo de engajar e desenvolver lideranças jovens, a fim de alcançar a paz mundial. Na parede ao lado da porta de entrada, a frase: “Engage and Develop every young person” (Engaje e Desenvolva toda pessoa jovem). Um ambiente moderno, com 19 cadeiras e quatro bancadas coloridas. No fundo uma parede ‘quadro de giz’ que revela, meio as informações sobre metas e siglas próprias, um símbolo autobot quase apagado, um reflexo das pessoas que utilizam aquele espaço. É neste cenário, que Amynah Lulí Graciano, 22 anos e presidente da AIESEC em Brasília, dedica mais de 40 horas semanais, com trabalho voluntário. Dedicar parte de sua vida a um trabalho humanitário não é algo que sempre esteve em seus planos. Formada e pronta para fazer um concurso ou uma pós-graduação fora do país, é como Amynah acredita que estaria caso não tivesse tido o primeiro contato com a organização em 2014. Antes, muito tímida, só pensava em si mesma. Hoje uma pessoa diferente, tem atitude e luta por mudanças, uma evolução rápida quanto a sua visão de mundo. A experiência, que inicialmente deveria ter durado seis meses, já está no seu quarto ano. Hoje, como presidente da entidade, ela acaba ficando longe da ação mesmo que sua vontade seja de participar ativamente. Trata-se de um trabalho burocrático, que carrega ainda mais responsabilidades. Tomar decisões finais, analisar dados, cuidar do escritório e das pessoas ali, são atividades do seu dia-a-dia... mais especificamente nas terças, quintas e sextas, e em alguns finais de semana. Nos outros dias, Amynah é estudante, cursa ciências sociais na Universidade de Brasília.

SAIBA MAIS SOBRE OS OBJETIVOS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DA ONU

Amynah e o slogan de sua gestão.

Seja realizando o trabalho voluntário ou estudando, o dia continua tendo 24 horas. Administrar seu tempo não é uma tarefa fácil. Apesar da bagagem cheia de acertos e erros, hoje sua rotina parece ter se estabilizado. Ainda como diretora, em 2017, Amynah trancou a universidade por um semestre a fim de se dedicar apenas ao trabalho, já que tinha que cumprir 40 horas semanais, mas percebeu que não estava sendo produtiva como queria. Hoje, com uma agenda estruturada, ela valoriza o tempo com a família e busca um horário de descanso diariamente.


Amynah: companheira, honesta e fiel. Esse é o significado do nome, de origem africana, da tribo Iorubá na Nigéria. Colocar nomes africanos nos filhos foi uma atitude que começou quando sua bisavó quebrou com o estigma da família de não conversar sobre a escravidão de seus descendentes e de suas dores, e resolveu que isso não deve ser algo que desperte vergonha. Um dos grandes ensinamentos que ela leva para a vida.

Ideal da AIESEC no parede do escritório.

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Forca no sangue

‘Make Brasilia Extraordinary’, frase que Amynah Luli Graciano leva como foco em seu trabalho na organização.

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Nasceu e cresceu em Brasília. Filha única, ainda mora com os pais. A mãe veio de Goiânia e o pai do Rio de Janeiro, ambos em busca de uma vida melhor. Desde pequena, aprendeu com eles que “se você quer fazer, então faça bem feito. Não deixe pela metade”. Palavras que a motivam diariamente no trabalho. O apoio dos pais, que vêem tudo como experiência profissional, é fundamental. Foi quando lutou pela vaga de presidente da AIESEC, que percebeu a influência moral e ética que os pais tiveram sobre ela. O pai teve de tomar a frente de sua família muito novo, com 20 anos, ter atitude. A mãe foi exemplo em sua militância para o movimento negro, além de sempre dizer “se você não gosta e te irrita, não reclame. Faça algo”. Durante a adolescência, antes de ter contato com qualquer trabalho voluntário, não acreditava em mudança. “Apenas reclamava”. Tudo mudou quando percebeu que existia uma rede de pessoas que dedicam as vidas para melhorar o mundo, começando pela cidade onde moram. “Um tapa na cara”, é assim que descreve o choque de realidade. Passou a seguir outra mentalidade, a de não apontar o dedo, mas agir. Saiu de dentro da bolha em que vivia e passou a exercer como protagonista. Hoje a paixão por ajudar pessoas faz parte de sua vida. “Não consigo viver sem”, afirma. Foi com este objetivo que, em 2015, abriu uma empresa de educação com um amigo, mas o projeto não foi para frente devido aos custos de ter um registro como pessoa jurídica. Mesmo que não tenha dado certo, a experiência fez com que ela percebesse que era exatamente isso que queria para seu futuro... uma empresa que ajude e engaje pessoas e que, de alguma forma, tenha impacto na sociedade. Ao descobrir este caminho, Amynah decidiu que sociologia não irá suprir suas necessidades profissionais, e planeja mudar para o curso de administração.


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Lideranca jovem Na parede do escritório, uma estante cheia de troféus, conquistas de anos anteriores que servem para incentivar o trabalho de cada membro, e reafirmar a diferença que fazem. Para participar da organização, existe um processo seletivo com entrevistas que chocam inicialmente, já que a pessoa do outro lado da mesa é apenas outro jovem, entre 18 e 30 anos. Este limite de idade faz com que tudo que aconteça seja devido a dedicação de jovens ao trabalho voluntário. Desde organizar um intercâmbio fora do país até fechar uma parceria com empresas multinacionais. Em busca de maior representatividade dentro da organização, Amynah resolveu se candidatar a presidência de 2018, e reforçou em seu discurso a importância de um ambiente igualitário e sem intolerância. Através de uma votação, os 83 membros de Brasília decidiram que ela iria representar a Aiesec na capital. Por perceber a responsabilidade de ser líder em meio aos acontecimentos políticos e a situação atual do país, conquistar esta vaga significou algo ainda maior para ela. Foco e disciplina são fundamentais, visto que ela toma todas as decisões ali dentro, algo que pode parecer difícil para uma jovem que ainda está no início de sua vida profissional. Não ser levada a sério por causa da idade é algo recorrente. O dono de uma grande empresa, por exemplo, disse que não fecharia uma parceria com jovens pois aquilo não fazia sentido. De volta ao escritório, Amynah gosta de sentar em um lugar que a permite ver tudo o que acontece ali, uma posição acessível caso qualquer membro queira conversar com ela. A linha que divide trabalho e amizade é fina, mas isto não gera problemas, já que, para ela, é uma questão de assumir que todos ali têm a mesma faixa etária. A dificuldade aparece quando ela sai com os membros para se divertir nos finais de semana, e confessa que não consegue parar de ser “a presidente”.

Detalhes; Pulseira coloria, presente de um colombiano, e os adesivos dos ODS no computador.

Mementos Em uma sala pequena, anexa ao escritório, utilizada para reuniões e entrevistas, Amynah conversa e relembra histórias de sua vida. Mesmo sem janelas, e apenas um ventilador, desligado, em um dos cantos, continua usando seu casaco que exibe a seguinte mensagem em inglês: Prosperidade & Pessoas & Dignidade & Justiça & Planeta. Palavras que vão além da estampa e se tornam objetivos a serem seguidos, presentes a todo momento em seu discurso. No seu braço direito, duas pulseiras, uma com o nome da organização, e outra que inicialmente parece simples, mas que carrega um significado muito maior. A pulseira é da Colômbia, país que ela nunca visitou. Foi um presente do primeiro intercambista a assinar um contrato para vir para brasília realizar trabalhos voluntários. Ela quem fez a entrevista, mesmo sem saber espanhol, e participou de todo o processo. O colombiano se sentiu convidado a vir para cidade, e resolveu mostrar um símbolo de sua gratidão. Essa pequena lembrança, serve para mostrar que não importa qual seja a barreira, há sempre uma forma de ajudar as pessoas. O computador, ferramenta que utiliza para trabalhar, também carrega outros significados. São dois adesivos, colados perto do mouse-pad, que revelam objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU. Igualdade de gênero e Parcerias em prol das metas. São esses que mais a motivam e casam com sua luta pessoal. Em meio ao trabalho diário, que pode ser muito estressante, ocupar um cargo alto significa que você deve ser o último a perder a paciência. Situações como um intercambista no egito “sumir” e ficar sem responder mensagens por alguns dias, podem acontecer. Sabendo disso, Amynah gosta de escutar músicas para manter a calma e relaxar.


Preconceito

Amynah é mulher e negra, e o preconceito sempre foi constante em sua vida. Ela não conseguiu esquecer situações absurdas como a de quando era apenas uma criança no ensino fundamental. A professora ia fazer um ditado e pediu que os alunos guardassem os materiais. Ela, então, pediu para a professora esperar um pouco, e recebeu como resposta: “Vou ter que esperar a neguinha guardar o lápis”. Amynah sempre estudou em escolas particulares, e lamenta que a maioria negra do país não tenham a mesma oportunidade. Seja em outra escola de ensino fundamental, ou no ensino médio, era sempre umas das únicas negras. Chegou até a sofrer racismo de outro colega negro. Já na adolescência, quando voltava a pé para casa com uma amiga que estudava em um colégio público, as pessoas achavam estranho que era ela que estava com o uniforme da escola particular, e chegavam a dizer que as camisetas estavam trocadas. Hoje como estudante universitária, não percebe qualquer racismo direcionado a ela. Já no seu cargo de presidente da Aiesec, situações de preconceito tendem a acontecer. Pessoas se assustam quando descobrem que ela ocupa o maior cargo ali dentro, e até mesmo durante o processo de posse, em que o antigo presidente apresentava seus contatos para ela, era vista como secretária e não como alguém que assumiria o cargo. Outra vez, tinha marcado reunião com uma startup para buscar parceria. Ao chegar na porta do local foi recebida com a seguinte frase: “Não estamos aceitando currículos”. A pessoa que a atendia não imaginou que era ela a aguardada para uma reunião de negócios. Em meio a tanto preconceito, a intolerância também prevalece, atingindo pessoas ao seu redor. Responsável por legalizar um intercambista no país, na época, levou o tunisiano para fazer documentos. No local, conversava em inglês com o rapaz, atraindo vários olhares até a atendente perguntar, surpresa, se ela falava inglês. A mulher atrás do balcão perguntou porque o rapaz estava ali, e em seguida, se ele não era um homem-bomba. “Isso não é uma brincadeira que se faça”, respondeu.

Marrocos No fim de 2015, decidiu que estava na hora de tentar um cargo maior dentro da Aiesec, e se candidatou a uma das diretorias. O resultado não foi a seu favor, e veio como um choque. Começou a questionar o porquê de estar ali, se estava fazendo tudo certo e se estava valendo a pena, foi então que decidiu se afastar por um tempo e fazer um intercâmbio pela organização. Não imaginava que a viagem que estava prestes a fazer, mudaria sua vida para sempre, seja na forma de ver o mundo e as pessoas, quanto na maneira que ela se encontra neste meio.

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Primeiramente, escolheu um projeto que ligava diretamente com o 17º objetivo de desenvolvimento da ONU, parceria em prol das metas, sem saber para onde iria. Quando descobriu que ia para Marraquexe, no Marrocos, se assustou mas decidiu encarar o desafio. A duração seria de sete semanas, e foram escolhidas 30 pessoas em todo o mundo para realizar este intercâmbio. Assim que chegou na cidade, depois de 20 horas viajando, uma surpresa: os outros 29 não foram, com medo de ataques terroristas. Ela era a única a desembarcar e deveria trabalhar ali, inicialmente, sozinha. Ficou hospedada no apartamento de uma angolana, em um prédio onde apenas negros moravam. O país é racista, com muita diferença entre classes. Foi importante para ela ter contato com a cultura africana, e aprender com Nicolacia, sua host. Elas dividiam a cama, as roupas tinham que ficar na mala, e revezavam na cozinha. Uma realidade totalmente diferente se comparada a sua vida no Brasil ou quando fez um intercâmbio em Londres para aprender inglês. Logo no início, o incidente mais marcante de racismo e assédio na sua vida aconteceu. Foi agarrada em uma rua por três marroquinos bem vestidos, que diziam “você tem que voltar pra África”. Só foi liberada pois mostrou o passaporte brasileiro. Ser segurada com força, e só poder ir embora por ser brasileira, pode não ter deixado marcas físicas, mas trouxe cicatrizes psicológicas. Depois disso, teve que decidir entre contar para os pais e voltar para casa, ou continuar seu intercâmbio e lutar para ajudar pessoas como Nicolacia, que passavam por isto todos os dias. Amynah, então, se reafirmou como mulher negra e percebeu o quão importante é seu trabalho voluntário. Decidiu continuar o projeto e entendeu que precisaria de mais pessoas engajadas, pois o problema a ser resolvido era muito grande para ela enfrentar sozinha. Em uma fala ao povo, promovida pela Aiesec de lá, conseguiu que pessoas a nível local quisessem ajudar. Começaram então a entrar em contato com a maior mídia da cidade e Ongs, para aumentar a mobilização. Neste período, teve contato com diferentes pessoas com percepções únicas. Conheceu uma menina que dava aulas de debate e quando descobriu o projeto, resolveu trazer para suas discussões os problemas daquela sociedade e como mudar. Nas últimas semanas do intercâmbio, uma empresa da cidade resolveu fazer parceria com o projeto e disponibilizar bicicletas pela cidade, a fim de diminuir o número de carro nas ruas e diminuir a poluição. Neste momento, Amynah percebeu sua importância. Tinha aprendido a olhar para adversidades e buscar uma forma de transformar aquilo em algo positivo, que devia assumir quem ela era e dessa forma empoderar mais pessoas. Já não era a mesma pessoa que embarcou para Marraquexe. Estava pronta para voltar para casa e encarar desafios ainda maiores na capital do Brasil.


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COMO DIZER “SAUDADE” EM BENGALI por Cezar A. Camilo Texto e fotos

ACESSE A REPORTAGEM E CONHEÇA A HISTÓRIA DE OUTROS IMIGRANTES


ESTRANGEIRO

Em busca de recuperar o tempo perdido, Mustafá atravessa o globo para construir uma nova vida e descobre como se diz “saudade” em português Chuchu e maracujá são sabores desconhecidos ao paladar bengalês. Somente uma fruta rememora toda gente, toda água, toda mata da região de Daca, Bangladesh: a laranja. A fruta cítrica tem familiaridade à língua dos refugiados vindos da Ásia. Seu doce é como uma palavra do idioma mãe, que abraça o filho livre de seu abrigo. Em português, as palavras tropeçam no inglês introjetado pela recepção dos voluntários a uma nova vida. Mustafá Mia, 49 anos, vendedor do hortifruti com seu nome, em Samambaia, Distrito Federal, provém da capital bengali e sente a adstringência inevitável na boca, o idioma que nomeou as primeiras revelações persiste em ser dito. - Kamalã, 5 reais. A cliente de Mustafá tenta negociar sem sucesso. Um saco de Kamalã, 3 quilos de laranjas vendidos com desconto, de R$ 10 por R$ 7, não faz sentido para o comerciante que compra a saca por R$ 4. Sem respostas, ainda fita o vendedor Mustafá como se estivesse fazendo-se de inocente. O olhar calmo, com pálpebras relaxadas, íris negra, tentam fazer entender o impronunciável. Há uma distância entre o dono da casa e aquele que oferece uma proposta alternativa de negociação. O preço da fruta na sua terra natal custaria pouco mais que 119 takas, moeda bengalesa. 20 takas, por exemplo, equivalem a R$ 0,84. Além da diferença de preço, há uma distância cultural, linguística, subjetiva. Situação comum, duas vezes em um dia de outono. Olhar ao chão na despedida. Tchau. Na nova terra, ele trabalha por uma melhor qualidade de vida. Tem esperanças de conseguir uma casa, porém receia trazer a família para o Brasil. Pequenos constrangimentos que podem ser superados sem grande estardalhaço. Fica atento ao movimento em frente à loja. Uma de suas maiores preocupações desde que chegou a Samambaia é o que aqui chamam de “ladrão”, Cōra ( ) em bengali. Percebeu o medo de algumas pessoas da vizinhança ao caminhar na rua. Lembra da violência desproporcional que mata muitas pessoas em Bangladesh. Bengaleses tem testemunhado violentos ataques contra blogueiros, acadêmicos, ativistas LGBTs e minorias religiosas, segundo o Observatório de Direitos Humanos. Mustafá rememora o passado de desilusões políticas ligadas aos governantes do país de origem. “Politics”, ele repete como sendo a principal causa da sua vinda para um país desconhecido da América do Sul. Foi recebido em Brasília por amigos. Passou por Santa Catarina, é registrado como “legal” na Polícia Federal há um ano e nove meses. Foi um trajeto tranquilo, veio de avião. Já tinha voado antes, mas dessa vez escolheu o destino pela característica receptiva dos tupiniquins e tinha a certeza de que não iria mais voltar. Vende hortaliças em uma loja de esquina, bem localizada, com variedade de frutas e verduras, a maioria fresca até o final da tarde. A freguesia o conhece e aprecia a simpatia de Mustafá. Tem experiência com vendas, trabalhou na loja da família durante a adolescência até vir para o Brasil.

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Muçulmano, diz gostar muito do povo brasileiro com uma única exceção aos costumes nativos. “Homem com homem, mulher com mulher” é algo inaceitável para a tradição de Mustafá. Esse estranhamento gerado pela pluralidade de orientações sexuais, uma luta à base de muito sangue e suor, principalmente pela parte do movimento LGBT, aprofunda a característica tradicionalista do senhor sentado à frente da loja. Tem uma auxiliar, chamada Maraísa, que brinca com o silêncio precedido pela ressalva preconceituosa do chefe aos costumes brasileiros. Chama atenção para o casamento poligâmico dos muçulmanos, normal na terra de Mustafá. Ele rebate. Crê que o costume se trata de uma espécie de ostentação por parte dos mais afortunados. Ri com a mão na testa. Depois, completa demonstrando entender a cultura brasileira e respeita-la. Já tem muitos amigos aqui, atende diferentes pessoas todos os dias. Quer ficar, viajar para Bangladesh anualmente só para visitar a família e amigos. Espera o visto permanente da Polícia Federal que deve sair em três meses. Pelo menos essa foi a resposta da última vez que esteve no departamento tratando da documentação, igual a resposta da penúltima vez, três meses antes. Há um atraso, segundo ele, devido à preferência aos refugiados de guerra. O Brasil tem cedido permanência a imigrantes com menor celeridade devido a situação crítica de alguns. A dificuldade é caracterizá-los como refugiados perante os órgãos federais. Após deferido o visto permanente, são 90 dias para validação do documento, segundo o Instituto de Migrações e Direitos Humanos - IDMH. A saudade, “Akanksa”, é caracterizada pela falta da família por perto. Sente falta dos amigos e parentes. Cita a falecida mãe, a esposa e os três filhos que permaneceram em Daca. Está aqui sozinho, resignado com a distância de casa em uma kitnet nos fundos da loja. Os filhos não vieram visitá-lo ainda pela questão da distância, 15.563 quilômetros de mar entre eles, mas são constantemente alertados a saírem à procura de estudo e especialização. A troca cultural parece fazer bem ao vendedor de 47 anos, ao menos. Entra uma nova cliente na loja. Mustafá que costuma responder ao aceno da clientela para as frutas com o preço redondo das coisas, desabrocha um cumprimento protocolar particular ao português brasileiro: oi, tudo jóia?

Mustafá Mia, provindo de Bangladesh.


CRISE

Adeus, Venezuela Doutora em línguas estrangeiras, a professora Yainy Zulimay deixou a cidade natal e a família no país vizinho para recomeçar como professora de cursinho em Brasília

por larissa lustoza Texto e fotos

CONHEÇA OUTRAS HISTÓRIAS DE IMIGRANTES SOBRE COMO É VIVER NO BRASIL

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Nos primeiros anos, Yainy dormia no chĂŁo e pedia comida aos vizinhos atĂŠ encontrar um emprego.

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AEROPORTO INTERNACIONAL EL DORADO BUCARAMANGA - COLÔMBIA As rodas das malas pareciam pequenos trens deslizando sobre trilhos. As paredes vibravam e o ar se agitava com o movimento dos aviões decolando e pousando. A fila de pessoas que estavam viajando para outro país diminuía aos poucos e entre os imigrantes havia a colombo-venezuelana que buscava reconstruir sua vida. E então chegou a vez de Yainy Zulimay passar pela imigração. Era época de Copa, os agentes estavam severos, ela estava sozinha, com passagem só de ida. Com um passaporte colombiano em mãos e um venezuelano no meio das roupas de sua única bagagem, ela sabia que sua jornada não seria fácil. E não foi. Em Sobradinho (DF), há cinco anos, Yainy passa por muitas dificuldades, mas não passa pela cabeça voltar para casa. Ela recorda daquele momento no aeroporto. “Por que você estava escondendo isso?”, um dos agentes colombianos perguntou depois de abrir e revistar a mala e encontrar o passaporte venezuelano. “Eu não estava escondendo. Eu só não vou usar, não preciso dele”, ela respondeu. E era verdade. Toda a viagem foi feita com documentos de colombiana, inclusive o passaporte recém-impresso e visto. “Mas você não é colombiana?”, o agente não entendia o porquê de dois passaportes. Yainy explicou que por ter dupla nacionalidade, podia ter os dois documentos, cada um feito em um dos países. Saiu do aeroporto da Colômbia com destino ao Panamá e em seguida para o Brasil, mas toda a vida foi construída na Venezuela. A primeira descrição da infância: “havia liberdade”. As pessoas não tinham medo de sair de casa, podiam comer onde quisessem, podiam visitar seus parentes. Apesar da educação não tão boa, qualquer um podia concorrer às seleções de emprego. Parecia um país normal, com suas qualidades e defeitos, igual a qualquer outro. “Até que começou a ser uma competição. Se você pertenecía a um partido político, você tinha mais chance de pegar um bom emprego”, explica. Ela tinha 19 anos quando Hugo Chávez entrou no poder. Resolveu concorrer a uma bolsa de estudos na França porque sempre gostou de diferentes idiomas e de viajar. Na entrevista de seleção, estava um representante do governo, que era quem ia autorizar o pagamento, e um representante da escola de francês, que iria medir o conhecimento da língua. Quando ela terminou todas as provas, recebeu como nota uma surpresa. “Seu currículo é muito bom, tem as qualidades para concorrer à bolsa aqui, mas infelizmente você está na lista”, falou o representante do governo. Yainy nunca ouviu falar de lista alguma. “Como assim?”, perguntou. “Você votou contra o governo. Nós temos a lista que mostra isso”, disse. O voto deveria ser secreto por lei na Venezuela, mesmo naquela época. “Deveria ser, mas eles tinham o nome das pessoas que tinha estado contra eles. É óbvio que não havia liberdade”, lamenta.

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Como ter liberdade de votar em quem quiser quando havia uma lista que exibia seu voto? “Não votar era pior porque colocavam seu voto no jeito que eles quisessem. Eles trocavam”, conta. Nas épocas de eleições, qualquer estratégia era utilizada para ganhar, ou comprar, votos. Representantes políticos iam nas casas, ligavam, te acompanhavam até o local de votação, prometiam transporte de ida e de volta, davam dinheiro e comida. Nas portas das escolas, onde ocorriam as votações, sempre os dois partidos presentes como vigilantes. A divisão política começou a ficar mais rígida e passou a invadir as casas. Yainy vivia em Maracaibo, no estado de Zuila. Seu estado, ao contrário de muitos, era governado pelo partido da oposição. Ela própria, pais e irmã discordavam das políticas de Chávez. O irmão, porém, concordava com o governo nacional. “Não, isso aqui está acontecendo por culpa do seu governo. Vocês estão errados e você sabe disso”, discutia o pai com o filho durante a janta. Cada justificativa que o mais novo apresentava, o resto da mesa não conseguia acreditar. “Você está doido? Como você está falando eso? Você sabe que é errado”, eram os comentários mais comuns do resto da família. E ele não sabia. A rivalidade política passou a ficar tão aguda que o irmão não falava aos colegas de trabalho onde morava. A esposa trabalhava para o governo regional (de oposição), por meio do qual conseguiu uma casa. O irmão nem ousava comentar que morava em uma casa concedida pela oposição. Nem visitar os amigos era tarefa fácil. Na casa da melhor amiga, todos concordavam com o governo nacional. Adoravam ele. Yainy só conseguia visitá-la quando os pais da sua amiga não estavam em casa. Se estivessem, ela era obrigada a aturar comentários e piadas. E ela não podia deixar de ser amiga. Faziam trabalhos juntas, estudavam juntas. Até hoje, fazem parte de um grupo de whatsapp com outros colegas de faculdade, que se tornou o meio onde ela descobre qual deles ainda sobrevive.

AEROPORTO INTERNACIONAL TOCUMEN CIDADE DE PANAMÁ - PANAMÁ Quando o avião pousou no Panamá, a conexão para o Brasil, teve uma recepção diferenciada. Enquanto as pessoas saíam do avião, dois agentes seguravam uma foto e escaneavam os rostos. Ela percebeu quando a reconheceram. “Você é Yainy Buitrago?”, perguntaram. Quando ela afirmou, pediram que os acompanhasse.

Por falta de conhecimento, Yainy teve que tirar os documentos de imigração duas vezes com problemas no sobrenome.

Entraram em outra parte do aeroporto para revistá-la e pediram que passasse por um raio-x. “Tira a roupa”, mandaram. Ela obedeceu. Passaram o scanner pelo seu estômago, por suas partes íntimas, qualquer lugar que parecesse suspeito. “Você veio vestida com muita roupa”, um agente notou. “É que eu não queria pagar a taxa de embarque”,


Yainy terminou de colocar sua última camada de tecido e saíram de volta para a área normal do aeroporto. Agora, ela só precisava passar pelo último teste. “Vamos, nós te acompanhamos até o seu portão. Isso aqui é normal, nós fazemos random. Pegamos qualquer pessoa e fazemos isso”, justificou um dos agentes. Ela não viu problema, sabia que não tinha nada a esconder. Quando saíram da parte de imigração, os agentes que a acompanhavam pareciam a guiar para o lado contrário ao que ela precisava ir. “Não, minha porta é para lá. É para lá”, ela apontou para onde deveria ir. Os agentes não esboçaram reação alguma. “Ah, sim, desculpa”, e nem soaram sinceros. Entrou no próximo avião, com destino ao que seria seu novo lar. Antes de decidir viver de vez no Brasil, ela visitou uma amiga no país antes. As duas se conheceram nos Estados Unidos, quando fizeram o mestrado em Kentucky. “Quando você quiser, você pode vir”, sua amiga a convidou. Yainy gostou da ideia. Gostava da cultura, da língua, do país. Decidiu visitá-la. Enquanto estava por aqui, uma escola de idiomas em Sobradinho, no Distrito Federal, a convidou para ser professora por um tempo e até ofereceram uma vaga de emprego. Mas ela estava casada na época, não conseguia tomar uma decisão lembrando que seu marido ainda estava na Venezuela. Só não esperava que quando voltasse para lá, receberia de boas-vindas um coração partido.

A ideia rodopiava na mente. A irmã, vendo a situação, deprimida com a separação, também funcionou como uma peça para sua decisão. “Yainy, você não gosta de viajar? Não estudou língua para viajar? Como você se projeta para seu futuro?”, perguntou a irmã, que tentava encorajá-la. As peças iam se juntando e a partida dela estava quase certa. Mas largar tudo que havia construído, tudo que havia comprado, não era tão fácil. Concursada, ela trabalhava na escola regional de Maracaibo. Surgiu a oportunidade de ser sub-diretora. Quem tivesse mais “credenciales” ocuparia o cargo. Yainy estava no topo da lista. O diretor marcou uma reunião para anunciar a nova sub-diretora. Seus colegas já a parabenizavam e ela se preparava para o novo cargo.

O divórcio com o marido foi um golpe duro. Enquanto me contava o que aconteceu, suas mãos não paravam de dobrar e desdobrar uma folha de papel branco. “Essa foi a causa mais forte de eu ter saído de lá. Eu queria ir embora. Ir para um lugar onde ninguém me conhecia, para eu me virar sozinha, ter outras experiências. No final, foi de Deus”, explica. Mas não foi simples como acordar de manhã, preparar as malas e viajar. Quando Yainy voltou à Venezuela e seu marido pediu divórcio, entraram com o que a lei venezuelana conhece por “separación de cuerpos por un año”. O casal fica separado, mas casados legalmente por um ano. Quando o período acaba, o juiz pergunta se vão reconciliar ou não. Se a resposta for não, eles são divorciados legalmente. O ano de separação foi difícil. Não conseguia concentrar no trabalho, na faculdade de Turismo, que havia acabado de entrar, nem na sua família ou amigos. “Você tem que ir na psicóloga, você não está bem. Você não pensa direito”, sua mãe sugeriu. A ideia soou boa, mas sua primeira consulta foi um fracasso. Ela não conseguia parar de chorar. As únicas palavras que ouviu da psicóloga era que seu horário havia acabado. Na segunda vez, decidiu controlar as lágrimas e conversaria sobre tudo. “Você sabe o que você quer fazer. Vá fazer sua vida. Saía daqui, se quiser”, foi o remédio que a médica sugeriu.

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Então, o diretor apresentou uma mulher que ninguém havia visto como nova sub-diretora. “Como assim? Não estávamos concorrendo em entregar crendeciales e vocês estudarem cada caso?”, foi a primeira a reagir. “Ah, Yainy, mas infelizmente as coisas aqui funcionam de outro jeito. Você sabe que não pertence, você está muito imparcial”, o diretor se desculpava.


101 Os professores da escola sabiam que o diretor seguia as ideias do governo de Chávez. Ela e grande parte dos outros profissionais eram da oposição. A sugestão, de que aquela mulher desconhecida foi escolhida só porque Yainy não concordava com os ideais políticos do diretor, gritava na mente da colombo-venezuelana. O divórcio, a divisão política e seu desejo de construir uma nova vida foram suficiente para que pegasse as malas e viesse ao Brasil. E então veio, em 2013, no ano em que Maduro seria o novo presidente. Não sabia como funcionavam as regras de imigração, quais documentos precisava, como procurar emprego ou lugar para morar. Enquanto vivia com sua amiga, que já havia a abrigado antes, Yainy procurou emprego em Sobradinho.

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“Ela é venezuelana?”, perguntou o servidor no outro lado da linha. O coordenador explicou que ela tinha dupla nacionalidade. “Fala para ela para sair do país como venezuelana e voltar como colombiana”, sugeriu o Itamaraty. O coordenador da escola de idiomas lhe explicou tudo que ela precisaria fazer, todos os documentos e procedimentos. Para facilitar a entrada da colombo-venezuelana, ele ainda lhe ofereceu um ‘emprego’. “Eu quero que você trabalhe aqui. Você faz o cadastro no site [do Itamaraty] e pede um visto de emprego”, ele explicou. O visto de emprego temporário no Brasil para estrangeiros tem a duração de dois anos e pode ser prorrogado por mais dois. Morando esse período no país, ela podia pedir o visto de residência permanente. “Eu estou te empregando, sem te empregar. Se eles me ligarem, eu falo sim. Ela vai trabalhar com a gente. Quando você vir, passa pela entrevista e pela nossa prova”, explicou.

AEROPORTO INTERNACIONAL DE BRASÍLIA BRASÍLIA - BRASIL E, assim, Yainy pousou no Brasil mais uma vez, só que agora como colombiana, com um visto de emprego e a opção de ser residente temporária. Depois de duas partidas que a fez se sentir dentro de um filme, ela finalmente chegou ao destino final. Quando foi à Embaixada do Brasil na Colômbia, a convidaram para ser voluntária na Copa e ela aceitou. Tinha um emprego garantido e uma oportunidade de conhecer pessoas de outros países que viriam ao evento. Ela estava no aeroporto de Brasília, já tinha passado pela imigração, quando seu celular tocou, era o coordenador da escola de idiomas que tinha lhe prometido um emprego. “Ah, Yainy, desculpa, mas fui promovido. Vou para a Espanha, mas pode chegar lá e fazer tudo”, disse. Ela foi à escola e não havia emprego algum. Com quinhentos dólares, ela não sabia para onde ir e nem o que fazer. Precisava de emprego para não perder seu visto e de um lugar para dormir. Uma professora de espanhol da mesma escola a convidou para morar junto com ela.

Yainy montou a própria escola de idiomas em Sobradinho (DF) após dois anos vivendo no país.

O coordenador de uma escola de idiomas escutou sua história e prometeu ajudá-la. “Vamos ligar para o Itamaraty. Eu ligo por você e pergunto o que você pode fazer para conseguir emprego e quais documentos você precisa tirar”, ofereceu ele.

Procurar um emprego no Brasil foi a parte mais difícil. Com medo de ter que voltar ao seu país, ia atrás de qualquer vaga. Falaram que na Agência do Trabalhador, ela encontraria um emprego. Foi lá. De lá, a enviaram para uma entrevista de emprego perto do Ginásio de Esportes de Sobradinho. Com seu currículo de dez páginas, pensava que era uma entrevista individual de emprego, mas quando viu as pessoas chegando suas esperanças diminuíram. “Vamos ver um vídeo e depois vocês me falam o que entenderam”, era a primeira etapa. Yainy soube, nessa hora, que não teria aquele emprego. Havia acabado de


Doutora em línguas estrangeiras, Yainy dá aulas de inglês e espanhol em cursinho.

chegar, não sabia bem a língua e se comunicava pouco em português. Suas aulas no NEPPE - um centro organizado pela UnB que ensinava português a estrangeiros - mal haviam começado. Quando o vídeo acabou, todos comentaram, menos ela. “O que eu ia falar, se eu não sabia falar?”, questiona. A segunda parte era escrever suas qualidades e o motivo para lhe contratarem. Se ela mal sabia falar, escrever era pior. Ela entregou a folha em branco. “Mas eu trouxe o currículo”, ela pensou que talvez com o currículo tivesse alguma chance. “Vocês me dão o currículo e vem aqui na frente falar sobre vocês”, era a terceira etapa. O supervisor do processo estranhou o currículo em inglês e de dez páginas de Yainy. Ela foi na frente. “May I speak in English? It’s better to express myself” (Posso falar em Inglês? É melhor para eu me expressar”), perguntou. Não conseguiu o emprego. O supervisor lhe disse que seu currículo era tão bom, que ele não podia pagar e ela também não podia dominar bem a língua. Com doutorado em Línguas Modernas e mestrado em Educação, ela concorria a um emprego de vendedora de cursos de idiomas e aprendeu uma lição naquele dia. “Você quer qualquer coisa e você pode notar que nós venezuelanos estamos limpando o chão. Mas quem está limpando o chão? Engenheiros, agrônomos, doutores. Então preferimos rasgar nosso currículo e nem falar o que nós somos”, diz ela.

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Enquanto sua busca por um emprego continuava, ela permanecia na casa da professora de espanhol do curso de idiomas, que morava junto do namorado. Um dia, a dona da casa chegou com um aviso. “Você vai embora da minha casa agora”. Ela já sabia o porquê e aceitou. O namorado da outra mulher começou com uma atenção especial aqui e ali, depois evoluiu a elogios mais constantes e Yainy, por não ter emprego, passava muito tempo na casa sozinha com ele. “É, é sua casa, não posso fazer nada”, concordou. Expulsa, estava em busca agora de onde dormir e onde trabalhar. Ela morava ainda com a professora, mas sabia que seus dias estavam contados. Um dia, na parada de ônibus, ainda sem ter um emprego e sem saber onde morar, uma senhora de idade se aproximou “o que você faz? Está entendendo o que eu estou falando?”. Yainy negou. “Ah, que bom. Eu preciso de alguém para cuidar da minha casa”. Aquela era a porta que ela precisava para sair da outra casa. Rapidamente, pegou suas malas e foi morar com a senhora mais velha. “Você vai acordar comigo, no horário que eu acordo, dormir no mesmo horário que eu dormo”, a mais velha começou a lista das regras. Fazia as tarefas da casa, cozinhava o almoço, assistia novela com ela, acordava e dormia no mesmo horário em troca de moradia. Chegou a um ponto que ela não aguentava mais. Os filhos da


103 senhora iam visitá-la muito pouco e pareciam entender que Yainy não suportava aquela rotina. Um deles prometeu ajudá-la. “Você está desconfortável, não está? Vou te ajudar a procurar alguma coisa porque minha mãe não é fácil”. A venezuelana queria gritar que queria fugir daquela casa. Mas, no final, o filho realmente a ajudou. Ele indicou um lugar que uma mulher alugava quartos e estava disponível. “Eu já falei com ela, pode ir lá”. Yainy foi. Na frente do lugar, havia uma placa que ela não entendia o que estava escrito. “Só rapazes”, dizia. Rapazes era uma palavra nova, nunca tinha lido antes. “Você tem quanto?”, perguntou a dona do imóvel. “Eu tenho para pagar um mês”, respondeu. No começo, não entendia porque era a única mulher. Ficava desconfortável, mas suportava. Compartilhavam o mesmo banheiro e o mesmo lugar de lavar roupas. Com vergonha por ser a única mulher, Yainy não estendia suas roupas íntimas no varal compartilhado. Percebia os olhares dos homens e se perguntava porque as outras mulheres que iam ao imóvel, nunca ficavam por mais de algumas horas.

Para beber água e comer, pedia aos vizinhos. Seu quarto não tinha móveis por enquanto. Dormia no chão. Aos poucos, as pessoas iam doando o que podiam. Quando descobriu o significado da palavra “rapazes” quis se mudar de lá. Havia começado um emprego de professora de inglês em outra escola de idiomas em Sobradinho - a mesma em que já tinha dado aula como professora convidada uns anos antes - e conseguia o suficiente para morar em um quarto pequeno em outro imóvel. Ainda não tinha muito, ganhava pouco, mas ia assim reconstruindo a vida. Hoje, Yainy Buitrago é dona da sua própria escola de idiomas, além de trabalhar em outra. Devagar, foi mudando de imóvel em imóvel e vive em um apartamento comercial melhor que o quartinho apertado em que teve que sobreviver por um tempo. Apaixonou-se novamente e está casada com um argentino, que também deixou

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tudo para trás no seu país para viver com ela. De todas as burocracias que enfrentou no Brasil, o casamento foi a parte mais fácil. A família ficou sabendo pelo whatsapp, que é o meio em que comemoram os aniversários, natal e outras festas. O pai e a mãe não vivem mais na bela e grande casa ao lado da escola na cidade onde viviam, Maracaibo. Hoje, vivem na Colômbia. Sua irmã se casou com um espanhol e mora na Espanha. A nerd da família é atendente de call-center e está estudando o ensino médio novamente, porque seu dois diplomas de graduação da faculdade e o do ensino médio não são válidos no país estrangeiro. E o irmão dela, que tanto já defendeu o governo nacional, busca uma maneira de sair do país. Quer ir a Colômbia também, com sua mulher e três filhos. Ele só faz uma refeição por dia, porque salva o resto da comida para os seus filhos.

“Você não pode estar com uma comida em uma sacola, se não matam você. Pessoas que não tem crime. É de desespero mismo para alimentar seus filhos” Quando começou a contar a história, disse que seu irmão estava na Colômbia, buscando os documentos para sua família poder sair da Venezuela. A esposa e filhos ainda estavam receosos de deixar o país e tudo que haviam construído. Conforme mantivemos o contato, ela me afirmou que eles iriam sair. O toque de recolher às nove da noite que desligava toda a energia, a falta de comida e as dificuldades financeiras para todo o resto foram demais para todos. Decidiram ir à Colômbia. Yainy Zulimay Buitrago não tem vontade de voltar à Venezuela, mesmo com todas as dificuldades que enfrentou no Brasil e mesmo que sua vida não seja a mesma de antes. Ela acredita que, um dia, a situação do seu país vai mudar, mas não sabe quando. “Se mudar, só os filhos dos filhos dos meus filhos, mas só eles, ninguém mais. Mas, por enquanto, você tem que ter determinação e fazer alguma coisa, não pode esperar que seus filhos morram de fome”, critica.


NA WEB

Olho na transmissão,

garotinho!

SAIBA MAIS SOBRE AS RÁDIOS DO DF

Sonoplasta e jornalista transformou um projeto dos tempos de estudante em mais que um hobby

POR Pedro Fonseca Ouvir a Rádio Nacional de Brasília o fez querer ser jornalista. Acompanhar as mais diversas vozes ajudou a criar uma relação próxima com o radiojornalismo. Aos 17, Rener Lopes já tinha decidido que faria faculdade de comunicação. A mãe, Maria José, desejava que o filho fizesse ciência da computação por causa de mercado de trabalho. O rapaz insistiu e conseguiu implantar uma rádio dele ainda como estudante. Rener, hoje com 31 anos, sempre demonstrou vontade de cobrir os mais variados eventos, seja futebol, basquete, ou até mesmo futebol americano. O que ele mais queria era compartilhar os eventos esportivos da capital federal. A rádio se originou em 2009, já no final do curso, como trabalho de conclusão de curso. Percebia o espaço vazio para web rádios esportivas em toda a região. Surgiu, assim, a Rádio Clube Esporte do DF com a missão de ser a primeira web rádio do Centro-Oeste a cobrir os esportes da capital.

APITO INICIAL Os primeiros momentos com a rádio foram mais corridos do que parecia, conciliando a Bandeirantes AM com a própria rádio, que, em seu surgimento realizava até três transmissões para que o nome da ainda, Rádio Clube Esporte DF fosse notada. “Dependendo do dia, fazíamos duas ou três transmissões. Ao realizar uma pela manhã, a equipe já tinha que se deslocar para outra na tarde”, lembra. O início da Rádio Clube Esporte do DF, em meados de 2009, coincidiu com a era de ouro do time de basquete de Brasília. Na primeira temporada do Novo Basquete Brasil (NBB), já teve o gosto de transmitir a final que, infelizmente, terminou com o revés do time da capital.

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No próximo ano, e temporada seguinte do basquete, foi quando Rener sentiu que a rádio passaria a ser a atividade que realmente queria exercer. Foi com uma equipe de estudantes voluntários para Anápolis (GO) para transmitir o último jogo da final. O time de Brasília foi o campeão. No evento pôde perceber “acordamos ali: realmente somos uma rádio, chegamos credenciados e fomos transmitir o jogo. Estávamos chegando para valer e vimos que estava dando certo”. No mesmo ano ocorreu a mudança do nome da rádio, antes era Rádio Clube do Esporte DF e passou a ser conhecida como Esportes Brasília (EB). A rotatividade da equipe é grande, já que ele abre as portas para quem quer aprender a cobrir a área de esportes. Mateus Teófilo, que está na equipe desde fevereiro do ano passado, conheceu o trabalho de Rener no mês em que trabalhou na TV Brasiliense, já demonstrava interesse em trabalhar no cenário esportivo. Ele entrou na Esportes Brasília, e assim até colaborou no trabalho de quem ele acompanhava. “Desde o meu começo ele fez questão de quebrar o paradigma ‘chefe-estagiário’, sempre esteve mais como um tutor/parceiro. Essa é uma impressão que eu tinha dele anos atrás, e pude confirmar assim que entrei na rádio”, destaca Mateus. Félix Neto acompanha Rener nessa caminhada. “Um cara que ama o que faz. Sempre crescendo em conhecimento e acompanha a tecnologia”, define. Quando começou, a mídia que procurava mexer era nova e não seria fácil crescer. O início da rádio demandou mais do que vontade de fazer o que ama. Não era possível custear os gastos sem patrocínios.


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segundo tempo Rener se sente em casa quando está em contato com a rádio. “Em 2015 fomos para Luziânia cobrir um jogo da Série D. Ao chegar lá e começar os preparativos para a transmissão, vimos que éramos a única equipe lá a transmitir a partida, quem estava no estádio começou a baixar nosso aplicativo para poder acompanhar o jogo”, lembra. A audiência começou “baixa”, mas a diversidade para cobrir jogos na capital ajudava bastante no reconhecimento. Hoje, chega a ter 700 ouvintes durante a transmissão. Transmitiu a primeira edição da Copa Verde, campeonato realizado com times de futebol das regiões Norte e Centro-Oeste, que teve como campeão o Brasília, título de maior expressão da história do clube. Se a glória foi transmitida, o declínio também, depois desta temporada surpreendente, o time se afundou em maus resultados e agora ocupa espaço na segunda divisão do campeonato brasiliense de futebol. Fato ocorrido também no basquete, a rádio esteve ativa durante toda a hegemonia do basquete candango nos campeonatos nacionais e sul-americanos. Até mesmo no último campeonato da temporada passada, antes do desmanche e o time não participar de mais campeonatos. “Acompanhamos os três títulos nacionais in-loco, em Anápolis, Brasília e Mogi das Cruzes/SP, ver o time acabar nos machucou muito, a rádio acompanhou o basquete daqui”, desabafa Rener. A equipe é uma parte importante para a rádio. Rener tenta dar destaque e funções aos que estão começando, para que se habituem com a nova rotina. Nos jogos sempre pede comentários aos que te ajudam, sejam novatos ou sejam veteranos, para ele, o importante é participar. “O que você achou disso, garotinho? Oh rapaz, o que você viu no lance aí?“, esses são alguns dos bordões que usa para chamar a rapaziada que trabalha com ele. Rener não recebe retorno financeiro com a EB, mas trabalhar em uma rádio sempre foi seu sonho. Também é sonoplasta. A própria web rádio o fez participar de grandes eventos esportivos, como as Eliminatórias da Copa, a própria Copa do Mundo de 2014, Paralimpíadas, duas edições do UFC e o Campeonato Brasileiro. Tem um sonho: “Queremos cobrir as duas próximas copas - a que será realizada este ano e em 2022, além das Olimpíadas em Tóquio”, afirma.

Mateus Teófilo acompanha Rener Lopes em mais uma transmissão do NBB. Foto: Brasília Basquete.

Rener e equipe da Esportes Brasília no Ginásio da ASCEB. Foto por Alex Farias.

Rener já trabalhou em rádios comunitárias e comerciais. “O que me dá tesão no que faço, é ver que o pessoal que trabalha comigo quer vencer. Todos nós queremos chegar ao final de uma transmissão e dizer: que transmissão f*, que texto incrível que escrevi. É isso o que me deixa muito feliz”. Rener sempre deixa clara a escolha do seu time, afirma que é corintiano. “Narro os jogos do Corinthians de forma imparcial. O ouvinte quer saber do jogo em si, não da minha paixão. Narro gols do meu time como narro qualquer outro”, garante.

prorrogação Ele sempre se programa para chegar cedo ao local da transmissão. “Gosto de chegar com uma ou duas horas de antecedência. É bom para dar tempo de montar as coisas, verificar se há algum problema e já corrigir. Dependendo do que for, dá até para voltar em casa e reparar o que está errado”, comenta. Ao terminar de montar e checar se está tudo pronto, chega a hora da ‘resenha’, quando conversa com os demais jornalistas de outras emissoras sobre o favorito do jogo, se o técnico fez alguma alteração errada, e até mesmo coisas corriqueiras do dia a dia. Rener fica no aguardo para testar o equipamento com cada um e garantir que a transmissão saia ‘redondinha’, como costuma dizer. Quando não há imprevistos, a transmissão começa com meia hora antes do início do jogo. “Alô! Alô, Brasil! Grande abraço para você ligado aqui na Esportes Brasília, a número um em esportes”. O primeiro destaque na transmissão é sempre do time da casa, logo em seguida as informações dos visitantes e por fim, antes do início da partida, os comentários dos repórteres escalados naquele dia. Durante a partida, continua a pedir comentários sobre o que está acontecendo no jogo. No intervalo, pede para os repórteres do dia realizarem entrevistas em campo com jogadores, técnicos. Ao retorno da partida, a dinâmica continua a mesma: “Muito obrigado por acompanhar mais uma transmissão”.


TAG U AT I N G A

OS SEGUNDOS MAIS DUROS DA

PRAÇA DO RELÓGIO Histórias de dois homens que dormem sobre papelão

por Gabriella Nery Texto e fotos

Aquele relógio que marca o tempo passa às vezes tão depressa e, às vezes, tão devagar. O relógio, cartão postal de Taguatinga, não é só um monumento da cidade. Ao redor dele, há encontros e tantos desencontros. Embaixo do relógio, já consigo observar um rapaz alto, moreno, enrolado nas cobertas. Luiz Augusto tem 35 anos e vive na Praça do Relógio. Em um movimento repetitivo, se balança. Com o olhar para o chão, procura algo antes da minha chegada. Ao me aproximar, ele abre um sorriso com as marcas da vida. Ele demonstra alegria com a chegada de uma pessoa para conversar. Ele usa uma calça rasgada e uma blusa com um desenho de um surfista gastas. Pés calejados, sem calçado, anda com dificuldade e todo embrulhado por uma manta doada, quadriculada em vermelho, preto e cinza. Caminhamos até o banheiro público da Praça. Lá, Luiz Augusto, que não lembra o sobrenome, mostrou onde dorme, com dois papelões como colchão improvisado. “Aqui é minha casa.” Há cinco anos atrás, saiu da cidade onde morava por causa do vício em crack. Até hoje, não se vê liberto do vício. Ele diz que aquele local é onde encontra a paz. Mas, não quis falar sobre o passado. Só o presente é o que importa.

CONFIRA AQUI UM ESPECIAL SOBRE OS CENTROS QUE AUXILIAM PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA

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Luiz Augusto não quis saber de foto, enquanto estava apreciando a batalha de rimas no centro de Taguatinga.

Do outro lado da praça, sentado no chão com a mochila amarela no colo, de frente para administração de Taguatinga, encontrei Ramon da Silva, de 27 anos. Veio de Paracatu (MG), com apenas 14 anos para o Distrito Federal, com a ideia de ter uma vida melhor. Sonhava ainda ter condições de tirar a família de uma “casinha” que nem luz chegava, de banhos gelados, e sem conforto. Ele se considera um andarilho. Diferente de Luiz Augusto, ele se sentia mais confortável para conversar. Ramon já morou em muitas cidades do Distrito Federal inclusive passou uma temporada no centro de Brasília. Ele relembra com muita tristeza sobre a época que morou embaixo da rodoviária, “Eram muitas pessoas passando por mim, uma ou outra que passa dava ajuda, mas eram poucas, sofri ameaça de morte por usar o local para dormir. Aqui na Praça do Relógio fui bem recebido pelos demais moradores da praça, todos me receberam bem aqui e até hoje não sofri ameaças, e olha já tem um mês que estou morando aqui”.

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“Sou apenas Luiz Augusto, Cria da Rua, escolhi viver vendo pessoas, faço amigos passageiros, até amores passageiros”

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Ramon pega em a mochila amarela gasta e rasgada e também uma pequena garrafa de plástico com cheiro de álcool. Ramon, depois que saiu da prisão, se viu sem rumo e foi se abrigar na frente da sede da Administração de Taguatinga. Lá ele dorme em uma espécie de “casinha” feita de papelão, com alguns panos e cobertores como telhado. Em um lugar tão movimentado, queixa-se mesmo da solidão. Ramon tem um pai, uma mãe e um irmão que não vê “há anos”. Ramon agradece pela conversa. “Você foi a primeira pessoa que não se afastou de mim. Hoje, as pessoas geralmente sentem muito medo. Obrigado”. Segundo dados da Secretaria do Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos a (Sedest), existem cerca de três mil moradores em situação de rua no Distrito Federal. De 2016 a 2018, houve um aumento de aproximadamente 20% no número de moradores em situação de rua. A Sedest tem um programa para ajudar pessoas em situação de rua, que são os Centros de Referência Especializado para Pessoas em Situação de Rua (Centro Pop). No Distrito Federal, há duas unidades: uma em Brasília e outra em Taguatinga Norte. No local, eles fornecem apoio como comida, documentação, banho, guarda de pertences e hospedagem.

Ramon foi solto há um mês pelo crime de roubo à mão armada. Ele ficou quatro anos preso. Para praticar o crime, usou uma faca peixeira que teria conseguido com outra pessoa que também estava em situação de rua. “Foi um dos meus piores momentos. É muito melhor ficar aqui na rua do que preso naquele lugar, onde me trataram como animal”, indigna-se. Ramon garante ser arrependido do crime. “Eu não tinha o que comer e pedir nas ruas já não era mais uma solução”, lamenta. Logo após dizer isso, abaixou a cabeça e ficou em silêncio. Ramon no centro de Taguatinga em meio a multidão que aprecia uma Manifestação cultural que acontece toda quinta-feira.


MOLDURA

O “ministro” da foto de Figueiredo Roberto Stuckert, hoje aos 75 anos, coleciona histórias que vão além das imagens que registrou. Bastidores com o último dos presidentes militares mostram como o retratista é valente

POR Letícia Silveira

- “Chefe, eu quero uma foto Mona Lisa, quero sorrindo um pouquinho”. - “Ah, que rir, coisa nenhuma. Eu sou o presidente!”, exigiu Figueiredo. “Eu sei chefe, mas calma, faz um sorrisinho, você tá muito sério, muito rude, muito durão”, pediu seu amigo e fotógrafo com cuidado.

O nome desse fotógrafo ousado é “Roberto”. “Dodô”, como é chamado pelos netos, “Pai”, pelos seis filhos. “Gordo”, pela mulher com quem é casado há 55 anos e “PT2GTI”, seu nome de radioamador, por amigos. Roberto tem muitos nomes, mas não são o que o define. O que o define é a imagem que ele construiu usando o sobrenome da família: Stuckert. Sobrenome que marca uma geração de fotógrafos e deixaria um marco na história da fotografia política. Roberto Stuckert conseguiu o que ninguém havia feito: a foto oficial de um presidente militar sorrindo. O final dessa história mudou a vida dele em 1979 (há 39 anos). “Meu avô era fotógrafo. Meu pai era fotógrafo, de uma família de vários fotógrafos, e a minha família tem 100 anos de tradição da fotografia”. Eduardo Roberto Stuckert, Roberto Stuckert e Roberto Stuckert Filho. Sempre pensando em passar a profissão de pai para filho, Eduardo dizia que “Roberto Stuckert” era tradição da fotografia, então, passaria o nome como uma herança. “A fotografia, pra mim, tá no sangue”, disse. Com latidos de cachorros ao fundo e a chuva amenizando o calor, Roberto Stuckert começa a contar seu dia-a-dia como repórter fotográfico com timidez no início. Mas, enquanto lembra o passado, as memórias trazem alegria e emoção de momentos marcantes de uma amizade além de um trabalho.

Fotos do Presidente Figueiredo. Fotos: Arquivo Pessoal.

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MEMÓRIA grande oportunidade No dia 15 de abril, Roberto escutou de Pompeu, chefe do Jornal Diário Carioca, a grande oportunidade da sua vida. “Você vai para Brasília preparar a reportagem da inauguração da cidade. Você está com quase 16 anos, que tal ser o chefe da fotografia?”. Ao aceitar a proposta, Roberto ganharia o dobro do salário que recebia no Rio de Janeiro. Quando chegou à futura capital para trabalhar no Diário Carioca de Brasília, como ainda não existia hotel na cidade, ele teve de alugar uma das lojas comerciais da 307/308 sul para dormir. “Eu dormia ali, num frio violento de Brasília. Dormia até coberto com jornal porque era muito frio. As cobertas não davam conta do frio”. Poeira e construção eram tudo que havia. A cidade tinha tanta poeira que ela virou souvenir para os turistas levarem em um pequeno vidro de volta para suas cidades. Depois de passar por revistas como Manchete, Jornal Diário Carioca, Jornal do Brasil, Jornal de Brasília, Associated Press, cobrir a construção de Brasília e a Copa do Mundo na Alemanha, corridas em Montjuic, na Espanha, trabalhar na Radiobrás, fazer cobertura de viagens presidenciais com Médici e Geisel, além de ser freelancer; Stuckert ouviu de seu amigo uma notícia inesperada, e não podia contar para ninguém. “É o seguinte, Stuckert, você sempre fez fotografias minhas e de toda minha família. Você é o único fotógrafo nesse país que tem minhas fotos pessoais e nunca

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me cobrou um centavo por alguma foto. Você foi uma pessoa fiel! Você vai para casa, vai escolher 40, 50 fotos boas minhas porque eu quero divulgar para imprensa’’, disse seu amigo. “Mas o que houve, chefe?” perguntou, Roberto, confuso. “Geisel acabou de me chamar para ser o futuro presidente do Brasil e você vai trabalhar comigo”, afirmou João Batista Figueiredo. Roberto emocionou-se. A oportunidade de ser o fotógrafo presidencial era um grande salto em sua carreira. Os dois então escolheram as fotos e as divulgaram como era o plano e começaram assim a campanha do futuro presidente do país.

De volta a 1979 A vida de dois amigos mudou quando Figueiredo assumiu a presidência e nomeou Roberto como oficial de gabinete, em diálogo que está na abertura deste texto. Passadas algumas semanas desde que o presidente assumiu, a revista Manchete ofereceu fazer a foto oficial do novo presidente. Figueiredo reclamava que ‘’Geisel ainda estava na parede” e Roberto ficou sem nenhuma outra opção a não ser facilitar o acesso do fotógrafo definido pela revista. Após o fotógrafo da revista acabar com todos os rolos de filme e junto deles a paciência do presidente, Figueiredo comentou com Stuckert que já não aguentava mais. Após a discussão com Figueiredo, Roberto, então, revelou as fotos e guardou em seus arquivos, junto com as outras que já tinha do presidente. Quando as fotos produzidas pela Manchete foram reveladas, a equipe presidencial e Figueiredo não gostaram. Stuckert tentou solucionar o problema. “Eu tenho uma foto dele! O pessoal falou que não queria nem ver a minha foto, que a foto não era interessante”.

Nova sessão de fotos Não foi uma noite como outra qualquer. O presidente havia tomado algumas doses de whisky e foi dormir de madrugada. Acordou tarde, e não teve tempo para sua sequência diária. Sua rotina era formada por acordar 4h, andar a cavalo, tomar banho e ir trabalhar. O fotógrafo da Manchete fez novas fotos e Stuckert revelou. Nelas, os grandes olhos avermelhados de Figueiredo penetravam quem encarasse de volta. “Esses caras são incompetentes, é um absurdo! As fotos do Geisel estão na parede e eu sou o presidente, não tem uma foto minha”.

Roberto Stuckert. Foto: Arquivo Pessoal.

Nesse momento, Stuckert se ofereceu para resolver o problema. “Eu estava todo satisfeito, corri até meu gabinete emocionado, arrepiado, peguei as fotos, entrei no gabinete do presidente e projetei as minhas fotos”. Quando Figueiredo se viu rindo projetado, soube na hora que aquela era a foto. “Essa é a foto! Tá vendo? Vocês são incompetentes”, dizia à equipe do gabinete, “Stuckert, assina e a foto vai ser essa!”.


“O senhor está vivo” Anos 80. O presidente Figueiredo estava no Rio de Janeiro e Roberto via que ele estava passando mal, sentindo dores, colocava a mão sobre o peito. Decidiram então levá-lo a um hospital na Gávea. Chegando lá tomaram precauções para que o presidente não fosse reconhecido: colocaram-o em uma maca escondido, com a cara coberta por um lenço, e entraram na enfermaria. Até saírem os resultados dos exames, mandaram Stuckert de volta para Brasília. Enquanto não saíam os resultados, ele se preocupava com o amigo. Stuckert gostava muito dele. Descobriram que havia sido um infarto. Uma semana depois, começou um boato de que o presidente estava morto e que o governo seria regido por outra pessoa, e Roberto teria de provar, com uma foto, que Figueiredo estava vivo. ‘’Quando eu cheguei no Rio, tava a imprensa toda sentada na porta do hospital. Aí quando entrei lá, o presidente estava usando aquela roupa de hospital. Na hora eu pedi para o ecônomo (militar que cuidava do dinheiro da presidência) sair e comprar uma roupa bem bonita e adequada porque ele é o Presidente da República”. A busca continuou por um longo tempo. A imprensa do lado de fora apenas criava mais alvoroço até que Stuckert teve uma ideia. ”Chamei o chefe da segurança e perguntei se ele tinha alguma roupa a mais com ele, e ele falou que só tinha um kimono pois fazia lutas marciais. Então eu coloquei o kimono no presidente e comecei a fotografar ele com a dona Dulce (sua mulher)’’. Depois de tirar algumas fotos, Figueiredo perguntou o que Roberto foi fazer lá, além de tirar fotos. “Eu respondi o que ninguém queria falar: tão dizendo que o senhor está morto e eu vim aqui para mostrar que o senhor está vivo”. Ao saber disso, Figueiredo mandou Stuckert preparar a máquina e fez o gesto de banana para ele fotografar. “O presidente mandou eu fazer uma cópia e mandar para o Ulysses Guimarães, que na época era o grande adversário dele. Fiquei 30 anos com essa foto guardada no cofre”, sorri.

‘’Foto da minha vida’’ A foto da banana foi um momento interessante na vida do fotógrafo, mas não foi o mais marcante de sua carreira. O grande momento foi a cirurgia de ponte de safena de Figueiredo nos Estados Unidos. A viagem foi organizada minuciosamente: mandariam uma comitiva grande para o país e só as pessoas de confiança viajariam. Foi comunicado que iriam até contratar seguranças do FBI para tomar conta do hospital, e que Stuckert não iria junto.

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“O Presidente, num belo dia, perguntou sobre a comitiva que ia com ele e não viu o meu nome na lista. [Ele] reclamou porque meu nome não estava lá e fez questão de me incluir na viagem. Ele colocou meu nome, e eu fui”. O presidente não gostava de receber visitas, só quem podia entrar no hospital era Roberto. Ele entrava com a máquina escondida no corpo, pois a lei americana condenava fotografar qualquer pessoa internada. “No dia da operação do presidente, eu me toquei que era a foto da minha vida. Eu fazendo ele no centro cirúrgico, não tem outra, tem? Pra mim, ia ser a glória. Eu fechava todo meu ciclo de fotos”. Quando Roberto pediu uma roupa para entrar no centro cirúrgico, o pedido foi negado, pois a máquina poderia estar contaminada, mas que ele poderia tirar fotos do Figueiredo entrando no centro cirúrgico. É quando Stuckert vê seu amigo anestesiado em uma cadeira de rodas, entrando no centro cirúrgico para fazer a cirurgia. “Ele estava indiferente, estático. Ele estava me reconhecendo mas já não estava com possibilidade de levantar a mão. E eu já tinha preparado algo pra falar pra ele ‘’o chefe, sucesso’’, qualquer coisa assim”. A enfermeira esperava para entrar no centro cirúrgico, e Stuckert esperava o amigo, com a máquina na mão e lágrimas nos olhos.“Eu fiz assim pra ele (faz um gesto de joinha) e o presidente respondeu com uma piscada de olho”. Para Roberto, o momento mostrou a amizade de um homem com o outro. “Imagina aquele homem, meu amigo, Presidente do Brasil, na mão do médico americano, podia morrer! Ele entrou no centro cirúrgico, e não pode me saudar. Ele só piscou o olhinho e levantou um pouquinho a mão. Isso mostrou a amizade de um com o outro. Era uma amizade sincera”. A emoção do momento foi tão grande que ecoa até o presente. Roberto não aguentou contar sobre o episódio sem derramar mais algumas lágrimas.

Fidelidade Quando o mandato do presidente Figueiredo acabou, ele perguntou para Stuckert o que ele queria, pois foi o único fiel a ele, o único homem em quem ele podia confiar de olhos fechados e um dos poucos que ficou até o final. Tudo que Stuckert disse foi, “Presidente, tem uma coisa que você não sabe. Hoje você é Presidente, amanhã não é mais. Então hoje você me nomeia, amanhã eles me exoneram’’. Dois ou três dias depois, Figueiredo voltou para o Rio de Janeiro após o fim de seu mandato. Tancredo Neves, o próximo presidente, chamou Roberto para ser fotógrafo oficial novamente. Com firmeza, o fotógrafo recusou. ‘’Eu disse que fotógrafo da presidência só se é uma vez‘’.


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C A M P E ÃO

NASCIDO PARA O ESPORTE Tetracampeão pan-americano e melhor brasileiro das duas Olimpíadas que participou, Leandro Macedo mantém viva sua paixão pelo triathlon até hoje

POR José Gustavo Felix Quando criança, nem andar de bicicleta sabia. “Só na garupa do meu irmão e dos amigos”, como ele mesmo diz. Leandro Macedo, o melhor triatleta brasileiro nas Olimpíadas de Sidney (2000), na 14ª colocação, e em Atenas (2004), 31ª colocação. O gaúcho pisou em Brasília pela primeira vez aos seis anos por conta da transferência profissional do pai. “Eu ficava solto, na rua, embaixo do prédio. Era seguro”, rememora o ex-atleta, agora com 50 anos. Foi essa liberdade que contribuiu para que pudesse aproveitar essa fase de sua vida. Nos dias de hoje, o eleito “Atleta do Século” pelo Comitê Olímpico Brasileiro em 2003, dá treinos de triathlon. Hoje, está no seu segundo casamento, desta vez, com a jornalista Bruna Villarim. Se conheceram em 2006, quando já estava aposentado, e se casaram em 2012. Com ela teve mais dois filhos: João, de 1 ano, e Mel de 3. Com uma formação técnica consolidada e larga experiência de um atleta de altíssimo nível, tem uma aprovação e admiração dos seus companheiros e alunos. Abriu uma empresa onde aplica sua metodologia de treinos de corrida, natação e ciclismo semanalmente. Por vezes, ainda compete de forma amadora. Quando a psicóloga Juliane Verdade quis começar treinos de corrida, só ouviu elogios sobre Leandro Macedo. "Uma das pessoas mais especiais que já conheci. Eu pedi umas três indicações, todo mundo me indicou ele… Extremamente compreensível. Ele sempre se adequa. Excelente profissional e ser humano, os dois juntos”. Seu colega desde os tempos de atleta e que hoje o auxilia nos treinos, Anízio da Costa, elogia sua tranquilidade na hora de ensinar algo que ele sempre foi especialista em fazer: correr. “Ele é muito amigo, calmo, tranquilo e paciente com seus atletas. Não discute. Eu nunca o vi fazer isso, nem brigar ou xingar". Foi na capital do país que o pequeno Leandro Macedo aprendeu a nadar, como quase toda criança aprende. O Secretário Geral da Associação Cristã de Moços (ACM) de Brasília há quase 40 anos, Antônio Márcio Ribeiro, conta que a associação teve

ENTENDA OS BENEFÍCIOS DA PRÁTICA DO ESPORTE NA SUA VIDA

sua parcela de influência na carreira de Leandro. “O objetivo aqui sempre foi a parte de formação, educação. Nunca foi a pretensão formar um atleta. A gente dá uma base, daí se a pessoa quiser competir em alto nível, tem que sair daqui e procurar escola específica disso. Não tínhamos ideia do que ele se tornaria, acho que nem ele”. Apesar de não terem fotos da criança que lá entrou, eles têm lembranças. Ao chegar à capital finalmente aprendeu a pedalar e passou a fazer de tudo um pouco. “A minha escola de esporte é aqui e gosto desde criança porque sempre tive facilidade”. Enquanto passarinhos cantam ele observa seus pupilos se aquecerem para o treino do dia e lembra que não se limitava a um tipo específico de atividade, fosse ela individual ou coletiva. Fazia de tudo. A rotina era bem puxada, mas para quem se tornaria profissional de uma das modalidades mais difíceis do esporte acabava se tornando fácil. “Segunda, quarta e sexta eu fazia natação das 15h às 16h. Depois ia para o Judô até as 17h, lanchava e estudava até as 18h, até terminar com o Basquete”. O esportista não só brincava de futebol de botão quando moleque. Como a maioria dos brasileiros, tinha um sonho: ser jogador profissional de futebol. No colégio, a bola era substituída por caroço de abacate. O gauchinho, como era chamado pelos amigos, nunca chegou a treinar. Se limitava às “peladas” em Brasília. Sonhou em um dia jogar no Internacional graças à família toda colorada, como chamam os torcedores do Inter de Porto Alegre. Também chegou a receber uma oferta de um amigo de seu pai para fazer um teste no Cruzeiro de Minas Gerais. Porém, um motivo o fez recusar: “Eu era muito caseiro. Tinha que ir sozinho, então não quis, nem tentei”. O Heptacampeão brasileiro recorda que vir à capital foi muito vantajoso para sua formação como esportista. “A cidade favorece o treinamento de triathlon, a corrida, o ciclismo. A estrutura física da cidade, o clima... Se perde pouco treino ao longo do ano, só chove no final quando se está descansando. Apesar de ser seco, você treina o ano inteiro. O calor é suportável e você se acostuma”.


LARGADA p A última “pelada” foi aos 18 anos. Neste dia, precisou ter uma conversa séria com seus amigos. Poderia ser apenas mais um dia de futebol: os gols foram montados em cada linha de fundo, seus amigos de longa data - desde o primeiro grau - passando a bola de um para o outro, até que acabou. “É a última vez que vou jogar com vocês. Vou me dedicar ao triathlon”. Cansados, seus amigos ficaram surpresos e desapontados. Com tom de humor, mas com pitadas de sinceridade na voz, eles o questionaram. “Que triathlon o quê, rapaz? Não dá futuro para ninguém não. Vamos jogar bola”. Leandro queria conciliar futebol e triathlon, apesar da falta de incentivo dos seus amigos. Quem o motivou a tomar a decisão de focar em um, “que na verdade são três”, foi seu treinador: “Não dá pra você fazer triathlon e ficar jogando bola não”. O atleta nem pensava em ir tão longe, mas seu técnico via tanto potencial e ainda o aconselhou a largar os estudos. Coisa que ele fez, com a permissão do pai, que foi convencido porque seu filho iria conhecer novos países e culturas, e seria rico para ele em termos de aprendizagem.

DISCIPLINA H

Comemoração do ouro nos Jogos Sul-Americanos, em 2002, no Rio de Janeiro. Foto: Arquivo Pessoal.

CONQUISTAS 1991 - Campeão do Circuito Mundial de Triathlon

Em 1993, participou de uma corrida de rua na Asa Norte. Só não esperava conhecer, através de um amigo em comum, a pessoa que ficaria ao seu lado por 16 anos e com quem teria um filho. O nome dela é Flávia Lacerda, hoje ex-esposa de Leandro. Para alcançar o sucesso, é necessário abrir mão de muita coisa e ele o fazia por completo. No entanto, ele surpreendeu até a própria ex-esposa.

1995 - Medalha de Ouro nos Jogos Pan Americanos

Em uma noite qualquer, Flávia o convidou para um "Happy Hour" com uns colegas de trabalho. “Lê” era uma figura que raramente aparecia nesses tipos de evento. Porém esse dia foi diferente. Quando chegaram ao bar, analisou o cardápio e se decepcionou. Não tinha nada para ele, era tudo bebida alcoólica, coisa que se negava a consumir como atleta. A única opção: creme de manga. “Cara, nunca ninguém pediu isso. Vou até ver se tem…”, comentou o garçom. A cena foi tão cômica que os amigos da Servidora Pública nunca se esqueceriam. Até hoje, quando ela os encontra, todos se recordam. “E aí, e o creme de manga?”, dizem às risadas.

1996 - Terceiro colocado no Campeonato Mundial de Triathlon, Cleveland/ EUA

ESTUDIOSO

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Sempre foi um cara consciente da importância que os estudos poderiam ter em sua vida. Gostava da natureza então começou um curso de Engenharia Florestal, no final dos anos 1980, porém não foi até o fim por um motivo especial: competir. Flávia lembra que Lê desde sempre foi estudioso. “Fez vestibular na faculdade Alvorada e foi o primeiro lugar geral”, detalhe que não foi mencionado em nenhum momento por ele. “Era o melhor aluno da faculdade. Um dia, uma professora estava corrigindo trabalhos e, quando viu o do Leandro, ela parou e diminuiu as notas de outros alunos, porque comparativamente estavam inferiores ao dele. Ele não se acha”. Leandro era muito sistemático, focado, perfeccionista, estudava tudo profundamente e queria entender perfeitamente, segundo Flávia. “A braçada, o ângulo da bicicleta, técnicas de respiração. Inclusive, hoje monta e dá treino, e tem o próprio método de treinamento”, completa a ex-esposa.

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1995 - Eleito o Melhor do Esporte pelo Comitê Olímpico Brasileiro

1996 - Terceiro colocado no Circuito Mundial de Triathlon da ITU 2000 - Olimpíadas de Sydney – 14º Colocado (Melhor Sul-Americano e 2º melhor das Américas) 2002 - Medalha de Ouro nos Jogos Sul-Americanos 2003 - Eleito “Atleta do Século” pelo Comitê Olímpico Brasileiro 2004 - Olimpíadas de Atenas – Melhor Brasileiro Tetracampeão Pan Americano Tricampeão Sul-Americano Heptacampeão Brasileiro Fonte: Site oficial Leandro Macedo Triathlon


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EXEMPLO DE HUMILDADE E DEDICACAO Quem o conhece, sabe. Para quem está conhecendo, que fique bem claro: Leandro Corrieri de Macedo nunca deixou qualquer dificuldade desmotivá-lo a atingir seus objetivos. Chegar no topo já é algo complicado. Permanecer é mais difícil ainda. Estamos no começo do ano 2000. Mais um treino de corrida está prestes a começar. Obviamente, quem já estava lá? Ele mesmo: o primeiro a chegar. Chove muito, a pista está toda alagada. Algum problema? Claro que não. Horas depois o treino termina, mas não para todo mundo. Ele ainda está lá. Afinal, é sempre o último a sair. Esse ano marcaria o primeiro encontro entre o triathlon, o próprio Leandro e os Jogos Olímpicos. O triathlon ainda é um esporte relativamente novo. Tem suas origens no final dos anos 1970, nos Estados Unidos. Começou a explodir já nos anos 80. O esporte entrou nos jogos Pan-Americanos pela primeira vez em 1995 na Argentina, onde Leandro foi campeão, e nos Jogos Olímpicos em 2000 na Austrália. Na preparação para Sydney, estava ao lado dele Raimundo Nonato. Hoje treinador, acompanhou de perto os treinos de corrida do atleta sul-americano mais bem colocado na Olimpíada que estava por vir. “Eu via o sacrifício que a pessoa estava fazendo para se manter naquela posição. Várias pessoas só enxergavam ele no pódium, eu via o que ele fazia. Muita gente não vê a pior parte, o dia a dia, a dor, a preparação, treinar sentindo dores musculares. Ele tinha também muita humildade, me ajudava em questões de suporte. Ele sugeria e me dava algumas vitaminas que já tinha tomado. Me deu tênis para treinar que eu não tinha na época”.

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JOGOS OLIMPICOS Começo do mês de setembro do ano 2000, duas semanas antes da prova. Todo o Comitê Olímpico Brasileiro se dirige para Camberra, no sul da Austrália. O objetivo era que os atletas pudessem fazer a aclimatação (processo pelo qual os atletas passam para se acostumarem ao clima e ao fuso-horário do local onde vão competir) e se acostumassem ao fuso horário de 13 horas. Faz muito frio, por isso não foi a melhor preparação.

Leandro (o quarto da esquerda para a direita) e colegas, em manhã de treino forte no autódromo de Brasília. Foto: José Gustavo Felix.

Chegamos à semana da prova e todos vão em direção à Sydney, onde já não estava essa friaca toda: média de 12 graus nessa época do ano. Na cidade sede, a preparação foi realizada num centro de treinamento com hospedagem e alimentação. Chegou o grande dia: 17 de setembro. O resultado foi ótimo, apesar da medalha não ter vindo. Leandro foi o 14º colocado e o melhor brasileiro. Segundo ele, poderia ter alcançado um lugar ainda mais alto na classificação, caso a oportunidade tivesse aparecido alguns anos antes. “As Olimpíadas vieram tarde para mim. Fui com 32 anos para Sidney e 36 para Atenas. Quando tinha 23, era o primeiro do ranking. Meu auge da carreira foi de 1991 até 1996. Poderia ter participado de duas Olimpíadas nesse período, mas ainda era necessário um processo para o Triathlon ingressar nos Jogos Olímpicos. Quando entrou, eu ainda estava bem. Apesar de mais experiente, não estava mais no ápice físico de um atleta, que geralmente é dos 23 aos 28 anos". Ele ainda comenta sobre a experiência de participar de um evento desse porte: "O barato de Jogos Olímpicos é entrar na Vila Olímpica e ter contato com pessoas de outras culturas, países, esportes. Ver a realidade do país, intercâmbio, a convivência é bem bacana”. Quatro anos depois, prestes a se aposentar, Leandro resolveu mais uma vez sentir o prazer de participar de um dos maiores eventos do esporte mundial. Estamos em 2004. Leandro ficou os meses de maio e junho treinando no Canadá, antes de chegar até Portugal para fazer a aclimatação. Conheceu a pequena cidade de Rio Maior (8 mil habitantes), a 98 quilômetros de Lisboa. O clima era quente e agradável; por volta de 30ºC. Ótimo para os sul-americanos, nem tanto para os europeus. No dia 26 de Agosto, mais uma vez, o melhor brasileiro. Desta vez, com o 33º lugar geral.


GUERRA

Nascido e criado em Taguatinga, Bruno Nogueira serviu o exército americano por dez anos e, para superar as sequelas que ficaram da guerra, incluiu a modalidade do CrossFit em sua vida

POR Mariane Rodrigues

“O nosso caminhão de combate explodiu e foi tudo para o alto... e isso foi a última coisa que me lembro da missão”. 2009, de abril a agosto, na província chamada Ghazni. Além de armas pequenas e fuzis, o taguatinguense Bruno Nogueira é também especialista em morteiros e armas de longa distância, desde que entrou no Exército americano, em 2005. Aprendeu tudo por lá, no país mais militarizado do mundo. Hoje, guarda em gavetas do armário e da memória medalhas, experiências de alta adrenalina e até traumas de guerra. “Sempre serei grato por tudo que aprendi e por todas as oportunidades que tive nos Estados Unidos, achei que sabia mais ou menos como a guerra funcionava, mas aprendi muito além do que eu imaginava, só vivendo para saber”. Bruno nasceu em Taguatinga e viveu a infância nas quadras da QND, em Taguatinga Norte. Próximo a esse bairro, começou a vida acadêmica, na Escola Classe 18. Os pais se separaram quando ele tinha apenas quatro anos. “Quando engravidei do Bruno já tinha intenção de me separar mas tive que prolongar o relacionamento fracassado”, lembra a mãe dele, Dora Teixeira, 61 anos. Ela foi para Itália a trabalho quando o filho tinha seis anos. “Como não tive escolha, fui obrigado a morar com meu pai até minha mãe voltar ao Brasil”, conta o jovem sem qualquer empolgação. Com a voz trêmula e um olhar distante, Dora recorda quando saiu do Brasil. “Como o pai não ajudava financeiramente, deu pensão só dois meses, eu não tive saída, não tinha profissão, aí decidi ir para a Itália. Nessa época, as irmãs Débora e Bárbara contavam que ele chorava todas as noites na hora de dormir, o que consequentemente também me fazia chorar todos os dias a distância”. Quando Dora voltou, Bruno tinha 13 anos. Foram para Nova Iorque a convite de um amigo pastor que morava lá no dia 27 de fevereiro de 1999, uma data que marcou a vida de Bruno, Dora e a irmã. A irmã Débora Nogueira, tinha 18 anos na época, menor de idade nos Estados Unidos, foi como uma mãe para Bruno. “A gente foi morar nos Estados Unidos e

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eu passei a ser irmã e mãe, porque eu tinha que trabalhar pra ajudar minha mãe a colocar as coisas dentro de casa. Morávamos em um basement em Connecticut, um apartamento que dividimos com mais cinco pessoas”, relata a irmã, que sonhava em morar somente com a família. Connecticut é o terceiro menor estado norte-americano e, para Bruno, com escolas mais qualificadas. Fez High School (ensino médio), que nos Estados Unidos os alunos passam por algumas avaliações. No caso de Bruno, o ensino de lá tinham notas mais altas do que o normal. “Porém o mais importante era a variedade de nacionalidades do meu High School. Minha mãe queria que eu ficasse em um lugar com todos os tipos de adolescentes”, relembra. Foi aí que realmente aprendeu o inglês, dentre diversas culturas que teve contato. Foi nessa escola de ensino que ele conheceu seu colega de classe, Fabiano Lomba, que era de Connecticut. Alguns anos depois eles se tornaram sócios. “O Bruno é um irmão pra mim, sempre disciplinado e me dava vários conselhos. Eu não gostava de perguntar o que ele fez, o que aconteceu, mas sempre tentei passar essa liberdade pra ele poder conversar comigo, que eu estava ali pra ele”, conta o amigo americano de infância. Pensava em faculdade, mas, juntando o dinheiro da mãe e o que ele tinha mensalmente com os trabalhos que fazia, não dava para pagar. Foi então que surgiu a ideia de seguir a carreira militar. Ingressou no Exército com 18 anos. Depois de 30 dias como militar, passou a ter dupla cidadania. “O Exército me proporcionou a faculdade pagando integralmente e ainda me dava um salário”, explica. Entrou em outubro de 2004 e em seis meses de serviço soube que seu batalhão iria para o Afeganistão. Bruno foi escalado para missões de resgate. Ele foi chamado para uma missão em um vilarejo no leste do Afeganistão. “Essa foi uma das minhas primeiras missões. Eu tinha uns três meses de pé no chão (o que chamamos quando


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chegamos na área de combate), localizado na província de Ghazni. Saímos da nossa base por um chamado de resgate. Uma equipe estava fazendo um trabalho social em um vilarejo, quando foram atacados por forças externas, Taliban”, recorda. Ao chegar ao local, avistaram o ponto da troca de tiros e a posição do inimigo. “Assim que saímos da estrada para nos posicionar, atingimos um IED (improvised explosive device – explosivos improvisados)”.

Bruno trabalhando no exército. Foto: Arquivo Pessoal.

Bruno ficou 36 horas em coma quando foi atingido com um RPG (bazuca) e presenciou os passos da morte de um amigo, que perdeu a perna em estilhaços. Após a explosão, tudo foi jogado ao alto e Bruno se lembra de acordar quando já estava no avião indo para o hospital. Ficou desacordado por um curto período, sem noção do que estava acontecendo à sua volta. “Nada aconteceu comigo, mas fiquei três dias perdido, sem lembrança de nada”, afirma o jovem. Para ele, foi a partir daí que começou a ter perda de memória recente. Foram 14 dias em observação. Bruno conta que fez questão e fez o pedido para voltar à base no Afeganistão. Após alguns exames, foi liberado para retornar ao campo de batalha. A segunda vez que foi chamado para guerra, Bruno foi atingido por um míssil que derrubou o helicóptero norte-americano em que estava, no Afeganistão. “Os ligamentos do meu joelho esquerdo se romperam, deslocando meu tornozelo”, conta. Mas ainda assim continuou a missão por quatro dias, na base de soro amarrado ao capacete. Depois disso, foi obrigado a abandonar o exército. “Não havia mais nada que me prendia naquele lugar, finalmente estava de volta ao Brasil”, conta o ex-combatente com um sorriso no rosto.

Bruno em uma de suas missões. Foto: Arquivo Pessoal.

Serviu o Exército por dez anos. Durante esse período, deu início a uma empresa de bancadas de cozinha, chamada Venezia Marble, juntamente com seu sócio e amigo americano Fabiano Lomba, localizada na cidade de Ridgefield, em Connecticut. “Nossa empresa de granito só existe graças ao Bruno porque foi ele quem entrou com o capital e todo o design, por ter super bom gosto. Abrimos uma loja que faz importação do Brasil, da Itália, da Índia e ele trabalhando aqui acabou se apaixonando pelo crossfit, que ajudou ele muito. Por isso eu acho que ele sempre teve esse sonho de montar uma companhia de crossfit, porque eu sabia que ele queria ajudar muitas pessoas. Descrevendo o Bruno em uma palavra, ele é um gênio”, detalha o sócio.

Em 2012, Bruno se formou em Ciências da Saúde e começou a fazer outro curso em fisiologia do exercício. Em 2014, pegou a dispensa militar e voltou ao Brasil para viver mais próximo de sua família.

Bruno e amigo de missão. Foto: Arquivo Pessoal.


Após o choque que teve no Exército, Bruno voltou ao Brasil sofrendo com pesadelos e ansiedade. Passou a aderir a prática de esportes que o ajudou muito nesse processo de reabilitação. O jovem empresário encontrou uma grande paixão: o crossfit, um treino de alta intensidade para descarregar as energias e se manter ativo. “O esporte me ajudou muito, além de fortalecer meus músculos e me ajudar a voltar a andar, hoje vejo o quanto me ajudou a me adaptar viver fora da guerra, com pessoas normais”, garante Bruno. A modalidade, que exige força e resistência, chamou tanto a atenção que hoje Bruno tem um box de Crossfit no clube da AABB, chamado EIXO. “Uma coisa que me deixa muito satisfeito é poder apresentar o CrossFit para minha família e para atletas de todo o Brasil. Não é apenas uma academia normal de crossfit, mas um estilo de vida”. Com o intuito de ajudar as pessoas, ele começou a envolver os irmãos Nogueira, que também são adeptos da modalidade esportiva.

A família de cinco irmãos sempre tentou manter a união. “Todo mundo tinha muita saudade dele. Na época, o Bruno e a Débora mandavam vídeos em fitas e a família se reunia para assistir no vídeo cassete, como era o dia a dia deles. Era uma forma de matarmos a saudade. E quando ele vinha para o Brasil, era sempre uma festa”, conta Gabriela Nogueira, a irmã mais nova, que tem 26 anos que sempre teve o irmão como inspiração de vida. Ela conta que sofria muito com a distância e chegou a morar por dois anos com Bruno nos Estados Unidos. “Só consegui conviver com o Bruno quando fui morar com ele, mas sempre tivemos uma relação muito forte, só faltou ele no meu cotidiano”, declara a caçula, com um sorriso no rosto. “Quando o Bruno nasceu, eu tinha 10 anos então ajudei bastante minha mãe a cuidar dele. Mas o que mais marcou foi quando ele voltou da primeira guerra. Eu morava nos Estados Unidos e ele tinha umas crises de pesadelo e eu vi o tanto que a guerra abalou o emocio-

nal dele”, detalha a irmã Débora, que atualmente tem 39 anos e também não teve muito contato com ele na adolescência, pois era casada aqui no Brasil e foi morar com Bruno no exterior apenas quando ele já havia voltado da guerra. “O fato mais marcante foi quando o Bruno me chamou no Skype e ele estava em uma das bases, os amigos dele zoavam ele por estar falando comigo mas pra mim foi inesquecível por ter mais de ano que não falava com ele”, explica Breno Nogueira, 26 anos, que sentia muita falta do irmão por ser uma figura masculina que ele queria ter por perto. “Fui a segunda mãe dele. Na verdade, fui mais mãe que irmã. Minha mãe havia se separado do meu pai quando o Bruno era pequenininho e eu quem cuidava dele para minha mãe ir trabalhar e pode passear um pouquinho também. Então, na infância e na adolescência fui mãe, e nas horas vagas, a irmã mais velha” conta Débora, com orgulho de poder presenciar e ter feito parte de grande parte da vida do irmão. “Passei um tempo sem conseguir abrir a porta da frente da minha própria casa, entrava pela janela investigando os cômodos pra saber se eu estava seguro. Os pesadelos, o medo de estar na rua, a falta de sono, a ansiedade de estar em um lugar aberto com muita gente, os diversos cálculos em ambientes públicos de saídas de emergência…Hoje me sinto seguro. Por ter minha família por perto. Só quero me lembrar do que ainda vou viver, a nova fase da minha vida com minha mulher, Laíssa, e meu filho Theo, que nasceu hoje” se emociona Bruno, no dia 6 de maio de 2018. Aos 32 anos, Bruno mantém um largo sorriso no rosto, mas, após algumas horas de conversa, torna-se perceptível as cicatrizes emocionais de quem conviveu com o medo por anos, sempre na defensiva. Os coletes a prova de bala não foram o bastante para o proteger do trauma que ali ficou. Os 10 anos de acompanhamento psicológico têm amenizado os “sintomas” da guerra, mas Bruno garante que “é impossível esquecer o que vivi ali”.

Bruno Nogueira em treinamento no exército. Foto: Arquivo Pessoal.

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A história do ex-sargento acusado de ter participado da paralisação dos controladores de tráfego aéreo e hoje é auditor do Tesouro Nacional

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POR BARBARA FONTINELE 8 201 KT CEU SN 707 PR-A 0 +050 6 FL1 - MUN BSB

Uma sala fria com temperatura abaixo de 15°C. O ambiente rodeado por mesas largas que abrigam os consoles dos radares. Nesses equipamentos, é possível visualizar vários pontinhos nas telas. São esses pontos minúsculos que indicam os aviões que estão no ar: onde estão e para onde vão. É preciso extrema concentração para não os perder de vista. Cada movimento é monitorado, um controle quase absoluto. Trabalhar nesse local era sinônimo de felicidade para Fábio. Não se sabem quais motivos teriam despertado o desejo de controlar aeronaves em Wellyngton Fábio Lima, que virou sargento. O certo é que, no dia 30 de março de 2007, aconteceu algo que marcou o destino e o obrigou a deixar a sala de controle para sempre. Ele foi acusado de participar da paralisação dos controladores em um período que ficou marcado como auge da crise aérea no Brasil.

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Ele foi expulso da atividade que amava exercer. Após o trauma, que começou naqueles dias, resolveu se dedicar ao estudo para conquistar a vaga que hoje ocupa no Tesouro Nacional, em Brasília. Passou no concurso e foi nomeado em 2014. Hoje ganha R$ 17,5 mil, tem carro, casa, vive com esposa e dois filhos e faz atividades de aventura para compensar a adrenalina que perdeu. Quatro anos depois, já exercendo sua nova atividade, Fabio, de 45 anos, até hoje sente falta de ser controlador de voo, antes recebia cerca de R$ 5 mil, mas era bem feliz.

TR AG ÉDIA Como nem todo sistema é perfeito, no dia 29 de setembro de 2006, uma sucessão de erros contribuiu para uma situação catastrófica que acarretou total descontrole: um acidente aéreo. “O pesadelo de qualquer controlador é que aeronaves colidam no ar, já que nosso trabalho é evitar que isso aconteça”, desabafa o ex-controlador. Fábio não estava escalado no dia em que o controle de tráfego aéreo foi desestabilizado, mas recebeu

uma ligação anunciando a tragédia.“Caiu um Boeing! A culpa é do nosso setor”, exclamou um colega do outro lado da linha. Naquele dia, o sargento Fábio estava no clube jogando tênis, seu esporte favorito, e diante da notícia jogou a raquete e correu para prestar ajuda aos colegas no Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de tráfego aéreo (Cindacta-1), em Brasília. Quando chegou ao Cindacta, outros cinco controladores estavam reunidos no vestiário, um deles com as mãos na cabeça gritava em desespero: “Não fui eu, não fui eu, não fui eu!” Essas eram as palavras que refletiam a aflição do momento. Foi o dia em que a asa do jato Legacy se chocou com o Boeing 737-800 da Gol, que transportava 154 pessoas. Os pedaços do Boeing foram encontrados no dia seguinte em uma mata fechada no Mato Grosso do Sul, em uma densa floresta, próximo à Serra do Cachimbo. Fábio acredita que uma mudança recém-implantada no sistema, naquela época, pode ter induzido o controlador ao erro. “O novo sistema implantado era programado para fazer uma mudança automática no nível de voo das aeronaves, mas não era uma mudança que ficava visualmente fácil de identificar”, explica. Essa nova alteração no sistema, na visão dos controladores, era problemática porque não havia nenhum indicador - como luz piscando ou um ruído sonoro - para chamar a atenção do operador radar. Se o controlador não estivesse atento no exato momento da mudança, não seria possível constatar que houve uma alteração. “Quando implantaram esse procedimento, identificamos uma carga de trabalho a mais porque, além dos conflitos que tínhamos que monitorar e evitar, também tínhamos que fazer um checklist de aeronave por aeronave para ver se havia acontecido uma mudança no nível do voo, compatível com o registrado no sistema”.


Em resposta, A Força Aérea Brasileira (FAB) informou que “o sistema de tráfego aéreo brasileiro é reconhecido mundialmente como seguro e, sempre que necessário, é atualizado, modernizado e mantido em alinhamento com as novas tecnologias”. No dia seguinte ao acidente, Fábio estava escalado no turno da tarde. “Para nós, controladores, o trabalho continuava, embora em condições desfavoráveis, pois havia um embate entre o Comando da Aeronáutica e controladores. Um clima tenso e muito hostil”. Depois do acidente do Gol 1907, o Cindacta passou a disponibilizar uma equipe de psicólogos próxima à sala de controle de tráfego aéreo para que os controladores pudessem se comunicar melhor com o órgão. “Na época ninguém estava preparado para lidar com a situação, nem nós controladores e nem o Comando da Aeronáutica. Houve troca de acusações de ambas as partes”.

O P ER AÇÃ O PAD RÃ O Antes do acidente aéreo, Fábio conta que os controladores extrapolavam o número máximo previsto no Manual Operacional do Centro de Controle de Aérea, que na época era de 14 aeronaves simultâneas por controlador. “Antes da crise, muitas das vezes nós extrapolávamos esse número, chegavámos a controlar 18, 20, até 24 aeronaves simultâneas em horário de pico para dar vazão ao tráfego”, revelou. Após o acidente, os controladores passaram a obedecer à quantidade dos 14 tráfegos simultâneos. A estrita obediência dos controladores ao Manual foi denominada “Operação Padrão”. O governo chamou de greve e motim.

Q UANDO A CRISE FOI IN STALADA Após o acidente do voo Gol 1907, foi desencadeada a crise aérea brasileira. Quem sofreria a partir de então não seriam apenas os parentes das vítimas do acidente, mas também os profissionais do controle de tráfego aéreo, que em meio ao abalo emocional decorrente da tragédia que não puderam evitar, continuariam a exercer suas funções. “Lembro-me que, logo após o acidente, 30 pessoas foram simultaneamente afastadas do Centro de Controle porque não tinham condições emocionais para trabalhar. Eu via que os controladores não conseguiam ao menos sentar na console, era inevitável não imaginar que outro acidente poderia acontecer”, conta ele. De acordo com o Modelo Operacional de Centro de Controle de Área de Brasília então vigente, a equipe mínima era de 15 controladores. “Não atingimos o número ideal que era de 15, nós trabalhávamos com oito, com nove. Depois da tragédia, aconteceu de irmos trabalhar com um supervisor e quatro operadores, não tinha como! Por isso [aconteciam] aqueles atrasos absurdos de 13 horas”, disse ele.

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EF EI T O D OM I N Ó Filas intermináveis nos aeroportos, atrasos nos voos e, nos bastidores, uma sala de controle que não apresentava condições exigidas para o controle do tráfego aéreo, em especial um ambiente de silêncio e tranquilidade, essencial para concentração dos controladores. No dia 30 de março de 2007, a sala de controle estava tomada por controladores que não estavam escalados para o serviço, quebrando a rotina da sala de operação. Diante da situação, os supervisores das regiões São Paulo e Rio de Janeiro optaram pela suspensão das decolagens, o que ocasionou um colapso no sistema, pois as aeronaves foram obrigadas a permanecer no solo, congestionando os pátios dos aeroportos, cujas capacidade não suportava tal demanda. Embora a suspensão das decolagens tenha durado só pouco mais de quatro horas, das 18h45 até 23h, foi o suficiente para provocar o caos na aviação civil. Os atrasos foram inevitáveis, ocorrendo o que se poderia denominar “efeito dominó”. Fábio diz que se estivesse escalado para trabalhar no dia da paralisação, ele teria tomado a mesma decisão: de reduzir o tráfego por medidas de segurança em função do barulho e da desconcentração dos controladores na console, em função do movimento e do grande fluxo de controladores na sala de controle. Naquele ano, o Ministério Público Militar (MPM) denunciou cinco controladores de voo militares, acusados pela prática de crime de motim, e um controlador civil por “incitamento ao motim”. Dentre os militares denunciados, estava Fábio Lima. Decorridos quatro meses do dia da paralisação, Fábio foi chamado até uma sala particular pelo seu chefe imediato e recebeu a notícia de que não poderia mais exercer sua função. “Foi uma mudança drástica na minha vida. Até hoje eu sinto falta, eu vou dormir e sonho controlando. Isso é algo que não posso controlar”, desabafa. “Vários dos meus colegas de trabalho estão com sérios problemas de saúde por terem sido afastados do controle, pois não conseguiram se recuperar do baque” Ele lamenta que, na época da crise, precisou fazer acompanhamento psicológico. “Mas eu fui forte e não deixei que aquilo tomasse conta de mim”. “O risco era muito grande de você colocar uma pessoa para controlar, se ela não tinha condições emocionais de estar fazendo aquilo. Isso poderia ocasionar um novo acidente. Tem a função do controlador e do assistente, a gente chegava para trabalhar e tinha controlador que não queria sentar na posição para falar com as aeronaves, só queria fazer a função do assistente, e a gente tinha que gerenciar isso.


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T R A J ET ÓR I A Fábio ingressou na Escola de Especialistas de Aeronáutica, em Guaratinguetá, localizada a 176 km de São Paulo, no ano de 1993. Dois anos depois, formou-se, com 19 anos. Em 1995, começou a controlar na Torre de Controle (TWR) - área responsável pela segurança dos pousos e decolagens das aeronaves que se aproximam dos aeroportos e pelo controle do tráfego das aeronaves no solo - onde permaneceu até 1999. Em seguida, foi transferido para o Controle de Aproximação (APP) - área responsável pelo sequenciamento, ordenação do tráfego, que está se aproximando ou se afastando dos aeroportos dos grandes centros urbanos - onde atuou apenas por um ano. Foi em 2000 que Fábio migrou para o Centro de Controle de Área (ACC) - que controla e monitora os tráfegos que ocorrem dentro das aerovias - e ficou até o ano de 2007. No total, foram 12 anos de profissão, exercida com “extrema responsabilidade e dedicação”, segundo ele. Para cada região, cinco consoles de radares. Para cada console, dois operadores. Cada dupla de operadores chegava a controlar 24 aeronaves, em violação ao Modelo Operacional de Centro de Controle de Área de Brasília, que determinava o máximo de 14 aeronaves por setor. Foi sob essas circunstâncias que Fábio exerceu essa profissão por mais de uma década. Além da formação técnica, exige-se do controlador um perfil com habilidades pessoais, como visão espacial, rapidez na tomada de decisões, facilidade e clareza de comunicação, dado o dinamismo do tráfego aéreo. Para Fábio, as técnicas da profissão, acrescidas de doses de adrenalina, era o que o motivava a desempenhar um trabalho de tamanha responsabilidade. “Não era normal trabalhar em uma sala extremamente fria e terminar o expediente com o casaco molhado de suor. O corpo ficava quente por dentro, e eu só me dava conta quando terminava o turno do dia”. A ação penal instaurada para apurar eventual responsabilidade dos controladores por fato identificado como crime de motim, completará, em agosto deste ano, 11 anos de tramitação, e, contudo, ainda não foi concluído. Fábio aguarda o desfecho do processo para colocar um ponto final na sua história de controlador de tráfego aéreo.

Foto: Felipe Menezes


S A B O R D E V I TÓ R I A

Do canavial para a hamburgueria A incrível história do dono do restaurante Madero, que deixou o campo, foi expulso de casa, virou garçom antes de ser empresário

POR Lucianna Rodrigues Texto e foto

Quando o despertador tocava, às 4 horas da manhã, o dia trazia consigo mais uma árdua rotina. Acordar, cuidar da fazenda, se arrumar para ir para escola, andar dois quilômetros, pegar um ônibus, voltar para casa e trabalhar até o sol se pôr. Era essa a realidade de Aldivan Ribeiro de Souza aos 7 anos. Hoje, com 27, é dono do restaurante Madero, em um shopping da capital. Mas ele quer mais. Quer ser o presidente. A vida no interior da Bahia, em Correntina, não foi fácil. O pai, cortador de cana, se viu com graves problemas respiratórios por conta da fuligem e não havia atendimento em sua cidade. É assim que começa a história de Aldivan na capital federal. Deixou para trás a Bahia e foi à procura da cura para o pai . Ao chegar, se depararam com uma cidade estranha, pessoas desconhecidas, exceto um tio distante, e um estilo de vida bem diferente do que estavam acostumados no interior. O ritmo era outro, a vida passava mais rápida e a necessidade de ter um trabalho para sustentar mulher e filhos era o que esperava pelo pai de Aldivan. Apesar das dificuldades da época, ele lembra com um sorriso no rosto. “Eu era muito pequeno. Meus irmãos mais velhos ficaram lá na Bahia, e eu vim com meu pai, com minha mãe e minha irmã que era mais nova. Ao todo tinha 4 irmãos, hoje são 5. Quando eu cheguei a Brasília a gente morou de favor na casa de um tio da gente, lá no Jardim do Ingá um período. Aí o meu pai conseguiu um empre-

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go, mesmo ruim de saúde ele conseguiu arrumar um trabalho de ajudante de pedreiro, servente e ficou um tempo assim. Depois disso a gente ficou em uma área rural de Sobradinho, chamada Lago Oeste. Lá o meu pai arrumou emprego de caseiro. Então ele trabalhava na chácara, tinha galinha, cachorro, a gente capinava, molhava a horta, plantava, cuidava do lote”. A alegria da infância de Aldivan se misturou com as várias horas de trabalho. Horas essas que o prepararam para enfrentar o grande mercado de trabalho anos mais tarde. Ele conta que primeiro foi ajudar seu pai na roça e que isso o fez se apaixonar pela a natureza. “Com 7 anos eu já comecei a trabalhar com meu pai na roça. Levava água para ele, carregava as coisas pra ele. Meu pai sustentava a família inteira de 7 pessoas com salário de 165 reais na época. Minha mãe cuidava da gente em casa, mas aos poucos ela foi começando a trabalhar também como doméstica para ajudar com as contas”. O restante da infância e boa parte da sua adolescência foram assim. Dia após dia a vida se fazia dessa maneira. Até que com 17 anos teve sua primeira namorada. Como sua família era muito religiosa, o relacionamento só era permitido se fosse nos moldes clássicos. Mas um dia resolveu ver um filme na casa da sua namorada e acabou dormindo por lá. Quando chegou em casa teve uma surpresa nada agradável. “Cheguei e meu pai me expulsou de casa e aí eu fui morar numa chácara, que eu já cuidava, de caseiro. Fiquei lá um ano e meio. Apesar de ainda estar de mal do meu pai, mandava um dinheiro para ele”. Depois do fatídico episódio da namorada, Aldivan voou longe. Deixou para trás a família e teve que, abruptamente, começar a seguir a vida de uma maneira independente. Foi aí que começou a ganhar seus primeiros salários e se aventurou até pelo o mundo da culinária. Quando tinha 17 anos, saiu da chácara e foi trabalhar em uma barraquinha de cachor-

CONFIRA UM POUCO MAIS SOBRE O ÊXODO RURAL NOS DIAS ATUAIS


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ro-quente. Ali, entre molhos e pães, conheceu o dono de um cursinho, que funcionava perto de onde o mini-restaurante ficava parado. O convite de trabalhar com serviços foi mais tentador do que a venda de hot-dogs. Entrou no cursinho com a função de trabalhar na limpeza e ajudar nos serviços gerais. Em troca, receberia um salário e oportunidade de assistir às aulas de concurso. O que gerou um grande impacto foi que Aldivan passou em alguns, mas não foi chamado para nenhum. O serviço de excelência o deu uma promoção na empresa. De zelador, passou para secretário e agora podia receber os pagamentos e efetivar a matrícula dos alunos. A rotina levou a perceber que essa vida não era o que ele queria para si. Um dia seu primo o ligou e convidou para trabalhar em um restaurante novo que tinha aberto na cidade e se chamava Madero. Disse que se ele fosse teria um quarto, comida e um salário proporcionado pelo estabelecimento. O salário era o dobro e a proposta irrecusável. Aldivan largou sua vida e família em Brasília e partiu para Goiânia. Nem de longe imaginava que essa ligação foi o fator decisivo para a maior mudança de sua vida. Ao chegar na capital de Goiás, o novo mundo era novamente totalmente diferente do que já tinha visto. “Até aquela idade eu nunca tinha frequentado restaurante, então pra mim era algo de outro mundo. Eu atendia ali deputados, cantores, pessoas importantes lá de Goiânia, então eu não tinha nem noção do que era. Eu nunca tinha visto um corte de picanha, por exemplo. As garrafas de vinho custavam em torno de cinco mil reais, então ali pra mim era uma outra esfera. Eu tinha medo de trabalhar ali, porque tinha muita gente importante e eu ficava com medo de conhecer. Até que depois fui pegando o jeito”. Aldivan deu conta do recado. Como em todos os outros trabalhos o fez com excelência. Se destacou e seus superiores viram que ele precisava subir um degrau. A subida foi relativamente rápida e se deu assim: de garçom para subgerente júnior, subgerente, gerente e depois gestor. No topo do cargo dentro de uma filial, o seu trabalho foi tão bem-reconhecido que o presidente da companhia o notou. Em um congresso, em Curitiba, teve a chance de agradecer. “Foi a primeira vez que eu andei de avião; o Madero que pagou e todas as outras vezes foi assim”. Quando chegou lá, Aldivan conversou com o presidente da empresa a pedido do supervisor. “Júnior, eu sou o Aldivan e queria agradecer por estar no Madero”. O presidente

Aldivan, de sorriso aberto, sempre recebe os clientes no restaurante.

o parabenizou pelo trabalho. “Oh, Aldivan. Parabéns eu estou feliz por você, mas agora não posso falar muito porque agora a reunião vai começar”. Na época, havia 35 lojas, hoje são 115. “Meu interesse não é ficar rico, porque isso eu já sou, o que eu preciso de luxo para mim e minha família eu já tenho, o que eu quero agora é fazer com que as outras pessoas consigam isso também. Hoje eu conheci uma pessoa que me faz ter energia para trabalhar todos os dias e ter essa vontade”. Para a surpresa de Aldivan, o presidente chamou seu nome e o apresentou para toda a equipe. “Ele pediu para que eu falasse minha história para todo mundo. Foi bem emocionante para mim”. Ele abraçou a empresa e fez dali sua segunda casa. Tanto que no único dia de folga (quinta), é no Madero que almoça com a família. Ele jura que ninguém enjoa. Conta que o que tem hoje nem de longe era o que esperava um dia. Quando pequeno fez um cálculo rápido. “Se meu pai ganha R$ 165 por mês e consegue sustentar minha família, se um dia eu ganhar mil, vou ser um homem rico”. Hoje consegue tirar para ele cerca de R$ 12 mil por mês. Mas sempre lembra de onde veio.


PA R Q U E

O MELHOR LUGAR DO MUNDO Um perfil da saudosa Piscina com Ondas que completou 40 anos em 2018. Uma volta a um passado de fotos em sépia, e que ficou seco em 1998

POR Brunna Pires Texto e fotos

Toca a sirene. Silêncio. 1978...atenção para a onda. 2018... ninguém a vista. 40 anos depois, sobraram placas enferrujadas. As crianças chegam correndo, ajeitam o maiô e a prancha. Os adultos olham com saudade. Tudo está na memória viva diante do espaço vazio Para entrar, uma taxa simbólica e um carimbo na mão colocado pelo salva-vidas. Grades isolam o local para manter as pessoas à distância. Os que chegavam mais tarde ficavam do lado de fora para tomar sol e desfrutar de um piquenique. O estacionamento tem poucos carros e os frequentadores passam apressados. No passado, uma inovação tecnológica invadia o coração da Capital federal. No dia 11 de maio de 1978, era inaugurada a primeira piscina que fabricava ondas artificiais na América Latina, no que era chamado de Parque Rogério Pithon Farias. O “melhor lugar do mundo” tinha nome, endereço e aroma de diversão. Os minutos mais esperados do dia passavam numa velocidade fora do normal. Ondas que chegavam a um metro de altura surgiam e mudavam de intensidade ao longo de cada azulejo da piscina com capacidade para 1.500 pessoas. Jatos de água eram lançados aleatoriamente na parte rasa e surpreendiam a criançada. Mesas, cadeiras e guarda-sóis ajudavam a compor o cenário perfeito para um final de semana ensolarado. Acabou. Placas enferrujadas, água acumulada, usuários de drogas que circulam no local e muita insegurança. O melhor lugar do mundo só existe nas lembranças, um lugar de quando em vez visitado sempre que se fecha os olhos no meio do Parque da Cidade.

O local, atualmente, encontra-se desgastado pelo tempo.

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Nadir Carvalho tinha só dois anos de idade quando chegou a Brasília em 1959 e hoje com 61 anos. A família de Nadir vinha de Minas Gerais para morar na capital federal, que ainda nem havia sido inaugurada. “Fomos morar no Núcleo Bandeirante e meus pais tinham um comércio, o único daquela época, pois não tinha nada para se comprar em lugar algum. Era uma barraca de madeira com uma porta de lona. Meus pais vendiam de tudo o que você possa pensar”. O pequeno caminhão no qual o pai de Nadir transportava as mercadorias de cidades vizinhas, como Anápolis e Goiânia. Não era só instrumento de trabalho. Ele também levava as crianças para o “melhor lugar do mundo”. “Todos os finais de semana íamos para a piscina com ondas passear. Das lembranças que eu tenho foi uma grande surpresa para todos nós brasilienses em 1978”. Nadir teve a oportunidade de frequentar a piscina com ondas quando era criança e anos depois carregava os filhos para o mesmo lugar. Dez anos se passaram e a piscina ainda era o point da diversão. Mas, em 1997, com a morte do casal que administrava o local, morreu também “o melhor lugar do mundo”. Ainda vive nas lembranças de Nadir, dos filhos dela e de milhares de banhistas que pisaram naquele piso rugoso e passaram naquelas duchas geladas antes de entrar no “mar” de Brasília.

CONHEÇA OUTROS ESPAÇOS DE LAZER ABANDONADOS NO DISTRITO FEDERAL

Como tudo pode ter mudado assim? Pelas lembranças dos mais antigos brasilienses, era tudo limpo, seguro, organizado, pura diversão. A barraca da família, que era recheada de produtos, nunca foi roubada e não havia nenhuma lembrança de violência no Parque da Cidade. Nadir me conta com olhar saudoso que “era um tempo feliz e maravilhoso, todos cheios de esperança e respeito uns com os outros. Meus pais tinham fregueses de todos os lugares. Nunca ouvimos falar em ladrões, roubos... nada disso acontecia”.

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A realidade atual entristece não só o coração de quem teve a infância marcada pelas ondas da piscina. “Eu queria ter conhecido a piscina em funcionamento. Hoje passo pelo Parque da Cidade com frequência e não consigo imaginar como um lugar que era sinônimo de diversão está jogado às traças. O que vemos são usuários de drogas e moradores de rua no local, enquanto os frequentadores sentem insegurança”. O estudante de arquitetura Jorge Felício, de 25 anos, não teve a oportunidade de pular nas ondas do melhor lugar do mundo. Nem eu. Local onde funcionava a lanchonete.

EMPRESAS PODEM ASSUMIR Atualmente, o Parque da Cidade é administrado pela Secretaria de Turismo, Esporte e Lazer do Governo de Brasília. A assessoria de comunicação informou que apesar de desativada há 20 anos, a “piscina com ondas” vazia tem sido utilizada na atual gestão para a promoção de raros eventos, como por exemplo a festa “A volta dos anos 80”, que resgata as músicas tocadas na década e utiliza a antiga piscina como pista de dança.

Placa localizada na entrada.

A administradora Camila de Sousa lamenta que sejam ocasiões raras e sente falta do local em funcionamento. “Essas festas dentro da piscina, tem sido as melhores, mas eu gostaria de, um dia, vê-la na ativa de novo. Os banheiros são químicos porque os do local estão inviáveis para uso”. A Secretaria de Fazenda publicou, no ano passado, a autorização para que grupos empresariais elaborassem estudos de modelagem técnica, econômico-financeira e jurídica para a realização de Parceria Público-Privada (PPP) na gestão do Parque da Cidade Dona Sarah Kubitschek. O projeto visa a reforma, manutenção, modernização e operação do Parque, a fim de ampliar o uso e oferecer mais opções de lazer aos usuários.

Placa de proibição de entrada na casa de máquinas que produzia as ondas da piscina.

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Neste caso, caberia ao concessionário promover a reforma da estrutura, bem como prover os serviços de manutenção, segurança e demais necessários à boa conservação da infraestrutura. Os estudos têm conclusão prevista para julho de 2018. Após aprovação, serão realizadas audiência e consulta pública. Por enquanto, não há notícia de interessados.


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Duchas onde os banhistas precisavam passar antes de entrar na piscina.

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Para o especialista de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB), Rômulo Ribeiro, o abandono da piscina de ondas é um problema não apenas turístico, mas social e de saúde pública. “A estrutura na piscina continua no mesmo local, só que agora acumula água de chuva e sem o devido tratamento, se torna um grande criadouro de mosquitos que podem transmitir diversas doenças. Além disso, o espaço tem sido usado por moradores de rua e para o consumo de drogas, o que deixa o ambiente muito sujo e perigoso”. Para o problema do acúmulo de água nas dependências da piscina, a Secretaria de Saúde informou que a Diretoria de Vigilância Ambiental (Dival) monitora a área da piscina permanentemente. “Focos do Aedes são raros no local, mas, quando encontrados, passam por tratamento químico”, garantiu a assessoria em nota. Mesmo com medo por conta da insegurança do lugar, há quem passe pela antiga estrutura apenas para recordar. Só a chuva que ainda mantém a piscina cheia. Ninguém pode tomar mais banho, não tem sirene, nem onda. Quem tinha 5 anos, hoje tem 45 e uma história para contar. Essa piscina já foi boa. Não só boa. Já foi o melhor lugar do mundo. A autônoma Silvia Galvão, de 50 anos, se acha uma prova viva do quanto a piscina foi um lugar especial. “Eu ia aos domingos com minha irmã e sobrinhos, íamos sempre de ônibus, vínhamos de Taguatinga, descíamos na parada da polícia e íamos a pé até a piscina”. O longo caminho de 30 minutos não desanimava ninguém. A expectativa de chegar à piscina e ouvir a sirene tocar causava até frio na barriga. É o que confirma o empresário André de Freitas, 52 anos, um assíduo frequentador durante os anos de funcionamento da piscina. “Era uma grande e gostosa farra no centro da cidade. Acessível a todos quando na época quente do ano tinha lotação es-

gotada. Eu morava no Cruzeiro, ia às vezes até a pé para o parque, doido para chegar nessa piscina, dar um mergulho e sentir aquele friozinho na barriga que as ondas provocavam”. Afinal, quem não quer ir ao melhor lugar do mundo? Silvia me descreveu os momentos de felicidade que viveu na piscina. “O melhor era tomar banho e aproveitar as ondas. Sempre fazíamos piquenique lá fora, juntava aquela turma de 10 pessoas e fazíamos a farra. Lá era um lugar onde ia gente de todo lugar de Brasília, era sempre lotado”. Lembranças que não se perdem. Fotos que remetem ao passado. Uma infância livre do medo e insegurança. A chance de, por um segundo, imaginar algo que não vivi. A saudade permanece. Vinda de uma família simples, a professora Glaucia Guedes, de 44 anos, estudava em escola pública nos anos 1980 e sonhava com as colônias de férias que levavam os alunos para a piscina com ondas. “Naquela época, participar da Colônia de Férias era o sonho de qualquer criança. No dia da piscina com ondas, o ônibus ia direto e meu coração só pensava que eu ia enfim me deliciar naquela brincadeira gostosa. Passávamos pela catraca e bum, estávamos no paraíso. Depois acho que tinha um apito e.... as ondas começavam a aparecer como um passe de mágica”. Há cerca de um ano, Glaucia resolveu fazer uma caminhada mais longa no Parque da Cidade e, para surpresa dela, encontrou uma amiga dos tempos que frequentavam juntas a piscina com ondas. “Tive vontade de chorar vendo o abandono daquele lugar que me proporcionou tanta alegria. A vi tão frágil, abandonada e percebi que o descaso dos nossos governantes matou o que na minha época era a grande atração da capital federal, ao menos para nós, crianças da periferia”.

Marcas do abandono na antiga estrutura.

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A equipe de reportagem provocou os brasilienses nas redes sociais para que contassem as memórias da época em que frequentavam a Piscina. Confira:

ERA A DISNEY AQUI EM BRASÍLIA Jucileide Oliveira , 34 anos.

GOSTAVA DE FAZER PIQUENIQUE, TOMAR SOL E CORRER AO TOQUE DA SIRENE PRA PULAR AS ONDAS Crianças se divertindo na piscina. Foto: Arquivo Pessoal.

Cleide Rocha, 44 anos.

IMITO ATÉ HOJE O BARULHO DA SIRENE, QUE SAUDADES!

Zaqueu Miranda, 52 anos.

QUANDO OUVIA A SIRENE QUE A ONDA DA PISCINA IA ACONTECER, ACELERAVA OS PASSOS PARA NÃO PERDER A PRÓXIMA Alessandra Inocêncio, 42 ano.

Crianças e adultos frequentavam a piscina do Parque da Cidade. Foto: Arquivo Pessoal.

ERA SENSCAIONAL! DOMINGO NO PARQUE DA CIDADE VISITAR A PISCINA COM ONDAS. ME LEMBRO BEM QUE QUANDO LIGAVAM AS ONDAS EU ME SENTIA NO PARAÍSO, IMAGINANDO COMO SERIAM AS ONDAS DO MAR Amália Lacerda, 38 anos.

FUI NA INAUGURAÇÃO. A EUFORIA ERA TANTA QUE PULAMOS NA PISCINA DE CALÇA JEANS José Alves, 51 anos.

ERA UMA EXPECTATIVA TREMENDA, OS DIAS NÃO PASSAVAM. QUERÍAMOS ERA PEGAR O ÔNIBUS COM AQUELA GURIZADA TODA DA RUA, CHEGAR BEM CEDINHO E NÃO PERDER UM SÓ SEGUNDO

Muitos banhistas aproveitavam o recurso do local. Foto: Arquivo Pessoal.

Soraia Ferreira, 42 anos.


INTERNET

INTIMIDADE ROUBADA Uma ferramenta utilizada pela maioria das pessoas que pode se tornar um problema grave: A internet POR Monique Rossi

#BEBIDA, FARRA E IMAGENS Fernando* é um universitário de 19 anos, apaixonado por teatros musicais e sorvete que teve suas relações sociais completamente devastadas por um vazamento de imagens íntimas. “Eu sempre fui a pessoa que pensava ‘ah isso não vai acontecer comigo’ até que eu fiz sexo em um lugar público, depois descobri que tinha um vídeo meu na internet”. Fernando foi criado pela avó paterna, Malena. Os pais se separaram quando ele ainda tinha quatro anos. Hoje, não tem uma relação boa com nenhum dos dois. O pai casou-se novamente e, ao receber uma herança, foi morar em Curitiba. A mãe, que também não possui contato próximo com ele, trabalha como enfermeira no hospital Santa Luzia, em Brasília. “Eu me senti abandonado pela minha mãe. Eu entendo que quando ela engravidou de mim era muito nova, mas agora se ela quisesse ela poderia ter tentado se aproximar de mim, mas não fez isso. Depois de um tempo eu também parei de fazer questão de ter ela por perto”, Fernando confessa. Por ser uma criança comunicativa, Malena o incentivou a participar de peças de teatro, o que fez até os 17 anos, quando decidiu dar um tempo para se dedicar ao canal que ele criou no YouTube. O estudante fez do passatempo um diário, onde compartilha seus problemas e algumas de suas histórias engraçadas. “Meu canal se tornou uma forma de eu tirar das minhas costas todo o peso dos problemas que enfrentei. Mesmo tendo poucos inscritos, me sinto bem mantendo e me dedicando ao canal”. Fernando pensava em se formar e virar professor de sociologia, “Tenho muita vontade de ser professor, mas acredito que essas novas regras do Ensino Médio possam aumentar o desemprego para quem dá aula de sociologia”. Como ele ainda está no início do curso, cogita a possibilidade de transferir para o curso de Letras, que segundo ele, pode render melhores resultados futuramente.

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No ano passado, Fernando estava em uma festa da faculdade na Asa Norte. Bebidas alcoólicas e drogas mexiam com a lucidez de cada nome que estava presente na lista de convidados, entre eles, Fernando. Enquanto alguns estudantes bebiam, outros, de olhos fechados, dançavam rapidamente um ritmo que ninguém entendia, conforme ele lembra. Por volta das 5h da madrugada, alguns alunos já tinham ido embora e os que restaram estavam completamente fora de si. Fernando estava entre eles. Com o álcool no sangue, o garoto já nem sabia mais julgar se o que estava fazendo ali era certo ou errado. Qualquer coisa que ele sentia, demonstrava de forma completamente exagerada. Fernando teve relações sexuais em público com outro menino, enquanto vários celulares miravam as câmeras para a cena. “Ter relações sexuais em público com outra pessoa não foi uma ideia muito inteligente da minha parte. Eu não parava de imaginar o que poderia acontecer comigo”. #O DIA SEGUINTE No outro dia o estrago estava feito, o vídeo já ocupava a memória de vários celulares. “Vários amigos próximos mandaram mensagem me avisando que um vídeo meu tinha vazado e estava até em sites pornográficos. Quando eu pedi para retirarem do ar, já havia milhões de visualizações. Alguns amigos meus me ajudaram a retirar dos principais sites”.


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“Eu sempre pensei que isso não fosse acontecer comigo, até descobrir que um vídeo íntimo meu estava circulando na internet”

A partir daquele momento, sua vida social tinha mudado de forma abrupta. Sentar com a roda de amigos na sala de aula deixou de ser uma opção para ele, isso porque na galeria de muitos daqueles smartphones havia algo que invadia a intimidade do estudante.

Os olhares tortos e desconfiados faziam com que Fernando imaginasse, sem esforço algum, o que estava se passando na cabeça de seus colegas. “Todos sabem que eu sou homossexual, e isso talvez isso tenha se tornado ainda mais chocante por se tratar de uma relação sexual entre gays”. Sentimento de culpa, transtornos mentais, físicos e psicológicos são algumas das consequências que enfrentou. As redes sociais tinham virado uma forma dos curiosos conhecerem um dos personagens que deram origem ao vídeo e isso acabou fazendo com que Fernando tirasse todas elas do ar. Fernando conta que ficou com vergonha de contar para a família ou denunciar. “Acho que seria uma decepção enorme para a minha avó se ela descobrisse algo assim sobre mim. Então decidi segurar as pontas sozinho por medo e vergonha. Tive sorte por nunca terem descoberto”. Divulgar fotos íntima sem autorização é crime, a lei foi proposta em 2012 e se enquadra como crime quaisquer violações de segurança de dispositivos eletrônicos. A legislação brasileira responsabiliza os crimes cibernéticos penalmente através da lei 12.737/12, mais conhecida por lei Carolina Dieckmann, que recebeu esse nome depois da atriz questionar suas fotos vazadas sem autorização.

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#VazamentoDeFotosÍntimas

@O QUE É? Vazamento de nudes é um tipo de crime virtual, cada vez mais comum, baseado na disseminação de materiais com teor íntimo ou sexual sem o consentimento da vítima. A grande maioria das vítimas são mulheres.

_COMO_SE_PREVENIR? Segundo a Norton, provedora global de soluções de segurança cibernética, para a maioria das pessoas, isso significa apenas adotar algumas dicas simples e de bom senso, a fim de manter sua família segura. Caso acredite que tenha sido vítima de um crime cibernético, alerte a Polícia Federal ou a Confederação Nacional do Comércio. Mesmo que o crime pareça pequeno, é muito importante denunciá-lo, pois você estará ajudando a prevenir que os criminosos se aproveitem de outras pessoas no futuro. De todas as vítimas desse tipo de crime, as mulheres são as mais afetadas. Juntas somam 80% dos índices. Fonte: Safernet


_CRIMES VIRTUAIS Vazamento de nudes e crimes cibernéticos

milhões de BRASILEIROS

foram

VÍTIMAS de

CRIMES CIBERNÉTICOS em Fonte: Norton, provedora global de soluções de segurança cibernética

No Distrito Federal quase a metade das ocorrências de crimes cibernéticos é de crimes contra a honra de acordo com a Polícia Civil.

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Segundo o advogado Alexandre Prieto, essa lei tem pontos positivos por agora criminalizar esse tipo de conduta, mas também pode gerar uma dupla interpretação. “A redação confusa desse artigo pode penalizar condutas que não deveriam ser enquadradas como crime, como também pode penalizar tudo. Fugindo assim do objetivo da lei que é criminalizar a divulgação indevida”.

Em dos casos, as VÍTIMAS de CRIME VIRTUAL tinham relação PRÓXIMA COM O RESPONSÁVEL. éo

O

13º colocado

na lista de

23 países mais expostos ao risco ONLINE.

2º país do PLANETA em exposição de risco para jovens entre 18 e 34 anos. E

Fonte: Telecommunication Research Group

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#É CRIME Quase um ano depois e Fernando se lembra exatamente de como tudo aconteceu. Para ele foi uma das suas épocas mais difíceis na faculdade, principalmente pelo fato de não poder contar com o apoio de Malena, que nunca ficou sabendo do ocorrido. Conforme o tempo foi passando, sua vida começou a voltar ao normal aos poucos. Suas relações, tanto sociais como profissionais começaram a melhorar devagar. “Eu, praticamente tive que recomeçar do zero. Fazer novas amizade e me enturmar novamente com outros grupos. Logo eu que pensava que isso nunca iria acontecer comigo”.


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