“O Estilador” A caldeira já expirava ébrios vapores quando o Sô Zé a resolveu descabeçar perante a nossa curiosidade. Do medronho maturando, ficara-nos aquele perfume acídulo que saíra da dorna onde ficara mais de um mês a fermentar. A papa havia que ser mexida. «Senão agarra-se e é uma porra…! Do medronho já não há quem consiga tirar o raio do sabor a queimado…». Dito isto e lá continuava Sô Zé mexendo com a sua pá de padejar trigo, velhinha e negra madeira de raspar caldeiras de mosto avermelhado. «É mau sinal se a pá se mantém direita quando a largamos. É porque precisa de água, ou de preferência, de ‘frouxo’ ». De joelhos como se para Alá orasse, sobre a grossa prancha de cortiça que o protegia dos calores infernais do forno sobre o qual se encontrava, mais parecia o alquimista falando da sua fórmula mágica. «Sim, porque isto da ‘estila’* do medronho tem que se lhe diga. É a lenha, o forno, o fogo que não pode faltar ou abusar, o isolamento da caldeira, a água fria no tanque, o pinga-pinga da bica a que não pode faltar uma ‘olha’ de vez em quando. Comecei nisto por gosto, quando apanhava fora o mê pai, mesmo que um parente ainda me dissesse que não era coisa que fedelho fizesse e que havia de ficar com os ossos tortos de tantos vapores maus!!» Enquanto ele encabeçava o alambique, aproveitaram todos para encher o copo, buscando “in vitro” as palavras de Sô Zé. «Qual uísque ou visque ou lá o que é isso que eu já não sei o que é que aquilo é! Isto é medronho, é medronheira, não é qualquer mixórdia!», exclamava entre indignado e “satisfeite” o Toino Baeta. Pingava ainda o “frouxo” pr’a dentro do balde já o Sô Zé deitava o “olho” ao aljofre**. «Quanto mais frouxo menos é o aljofre. Vêem estas bolhinhas? Quando está frouxa nem as faz. Mas também não deve ser grada nem sumir depressa. É preciso ‘olho’». Mas, por via das dúvidas, lá ia pesando a aguardente no densímetro. Ali não havia engano. Riscava os 20,5o. Não era preciso mais, isso era para os «(…) trambiqueiros de aguardente que precisam dela forte para mixordar com água. Marafados! Deram cabo disto tudo!!...», desabafava o Sô Zé. «Querem prová-la?» perguntou ufano de cálice na mão. «Nesta botaram vocês o olho!...». Bom!...lá teria que ser, não seria por mais um copo…e esta vira-se fazer! Ora essa! “À sua, Sô Zé!”, gritou um de nós. “Até à Feira da Serra de Silves!”. Manuel Francisco Castelo Ramos Jornal “Voz de Silves”, Ano IV, nº 84, 4 de Março de 1994 ----------------------------------------------------------------* Estila – simplificação popular do termo destilação. **Aljôfar ou Aljofre – do árabe al-jauhar que significa pérola miúda, orvalho, lágrimas. Neste caso, as bolhinhas que forma o medronho quando remexido.