A experiência de Galileu sobre aceleração

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A Experiência de Galileu sobre Aceleração Michael Fowler Universidade de Virgínia, Departamento de Física Um Resumo das Ideias de Aristóteles Aristóteles defendia que existiam dois tipos de movimentos para a matéria inanimada, os naturais e os nãonaturais. Os movimentos não naturais (ou “violentos”) ocorrem quando algo é empurrado, e neste caso a velocidade do movimento é proporcional à força exercida. (Fez esta dedução provavelmente ao observar carroças e barcos.) Os movimentos naturais ocorrem quando algo procura o seu lugar natural no universo, tal como uma pedra a cair, ou o subir do fogo. (Estamos apenas a considerar as substâncias constituídas por terra, água, ar e fogo. O “movimento circular natural” dos planetas, compostos pelo éter, é considerado separadamente.) Para o movimento natural de queda de objetos de grande massa, Aristóteles afirmava que a velocidade de queda era proporcional à massa, e inversamente proporcional à densidade do meio que o corpo atravessava durante a queda. Também mencionou que existia alguma aceleração, pois à medida que o corpo se aproximava do seu próprio elemento, a sua massa aumentava e este acelerava. Contudo, estas observações de Aristóteles são muito breves e certamente não quantitativas. Na realidade, os pontos de vista de Aristóteles não permaneceram incontestados, até mesmo em Atenas. Aproximadamente trinta anos após a sua morte, Strato fez notar que uma pedra largada de uma altura maior causa maior impacto no solo, sugerindo que esta pedra ganhava velocidade à medida que caía de uma altura maior. Two New Sciences – Duas Novas Ciências Galileu demonstrou as suas ideias sobre corpos em queda livre, e sobre projéteis em geral, num livro intitulado “Two New Sciences1”. As duas ciências eram a ciência dos movimentos, que se tornou a base da física, e a ciência dos materiais e construção, uma importante contribuição para a engenharia. As ideias são apresentadas de forma animada, como um diálogo, envolvendo três personagens, Salviati, Sagredo e Simplício. O ponto de vista oficial da Igreja, isto é, o Aristotelismo, é apresentado pela personagem de nome Simplício, e cujas opiniões são habitualmente “demolidas” pelos outros dois intervenientes. A defesa de Galileu, quando estava a ser acusado de heresia por escrever um livro semelhante a este, baseava-se no fato de este afirmar que estava apenas a garantir que refletia todos os pontos de vista, mas estava a ser pouco sincero – Simplício é quase invariavelmente retratado como um simplório. Por exemplo, em Two new Sciences, página 62, Salviati declara: SALVIATI: Eu duvido seriamente que Aristóteles alguma vez tenha testado experimentalmente se seria verdade que duas pedras, uma com uma massa dez vezes maior que a outra, quando colocadas em queda, 1

O título original do livro, publicado em 1638, é Discorsi e dimostrazioni matematiche, intorno à due nuove scienze (Discurso e demonstração matemática, em torno de duas novas ciências).


no mesmo instante, de uma altura de, digamos, 100 cúbitos, teriam velocidades assim tão diferentes que quando a de maior massa atingisse o solo, a outra não tivesse percorrido mais do que 10 cúbitos. A resposta de Simplício a esta afirmação não foi a de pensar em fazer ele próprio a experiência, mas de examinar minuciosamente a escritura sagrada: SIMPLÍCIO: A linguagem utilizada parece indicar que ele efetuou a experiência, porque diz: Vemos o de maior massa; a palavra vemos mostra que ele efetuou a experiência. Sagredo junta-se à discussão: SAGREDO: Mas eu, Simplício, que fiz a experiência, posso assegurar-te que uma bola de canhão com massa uma ou duas libras, ou até mais, não atinge o solo por mais do que um palmo à frente de uma bala de mosquete de apenas meia libra, se as duas forem largadas de uma altura de 200 cúbitos. Este texto marca o início da era moderna da ciência – a atitude de que as afirmações das autoridades sobre o mundo físico, não importa quão sábias ou respeitáveis, devem ser testadas experimentalmente para verificar a sua veracidade. A lenda diz que Galileu efetuou esta experiência a partir da torre inclinada de Pisa. Galileu continua, fornecendo uma análise detalhada do movimento de queda dos corpos. Apercebe-se que para os objetos extremamente leves, como as penas, a resistência do ar torna-se no efeito dominante, o que leva a pequenas diferenças em relação à experiência descrita. Movimento Acelerado Naturalmente Tendo demonstrado experimentalmente que os objetos de maior massa efetuam o movimento de queda praticamente à mesma velocidade, Galileu considerou a questão central sobre a velocidade durante a queda, e que praticamente não era mencionada por Arsitóteles – como varia a velocidade durante a queda? O problema é que é muito difícil responder a esta questão tendo por base apenas a observação do movimento – este termina muito depressa. Para efetuar qualquer tipo de medição da velocidade, o movimento deve de algum modo ser abrandado. É claro que alguns movimentos de queda são naturalmente lentos, tal como o de uma pena, ou algo com uma massa pequena a atravessar uma massa de água durante a queda. Ao observar estes movimentos, vemos que após ter sido ser largado, o corpo rapidamente atinge um determinado valor de velocidade, ao qual depois se move de forma constante. O erro que muita gente cometeu foi o de assumir que todos os corpos em queda seguiam este padrão, e portanto grande parte da queda seria efetuada a velocidade constante. Galileu argumentou que esse ponto de vista era falso, ao fazer eco das palavras de Strato, quase dois mil anos antes: (Two New Sciences, página 163) Mas digam-me, senhores, não é verdade que se um bloco for largado de uma altura de quatro cúbitos sobre uma estaca, e esta perfurar o solo em, digamos, quatro dedos, aquela que for largada de uma altura de dois cúbitos vai levar a estaca a perfurar uma distância muito menor; e finalmente se o bloco for largado de uma altura de apenas um dedo, o que vai este fazer para além de ficar em cima da vara? Certamente muito pouco. Se for largado da altura correspondente à espessura de uma folha, o efeito será completamente impercetível. E uma vez que o efeito sobre a vara depende apenas da velocidade do bloco, pode alguém duvidar que o movimento é muito lento... sempre que o efeito é impercetível?


A Hipótese da Aceleração de Galileu Tendo demonstrado, a partir dos argumentos anteriores e das suas experiências, que um corpo em queda continua a ganhar velocidade, ou seja acelera, à medida que cai, Galileu sugeriu a hipótese mais simples (transcrevendo a discussão em Two New Sciences, página 161): Um corpo em queda acelera uniformemente: ganha a mesma velocidade em intervalos de tempo iguais de modo que, se parte do repouso, move-se com velocidade duas vezes maior após dois segundos de movimento, em comparação com a velocidade que tinha ao fim de um segundo, e move-se com velocidade três vezes maior após três segundos de movimento, em comparação com a velocidade que tinha ao fim de um segundo. Esta é uma hipótese simples e apelativa, mas não foi muito fácil Galileu testá-la experimentalmente – como podia ele determinar, em dois momentos diferentes, a velocidade de uma pedra durante a queda, e efetuar a comparação? Abrandando o Movimento O truque é abrandar o movimento de algum modo, de forma a conseguir medir a velocidade, sem alterar, ao mesmo tempo, o tipo de movimento. Galileu sabia que ao largar algo sobre a água de modo a a abrandar o movimento de queda, alterava o tipo de movimento, pois o objeto atingiria o solo da mesma forma, quer fosse largado de 3 metros ou de 60 centímetros, e portanto abrandar o movimento desta forma alterava-o completamente. A ideia de Galileu para abrandar o movimento foi a de colocar uma bola num plano inclinado, em vez de a deixar cair verticalmente. Argumentou que o aumento da velocidade ao descida da rampa a partir de determinada altura, não dependia da inclinação do plano. Este argumento foi baseado numa experiência efetuada com um pêndulo e um prego, descrita na página 171 de Two New Sciences. O pêndulo era constituído por um fio e uma bala de chumbo. A bala é afastada até à posição C, mantendo a corda esticada.

Um prego é colocado em E, exatamente por baixo do ponto onde o pêndulo se encontra fixo, de modo que o pêndulo oscila até à posição de altura mínima, o fio choca com o prego e o pêndulo é efetivamente encurtado, de modo que a bala oscila até G segundo uma trajetória mais inclinada. Porém, o pêndulo oscilará até aproximadamente a mesma altura com que começou o movimento, ou seja, os pontos G e C estão à mesma altura.


Para além disso, quando oscila no sentido inverso, atinge novamente o ponto C, se desprezarmos uma pequena diferença devida à resistência do ar. Daqui pode-se concluir que a velocidade com que a bola passa o ponto de altura mínima é igual nas duas direções. Para compreende isto melhor, imagine em primeiro lugar a situação sem o prego E. A bola oscilaria para a frente e para trás de modo simétrico, tal como um pêndulo comum, e certamente neste caso a velocidade no ponto de altura mínima é a mesma, quer a bola passe numa direção ou na outra (uma vez mais desprezando a diminuição gradual da velocidade devido à resistência do ar). Quando se coloca o prego em E, observa-se que a bola, ao oscilar, continua a atingir o ponto inicial C. Conclui-se que a velocidade deverá ser a mesma quando a bola oscila do ponto de altura mínima para C, quer o prego esteja em E ou não, pois no instante em que o fio abandona o prego E, durante a oscilação de regresso, voltamos a ter um pêndulo comum, e a altitude que atinge depende da velocidade com que este passa no ponto de altura mínima. Galileu argumentou que um padrão semelhante pode ser observado se uma bola descer um plano inclinado que por sua vez está suavemente ligado a um outro plano de maior inclinação, isto é, a bola irá subir o segundo plano (mais inclinado) até essencialmente a mesma altura de onde foi largada, apesar de a inclinação dos planos ser diferente. Continuará a rolar, ora num sentido, ora no outro, entre as duas rampas, eventualmente acabando por parar devido ao atrito, à resistência do ar, etc.

Ao pensar sobre este movimento, é óbvio que (ignorando a diminuição gradual de velocidade em passagens sucessivas) a velocidade com que termina a descida quer de uma rampa, quer de outra, deverá ser igual. Galileu sugere que imaginemos a segunda rampa cada vez mais inclinada – e veremos que se for inclinada o suficiente, podemos pensar na bola como estando simplesmente a cair! Ele conclui que para uma bola que desce um plano inclinado, a velocidade da bola em diferentes alturas é igual à velocidade que a bola atingiría (muito mais rapidamente) ao cair verticalmente desde o ponto de partida até essa altura. Mas se a inclinação do plano for pouco acentuada, o movimento será lento o suficiente para poder ser medido. (Na realidade, há uma diferença entre uma bola a rolar e uma bola a deslizar suavemente ou a cair, mas não afeta a forma como a velocidade aumenta, e por isso não nos vamos debruçar sobre isso aqui.) A Experiência de Galileu sobre Aceleração Estamos agora preparados para estudar a experiência de Galileu, na qual ele testou a sua hipótese sobre o modo como os corpos ganham velocidade durante a queda. Transcreve-se o seu relato do livro Two New Sciences, página 178:

Foi utilizada uma ripa ou viga de madeira, de 12 cúbitos de comprimento por meio cúbito de largura e três dedos de espessura; foi criado um canal com pouco mais de um dedo de comprimento numa das extremidades; tendo feito esta ranhura reta, lisa e polida, forrou-se com pergaminho, tão suave e polido quanto possível, e fez-se rolar uma bola muito redonda e suave de bronze. Ao colocar esta viga numa posição inclinada, levantando uma das extremidades um ou dois cúbitos acima da outra, fez-se rolar a


bola, tal como dizia, sobre o canal, anotando, como será exposto mais adiante, o tempo necessário para que esta efetuasse a descida. Repetiu-se esta experiência mais do que uma vez para medir com precisão o tempo, de modo a que o desvio entre duas observações nunca excedesse 1/10 de uma pulsação. Ao levar a cabo esta operação e ao assegurarmo-nos da sua fiabilidade, rolamos agora a bola até apenas um quarto do comprimento do canal; e ao medir o tempo de descida, descobrimos ser precisamente metade do tempo anterior. Em seguida, repetimos para outras distâncias, comparamos o tempo obtido para todo o comprimento, com o obtido para metade, ou para dois-terços, ou três-quartos, ou para qualquer fração da distância; em tais experiências, repetiu-se o procedimento num total de cem vezes, e obtivemos sempre o mesmo resultado, as distâncias percorridas estavam uma para a outra tal como os quadrados dos tempos, e isto era verdadeiro para todas as inclinações do plano ou do canal onde a bola rolou. Também observamos que os tempos de descida, para as várias inclinações do plano, mantinham entre si a mesma proporção que, como veremos mais tarde, o autor foi capaz de prever e demonstrar. Para a medição do tempo, utilizou-se um grande recipiente de água colocado numa posição elevada; no fundo deste recipiente foi colocado um tubo de pequeno diâmetro, que originava um pequeno fio de água que era depois recolhida num pequeno copo, durante o tempo de cada descida, quer a bola percorresse todo o comprimento ou apenas parte dele; a massa da água assim recolhida era determinada após cada descida, numa balança muito precisa; as diferenças e relações entre estas massas permitiram obter as diferenças e relações entre os tempos, e isto com grande precisão, e embora a operação tenha sido repetida muitas, muitas vezes, não houve uma discrepância considerável nos resultados. Efetuando a Experiência na Realidade Realizou-se esta experiência, embora não se tenha utilizado um canal forrado a pergaminho e a bola tenha sido de aço, com cerca de 2.5 cm de diâmetro (1 polegada). Utilizou.se um relógio de água, criando um fio de água que era recolhido num copo de poliestireno(!) enquanto a bola efetuava o movimento de descida desde o topo até ao final do plano. Efetuou-se a experiência três vezes para uma distância igual à do comprimento do plano, e três vezes para uma distância igual a um quarto do plano. Mediu-se a massa de água no copo com uma balança normal. Encontrou-se, com alguma surpresa, o valor de 56 gramas para a totalidade do comprimento do plano, e 28 gramas para um quarto da distância. Tivemos alguma sorte, houve um desvio de algumas gramas. Contudo, isto sugere que Galileu não exagerou ao anunciar a precisão dos seus resultados em Two New Sciences, já que foi bastante mais cuidadoso e repetiu a experiência muito mais vezes do que as que acabei de descrever.

© Michael Fowler, Universidade de Virgínia

Casa das Ciências 2013 Tradução/Adaptação de Nuno Machado e Manuel Silva Pinto


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