Sobre artistas como intelectuais pĂşblicos Respostas a Simon Sheikh
Sobre artistas como intelectuais pĂşblicos Respostas a Simon Sheikh
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EQUIPE direção: Tainá Azeredo e Thereza Farkas programação visual e video: Habacuque Lima projeto gráfico: Lila Botter Participantes do Ciclo de Portfólios 2012 Adriano Costa, Ana Maria Maia, Ananda Carvalho, Daniel de Paula, Flávia Junqueira, Garapa Coletivo Multimídia, Marcos Brias, Paula Garcia, Roberto Winter e Vitor Cesar Agradecimento: Simon Sheikh
EQUIPE edição: Fernanda Carvalho e Renata Nascimento revisão: Semiramis Oliveira produção: Alessandra Arruda
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Quando a Casa Tomada nos convidou para pensarmos alguma atividade de finalização do Ciclo de Portfólios 2012, iniciamos uma reflexão sobre a importância dialógica dessa ação. Frente à diversidade de iniciativas, que, como esta, baseiamse nas apresentações de processos criativos e portfólios de trabalhos, pareceu-nos pertinente colocar em debate a condição discursiva do artista. Esta publicação resulta no registro de um debate acerca do tema. Os dez participantes da edição do evento foram levados a pensar o discurso do artista (e, extensivamente, do crítico de arte) em relação às suas ações poéticas e políticas. Não interessava-nos realizar um catálogo de portfólios que resguardasse o território de conforto de cada um, mas propor uma pauta comum a todos e provocar assim reações e tomadas de posição. Compartilhamos o texto “Representation, Contestation and Power: the artist as public intellectual” (“Representação, contestação e poder: o artista como intelectual público”), escrito pelo crítico dinamarquês Simon Sheikh em 2004. O ensaio foi o nosso ponto de partida para um laboratório de tradução orientado pelo objetivo de tornar o conteúdo acessível em português e promover uma maior aproximação de todo o grupo com as ideias de Sheikh. A leitura do texto permitiu que cada um de nós se preparasse para um debate presencial no Paço das Artes, em 29 de março de 2012, e, à luz de nossas perspectivas individuais, respondesse às seguintes perguntas: como o seu processo artístico/crítico constrói-se como ato discursivo? Quem é você como artista intelectual público? Estas respostas compõem a publicação que se segue, juntamente com as versões do texto de Sheikh em português e em inglês. Ao reunir este material, esperamos poder lançar indicativos e suspeitas da condição do artista e do crítico como “intelectuais públicos”.
Ana Maria Maia e Ananda Carvalho
Simon Sheikh
Representação, contestação e poder: o artista como intelectual público Simon Sheikh (Outubro de 2004)
Um problema central para os artistas críticos hoje é a questão das interações com as estruturas que cercam a produção artística: os parâmetros para recepção (instituições, públicos, comunidades, circunscrições etc.) e as limitações e potenciais para comunicação em diferentes esferas (o mundo da arte, a mídia, espaços públicos, o campo político etc.). Sobre como vínculos são estabelecidos e sobre como eles são, de fato, quebrados. Isso pode ser discutido de diversas maneiras partindo do prático e metodológico, isto é: discussões acerca do uso de signos e espaços em instalações; sobre a concepção de ferramentas e políticas de representação; o papel ou função do artista /autor na construção de outros espaços e subjetividades, ou seja, redes alternativas e contra-públicos. Tais discussões devem focar não só na interface entre a instituição de arte e o indíviduo artista, tanto política quanto artísticamente, como também nas relações físicas em espaços políticos, no advento e uso de tecnologias e finalmente na constituição de redes de trabalho, linhas de comunicação e rotas de fuga. O artista como produtor depende então das estruturas nos quais ele ou ela está enredado, por meio de modos de enunciação e recepção específicos, historicamente contingenciados. O artista é, em outras palavras, uma figura pública específica que,
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naturalmente, pode ser entendida de modos diferentes, mas que simultaneamente está sempre já colocado ou situado
Simon Sheikh é
em uma sociedade específica, atribuído de uma função
crítico e curador,
específica. Isso era, é claro, o que Michel Foucault apontava
radicado entre Berlim e Copenhagem. Atua
quando escreveu sobre a “função-autor” no seu ensaio
como pesquisador
“O que é um Autor?”. “O que é um Autor?” é uma análise
do projeto Former
institucional e epistemológica da figura do autor, que pode
West, do BAK, Utrecht,
ser lida como uma problematização tanto da imaginação
e faz doutorado na Universidade
politicamente motivada do autor como produtor em Walter
de Lund. Colabora
Benjamin, quanto do igualmente polêmico e instrutivo ensaio
com as publicações
“A Morte do Autor” de Roland Barthes. Ao invés de eliminar
Sprigerin, de Viena,
ou transformar o autor, Foucault quer suspender ou conter o
e e-flux Journal, de Nova York. Suas
autor como uma função específica, invenção e intervenção
últimas curadorias
(dentro do) no discurso:
são Do You Remember the Future?, no Etagi,
Trata-se de um regresso ao problema tradicional.
St. Petersburg, 2011, e Unauthorized, no
Não mais pôr a questão: como é que a liberdade
Inter Arts Lab, Malmö,
de um sujeito se pode inserir na espessura
2012. Entre 2002 e
das coisas e dar-lhe sentido, como é que ela
2009, coordenou
pode animar, a partir do interior, as regras de
o Programa de Estudos Críticos da
uma linguagem e tornar desse modo claros os
Malmö Art Academy.
desígnios que lhe são próprios? Colocar antes
Atualmente, finaliza
as questões seguintes: como, segundo que
uma coletânia de
condições e sob que formas, algo como um
ensaios pela b_books.
sujeito pode aparecer na ordem dos discursos? Que lugar pode o sujeito ocupar em cada tipo de discurso, que funções pode exercer e obedecendo a que regras? Em suma, trata-se de retirar ao sujeito (ou ao seu substituto) o papel de fundamento originário e de o analisar como uma função variável e complexa do discurso.1
1- Foucault, Michel. O que é um autor?. Tradução de Antonio Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro. Portugal: Passagens, 2002, p. 69-70. No original, Sheikh cita a versão norte-americana: “What is an author?”, 1969, em Language, Countermemory, Practice, Cornell University Press: Ithaca, Nova York, 1977, pp.137-138.
De acordo com Foucault, a função-autor é uma medida que diferencia e classifica o texto ou obra, que tem ramificações legais e culturais. Isso também significa que quaisquer potenciais reconfigurações daquela função requerem uma reconfiguração das instituições discursivas que as cercam. Nisto tanto a noção de Benjamin do autor como figura politicamente envolvida que questiona as relações de produção na sociedade industrial moderna (i.e. fordismo) e a mobilização pós-industrial de Barthes (na qual a morte do autor deveria levar ao nascimento do leitor, uma noção radicalmente diferente de ativação do público e supostamente aprofundamento da democracia) são, de fato, tentativas de reconfiguração da função do autor. Essa reconfiguração da função do autor/artista deveria ter acontecido através de novos modos de enunciação, que por sua vez configurariam novos receptores e espectadores, entendendo que um modo de enunciação é sempre uma relação estrangeira imaginária, uma tentativa de desenvolver um público, circunscrição ou comunidade. Então se entendermos o artista como intelectual público também devemos entender como esse público em potencial é construído e reconfigurado por meio do posicionamento e da função histórica e contingente do artista, por meio de sua esfera pública específica, que também é definida pela estrutura na qual ele está enredado. Agora a concepção clássica de artista, ou de intelectual público, como uma figura do Iluminismo em uma esfera pública burguesa parece cada vez menos atual e puramente histórica. A noção de esfera pública burguesa como um espaço a ser acessado com igualdade de direitos e oportunidades por alguém na condição de sujeitos racionaiscríticos (que sempre foi, é claro, uma projeção) é também um horizonte cada vez mais distante hoje. Não existe mais “um” público, mas ou público nenhum (entendido como livre-troca) ou vários públicos específicos, fragmentados. O modelo iluminista do Ocidente, que era tolerante, até certo ponto, à arte de vanguarda, à representação de valores que não os de conduta, ordem e produtividade burgueses, está agora suplantado por um modo mais completamente comercial de comunicação, por uma indústria cultural. Enquanto o modelo Iluminista tenta educar e situar seu público por meio da disciplina, por meio de diversos modelos de exposição que identificavam os sujeitos como espectadores, a indústria cultural institui um modelo comunicativo diferente de intercâmbio e interação através da forma mercadoria, o que por sua vez identifica os sujeitos como consumidores. Para a indústria cultural, a noção de “o público”,
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com seus modos de acesso e articulação contingentes, é substituída pela noção de “o mercado”, que implica troca de mercadorias e consumo como modo de acesso e interação. Isso também significa que a ideia do Iluminismo, sujeitos racionais-críticos e a ordem social disciplinar, é substituída pela noção de entretenimento como comunicação, como o mecanismo de controle social e produtor de subjetividades. Os espaços de representação clássicos burgueses são do mesmo modo ou substituídos por mercados, como o shopping que substitui a praça pública, ou transformados em espaços de consumo e entretenimento, como é o caso da atual indústria de museus. Igualmente, a antiga esfera pública comunista, que não era esfera pública como tal, mas uma questão entre estado e partido, foi substituída não pelo antigo modelo de cidadania ocidental, mas, pela formação do grupo de mercado/consumo como descrito anteriormente. Desta maneira, nós então também precisamos reconfigurar o papel do intelectual público como um sujeito racional-crítico, um sujeito universal, não como um sujeito completamente particular, que, como vejo, seria apenas a afirmação do modelo do grupo de consumo, mas, ao invés disso, como uma figura envolvida, e não desvinculada: no mesmo período da tese de Benjamin sobre os modos de enunciação, Antonio Gramsci estava defendendo um modelo diferente de intelectual, o denominado “intelectual orgânico”, uma figura envolvida não apenas com lutas, causas, mas também com produção em si2. De acordo com Gramsci, todos os homens eram intelectuais, embora nem todos eles tivessem esse papel (o potencial da intelectualidade de massa), um papel que tinha a ver com envolvimento, organização e movimentos. Desta forma, os profissionais do marketing e da propaganda, bem como os jornalistas, eram os novos intelectuais orgânicos do capitalismo, enquanto que professores e padres não podiam ser considerados intelectuais orgânicos uma vez que eles eram repetitivos. Hoje, trabalhadores precários certamente poderiam ser considerados esse tipo de intelectual, embora permaneça por ser discutido se eles estão a serviço do capital, da indústria cultural, ou em seu movimento contrário, uma luta pela multidão. Nós devemos, portanto, começar a pensar em artistas e intelectuais como não apenas engajados no público,
2- Tradução a partir do inglês: Antonio Gramsci, “Intellectuals” (1932), no The Antonio Gramsci Reader, Lawrence and Wishart: London, 1999, pp. 301-311.
mas como produtores de um público através do modo de enunciação e da definição de plataformas ou contra-públicos, algo que já existiu tanto no Ocidente quanto no Oriente, de maneira clandestina e underground, respectivamente, mas em oposição à hegemonia política e cultural reinante na sociedade específica. Contra-públicos podem ser entendidos como formações particulares paralelas, de caráter menor ou mesmo subordinado, em que discursos e práticas outros ou oposicionistas podem ser formulados e circular. Enquanto a noção clássica burguesa de esfera pública reivindica por universalidade e racionalidade, contra-públicos costumam buscar o oposto, e em termos concretos costumam implicar em uma transformação dos espaços existentes conforme outras identidades e práticas, como nos célebres usos de parques públicos para encontros gays. Aqui, o contexto arquitetônico, edificado para garantir certos tipos de comportamento, permanece inalterado, enquanto o uso deste contexto é drasticamente modificado: atos privativos são realizados em público. De acordo com Michael Warner, contra-públicos têm várias das mesmas características que os grupos normativos ou dominantes. Existem como um enunciado imaginário, um discurso/lugar específico, e envolvem circularidade e reflexividade. Por isso, são sempre tão relacionais quanto oposicionais. Na história da arte recente, a noção de “auto-organização”, por exemplo, costuma ser um termo oposicional, e certamente um termo credível, mas não é em si um contra-público. De fato, auto-organização é uma distinção de qualquer formação pública: ela constrói-se e postula-se como um público por meio de seu modo específico de enunciação. Mais do que isso, o contra-público é um espelhamento consciente das modalidades e instituições do público normativo, mas no esforço de enunciar outros sujeitos e de fato outros imaginários: Contra-públicos são ‘contra’ [apenas] para o espectro que eles tentam promover, de diferentes maneiras, de imaginar sociabilidades mais estranhas e suas reflexividades; como públicos, eles permanecem orientados para circunstâncias mais estranhas num sentido que não é apenas estratégico mas constitutivo de associações e seus efeitos3.
3- Tradução a partir do original em inglês: Michael Warner, Publics and Counterpublics. Nova York: Zone Books, 2002, pp. 121–122.
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De especial interesse aqui, pode ser apontada não apenas a transformação das instituições de arte “burguesas” por agentes particulares, mas também o movimento atual de auto-institucionalização intencional, visto em plataformas relacionadas à arte, como o grupo 16 Beaven em Nova York; o b_books em Berlim; o Center of Land Use Interpretation em Los Angeles; o Center for Urban Pedagogy em Nova York; a Copenhagen Free University; a Community Art School em Zagreb; o Institute of Applied Autonomy em Boston; The Invisible Academy em Bankok, a School of Missing Studies em Nova York, Belgrado e Amsterdã; a University of Openness em Londres; e a Université Tangente em Paris4, todas elas de certa forma espelham e invertem as estruturas educacionais. Aqui discursos são estabelecidos e colocados em circulação não através de uma negação de sua condição pública, mas através de uma auto-institucionalização deliberada e tática. Máquinas sociais para produção de conhecimento tornam-se máquinas subjetivas – produzidas a partir da identidade ao invés de produtoras da identidade. Como afirmado por uma destas auto-instituições: Copenhagen Free University é uma voz num murmúrio de vozes. Nós não somos dois ou três indivíduos, nós somos uma instituição sujeita a várias relações sociais, em processo de ser produzida e produzir. Nós somos “os donos do pedaço”. Essa posição estabelece uma formação constante de novos contextos, plataformas, vozes, ações, mas também por meio de inatividades, recusas, evacuações, retiradas, êxodos. Segundo o situacionista Asger Jorn, a subjetividade é um ponto de vista dentro da matéria, “uma esfera de interesse”, e não necessariamente isso, o que é equivalente ao ego individualizado. […] Copenhagen Free University é uma “esfera de interesse” que surge da vida material que experimentamos e que sempre será politizada antes de tornámo-nos cidadãos. Nosso escopo é tanto local quanto global, busca companheiros de viagem virando a esquina e ao redor do mundo5.
4- As plataformas citadas promovem agendas de fomento, discussão e ativismo através da arte, em seus diferentes contextos e a partir de seus diferentes perfis. No Brasil, poderíamos mencionar algumas iniciativas correlatas, dentre programas de residência e escolas livres. Neste panorama, a Casa Tomada, organização promotora do Ciclo de Portfólios que motivou esta publicação, reúne-se a iniciativas como o Capacete (RJ/SP), o Ateliê 397 (SP), o Intermeios (SP), a Casa da Xiclet (SP), o Bê Cúbico (PE), o Fora do Eixo (DF), o Dança no andar de cima (CE), os extintos Torreão (RS), Arco (SC) e Alpendre (CE), dentre tantos outros. 5- Tradução a partir do original em inglês: Copenhagen Free University, “All Power to the Copenhagen Free University”, em We are all normal (and we want our freedom), Katya Sander and Simon Sheikh (Editores), Black Dog Publishing: London, 2001, pp. 394 – 395.
Nós estamos lidando aqui com uma noção do cotidiano, com uma tentativa de lidar com condições de vida dentro da economia do conhecimento do mundo pós-fordista, uma tática de movimento duplo, tanto contestação quanto abstenção. Nós também podemos descrever esse movimento como uma política da vida cotidiana, ao invés de política de representações, deliberações e/ou acordos. Isso implica, então, em uma noção diferente do “político”, isso não tem apenas a ver com movimento, mas também momento, o aqui e o agora, conforme as palavras de um outro autor, Stephan Geene: O que a b_books está disposta a fazer, no meu ponto de vista (embora isso não seja muito consensual no grupo), é manter um tipo específico de “opção” para “o político”, uma opção que é explicitamente não utópica, de qualquer maneira. A opção é baseada na premissa que o político não significa trabalhar por um objetivo político específico + também não tem nada a ver com sacrificar o tempo de vida de alguém, mas ao invés disso investir na “máquina” que gera “o tempo (de vida) de alguém” em um processo político 6. Deixe-me oferecer outra definição de contra-público: o que está em jogo aqui é a articulação de experiência. Trata-se de assemblage e não de performance. Enquanto as instituições da indústria cultural apenas oferecem um sem fim de “novas experiências”, a produção dos organismos auto-institucionalizados tende notadamente a parecer chata, não-espetacular na organização da experiência. Nestes tempos de um capitalismo global em expansão, corporativização da cultura e criminalização da esquerda crítica, torna-se mais do que apropriado, mas de fato crucial se discutir e acessar modos de crítica, participação e resistência na zona potente entre o campo cultural e a esfera política. Ou em outras palavras, o campo potente entre a representação política e a política representacional, entre a apresentação e a participação. É nossa convicção que o campo cultural é uma ferramenta útil para criar plataformas políticas e novas formações políticas
6- Tradução a partir do original em inglês: Stephan Geene, “self-portrait of more than me: a group – or its fragments”, in: Simon Sheikh (Ed.), In the place of the Public Sphere?, Oe / b_books: Berlim, 2004, p. 215.
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ao invés de uma plataforma fundamental em si mesma; que arte importa ou ao menos deveria importar e não apenas ser um playground para expressão e análise pessoais. Entretanto, tal projeto demanda pensamento, análise e, não por fim, uma consideração do que esses termos, política e cultura, implicam na situação atual. Primeiro de tudo, é óbvio que ambas as arenas têm sido pluralizadas e fragmentadas, se não dispersadas e dissolvidas ao longo da era pós-moderna vigente. Nós não podemos mais falar de categorias homogêneas no singular, mas ao invés disso de várias esferas políticas e campos culturais que às vezes se conectam e/ou se sobrepõem e às vezes reivindicam autonomia e/ou isolamento. Ambas as arenas implicam uma grande subdivisão de redes, agentes e instituições. No estado de bem-estar social ocidental, o campo cultural costuma ser visto como idealmente autônomo da esfera política, e por isso é estruturado, financiado e institucionalizado como uma entidade separada, algo a parte do político como uma esfera pública independente. Estranhamente, é também essa relativa autonomia que gerou para o campo cultural seu potencial para crítica política e discussão – isso foi removido da representação política e do controle diretos permitindo uma diferente produção de conhecimento e um processo reflexivo. Infelizmente, é também essa autonomia relativa que deflagra a des-politização da produção cultural e a configuração do mundo da arte como um clube exclusivo e elitista. Entretanto, com a investida neoliberal pelo Ocidente, a cultura está crescentemente sendo privatizada e corporativizada, tanto em termos de financiamento quanto de produção. A cultura corporativa cria imagens e subjetividades dominantes ao invés das chamadas culturas narrativas, ou contra-culturas. E o neoliberalismo está agora alinhando-se, sem problemas, com a onda de um “fino” fascismo europeu, em governos eleitos democraticamente na Áustria, na Dinamarca, na Holanda, entre outros, suscitando um menosprezo do intelectualismo de esquerda e do ativismo político, em algumas instâncias até criminalizando ativistas na esteira do 11 de setembro. Esse estado de bem-estar social atual, tanto no campo cultural quando na esfera política, conduz a uma possível radicalização ao invés de instaurar um mainstream de práticas críticas na arte e no ativismo, algumas vezes estrategicamente e outras de maneira involuntária. É uma luta em duas frentes, direcionada para o mainstream
político atual e também para dentro do fazer das identidades e plataformas políticas: o que podemos fazer por nós mesmos? Tal esforço, contudo, certamente requer mais pensamento sobre as noções de cultura e política, mas também sobre construções de identidade, noções de localidade ou, se você quiser, a mediação entre particularidade e universalidade, espaços públicos e estratégias ativistas, redes de trabalho e circunscrições. Na criação de equivalência e tradução, nós podemos aprender do ativismo da Aids, como sugeriu o artista/ativista Gregg Bordwich: REMÉDIO NO MEU CORPO JÁ. Isso requer uma negociação em andamento, tradução e articulação entre agentes interessados e grupos. É necessário estabelecer redes, para comparar e mediar práticas como também teorias. Arte importa, certamente, mas arte não é suficiente.
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Como o seu processo artístico constrói-se como ato discursivo? Quem é você como artista intelectual público?
Adriano Costa
O processo já é discurso. O que mais me interessa são os procedimentos específicos na construção de cada trabalho. O resultado “físico” da obra/objeto não é, absolutamente, onde eu encontro razão para fazer arte. Acredito que meus trabalhos revelam bastante esse trajeto (processo/procedimento), o que responde satisfatoriamente a segunda questão... talvez.
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Cena do filme Juventude de Ingmar Bergman
Adriano Costa vive e trabalha em São Paulo. Graduado em Artes Plásticas pela ECA-USP. Principais exposições: Black Barroco, Galeria Polinésia, São Paulo, 2009; Programa Anual de Exposições Centro Cultural São Paulo, 2010; 17º Festival Videobrasil, SESC Belenzinho, São Paulo, 2011; Convite à Viagem – Rumos Itaú Cultural, São Paulo, 2012. Foi premiado com a Residência Artística – Kiosko, Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, pelo 17º Festival Videobrasil, 2011.
Ana Maria Maia
Na condição de crítica e curadora, não tenho um trabalho que se enuncie por si só, ou como uma resposta isolada ao mundo em que vivo. Apesar de ocupar grande parte da minha rotina com atos de fala, como textos, aulas, edições, exposições, entendo que minha prática discursiva só se dá a partir da margem que disponibilizo para a escuta, para a negociação de sentidos e para a mediação de um ciclo de alteridade. Tenho a tarefa de motivar convívios e embates entre as instâncias de uma cadeia que envolve artistas, instituições e público. Essa zona de cooperações e também de irredutíveis desacordos constitui uma esfera pública que possibilita e simultaneamente torna-se alvo do meu trabalho. Fomentá-la na escala da “política do cotidiano” descrita por Sheikh parece ser um caminho, mas, acima de tudo, uma razão para se pesquisar arte. Este projeto de dupla embocadura (participação e resistência, proposição e crítica) parece ser uma maneira de se estabelecer uma relação implicada entre arte e sociedade. Na minha prática, acredito vivenciar a condição de “intelectual público” à medida em que assumo como premissa, motriz, ou ao menos tentativa, a tarefa de diferenciar os conteúdos da arte de dois riscos opostos: de um lado, a autonomia que os tornaria estéreis; do outro, a aceitação que os indistinguiria e neutralizaria sua radicalidade. Neste gesto pendular, diante de um redesenho constante do que seria “o problema”, julgo fundamental a disponibilidade de críticos e artistas para os atos de fala e escuta, para o comum a outros.
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Ana Maria Maia (Recife, 1984), é jornalista (UFPE, 2007) e mestre em História da Arte (Faculdade Santa Marcelina, 2012). Desde 2006, pesquisa e escreve sobre arte. É curadora do Rumos Artes Visuais, do Itaú Cultural (2011-2012) e integra o Núcleo de Pesquisa e Curadoria do Instituto Tomie Ohtake. Foi assistente de curadoria da 29ª Bienal de São Paulo (2009 – 2010). Em 2006, criou o Portal Dois Pontos – Arte Contemporânea em Pernambuco. Mora em São Paulo desde 2009.
Ananda Carvalho [...o contemporâneo não é apenas aquele Ananda Carvalho
que, percebendo o escuro do presente,
é curadora, crítica
nele apreende a resoluta luz; é também
de arte e professora
aquele que, dividindo e interpolando o
universitária.
tempo, está à altura de transformá-lo e
Doutoranda e Mestre em Comunicação e
de colocá-lo em relação com os outros
Semiótica pela PUC-
tempos, de nele ler de modo inédito
SP. Foi colaboradora
a história, de citá-la segundo uma
do Canal
necessidade que não provém de maneira
Contemporâneo, participou da
nenhuma do seu arbítrio, mas de uma
residência Ateliê
exigência à qual ele não pode responder.]
Aberto #5 na Casa
(Agambem, 2009, p. 72)
Tomada e integra o Núcleo de Críticos do Paço das Artes.
[...o conceito de rede, que parece
Sua pesquisa de
ser indispensável para abranger
doutorado (com
características marcantes dos
apoio de bolsa
processos de criação, tais como:
CNPq) enfoca os processos de
simultaneidade de ações, ausência
criação e os espaços
de hierarquia, não linearidade e
comunicacionais de
intenso estabelecimento de nexos. Este
redes curatoriais.
conceito reforça a conectividade e a
Vive e trabalha em São Paulo.
proliferação de conexões, associadas ao desenvolvimento do pensamento em criação e ao modo como os artistas se relacionam com seu entorno.] (Salles, 2008, p. 17). [...as transformações tecnológicas nos obrigam a considerar simultaneamente uma tendência à homogeneização
o
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universalizante e reducionista da subjetividade e uma tendência heterogenética, quer dizer, um reforço da heterogeneidade e da singularização de seus componentes.] (Guattari, 1992, p. 15). [Somente a partir de uma disponibilidade que seria intrínseca à condição de obra de arte – algo em situação – é que se pode resumir sua trajetória a sequências de encontros; somente, é claro, se essa disposição estiver inscrita desde sempre, a prescrever ritmos e a indicar uma multiplicidade de recepções possíveis (mesmo que contraditórias).] (Basbaum, 2009, p. 204) Para discutir o processo artístico como ato discursivo, proponho aqui uma ampliação de leituras, uma rede de pensamento a partir de autores que são caros à minha pesquisa. Essa pequena teia procura estimular uma adição, ou melhor, uma ação de multiplicação para observar o contexto específico do meu olhar para (e como) “o artista intelectual público”. Para mim, a interconexão entre comunicação, experiência, redes e processos de criação é a base para pensar potências criativas e diálogos expressivos. A construção de um discurso pode ser vista assim mesmo como uma rede aberta, constantemente tencionada pelo desejo assertivo de fechamento, uma busca por experiências relacionais entre eu pesquisadora, artistas, trabalhos e vivências. Considerando essa possibilidade, o ato público emerge através da troca, na própria rede, na esperança de não ser isolado e constituir uma continuidade.
Referências AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009. BASBAUM, Ricardo. “Quem é que vê nossos trabalhos?” In: FERREIRA, Glória e PESSOA, Fernando (org.) Criação e crítica: Seminários Internacionais do Museu Vale. Vila Velha, ES:
Museu Vale; Rio de Janeiro: Suzy Muniz Poduções, 2009. GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. SALLES, Cecilia Almeida. Redes de Criação. Vinhedo: Editora Horizonte, 2008.
Daniel de Paula
Suporte-afirmação
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Um artista não há de perceber (e consequentemente debruçar-se sobre) distintas situações e dispositivos de locução por meio de uma categorização hierárquica. Tal movimento pode, feito pódio, estabelecer uma relação de superioridade e inferioridade, gerando assim, uma hierarquia de esforço do próprio artista e da arte. Deve-se distinguir pódio de particularidade, enxergando em cada oportunidade, seja ela a apresentação Daniel de Paula (Boston, EUA.1987).
de um trabalho no espaço expositivo, uma
Mudou-se para
publicação, uma fala, uma pergunta, um projeto
São Paulo onde
etc., uma potencialidade específica que é inerente à
ingressou na
linguagem de determinado dispositivo/situação.
Faculdade de Artes Plásticas da FAAP. Recentemente foi
Cada escolha, negociação, concessão e
premiado no CCSP.
principalmente cada palavra é em si uma
Também recebeu
partícula política/poética que não está descolada
prêmio na exposição EDP no Tomie Ohtake. Participou
da obra, mas que constitui o próprio corpo da obra do artista.
da exposição Experiência Hélio Oiticica, no Itaú Cultural. Esteve
O ato discursivo como partícula política/poética é simultaneamente afirmação e suporte, em que
presente também na
artista e público, por meio de um determinado
mostra O Desvio é O
aparato, constantemente invertem as funções de
Alvo. Dentre diversas
propositor e receptor. Portanto, a partir de uma
exposições na Casa da Xiclet destaca-se
série de relações entre os agentes presentes no ato
a mostra Emergênese.
discursivo (obra, público, instituição e o próprio
Ainda este ano
artista), torna-se possível ressignificar, desde o interior
irá participar da
do acontecimento, tudo e todos ali presentes.
residência artística Ateliê Aberto #6 da Casa Tomada.
O artista intelectual público sabe que a arte não é exclusividade do artista.
Flávia Junqueira O artista como intelectual público é na minha opinião aquele que tem como necessidade principal comunicar. Apesar da afirmação parecer simples e óbvia quando falamos de todo e qualquer tipo de artista, acredito que é importante pensar sobre o significado do ato discursivo presente em comunicar, antes mesmo de decidir o que se deseja comunicar em um trabalho. Isso acontece porque comunicar não significa somente transmitir uma ideia através de nossos Flávia Junqueira
sentidos físicos e nossas metodologias racionais,
vive e trabalha
mas sim causar efeitos reais dentro do outro.
em São Paulo. É
Isso significa criar e proporcionar ao público a
mestranda em
identificação, o deslocamento e o envolvimento
Poéticas Visuais pela USP sob orientação
para além de um objeto exteriorizado, seja ele
do Prof. Dr. Mário
fruto de qualquer escolha.
Ramiro e bacharel em Artes Plásticas pela FAAP. Integrou
Como artista, costumo observar as representações
em 2010 o Programa
externas do mundo e notar que em minha
PIESP da Escola São
particularidade, meus olhos enxergam algumas coisas
Paulo. Recentemente
em formato amplificado. Uso a palavra particularidade,
participou da
porque obviamente muito do que vejo e me toca, não
residência Cité Internationale
é o que vê e toca o outro.
Dês Arts em Paris, através de bolsa
O desafio hoje, ao meu ver, reside em dois aspectos
contemplada pela
principais: a necessidade do artista formalizar sua
FAAP. Também participou do
pesquisa com coerência para causar um efeito no
programa de
outro e como ele pretende atuar no âmbito coletivo
residências da
para além de seu objeto plástico.
Izolyatsia’s Platform for Cultural Initiatives na cidade de Donestk
A maior dificuldade para mim como jovem artista,
na Ucrânia.
dentro de meu processo particular, é de fato atuar
a
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nessas duas etapas da comunicação. O grande ponto na maioria das vezes é criar distanciamento para, com clareza, fazer-se compreendido e encontrar a melhor maneira de formalizar o trabalho. Mas para além disso, o desafio é também gerar novas possibilidades para o artista que deseja amplificar o seu contato com o público. Neste sentido, confesso que ainda estou em processo de descobertas, pois criar uma ideia e eleger a melhor maneira de formalizá-la como ato discursivo já é algo bastante complexo. Entendo deste modo, que algumas questões que foram discutidas aqui, significam nada mais do que partes contribuintes de uma elaboração na qual estamos adicionando informações aos poucos. Para alcançarmos novas etapas, apesar de algumas já existirem inerente às anteriores (como esta publicação), ainda necessitamos de maior dedicação e aprimoramento.
Flávia Junqueira - Gorlovka 1951#7, 2011. Ampliação fotográfica em metacrilato, 70x100cm
Garapa Garapa Coletivo Multimídia é um espaço de criação coletiva. Temos como objetivo pensar e produzir narrativas audiovisuais, integrando diversos formatos, linguagens e modelos de distribuição. Desenvolvemos projetos para ambientes distintos: vamos da fotografia estática à interação multiplataforma, do vídeo à instalação site specific.
Somos um espaço de criação coletiva e nossa produção se desdobra em diferentes suportes: impressos, online, vídeos, stills, intervenções. Essa pluralidade de formatos assumidos é simultameamente fruto do tempo que habita, assim como a representação da auto-distribução. Compartilhamento, formação de redes, núcleos produtivos e criação de alternativas ao mercado estabelecido são parte essencial do que nos define como artistas. A discussão dos próprios formatos nos quais
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Garapa Coletivo Multimídia - intervenções da série Deslocamentos (deslocamentos.tumblr.com)
trabalhamos, como a fronteira entre imagem estática e em movimento, também faz parte de nossa pesquisa, assim como a tênue relação atual entre o público e o privado. Além disso, refletimos sobre o processo de diluição do conceito de autoria e nos apresentamos. O autor mitificado, aquele sacralizado como gênio criador, dá lugar a um ambiente no qual autores dialogam, trocam experiências e criam com base em um discurso já experimentado coletivamente. Esse discurso não é simplesmente fruto de um consenso, mas a criação de um novo sentido, um novo índice.
Marcos Brias Marcos Brias, 1981. Vive e trabalha em São Paulo, Brasil. Sua prática está interessada na natureza construída das narrativas – pessoal, social, histórica e linguística. O que é construído pode ser desconstruído. Como tal, a sua obra aborda a precariedade do significado verbal e visual; ambos são arranjos fundamentalmente formais que podem ser colocados fora de alinhamento ou re-editados.
Marcos Brias, trecho do texto “Threatens to meet”, 2012
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Meu processo artístico se faz discurso no momento do trabalho/obra finalizado e apresentado. Assim, o trabalho/obra ele mesmo, quando tornado público, se oferece à produção de discurso – e não como “O Discurso do Artista” a priori. No meu entender, o Artista (produtor/proponente da obra) deve “morrer” para que o trabalho/obra exista como gerador de discurso. Meu posicionamento crítico do mundo que me cerca [enquanto testemunho discursivo] pode oferecer “entradas” e/ou uma leitura do meu trabalho/obra, mas em última instância, acredito que todas essas “tomadas de posição” estão encerradas no próprio trabalho/obra, todo o “como” está contemplado na própria formalização e, na medida do possível, no tornar público da mesma – resultando num objeto/obra/ trabalho capaz de transcender questões específicas ao tempo e espaço em que foi criado. Isso também responde à segunda questão proposta, de alguma maneira, quando digo que para o trabalho/obra existir publicamente o artista (como proponente de um discurso específico) deve “morrer”. Eu, Marcos Brias, artista, não sou um intelectual público sensu stricto, senão parte de uma sociedade num tempo e espaço específicos. O que eu torno público não é a minha pessoa ou fala, e sim meu trabalho/obra, e finalmente é isso que gera discurso, e não o contrário. O que sobra do artista no trabalho é sua própria ruína, uma ruína rica e pregnante - testemunho silencioso que possibilita a fala.
Paula Garcia Corpo Ruído: precariedade, incerteza e risco Minha pesquisa atual consiste no desenvolvido de um procedimento artístico chamado Corpo Ruído. Criei uma série de performances com ímãs de neodímio e retalhos de ferros recolhidos em serralheria. Com esses materiais comecei a propor situações em que meu corpo ficaria parcialmente entrevado em decorrência principalmente do peso dos ferros que estavam colados nele. Os ímãs “colam” os ferros no corpo sem deixar resíduos através da força do magnetismo. O magnetismo,
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aliás, está presente de várias maneiras em nosso cotidiano,
Paula Garcia, vive
pelas ondas eletromagnéticas como as encontradas nos
e trabalha em
aparelhos de som e nos transportes. Assim, os imãs em
São Paulo. Mestre
meu trabalho são elementos para discutir forças não
em Artes Visuais
só subjetivas, mas também sociais, que atuam para a
pela FASM-SP e bacharel em Artes
consolidação de um sistema de poder que termina por
Plásticas pela FAAP.
moldar corpos, moldar sentimentos, moldar subjetividades,
Suas pesquisas e
moldar verdades etc. E o que se vê, na verdade, são corpos
experiências artísticas
em desmontagem, em desmoronamento.
enfocam performance e suas relações com as mídias. Principais exposições: 6ª Edição da Mostra Anual de Performance, Galeria Vermelho - SP (2010); Galeria Expandida, Luciana Brito Galeria - SP (2010); 17º Festival Internacional de Arte Contemporânea Videobrasil_SESC, SESC Belenzinho - SP; Performa Paço, Paço das Artes - SP (2011).
Paula Garcia, # 3 (da série Corpo Ruído - performance), Performa Paço, Paço das Artes, 2011
Roberto Winter
Detalhe de A extração da pedra, de Hyeronimus Bosch, c. 1494, óleo sobre madeira, 48 x 35 cm
Roberto Winter é artista. Vive e trabalha em São Paulo. Pode ser contatado em rhwinter@gmail.com
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Se pergunta de um “como” sobre um certo “o quê”. E essa pergunta parece pressupor a existência do “o quê”. Responder sobre “como o processo artístico se constrói como ato discursivo” pede que se responda sobre a pretensão do processo artístico em construir um ato discursivo. Que se responda: “seu processo artístico constrói-se como ato discursivo?”. Se pergunta de uma “construção” de ‘algo’ por um ‘agente’. E essa pergunta parece pressupor uma intenção de alguma forma construtiva, alguma positividade que se especificaria a priori. E essa pergunta também parece pressupor a existência de um empreendedor construtivo. Responder sobre “se o processo artístico constrói-se como ato discursivo” pede que se responda sobre a construção de um ato discursivo. Que se responda: “constrói-se um ato discursivo?”. E responder sobre “se o processo artístico constrói-se como ato discursivo” pede que se responda sobre a pretensão auto-construtiva de um processo artístico. Que se responda: “seu processo artístico constrói-se?”. Se pergunta de um “resultado” de um ‘processo’. E essa pergunta parece pressupor a existência de um processo. Responder sobre “se o processo artístico constrói-se” pede que se responda sobre a atividade artística como processo: “qual é seu processo artístico?”. Se pergunta sobre um certo “o quê”… Afinal a resposta toma um pouco mais que os dez twits reservados para ela.
Vitor Cesar Vitor Cesar (Fortaleza, 1978). Artista, vem desenvolvendo propostas que procuram constituir noções de público através de dinâmicas da vida cotidiana, por meio de exposições, trabalhos gráficos, debates e outros projetos. Estudou Arquitetura e Urbanismo na UFC (2003), realizou mestrado em Artes Visuais na ECA/USP (2009), com pesquisa sobre as propriedades críticas da arte na constituição de esferas públicas.
Ao desenvolver um trabalho ou uma obra, o artista tem destinatários em seu horizonte, ainda que sejam desconhecidos ou mesmo ficcionais. Esta consideração admite a dimensão política da arte, pois trata de uma forma de articulação de ideias que considera um espaço comum estabelecido entre duas ou mais pessoas para a produção de sentido. Este espaço comum é um lugar de visibilidade, onde os discursos ou os modos de entender e estar no mundo aparecem para outras pessoas: um espaço público – não necessariamente físico, mas um
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Vitor Cesar, Artista é Público. Exposição Caos e Efeito, Itaú Cultural, 2011
lugar de debate crítico. Nessas condições não é possível separar a forma de um discurso de seu conteúdo. É o mesmo que tentar definir algo apenas como teórico ou apenas como prático. Ao se tornar visível, todo discurso tem uma forma. No espaço público estabelecem-se acordos e desacordos que resultam de múltiplas maneiras de percepção do mundo. A partir daí formulam-se, por um lado, modos de conduta e, por outro, desconstruções críticas destes modos. Assim, poderíamos pensar que não reconhecer a condição política da arte seria optar por manter ou conservar (conservador) um sentido comum dado da arte (facilmente adaptada) no mundo.
Simon Sheikh
Representation, Contestation and Power: The Artist as Public Intellectual October 2004
A central issue for critical artists today is the question of interactions with the apparatus surrounding art production: the parameters for reception (institutions, audiences, communities, constituencies, etc.) and the potentials and limitations for communication in different spheres (the art world, the media, public spaces, the political field etc.). How connections are made and how they are, indeed, broken. This can be discussed in a number of ways, ranging from the practical and methodological, that is, discussions regarding the use of signs and spaces in installation, about conceptions of tools and politics of representation, the role or function of the artist/author in the construction of other spaces and subjectivities, that is alternative networks or even counter-publics. Such discussions must focus not only on the interface between the institution of art and the individual artist, both politically and artistically, but also on bodily relations in political spaces, the advent and usage of technologies, and finally the establishment of networks, communication lines and escape attempts.
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The artist as a producer is thus dependent on the apparatus through which he or she is threaded, through specific, historically contingent modes of address and reception. The artist is, in other words, a specific public figure that can naturally be conceived in different ways, but which is simultaneously always already placed or situated in a specific society, given a specific function. This was, of course, what Michel Foucault was driving at when he wrote of “the author-function” in his essay “What is an Author?”. [1] “What is an Author?” is an institutional and epistemological analysis of the figure of the author, which can be read as a problematization of both Walter Benjamin’s politically motivated imagining of the author as producer, as well as Roland Barthes’ equally polemic and instructive essay “The Death of the Author”.[2] Rather than eliminating or transforming the author, Foucault wants to suspend or bracket the author as a specific function, invention and intervention (with)in discourse: We should suspend the typical questions: how does a free subject [such as an author or artist, supposedly] penetrate the density of things and endow them with meaning; how does it accomplish its design by animating the rules of discourse from within? Rather, we should ask: under what conditions and through which forms can an entity like the subject appear in the order of discourse; what position does it occupy; what functions does it exhibit; and what rules does it follow in each type of discourse? In short, the subject (and its substitutes) must be stripped of its creative role and analysed as a complex and variable function of discourse.[3] According to Foucault the author-function is a measure that differentiates and classifies the text or work, which has both legal and cultural ramifications. This also means that any potential reconfigurations of that function require a reconfiguration of discursive institutions surrounding it. In this both Benjamin’s notion of the author as a politically involved figure questioning relations of production in modern industrial
[1] Michel Foucault, “What is an Author?”, 1969, reprinted in Language, Counter-Memory, Practice, Cornell University Press: Ithaca, New York, 1977, pp. 113-138.
York, 1978, pp. 220-238. Roland Barthes, “The Death of the Author”, 1967, reprinted in Image-Music-Text, Hill & Wang: New York, 1977, pp.142-148.
[2] Walter Benjamin, “The Author as Producer”, 1934, reprinted in Reflections, Harcourt Brace Joanovich: New
[3] Foucault, op.cit., p.137-8.
society, a.k.a. fordism, and Barthes’ post-industrial call to arms, where the death of the author should lead to the birth of the reader, which is a radically different notion of activating the public and presumably deepening democracy, are, in effect, attempts at reconfiguring the function of the author. This reconfiguration of the author/artist function was to take place through new modes of address, which would in turn configure new modes of receivership or spectatorship in the sense that a mode of address is always an imaginary stranger relationality, an attempt at developing an audience, constituency or community. So if we are to understand the artist as a public intellectual, we also have to understand how this potential public is constructed and reconfigured through the historical and contingent placing or function of the artist, through his or her specific public sphere, which is also termed the apparatus through which the artist is threaded. Now the classical conception of the artist, or the public intellectual, as an Enlightenment figure in a bourgeois public sphere seems less and less up to date and purely historical. The notion of the bourgeois public sphere as a space to be entered with equal rights and opportunities as rational-critical subjects, which has always been a projection of course, is also an increasingly receding horizon today. There no longer is “a” public, but rather either no public at all (as understood as free exchange), or a number of fragmented, particular publics. The enlightenment model of the west, which was tolerant, to some extent, of avant-garde art, of representing values other than bourgeois values of conduct, order and productivity, has now been superseded by a more thoroughly commercial mode of communication, by a cultural industry. Where the Enlightenment model tried to educate and situate its audience through discipline, through various display models identifying subjects as spectators, the cultural industry institutes a different communicative model of exchange and interaction through the commodity form, in turn identifying subjects as consumers. For the cultural industry, the notion of “the public”, with its contingent modes of access and articulation, is replaced by the notion of “the market”, implying commodity-exchange and consumption as modes of access and interaction. This also means that the idea of the Enlightenment, rational-critical subjects and a disciplinary social order, is replaced by the notion of entertainment as communication, as the mechanism of social control and producer of subjectivity. The classic bourgeois
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spaces of representation are likewise either replaced by markets, such as the mall replacing the public square, or transformed into a space of consumption and entertainment, as is the case in the current museum industry. Similarly, the former communist public sphere, which was no public sphere as such, but a matter between state and party, has been replaced not by the former citizen-model of the west, but by the market/consumer-group formation as just described. As such, we then also have to reconfigure the role of the public intellectual as a rational-critical subject, a universal subject, not as a thoroughly particular subject, which - as I see it - would only be an affirmation of the consumer-group model, but rather as an involved instead of detached figure: at the same time as Benjamin’s thesis dealing with the mode of address, Antonio Gramsci was defining a different model of the intellectual, the so-called “organic” intellectual, which was a figure that was involved not only in struggles, in causes, but also in production itself.[4] According to Gramsci all men were intellectuals, although not everyone had that role (the potential of mass intellectuality), a role that had to do with involvement, organizing and movements. As such, marketing and advertising men as well as journalists were the new organic intellectuals of capitalism, whereas teachers and priests could not be considered organic intellectuals, since they were repetitive. Today, precarious workers could certainly be considered this kind of intellectual, although it remains to be discussed whether they are in the service of capital or the cultural industry or in its counter-movement, a struggle for the multitude. We must therefore begin to think of artists and intellectuals as not only engaged in the public, but as producing a public through the mode of address and the establishment of platforms or counter publics, something that has already existed in both the east and west, clandestinely and underground respectively, but in opposition to the reigning cultural and political hegemony of the specific society. Counter-publics can be understood as particular parallel formations of a minor or even subordinate character where other or oppositional discourses and practices
[4] Antonio Gramsci, “Intellectuals” Prison Notebooks Q 12, 1932, reprinted in The Antonio Gramsci Reader, Lawrence and Wishart: London, 1999, pp.301-311.
can be formulated and circulated. Where the classic bourgeois notion of the public sphere claimed universality and rationality, counter-publics often claim the opposite, and in concrete terms often entail a reversal of existing spaces into other identities and practices, most famously as in the employment of public parks as cruising areas in gay culture. Here, the architectural framework, set up for certain types of behaviour, remains unchanged, whereas the usage of this framework is drastically altered: private acts are performed in public. According to Michael Warner, counter-publics have many of the same characteristics as normative or dominant publics - existing as an imaginary address, a specific discourse and/or location, and involving circularity and reflexivity - and are therefore always already as much relational as they are oppositional. In recent art history the notion of “self-organization”, for example, is most often an oppositional term, and certainly a credible one, but it is not itself a counter-public. Indeed, self-organization is a distinction of any public formation: it constructs and posits itself as a public through its specific mode of address. Rather, the counter-public is a conscious mirroring of the modalities and institutions of the normative public, but in effort to address other subjects and indeed other imaginaries: Counterpublics are “counter” [only] to the extent that they try to supply different ways of imagining stranger sociability and its reflexivity; as publics, they remain oriented to stranger circulation in a way that is not just strategic but constitutive of membership and its affects. [5] Of particular interest here, is not only the transformation of “bourgeois” art institutions by particular agents, but also the current movement of wilful self-institutionalization seen in such art related platforms as 16 Beaver group in New York, b_books in Berlin, Center for Land Use Interpretation in Los Angeles, Center for Urban Pedagogy in New York, Copenhagen Free University, Community Art School in Zagreb, Institute of Applied Autonomy in Boston, The Invisible Academy in Bangkok, School of
[5] Michael Warner, Publics and Counterpublics, New York: Zone Books, 2002, pp. 121-22.
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Missing Studies in NY, Belgrade and Amsterdam, University of Openess in London and Université Tangente in Paris, that all somewhat mirror and reverse educational facilities. Here discourses are established and circulated not through a negation of publicness, but through a deliberate and tactical self-institutionalization. Societal machines for knowledge production become subjective ones - produced through identity rather than producing identity. As stated by one of these self-institutions: Copenhagen Free University is one voice in a mumble of voices. We are not two or three individuals, we are an institution drifting through various social relations, in the process of being produced and producing. We are the people in the house. This position establishes an everchanging formation of new contexts, platforms, voices, actions but also by inactivity, refusals, evacuations, withdrawals, exodus. According to the situationist Asger Jorn, subjectivity is a point of view inside matter, “a sphere of interest”, and not necessarily that, which is equitable with the individualized ego. [...] Copenhagen Free University is a “sphere of interest” arising from the material life we experience and will always be politicized before any citizenship. Our scope is both local and global, looking for fellow travellers around the corner and around the world. [6] We are dealing here with a notion of the everyday, with an attempt to deal with living conditions within the knowledge economy of the post-fordist world, a tactic of double movement, both contestation and withdrawal. We can also describe this movement as a politics of everyday life, rather than of representations, deliberations and/or aggregates. This entails, then, a different notion of “the political” that is not only about movement, but also moment, the here and now, as in the words of another author-producer Stephan Geene: What b_books is up to, according to my point of view (although this is not very consensual in the group), is to maintain a specific kind of
[6] Copenhagen Free University, “All Power to the Copenhagen Free University”, in: Katya Sander and Simon Sheikh (Eds.), We are All Normal (and we want our freedom), Black Dog Publishing: London, 2001, pp. 394-395.
“option” for “the political”, an option that is explicitly not utopian in any way. the option is based on the premise that the political does not mean to work for a defined political aim + that it has nothing to do with sacrificing one’s own (life)time, but rather investing in the “machine” that generates “one’s own life” in a political process. [7] Let me also offer another definition along the lines of counter-publics: what is at stake here is the articulation of experience. It is assemblage rather than performance. Where the institutions of the cultural industry only offer endless “new experiences”, the production of self-institutionalized bodies notably tends to appear boring, unspectacular in the organizing of experience. In these times of an expansive global capitalism, corporatization of culture and criminalization of the critical left, it is not only appropriate, but indeed crucial to discuss and assess modes of critique, participation and resistance in the charged field between the cultural field and the political sphere. Or in other words, the charged field between political representation and representational politics, between presentation and participation. It is our firm belief that the cultural field is a usable tool for creating political platforms and new political formations rather than a primary platform in itself; that art matters, or at least should matter and not only be a playground for self expression and/or analysis. However, such a project requires thinking, analysis and, not least of all, a consideration of what these terms, politics and culture, implicate in the current situation. First of all, it is obvious that both arenas have been pluralized and fragmented, if not dispersed and dissolved throughout the current postmodern era. We can no longer talk of homogeneous categories in the singular, but rather of several political spheres and several cultural fields that sometimes connect and/or overlap and sometimes strives towards autonomy and/or isolation. Both arenas imply a large subdivision of networks, agents and institutions. In Western welfare states the cultural field has traditionally been seen as ideally autonomous from the political sphere, and has thus been structured, financed
[7] Stephan Geene, “self-portrait of more than me: a group - or its fragments”, in: Simon Sheikh (Ed.), In the Place of the Public Sphere?, oe / b_books: Berlin, 2004, p.215.
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and institutionalized as a separate entity, something apart from the political as an independent public sphere. Strangely, it is also this relative autonomy that has supplied the cultural field with its potential for political critique and discussion - that it has been removed from direct political representation and control, allowing for a different production of knowledge and reflexive processes. Unfortunately, it is also this relative autonomy that has led to a de-politicization of cultural production and the configuration of the art world as an elitist, exclusive club. However, with the current neoliberal onslaught throughout the West, culture is increasingly being privatized and corporatized, both in terms of funding and production. Corporate culture creates dominant imagings and subjectivities rather than so-called alternative or counter-culture. And neoliberalism is now aligning itself seamlessly with the current wave of European “velvet� fascism in democratically elected governments in Austria, Denmark, Holland and so on, leading to a vilification of left-wing intellectualism and political activism, in some instances even criminalizing activists in the wake of 9-11. This current state of affairs, in both the cultural field and the political sphere, leads to a possible radicalization rather than a mainstreaming of critical practices within art and activism, sometimes strategically and sometimes involuntary. It is a struggle on two fronts, directed both towards the current political mainstream and inwards in the making of political identities and platforms: What can we do for ourselves? Such an endeavour, however, certainly requires more rather than less thinking about notions of culture and politics, but also about identity constructions, notions of locality or, if you will, the mediating between particularity and universality, public spaces and activist strategies, networks and constituencies. In the creation of equivalence and translation, we can learn from AIDS activism as suggested by artist/ activist Gregg Bordowich: MEDICINE INTO MY BODY NOW. It requires an ongoing negotiation, translation and articulation between interested agents and groups. It is necessary to establish networks, to compare and mediate practices as well as theories. Art matters, certainly, but art is not enough.
Dados Internacionais de Catalogação na Fonte (CIP) B99t
Maia, Ana Maria; Carvalho, Ananda (org). Sobre Artistas como Intelectuais Públicos: respostas a Simon Sheikh. São paulo : Selo Prólogo e Casa Tomada, 2012. 48p. ISBN 978-85-9934976-2 1. Arte contemporânea. 2. Artes plásticas. 3. Exposição de arte. I. Título. II. Fernanda Carvalho, Renata Nascimento (editor). III. Lila Botter (projeto gráfico). IV. Ana Maria Maia, Ananda Carvalho, Tainá Azeredo, Thereza Farkas (Organização). V Adriano Costa ... [et al.] (colaboradores) CDU - 340.12
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