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Desça ao porão para se encontrar com o trompetista Freeman Lee
Vou logo de saída dizendo que o Jazz tal como conhecemos é mesmo um museu de grandes novidades, mas alguns quadros permanecem escondidos, condenados ao esquecimento em galerias subterrâneas de difícil acesso. Se quiser encontrá-los, o ouvinte terá de agir como um curador atento e curioso. Ignorar a ala principal, onde reluzem os artistas famosos, e descer até o porão. É no subsolo úmido, sob o varal de teias com a densidade menor que a do algodão, que mofam as telas desprezadas. Entre essas pinturas, chutando por baixo, restarão uma ou duas obras de valor.
A moldura com a imagem do trompetista e pianista Charles Freeman Lee pode ser uma delas. Os críticos dizem que não. Segundo eles, os “especialistas”, seu quadro jamais poderia figurar nas paredes ilustres do Jazz. Free-
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EDUARDO RODRIGUES
man Lee, como ficou conhecido, era visto como um músico limitado “cujo trabalho não guardava relação alguma com as ambições elevadas da arte”. Embora soe exagerada, a comparação faz sentido. Música e pintura são dois universos que se completam. Metáforas que servem para uma se encaixam perfeitamente noutra, como explica o pintor e ilustrador Marcio R. Gotland em artigo sobre o tema: “Compare o silêncio ao espaço vazio. Ambos estão à disposição do artista que poderá preenchê-los, respectivamente, com sons ou formas gráficas”, afirmou, evocando analogias de Kandinsky.
Se, por um lado, músicos não sentem a angústia dos pintores diante da tela em branco, por outro, precisam preencher a partitura vazia. E Freeman Lee fez a lição de casa. Escreveu belas notas na sua pauta musical e tocou o mais bonito que pôde, mas sua obra se resume a meia dúzia de discos. Nenhum como líder.
Além de gravar pouco, e sempre como músico acompanhante, ele deu um azar danado. Surgiu quando Dizzy Gillespie e Miles Davis já eram os reis da cena que logo depois seria dominada por outros trompetistas excepcionais, como Clifford Brown, Freddie Hubbard e Lee Morgan, três mitos do Jazz moderno; estilistas que empilhavam clássicos, um após o outro.
Terá sido essa uma das razões para a crítica esnobá- -lo? Provavelmente sim. Seu nome só era lembrado por
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músicos, amigos e familiares. Em 2017, vinte anos após sua morte, um dos spots mais potentes da indústria do entretenimento finalmente iluminou essa escuridão. Escrito por Annette Johnson, o livro A Jazzman’s Tale lhe trouxe de volta ao noticiário, mas não significou exatamente sua redenção. Uma história fascinante que me fez encomendar o livro e antecipar algumas impressões antes mesmo de sua chegada.
Segundo as resenhas que li sobre a obra, Annette narra a trajetória do músico a partir de entrevistas que fez com o personagem e com uma de suas irmãs, além das pesquisas habituais. Há, como sempre, as armadilhas no caminho, o contato inevitável com as drogas e muitas, muitas gírias. O trecho de uma crítica estimula o leitor a ter o trompetista em seu acervo: “Annette escreveu uma obra de leitura rápida, altamente divertida e visualmente evocativa, demonstrando a desordem de uma vida do Jazz com uma linguagem que ecoa o espírito da improvisação”. Charles Freeman Lee nasceu em Nova York em 1927. Não foi um menino prodígio, mas começou cedo. No
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final da década de 1940, já integrava a banda dos irmãos Horace e Fletcher Henderson na Wilberforce University, em Ohio, Estados Unidos. Por essa orquestra também passaram pesos-pesados como Frank Foster, Benny Carter, Ben Webster, George Russell, Snooky Young e Billy Strayhorn, entre outros.
Na mesma época, Freeman dividia suas noites entre o Paradise Club e o Minton’s Playhouse, ambos no Harlem, em Nova York. No Minton’s, participou das longas e famosas jam sessions que entraram para o lendário do Jazz. Tocou com Thelonious Monk, James Moody e Sonny Stitt, e gravou dois discos com o pianista Elmo Hope e Frank Foster, um dos saxes da linha de frente da orquestra de Count Basie. Confira o sopro quente e melódico do trompetista em Maybe So, Vaun Ex e So Nice, três faixas do disco Elmo Hope Quintet Vol. 2. É uma preciosidade na linha do Hard Bop. Freeman também aparece em coletâneas, ora como compositor, ora como membro do grupo vocal The Modern Sounds. E só. A Jazzman’s Tale pode até não alçar Freeman Lee do subsolo, mas abre a porta desse aposento soturno para entendermos os mistérios que levam artistas como ele a seguirem fora do circuito das grandes exposições do Jazz ou de qualquer outra arte.
Só me resta ler o livro para saber o tamanho do buraco em que ele se enfiou ou foi jogado.
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DISCOGRAFIA DE UM SIDEMAN
Wail Frank Wail (Esquire): Freeman Lee (trompete), Frank Foster (saxofone), Elmo Hope (piano), John Ore (baixo) e Arthur Taylor (bateria). 1956
Elmo Hope Quintet Vol. 2 (Blue Note): Elmo Hope (piano), Frank Foster (saxofone), Freeman Lee (trompete), Percy Heath (baixo) e Art Blakey (bateria). 1954-1959
Elmo Hope Trio and Quintet (Blue Note): Percy Heath (baixo), Leroy Vinnegar (baixo), Art Blakey (bateria), “Philly” Joe Jones (bateria), Frank Butler e Elmo Hope (piano), Frank Foster (saxofone), Harold Land (saxofone), Freeman Lee (trompete) e Stu Williamson (trompete). 1953-1957
Hope Meets Foster (Prestige): Freeman Lee (trompete), Frank Foster (saxofone), Elmo Hope (piano), Arthur Taylor (bateria) e John Ore (baixo). 1955
A Story of Modern Jazz – vários artistas (Blue Note): Freeman na faixa Crazy com Elmo Hope Quintet. 1997
Bebop It Began in the Big Apple (BHM Productions GmbH): Freeman Lee (trompete) com Elmo Hope Quintet. 1943
New York Is Our Home (Blue Note): Freeman Lee (trompete) com Elmo Hope Quintet. 2008
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