Episteme Revista Científica da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo Diretor Geral Pe. Antídio de Andrade Carvalho Diretor Executivo Dr. Jolmar Luis Hawerroth
Corpo Editorial Editor Juliana Marge Pagnozzi (jpagnozzi@salesiano.com.br) Editor associado Fábio Eulálio dos Santos Conselho Editorial Alexandre Aranzedo Ana Clara D´Ávila Guedes Arlindo Rodrigues Picoli Cláudia Câmara Elisangela Maria Marchesi João Luiz Coelho de Faria Marisa Marqueze Paulo Cesar Delboni Rodrigo Alves do Carmo Conselho Científico Albert David Ditchfield (Dept. de Biologia - CCHN/UFES) Ana Paula Santana de Vasconcelos (Dept. de Fisiologia – UFES) Cynthia Ditchfield (Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos – USP/ Pirassununga) José Luiz Piôto D’Ávila (Dept. Ciências Sociais – CCHN/UFES) Juarez Jonas Thives Junior (Grupo Estácio de Sá – Santa Catarina) Lídio de Souza (Programa de Pós-graduação em Psicologia; Dept. de Psicologia Social e do Desenvolvimento – UFES) Maria Helena Amorim (Dept. de Enfermagem – UFES) Washington Luiz Silva Gonçalves (Dept. de Fisiologia – UFES) Zenólia Christna Campos Figueiredo (Centro de Educação Física e Desportos – UFES)
ISSN 2179-2380
Episteme
Revista Cient铆fica da Faculdade Cat贸lica Salesiana do Esp铆rito Santo
Vit贸ria-ES, 2010, vol. 01, no. 1
Capa Jair Campos Júnior e Octavio de Oliveira Santos Netto Revisão geral Ana Lúcia de Carvalho Revisão dos abstracts Albert David Ditchfield Editoração Edson Maltez Heringer Impressão Max-Graf Editora FCSES ISSN 2179-2380
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo Bibliotecária Responsável Janine Silva Figueira CRB6:429 E64
Episteme: Revista Científica da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo. – v.1, n.1 (Jul./Dez. 2010). – Vitória, ES: Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo, 2010.
98 p. ; 18,0 x 26,5 cm.
Semestral. ISSN
1. Conhecimento Multidisciplinar – Periódico. I. Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo. CDU 001.2(05) Tiragem: 300 exemplares
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Periodicidade: Semestral
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO . ........................................................................................................................... 7 ADMINISTRAÇÃO Um modelo para gestão do relacionamento cliente-fornecedor em cadeia de suprimentos Dr. Márcio de Souza Campos ............................................................................................. 9-18 PSICOLOGIA Jogos de regras e estratégias cognitivas implicadas na aprendizagem de uma língua estrangeira Ms. Sirley Trugilho da Silva; Dra. Claudia Broetto Rossetti . ............................................19-27
A questão de gênero nas relações de trabalho Esp. Ana Beatryce Tedesco Moraes; Fernanda Dias Silva; Juliana dos Santos Malheiros; Lorena Padilha Pereira; Michell Gomes de Menezes; Raíssa Rodrigues Módolo; Roberta Rangel Batista . .......................................................28-33
Profissionais do sexo: um estudo sobre trabalho, saúde e relações sociais Esp. Ana BeatryceTedesco Moraes; Cristiane Bremenkamp Cruz; Jéssica Dias Castilho; Nathália Loureiro Carvalho; Renata Teixeira Costa; Thiago de Sousa Freitas Lima ..........................................................................................34-39
SERVIÇO SOCIAL Habitação e serviço social: uma questão de cidadania Leila Origuella Castigioni; Maria de Fátima Costa Borges; Maria do Carmo Moreira Souza ......................................................................................40-50 NUTRIÇÃO Sintomas de transtorno alimentar entre homens universitários estudantes de educação física de uma faculdade privada do Município de Vitória – ES Ms. Alessandra Rodrigues Garcia Dos Santos; Ms.Ana Clara D’ Ávila Guedes; Rosângela Cardoso; Vanessa Frasson ..............................................................................51-58 FISIOTERAPIA Fibromialgia: qualidade de vida e sexualidade Fernanda Reis; Divana Maria Campodell’Orto Silva; Fabiany da Silva Tongo; Ms. Celine Cristina Raimundo Pedrozo; Ms. Maria Carolina Davel Lemos ......................59-65
Influência da mochila escolar na postura dos alunos do ensino fundamental Caroline Pires; Rosely Martins Gomes; Rosiane Almeida Gouveia; Royger do Nascimento Clarindo; Thiago Valentim Madeira; Vânia das Candeias Buback; Dr. João Luiz Coelho de Faria .............................................66-71
CIÊNCIAS BIOLÓGICAS Perfil da fauna de vespas parasitóides (Insecta, Hymenoptera) em uma área de Mata Atlântica de João Neiva, ES, Brasil Ariana Pignaton Gnocchi; Juliana Rodrigues Savergnini; Ms.Fernanda Tonini Gobbi ..............................................................................................72-75
Influência da restrição proteica precoce no crescimento de ossos longos em coelhos (Oryctolagus cuniculus) Ms. Ronald de Mesquita Soares Rega; Ms. Margareth Costa-Neves ..............................76-79
FILOSOFIA A comunicação em tempos de consumo: uma análise comparativa de Bauman e Castells Eduardo Sabino ................................................................................................................80-89
Verdade e correção em Habermas Ms. Fábio Eulálio dos Santos ........................................................................................... 90-95
NOTA AOS COLABORADORES ..................................................................................................... 97
APRESENTAÇÃO A Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo dá mais um importante passo em direção à organização administrativa planejada desde que iniciou as atividades acadêmicas em 2000, o status de Centro Universitário. A Legislação educacional brasileira não obriga as faculdades e centros universitários ao exercício da iniciação e pesquisa cientificas, entretanto, a comunidade acadêmica da Católica, por meio dos seus representantes nos Conselhos Superiores e Colegiados de Curso, acredita na importância desta estratégia para um processo de ensino-aprendizagem de excelência que não tenha por base somente a reprodução do conhecimento ou da realidade que a cerca. Para consolidar uma posição de destaque no contexto educacional capixaba, a Instituição busca diferenciar o processo acadêmico estabelecendo adequados alinhamento e articulação das políticas, diretrizes e ações definidas pela Faculdade para o desenvolvimento das funções de ensino, pesquisa, extensão, pós-graduação, responsabilidade social e de gestão. Os esforços voltados à publicação docente são uma realidade na Instituição desde 2003, com a veiculação da Revista Capixaba de Filosofia e Teologia (REDES), que vem corroborar a qualidade acadêmica alcançada no Curso e coroar as ações desenvolvidas por meio do convênio com o Instituto de Filosofia e Teologia de Vitória (IFTAV). Em 2008, a Faculdade concretiza mais um investimento no incentivo à produção docente com o lançamento de Editais internos anuais de financiamento, com recursos próprios, de Projetosvoltados ao desenvolvimento de Iniciação e Pesquisas Científicas. Desta forma, a Instituição almeja permitir a qualificação docente e do ensino de graduação por meio da prática sistemática da investigação científica. Cabe observar que este novo veículo de publicação não se destina somente às publicações dos segmentos internos da IES, cujo caráter endógeno poderia minimizar o alcance e a qualidade pretendidos pela Faculdade. Mais que isto, a ideia é construir um Instrumento que priorize a construção e divulgação do conhecimento, não importando a origem dos trabalhos submetidos à apreciação do Conselho Editorial. Episteme: Revista Científica da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo, é instrumento multidisciplinar de divulgação da iniciação e pesquisa científicas, nas versões impressa e on-line, que está aberto às contribuições advindas das comunidades científicas regional e nacional. Cabe destacar, que a Instituição busca atender os padrões estabelecidos pela Capes para indexação e valoração de periódicos científicos, e para tanto convidou renomados pesquisadores externos para compor os Conselhos Consultivo e Editorial. Estamos dando um grande passo para potencializar os processos educacionais, o que certamente permitirá à Instituição não somente diferenciar ainda mais os serviços prestados à Sociedade, mas também consolidar a excelência acadêmica requerida em seu planejamento estratégico e necessária ao alcance do status de Centro Universitário em 2013. Parabenizo a comunidade acadêmica que agora passa a contar com um periódico diferenciado para divulgação dos novos conhecimentos gerados a partir da indissociabilidade entre o ensino, a pesquisa e a extensão. Jolmar Luis Hawerroth Diretor Executivo da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
ADMINISTRAÇÃO
Um modelo para a gestão do relacionamento cliente-fornecedor em cadeias de suprimentos Dr. Márcio de Souza Campos Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo, Av. Vitória, 950, Forte São João, 29.017-950, Vitória, ES, Brasil. mcampos@salesiano.com.br
Resumo Nos últimos anos, tem crescido significantemente a importância da gestão dos relacionamentos cliente-fornecedor em cadeias de suprimentos e novos modelos de relacionamentos têm sido praticados e/ou identificados. Nesse contexto, este artigo propõe a utilização de um modelo baseado na figura geométrica de uma hipérbole para representar aspectos importantes do relacionamento entre empresa cliente e empresa fornecedora numa cadeia de suprimentos. O resultado mostra que o referido modelo pode ser um interessante instrumento a serviço de uma maior sinergia na gestão dos relacionamentos em uma cadeia de suprimentos. Palavras-chave: Gestão da Cadeia de Suprimentos. Gestão de Relacionamentos. Modelo. Abstract Over the last few years, the importance of the management in the relationship between clientsupplier has increased significantly in supply chain and new patterns of relations have been practiced and/or identified. In this context this article suggests the use of a new pattern based in the geometric picture of a hyperbole to represent important aspects of the relationships between Consumer Company and Supplier Company in a supply chain. The result shows that this pattern may be an interesting instrument to a higher synergy in the management of relationships in a supply chain. Keywords: Supply Chain Management. Supliers Relationship Management .Pattern.
1 Introdução O momento atual tende a exigir cada vez mais envolvimento e compromisso mútuo das empresas industriais em uma cadeia de suprimentos na busca permanente da satisfação dos clientes finais. A necessidade de um compromisso mais acentuado entre essas empresas requer uma aproximação cada vez maior entre elas, chegando mesmo em situações especificas na qual são confundidas como sendo uma única empresa. Uma questão importante que surge nesse contexto é referente a como definir e posicionar o relacionamento entre a empresa fornecedora e a empresa cliente numa cadeia de suprimentos, dado que diversos tipos de relacionamentos podem existir entre elas. Por sua vez, há muito tempo modelos têm sido utilizados em todos os ramos do conhecimento humano com o intuito de representar e facilitar o entendimento e a análise dos fenômenos que estão sendo estudados. Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 9-18
Nesse contexto este artigo propõe a utilização de um modelo baseado na figura geométrica de uma hipérbole para representar o relacionamento entre empresa cliente e empresa fornecedora em uma cadeia de suprimentos. O resultado mostra que o referido modelo pode ser um interessante instrumento a serviço de uma maior sinergia na gestão dos relacionamentos em uma cadeia de suprimentos.
2 Relacionamento Cliente-Fornecedor em uma Cadeia de Suprimentos Uma cadeia de suprimentos pode ser definida como um conjunto interligado entre fornecedores de materiais e prestadores de serviços abrangendo a transformação de matérias-primas em produtos e serviços e a consequente disponibilidade para os clientes de uma empresa (Ritzman & Krajewski, 2004). Segundo Chopra (2003), uma cadeia de suprimentos engloba todos os estágios que se relacio9
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nam direta ou indiretamente no atendimento de um pedido de um cliente. A cadeia de suprimentos não se limita apenas a fabricantes e fornecedores, mas também transportadoras, depósitos, centros de distribuição, varejistas e os próprios clientes. Uma cadeia de suprimentos pode ser considerada como um conjunto de processos integrados, por meio dos quais matérias-primas são manufaturadas em produtos finais e entregues aos consumidores (Beamon, 1999). Christofher (1998), define a cadeia de suprimentos como um conjunto de organizações que estão envolvidas por meio das ligações a jusante (downstream) e a montante (upstream) em relação aos diferentes processos e atividades que produzem valor na forma de produtos e serviços que atendem ao consumidor final. A Figura 1 ilustra uma cadeia de suprimentos. Na Figura 1, evidencia-se a empresa foco para onde convergem os produtos e serviços dos fornecedores que atuam diretamente com ela (firsttier suppliers). Observa-se um conjunto de fornecedores (second tier suppliers) e assimocorre em outras camadas de fornecedores. Sob um outro prisma, a empresa foco se relaciona com um conjunto de clientes de forma direta, por meio dos distribuidores, ou de forma indireta simbolizados pelos varejistas.
Em relação ao desenho de uma cadeia de suprimentos, Lambert et al. (1998) identificam trêsdimensões estruturais desta (Supply Chain - SC): 1. Estrutura Horizontal. Definida pelo número de camadas (níveis da SC); 2. Estrutura Vertical. Definida pelo número de empresas em cada nível de SC; 3. A Posição da Empresa Foco. Definida pela posição horizontal da empresa tomada como foco ao longo da SC. Lambert et al. (1998), sugerem também a classificação dos membros da SC em primários e de apoio. Os membros primários são aquelas empresas ou unidades de negócio que executam atividades operacionais ou gerenciais agregando valor ao longo da SC. Os membros de apoio são aquelas empresas ou unidades de negócios que fornecem recursos, conhecimentos etc., para dar suporte aos membros primários da SC. Por sua vez a gestão da cadeia de suprimentos (Supply Chain Management - SCM) pode ser definida utilizando os estudos de Lambert et al. (1998) fundamentado nos conceitos estabelecidos pelos membros do “The Global Supply Chain Fórum (GSCF): SCM é a integração dos diversos processos de negócios desde o usuário final até os fornecedores
Figura 1 - Ilustração da cadeia de suprimentos Fonte: Pires (2004) 10
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originais (primários) que providenciam produtos, serviços e informações que adicionam valor para os clientes e outros stakeholders.
Para Slacket al. (2002), uma questão que se sobressai na gestão da cadeia de suprimentos é a administração dos relacionamentos entre os fornecedores e consumidores imediatos. Esses autores afirmam que: “o comportamento de toda a cadeia de suprimentos é, afinal de contas, construído de relacionamentos que são formados entre pares individuais da cadeia. É importante desta forma, ter um quadro de referência que ajude a compreender as diferentes maneiras pelas quais os relacionamentos da cadeia de suprimentos podem ser desenvolvidos”. Segundo Ritzman & Krajewski (2004), a orientação que deve reger as relações das empresas é de cooperação e se constitui numa parceria entre o fornecedor e a empresa compradora ou empresa focal. Nessas relações deve prevalecer a ajuda mútua, cada uma ajudando o máximo possível. Ainda de acordo com Ritzman&Krajewski (2004), os autores afirmam que a redução do número de fornecedores pode ajudar em muito a empresa compradora, pois estes tornam-se quase uma extensão sua. Citam ainda que a redução desse número diminui a complexidade da administração do fornecimento. Entretanto, a redução de fornecedores para um item ou serviço pode aumentar o risco da interrupção do fornecimento. Slack et al. (2002), afirmam também que uma das alternativas a operação interna de uma empresa é a aquisição de bens e serviços numa forma “pura” de mercado, buscando o “melhor” fornecedor para satisfazer as necessidades de suprimentos. Esse relacionamento é caracterizado como de curto prazo, pois se destina a uma compra específica e após o pagamento pode não haver nenhuma negociação futura. Mas, existem vantagens que, segundo Slack et al. (2002), devem ser consideradas, a saber: 1. a manutenção da concorrência entre os fornecedores alternativos promove entre eles uma motivação para oferecer o melhor; 2. a especialização do fornecedor, mesmo para um pequeno número de produtos ou serviços, que atende vários consumidores pode ser obtida numa economia de escala; Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 9-18
3. as inovações têm mais chances de surgir nos fornecedores especializados, que o fazem de forma rápida e mais econômica, do que na empresa focal; 4. a flexibilidade para atender as alternâncias da demanda. Entretanto,existem também desvantagens nesse tipo de relacionamento, conforme afirmam Slack et al. (2002): 1. pode haver incertezas de mercado e uma vez que o pedido foi colocado, é difícil manter o controle sobre a maneira como aquele pedido foi atendido; 2. escolher de quem comprar consome tempo, esforço e envolve a contínua tomada de decisão na busca de suprimentos; 3. existem riscos estratégicos em subcontratar atividades de outras empresas. Slack et al. (2002), analisam ainda outros tipos de relacionamentos: parceria, suprimento enxutos e relacionamento como permuta.
2.1 Relacionamentos de parcerias Esses relacionamentos normalmente são vistos como compromissos entre a integração vertical de um lado e o puro relacionamento de mercado do outro. Embora parte deste conceito ocorra, os relacionamentos de parcerias não se constitui de simples mistura de integração vertical com transações de mercado, a parceria não se limita a isso, na verdade se compõe de acordos cooperativos duradouros entre as empresas que envolvem fluxos utilizando recursos de uma ou outra estrutura visando à realização conjunta de metas individuais situadas no contexto da missão coorporativa de cada empresa envolvida. Segundo Slacket al. (2002), ”o que isso significa é que espera-se que fornecedores e consumidores cooperem, compartilhando recursos e habilidades, para alcançar benefícios conjuntos além dos que esperariam obter agindo sozinhos”. Ainda segundo Slack et al. (2002), essas parcerias sofrem influências de vários fatores: 1. compartilhamento do sucesso: busca conjunta visando ao aumento do benefício que ambos os parceiros receberão, em vez de se 11
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tentar maximizar sua própria contribuição individual; expectativas de longo prazo: o conceito é que a parceria significa comprometimento de prazos relativamente longos, mas não implica em relacionamentos permanentes; aprendizagem conjunta: a experiência e as percepções de cada uma sobre as outras operações dentro da cadeia de suprimentos, uma vez comunicada ao parceiro, servem de aprendizado conjunto; transparências de informações: a maneira eficaz da permuta de informações é reconhecida como elemento-chave nas parcerias, por se constituir na base da confiança mútua; confiança: elemento chave em relacionamentos de parcerias, de difícil desenvolvimento no início do relacionamento, mas com o passar do tempo configura-se no arcabouço da parceria.
2.2 Suprimento Enxuto Este relacionamento transcende a simples parceria, o fornecedor e o cliente são parceiros iguais. As fronteiras, ou limites, existentes entre parceiros são minimizados, possibilitando com isto a criação de ligações estreitas entre as duas partes envolvidas. Entretanto, eles mantêm sua própria cultura, estrutura e possuem suas próprias estratégias. Porém, inevitavelmente reduzem sua liberdade de ação, à medida que fortalecem seus laços com outras organizações. A Tabela 1 ilustra algumas características do suprimento enxuto.
2.3 Relacionamento como Permuta Ao longo da cadeia de suprimentos encontramse relacionamentos entre elos, que normalmente são descritos em termos de fluxos entre as operações envolvidas. Esses fluxos constituem-se de recursos
Tabela 1 - Conceito de suprimento enxuto
Fator Natureza da Ocorrência
Como os fornecedores são selecionados pelos clientes
Troca de informação entre fornecedor e cliente
Gestão da capacidade
Prática de entrega Tratamento das mudanças de preço Atitude em relação à qualidade
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Característica do Suprimento Enxuto • Operação global - presença local • Baseada na contribuição à tecnologia do produto • Dependências de alianças e cooperação • Envolvimento dos fornecedores estabelecido desde o início. • Esforços conjuntos de análise de valor e objetivos de custo. • Fornecimentos a partir de uma ou duas fontes. • Fornecedor provê benefícios globais. • Troca de fornecedor apenas como último recurso após tentativas de aprimoramento. • Transparência real • Discussão de custos e volumes nos dois sentidos. • Informações técnicas e comerciais • Intercâmbio eletrônico de dados (EDI - electronic data interchange • Sistema Kanban para liberação da produção • Discussão de investimentos regionais estratégicos • Capacidade sincronizada • Flexibilidade para lidar com flutuações • Sistema just in time com kanban • JIT local, a longa distância e internacional. • Reduções de preço baseadas em reduções de custo advindas de esforços conjuntos entre fornecedor e cliente. • Inspeção de recebimento torna-se redundante. • Acordo mútuo quanto a metas de qualidade. • Interação contínua. • Qualidade perfeita como meta. Episteme - Revista Científica da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
transformados (materiais e serviços) e recursos transformadores (pessoas ou equipamentos). O termo característico de todos esses diferentes tipos de fluxo é: permuta. A permuta possibilita o envolvimento transacional entre fornecedores e clientes, para cada tipo de relacionamento existe um ou mais elementos de troca, que podem ser recursos produtivos, bens e serviços, dinheiro, conhecimento, investimentos, dentre outros. A Figura 2 identifica nos diferentes tipos de relacionamento os principais elementos de permuta. Harrison & Van Hoeck (2003), abordando o relacionamento entre empresas numa cadeia de suprimentos, citam que existem muitos tipos de relacionamentos na cadeia de suprimentos, formando um continuum que vai desde a formalidade com que o relacionamento é conduzido pelo mercado, tendo o preço como seu fundamento, à total integração vertical que se consolida por meio da propriedade comum das organizações. Estendendo a análise sobre o relacionamento entre as empresas, os autores enfatizam: “uma organização não possui o mesmo tipo de relacionamento com todos os seus clientes e fornecedores. Em vez disso, ela possui uma grande gama
que abrange todo o espectro de relacionamentos. Escolher que tipo de relacionamento estabelecer é um importante ponto de partida”. Ainda segundo Harrison & Van Hoeck (2003), as empresas buscam negociar com um grande número de fornecedores, mesmo possuindo uma base de suprimentos já determinada. Dar um tratamento idêntico é deixar de reconhecer que alguns são mais importantes do que os outros, ”diferenciar o papel dos fornecedores e aplicar práticas adequadas a eles, permitem que a empresa determine o alvo das compras e dos recursos do gerenciamento da cadeia de suprimento para que ela alcance um efeito melhor”. A Figura 3 compara a força compradora no relacionamento comprador-fornecedor e o número de fornecedores habilitados e dispostos a fornecer um produto a curto prazo. Na Figura 3 tem-se que (Syson, 1992): 1. itens estratégicos - são os itens onde existem poucos fornecedores e há uma demanda firme. Recomenda-se o desenvolvimento de novos fornecedores para garantir ao comprador um suprimento de longo prazo;
Figura 2 - Elementos de troca em diferentes tipos de relacionamento Fonte: Slack et al. (2002) Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 9-18
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2. itens de estrangulamento - para esses itens o comprador possui pouco poder e existem poucas alternativas. O objetivo do comprador é reduzir a dependência desses itens por meio da diversificação, empreender a procura por produtos substitutos e trocar informação com a engenharia para que esses itens de estrangulamento sejam evitados em novos produtos; 3. itens não críticos - na escolha adequada de fornecedores e com a estratégia de se utilizar preços-padrão, é recomendável o uso de mecanismo de compras tipo licitação e concorrência para a obtenção desses itens. As principais características desses itens são: não são desenvolvidos em conjunto, não possuem marca, não afetam o desempenho e a segurança em particular, requerem baixo investimento em ferramentas e equipamentos específicos; 4. itens de alavancagem - havendo um grande número de fornecedores disponíveis e o comprador possuindo um alto poder aquisitivo, estão estabelecidas as condições para ambos alavancarem a situação para redução de preço e adotar um tratamento preferencial. Atentar para possíveis alterações de mercado o que alterará estas situações favoráveis.
Figura 4 - Níveis de cooperação na cadeia de suprimentos Fonte: Pires (2004)
Pires (2004) também interpreta esses relacionamentos numa tabela, sem, contudo, ter a pretensão de estabelecer uma classificação para esses tipos de relacionamento na cadeia de suprimentos, servindo apenas como referencial de sua análise. Destaca ainda, que “as empresas com melhor desempenho competitivo tendem a ser as que têm melhor integrado seus processos internos chaves com fornecedores externos e clientes, formando cadeias de suprimentos com propósitos e procedimentos bem definidos e consistentes”.
Figura 3 - Matriz do portfólio de vendas Fonte: Syson (1992)
Segundo Syson (1992), essas abordagens são muito voltadas para o ponto de vista do comprador, entretanto, ela se aplica a muitas empresas e aindareflete a dura abordagem adotada pelas equipes de compras de alguns de seus clientes. Reconhecendo que tais circunstâncias prevaleçam, 14
evidencia-se que os fornecedores devem se tornar importantes do ponto de vista estratégico para que o cliente tenha chance de participar integralmente de qualquer parceria. Em sua análise sobre o relacionamento entre empresas na cadeia de suprimentos, Pires (2004) destaca a importância da integração nos processos entre os componentes das cadeias, ”com base em relatos e propostas de diversos autores, é possível classificar as relações entre empresas na cadeia de suprimentos em sete possíveis níveis, dados o nível de integração e o nível de formalização do relacionamento”. O referido autor situa os níveis numa escala ascendente, partindo de um relacionamento comercial até atingir o topo, que é a integração vertical. A Figura 4 identifica a escala de relacionamento.
3 Modelando o Relacionamento entre Empresas numa Cadeia de Suprimentos Segundo Moreira (1999), “modelos são representações frequentemente simplificadas (já que é
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difícil captar a realidade em todos os seus aspectos) de objetos e situações reais”. Ainda segundo o autor, os modelos podem ser de três tipos: 1. icônicos: são imagens do sistema, os modelos constituem-se nas réplicas físicas de um objeto real, em tamanho diferente ou não; 2. analógicos: utiliza-se de um conjunto de propriedades para estudar outro conjunto de propriedades, mas não guardam a forma do objeto que está sendo estudado; 3. matemáticos: empregam-se símbolos e relações matemáticas para representar as propriedades do sistema em estudo. Analisando a importância e a validade da utilização dos modelos na busca de soluções para a gestão empresarial, Moreira (1999) destaca: Inegavelmente, os modelos apresentam algumas vantagens. A primeira delas é que se pode tirar conclusões válidas para a situação real por meio do modelo. Em segundo lugar, a experimentação com o modelo requer menos tempo e custa menos do que trabalhar com o objeto ou situação real. Finalmente, os modelos reduzem o risco associado à experimentação em situações reais.
Segundo Pires (apud Lambert et al., 1996) as parcerias desenvolvem-se em três tipos de relacionamentos, a saber: 1. tipo 1: as empresas envolvidas reconhecemse mutuamente como parceiras e, dentro de determinados limites, coordenam conjuntamente o planejamento e atividades. Geralmente, essas parcerias são de curto prazo e envolvem somente uma divisão ou área funcional dentro de cada companhia; 2. tipo 2: as empresas envolvidas avançam da coordenação de atividades para a integração de atividades. Embora sem a pretensão, essas parcerias acabam tendo uma longa duração e envolvem várias divisões em cada uma das empresas nela envolvidas; 3. tipo 3: as empresas compartilham um significante nível de integração operacional e cada uma vê a outra como extensão dela própria. Geralmente, têm a pretensão e acabam tendo uma longa duração. Esses três tipos de relacionamento são evolutivos, não significando que as empresas desejam ter, de imediato, um relacionamento do tipo 3.
Tabela 2 - Níveis de relacionamento entre empresa em uma SC Nível 1 2 3 4
Relacionamento Comercial (arm’slenght) Acordosnão contratuais Acordos via licença Alianças
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Parcerias
6
Joint ventures
7
Integração vertical
Características Relações meramente comerciais entre empresas independentes. Acordos informais para alguns objetivos comuns. Ex: cartel. Cooperação multilateral, via contrato. Ex: franchising. Empresas independentes com participação mútua no negócio, geralmente de forma complementar e não necessariamente envolvendo novos investimentos. Ex.: alianças de companhias aéreas. Empresas independentes agindo na cadeia de suprimentos como se fossem uma mesma (virtual) unidade de negócio, com grande nível de colaboração, de alinhamento de objetivos, de integração de processos e de informações. Ex.: consórcios e condomínios na indústria automobilística. Participação mútua no negócio, geralmente via uma nova empresa (sociedade formal) e que envolve novos investimentos. Ex.: MWM e Cummins formando a empresa Power Train para atender a VW em Resende. Envolve a incorporação dos processos da cadeia de suprimentos por parte de uma empresa, geralmente via fusão, aquisição ou crescimento. Nesse caso tem-se uma empresa que é proprietária de todos os ativos e recursos da cadeia de suprimentos
Fonte: Pires (2004). Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 9-18
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Na prática, o que ocorre é que a maturidade e confiança estabelecidas ao longo da parceria evoluem o relacionamento, por meio de adaptações, desenvolvimento e conquistas. Ao abordar as probabilidades de sucesso de uma parceria, Pires (2004, p. 112) enfatiza que “[...] a simetria em termos de importância de uma empresa para com a outra é um fator importante de sucesso”. O relacionamento com os fornecedores deve ser intenso, compromissado, simétrico, focado nos objetivos de ambas as empresas, reconhecendo-se mutuamente como parceiros. Entretanto, como esses parceiros possuem objetivos distintos no que diz respeito à essência de suas empresas, esse relacionamento pode ser analogamente comparado às propriedades geométricas de uma hipérbole. Para melhor entender o que se poderia chamar de “relacionamento hiperbólico”, será descrito algumas das propriedades de uma hipérbole. Segundo a geometria a hipérbole é uma curva de segundo grau e significa lugar geométrico dos pontos de um plano cujas distâncias a dois pontos fixos (focos) desse plano têm diferença constante. A Figura 5 apresenta hipérbole, simbolizando o relacionamento entre o fornecedor e a empresa compradora.
Figura 5 - Hipérbole representando o relacionamento cliente-fornecedor
Segundo a geometria a hipérbole é a curva plana tal que a diferença das distâncias, de cada um de seus pontos a dois pontos fixos de seu plano é constante. 16
1. Os dois pontos fixos; F e F’ são os focos. 2. A diferença constante é representa-se por 2a, assim para qualquer ponto (M) da hipérbole têm-se: 3. M’F –M’F’= 2a e FF’ = 2c 4. MF’ – MF = 2a OF = OF’ = c 5. A curva tem dois ramos distintos, sem pontos comuns situados um de cada lado da mediatriz (op) Num nível alto de relacionamento, como no tipo 3 abordado anteriormente, as empresas envolvidas compartilham um significativo nível de integração operacional, onde cada empresa enxerga a parceira como extensão dela própria (Pires, 2004). Em outras palavras, a empresa fornecedora deve visualizar, de qualquer ponto dela, o foco da empresa cliente. Desse mesmo ponto a visão de seu próprio foco deve ser permanente. A diferença entre esse ponto de observação e o foco do cliente, e desse mesmo ponto e o foco de sua empresa deve ser uma constante, representando a distância entre os seus próprios interesses e o interesse do cliente. Nesse contexto deve-se considerar também que: 1. entende-se como foco os objetivos e metas das empresas; 2. essa diferença constante, de um ponto da empresa e o foco da contratante e desse mesmo ponto e o foco da própria empresa, é a definição da Hipérbole; 3. observa-se que o interesse no negócio deve ser recíproco, simétrico e de mesma intensidade, porém, distintos. Isto ocorre nos ramos da Hipérbole. Por mais que os parceiros de um negócio situem-se num ponto mais distante de seus focos respectivos, a distância de um determinado ponto da empresa contratante ao foco da empresa fornecedora, menos a distância desse mesmo ponto ao seu próprio foco é igual a um valor constante que é igual a (2a), ou seja, duas vezes a intensidade de interesse que as partes, contratante e contratado, devam ter ao longo do negócio que desenvolve em conjunto e que foi celebrado em contrato. Como na Hipérbole, a mediatriz entre essas empresas é o contrato, que na maior aproximação entre elas mantém uma distância igual a (2a), sendo (a) distância do contato a cada uma das partes signatárias da parceria.
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A distância mantida entre as partes contratantes deve ser mínima, porém com existência definida e reconhecida pelas partes, elas significam os objetivos distintos das empresas, o tipo do negócio que realizam, o interesse dos sócios de ambas, os atendimentos aos interesses dos Stakeholders. Essa distância também deve ser aquela que,de tal forma, se permite distinguir a identidade de cada uma das empresas. As empresas parceiras devem ser comprometidas no negócio que empreendem, contudo, há que se lembrar da existência de uma distância entre elas, essa distância tem como limite inferior a mediatriz (contrato), que não permite que seja ultrapassado o escopo delas, o que evita a confluência das curvas, isso ocorrendo provocaria um a mistura das essências dessas empresas fundindoas em uma só. O limite superior é a distância focal, é condição fundamental que cada empresa tenha seu próprio foco distinto da empresa parceira e a relação entre elas é a diferença da relação entre um ponto dessa empresa e o foco da empresa parceira e o seu próprio foco tem que ser uma constante. Observa-se que a hipérbole é uma curva geométrica que permite visualizar um foco de um outro segmento e ao mesmo tempo visualizar o seu próprio foco.
4 Considerações Finais O presente artigo procurou abordar o relacionamento de parcerias entre fornecedores e empresas clientes, reconhecendo a validade e a importância dele. O compromisso firmado entre esses parceiros fortalece a relação de fornecimento dos materiais e serviços contratados, além de permitir uma visão de longo prazo entre esses parceiros o que possibilita planejar o desenvolvimento das empresas envolvidas. Entretanto, essa relação de parceria é abordada enfocando os limites que devem ser respeitados entre esses parceiros para evitar que haja uma fusão informal dessas empresas. Ocorre que elas são empresas distintas com missões e objetivos diferenciados. A existência de um contrato de fornecimento evidencia a separação que deve ocorrer entre elas. Esse contrato mantém uma distância regulamentar e saudável entre essas empresas, proporcionando a existência do limite de atuação no atendimento Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 9-18
do fornecimento contratado. Para representar a identificação e a fixação desse limite essencial, foi utilizada a figura de uma Hipérbole, uma figura geométrica que possui dois ramos distintos, cada um significando uma empresa parceira. Na Hipérbole cada ramo possui seu próprio foco, ou seja, a empresa deve lembrar que possui os seus objetivos próprios. Entre os ramos da Hipérbole se interpõe a mediatriz, que os distancia. Entre as empresas, fornecedoras e clientes, existe o contrato, esse instrumento firmado que promove a união delas em torno do objetivo comum que é o fornecimento e que também as separa por meio de suas cláusulas de obrigações individuais. Destaca-se também a importância das individualidades das empresas, numa relação contratual elas devem ser parceiras e compromissadas, porém de caracteres independentes. Concluindo, ressalta-se que o objetivo deste estudo foi o desenvolvimento de um modelo que fixasse a relação de parceria entre empresas que se agregaram comercialmente. Para essa identificação e reconhecendo os limites do campo de atuação de cada empresa isoladamente, a figura do “Modelo Hiperbólico” se evidencia, nele são reconhecidos os focos das empresas, a relação geométrica existente entre elas, o instrumento que as aproxima e ao mesmo tempo as distancia. Esse instrumento mencionado é o contrato que exerce um papel de mediatriz entre as empresas parceiras num empreendimento.
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ADMINISTRAÇÃO
Um modelo para a gestão do relacionamento cliente-fornecedor em cadeias de suprimentos
ADMINISTRAÇÃO
Márcio de Souza Campos
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Episteme - Revista Científica da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Jogos de regras e estratégias cognitivas implicadas na aprendizagem de uma língua estrangeira Ms. Sirley Trugilho da Silva1; Dra. Claudia Broetto Rossetti2
PSICOLOGIA
Universidade Federal do Espírito Santo, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Avenida Fernando Ferrari, 514, CEMUNI VI - Campus de Goiabeiras, 29075-910 – Vitoria/ES – Brasil. 1 strugilho@ifes.edu.br - 2cbroetto.ufes@gmail.com
Resumo O propósito desta pesquisa foi o de investigar se o desenvolvimento de estratégias cognitivas implicadas na aprendizagem de uma língua estrangeira poderia ser facilitado por meio da prática dos jogos de regras de senha e memória. Foram realizadas dez oficinas semanais de jogos, com duração de uma hora cada, contando com a presença de três participantes que frequentavam regularmente um curso de língua estrangeira. Utilizaram-se as modalidades de jogos de senha: ‘abc’ e ‘palavra oculta’, além do jogo da memória. Durante as oficinas duas pesquisadoras monitoraram os participantes ao preencher um protocolo de observação, manter um diário e registrar as partidas jogadas em formulários específicos. Acompanhouse o desempenho acadêmico no curso de língua estrangeira por suas avaliações e uma ficha preenchida pelo professor. De uma maneira geral, os participantes obtiveram um desempenho razoável nas oficinas, progresso nas avaliações do curso e considerações positivas dos professores. As principais questões que surgiram na análise de dados quanto ao desempenho durante os encontros referiam-se à falta de atenção, timidez e falta de confiança. Foi possível observar a construção de novas estratégias cognitivas em vários momentos dos encontros. Considerou-se que esses jogos são instrumentos psicopedagógicos consistentes para o desenvolvimento de estratégias cognitivas implicadas na aprendizagem de uma língua estrangeira como alternativa ao ensino direto, e que há indícios de melhoria de desempenho acadêmico, sendo necessários mais estudos envolvendo maior número de participantes, bem como a prática de outros jogos de regras com a utilização de outras estratégias. Palavras-chave: Ensino de língua estrangeira. Estratégias cognitivas. Jogos de regras. Abstract The purpose of this research was to investigate whether the development of cognitive strategies implied in learning a foreign language could be facilitated by the practice of the mastermind and memory games of rules. Ten weekly game workshops were done, lasting one hour each, with the presence of three participants. Versions of the Mastermind game, known as: ‘abc’ and ‘hidden word’, besides the memory game were used. During the workshops two researchers monitored the participants filling in an observation protocol, keeping a diary and registering the matches played in specific forms. Academic performance in the foreign language course was followed through its evaluations and a form filled by the teacher. In general, the participants demonstrated a reasonable level of performance, and got progress in course evaluations and positive considerations from the teacher. The main issues that arouse during the analysis of the workshops concerning the performance were related to lack of attention, shyness and lack of confidence. It was possible to observe the construction of new cognitive strategies many times during the meetings. It was considered that these games are consistent psychopedagogic instruments for the development of cognitive strategies as an alternative to direct teaching, and that there is evidence of improvement in academic performance, but more research involving a greater number of participants is necessary. Key-words: Learning a foreign language. Cognitive strategies.Games of rules. Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 19-28
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1 Introdução Um dos focos de pesquisa na interface da psicologia do desenvolvimento e aprendizagem e a linguística aplicada é o estudo das estratégias de aprendizagem (EA) usadas pelos ‘bons aprendizes’, contrastando os sistemas especialistas - expert systems - com os iniciantes - novice systems (Purdie & Oliver, 1999). Pesquisas seguindo a Teoria Cognitivista de Processamento de Informação observaram que o uso de certos procedimentos por alunos com desempenho acima da média aumentava a probabilidade de aprendizagem e de resultados positivos nas avaliações, iniciandose, assim, o estudo acerca desses procedimentos, operações, técnicas, passos, comportamentos ou pensamentos que facilitariam a aprendizagem e o uso de outra língua, chamados de EA, embora definições e classificações dessas estratégias variem conforme o autor utilizado (Purdie & Oliver, 1999). Esse trabalho utiliza a classificação de EA envolvida na proposta por Oxford (1989) que divide estas em estratégias: metacognitivas, cognitivas, afetivas, sociais, de compensação e de memória, por ser esta uma classificação mais compreensiva e diretamente relacionada pela autora à aprendizagem de uma língua estrangeira. Os estudos de EA levantaram a hipótese de que se alunos com desempenho inferior recebessem treinamento no uso das estratégias utilizadas por alunos que alcançavam bons resultados poderiam conseguir desempenho mais satisfatório (Purdie & Oliver, 1999). Assim, a prática do ensino das EA relacionada ao ensino de idiomas ganhou ênfase (Oxford, 1989). De acordo com Ribeiro (2002), entre os métodos de ensino de EA mais empregados atualmente estão o ensino direto, a modelação e o ensino cooperativo – todos pressupondo a necessidade de que se desenvolvesse um controle consciente quanto ao emprego das estratégias de aprendizagem. Esses métodos, no entanto, podem não ser a forma mais eficaz de promover a aquisição e o uso de EA. Isso ocorre, por exemplo, no caso das estratégias cognitivas, uma vez que estas não se desenvolvem necessariamente de maneira consciente (Siegler & Stern, 1998). Na conclusão de sua pesquisa sobre a construção de EA, ao comentar a pouca correlação entre o ensino de EA relacionadas 20
à compreensão oral e os resultados acadêmicos, Figlioline (2004) afirma que: “as abordagens de conscientização de EA que se apóiam exclusivamente no insumo oferecido pelo professor ou em outras técnicas de ensino [...] podem falhar” (p. 124). Uma proposta alternativa ao ensino direto de EA, em especial do ensino de estratégias cognitivas de forma geral, colocada tanto no Brasil quanto em outros países, é a prática de jogos de regras, que se colocam como instrumentos úteis no trabalho psicopedagógico. No Brasil várias pesquisas exploram o tema jogo e cognição (cf. Rossetti & Souza, 2005). Objetivou-se neste trabalho o estudo às estratégias cognitivas, uma vez que seriam as mais simples de serem observadas e desenvolvidas em situação de jogo, pois a observação de uma situação de jogo permite ao pesquisador obter dados acerca do processamento cognitivo dos jogadores, que, uma vez analisados, tornam possível a elaboração de situações-problema que trabalhem, por exemplo, dificuldades cognitivas observadas na fase anterior, visando o desenvolvimento cognitivo do aluno (Macedo et al., 2000). Ademais, essas estratégias são bastante requeridas nesse tipo de aprendizagem. Tendo em vista a escassez de literatura apontando a possibilidade do uso de jogos como método alternativo para o desenvolvimento de EA, especificamente de estratégias cognitivas implicadas na aprendizagem de uma língua estrangeira, este estudo foi proposto para investigar a facilitação do desenvolvimento destas por meio de oficinas de jogos de regras. Considerando que línguas estrangeiras no Brasil geralmente são estudadas em sala de aula, pode-se falar de um processo de aprendizagem nesse caso, e, supondo que a aprendizagem da linguagem siga as vias cognitivas usuais, utilizando estruturas comuns ao restante do sistema intelectual, como acreditava Piaget (1983), é possível a identificação e o desenvolvimento de estratégias que permitam a efetuação dessa aprendizagem de forma mais eficiente.
2 Materiais e Métodos Foram realizadas dez oficinas de jogos com três participantes voluntários, que assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido, acordando a participação, sendo estes: dois rapazes e uma
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Jogos de regras e estratégias cognitivas implicadas na aprendizagem de uma língua estrangeira
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determinada letra, descarta todas as outras que se situam na mesma coluna. Diferente da modalidade ‘abc’, esta pode ser jogada individualmente. Estratégia cognitiva Freq. 1 Jogadas demonstram análise da situação de jogo 2 Jogadas demonstram dedução dos resultados 3 Reconhece padrões que o ajudam a chegar ao resultado correto 4 Jogadas indicam formulação hipóteses sobre o resultado 5 Jogadas indicam teste de hipóteses sobre o resultado 6 Jogadas indicam antecipação de resultados e pré-correção dos erros 7 Jogadas indicam comparação de resultados 8 Elimina resultados insatisfatórios 9 Distingue o que a estrutura necessária torna impossível 10 Pensa por exclusão, utilização de descarte 11 Interpretação correta da situação de jogo 12 Interrelaciona informações de partidas/jogadas anteriores 13 Jogadas consideram informações previamente obtidas 14 Organiza elementos em classes 15 Relaciona classes de elementos 16 Abstrai regras de funcionamento do jogo 17 Generaliza descobertas de um jogo para outro 18 Generaliza descobertas de um jogo a um jogo anterior 19 Coordena esquemas 20 Nas jogadas integra informações interdependentes 21 Regula sua jogada de acordo com a resposta obtida 22 Infere regras e padrões pela consideração de possibilidades de respostas 23 Deduz as possibilidades existentes 24 Compara antecipadamente antes de escolher um procedimento Figura 1 - Ficha de observação do uso de Estratégias Cognitivas durante as oficinas
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moça, alunos de duas turmas de iniciantes em um curso de inglês de uma escola particular de idiomas no município de Vitória, Espírito Santo. Os participantes foram selecionados pelo desejo expresso de participar da pesquisa, apresentada para essas duas turmas, sendo todos jovens adultos, com idades variando de 18 a 25 anos, com ensino médio completo. As oficinas foram realizadas duas vezes por semana, sempre antes das aulas, por cinco semanas. O desempenho de cada participante foi registrado nas fichas de observação (Figura 1) pela pesquisadora e uma auxiliar de pesquisa previamente treinada; a execução das tarefas e desafios foi analisada, investigando-se e problematizando-se as estratégias utilizadas e intervindo nos momentos apropriados, foi feito o registro das partidas e observações pertinentes foram anotadas no diário de campo. O desempenho acadêmico foi observado pelo estudo das três avaliações e de uma ficha de desempenho individual preenchida pelo professor da turma. Durante a prática do jogo de memória não houve preenchimento de fichas de observação, uma vez que o objetivo era somente analisar a capacidade mnemônica dos participantes. Utilizaram-se as modalidades de jogos de senha: ‘abc’ e ‘palavra oculta’, selecionadas em função das habilidades cognitivas que podem ser trabalhadas por eles, conforme literatura (cf. Queiroz, 1995; Queiroz, 2000; Macedo et al., 1997; etc.) bem como praticidade. Esses jogos variam de tipo em torno de uma mesma prerrogativa básica: o primeiro jogador esconde algo (uma figura, uma palavra, letras etc.) do segundo jogador que deve tentar deduzir o que foi escondido mediante suas jogadas e as informações que o primeiro jogador fornece. Na senha ‘abc’, um jogador combina essas letras em uma determinada sequência, anotando-a numa folha de papel. O outro jogador tenta descobrir a senha montando uma combinação e recebendo o feedback de quantas letras estão na posição correta. Estando as posições corretas, o jogo é terminado, caso contrário, o jogador continua tentando até descobrir a senha. No jogo ‘palavra oculta’ há um diagrama de quatro ou cinco palavras com mesmo número de letras. Esse diagrama possui duas colunas, uma contendo as palavras e outra contendo a quantidade de letras na mesma posição que esta tem em comum com a palavra oculta. Assim, quando um jogador escolhe
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Sirley Trugilho da Silva e Claudia Broetto Rossetti
O jogo de memória também foi utilizado, uma vez que, segundo Macedo et al. (1993), eles desafiam o jogador a interpretar a situação, realizar contas, relacionar informações, fazer antecipações e a prestar atenção, e podem exercitar a compreensão das relações espaciais, já que as cartas devem ser localizadas dentre várias aparentemente iguais. Nesse jogo há pares de figuras, letras ou palavras com um verso não transparente. Os jogadores embaralham as cartas, colocando-as com o verso para cima. Cada um pega uma carta e depois outra, tentando encontrar um par e recolhê-lo para si, jogando novamente. Quando não consegue o par, mostra as cartas e coloca-as nos mesmos lugares de onde as tirou. Ganha o jogador com o maior número de pares. O baralho utilizado nas oficinas era composto por 15 pares idênticos de figuras de animais. Durante as oficinas, a utilização dos jogos seguiu um processo pré-definido, no qual estes eram apresentados aos participantes, com a explicação das regras e se realizavam algumas partidas de reconhecimento destas, quando se iniciavam as disputas. Situações-problema eram então propostas e, depois de resolvidas, discutidas em conjunto com todos os participantes. Após isso, jogavam-se outras partidas para verificar alterações na forma de jogar dos participantes. Jogou-se individualmente ou em duplas.
3 Resultados e Discussão A avaliação do progresso e desenvolvimento das estratégias cognitivas foi feita com base nas fichas de observação, nos registros e no diário de campo, a partir de uma análise microgenética. De acordo com Piaget (1985), o sujeito conta com dois tipos de sistemas cognitivos complementares, o sistema presentativo1 e o de procedimento2, diretamente relacionados com a construção de estratégias, de procedimentos para a execução de uma tarefa. Cada vez que o sujeito se encontra frente a uma nova situação, por exemplo, o aprendizado de novo idioma, deve ser capaz de atualizar procedimentos e estratégias para compreender e agir com sucesso, o
que exige a modificação, a gênese de esquemas de procedimentos, de novas estratégias. O conceito de gênese para Piaget (1985), não é o de começo, mas mudança, construção. O foco do tipo de análise utilizado coloca-se nos diferentes procedimentos usados pelo participante para cumprir a tarefa (Inhelder&Caprona, 1996). Segundo Crowley&Sielger (1991) “A abordagem microgenética pode revelar os passos e as circunstâncias que precedem uma mudança, a mudança, e a generalização da mudança além de seu contexto inicial” (p.3, tradução própria). Ainda segundo esses autores, essa abordagem se mostra particularmente interessante para se investigar as interações nas quais alunos trabalhando juntos adquirem novas competências, podendo produzir dados conclusivos sobre estratégias usadas, não usadas e de transição. Para facilitar a compreensão e a análise, os dados foram agrupados por instrumentos e participante. Os dados dos diários referentes às condutas dos participantes foram categorizados, e agrupados segundo a ordem apresentada na figura 2. CONDUTAS de desatenção ou falta de concentração para aumentar a concentração de timidez de interação de raciocínio por tentativa e erro de raciocínio lógico de desequilíbrio cognitivo anticooperativas de ansiedade de frustração de dependência e infantilidade Figura 2 - Eixos temáticos das condutas observadas
O emprego de Estratégias Cognitivas durante cada oficina foi somado seguindo a ficha de observação (Figura 1), e fez-se um gráfico indicando o mesmo no decorrer das oficinas. Durante as oficinas 6 e 9 (jogo de memória) não houve preenchimento de fichas de observação, e a oficina
Sistema cognitivo complementar fechado com esquemas e estruturas estáveis, cuja função é a compreensão do real (Piaget, 1997). Sistema cognitivo complementar com esquemas e estruturas sempre em movimento, cuja função é ‘ter êxito’ para satisfazer necessidades por meio de invenções ou transferências de processos (Piaget, 1997).
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10, de devolução, também não consta do gráfico. Desse modo o registro 6 no gráfico equivale à oficina 7 e o registro 7 à oficina 8.
Apresentação do Estudo de Caso Participante Marco Marco, um rapaz tímido, com tom de voz baixo, e de difícil inclusão nas conversas do grupo, algumas vezes parecia estar ‘no mundo da imaginação’. Foi o único participante que faltou a duas oficinas. Suas condutas mais observadas foram de desatenção/falta de concentração, timidez e raciocínio por tentativa e erro (20,69%), seguindo-se condutas de interação (17,23%), e por fim, raciocínio lógico e estratégias para aumentar a concentração simultaneamente (10,35%). A desconcentração e timidez mostraram-se mais significantes, pois a dificuldade de Marco em focar sua atenção repercutiu negativamente em seu desempenho, seja por não entender o que era esperado do jogo pela falta de atenção, seja por deixar passar erros e desconsiderar resultados que tornavam sua resposta impossível. Cumpre mencionar que durante um jogo no qual Marco se sentiu bem motivado, ele criou procedimentos para aumentar sua concentração, o que logicamente, serviu para melhorar seu desempenho, fato coerente com a tese piagetianado afeto como energia alimentadora do motor da cognição (Piaget, 1990). No entanto, aponta para uma ressalva quanto à afirmação de Betteridgeet al. (1983) de que o jogo serve para sustentar o interesse e manter um nível ótimo de atenção por parte do jogador. Isso acontece apenas quando o jogo é interessante para quem joga, e o nível de atenção parece depender de outras variáveis que a motivação. Outra possível implicação negativa da desatenção de Marco foi o raciocínio por tentativa e erro. Na oficina de encerramento Marco afirmou não se concentrar muito para usar lógica, disse ir “jogando” as respostas até acertar. Muitas vezes suas condutas pareciam lógicas, mas não eram. Um exemplo nas oficinas 3 e 4 (palavra oculta), é observado pelo registro indicando descarte de todas as letras incorretas, no entanto, observações mais cuidadosas na oficina de campeonato desse jogo constataram que o descarte era feito apenas depois da descoberta mental da palavra oculta. Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 19-28
Esse processo de tentativa e erro foi percebido, pois Marco colocava a ponta do lápis em várias letras e olhava as pistas até achar a resposta, quando então circulava as letras corretas e riscava as incorretas. Como as únicas ocasiões nas quais foram registradas condutas de raciocínio lógico, estas se referiram ao jogo acima referido, e foram, portanto, em observações posteriores contraditas, na análise do gráfico referente ao emprego de estratégias cognitivas, a observação das oficinas 3 e 4 indicou um falso aumento no uso dessas estratégias, e por ter faltado à oficina 7, há também uma falsa queda e elevação entre as oficinas 5 e 8. Fazendo essa análise, não se encontraria um aumento no uso de estratégias cognitivas a partir da oficina 2, quando o gráfico deveria se manter em uma reta, com um intervalo na oficina 7 (Figura 3).
Figura 3 - Emprego de Estratégias Cognitivas por Marco durante as oficinas
Com relação às oficinas de memória, Marco só participou de uma delas, faltando à oficina de campeonato. No jogo de memória verbal, seu desempenho foi muito melhor que o dos outros participantes, respondendo nove das dez perguntas, das quais acertou oito. Quanto ao jogo de memória de cartas, os escores dos três participantes são apresentados na figura 4. Com relação ao seu desempenho acadêmico, observa-se que as notas iniciais de Marco são boas e iguais em todas as habilidades. Há uma melhora que se mantém na compreensão oral, enquanto que na compreensão escrita a melhor performance na segunda avaliação não se sustenta, e há um retorno ao patamar anterior. Na expressão oral, há uma melhora no último teste, e na expressão escrita o desempenho é constante. 23
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Sirley Trugilho da Silva e Claudia Broetto Rossetti
Partidas 1 2 3 4
Pares 3 5 7 10
Marco Colocação 3º 2º 2º 1º
Participantes William Pares Colocação 8 1º 5 2º 8 1º 4 2º
Pares 4 6 0 2
Elizabeth Colocação 2ª 1ª 3ª 3º
PSICOLOGIA
Figura 4 - Partidas e resultados do jogo de memória (oficina 6)
Participante William William, rapaz sorridente, exceto nas atividades individuais, quando ficava sério. As condutas mais observadas foram de desconcentração ou falta de atenção (21,62%), seguindo-se raciocínio por tentativa e erro (16,22 %), interação (13,51%), estratégias para aumentar concentração (10,81%) e condutas anticooperativas (10,81%), desequilíbrio cognitivo (8,11%) e frustração, raciocínio lógico (5,41%), e por fim, condutas de ansiedade (2,7%), dependência e infantilidade (2,7%). A escolha pelo raciocínio por tentativa e erro é feita por “preguiça de pensar”, como afirmado pelo próprio. Em alguns momentos, breves e inconstantes, parecia compreender a lógica do jogo, aplicando raciocínio lógico, desenvolvendo estratégias para aumentar a concentração, mas estes eram entremeados por períodos de desequilíbrio cognitivo. Segundo Piaget (1976), o desequilíbrio cognitivo é fundamental no processo de aprendizagem, pois provoca a equilibração3. O que parece haver ocorrido nesse caso, é que o participante assimilou conteúdos a um procedimento, quando seria o caso de tê-los acomodado em outro. Era de se esperar que logo o esquema desse procedimento se ampliasse por demais, exigindo a construção de um novo, e a coordenação destes permitiria a William a elaboração de estratégias lógicas para ganhar o jogo. O problema encontrado foi, provavelmente, a “preguiça de pensar”, fruto talvez da falta de motivação deste para a tarefa ou talvez de uma baixa autoestima que prevê o fracasso, e, portanto, o evita ao impedir o esforço e tentativa de acerto. Há também possibilidade de que essa atitude esteja relacionada a um esquema mental de que
uma pessoa capaz de resolver problemas é inteligente, e a aprendizagem, portanto, independe do esforço. Desse modo, uma série de tentativas resultando em fracasso podem ter fortalecido esse esquema, de modo a levá-lo a considerar-se incapaz, e não há nada que possa fazer a respeito, pois essa habilidade não depende de seu esforço. A figura 5 apresenta a frequência acumulada do uso de estratégias cognitivas no decorrer das oficinas, que alcança seu pico durante as oficinas 2 (‘abc’) e 3 (‘palavra oculta’). A partir desse período, decresce gradativamente até atingir um nível abaixo do inicial na oficina 7, e subindo novamente na oficina 8.
Figura 5 - Emprego de Estratégias Cognitivas por William durante as oficinas
No início do jogo, William queria entender seu funcionamento, e quando conseguia fazê-lo resolvendo as situações-problema, usava os procedimentos necessários para ganhá-lo. O desequilíbrio frente às respostas incorretas praticamente não era percebido. A introdução de um novo jogo, no entanto, trouxe situações que desestabilizaram seu sistema cognitivo antes mesmo da resolução das situações-problema, mas a equilibração resultante
Sequência de compensações ativas do indivíduo em resposta às perturbações exteriores e de uma regulação tanto retroativa (feedback) quanto antecipadora, constituindo um sistema permanente de compensações (Piaget, 1997).
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do processo não produziu a acomodação de novos esquemas de procedimento, mas assimilações inadequadas, ao que a falta de atenção contribuiu para que os resultados das partidas refletissem muito mais sorte do que propriamente raciocínio lógico. É bom lembrar que uma nova equilibração nem sempre significa mudança para um estágio de compreensão melhor que o anterior. A oportunidade de repetidas interações com o jogo, e, portanto, diversos desequilíbrios cognitivos acabariam por produzir provavelmente a acomodação de esquemas de procedimentos mais adequados a este, o que poderia explicar a melhora apresentada na 8ª oficina. Este não foi, porém, o caso da modalidade ‘abc’, quando houve uma queda de desempenho na oficina de campeonato (7ª), mas a situação era diferente pelo espaço de tempo maior decorrido entre as partidas, havendo um retrocesso no uso de estratégias que garantissem o sucesso no jogo. Com relação ao jogo de memória, em nenhum momento seu desempenho é excepcional em relação ao dos outros participantes, embora sua atitude faça crer que sim. Durante a oficina 6, ganhou metade das partidas disputadas entre os três, e na oficina de campeonato, apenas uma partida a mais que Elizabeth. O desempenho acadêmico na primeira avaliação foi bom, havendo melhora em quase todas as habilidades, excetuando-se a de compreensão escrita.
Participante Elizabeth Elizabeth, moça alegre, mas extremamente ansiosa, transmite a impressão de estar constantemente avaliando seu desempenho em relação às pessoas a sua volta. Suas condutas mais observadas foram de interação (30,76%), seguida de raciocínio lógico (23,07%), de ansiedade e frustração (12,83%), de desatenção ou falta de concentração (10,25%), de dependência e infantilidade (5,13%), e estratégias para aumentar a concentração (2,56%). Sua ansiedade foi visível em vários momentos durante as oficinas, principalmente quando os colegas pareciam ter mais progressos em uma determinada atividade que ela tinha dificuldade em cumprir, e isso parecia aumentar ainda mais a sua dificuldade. Embora fosse a participante que mostrasse o maior número de condutas de Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 19-28
raciocínio lógico, seu sucesso nos jogos foi muitas vezes inferior ao alcançado pelos demais, provavelmente em decorrência da ansiedade, pois, por ficar sempre preocupada com que os outros estavam fazendo, Elizabeth tinha dificuldade de se concentrar para fazer o que era proposto. Como resultado, demorava mais que os outros, e às vezes não conseguia resolver o problema, ou perdia sempre. Nesses momentos, demonstrava muita frustração, e, embora não desistisse, ficava muito triste e desanimada. Como pode ser observado na figura 6, o uso de estratégias cognitivas por parte de Elizabeth já começa bem elevado, apresenta três picos máximos e três quedas.
Figura 6 - Emprego de Estratégias Cognitivas por Elizabeth durante as oficinas
É interessante observar que as quedas no uso de estratégias cognitivas por parte de Elizabeth ocorrem exatamente nos momentos em que os sinais externos de ansiedade e frustração são mais evidentes, conforme percebido nas observações no diário referente a esses dias. Com relação ao seu desempenho acadêmico, a participante disse que durante a primeira avaliação estava muito calma até que alguém entregou a prova. Como ela tinha feito pouca coisa até então, se desesperou vendo que o colega havia terminado e pensou que deveria fazer tudo rapidamente para acabar a prova também, e se estava demorando mais que os outros para terminar era porque não sabia, e provavelmente fracassaria. Não conseguia lembrar-se das informações. Uma análise de seu desempenho nas avaliações mostra que, com exceção da compreensão escrita, houve melhora em todas as habilidades no decorrer das avaliações. Isso 25
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indica que possivelmente Elizabeth aprendeu a lidar melhor com sua ansiedade. Parece claro que a prática de ações que exijam do sujeito o emprego de estratégias para que ele “faça com sucesso”, potencializaria o uso destas, e, portanto, a possibilidade de que o sujeito tomasse consciência de sua aplicação, conforme seu estado de desenvolvimento cognitivo. O próprio Piaget (1980) afirma que “[...] as operações lógicas só se constituem e adquirem suas estruturas de conjunto em função de um certo exercício, não somente verbal, mas sobretudo e essencialmente relacionado à ação sobre os objetos e à experimentação [...]” (p. 54,55). Percebeu-se que a resolução das situaçõesproblema foi fundamental ao possibilitar a reflexão sobre a ação, pois para o participante resolvê-las essa conduta era necessária, transformando assim os esquemas de ação em conceitos. Os problemas propostos buscavam gerar uma situação de desequilíbrio para que a tomada de consciência ocorresse. Ao estudar o desenvolvimento de estratégias cognitivas, este trabalho não procurou replicar ou desenvolver um estudo imediatamente equivalente aos realizados por pesquisadores desta linha teórica (Inhelderet al., 1987; Inhelder&Caprona, 1996; Crowley&Siegler, 1991), ou da teoria cognitivista (Figlioline, 2004), assim, é possível afirmar que este foi um passo inicial de certo modo, pois a forma como este foi desenvolvido o diferenciou dos outros estudos baseados na teoria cognitivista por seu método e análise, e daqueles conduzidos por piagetianos, uma vez que não foram encontradas referências a estes envolvendo estratégias e aprendizagem de segunda língua. Percebeu-se a dificuldade na limitação do estudo apenas ao desenvolvimento das estratégias cognitivas, uma vez que alguns fatores se destacaram como muito importantes no desenvolvimento de estratégias que facilitaram o sucesso, seja nos jogos, nas atividades acadêmicas, sendo elas a atenção, a concentração, a motivação, a cooperação e a afetividade. Ribeiro (2002) afirma que “o treino de estratégias necessita de combinar para além de estratégias cognitivas, estratégias de tipo afetivo/motivacional” (p.278). Assim, uma próxima pesquisa poderia se propor a investigação de outras estratégias integradas. 26
Agradecimento À CAPES pela bolsa de mestrado concedida, da qual essa pesquisa resultou.
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RESUMO Este estudo teve por objetivo investigar como mulheres que ocupam cargos considerados masculinos percebem o seu trabalho e as consequências deste em seu cotidiano, na saúde e nas relações sociais. Participaram dessa pesquisa qualitativa de caráter exploratório, uma policial militar casada e uma motorista de ônibus solteira, ambas sem filhos. O instrumento de coleta de dados utilizado foi a entrevista semiestruturada. A partir da análise de conteúdo, emergiram quatro categorias relacionadas aos seguintes temas: influência do trabalho na saúde física e psíquica; relações sociais e familiares; identificação e valorização social do trabalho; e relações de gênero. O trabalho foi mencionado como possibilidade de realização pessoal e financeira, satisfação e reconhecimento social, mas também foi associado a fatores relacionados à saúde física e psíquica. No que tange às relações sociais para além do mundo do trabalho, as participantes destacaram que o tempo dedicado à família e aos amigos é comprometido pelo trabalho, o que pode estar associado ao fato delas não terem filhos. Embora as participantes não considerem que suas profissões sejam “masculinas”, reconhecem que esta concepção ainda é vigente na sociedade. Palavras-chave: Trabalho. Gênero. Saúde. Relações sociais. ABSTRACT The purpose of this study was to investigate how women, who work in positions considered as male ones, see their own work and the consequences of it on their daily journeys, on their health and also on their social relations. A married military cop and a single bus driver, both without children, were participants of this exploratory qualitative research. Data were collected using a semi structured interview. From the content analysis, four categories emerged. They are related to the following subjects: influence of work in physical and mental health, family and social relations, identification and social work appreciation and also gender relations. Work was mentioned as a possibility of personal and financial achievement, satisfaction and social acknowledgment, but also was associated to physical and mental health facts. About the social relations beyond the world of work, the participants emphasized that the time devoted to friends and family is impacted by their work and this can be related to the fact that they do not have children. Although the participants do not consider their professions as male ones, they say that this conception still exists in their society. Keywords: Work. Gender.Health.Social Relations.
1 Introdução A conquista por um trabalho não remete apenas à questão financeira, mas também está relacionada à realização pessoal, à identidade e à inserção social. Além de o trabalho ser um meio privilegiado de vinculação social, também se mostra um campo fértil de estudos sobre as relações de gênero que nele se estabelecem, pois “O valor simbólico do trabalho difere para homens e 28
mulheres, já que ambos possuem diferentes eixos de identificação” (Moulin, 1998, p. 170). De acordo com Strey (1998) o gênero caracteriza-se por estar em constante transformação na sociedade, sendo moldado pela cultura, uma vez que as diferenças biológicas referentes ao sexo feminino e masculino são experienciadas simbolicamente pelos seres humanos. Para a autora, o estudo de gênero mostra-se importante na análise das interações sociais para além das questões indi-
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viduais (relacionadas às diferenças entre homens e mulheres), como no trabalho. A perspectiva histórica sobre a entrada da mulher no mercado de trabalho no final do século XIX, aponta as diferenças que existiam entre os trabalhadores conforme o sexo: homens e mulheres exerciam funções distintas e em locais próprios (sendo que as das mulheres eram consideradas inferiores). Além disso, o salário das mulheres era inferior ao dos homens (Carlo &Bulgacov, 2007). Em um estudo realizado em 2005 (Giuberti& Menezes, 2005) comparou-se as diferenças de rendimento entre os homens e as mulheres no Brasil e nos Estados Unidos. Nos dois países, a mulher recebe menos do que o homem, embora esta diferença tenha diminuído entre os anos de 1981 e 1996. O estudo constatou que tal diferença não se refere às características individuais, fato que poderia explicar a discriminação da mulher no mercado de trabalho. Com os resultados concluiuse que as mulheres têm mais anos de estudos do que os homens, desse modo, a educação deveria contar a favor das mulheres, mas neste caso, a educação não ajuda a explicar tal discrepância. É importante destacar que inserção feminina no mercado de trabalho refere-se às mulheres da classe média, que tinha como finalidade o aumento do consumo, diferentemente da necessidade das mulheres das camadas populares, onde a renda é destinada para a sobrevivência, sendo elas, muitas vezes, as únicas provedoras do lar (Moulin, 1998). De acordo com a pesquisa realizada por Carlo &Bulgacov (2007) verificou-se a existência de uma pré-concepção de que as mulheres têm características diferentes dos homens, e que se por um lado a mulher é vista como inadequada para certos trabalhos considerados “masculinos”, por outro é vista como fundamental em serviços que exigem mais delicadeza, dedicação e outras características consideradas femininas. Estas e outras diferenças estão presentes em profissões como a de policial e motorista. Uma pesquisa pernambucana estudou a percepção do homem e da mulher motoristas sobre a relação de gênero no âmbito do trânsito, cujos resultados reafirmaram alguns estereótipos sexistas herdados culturalmente na construção da sociedade brasileira. De acordo com o estudo, as características Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 28-33
ligadas às mulheres motoristas foram: cuidado, atenção, respeito às normas de trânsito e direção defensiva (dirigir de modo a evitar acidentes) e as ligadas aos homens motoristas foram: o uso do veículo como instrumento de poder, imprudência, agressividade, autoafirmação e desrespeito às normas de circulação, especialmente os limites de velocidade (em parte pela crença de que o homem não comete erros e nem se envolve em acidentes). Segundo os autores, estes modos de pensar refletem diretamente na saúde física e psíquica de ambos os sexos (Almeida et al., 2005). Um estudo realizado entre policiais civis do Rio de Janeiro para investigar o sofrimento psíquico sob a ótica de gênero mostrou que as mulheres ocupavam 15% do setor Operacional, 36% do Técnico e 18% do Administrativo. Embora a maioria das mulheres fosse casada, comparativamente aos homens, apresentavam maior percentual de solteiras, separadas e viúvas, dados que levaram os autores a levantarem a hipótese de que elas sejam mais sozinhas. Apesar de não ter sido observada diferença entre os gêneros com relação ao sofrimento psíquico com o instrumento utilizado para avaliar este aspecto, foram apontadas diferenças significativas em alguns de seus itens (Souza et al., 2007). A relação entre trabalho e saúde é abordada por diversos autores (Borges, 2001; Dejourset al., 1993; Sato, 2003; Seligmann-Silva, 1994) que apontam as implicações do trabalho na saúde física e psíquica e nas relações sociais. O trabalho pode ser fonte de equilíbrio quando a organização deste possibilita que a energia psíquica seja descarregada (quando há espaço para realização de desejos e atividades fantasiosas) ou pode ser lugar de sofrimento psíquico, quando a energia psíquica se acumula e provoca tensão e desprazer (Dejourset al., 1993). Observa-se que mesmo diante das mudanças sociais ocorridas a partir da inserção da mulher nos espaços públicos, antes destinados apenas aos homens e apesar do maior espaço e visibilidade no mercado de trabalho, algumas práticas continuam impregnadas de construções naturalizadas e cristalizadas, como a atribuição do papel de provedor ao homem e de cuidadora à mulher. Embora a mulher tenha garantido o direito de se inserir em diversas áreas profissionais e se satisfazer por 29
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meio da profissão, atualmente mais valorizada que o trabalho doméstico, esse eixo de identificação convive, e não suplanta a identificação da mulher como dona de casa e mãe, cujo papel é cuidar da família e do lar (Moulin, 1998). Levando em consideração estas questões, a pesquisa teve como objetivo investigar como mulheres que ocupam cargos considerados masculinos percebem o seu trabalho e as consequências deste em seu cotidiano, na saúde e nas relações sociais.
2 Materiais e Métodos O presente estudo utilizou metodologia de pesquisa qualitativa, de caráter exploratório, uma vez que teve como interesse “[...] proporcionar maior familiaridade com o problema, com vistas a tornálo mais explícito [...]”. A pesquisa exploratória tem ainda como uma de suas vantagens a flexibilidade de seu planejamento. O instrumento de coleta de dados utilizado foi a entrevista semiestruturada na qual o entrevistador previamente estabelece uma relação de pontos a serem explorados ao longo da entrevista (Gil, 2002, p. 41). Participaram da pesquisa uma policial militar, casada e uma motorista de ônibus, solteira, ambas sem filhos, residentes na Grande Vitória, ES. As entrevistas foram realizadas em 2009, em local de maior comodidade para as participantes, no caso, o trabalho. Os procedimentos éticos em pesquisa foram seguidos e as entrevistas foram gravadas e transcritas para viabilizar a análise. Para análise e interpretação dos dados utilizouse a análise de conteúdo que envolve um processo sequencial de atividades composto por: redução, categorização e interpretação dos dados (Gil, 2002). Conforme explicita Chizzotti (1995) esta técnica se aplica à análise de textos escritos ou de qualquer comunicação (oral, visual, gestual) reduzida a um texto ou documento e compreende criticamente o sentido das comunicações, seu conteúdo manifesto ou latente, as significações explícitas ou ocultas.
3 Resultados e Discussão Os temas que emergiram a partir das entrevistas estão relacionados à influência do trabalho na saúde física e psíquica; às relações sociais e 30
familiares; à identificação e valorização social do trabalho; e à questão de gênero. Tais temas foram organizados em categorias e ilustrados com as falas das participantes.
3.1 Saúde As participantes explicitaram a relação entre o trabalho e os agravos à saúde tanto físicos como mentais, conforme o relato: “Como fico na rua, estou sempre exposta ao sol, além de outras coisas. Além disso, tenho um estresse muito grande” (Policial Militar). Tal relação também foi identificada pela motorista: Essa profissão é muito desgastante, é muito estressante, é trânsito, é movimento de braço e perna constante. Você pisa mais de duas mil vezes na embreagem, você pisa mais de duas mil vezes no freio, quando você passa marcha então, isso acaba afetando a sua saúde.
De acordo com esta participante, embora esteja satisfeita no trabalho, quando percebe que sua atividade laboral está a prejudicando, pensa em deixar a profissão para que esta não afete sua saúde. Apesar de pensar na possibilidade de sair da profissão por causa do “estresse”, não o faz em função da identificação com seu trabalho: Olha, um dia ou outro, dependendo do estresse que você tem no trânsito, você para e pensa, né? Eu já parei, já pensei, né? ‘Ah! O que que eu tô fazendo aqui’. Aí daqui a pouco passa aquele estresse e você lembra que o que você gosta de fazer mesmo é aquilo e então é isso, passa. Mas, já cheguei a pensar em parar sim.
A satisfação no trabalho funciona como uma ferramenta que viabiliza um trabalho que favorece a saúde e implica em aspectos psicossociais que possibilitam tal desenvolvimento (Dejours et al., 1993; Sato, 2003; Seligmann-Silva, 1994). É importante questionar o quanto a saúde dos trabalhadores está exposta a situações de agravos à saúde em função não só do processo de identificação com o trabalho, mas pela necessidade de sobrevivência. Deparamo-nos assim com uma contradição: ao mesmo tempo em que a identificação com o trabalho pode favorecer a saúde
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psíquica, o excesso de envolvimento e o comprometimento com este, podem levar o trabalhador a não perceber os limites de suas consequências negativas para sua saúde física e psíquica (Jardim et al., 2004; Moulinet al., 2000/2001).
3.2 Relações Sociais De acordo com as participantes, suas atividades profissionais influenciam diretamente na vida social em função da organização do trabalho que é imposta: “Meu tempo livre é muito pouco, mas [...] eu gosto muito de estar com os amigos, estar com a família. É uma profissão que [...] depende da escala que você tá, né? Tem uma escala que ela é menor, tem escala que é maior e tal. Mas a profissão toma muito tempo” (Motorista).
Em relação ao tempo dedicado às relações sociais fora do trabalho, foi unânime o esforço em passar momentos livres com a família e amigos. Todavia, há de se ressaltar que este tempo é comprometido pelo trabalho, como evidencia a mesma participante: Olha, eu faço várias coisas [...] mas meu tempo é pouquíssimo. Às vezes eu começo a ler um livro, leio duas páginas e durmo, né? Então tem que ver o cansaço também. É uma profissão que toma um tempo [...] como eu moro sozinha também tem os afazeres da casa, então complica né?
É possível observar que a construção do tempo social está sempre ligada às imposições do tempo de trabalho, desta forma podemos inferir que o fato delas não terem filhos pode estar vinculado a esta “falta de tempo”, pois socialmente, a mulher tem responsabilidade de ser boa dona de casa, boa mãe, além de boa profissional. Para tanto, desprende um grande esforço para administrar as muitas tarefas e fugir do sentimento de culpabilização quando não consegue o sucesso nestas atividades.
3.3 Identificação e valorização social do trabalho Observou-se que as mulheres atribuem diferentes significações ao trabalho de acordo com aquilo que estão vivenciando, e, sobretudo de Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 28-33
acordo com a satisfação e identificação com sua profissão. Para a policial militar, o valor do seu trabalho corresponde à importância que este representa para a sociedade: “Trazer o bem para sociedade. Ajudar de alguma forma no combate à violência” (Policial Militar). A motorista também expressa a importância da sua atividade, ratificando a valorização do trabalho, como se pode observar: “É muito importante (o trabalho que executa). Eu gosto muito do que eu faço, eu amo a minha profissão, entendeu? Eu vivo dizendo pros amigos, pros familiares que a minha profissão vem em primeiro lugar [...] Primeiro Deus é claro, mas depois a minha profissão”. Levando em consideração a identificação com o trabalho, percebemos sua importância no sentido de proporcionar satisfação, o que pode ser observado na fala da motorista: Olha, eu sempre gostei muito de dirigir sabe? Desde criança na verdade [...] e quando eu fiz meus 16 anos eu já dirigia carro, né? E com o tempo fui querendo pegar carros maiores, maiores, como é a minha intenção inclusive pegar, além do ônibus comum pegar um ônibus maior ainda, que a gente chama de articulado, né? [...] gosto do que faço.
Já no caso da policial militar não existe uma identificação clara, o que pode ser evidenciado na fala sobre a forma como escolheu a profissão: “Eu sempre quis ter um emprego público. Na verdade nunca sonhei em ser policial militar, mas a estabilidade de um emprego público eu sempre quis”. Portanto, a relação entre a trabalhadora e a profissão que realiza está mais associada à estabilidade financeira do que à identificação com a profissão, o que não é incomum nos dias de hoje, cuja segurança financeira é almejada para inserção em uma sociedade moderna e capitalista. Observou-se que ambas as profissões são valorizadas pelos familiares, conforme mostram as falas: “Nossa! Eles (familiares) me admiram muito em relação a isso! Graças a Deus. Eu sou muito admirada em relação a isso” (Motorista) e “Hoje em dia sou casada e não moro com meus pais, que moram no interior. Eles, sempre que me vêem, pedem para eu colocar a farda. [...] sentem orgulho de mim” (Policial Militar). Diferente da família, os amigos veem a pro31
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fissão da policial militar ligada à violência, que a coloca em situações de risco para a participante: “Meus amigos sempre falam que tenho coragem de estar na polícia” (Policial Militar). Já a motorista relata que seus amigos sentem admiração pelo seu trabalho: “Eu tenho uma amiga que é taxista e tenho amigos que falam pras pessoas: ‘Olha, aquela moça motorista é minha amiga e tal’ [...] Então eles gostam muito da minha profissão, de me ver fazendo isso” (Motorista).
3.4 Gênero Em se tratando das relações estabelecidas no ambiente de trabalho, as duas entrevistadas não concordaram com a existência da masculinização de suas profissões, todavia não discordam que a ideia está vigente na sociedade e que ainda lutam para quebrar este tabu, de forma que sobressaia o seu talento e esforço, dedicando-se à profissão independentemente do gênero: “Não, não concordo. Tanto que eu corri atrás até mesmo pra quebrar um pouco esse tabu, né? [...] Hoje em dia eu não acho que exista uma profissão masculina. Acho que a capacidade está em ambos os sexos” (Motorista). Outra questão abordada gira em torno do preconceito que as mulheres sofrem em seus trabalhos, como se pode observar na fala da entrevistada: “Ainda há uma discriminação, até mesmo por parte dos passageiros, né? Tem passageiro que quando vê que é uma mulher (quem dirige), ele não quer entrar no carro” (Motorista). Observa-se que no ambiente de trabalho, os estereótipos estão presentes, reforçando ideias que justificam as diferenças de tratamento, conforme relatou a policial militar, que mesmo passando pelo treinamento, como todos os homens, se via privada de determinadas atividades: “Tive que passar nove meses fazendo um curso, além de ter muitos exercícios físicos. Tinha dias no curso que ficávamos até meia noite fazendo atividade física. Isso pra mim foi o mais complicado”. A inserção da mulher no mercado de trabalho não foi um ponto factual no curso da história, mas se deu como um processo indissoluvelmente ligado a características econômicas, políticas, sociais e culturais. Para que o trabalho, fator tão importante de sobrevivência material e simbólica, fosse possível às mulheres, muitas lutas foram, e ainda continuam 32
sendo travadas, principalmente nas profissões em que os homens prevalecem em número. O trabalho foi mencionado como possibilidade de realização pessoal e financeira, satisfação e reconhecimento social, mas também foi associado a fatores relacionados à saúde física e psíquica. No que tange às relações sociais para além do mundo do trabalho, as participantes destacaram que o tempo dedicado à família e aos amigos é comprometido pelo trabalho, o que pode estar associado ao fato delas não terem filhos. Embora as participantes não considerem que suas profissões sejam “masculinas”, reconhecem que socialmente esta concepção ainda é vigente. A pesquisa, por seu caráter exploratório, não tem pretensões de generalizar os resultados apontados sobre a relação entre gênero e trabalho, mas antes, evidenciá-los nos casos particulares das mulheres entrevistadas, cujas experiências não estão dissociadas da sociedade e da cultura em que estão inseridas. A partir dela outros pontos podem ser explorados, como a inserção de homens em cargos considerados “femininos” e a verificação da possível relação entre ausência de relacionamento conjugal estável e maternidade entre mulheres inseridas em profissões consideradas masculinas. Espera-se que o presente estudo seja fonte de questionamento e novos olhares sobre a antiga e sempre presente relação entre trabalho e gênero. Esperamos dar mais um passo na direção da potencialização tanto do trabalho feminino quanto do masculino e de sua viabilização como promotor de saúde, satisfação e bem-estar para as trabalhadoras.
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Universidade Federal do Espírito Santo, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Avenida Fernando Ferrari, 514, CEMUNI VI - Campus de Goiabeiras, 29075-910 – Vitoria/ES – Brasil. 1 anabeatryce@hotmail. com
RESUMO O presente artigo teve por objetivo conhecer o sentido que as profissionais do sexo atribuem ao seu trabalho e seus impactos nos relacionamentos sociais e na saúde física e psíquica. A pesquisa foi realizada por meio de metodologia qualitativa, de caráter exploratório, pautada nos discursos das participantes. A partir da análise de conteúdo, emergiram quatro categorias relacionadas aos seguintes temas: relacionamentos sociais; condições de trabalho; saúde; e legalização da profissão. Percebeu-se que os agravos à saúde física perpassam esta atividade, devido às cargas horárias excessivas e às condições de trabalho que estão impostas nesta relação. Também estão presentes fatores psicológicos desencadeados principalmente em função de uma não aceitação própria. O cuidado com o corpo manifestou-se de forma natural e assídua, mas as questões voltadas para os fatores psicológicos gerados no processo prostituição-trabalho não se apresentaram desta forma. Entendendo que o trabalho das profissionais do sexo está submetido a fatores sociais e psicológicos encontradas em qualquer outro, percebe-se que a saúde física e a preocupação com as doenças sexualmente transmissíveis ainda ocupam lugar de destaque em detrimento das questões relacionadas a aspectos psíquicos. Palavras-chave: Trabalho. Saúde. Profissionais do sexo. Relações sociais. ABSTRACT This article was aim to know the meaning that sex professionals attach to their work and their impact on social relationships and physical and mental health. The research was conducted through qualitative methodology, exploratory, based in the speeches of the participants. From the content analysis, four categories emerged. They are related to the follow subjects: social relationships; working conditions; health; and legalization of the profession. It was felt that the physical health problems mediating this activity, due to excessive workload and working conditions that are imposed in this relationship. Also present are psychological factors triggered mainly due to a lack of acceptance of their own. The care of the body was expressed in a natural and assiduous fashion, but the issues facing the psychological factors generated in the prostitution-work are not perceived in the same way. Understanding that the work of sex workers is subject to psychological and social factors found in any other profession, one realizes that the physical health and concern about sexually transmitted diseases still occupy a prominent place at the expense of issues related to psychological aspects. Keywords: Work. Health. Sex professionals. Social Relations.
1 Introdução O trabalho tem grande importância na vida dos indivíduos na sociedade contemporânea, inclusive no desenvolvimento da identidade, como mostram os estudos de Moulin (1998, 2007) e Nardi (1998). Para estes autores, muitos papéis 34
sociais como os de pai e provedor são viabilizados pelo trabalho. Moulin (1998) assinala que o trabalho, enquanto conquista do espaço público pelas mulheres, possibilitou uma nova forma de identificação feminina relacionada ao desejo de realização profissional e ascensão social. Barros et al. (2009) entendem o trabalho como
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essencial na vida social por possibilitar reconhecimento e constituição de identidade, mas no caso das profissionais do sexo, tais possibilidades encontram-se limitadas. Para as profissionais do sexo entrevistadas no referido estudo, a atividade que realizam é vista como passageira e é omitida de suas famílias. Outra questão importante observada é a sobrecarga psíquica intensa decorrente do exercício da prostituição, além da marginalização, do sofrimento e dos riscos vivenciados nesta profissão. A presente pesquisa deparou-se ao longo de sua realização com desafios e polêmicas, tanto em função das profissionais do sexo constituir um grupo considerado marginalizado, estigmatizado e desvalorizado, como pelo fato de situar suas práticas na interface com o trabalho. A despeito de poucas pesquisas estudarem tal interface, a relação entre prostituição e trabalho é histórica, pois inicialmente tal prática era realizada por escravas e no período da industrialização, a dificuldade de inserção da mulher nas fábricas e os baixos salários propiciaram seu florescimento (Barros et al., 2009). De acordo com Silva (2008) há no mundo três sistemas legais sobre prostituição. O Abolicionismo, o Regulamentarismo e o Proibicionismo. A maioria dos países, como o Brasil, adota o Abolicionismo. Por esta visão, a profissional do sexo é uma vítima e só exerce a atividade por coação de um terceiro, que receberia parte dos lucros obtidos por este profissional. Por isso, a legislação abolicionista pune o dono ou gerente de casa de prostituição e não a profissional do sexo. Embora o exercício da prostituição no Brasil não seja legalizado, há em vigência no país a Classificação Brasileira de Ocupação (CBO), que descreve e ordena as diversas ocupações segundo características que dizem respeito à natureza da força de trabalho e ao conteúdo do trabalho das diversas atividades exercidas em nosso país. Essa classificação é organizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego e apresenta as diretrizes dos trabalhos realizados no Brasil. Porém, mesmo com tal inclusão não há nenhum amparo legal que regulamente a prostituição. Não há inclusão entre as categorias de trabalhadores na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e nem existe nenhuma norma em outro ramo do Direito (Silva, 2008). Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 34-39
Além de entender a prostituição sob a perspectiva do trabalho, também é preciso estabelecer sua relação com o campo da saúde. A epidemia da AIDS explicitou fatos que deram margem ao contexto atual dessas profissionais. Dentre eles podemos citar, responsabilização pela difusão das doenças sexualmente transmissíveis, desmoralização da sociedade e destruição de famílias, criminalização, desconsideração aos abusos, violências e vulnerabilidade em que as profissionais do sexo são expostas, além do desprezo pela conduta de pessoas adultas e autônomas que têm nesse trabalho uma possível escolha profissional (Szterenfeld, 1992). A relação entre a saúde e o trabalhado foi construída socialmente ao longo da história, passando por diversas modificações, iniciando-se com a medicina no interior das fábricas e evoluindo para a Medicina do Trabalho. Embora ambas apresentem a concepção de causalidade entre a doença e agente específico, no campo da Saúde do Trabalhador a saúde é compreendida como processo histórico levando em consideração os aspectos biológicos e psíquicos do ser humano no ambiente de trabalho (Mendes & Dias, 1991; Laurell& Noriega, 1989). O reconhecimento da relação entre trabalho e processo de saúde-doença encontra ainda mais dificuldades diante de profissões estigmatizadas. “O estigma de ‘puta’ é um mecanismo geral de opressão usado para negar direitos e justificar abusos. Na realidade, é claro que as prostitutas são mulheres reais e mulheres trabalhadoras, a quem são negados direitos humanos básicos” (Szterenfeld, 1992). A partir dessas concepções objetivamos conhecer o sentido que as profissionais do sexo atribuem ao seu trabalho e que impactos ele traz na saúde e nos relacionamentos no ambiente de trabalho, na sociedade e na família.
2 Materiais e Métodos A pesquisa foi realizada por meio de metodologia qualitativa, de caráter exploratório, uma vez que esta “[...] se ocupa, nas Ciências Sociais, com um nível de realidade que não poderia ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes” (Minayo, 2007, p. 21). 35
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O instrumento de coleta de dados utilizado foi a entrevista semi-estruturada, com um roteiro de perguntas abertas, a partir do qual as informações foram obtidas. Gil (2002) aponta que a entrevista semi-estruturada é guiada por uma relação de questões de interesse, tal como um roteiro, que o investigador vai explorando ao longo de seu desenvolvimento. O primeiro contato foi feito com o gerente de uma casa noturna na cidade da Grande Vitória, ES, para quem foi explicitado o objetivo e desenvolvimento da pesquisa. Após sua autorização foram realizadas duas visitas ao local para entrevistar as garotas de programa. Participaram da pesquisa, três profissionais do sexo com idades entre 20 e 33 anos, selecionadas aleatoriamente de acordo com a disponibilidade destas. Todas as entrevistas foram realizadas individualmente e gravadas com a devida autorização das participantes. Foi assegurado o sigilo das identidades e a utilização dos dados para fins acadêmicos. A análise dos dados foi realizada a partir dos pressupostos da análise de conteúdo, técnica que se aplica à análise de textos escritos ou de qualquer comunicação (oral, visual, gestual) reduzida a um texto ou documento (Chizzotti, 1995). Foram criadas categorias de análise que facilitam a formação de eixos temáticos de discussão, de acordo com os dados obtidos. Segundo Franco (2005) a categorização é um processo de classificação de elementos constitutivos de um conjunto por diferenciação, seguida de um reagrupamento baseado em analogias, a partir de critérios definidos, o que facilita a análise dos dados.
3 Resultados e Discussão Durante as visitas observou-se a interação entre as profissionais do sexo, os clientes e o ambiente de trabalho. Elas trabalham em uma casa noturna onde também atuam outras profissionais do sexo. O local funciona 24h e atende especificamente ao público estrangeiro e oferece opção às mulheres de residirem nos quartos disponíveis. Dentre as participantes, uma residia no local de trabalho. Foi possível perceber nesta pesquisa a intrínseca relação entre indivíduo, trabalho, saúde e relações sociais. Para Dejourset al. (1993) o trabalho 36
não é só um modo de ganhar a vida, mas também uma forma de inserção social, no qual aspectos psíquicos e físicos estão fortemente implicados. Também Seligmann-Silva (1992) aborda o contexto social, o cotidiano do trabalho e as relações interpessoais, que se encontram intimamente interligados, refletindo-se no mundo externo e interno do sujeito. Observou-se nas falas das participantes, como as questões relacionadas ao trabalho refletem na vida pessoal e social. Os dados obtidos por meio das entrevistas foram organizados em quatro categorias: relacionamentos sociais; condições de trabalho; saúde; e legalização da profissão. As participantes serão identificadas pela letra “E”.
3.1 Aceitação e relacionamentos sociais Nos discursos das participantes revelou-se a não aceitação da atividade que exercem, tanto por suas famílias quanto por elas mesmas: Minha família daqui prefere não comentar do striptease pra não poder ter problema, porque minha família é muito rigorosa, eles iam me deserdar na hora. [...] na verdade quem não aceita tanto sou eu. Minha família não aceita tal, tudo bem, mas, o ruim mais, o que pesa é pra nós mesmo que trabalhamos nisso entendeu? (E1).
Mesmo quando a prostituição não é vista como uma prática que causa vergonha, ela não está relacionada a uma atividade honrada, concepção esta relativa ao valor do trabalho na sociedade: A família de muitas meninas não sabe, a minha descobriu, aí eu contei. Eu não acho legal chegar e falar ‘sou garota de programa’, mas também não tenho vergonha. Eu preferia estar numa faculdade, num emprego normal, mas não tenho vergonha (E2).
É interessante perceber, como o trabalho estrutura não só a relação com o mundo, mas também as relações sociais e as percepções que estão presentificadas para o próprio sujeito. As entrevistadas relataram que se prostituem porque necessitam do dinheiro, mas que não aconselham essa vida para ninguém, e que todas elas gostariam de não trabalhar nesta profissão: “Eu não quero que minha filha venha pra cá achando que isso
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[...] ontem mesmo ninguém dormiu por causa de duas brigando por causa de homem. ‘Ah! Por que você pegou o meu homem?’[...] então é aquela competição [...] quem se veste melhor aqui dentro [...] por isso que eu falei que gasto muito [...] as loiras pra lá, as morena pra cá, então é aquela confusão, uma olhando pra outra pra vê quem se destaca mais, quem consegue o homem tal (E1).
3.2 Condições de trabalho De acordo com as participantes, as relações que se estabelecem nesta atividade, não apresentam diferenças significativas quanto às relações presentes em outro tipo de trabalho: “Mas tem estresse como em qualquer emprego quando dá algum problema [...]” (E2). No que tange às condições de trabalho, relatam não haver nenhum tipo de benefício relacionado à moradia e alimentação: Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 34-39
[...]tudo a gente paga aqui dentro, tudo [...]. Eu pago o aluguel do meu quarto, cada uma tem o seu quarto, entendeu? A gente tem que se virar, entendeu? E a gente tem que gastar muito com roupa, porque a gente tem sempre que está bem vestida aqui embaixo a noite [...] é muito gasto que a gente tem. Praticamente não vale a pena estar aqui, mas tudo bem (E1).
Como elas mesmas apontam nada é custeado pela casa e ainda assim é preciso ter um retorno lucrativo para permanecer trabalhando: Nada aqui é de graça, tem outras casas que dão as coisas, refeição, mas aqui não. O cliente tem que tomar três drinks e pagar trinta dólares pra casa. Eu como trabalho aqui há muitos anos não tenho que cumprir horário certinho, mas outras cumprem de sete e trinta às duas e trinta e quando tem cliente em outros horários também, principalmente as que moram na casa. Aqui a gente tem que ficar pianinho, tem muito que falar não e se sair da casa é mais difícil voltar depois (E3).
Um fator de risco destacado é que exercendo esta atividade sempre se está vulnerável a diversos tipos de abuso, como: roubos, clientes que não pagam, que quebram seus utensílios, e que as forçam a realizar algo que elas não querem. Como não possuem nenhum tipo de proteção a estes incidentes, pois não há vínculos empregatícios com a casa em que trabalham, elas são responsáveis por si mesmas, por sua integridade física e psicológica e também por seus bens materiais, sendo expostas a uma situação de vulnerabilidade extrema. Segundo as entrevistadas: “Acontece também da gente não receber depois de trabalhar, isso é uma ‘sacanagem’, a gente trabalhar, trabalhar e não receber. Acontece de a gente ser roubada também” (E2). Outra participante relata que alguns clientes: [...] não querem pagar, homem que gosta de bater [...] nunca aconteceu isso comigo, graças a Deus, nunca aconteceu, mas já aconteceu aqui, então assim, são problemas assim que prejudicam a mulher de qualquer maneira, coisas assim, que marcam a gente, machucam pra caramba (E1).
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pode” (E3); “Todas têm o sonho de sair daqui” (E2); “Eu não aconselho pra ninguém. E todo mundo aqui tem seus momentos de crise, mas a gente precisa da grana” (E3). Pode-se compreender a importância que algumas dessas meninas atribuem ao meio social, existindo um medo de que outras pessoas descubram que são profissionais do sexo, como mostra a seguinte fala: “Trabalho de dia, em um edifício comercial, ninguém nem sonha que também trabalho na noite” (E3). A partir dos relatos, é possível notar os impactos deste tipo de trabalho nas relações familiares e na sociabilidade de forma geral, pois sentem medo e vergonha, buscando soluções e táticas de defesas para se inserirem numa sociedade que aponta, marginaliza e rotula suas atividades. Nas relações estabelecidas no trabalho, existem competição e disputa, em função da necessidade de se destacar para conseguir os melhores clientes, ou de manter um cliente antigo, como relatam as participantes: “Tem problema entre a gente que trabalha também, às vezes, o cara que ficou com alguma vira seu boyfriend. A gente fica com ciúme, se sente meio dono do cliente, sabe? Quando se disputa o mesmo cara é complicado” (E3). Outra participante também menciona estes aspectos:
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3.3 Saúde As participantes demonstraram muito cuidado com as questões relacionadas à saúde e prevenção, fazendo uso de preservativos, anticoncepcional e ainda visitas periódicas ao médico: “Sempre uso camisinha, a gente se preocupa porque trabalha diretamente com isso, vai sempre ao ginecologista e tudo” (E3); “[...] faço exame todo ano, vou ao ginecologista, mas não é por ser garota de programa, é por ser mulher mesmo, tem que cuidar [...]. Eu uso preservativo e tomo anticoncepcional de um ano pra cá, já aconteceu de meninas engravidarem e abortarem, comigo não aconteceu” (E2). Quando se aborda o tema prostituição, as doenças sexualmente transmissíveis têm destaque, muitas vezes até culpabilizando as profissionais do sexo por sua disseminação. No entanto, os fatores associados aos aspectos psicológicos se mostraram mais evidentes do que os físicos, como relata a participante: “[...] a consciência pesa, dá um nojo de você [...] Só se for com um homem que eu gostei, que é legal e tal, mas, depois você fica com nojo cara, nossa senhora! Por isso que a maioria aqui é lésbica” (E1). Além do mal-estar e sentimento de culpa evidenciados, percebe-se a existência de uma rotina que envolve bebida e drogas, como mostram os relatos: “A gente bebe praticamente todo dia. Rola drogas também, eu já fui usuária de cocaína, mas não na noite, e agora parei” (E2) e [...] você vem aqui à noite, vai ver todo mundo feliz, né? Leve e tal, mas você não vê o que que passa por trás, o que que a gente faz pra poder estar alegre, feliz, dançando, por exemplo. A gente bebe, todos os dias a gente tem que encher a cara. Eu só faço show, só faço striptease se eu estiver bêbada (E1).
Esta atividade precisa ser compreendida com todas suas peculiaridades, mas também similaridades com outros trabalhos, enquanto espaço a partir do qual podem desencadear agravos à saúde física e psíquica.
mulheres e a contrapartida da seguridade social. Desta forma, como trabalhadoras, poderiam ter acesso a uma aposentadoria, a licença-médica, licença-maternidade entre outros benefícios, e assim mesmo que de forma mínima, estariam protegidas legalmente para exercerem sua profissão (Silva, 2005). Porém, algumas mulheres entrevistadas tiveram posicionamento desfavorável à legalização da profissão, como mostra este trecho extraído da entrevista: Não acho que tem que legalizar. A boate poderia melhorar porque depende da mulher, então tem que cuidar dela, e aqui deixa a desejar, não tem nada, tudo a gente paga. Mas legalizar não, eu tenho religião, sou católica, sei que é pecado, a igreja não é a favor nem de camisinha e pílula quando mais isso, né? Sexo liberado, assim, de qualquer um poder fazer (E3).
Algumas participantes relatam que a legalização até pode se concretizar, mas fazem algumas ressalvas: “Nem acho que sim, nem que não. Se for pra legalizar que seja certo, pra não virar ‘semvergonhice’ do governo, porque mais sem vergonha que garota de programa é o governo, né?” (E2) e Se for legalizado, tá, legalizado. Aí tipo assim, as pessoas que passam dificuldades iam querer entrar na boate e a começar a se prostituir, aí o número já ia aumentar, o número de violência também ia aumentar, o número de mortes também ia aumentar, o número de problemas no convívio social também ia aumentar, então é melhor não ter isso, é melhor ser proibido que aí a sociedade ela já tem essa coisa, essa discriminação, eu prefiro que seja assim, entendeu? (E1).
Não só nesta categoria como na “Aceitação e relações sociais” as falas das participantes indicam certa carga de preconceito e em algumas situações reproduzem a intolerância e a incompreensão da sociedade. Barros et al. (2009, p. 77) também abordam que
3.4 Legalização da Profissão A legalização da prostituição significa não a retirada de discriminação, mas a admissão da prostituição como profissão, implicando, por exemplo, o pagamento de imposto profissional por parte das 38
[...] o discurso moralista, que vê o meretrício como algo intrinsecamente ruim e depreciativo é, em muitos casos, assimilado e reproduzido pelas próprias prostitutas sem nenhuma crítica, constituindo-se
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Embora as profissionais do sexo digam que se aceitam, ao mesmo tempo negam a si próprias direitos relativos à sua profissão. A principal tarefa para garanti-los parece ser então a desconstrução de valores relacionados a preconceitos presentes na sociedade. O trabalho envolve um conjunto de fatores que influenciam diretamente o ser humano, tanto nos aspectos físicos, psíquicos, como sociais. A prostituição implicada como trabalho também precisa ser analisada sob o ponto de vista da saúde e das relações sociais. Percebeu-se que os agravos à saúde física perpassam esta atividade, devido às cargas horárias excessivas e às condições de trabalho que estão impostas nesta relação. Também estão presentes fatores psicológicos desencadeados principalmente em função de uma não aceitação própria. O cuidado com o corpo manifestou-se de forma natural e assídua, entretanto, as questões voltadas para os fatores psicológicos gerados no processo prostituição-trabalho não se apresentaram desta forma. A presente pesquisa se constitui enquanto uma possibilidade de entender a relação entre prostituição e trabalho e sua interface com a saúde e as relações sociais, contudo não oferece generalizações, apenas evidencia os casos particulares das mulheres entrevistadas, o que reforça a importância de novas pesquisas que aprofundem os resultados apontados em relação à saúde das profissionais do sexo. Entendendo que o trabalho das profissionais do sexo está submetido a fatores sociais e psicológicos encontrados em qualquer outra área profissional, percebe-se que a saúde física e a preocupação com as doenças sexualmente transmissíveis ainda ocupam lugar de destaque em detrimento das questões relacionadas a aspectos psíquicos.
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Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 34-39
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em fonte de sofrimento e empecilho tanto para a construção de uma imagem valorizada de si quanto para a participação social.
Habitação e serviço social: uma questão de cidadania Leila Origuella Castigioni1; Maria de Fátima Costa Borges; Maria do Carmo Moreira Souza Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo, Av. Vitória, 950, Forte São João, 29.017-950, Vitória, ES, Brasil. 1 loriguella@yahoo.com.br
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RESUMO Este relato trata de uma análise e contextualização sobre a atuação e importância do Serviço Social na habitação, bem como sua autonomia no processo decisório institucional. A proposta é discutir como se desenvolve a intervenção nos projetos habitacionais, favorecendo a cidadania e os direitos constitucionalmente garantidos. Nesse sentido, será analisada a contribuição do Assistente Social na área da habitação, buscando a ampliação da produção de conhecimentos que, por conseguinte, favoreçam a efetivação e a qualidade dos serviços oferecidos, a fim de atender às reais necessidades da população. Palavras-chave: Habitação. Serviço Social. Cidadania. ABSTRACT This paper is about aanalisys and contextualization of the Social Service acting and importance in the habitation, as well its autonomy in the institutional decisory process. The purpose is to discuss how the intervention in the habitation projects develops, promoting citizenship and the constitutional rights. In this point, will be analised the contribution of the Social Assistant in the habitation issue, searching for the improvement of the knowledge production, that, for its time, favors the quality of the offered services, in order of attending the real citizens needs. Keywords: Habitation, social service, citizenship.
1 Introdução Este relato trata de uma análise e contextualização sobre a atuação e importância do Serviço Social na habitação, bem como sua autonomia no processo decisório Institucional. A proposta é discutir como se desenvolve a prática do Assistente Social na área da habitação, identificando as possíveis contribuições do Serviço Social para ampliação dos projetos sociais nesta área, e como a sua intervenção nos projetos habitacionais pode favorecer a cidadania e os direitos garantidos pela Constituição Federal Brasileira de 1988 (CFB 88). Parte desse trabalho foi escrito originalmente para compor a nossa monografia de graduação Habitação e Serviço Social: uma questão de cidadania, do curso de Serviço Social na Faculdade Católica Salesiana de Vitória. O texto aqui apresentado é resultado da revisão de literatura realizada para a nossa monografia. A área de planejamento da questão urbana no Brasil tem se desenvolvido muito nos últimos anos, porém há dificuldades que precisam ser re40
solvidas tais como: desigualdades na distribuição de renda, o desemprego, somada à segregação socioespacial, escassez de políticas públicas e a crescente precariedade das condições de vida da população são notórias na atual conjuntura do sistema capitalista. Esta situação tem provocado a ocupação desordenada de inúmeras famílias em loteamentos clandestinos, favelas, e mais gravemente em áreas de risco, gerando muitos problemas sociais. O uso e a ocupação dos espaços urbanos não são satisfatórios, mostrando-nos que o direito à cidade, isto é, o direito de viver em condições próprias à habitação, não tem sido de todos e todas que constroem a cidade. Na verdade, tem sido um expoente de “exclusão e de perpetuação de privilégios e desigualdades” (Rolnikapud Costa & Lima, 2004, p. 163). Infelizmente o grave problema do déficit habitacional brasileiro estará presente por muito tempo neste novo século. Cabral (2005) refere que já em 1872, Engels analisa a questão referente à habitação existente em sua época, correlacionado-o a industrialização
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nascente, destacando as precárias condições de vida e de habitação do proletariado urbano. Foi um momento marcado pelo capitalismo concorrencial, que se caracteriza por uma crise da habitação provocada pela industrialização e urbanização que atraem uma grande quantidade de migrantes para a cidade sem uma intervenção na área social pelo Estado. Assim, a cidade capitalista, reúne as condições para produção e os meios de reprodução do capital e do trabalho, ficando explícitas as contradições das relações construídas a partir da apropriação privada dos bens socialmente produzidos (Engels apud Cabral, 2005, p.1). Isso significa que o processo de industrialização acelerou o crescimento das cidades ao mesmo tempo em que fez emergir alguns problemas sociais vinculados à questão habitacional, tais como: o crescimento demográfico, a aglomeração de população nos centros urbanos, a valorização do solo urbano (da terra), a segregação social e espacial, entre outras. O Estado não estava preparado para receber a grande quantidade de migrantes para as cidades, e assim, não se fez um bom planejamento. Esta situação tem provocado o assentamento de inúmeras famílias em loteamentos clandestinos, favelas, e mais gravemente em áreas de risco, gerando todo tipo de catástrofe. É necessário que se faça a construção de uma política urbana que possibilite compartilhamento dos serviços públicos e equipamentos coletivos; realização e elaboração de planos e estratégias que possam ser assegurados, com justiça e ética, para que as distribuições dos espaços urbanos das cidades sejam de todos e de todas, uma vez que este é um espaço vivido por todos e todas. No entanto, o que ocorreu foi à legitimação social de uma cidadania passiva aprofundada pela representatividade nos espaços públicos, na qual as pessoas delegam o poder de deliberar as decisões políticas para seus representantes que em sua maioria são ligados a elites concentradoras de renda e poder. A cidadania enquanto um conjunto de direitos sociais, políticos e civis para a convivência em sociedade têm seu processo de construção ao longo do tempo. O Serviço Social considera as condições sociais e históricas que se referem aos direitos enquanto conquistas do homem e a sua legitimação na prática social. A construção da cidaVitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 40-50
dania tem uma realidade caracterizada pela visão mercadológica da mundialização econômica e pelo contexto neoliberal excludente. Sendo assim, os direitos se situam em um espaço de embates por interesses opostos, mediados pelo conflito capital e trabalho, envolvendo lutas por espaços de poder e estratégias de enfrentamento as diversas manifestações das expressões da questão social. Nesse campo essencialmente contraditório, o Serviço Social se insere como profissão socialmente necessária, voltada à defesa intransigente dos direitos humanos e a consolidação da cidadania, ao mesmo tempo em que existe uma vasta legislação e garantias legais. O indivíduo só consegue sentir-se cidadão a partir do momento em que se identifica com a cidade onde vive, ou seja, quando seu direito de participar do processo de urbanização é respeitado pelo Estado. Contudo, o que tem acontecido em nosso país e não menos em Vitória é o estabelecimento de obstáculos para as pessoas que querem exercer cidadania na cidade onde vivem, como se elas só pudessem exercer uma espécie de cidadania de segunda categoria, que devem se conformar por morar na periferia, em locais desprovidos de infraestrutura e excluídos do que é oferecido nas áreas mais valorizadas, tendo acesso somente a serviços precários e restritos. A regressão dos direitos sociais, humanos, políticos e civis se encontram ameaçados pela modernidade capitalista, o queocasiona uma refração dos Estados nacionais nesse processo, por isso a luta por direitos é fundamental numa época em que a cidadania é associada ao consumo, ao mundo do dinheiro e a posse de mercadorias. Somente com a apropriação pela sociedade da importância de participar dos espaços políticos e de procurar intervir no meio em que vive, é que a população brasileira irá, finalmente, ver ao seu direito à cidade. O município de Vitória é marcado por topografia acidentada e ocupações irregulares, que ocorreram prioritariamente nos manguezais e nas encostas de morros. O acúmulo de resíduos sólidos e a retirada brusca da cobertura vegetal original foram substituídos por moradias insalubres e consequentemente por processos contínuos de erosão e instalação de famílias em áreas de risco, prejudicando a preservação ambiental. 41
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Habitação e serviço social: uma questão de cidadania
Leila Origuella Castigioni, Maria de Fátima Costa Borges e Maria do Carmo Moreira Souza
Além disso, a expansão urbana e industrial é um fator relevante para o espaço e condições de moradia, haja vista que Vitória, uma ilha com pouco espaço continental na qual a ocupação tem se expandido para seus morros cujas condições são inapropriadas para construção de moradias. Muitos indivíduos não têm condições de investir em uma moradia própria e digna, devido ao elevado custo dos terrenos.
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2 Breve Histórico das Políticas Habitacionais O direito à habitação, ressaltado por vários instrumentos internacionais, como declarações, pactos, convenções e outros, não se restringem apenas à presença de um abrigo, ou um teto, ele se estende a toda sociedade como direito de acesso a uma habitação provida de infraestrutura básica e outros equipamentos urbanísticos. O conceito de “adequada habitação” foi explicitado no Parágrafo 60 da Agenda Habitat II1: Adequada habitação significa algo mais que ter um teto para se abrigar, significa também dispor de um local privado, com espaço suficiente, acessível, seguro tanto no que tange à estabilidade e durabilidade estrutural, e ventilação suficientes; adequada infraestrutura que inclua o fornecimento de serviços básicos como água, luz e saneamento ambiental; que seja também adequadamente localizada para viabilizar o acesso ao trabalho e com um custo acessível para a população. A garantia de moradia digna de assentamentos urbanos mais seguros, sustentáveis e integrados como um direito humano e social não se concretiza até hoje (Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos, Agenda Habitat II, 1993). Apesar do direito a habitação e dos avanços trazidos pela Constituição Federal Brasileira de 1988, as autoras Behring & Boschetti (2006) afirmam que apesar das conquistas do CFB 88 que contemplou avanços sociais, em função das lutas e movimentos dos trabalhadores, o mundo vivia a reestruturação do Sistema Capitalista
(neoliberalismo, reestruturação produtiva), e as condições econômicas do Brasil eram extremamente desfavoráveis, investindo-se apenas em políticas econômicas, reduzia-se gasto social federal e desarticulava-se das redes de serviço social. Percebe-se a desresponsabilização do Estado frente às políticas sociais, desenhando um projeto antinacional, antidemocrático e antipopular por parte das elites, cujo direito do cidadão não está sendo assegurado como descrito na CFB 1988, pois a universalidade é excludente e os serviços públicos privatizados. Há uma duplicidade discriminatória entre os que podem e os que não podem pagar pelos serviços além da seletividade e focalização que asseguram acesso apenas aos que comprovam extrema pobreza. O fundo público está sendo usado como ferramenta do capital e sua financeirização e não para garantia dos direitos sociais estabelecidos na CFB 88. Atualmente vivemos em uma sociedade capitalista, onde se supervaloriza o consumo e o lucro, sendo o Estado voltado para a economia. O Estado é o mediador das relações sociais (KxT), realizando estas mediações por meio de políticas sociais mínimas, na tentativa de amenizar as sequelas das expressões da questão social. Nesse contexto, o Estado utiliza-se de políticas sociais parcas e precárias e assim, decorre o trinômio do neoliberalismo para as políticas sociais: privatização, focalização e descentralização. Em 1946 foi criada a primeira política nacional de habitação, Fundação da Casa Popular. Esta política foi ineficaz devido à falta de recursos e às regras de financiamento estabelecidas, que comprometeu o seu desempenho, quanto ao atendimento da demanda que ficou restrito a alguns estados da federação e com uma produção pouco significativa de unidades. Não se registrou no Brasil nenhuma iniciativa importante na área de habitação durante longos períodos, até que na década de 60 foi criado o Banco Nacional de Habitação (BNH) juntamente com a Companhia de Habitação Popular (COHAB).
A Conferência Habitat II - ou Cúpula das Cidades - última das cúpulas mundiais deste século, realizou-se vinte anos após a primeira (Vancouver, Canadá, 1976). A Agenda Habitat II tem como objetivo principal atualizar os temas e paradigmas que fundamentam a política urbana e habitacional, com vistas a reorientar a linha de ação dos órgãos e agências de cooperação internacional para estes temas, incluindo a do próprio Centro das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos – Habitat (CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE ASSENTAMENTOS HUMANOS, AGENDA HABITAT II, 1993).
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O sistema financeiro de habitação executou a política de habitação no Brasil, por mais de 20 anos, até que o BNH foi extinto em 1985. Em sua trajetória se notabilizou por intervenções que se desviaram do objetivo para qual foi criado, o de prover moradias para a população pobre. Relatórios do Ministério das Cidades mostram números deste desvio de finalidade por parte do BNH: [...] 70% dos recursos federais para habitação foram destinados a população de renda superior a cinco salários mínimos, quando o acúmulo de décadas de exclusão nas cidades criou um déficit habitacional composto em 92% por famílias abaixo desses mesmos cinco salários mínimos. Esse foi o resultado da falta de políticas setoriais claras de uma gestão macroeconômica que priorizou o ajuste fiscal (Cadernos Mcidades Desenvolvimento Urbano, 2004, p. 11).
No plano Federal, na década de 1990, a política habitacional caracterizou-se por uma retração e permaneceu sem contar com recursos financeiros expressivos e sem capacidade institucional de gestão, devido ao efeito das políticas neoliberais e do ajuste fiscal promovidos pelos governos Collor de Mello, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. Segundo Netto & Braz (2007), o esgotamento do modelo fordista-keynesiano que veio acompanhado pela orientação Neoliberal do Estado brasileiro a partir dos anos de 1990, a intervenção estatal em matéria de habitação popular não colocou em prática os avanços constitucionais, na medida em que o Estado tem abdicado do seu papel de regulador social. Além disso, a ideologia neoliberal engendra outras consequências, sobretudo no campo social, já que se constata uma perda de força do discurso da universalização em prol de uma visão focalizada da pobreza que se apresenta como mais inclusiva. Dessa forma, a política de habitação que historicamente foi focalizada, passa a incentivar à produção individual e privada de moradias e, por conseguinte, a parceria pública e privada, que mesmo descentralizada, não tem contado com a participação popular. Em 2003, no primeiro governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva a gestão das cidades e da Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 40-50
Política de Habitação passou a ter atribuição do Ministério das Cidades, composto pela seguinte estrutura administrativa: Secretaria Nacional de Habitação, Secretaria Nacional de Programas Urbanos, Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental e Secretaria Nacional de Transporte e Mobilidade Urbana. Atualmente, novos programas foram lançados pelo Ministério das Cidades (Cadernos Mcidades Desenvolvimento Urbano, 2004, p. 12), objetivando atingir a população que apresenta renda de zero a cinco salários mínimos, por meio dos recursos do FGTS, a saber: • Programa de Arrendamento Residencial (PAR); • Programa de Subsídio à Habitação de Interesse Social (PSH); • Resolução 46.032 – visa subsidiar a construção de novas habitações, ou a melhoria das já existentes, para famílias que apresentam renda de zero a cinco salários mínimos; • Programa de Crédito Solidário e Programa Direto na Planta. Na tentativa de acelerar o crescimento do país, em janeiro de 2007, foi lançado pelo Governo Lula o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), com previsão de investimentos da ordem de R$ 503,9 bilhões para a infraestrutura. Destes R$ 106 bilhões foram destinados à habitação, com previsão de benefícios para 4 milhões de famílias, até o ano de 2011. Seiscentas mil famílias serão atendidas por meio de recursos aplicados em caderneta de poupança. Os recursos serão provenientes do Orçamento da União, por meio do FGTS e do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e repassados à iniciativa privada. Entretanto, o PAC vem recebendo críticas de alguns economistas, lideranças políticas e do Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU), devido à previsão de cortes de investimentos em outras áreas, tais como a saúde, da ordem de R$ 5 bilhões, correspondendo a 14,2%; o turismo de 77,3% e o desenvolvimento social de 2,5%. A partir da Constituição de 1988, com o processo de descentralização das políticas, se estabelece uma nova definição de competências, passando a ser atribuição dos Estados e Municípios a gestão dos programas sociais, e dentre eles o de habita43
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ção: seja por iniciativa própria, por adesão a algum programa proposto por outro nível de governo ou por imposição Constitucional. A diversidade de programas adotados em momentos distintos é necessária para minimizar a questão da moradia, mas não é o suficiente para solucioná-la. É importante que a política habitacional esteja articulada a políticas de desenvolvimento econômico e social que, entre outros aspectos, gere empregos, aumente o nível de renda, redefina o sistema financeiro habitacional, estabeleça normas para o mercado imobiliário e de terra (Gonçalves, 2000).
2.1 Políticas de Habitação do Município de Vitória A política fiscal dos municípios e a perspectiva de gestão urbana são algumas das razões para a formulação de políticas de habitação que potencializem a rede de equipamentos existentes. Assim, a nova política de habitação que emergiu nos anos 90 objetiva, por meio de uma abordagem participativa, implementar programas e projetos para integrar a população pobre à cidade formal. De toda maneira, a reabilitação progressiva da habitação, após os anos de abandono, representa um avanço em termos do processo de construção da cidadania. Vale destacar que a Política Social de Habitação executada pela Secretaria Municipal de Habitação de Vitória se organiza a partir da Lei Municipal nº 10.257 de 10 de julho de 2001, Estatuto da Cidade, vem regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, que conformam o capítulo relativo à Política Urbana. Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei têm por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. § 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é um instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição,
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utilizando-se para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Dessa forma vem a atender o que preconiza a Política Habitacional do Município: [...] garantia das condições mínimas de habitabilidade a moradias existentes, visando à salubridade, segurança, infraestrutura, serviços e equipamentos urbanos e acessibilidade, a partir de projetos de parcelamento nas áreas e intervenções de melhorias, reformas, reconstruções nos imóveis (Vitória, 2003).
Essa lei, que estabeleceu as diretrizes e normas da Política de Habitação, criou também um Conselho Municipal de Habitação de Interesse Social (CMHIS). O CMHIS é um órgão de caráter deliberativo, vinculado administrativamente à Secretaria Municipal de Habitação – SEHAB, que foi regulamentado pelo Decreto nº 11.556, em 21 de março de 2003, e tem por finalidade propor e deliberar sobre diretrizes, planos e programas da Política Habitacional, bem como fiscalizar a sua execução. Além disso, essa Lei instituiu o Fundo Municipal de Habitação de Interesse Social (FMHIS), constituído por recursos provenientes do orçamento do município e de outras fontes, que viabiliza a execução dos programas previstos na referida legislação, tendo como seu principal objetivo o atendimento à demanda habitacional assegurando ações associadas à promoção humana, sustentabilidade social, ambiental e econômica nas áreas de intervenção (Prefeitura Municipal Vitória, 2009). A Prefeitura Municipal de Vitória vem desenvolvendo ações em áreas de interesse social, beneficiando famílias por meio de uma política pública capaz de assegurar o acesso à habitação digna de forma democrática e participativa, além da qualificação dos espaços urbanos. A fim de organizar o crescimento do município proporcionando melhoria da qualidade de vida dos moradores, o novo Plano Diretor Urbano – PDU vem definir as áreas de interesse social histórico e de proteção ambiental, considerando que há locais com maior necessidade de serviços e outros que precisam ser protegidos, visando garantir o
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1 - Moradia; 2 - Vitória de Todas as Cores; 3 - Terreno Legal; 4 - Morar no centro; 5 - Morar sem risco. Moradia: é um Programa que atende e beneficia prioritariamente pessoas sem acesso à moradia digna, que morem de aluguel ou dividam habitação, mediante o desenvolvimento dos seguintes projetos: produção de unidades habitacionais; disponibilização de unidades habitacionais já existentes; reconstrução (de moradias edificadas em madeira e/ou em outro material inadequado à construção ou que apresentem instabilidade de estrutura ou insalubridade não sanáveis); acesso ao crédito construtivo para aquisição de materiais destinados à conclusão, recuperação, ampliação ou melhoria de habitações. Terreno Legal: objetiva a regularização jurídica dos parcelamentos e assentamentos existentes no Município de Vitória.
Morar Sem Risco: atende e beneficia pessoas que residem em imóveis no município de vitória que apresentem instabilidade de estrutura e/ou insalubridade ou que estejam submetidos a riscos geológicos4 de que determinem a remoção temporária ou definitiva, para o fim de resguardar o direito à vida, por meio dos seguintes projetos: Bolsa Moradia; Auxílio Moradia e Auxílio Reforma. Morar no Centro: tem por objetivo contribuir para a revitalização e repovoamento do Centro da Cidade de Vitória por meio de: requalificação de edifícios não residenciais desocupados, ou subutilizados para uso habitacional; readequação e/ou recuperação de imóveis residenciais desocupados ou subutilizados e construção de novas habitações. Vitória de todas as Cores: objetiva estimular e promover melhorias na qualidade da habitabilidade e do acabamento nos imóveis, de famílias de baixa renda, prioritariamente, nas áreas de interesse social, desenvolvendo uma estética urbana especial que propicie a apropriação afetiva do espaço comunitário. É neste projeto que serão realizadas as atividades de estágio sistematizadas neste plano (Prefeitura Municipal de Vitória, 2003). Apesar desses projetos habitacionais, é necessário que o poder público amplie suas ações como, por exemplo, beneficiar o usuário com uma moradia própria para a sua estrutura familiar, articulando a política de habitação com outras políticas sociais, capazes de dar condições necessárias e básicas de sobrevivência para a população. Não basta o indivíduo ter um teto para erguer a sua cabeça, mas sim condições necessárias para uma vida digna, tendo emprego, educação, lazer, segurança, entre outros fatores. O bairro Romão, objeto do projeto habitacional em estudo, originou-se de uma fazenda de propriedade da família Aguiar. O nome foi
Instrumento básico da Política de Desenvolvimento e da Expansão Urbana, responsável pelo estabelecimento de Política Urbana na esfera municipal, e pelo pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, como preconiza o artigo 182 da Constituição Federal.
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Com a Lei 5.823, de 30 de dezembro de 2002, os projetos relacionados à área da habitação foram unificados por meio do Programa Habitar Vitória.
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De acordo com a Lei 6.592,03 de maio de 2006 áreas de risco geológico são aquelas sujeitas a sediar evento geológico natural ou induzido ou a serem por ele atingidas.
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crescimento sustentável, o que até então na antiga PDU2, criada em 1984, não havia um olhar criterioso para que pudesse ser preservado legalmente. Desta forma, a Política Municipal de Habitação (PMH) pretende proporcionar novo dinamismo ao setor habitacional, integrando os conceitos de sustentabilidade, participação e promoção social, atendendo assim o que preconiza a Lei, promovendo o acesso à moradia vai além das dimensões físicas, pois o conceito de habitação no seu sentido mais amplo abrange todos os aspectos urbanísticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais. Com o objetivo de diminuir o déficit habitacional e promover o desenvolvimento urbano, a Secretaria de Habitação da Prefeitura de Vitória, vem desenvolvendo o Programa Habitar Vitória3 que é composto por cinco projetos, destacados a seguir:
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colocado em homenagem ao português Romão de Aguiar, patriarca da família. Alguns barracos começaram a ser construídos por pessoas que invadiram a propriedade por volta de 1930. A área era desabitada e de fácil acesso, fator que favoreceu o processo de invasões. A parte plana do entorno do bairro era constituída por um extenso manguezal, não despertando a princípio interesse de ocupação. Os primeiros moradores chegaram e demarcaram os lotes nas partes mais elevadas do morro, que ofereciam melhores condições físicas para habitação. Até o início dos anos 60, a expansão dos assentamentos se dava de forma lenta e dispersa. Os moradores se alojavam em pontos do morro e abriam caminhos para circulação no interior do espaço ocupado, sem conflito com o poder público. Posteriormente, com o aterro do manguezal, ocorreu a consequente valorização da área que foi loteada. Segundo depoimentos, alguns chegaram a receber lotes doados pela Prefeitura de Vitória. Nos anos 70 e 80, esse fato se intensificou com a chegada de outras famílias aos morros de Vitória. Os fatores que determinaram a formação do bairro foram a proximidade da área com o centro da cidade, além da facilidade com o transporte, pois na década de 50, o bonde passava na Avenida Vitória, importante via que interliga os bairros da zona norte com a região central. Este fato ainda é uma realidade, pois esta avenida, localizada no entorno do bairro, é servida por diversas linhas de transporte coletivo, que atendem todos os municípios da Grande Vitória. Este bairro, também conhecido como Morro do Romão, é um dos núcleos de Vitória a passar pelo processo de urbanização e foi escolhido pelo Programa Habitar Vitória, pois nele encontra-se grande número de edificações inacabadas, insuficiência de infraestrutura básica, como água, esgoto e drenagem, além da organização comunitária.
3 Habitação e Serviço Social: uma discussão possível Este estudo foi pensado a partir da inserção no campo de estágio na Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB), no Programa Habitar Vitória especificamente no Projeto “Vitória de Todas 46
as Cores” (VTC), do Bairro Romão da cidade de Vitória. Por meio da análise institucional, verificou-se a caracterização dos usuários e do espaço sociotécnico do Serviço Social, nele se observou a autonomia relativa dos profissionais envolvidos no processo de trabalho. Em relação à comunidade o projeto atende parcialmente às reais necessidades da população em vulnerabilidade social, podendo observar que mesmo após receberem os benefícios oferecidos pelo projeto a maioria das famílias continua em condições precárias de habitabilidade e, por conseguinte, mínimas condições de vida. Segundo a Constituição Federal Brasileira de 1988 é direito de o cidadão ter uma moradia digna. Para Gonçalves (2000) a moradia é uma das necessidades básicas à reprodução social da força de trabalho. A busca de um abrigo sempre esteve presente na trajetória do homem na sua incessante luta pela sobrevivência. No artigo sexto da Constituição Federal de 1988, estão garantidos os direitos sociais à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção, à maternidade, à infância e à assistência aos desamparados. Entretanto, a atual conceituação de moradia a tem colocado como mercadoria, com valor eminentemente econômico e isso deixa marginalizado o significado de casa como uma necessidade humana e social. O principal desafio do Serviço Social na questão da habitação é a recuperação desse significado, que pode ser traduzido por meio da apropriação social do espaço, com a concepção dos princípios de cidadania, envolvendo direitos e responsabilidades com o local e o reaprendizado de valores afetivos e de regras, construindo processos de convivência e organização coletiva. Outro fator relevante para a solução dos problemas urbanos não se refere necessariamente à legislação, e sim à política. Por isso, a apropriação, pela sociedade, da importância de participar dos espaços políticos e de procurar intervir no meio em que vive é que a população brasileira irá, finalmente, ver implementado o seu direito à cidade. O Projeto “Vitória de Todas as Cores” (VTC) busca atender a parcela de menor renda dos munícipes, com objetivo de contribuir para a
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obtenção de habitabilidade digna a estes, por meio de melhorias habitacionais oferecendo reboco5, chapisco6, pintura das fachadas e reconstrução ou recuperação dos telhados (Secretaria Municipal De Habitação, 2006). Baseado neste conceito, a equipe social traz a proposta do desenvolvimento do trabalho preventivo e socioeducativo, identificando a realidade dos grupos mais vulneráveis de cada região, por meio do cadastro socioeconômico, pautado na diretriz da participação comunitária e exercício da cidadania, conforme preconiza o Estatuto da Cidade. Conforme a Lei nº 10.257/2001 a gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano, é reconhecida como uma diretriz para o desenvolvimento sustentável das cidades. Percebe-se que as melhorias externas realizadas nas residências evitam infiltração e mofo, proliferação de insetos, o embelezamento e a valorização do bairro e a retomada da autoestima na comunidade. As ações socioeducativas têm o intuito de aprimorar as habilidades da comunidade e gerar renda familiar. Entretanto, a prioridade do projeto Vitória de Todas as Cores (VTC) no Romão é o embelezamento e a valorização do bairro. É importante salientar que a equipe social da Gerência de Articulação Comunitária da Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB), juntamente com os parceiros e comunidade local beneficiada, trabalham no desenvolvimento de ações sócioeducativas que visam assegurar o atendimento das necessidades dos munícipes quanto à qualidade de vida, à promoção humana e ao desenvolvimento das atividades econômicas no Município. O acompanhamento técnico das obras e a requalificação da mão-de-obra local visam a real integração à malha urbana da cidade. Trata-se de um programa de melhorias habitacionais, alicer-
çado no trabalho comunitário e na participação popular. O Estatuto da Cidade ao regulamentar as exigências constitucionais reúne normas relativas à ação do poder público na regulamentação do uso da propriedade urbana em prol do interesse público, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental. Além disso, fixa importantes princípios básicos que norteiam estas ações. A Política Municipal de Habitação (PMH) pretende proporcionar novo dinamismo ao setor habitacional, integrando os conceitos de sustentabilidade, participação e promoção social, atendendo assim o que preconiza sua política, promovendo o acesso à moradia vai além das dimensões físicas, pois o conceito de habitação no seu sentido mais amplo abrange todos os aspectos urbanísticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais. Nesse sentido, as ações municipais empreendidas visando à melhoria das condições de habitabilidade, à preservação ambiental e à qualidade dos espaços urbanos vem permitindo aos seus habitantes, prioritariamente os de baixa renda, a garantia de uma cidade plena para toda a população. Esta política tem por finalidade orientar as ações do Poder Público compartilhado com as do setor privado, expressando a interação com a sociedade civil organizada, de modo a assegurar às famílias, especialmente as de baixa renda, o acesso, de forma gradativa, à habitação. O município de Vitória, com base na Lei nº 5.823, de 30 de dezembro de 2002, organiza sua política habitacional objetivando a promoção do acesso a terra e a moradia dignas aos habitantes da cidade, com a melhoria das condições de habitabilidade, de preservação ambiental e de qualificação dos espaços urbanos, bem como a promoção da participação das comunidades beneficiárias na formulação, implementação e controle da execução dos programas habitacionais, estabelecendo canais permanentes de participação (PMV, 2006, art.1º).
É um tipo de argamassa com que se alisam as paredes, preparando-a para receber a cal ou a pintura. O reboco dá proteção externa às paredes, sejam elas de qualquer material, evitando infiltrações da chuva que porventura possam vir a prejudicar a vida útil do material e o aparecimento de mofo por exemplo.
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O chapisco é uma argamassa de aderência composta de cimento e areia média ou grossa, conforme acabamento final desejado. Proporciona condições de fixação para outro elemento (sobre superfícies de fechamento das paredes, blocos, tijolos, etc.) e também pode ser usado como elemento decorativo em muros.
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Nessa relação, podemos citar o papel do Assistente Social na Habitação em consonância com o Projeto Ético-político Profissional: compromisso com a autonomia, a emancipação e a plena expansão dos indivíduos sociais; compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população, a publicização dos recursos institucionais à participação dos usuários; assegurar a equidade e a justiça social; garantir a ampliação e a consolidação da cidadania; promover as gestões participativas, que garanta a sustentabilidade do empreendimento; viabilizar o exercício da participação cidadã; promover a melhoria da qualidade de vida das famílias beneficiadas pelo projeto, mediante trabalho educativo, favorecendo a organização da população, a educação sanitária e ambiental, a gestão comunitária e desenvolvimento de ações que, de acordo com as necessidades das famílias, facilitando seu acesso ao trabalho e melhoria da renda familiar (Secretaria Municipal de Habitação de Vitória, 2006). Tanto no Projeto Vitória de Todas as Cores, como em outros projetos do Programa Habitar Vitória, a equipe social tem um papel importante para se pensar à prática do Serviço Social na Habitação e em sua competência e possibilidades. O assistente social tem um olhar diferenciado perante a comunidade, procurando atender as necessidades dos usuários. O profissional na área da habitação precisa trabalhar na perspectiva de contribuir para a construção da cidadania de homens e mulheres, fazer valer os direitos, ter o compromisso ético com a justiça e equidade, compreensão do processo histórico que permeia a relação entre dominados e dominantes, capacidade de lidar com os conflitos e possibilidades de fazer diferença, marcar o seu tempo (Oliveira, 2003). O direito à moradia não se resume apenas à presença de um abrigo ou teto, mas significa ter acesso a uma habitação adequada, que possua infraestrutura básica e, portanto, que ofereça aos moradores uma possibilidade de melhoria contínua de sua condição de vida. Habitação adequada significa: privacidade, espaço, segurança, iluminação e ventilação, infraestrutura básica e localização em relação ao trabalho e facilidades básicas, tudo a um custo razoável. O respeito ao direito à habitação é uma for48
ma de garantir os demais direitos econômicos e sociais. A cada dia, ressalta-se a urgência de uma política habitacional como instrumento insubstituível de inclusão social e melhoria da qualidade de vida dos cidadãos e o contínuo desenvolvimento na área de planejamento da questão urbana. É uma concreta afirmação de cidadania a fim de possibilitar o acesso à uma vida mais saudável. O Projeto Vitória de Todas as Cores promove a melhoria das condições de habitabilidade, de preservação ambiental e de qualificação dos espaços urbanos no município de Vitória, na busca do estímulo à promoção humana para o alcance da cidadania. Entretanto, observa-se que o projeto atende minimamente as necessidades básicas da população, sendo que para assegurar os seus objetivos se faz necessário ampliar os benefícios oferecidos, tais como, melhorias ou construção de banheiros; melhorias internas e integração com demais projetos, principalmente de trabalho e geração de renda. Os avanços nesse projeto são indispensáveis para além de uma mera maquiagem estética muitas vezes desenvolvida na habitação para tornar fachadas de casa populares mais bonitas, embora os problemas sociais afetos à habitação persistam. A inserção do Serviço Social nos projetos habitacionais é primordial, pois os Assistentes Sociais têm contribuído no âmbito das melhorias na elaboração e aplicação de políticas habitacionais, buscando ampliar a cidadania por meio da intervenção urbana e social, utilizando estratégias e técnicas para uma ação voltada em sua prática profissional, trabalhando na intervenção, guiado por seu Código de Ética Profissional, no qual se destaca o estímulo à promoção humana com participação, dinamizando a economia local, desenvolvendo trabalho preventivo e socioeducativo e também por meio de políticas sociais. Diante dessa configuração se torna necessário refletir sobre o desenvolvimento da racionalização da intervenção social, no sentido de acionar instrumentos técnico-operativos que contribuam para viabilizar a inserção do Assistente Social nas complexas e diversas formas de enfrentamento das questões urbanas, que trazem demandas de caráter teórico, técnico, metodológico e éticopolítico para a profissão. Os Assistentes Sociais lidam cotidianamente com as contradições da
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Esperamos que os resultados desse estudo contribuam para a ampliação dos conhecimentos sobre a atuação do Assistente Social na área da habitação e que este possa fortalecer a política pública de habitação, reafirmando, assim, sua relevância social e científica.
Agradecimento Agradecemos a ajuda prestimosa do professor Dr. Renato Almeida de Andrade que sempre nos acolheu e orientou com dedicação e paciência, passando muita tranquilidade durante a produção da pesquisa.
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problemática urbana, ao mesmo tempo em que se delineiam oportunidades expressivas de desenvolvimento de trabalhos com resultados efetivos que tem contribuído para fortalecer a ação dos movimentos sociais. Ao mesmo tempo também existem grandes desafios e limitações postos pelo contexto socioeconômico não somente no Serviço Social, mas a todas as categorias profissionais que se empenham no enfrentamento das expressões da questão social. A instrumentalidade do Serviço Social valoriza o trabalhador, o homem como centro do universo, lutando a favor da democracia, da liberdade, em contraposição aos valores individualistas e visam à redução das desigualdades sociais. Assim, reafirma-se a vinculação do projeto ético-político da profissão com a luta mais ampla dos trabalhadores. Portanto, é possível compreender e resgatar a dimensão emancipatória da instrumentalidade do exercício profissional e a vinculação destes aos interesses da classe operária tornando o Assistente Social um protagonista voltado para o conhecimento dos seus papeis sociopolíticos, envolvendo exigências mais rigorosas, atendendo para as implicações ético-políticas do seu “fazer” profissional. Vale lembrar que o Assistente Social deve estar sempre voltado para os interesses da classe trabalhadora, lutando para que estes possam ter uma vida digna e uma autonomia enquanto ser humano. No exercício da prática profissional não podemos deixar de considerar que há limites em sua ação, como momentos de frustrações em relação às demandas, que geralmente são maiores que a oferta. Não se pode desvincular que o Assistente Social é um trabalhador subordinado às relações do mercado de trabalho e está sujeito a oscilações políticas. Ele muitas vezes atende ao capital, pois é quem comanda a sociedade, mas deve ter a clareza da profissão interventiva, das reais necessidades da classe trabalhadora e ação do sujeito coletivo. Precisa pensar a sociedade e sua transformação e construir a política de habitação como direito. Para tanto, o profissional necessita trabalhar em rede socioassistencial, para atender o ser humano como um ser total e não fragmentado pelas políticas sociais que estão postas, assim a articulação com outros programas e projetos sociais se faz necessário.
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Episteme - Revista Científica da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Sintomas de transtorno alimentar entre homens universitários estudantes de educação física de uma faculdade privada do Município de Vitória – ES Ms. Alessandra Rodrigues Garcia dos Santos; Ms. Ana Clara D’ Ávila Guedes; Rosângela Cardoso1; Vanessa Frasson Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo, Av. Vitória, 950, Forte São João, 29.017-950, Vitória, ES, Brasil. 1 rosangelacardoso@terra.com.br
NUTRIÇÃO
RESUMO Transtornos Alimentares (TA) podem ser definidos como síndromes de comportamento, caracterizadas por grandes modificações na conduta alimentar e na distorção da imagem corporal dos indivíduos afetados, de gênese multifatorial, dos quais Anorexia Nervosa (AN) e Bulimia Nervosa (BN) são os tipos mais frequentes. Na América Latina há escassez de estudos epidemiológicos de TA em homens bem como na população esportiva e profissional dessa área. Este trabalho buscou avaliar o estado nutricional e detectar a prevalência de sintomas de AN, BN e insatisfação com a imagem corporal, em homens universitários do curso de Educação Física e associar a presença e o desenvolvimento desses sintomas a variáveis econômicas, antropométricas e à fase do curso. O estudo transversal realizado com 66 indivíduos estudantes de uma faculdade particular de Vitória (ES) constou de avaliação antropométrica e da autoaplicação dos seguintes instrumentos: EatingAttitudes Test (EAT), BulimicInvestigatory TestEdinburg (BITE), e BodyShapeQuestionnaire (BSQ). Para análise dos dados a população foi dividida em Grupo I composto por estudantes do 1º ao 4º período e Grupo II composto pelos demais indivíduos. Os resultados obtidos corroboram o que diz a literatura acerca da dificuldade de detectar sintomas de TA em homens, uma vez que, da população estudada, 22,7% apresentou riscos para desenvolver AN, 90,1% não apresentou sintomas para BN e 89,4% não apresentou insatisfação com sua imagem corporal.Outros estudos devem ser realizados para identificação de novos fatores que facilitem a compreensão dessa síndrome nessa população. Palavras-chave: Anorexia. Bulimia. Transtorno Alimentar. Abstract Eating Disorders (ED) can be defined as behavioral syndromes characterized by major changes in the food intake and a distorted body image of affected individuals, multifactorial origin, with Anorexia Nervosa (AN) and Bulimia Nervosa (BN) being the most frequent types. In Latin America there is shortage of epidemiological studies of ED in men as well as in the sports related and professional population of the area. This work sought to discover the prevalence of symptoms of AN, BN and dissatisfaction with the body image in men attending a college level course of physical education and associate the presence and the development of these symptoms with economic variables, height, weight, and body fat and year in college. The cross-sectional study conducted with 66 individuals, college students in Vitoria (ES), featured evaluation the height, weight, and body fat and self-applying the following instruments: Eating Attitudes Test (EAT), Bulimic Investigatory Test Edinburg (BITE), and Body Shape Questionnaire (BSQ). For data analysis the population was divided into group I - composed of students from 1st to 4th period; and group II – composed of other individuals. The results obtained demonstrated that found in the literature about the difficulty of detecting symptoms of ED in men, since in the studied population, 22.7% presented risks to develop NA, 90.1% did not present symptoms for BN and 89.4% did not register dissatisfaction with their body image. Other studies should be conducted to identify new factors that facilitate the understanding of the syndrome in this population. Keywords: Anorexia. Bulimia. Eating Disorders. Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 51-58
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Alessandra Rodrigues Garcia dos Santos, Ana Clara D’Ávila Guedes, Rosângela Cardoso e Vanessa Frasson
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1 Introdução Transtornos Alimentares (TA) podem ser definidos como síndromes de comportamento (Luz et al., 2006a), caracterizadas por grandes modificações na conduta alimentar e na distorção da imagem corporal dos indivíduos afetados, de gênese multifatorial composta por predisposições genéticas, socioculturais e vulnerabilidades biológicas e psicológicas e dos quais Anorexia Nervosa (AN) e Bulimia Nervosa (BN) são os tipos mais frequentes (Morgan et al., 2002). A AN caracteriza-se por severa e intencional perda de peso à custa de dietas extremamente rígidas com busca desenfreada pela magreza, distorção grosseira da imagem corporal e alterações endócrinas identificadas pela amenorréia nas mulheres e perda do interesse sexual nos homens (Claudino & Borges, 2002). A BN por sua vez, é caracterizada pela ingestão compulsiva e rápida de grande quantidade de alimento, com pouco ou nenhum prazer, alternada com comportamento purgativo: vômitos autoinduzidos, abuso de laxantes e diuréticos, jejuns e aliado ao medo mórbido de engordar (Cordás & Claudino, 2002). A preocupação excessiva com o corpo e a imagem corporal, além da distorção desta, está relacionada tanto com o desenvolvimento da BN quanto da AN, tendo um papel sintomatológico e prognóstico relevante nesses TA (Costa, 2007; Saikali, 2004). Embora os dois primeiros casos de AN, relatados por Richard Morton em 1689 refiram-se a um paciente do sexo feminino e outro do sexo masculino, a prevalência dos TA em homens é baixa, e a literatura relata uma proporção média de homens com TA da ordem de 1:10, variando, conforme os critérios utilizados até 1:20. A dificuldade do diagnóstico na população masculina é apontada por Melin & Araújo (2002) como a principal causa da baixa frequência de TA nesta população. Apesar de bastante similares em ambos os gêneros, os TA em homens apresentam algumas diferenças que precisam ser ressaltadas, tais quais: os homens estão mais satisfeitos com seus corpos e os percebem com menos distorção, ou seja, estão mais preocupados com a forma física e a 52
massa corporal e usam menos laxantes e pílulas para emagrecer. Outra diferença a ser destacada é a prática de atividade física como efeito purgativo por parte dos homens e o vômito por parte das mulheres (Weltzinet al., 2005). Na América Latina, há escassez de estudos epidemiológicos de TA em homens bem como na população esportiva e em profissionais dessa área (Costa et al., 2007), embora alguns estudos relatem serem os alunos ingressantes na universidade e da área de saúde os mais susceptíveis ao desenvolvimento de TA, por ser a estética corporal, nesses casos, considerada um valor agregado (Vieira et al., 2006). Esta pesquisa tem como objetivo detectar a prevalência de sintomas de TA entre homens universitários do curso de Educação Física de uma faculdade privada do município de Vitória – ES e associar a presença e o desenvolvimento desses sintomas à fase do curso escolhido, à imagem corporal, orientação sexual e prática de atividade física dos indivíduos pesquisados.
2 Materiais e Métodos Trata-se de um estudo transversal realizado com estudantes de Educação Física do sexo masculino regularmente matriculados, no segundo semestre de 2007, de uma faculdade privada do município de Vitória, ES. Ao longo de duas semanas do mês de novembro, do ano 2007 as pesquisadoras visitaram todas as turmas do referido curso e explicaram aos participantes os objetivos da pesquisa, sendo que 66, num processo voluntário, aceitaram participar desta após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Todos responderam aos questionários: Eating Attitudes Test – EAT, Bulimic Investigatory Test, Edinburg – BITE e Body Shape Questionnaire – BSQ, bem como ao questionário com base no Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB). A este último foram inseridas três questões semi-estruturadas com o objetivo de identificar a orientação sexual dos pesquisados, aferir a modalidade física praticada e sua frequência. A avaliação antropométrica consistiu da aferição da estatura, peso e percentual de gordura corporal e posterior cálculo do Índice de Massa
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Corporal (IMC). Além disso, foi preenchido um formulário com dados como: idade, data de nascimento e período do curso. O perfil socioeconômico da população estudada foi traçado com base no Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB), desenvolvido pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP), que permite a estratificação da população em cinco classes econômicas (de A até E) por meio da avaliação da contagem de pontos estabelecida considerando o grau de instrução do chefe da família, a presença de empregada mensalista e a posse dos seguintes bens: televisor em cores, rádio, banheiro, automóvel, aspirador de pó, máquina de lavar, videocassete e/ou DVD, geladeira e freezer. A presença de sintomas de TA foi detectada pelaavaliação de dois questionários auto-aplicáveis EAT-2613 e BITE14. O questionário EAT-26 é um instrumento que possui 26 questões estruturadas, cujas respostas apresentam a seguinte pontuação: sempre – 3 pontos, muito frequentemente – 2 pontos, frequentemente – 1 ponto e as demais respostas (às vezes, raramente e nunca) não recebem pontuação. Inicialmente desenvolvido para detectar sintomas de AN, atualmente é aplicado para identificação de disfunções alimentares em geral. Sua pontuação mínima é zero e a máxima corresponde a 78 pontos. O escore maior que 20 foi considerado como sugestivo de risco para TA e menor que 20 ausência de TA. O questionário BITE14 é um questionário composto por 33 questões com duas subescalas: de sintomas – formada por todas as questões, exceto as de número 6, 7 e 27 e de gravidade, formada pelas questões 6, 7 e 27. As questões 1, 13, 21, 23 e 31 valem um ponto para a resposta “Não” e, as outras vinte e cinco (25) questões recebem um ponto para a resposta “Sim”. A máxima pontuação possível é de trinta (30) pontos. A escala de sintomas pode ser subdividida em quatro grupos: de 20 ou mais pontos, de 10 a 14 pontos, de 15 a 19 pontos e pontuação abaixo de 1014 correspondendo, respectivamente a: grande probabilidade para diagnóstico de bulimia nervosa, hábito alimentar não usual, categoria que pode refletir um grupo subclínico de bulímicos e limites normais de padrão alimentar. A escala de gravidade é utilizada quando o escore na escala de sintomas é superior a 10 e Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 51-58
mede a gravidade do comportamento compulsivo e purgativo, de acordo com a frequência com que ocorrem. Sua pontuação máxima é de 18 pontos divididos em três grupos: 5 ou mais pontos, 10 ou mais pontos e abaixo de 5 pontos. Para a primeira, a classificação é considerada clinicamente significante; para a segunda, indica alta gravidade; e para a terceira considera-se insignificante. Já a imagem corporal da população estudada foi avaliada pelo BSQ15, teste composto de 34 questões acerca da preocupação com a imagem corporal, possui uma escala crescente de 1 a 6, cujo 1 corresponde a nunca e 6 a sempre. Este teste mede a preocupação com a forma do corpo, autodepreciação devido a aparência física e a sensação de sobrepeso. A pontuação varia de 0 a 144 pontos e escore inferior a 80 é classificado como “Sem Insatisfação”, de 81 a 110 “Insatisfação Leve”, 111 a 140 “Insatisfação Moderada”, e se a pontuação for superior a 140 “Insatisfação Grave” de Imagem Corporal. Na avaliação antropométrica, constituída da aferição de peso e percentual de gordura corporal, utilizou-se a balança eletrônica da marca Tanita com capacidade para 150 Kg e graduação em 100g. A estatura foi aferida utilizando-se estadiômetro da marca Alturexata, de 0 a 2 metros, com haste própria. O diagnóstico nutricional foi baseado nos resultados de IMC, com pontos de corte16 propostos pela Organização Mundial de Saúde – OMS. O percentual de gordura corporal foi avaliado juntamente com a aferição do peso, com o uso da balança eletrônica da marca Tanita, de acordo com a idade e a classificação de Heyward & Stolarczyk (1996). A codificação e a análise estatística dos dados foram realizadas utilizando-se o programa Excel e o teste qui quadrado. O protocolo de intervenção no estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade Salesiana de Vitória, parecer nº 051/2007 e seguiu as normas da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde sobre pesquisa envolvendo seres humanos.
3 Resultados Aceitaram participar efetivamente do estudo 66 estudantes do sexo masculino, regularmente 53
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matriculados no curso de Educação Física. A redução da amostra final ocorreu em função do não comparecimento dos alunos no período da coleta de dados e por preenchimento incorreto dos questionários. A Tabela 1 apresenta os resultados demográfico-econômico-antropométricos da população estudada, cuja faixa etária variou de 18 a 49 anos de idade, sendo 13,6% (9) adolescentes e 86,4% (57) adultos. Pôde-se observar que na amostra houve predomínio de homens adultos. Com relação à classificação econômica observa-se acentuado predomínio das classes B1,2 (50%), seguido das classes A1,2 (31,8%) e C (18,2%). Da avaliação antropométrica inferi-se que 56,1% são classificados como eutróficos, 30,3% como sobrepeso e 9,1% como obesos. A média de IMC encontrada na amostra foi de 24,9 Kg/m² (DP=3,4). A classificação do percentual de gordura corporal por sua vez situa mais da metade da população estudada (69,7%) como acima da média desejada e muito alto. Observa-se que os resultados são
mantidos mesmo após a divisão da população em dois grupos: até a primeira metade do curso (4º período) – Grupo I e a partir da 2ª metade do curso (a partir do 5º período) – Grupo II. De acordo com o EAT-26 (escores ≥ 10), 22,7% dos indivíduos estudados apresentaram riscos para desenvolverem AN, sendo observado um maior percentual (31%) no Grupo II em relação ao Grupo I (16,2%) e que 77,3% da população estudada não apresenta risco de desenvolver AN. A maioria dos estudantes não apresenta sintomas de BN, o que corresponde a 90,1% da população estudada. Contudo, foi observado maior percentual de indivíduos com Padrão Alimentar Não Usual no Grupo I (10,8%) em relação ao Grupo II (6,9%). O resultado da sintomatologia para insatisfação com a imagem corporal de acordo com a pontuação do BSQ revela um maior percentual de insatisfação com a imagem corporal, de leve a moderado, no Grupo II (13,8%), embora 89,4% de toda a população estudada não apresentem insatisfação com sua imagem corporal.
Tabela 1 - Classificação Demográfica, Econômica e Antropométrica da população estudada
Grupo I (%) Idade Adolescente Adulto Classe Econômica A1 A2 B1 B2 C D AvaliaçãoAntropométrica (IMC) Baixo Peso Eutrófico Sobrepeso Obesidade Sem classificação % de Gordura Corporal Muito Baixo Abaixo da Média Média Acima da Média Muito Alto Sem classificação 54
Grupo II (%)
Total (%)
24,3 75,7
0 100
13,6 86,4
2,7 29,7 13,5 29,7 24,4 0
3,4 27,6 24,2 34,5 10,3 0
3 28,8 18,2 31,8 18,2 0
0 59,5 32,4 8,1
0 51,7 27,6 10,3 10,3
0 56,1 30,3 9,1 4,5
0 18,9 2,7 62,2 16,2
0 13,8 10,3 34,5 24,1 17,3
0 16,7 6,1 50 19,7 7,5
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Tabela 2 – Frequência de Atividade Física e Modalidade Esportiva Praticada da população estudada – Vitória, ES.
Grupo I Grupo II (%) (%)
Total (%)
Frequência de Atividade Física ≥ 6X Sem
13,5
24,1
18,2
≥ 4 ≤ 5X Sem
29,7
41,4
34,8
≥ 1 ≤ 3X Sem
48,7
24,1
37,9
< 1X Sem
2,7
3,5
3,0
Nenhuma
5,4
6,9
6,1
Modalidade Esportiva Musculação
40,5
51,7
45,5
Futebol
29,7
10,3
21,2
Corrida
16,3
17,2
16,7
Diversas
8,1
13,8
10,6
Não Pratica
5,4
7,0
6,1
Foi observado que a grande maioria dos estudantes pratica atividade física, sendo os que não praticam e os que praticam menos de uma vez por semana perfazem um percentual reduzido da amostra, totalizando respectivamente 3% e 6,1%. A modalidade esportiva mais praticada entre os indivíduos avaliados em ambos os Grupos foi a musculação. De acordo com a orientação sexual foi observado que apenas 3% (n=2) da amostra estudada declararam-se homossexuais, observando-se que todos os entrevistados do Grupo I declararam-se heterossexuais. Não foi observado, pelo Teste Qui Quadrado, associação entre a presença de sintoma de (ou desenvolvimento) de TA em nenhuma das variáveis: idade, nível socioeconômico, IMC, classificação do percentual de gordura corporal, modalidade esportiva praticada e frequência da atividade física e orientação sexual. Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 51-58
4 Discussão Apesar da escassez de estudos epidemiológicos acerca da prevalência de sintomas de TA na população masculina, a literatura (Melin & Araujo, 2002; Weltzinet al., 2005; Carlatet al., 1997) os contabiliza em 10% de todos os pacientes bulímicos ou anoréticos. Neste estudo, observou-se que 22,7% dos pesquisados apresentaram algum risco para desenvolver AN, sendo que 3% apresentaram alto risco (escore >20 do EAT) para AN. O risco para desenvolver BN esteve presente em 9,1% da amostra e 31,8% apresentou risco para desenvolver AN e/ou BN. Importa destacar que 31% dos estudantes da segunda metade do curso – Grupo II apresentaram risco de desenvolverem AN, contra 16% do Grupo I, correspondente à primeira metade do curso. Contudo, 5,4% dos indivíduos deste grupo apresentaram alto risco de desenvolverem AN, contra nenhum do Grupo II. Os resultados obtidos no presente estudo, embora com percentual mais elevado, estão de acordo com os alcançados em outros estudos realizados com universitários da área de saúde, citados como grupo de risco para TA (Luz et al., 2006b). Em um estudo realizado com o objetivo de avaliar a frequência de sintomas de TA, imagem corporal e nível de atividade física em universitários de uma universidade pública de Minas Gerais (Luz et al., 2006a), foi observado que 4,7% dos estudantes apresentaram sintomas de AN, 3% apresentaram sintomas de BN e 5,5% apresentaram sintomas para TA (AN e/ou BN). Outro estudo que visava avaliar a presença de sintomas de TA, a satisfação com a imagem corporal e a atividade física em universitários de cursos da área da saúde (Nutrição e Educação Física) e de outra área (Matemática) (Luz et al., 2003a), identificou a prevalência de 11,5%de sintomas de TA nos estudantes de Educação Física. Vale ressaltar ainda que os resultados obtidos com esta pesquisa também vão de encontro aos obtidos em outros estudos que apontam ser a BN, dentre os TA, mais frequente, tanto na população masculina quanto na feminina (Luz et al., 2006a; Melin & Araújo, 2002; Weltzinet al., 2005; Carlatet al., 1997; Luz et al., 2007). Por outro lado, estudos realizados com estudantes recém-ingressos no curso de Educação Física de uma instituição privada de Belo Horizonte, 55
NUTRIÇÃO
A Tabela 2 apresenta os resultados para a frequência de atividade física e modalidade esportiva praticada da população estudada. Levando em consideração a prática de atividade física do total da amostra estudada, houve predomínio da frequência de atividade física de 1 a 3 vezes por semana (37,9%), seguido da frequência de 4 a 5 vezes na semana (34,8%).
NUTRIÇÃO
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identificaram que 2,7% da população apresentava sintomas para desenvolvimento de BN (Luz et al., 2003b) e 10,9% para desenvolvimento de NA (Luz et al., 2003c). Tais estudos corroboram os resultados obtidos na presente pesquisa. Da mesma forma, em um estudo desenvolvido por Luz et al. (2002) com o objetivo de avaliar o risco para BN e distorção de imagem corporal em estudantes do último ano da graduação em Educação Física em uma faculdade de Belo Horizonte, todos os homens avaliados apresentaram escala baixa para desenvolvimento desse TA, resultado semelhante ao do presente estudo em que 6,9% dos estudantes da segunda metade do curso (Grupo II) apresentaram um padrão alimentar não usual contra 10,8% do Grupo I, apesar de não ter sido observado associação entre o período do curso e a presença de sintoma de TA. A literatura destaca o papel sintomatológico e o prognóstico da insatisfação e distorção da imagem corporal no TA (Saikaliet al., 2004) e embora o sexo feminino seja apontado como o mais vulnerável às pressões socioeconômicas e culturais, o homem, cuja atividade impõe padrões estéticos mais rígidos e modelo de corpo e peso saudável (Costa et al., 2007; Luz et al., 2002; Bosi et al., 2006), também é muito susceptível de apresentar distorção da imagem corporal. Contudo, diferente das mulheres (Fiates & Salles, 2001) que desejam estar mais magras, os homens relatam maior preocupação com a forma física e ganho de massa muscular (Melin & Araújo, 2002; Pope et al., 2000). Diversos estudos associam a imagem corporal à presença de sintomas de TA e ao curso frequentado e também inferem que os estudantes de Educação Física, talvez pelo fato de serem mais fisicamente ativos, apresentam menor insatisfação com a imagem corporal quando comparados a estudantes de outras áreas, sejam elas da saúde ou não (Luz et al., 2006a; Luz et al., 2006b; Luz et al., 2003a; Luz et al., 2002; Oliveira & Luz, 2006). Em um estudo realizado por Oliveira & Luz (2006), foi observado que 15% dos homens, estudantes do último ano da graduação em Educação Física de uma faculdade de Belo Horizonte, apresentaram algum tipo de distorção da imagem corporal. No presente estudo, 13,8% dos estudantes da segunda metade do curso de Educação Física (Grupo II) apresentaram insatisfação com a ima56
gem corporal. Por outro lado, pesquisa realizada entre estudantes do primeiro ano do curso de Educação Física para avaliar o grau de insatisfação da imagem corporal encontrou 14,8% dos estudantes do sexo masculino insatisfeitos com sua imagem corporal (Luz et al., 2003d), resultado maior que o encontrado na presente pesquisa, quando apenas 8,1% dos estudantes da primeira metade do curso de Educação Física mostraram-se insatisfeitos com a imagem corporal. De acordo com o percentual de gordura corporal da população estudada, tanto no Grupo I como no Grupo II grande parte dos estudantes foram classificados como acima da média desejada, representando respectivamente 62,2% e 34,5%. Foi observado também que no Grupo I a classificação: abaixo da média, foi maior (18,9%) em comparação ao Grupo II (13,8%). No entanto, a classificação: muito alto, foi maior no Grupo II (24,1%) quando comparada com o Grupo I (16,2%). Na presente pesquisa nota-se que é baixa a preocupação com o percentual de gordura corporal, já que a metade da população estudada encontra-se com o percentual acima da média desejada. No entanto, em atletas e em praticantes de atividades físicas que precisam de massa muscular bem desenvolvida nota-se que a preocupação com o percentual de gordura corporal é maior, com isso surgem novas preocupações em relação ao peso e a imagem corporal, o que pode ser identificado como sintomas de risco para desenvolvimento de TA. Com relação à associação da orientação sexual da população estudada e a presença de sintomas de TA, alguns estudos indicam ser a homossexualidade masculina fator de risco para desenvolvimento de TA (Melin & Araújo, 2002; Carlat et al., 1997). Um estudo realizado nos Estados Unidos constatou que cerca de 20% dos homossexuais masculinos sofrem de algum tipo de TA (Melin & Araújo, 2002) enquanto outro identificou 42% dos homens com BN em tratamento no Hospital Geral de Massachussets, com orientação homossexual (Carlat et al., 1997). No presente estudo, apesar da baixa frequência de declaração de homossexualidade (3%), todos que se declararam homossexuais apresentaram risco de desenvolverem AN e/ou BN, além de apresentarem insatisfação de leve a moderada com a imagem corporal.
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Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 51-58
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NUTRIÇÃO
A atividade física é muitas vezes utilizada inadequadamente como forma de alcançar padrões rígidos de peso e desempenhos corporais específicos, sendo apontada como fator de risco para desenvolvimento de TA (Luz et al., 2003b). De modo contrário, outro estudo (Assunção et al., 2002) afirma que indivíduos com TA praticam exercício excessivo em decorrência do próprio TA, porém não foi encontrada relação entre desenvolvimento de TA em decorrência de exercício físico excessivo. No presente estudo, 72,7% dos estudantes praticam atividade física entre uma e cinco vezes na semana, embora tal prática não tenha sido associada à presença de sintomas de TA. Estudo desenvolvido em Belo Horizonte com 254 estudantes ingressantes nos cursos de Nutrição e Educação Física com o objetivo de avaliar a presença de sintomas de BN e atividade física, revelou serem fisicamente ativos 88,6% dos alunos recém ingressos no curso de Educação Física, além de apresentarem a menor frequência de presença de sintomas de BN (Luz et al., 2003d). Este estudo corrobora o que diz a literatura sobre o assunto: a extrema dificuldade de detectar sintomas de TA na população masculina em função das especificidades do gênero não estarem contempladas nas questões que compõem os instrumentos de investigação de sintomas de TA. Apesar da maioria dos resultados obtidos estarem de acordo com a maioria dos estudos realizados com a mesma população, cabe destacar a alta prevalência (22,7%) de risco para desenvolvimento de AN nesta população, valor maior que o esperado. Não foi encontrada associação entre a presença de sintomas de TA e a fase do curso, à frequência de atividade física ou a orientação sexual dos indivíduos pesquisados. Embora este estudo não tenha encontrado associação entre orientação sexual e o desenvolvimento de TA, é importante considerar tal fator como risco, especialmente a homossexualidade, em virtude dos dois casos encontrados apresentarem sintomas de TA. Além disso, é importante a realização de trabalhos de conscientização destes estudantes, futuros profissionais que devem desenvolver em seus alunos hábitos saudáveis e de equilíbrio com sua imagem corporal. Outros estudos devem ser realizados para identificação de novos fatores que facilitem a compreensão dessa síndrome nessa população.
Alessandra Rodrigues Garcia dos Santos, Ana Clara D’Ávila Guedes, Rosângela Cardoso e Vanessa Frasson
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NUTRIÇÃO
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Episteme - Revista Científica da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Fibromialgia: Qualidade de Vida e Sexualidade Fernanda Reis1; Divana Maria Campodell’Orto Silva1; Fabiany da Silva Tongo1; Ms. Celine Cristina Raimundo Pedrozo1; Ms. Maria Carolina Davel Lemos2 Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo. Av. Vitória 950, Forte São João, 29040-330, Vitoria, ES, Brasil. Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP. Rua Raymundo Vieira do Espírito Santo, nº 39, apto 302, BL 2 Bairro de Lourdes, 29042-752, Vitória, ES, Brasil. 1 fabianyst@hotmail.com; 1fernandanodiva@hotmail.com; 1cpedrozo@salesiano.com.br; 2marol.mc@ibest.com.br 1
2
RESUMO A fibromialgia (SF) é uma síndrome reumatológica que acomete em sua maioria mulheres, causando impactos nas atividades de vida diária das portadoras. O objetivo do presente trabalho foi levantar dados sobre os impactos da FM na qualidade de vida e na sexualidade das pacientes utilizando os questionários SF-36, FIBRO- FIQ e Inventário de Satisfação Sexual Golombok e Rust – versão feminina (GRISS). O método de Estudo Descritivo Transversal foi realizado no Ambulatório de Reumatologia do Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes-HUCAM. Foram selecionadas 17 mulheres dos 18 aos 60 anos que tivessem diagnóstico fechado de Fibromialgia. Foram analisadas de maneira descritiva cada um dos questionários aplicados. A idade das pacientes variou entre 40 e 60 anos (média=57 anos). A partir dos questionários, pode-se observar modificação dos hábitos para capacidade funcional (FIQ 15,12±1,7 e SF-36 29,11±17,7), emocional (SF-36 25,00±29,31), e desinteresse sexual (76,4%). Os dados obtidos pela aplicação dos questionários apontam que a diminuição da qualidade de vida também interfere na sexualidade das entrevistadas. Os resultados indicam a possível redução na qualidade de vida sexual, em decorrência dos sinais e sintomas associados da doença. Palavras-chave: Fibromialgia. Qualidade de Vida. Sexualidade. Questionários.
1 Introdução A sexualidade é própria do ser humano, embora ainda seja encarada como um tabu social. Qualquer interferência no desejo sexual, ou melhor, a falta dele corresponde a um proVitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 59-65
FISIOTERAPIA
ABSTRACT Fibromyalgia is a rheumatologic syndrome more common in women. It has a deep impact in the daily life of its carriers. These women used to have a worse quality of life, and even a worse sexual life, because of the chronic pain. The main objective of this study was to associate the impact of Fibromyalgia in the quality of life and in the sexuality of patients using the following questionnaires: SF-36, FIBRO-FIQ and the Golombok-Rust Inventory of Sexual Satisfaction (GRISS). The Transverse Descriptive Study was realized at the rheumatology’s ambulatory of the Cassiano Antônio de Moraes Universitarian Hospital (Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes – HUCAM). We selected 17 women from 18 to 60 years old diagnosed with Fibromyalgia. Then, we made a descriptive analysis of each answered questionnaire. The mean age was 57 years. Most of the selected women are married, with an active sexual life. These women’s also have some kind of physical impairment (FIQ 15,12±1,7 e SF-36 29,11±17,7) and emotional impairment (SF-36 25,00±29,31). 76.4% related sexual disinterest. Fibromyalgia’s symptoms (fatigue, morning stiffness, pain, anxiety, depression and etc) reduce quality of life and sexual satisfaction of its carriers. The questionnaire´s results lead us to believe that fibromyalgia may reduce the quality of sexual life. Key-Words: Fibromyalgia. Quality of Life. Sexuality. Questionnaires.
blema de saúde, pois afeta a forma pelo qual o indivíduo encara a sociedade. A sexualidade humana excede o componente fisiológico e constitui um dos aspectos mais importantes da existência. Abrange pela qual cada pessoa expressa e recebe afetos e, portanto, engloba 59
FISIOTERAPIA
Fernanda Reis, Divana Maria Campodell’Orto Silva, Fabiany da Silva Tongo, Celine Cristina Raimundo Pedrozo e Maria Carolina Davel Lemos
também a autoestima. Com elevadas taxas de prevalência, as disfunções sexuais femininas alcançaram status de importante problema da saúde da mulher, com repercussões significativas na qualidade de vida. De acordo com a literatura pesquisada, a prevalência de interesse sexual diminuído varia de 17-55%. Acomete em torno de 10% das mulheres até 49 anos; dobra dos 50 aos 65 anos, para 22%; dobra novamente, dos 60-74 anos, para 47% (Etienne & Waitman, 2006; Abdo & Fleury, 2009; Costa et al., 2004), ou seja, a diminuição do interesse sexual ocorre naturalmente com o passar da idade, porém pode fugir ao componente fisiológico e corresponder a um componente patológico. Existem diferentes formas de distúrbios da sexualidade (Etienne & Waitman, 2006; Abdo & Fleury, 2009), porém esta pesquisa não tem por finalidade a caracterização de cada uma dessas disfunções, o foco desse trabalho é o levantamento de dados que apontem a Síndrome da Fibromialgia (FM) como possível fator para redução da qualidade de vida e sexualidade das portadoras. Sabe-se que a FM é uma doença de ordem reumatológica de etiologia desconhecida que afeta principalmente mulheres dos 15 aos 60 anos, caracterizada pela presença de dor musculoesquelética crônica e difusa em pelo menos 11 dos 18 tender points ou pontos dolorosos de dor. Geralmente está associada a distúrbios do sono, fadiga, rigidez matinal, cefaléia crônica, constipação intestinal e distúrbios psíquicos. Por se tratar de um quadro de dor às vezes tão intenso, acaba tendo grande impacto no cotidiano e na qualidade de vida de seus portadores (Marque et al., 2006; Chiarelo et al., 2005; Moreira & Carvalho, 2001; Skare, 1999; Berber et al., 2009; Perea, 2009; Ribeiro & Pato, 2004; Cavalcante, 2006). Ao se compreender a sexualidade como parte da qualidade de vida de cada um, qualquer interferência na QV, também poderia alterar a sexualidade, dessa maneira procurar entender essa alteração nas pacientes de FM, torna-se um aliado no tratamento multidisciplinar da doença. A motivação para a realização desse artigo baseouse nos poucos estudos que avaliem o aspecto sexual em pacientes portadoras da Fibromialgia (Costa et al., 2004; Campos & Neto, 2008; Martinez, 2009). 60
2 Materiais e Métodos O estudo foi do tipo qualitativo descritivo transversal. O levantamento bibliográfico foi coletado na biblioteca virtual Bireme, nos bancos de dados Scielo e Lilacs, por meio da seleção de artigos que retratassem sobre qualidade de vida, fibromialgia, disfunção sexual e sexualidade. Para a procura na biblioteca virtual foram utilizadas as palavras chaves: fibromialgia, qualidade de vida, disfunção sexual, sexualidade e cruzamento dessas, além de suas similares em inglês. A pesquisa aconteceu entre os meses de fevereiro a abril de 2010, na casa seis (06) de Reumatologia do Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes-HUCAM, por meio de uma visita semanal no horário de sete às onze horas, período em que ocorre a consulta médica de rotina das pacientes (pctes) com FM. O estudo foi desenvolvido apenas e exclusivamente pela aplicação dos questionários e análise das respostas, assim não houve qualquer outra forma de intervenção. Foram excluídas desse estudo mulheres sem diagnóstico médico fechado para FM, fora da faixa etária de 18 aos 60 anos, as que se negaram a assinar o termo de consentimento ou aquelas que não responderam a qualquer uma das perguntas, histórico pregresso de disfunção sexual, quadro de incontinência urinária e histórico de abuso sexual. Para inclusão utilizamos os dados opostos dos já citados, assim como pacientes que apresentarem outras doenças reumatológicas também serão incluídas no estudo. Ao total, foram entrevistadas 19 mulheres sendo que duas recusaram a responder o questionário de GRISS, devido a constrangimento causado pelas perguntas do questionário, sendo automaticamente excluídas do estudo. Dentre essas perguntas pode-se citar: – Você acha que sua vagina é tão apertada que o pênis do seu parceiro não pode entrar? – Você consegue ter orgasmo com seu parceiro? – É desagradável acariciar e tocar o pênis do seu parceiro? – Seu parceiro consegue colocar o pênis na sua vagina sem que você sinta desconforto? – Você consegue ter orgasmo quando seu parceiro estimula seu clitóris durante as carícias iniciais?
Episteme - Revista Científica da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Fibromialgia: qualidade de vida e sexualidade
Foram utilizados para essa pesquisa os questionários: SF- 36, Fibro-FIQ e GRISS. O Questionário sobre Impacto da Fibromialgia- FIQ15, depressão, rigidez, dor, ansiedade e limitações nas atividades de vida diárias, com enfoque na interferência da doença na funcionalidade. O Inventário de Qualidade de Vida- SF-3616 voltado para a QV consiste de duas partes, sendo a primeira para avaliar o Estado de Saúde (com questões relacionadas à mobilidade física, dor, sono, energia, isolamento social e reações emocionais) e a segunda parte para avaliar o impacto da doença na vida diária do paciente. Esse questionário apresenta um escore final de 0 a 100, no qual zero corresponde ao pior estado geral de saúde e 100 ao melhor estado de saúde, sendo constituído por 36 questões, subdivididos em 8 escalas ou componentes: Capacidade Funcional (10 itens); Aspecto Físico (04 itens); Dor (02 itens); Estado Geral de Saúde (05 itens); Vitalidade (04 itens); Aspecto Social (03 itens); Aspecto Emocional (03 itens) e Saúde Mental (05 itens). O Inventário de Satisfação Sexual - versão para mulheres- GRISS (Etienne & Waitman, 2006), composto de 28 perguntas, avaliam a resposta sexual e o relacionamento com o parceiro. As respostas variam de acordo com a intensidade, de nenhuma até a mais alta intensidade observada ou experimentada pela mulher, em relação ao questionamento realizado em cada tópico do instrumento de avaliação. Como nesse estudo pretende-se abordar a sexualidade de uma maneira global optou-se pelo maior destaque às perguntas 1, 3, 7, 10, 16, 18, 25 e 27.
3 Resultados Foram entrevistadas 19 pacientes, duas se recusaram a responder o questionário de GRISS por se sentirem constrangidas com as perguntas, sendo estas excluídas do estudo, totalizando assim uma amostra composta por 17 mulheres. A tabela 1 mostra os dados gerais das pacientes, cuja idade média é de 57 anos com predomínio de mulheres casadas (64,7%), todas praticantes de atividade sexual. Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 59-65
Tabela 1 - Dados Gerais das pacientes (média,DP E %)
VARIÁVEIS IDADE (média e DP) SEXO FEMININO ESTADO CIVIL ATIVIDADE SEXUAL DP = desvio padrão
(média, DP e %) 57,05±4,11 100% Solteiras 11,76% Divorciadas 17,60% Casadas 64,70% Viúvas 5,88% 100%
A tabela 2 demonstra o resultado de cada domínio do SF-36 – Capacidade funcional, Aspecto físico, Dor, Estado geral de saúde, Vitalidade, Aspecto Social, Aspecto emocional e Saúde mental. O escore varia de zero (pior escore) a 100 (melhor escore). Segundo o levantamento de dados, pode-se sugerir que a doença interfere em todos os 8 aspectos do questionário, com maior intensidade nos domínios referentes ao emocional (25,85±26,78), físico (25,00±29,31), e capacidade funcional (29,11±17,7). No aspecto físico, a maioria das pacientes, nos quatro subitens da questão quatro, marcaram a alternativa SIM, ou seja, tiveram comprometimento no trabalho e nas atividades diárias regulares. Já no aspecto social, representadas pelas questões seis e dez, referentes à socialização das entrevistadas, a dor parece restringir, mas não impedir as pacientes das suas atividades de integração social. O domínio referente ao psicológico dessas mulheres parece sofrer alteração pela diminuição da capacidade funcional. A tabela 3 refere-se ao resultado de cada domínio do FIQ- capacidade funcional, sentir-se bem, habilidade no trabalho, dor, fadiga, sono, rigidez matinal, ansiedade e depressão. O escore varia de 0 a 3 para o aspecto capacidade funcional e de 0 a 10 para os demais domínios. De acordo com os dados obtidos a doença interfere em todos os domínios do questionário principalmente na ansiedade (7,64±2,25), depressão (7,70±2,20) e sentir-se bem (4,36±2,92). Durante as entrevistas observou-se maiores reclamações nas questões pertinentes ao comportamento psicológico e físico por parte das pacientes. Segundo os dados obtidos a doença sugere restrição para as variáveis do FIQ (Chiarelo et al., 2005; Moreira & Carvalho, 2001; Skare, 1999; Berber et al., 2009; Perea, 2003; Ribeiro & Pato, 2004; Cavalcante, 2006; Martinez, 2009). 61
FISIOTERAPIA
– Sua vagina fica molhada durante a relação sexual?
Fernanda Reis, Divana Maria Campodell’Orto Silva, Fabiany da Silva Tongo, Celine Cristina Raimundo Pedrozo e Maria Carolina Davel Lemos
Tabela 2 - Escores do SF-36
ESCALA Capacidade Funcional Aspecto Físico Dor Estado Geral de Saúde Vitalidade Aspecto Social Aspecto Emocional Saúde Mental
MÉDIA e DP 29,11 ± 17,70 25,00 ± 29,31 26,41 ± 14,34 34,72 ± 15,95 28,82 ± 13,40 42,44 ± 15,95 25,85 ± 26,78 33,88 ± 15,17
MÍNIMO 5 0 0 13,4 10 25 0 16
MÁXIMO 55 75 51 67 55 75 75 60
DP = desvio padrão; Mínimo = menor resultado geral do domínio; Máximo = maior resultado geral do domínio Tabela 3 - FIQ por Domínios
VARIÁVEIS Capacidade Funcional Sentir-se bem Habilidade no Trabalho Dor Fadiga Sono Rigidez Matinal Ansiedade Depressão
MÉDIA e DP 15,12 ± 1,76 4,36 ± 2,92 9,82 ± 3,47 8,47 ± 1,46 4,11 ± 2,64 5,17 ± 3,18 8,4 ± 1,66 7,64 ± 2,25 7,70 ± 2,20
MÍNIMO 11 0 3 5 0 0 4 2 3
MÁXIMO 18 8 14 10 8 10 10 10 10
FISIOTERAPIA
DP = desvio padrão; Mínimo = menor resultado geral do domínio; Máximo = maior resultado geral do domínio
Na tabela 4, está demonstrado o resultado para as 28 perguntas do GRISS, com maior destaque para as oito perguntas que mais tinham relevância sobre a sexualidade geral, dentre as 28 do questionário. Assim, enfatizamos os resultados para as 8 perguntas que se relacionam com o modo pelo qual a paciente encara a vida sexual com o companheiro e como ela se enxerga nesse contexto. Assim 76,4% das entrevistadas apresentaram desinteresse por sexo, 88,3% relataram ficar semanas sem praticar o ato sexual, 70,6% evitam sexo com o parceiro, 17,6% acham satisfatória a vida sexual com o parceiro, 82,3% acham difícil dizer ao parceiro o que gostam na relação sexual, 76,5% acham que faltam amor e afeto na vida sexual com o parceiro, 35,3% acham desagradável ser abraçada ou acariciada pelo parceiro, 23,5% não gostam de ter relação sexual com o parceiro.
4 Discussão A avaliação da qualidade de vida talvez seja o grande desafio do profissional dedicado à 62
melhora da saúde do ser humano. Entretanto, é uma expressão que carrega alto teor de subjetividade (Marques et al., 2006) possuindo várias dimensões, as quais são igualmente importantes e devem ser desenvolvidas com harmonia, integração e equilíbrio. Dessa forma, saúde e doença configuram processos compreendidos como algo contínuo, relacionados aos aspectos econômicos, socioculturais, à experiência pessoal e estilos de vida. Atualmente os questionários tem se tornado um importante instrumento de avaliação da saúde (Costa et al., 2004). Assim, muitos profissionais da saúde passaram a se preocupar com as repercussões das doenças na vida dos indivíduos. No ambulatório que foi realizada a pesquisa, a idade das pacientes capixabas entrevistadas varia entre 40 e 60 anos, com média de 57 anos, todas com vida sexual ativa. Enquanto que achados na literatura referem que a frequência da SF é de 1 a 5% da população em geral, sendo predominante no sexo feminino em 80 a 90% dos casos com maior incidência entre os 30 e 50 anos de idade (Perea, 2003; Dias et al., 2003).
Episteme - Revista Científica da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Fibromialgia: qualidade de vida e sexualidade
Tabela 4 - Questionário de GRISS
Você sente desinteresse por sexo? Você pergunta ao seu parceiro o que ele gosta ou não na vida sexual de vocês? Existem semanas em que você não tem nenhuma relação sexual? Você se excita facilmente? Você está satisfeita com a duração das carícias iniciais antes da penetração? Você acha que sua vagina é tão apertada que o pênis do seu parceiro não pode entrar? Você tenta evitar sexo com seu parceiro? Você consegue ter orgasmo com seu parceiro? Você gosta de abraçar e acariciar o corpo do seu parceiro? Você acha satisfatória a vida sexual com seu parceiro? É possível colocar seu dedo na sua vagina sem desconforto? É desagradável tocar e acariciar o pênis do seu parceiro? Você fica tensa e ansiosa quando seu parceiro quer fazer sexo? Você acha impossível ter orgasmo? Você tem relação sexual mais de duas vezes por semana? Você acha difícil dizer ao seu parceiro o que você gosta ou não na vida sexual de vocês? Seu parceiro consegue por o pênis na sua vagina sem que você sinta desconforto? Você sente que falta amor e afeto na vida sexual com seu parceiro? Você gosta de ter seu sexo acariciado e tocado por seu parceiro? Você se recusa a fazer sexo com seu parceiro? Você consegue ter orgasmo quando seu parceiro estimula seu clitóris durante as carícias iniciais? Você se sente insatisfeita com a duração da penetração? Você sente aversão/repugnância pelo que você e seu parceiro fazem durante a relação sexual? Você acha que sua vagina é tão apertada que o pênis do seu parceiro não pode penetrar muito fundo? É desagradável ser abraçada e acariciada por seu parceiro? A sua vagina fica molhada durante a relação sexual? Você gosta de ter relação sexual com seu parceiro? Acontece de você não ter orgasmo durante a penetração? TOTAL
ALTERNATIVAS (%) O G S 11,8 52,9 23,5 5,9 17,6 0
N 0 52,9
QN 11,8 23,5
GERAL 76,4 17,6
0
0
11,8
41,2
47,1
88,3
23,5 17,6
47,1 35,3
23,5 5,9
0 23,5
5,9 17,6
5,9 41,1
5,9
17,6
23,5
47,1
5,9
53
5,9 23,5 17,6
11,8 41,2 35,5
11,8 11,8 17,6
47,1 5,9 5,9
23,5 17,6 23,5
70,6 23,5 29,4
47,1
11,8
23,5
17,6
0
17,6
23,5
41,2
0
29,4
5,9
35,3
11,8
5,9
17,6
58,9
5,9
64,7
11,8
5,9
11,8
29,4
41,2
70,6
17,6 47,1
11,8 23,5
17,6 23,5
35,3 5,9
17,6 0
52,9 5,9
5,9
0
11,8
17,6
64,7
82,3
29,4
23,5
29,4
17,6
0
17,6
5,9
0
17,6
41,2
35,3
76,5
23,5
23,5
17,6
23,5
11,8
35,3
5,9 23,5
11,8 35,3
5,9 23,5
58,9 11,8
17,6 5,9
76,5 17,7
23,5
29,4
23,5
11,8
11,8
23,6
23,5
0
11,8
41,2
23,5
64,7
0
17,6
35,3
41,2
5,9
47,1
11,8
17,6
35,3
29,4
5,9
35,3
23,5 29,9 0
11,8 35,3 0
23,5 11,8 23,5
29,4 17,6 41,2
11,8 5,9 35,3
41,2 23,5 76,5
FISIOTERAPIA
Questionário de GRISS
100
N = nunca; QN = quase nunca; O = ocasionalmente; G = geralmente; S = sempre; GERAL = G+S Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 59-65
63
FISIOTERAPIA
Fernanda Reis, Divana Maria Campodell’Orto Silva, Fabiany da Silva Tongo, Celine Cristina Raimundo Pedrozo e Maria Carolina Davel Lemos
Do ponto de vista fisiológico a diminuição de serotonina- 5HT e o aumento da substância P, ambos mediadores do sistema nervoso central, possível explicação para o aparecimento da doença, interferem na predisposição a fatores como: ansiedade, depressão, diminuição da vitalidade e diminuição da libido (Ribeiro & Pato, 2004). Talvez por esses fatores, foram levantados dados como os apresentados na tabela 4. Ainda de acordo com a literatura pesquisada, a fibromialgia interfere diretamente na qualidade de vida das afetadas pela doença, desse modo ao entender a QV como a busca pelo bem estar e a sexualidade como parte fundamental das integrações biopsicossociais das entrevistadas, as possíveis interferências na qualidade de vida poderiam evidenciar a possibilidade de a doença impactar também na resposta sexual das entrevistadas. De acordo com os questionários SF-36 e FibroFiq, ambos de qualidade de vida, os dados levantados sugerem o comprometimento da capacidade funcional. Durante as entrevistas, as pacientes relatavam a dificuldade de realizarem as tarefas de costume, tais como trabalhos domésticos, profissionais, e lazer. A importância da sexualidade para uma qualidade de vida plena e satisfatória ainda é um assunto desconfortável, observado principalmente na recusa e/ou constrangimento das entrevistadas durante a pesquisa, porém faz parte das interações biológicas e indispensáveis ao ser humano, pois promove além de prazer, e não apenas da atividade sexual, autoconfiança, vitalidade, aspectos que se relacionam com a autoestima pessoal. Em resumo, faz parte da capacidade funcional tanto quanto trabalhar e interagir socialmente. De acordo com as respostas das pacientes para o questionário GRISS, a maior parte delas parece possuir desinteresse ao sexo e dificuldade de relacionamento com o parceiro, informações que esse tipo de estudo não permite concluir. Em suma os dados obtidos nos três questionários, parece sugerirem a possibilidade de impactação da doença na qualidade de vida e interferência na sexualidade. A alteração da qualidade de vida das fibromiálgicas é um assunto comprovado e largamente discutido no meio científico, porém essa pesquisa por ser um estudo transversal nos impede de con64
cluir a interferência da redução da qualidade de vida na sexualidade. Estudos transversais permitem apenas a inter-relação entre as condições de saúde - qualidade de vida e a sexualidade. Dessa forma a diminuição da sexualidade apontada pelos dados referentes à tabela IV parece estar inter-relacionada com a diminuição da Qualidade de Vida principalmente nos aspectos emocionais, físicos e funcionais, dados esses obtidos nas tabelas II e III.
Agradecimento Ao HUCAM que possibilitou a conclusão desse estudo.
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Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 59-65
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Influência da Mochila Escolar na Postura dos Alunos do Ensino Fundamental Caroline Pires; Rosely Martins Gomes; Rosiane Almeida Gouveia; Royger do Nascimento Clarindo; Thiago Valentim Madeira1; Vânia das Candeias Buback; Dr. João Luiz Coelho de Faria1. Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo, Av. Vitória, 950, Forte São João, 29.017-950, Vitória, ES, Brasil. 1 jfaria@salesiano.com.br
RESUMO A maioria dos problemas posturais tem origem na infância, e quando os padrões se tornam habituais, podem resultar em alterações posturais. Essas alterações são multicausais, sendo o excesso de peso das mochilas um fator para o desenvolvimento dos desvios posturais. O objetivo deste trabalho foi identificar possíveis desvios posturais decorrentes da utilização da mochila escolar com excesso de peso por alunos do ensino fundamental. Foi utilizado o método de Estudo Descritivo Transversal, constituído aleatoriamente por quatorze indivíduos, de ambos os sexos. Foi aplicado um questionário para obtenção dos dados pessoais e aspectos relacionados ao uso da mochila. Os participantes foram submetidos a uma avaliação antropométrica e fotográfica nas vistas anterior, posterior, lateral direita e esquerda, com e sem a mochila. Além disso, foi realizada a aferição do peso da mochila escolar. As fotos foram analisadas por meio do SAPO. Entre as vistas com e sem mochila, foi observada diferença estatisticamente significativa (p ≤ 0,05) na vista lateral direita para o ângulo referente à inclinação póstero-anterior do corpo. Predominou o uso da mochila com duas alças como forma de transporte, cujo peso ultrapassa o recomendado pela Organização Mundial de Saúde. Palavras-chave: Avaliação. Postura. Estudantes. Mochila.
FISIOTERAPIA
ABSTRACT Most problems in posture have an origin in childhood, and when the pattern becomes habitual, posture alteration might result. This alteration has many causes, with excessive weight in backpacks being perhaps the major factor for the development of posture deviation. The main objective of this study was to identify possible deviations in posture caused by using excessively heavy school backpack by students in basic education. A transversal randomized descriptive study was carried out with fourteen individuals, both sexes. A questionnaire was applied to gather information concerning personal aspects related to the use of backpack. The participants were submitted to anthropometric and photographic evaluations in frontal, posterior, lateral right and left views, with and without backpack. In addition, the backpacks were weighed. The photos were analyzed through the SAPO. Between the views with and without backpacks, a significant statistical difference was observed (p ≤ 0,05) in the right lateral view for the referring angle to previous inclination of the trunk of the body. The use of backpacks with two handles or straps was prevalent, but the weight exceeded that recommended by the World Health Organization. Keywords: Evaluation. Posture.Students.Backpacks.
1 Introdução A Academia Americana de Ortopedia define postura como o arranjo relativo das partes do corpo. O termo postura também é usado para descrever um composto das posições das diferentes articulações do corpo em um dado momento (Magee, 2002). Considera-se boa postura quando 66
ocorre equilíbrio musculoesquelético protegendo as estruturas de sustentação do corpo em relação a lesões ou deformidades progressivas. Por outro lado, a má postura é uma relação defeituosa entre as várias partes do corpo que produz uma maior tensão sobre as estruturas de suporte e onde ocorre um desequilíbrio do corpo sobre essa base de suporte (Kendall et al., 1995).
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A postura ideal é vista como um equilíbrio dinâmico dos segmentos corporais nos planos sagital, longitudinal e axial, nas suas mais variadas posições, caracterizando-se por um máximo de eficiência fisiológica e biomecânica, requerendo um mínimo de esforço e tensão (Momesso, 1997). Pequenos desvios da postura ideal são esperados em uma população normal, devido às muitas variações encontradas na estrutura corporal (Norkinet al., 2001). Bricot (2001) em seu estudo relata que mais de 90% dos indivíduos apresentam um desequilíbrio postural. A maioria dos problemas posturais tem sua origem na infância, uma vez que as crianças em idade escolar encontram-se em período de acomodação das suas estruturas anatômicas. Entretanto, os mais recorrentes desvios posturais durante o crescimento são classificados como “desvio de desenvolvimento” e, quando os padrões se tornam habituais, podem resultar em alterações posturais (Back, 2006). Dentre as alterações podem ser dadas como exemplo: escolioses, hipercifose, hiperlordose e sintomatologias de lombalgias, dorsalgias e cervicalgias, as quais prejudicam o desenvolvimento normal (Almeida, 2006). Braccialli & Vilarta (2000), em seu estudo evidenciaram que uma postura inadequada pode vir a desenvolver-se entre as idades de 7 a 12 anos, e entre as alterações posturais de tronco mais comuns nesta faixa etária estão as escolioses. Penha et al. (2005) avaliaram 132 crianças do gênero feminino, onde as principais alterações encontradas foram protusão de ombros, anteversão pélvica, hiperextensão de joelhos e pés valgos. Na pesquisa de Lima (2006) com uma amostra de 256 alunos de 12 escolas da rede municipal de ensino do município de Florianópolis/SC com idade entre 7 e 10 anos, identificou que as principais alterações posturais encontradas foram nos segmentos dorso-lombar e joelhos, para ambos os gêneros, sendo hiperlordose lombar mais prevalente no sexo feminino e a protrusão de ombros no sexo masculino. Alterações posturais em crianças são multicausais, porém estudos relacionados às atividades escolares apontam que a permanência na postura sentada por longo período, a carga transportada nas mochilas escolares, bem como o modo de transporte e o modelo de mochilas podem contribuir para o desenvolvimento ou progressão dos Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 66-71
desvios posturais (Lima, 2006). Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) o peso de mochilas, pastas e similares não deve ultrapassar 5% do peso de criança da pré-escola e 10% do peso do aluno do ensino fundamental (Martínez et al.,2006). Entretanto, um grande número de orientadores educacionais, pais e crianças, não têm o conhecimento dos malefícios causados à coluna vertebral devido ao sobrepeso e uso incorreto da mochila. Por essa razão alguns Estados brasileiros, por exemplo, Santa Catarina, Rio de Janeiro, e o Município de Vitória no Espírito Santo decretaram uma lei que prevê que o peso máximo do material escolar transportado por alunos em mochilas, pastas ou similares, não poderá ultrapassar 5 ou 10% do seu peso(Almeida, 2006; Martinez, 2006; Lei Municipal de Vitória 4340, 1996). O sistema músculo esquelético de crianças de 9 a 11 anos, não completou totalmente o processo de maturação, sendo assim, qualquer fator de risco ocorrido durante esta fase deve ser imediatamente detectado e eliminado, a fim de prevenir danos futuros ao referido sistema (Almeida, 2006). Com base no exposto, a orientação fisioterápica é de grande importância no ambiente escolar, pois este período mostra-se adequado para a intervenção terapêutica em qualquer nível, sendo possível evitar, corrigir ou realinhar alterações posturais se considerarmos o enorme potencial adaptativo das estruturas relacionadas à postura durante o período de crescimento (Back, 2006). A avaliação postural é um método amplamente utilizado na fisioterapia para compreensão do alinhamento dos segmentos corporais e influência diretamente na conduta terapêutica. Durante um longo período, foram utilizados métodos qualitativos para análise da postura. Esses métodos são considerados de pouca reprodutibilidade por serem baseados na observação subjetiva do examinador (Ferreira, 2006). Buscando avaliações fidedignas, foram desenvolvidos instrumentos de diagnósticos mais objetivos para a avaliação do paciente, como o dinamômetro isocinético e a posturografia computadorizada. Dentre os programas de avaliação postural computadorizada podemos citar o SAPO, um Software de Avaliação Postural, que tem a intenção de proporcionar um banco de dados nacional sobre postura. O SAPO é um programa de 67
FISIOTERAPIA
Influência da mochila escolar na postura dos alunos do ensino fundamental
Caroline Pires, Rosely M. Gomes, Rosiane A. Gouveia, Royger do N. Clarindo, Thiago V. Madeira, Vânia das C. Buback e João Luiz C. de Faria
avaliação quantitativa, de baixo custo, desenvolvido por uma equipe multidisciplinar, possibilitando dessa forma, garantir a confiabilidade dos dados no âmbito metodológico e clínico do processo avaliativo. Segundo Ferreira (2006), tal instrumento permite a medida em ângulos e distâncias para a análise da postura em fotografias, sendo muito relevante para a fisioterapia. Dispondo de métodos fidedignos de avaliação como o citado acima, o fisioterapeuta pode atuar de forma preventiva em diversas patologias, promovendo assim a manutenção da saúde. Somando-se a isso, o sucesso na prevenção dessas disfunções dependerá do acompanhamento, participação e compromisso dos alunos, pais e professores. Este estudo teve como objetivo identificar os possíveis desvios posturais decorrentes da utilização da mochila escolar com excesso de peso em alunos do ensino fundamental de uma escola privada de Vitória-ES.
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2 Materiais e Métodos Trata-se de um estudo descritivo transversal, que foi desenvolvido no laboratório de TraumatoOrtopedia da clínica escola de Fisioterapia da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo, de acordo com a Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde. A amostra foi constituída por 14 alunos voluntários, de ambos os sexos, sendo 08 meninas e 06 meninos matriculados no quinto ano do ensino fundamental, com idade de 10 anos. Os critérios de inclusão adotados foram de crianças que não estavam em tratamento médico ou fisioterapêutico por doença musculoesquelética e aqueles que compareceram a avaliação e apresentaram o termo de consentimento livre e esclarecido assinado pelos pais ou responsáveis. Neste estudo foram avaliados os desvios posturais, mensuradas as medidas antropométricas (peso e altura). O peso e o tipo da mochila utilizada para o transporte do material escolar também foram avaliados, bem como a sua influência na postura do aluno. Aplicou-se um questionário para coleta de informações pessoais e aspectos relacionados ao uso da mochila, elaborados pelos autores da pesquisa. Para a análise postural, utilizou-se o SAPO que é Software gratuito para Avaliação Postural, com 68
banco de dados e fundamentação científica com integral acesso pela internet. Com o SAPO são digitalizadas posições de certos pontos em fotografias (espacialmente calibradas) do sujeito sob avaliação. Estes pontos tipicamente correspondem a referências anatômicas sobre o corpo do sujeito. A partir dos pontos digitalizados, o SAPO fornece automaticamente uma série de medidas relevantes para avaliação postural. Os indivíduos da amostra compareceram ao local de avaliação vestindo obrigatoriamente trajes de banho. Foram realizadas a localização e demarcação dos pontos anatômicos com bolinhas de isopor de cor branca (15 mm) e fita adesiva dupla face. As imagens foram obtidas por uma câmera digital Sony® DSC- T77 Cyber - shot 10.1 Mega pixels, sem utilização de zoom e flash. A câmera foi posicionada sobre um tripé a uma altura da metade do avaliado e a três metros de distância deste. Cada aluno foi fotografado na posição ortostática, em vistas anterior, posterior e lateral (direita e esquerda) com os marcadores fixados em pontos de interesse. Também foi registrada a postura das crianças durante o uso da mochila. Para a digitalização e calibração da imagem usou-se um fio de prumo, com marcação de um metro, sendo este colocado paralelo ao participante, possibilitando um referencial fixo. Além disso, um fundo preto foi posicionado atrás do avaliado para melhor visualização durante a avaliação. Na tentativa de garantir a mesma base de sustentação nas vistas avaliadas foi utilizado um tapete de borracha preto no qual o indivíduo posicionava-se confortavelmente em ortostase para a primeira tomada de fotografias, tendo sua preensão plantar demarcada com giz, e após as tomadas seguintes, o tapete era girado e, o participante reposicionado. Na avaliação antropométrica foram aferidos o peso e a altura por uma balança da marca Filizolla®. A carga da mochila foi mensurada pela mesma balança. Os pontos anatômicos demarcados seguiram o protocolo do SAPO, com adaptações: 1) vista anterior: tragos direito e esquerdo, acrômios direito e esquerdo, espinha ilíaca ântero –superior (EIAS), trocânter maior do fêrmur direito e esquerdo, interlinhas articulares dos joelhos direito e esquerdo, maléolos laterais direito e esquerdo; 2) vistas laterais: acrômios, trocânter maior do fêrmur, EIAS, interlinha articular do joelho, maléolos late-
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Influência da mochila escolar na postura dos alunos do ensino fundamental
rais, processo espinhos de C7, processo espinho de T7, processo espinho de L1; 3) vista posterior: espinha ilíaca pôstero- superior (EIPS). Para a análise estatística as vistas avaliadas foram as vistas anterior e lateral direita, por apresentarem maior numero de ângulos possíveis de serem comparados, sendo que o N mínimo era de seis para cada angulação avaliada. A análise dos dados foi realizada por meio de média e desvio padrão para cada um dos ângulos e variáveis da mochila. A comparação dos ângulos escolhidos entre as vistas com e sem mochila foi feita pelo Test-tstudent (p ≤ 0,05). Foi utilizado o pacote estatístico do Microsoft Office Excel 2007.
3 Resultados A amostra de 14 sujeitos caracterizou-se pelo predomínio do gênero feminino (57,14%) e do membro dominante direito (78,57%). De acordo com a tabela 1 a média de IMC foi de 16,09 ± 2, 84, sendo que 85,71% da população estudada tinham peso normal. Somente dois indivíduos estão na categoria sobrepeso, que corresponde a 14,29% da amostra (15). Após análise dos questionários aplicados aos indivíduos da amostra,
constatou-se que 42,85% transportavam objetos além do material escolar. Tabela 1 - Média e desvio padrão para peso, altura, IMC, peso da mochila e percentual do peso da mochila em relação ao peso corporal dos sujeitos participantes
Características Peso Altura IMC Peso da mochila % do PM em relação ao PC
Média ± DP 34,35 ± 7,20 1,42 ± 0,07 16,09 ± 2,84 4,40 ± 1,12 13,33 ± 4,40
DP (Desvio Padrão) IMC (índice de massa corpórea) PM (Peso da mochila) PC (Peso Corporal)
Em relação à forma de transporte do material, a amostra estudada utilizou mochila com duas alças e mochila de rodinhas. Houve predomínio da mochila com duas alças (64,29%). O peso da mochila do grupo estudado apresentou média de 4,4 ± 1,12 kg e o percentual do peso da mochila em relação ao peso corporal da população foi de 13,33 ± 4,40 %. Sendo que, 85,71% dos alunos transportavam peso acima dos 10% recomendado.
Vista Anterior
Sem Mochila Médias±DP 1 - Tragos das orelhas e a horizontal 3,36 ± 3,08 2 - Acrômios e a horizontal 1,83 ± 1,22 3 - EIAS e a horizontal 2,19 ± 1,48 4 - Trocânter maior do fêmur/ linha articular 178,31 ± 2,64 do joelho/ maléolo lateral direito 5 - Trocânter maior do fêmur/linha articular 178,03 ± 2,59 do joelho/ maléolo lateral esquerdo
Com mochilas Médias±DP 3,95 ± 3,24 2,29 ± 1,81 2,66 ± 1,71 178,61 ± 3,16
Sig
N
0,2 0,2 0,07 0,1
13 12 14 12
177,67±1,94
0,5
12
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Tabela 2 - Média e desvio padrão (em graus) para os ângulos da vista anterior
Sig (significância): p≤0,05 / EIAS (espinha ilíaca ântero-superior) Tabela 3 - Média e desvio padrão (em graus) para os ângulos da vista lateral direita
Vista Lateral Direita 1 - C7 / Lóbulo da orelha / horizontal 2 - EIAS / Interlinha articular do joelho / Trocânter maior 3 - Trocânter maior do fêmur / Linha articular do joelho / Maléolo lateral 4 - Acrômio / Maléolo lateral / vertical 5 - Acrômio / C7 / Trago da orelha
Sem Mochila Médias±DP 48,6 ± 3,83 10,7 ± 2,28
Com mochilas Médias±DP 47,2 ± 3,33 10,6 ± 2,26
Sig
N
0,08 0,88
9 6
175,4 ± 3,27
174,3 ± 4,93
0,20
9
177,4 ± 1,98 78,1 ± 12,6
178,2 ± 2,10 76,6 ± 18,04
0,03 0,78
10 9
Sig (significância): p≤0,05 / EIAS (espinha ilíaca ântero-superior) Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 66-71
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Caroline Pires, Rosely M. Gomes, Rosiane A. Gouveia, Royger do N. Clarindo, Thiago V. Madeira, Vânia das C. Buback e João Luiz C. de Faria
Os principais resultados encontrados em relação ao alinhamento postural estão descritos nas tabelas 02 e 03 (página anterior), sendo a única variável que apresentou alteração estatisticamente significativa (p ≤ 0,05) foi na Vista Lateral Direita, o ângulo entre Acrômio e Maléolo lateral/Vertical, que descreve a inclinação do corpo no sentido póstero-anterior.
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4 Discussão Os achados deste estudo revelam que as crianças avaliadas transportam mochilas com peso acima do recomendado pela OMS. Esses resultados comprovam a realidade escolar citada por diversos autores em seus estudos (Almeida, 2006; Martínez et al., 2006; Fernandes & Casarotto, 2008; Akagiet al., 2008; Bertolini & Gomes, 1997). Em nosso estudo 85,71% dos alunos carregavam excesso de peso na mochila. Os resultados dessa pesquisa corroboram com o estudo de Almeida (2006), realizado em uma escola privada do município de Tubarão/SC, no qual foi analisado o peso corporal e o peso da mochila escolar de 32 alunos da 4ª série, após a mensuração da massa corporal e dos dados anteriores, observou-se que 69,57% dos alunos transportavam o peso da mochila acima de 10% do peso corporal e que 30,43% transportam o peso de acordo com o recomendado. Após análise do questionário aplicado constatou-se que 42,85% dos alunos transportavam em suas mochilas objetos além do material escolar. Segundo Flores (2005), atualmente crianças e jovens carregam um número cada vez maior de objetos para além de cadernos e livros, como lanches, brinquedos e roupas, o que leva a um aumento significativo no peso da mochila. Além disso, a má distribuição da organização curricular, o maior poder aquisitivo dos alunos e o modelo da mochila são fatores que podem influenciar significativamente no aumento do peso da carga transportada (Ritter & Silva, 2006). Foi verificado que a maioria da amostra utilizava mochila de duas alças, assim como foi encontrado em outros estudos (Almeida, 2006; Fernandes & Casarotto, 2008; Ritter & Silva, 2006). De acordo com a literatura, os indivíduos que fazem o uso da mochila de duas alças podem apresentar alterações posturais, mesmo assim, esta continua sendo uma forma menos prejudicial de transporte (Braccialli & Vilarta, 2000). Fernandes & Casarotto (2008) 70
realizaram um estudo, no qual foi observado que o excesso de carga transportada pelos alunos era derivado dos modelos de carrinho utilizados, que apresentavam entre 5 a 7 kg quando vazios. Sendo este um dos fatores que comprovam a mochila de duas alças como melhor forma de transporte e menos prejudicial à postura. Após a análise postural dos alunos e comparação dos ângulos posturais com e sem mochila, foi encontrada somente uma alteração estatisticamente significativa, localizada na vista lateral direita. Essa alteração foi referente à inclinação do corpo no sentindo póstero-anterior, obtida por meio da marcação dos pontos anatômicos, acrômio e maléolo lateral. Foi constatado que há uma maior inclinação anterior do corpo no momento da utilização da mochila. As crianças sem mochila apresentavam uma média maior (177,4 ± 1,48°) quando comparadas com as médias das crianças com mochila (176,2 ± 2,10°), demonstrando assim, que quanto menor o ângulo entre o acrômio e o maléolo lateral/vertical, maior a inclinação. Ao carregar uma mochila, o centro de gravidade do indivíduo é deslocado no sentido da carga, para compensar esse deslocamento, geralmente inclina-se o corpo no sentido oposto à força. Por exemplo, para compensar uma mochila pesada que se posiciona sobre as costas, os indivíduos deslocam a cabeça e o tronco para a frente. Outra estratégia é a hiperextensão lombar acompanhada de apoio manual sobre as alças da mochila. Tais desvios posturais podem dificultar a capacidade natural de absorção de choque da coluna vertebral e exigir maior atividade muscular para impedir que o indivíduo se desequilibre. Além disso, as forças e os momentos aumentam sobre a coluna vertebral. Em suma, as mudanças posturais na cabeça e no tronco colocam os tecidos moles em desvantagem biomecânica, tornando-os mais vulneráveis a fadigas (Perez, 2002; Goodgoldet al., 2002). Segundo Almeida (2006), ao efetuar a manobra de se deslocar mais adiante, a criança apresenta um aumento da lordose fisiológica. Esta modificação gera estresse no deslizamento das vértebras L5-S1. Desta forma, os hábitos posturais incorretos adotados desde o ensino fundamental podem gerar alterações irreversíveis nas crianças, considerando que as estruturas que compõem a unidade vertebral (ligamentos e discos) sofrem
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Influência da mochila escolar na postura dos alunos do ensino fundamental
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FISIOTERAPIA
um processo de degeneração ao longo da vida e não apresentam mecanismos de regeneração (Fernandes &Casarotto, 2008). Sendo assim, hábitos posturais incorretos podem trazer consequências negativas ao alinhamento corporal, como o aumento da inclinação anterior de tronco adotado durante o uso da mochila na infância. Portanto, torna-se interessante a adoção de medidas educativas e preventivas para que tais consequências sejam minimizadas. De acordo com Fernandes & Casarotto (2008), a participação do fisioterapeuta é de grande valia nos programas de educação postural em escolas, uma vez que promove mudanças significativas nos hábitos referentes à utilização de mochilas, principalmente com relação à diminuição da quantidade de carga transportada. Com base nos resultados obtidos, pode-se concluir que as crianças estudadas transportavam excesso de peso nas mochilas escolares e que apresentam aumento na inclinação anterior do corpo ao realizar o transporte desta.
Perfil da fauna de vespas parasitóides (Insecta, Hymenoptera) em uma área de Mata Atlântica de João Neiva, ES, Brasil Ariana Pignaton Gnocchi1; Juliana Rodrigues Savergnini1; Ms. Fernanda Tonini Gobbi1,2 Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo, Av. Vitória, 950, Forte São João, 29.017-950, Vitória, ES, Brasil. 2 Universidade Federal do Espírito Santo, Departamento de Biologia, Av. Marechal Campos 1468, Maruípe, 29.040-090, Vitória, ES, Brasil. 2 fernandagobbi@gmail.com
1
RESUMO Este estudo teve como objetivo conhecer a fauna de vespas parasitóides ocorrentes em uma área de Mata Atlântica de Alto Bérgamo, João Neiva, ES, Brasil. As coletas foram realizadas no período de 27 de outubro a 03 de novembro de 2008, utilizando-se oito armadilhas Malaise. Foram coletadas 1.086 vespas parasitóides pertencentes a 17 famílias. As famílias que apresentaram maior frequência foram Bethylidae (16,09%), Pompilidae (7,08%) e Ichneumonidae (5,11%) e em menor frequência as famílias Eucoilidae (0,11%), Thiphiidae (0,11%), Dryinidae (0,07%), Mymaridae (0,07%), Encyrtidae (0,03%) e Monomachidae (0,03%). Palavras-chave: Abundância. Biodiversidade. Entomofauna. Hexapoda. ABSTRACT This study was conducted on the fauna of parasitic wasps in an Atlantic forest area from Alto Bérgamo, João Neiva, ES, Brazil. Sampling was carried out from October 27 to 03 November 2008, using eight Malaise traps. We collected 1.086 parasitic wasps belonging to 17 families. The families with the greatest frequency were Bethylidae (16,09%), Pompilidae (7,08%) and Ichneumonidae (5,11%). Sampled less frequently were the families Eucoilidae (0,11%), Thiphiidae (0,11%), Dryinidae (0,07%), Mymaridae (0,07%), Encyrtidae (0,03%) and Monomachidae (0,03%). Key words: Abundance. Biodiversity. Entomofauna. Hexapoda.
CIÊNCIAS BIOLÓGICAS
1 Introdução Os Hymenoptera são abundantes e ocupam diferentes tipos de ambientes. Atualmente estão incluídas nesta ordem cerca de 115.000 espécies (Hanson & Gauld, 1995). Entre os Hymenoptera, os parasitóides representam o grupo mais rico em espécies (Marchioriet al., 2003). Além disso, possuem grande importância para a manutenção do equilíbrio ambiental, atuando na regulação populacional de diversos insetos hospedeiros (Borror et al., 1992; Lasalle & Gauld, 1993). São considerados himenópteros parasitóides aquelas espécies cujas larvas se desenvolvem no corpo de outro artrópode, usualmente um inseto ou em uma massa única ou gregária de hospedeiros, como ootecas ou massas de larvas galhadoras, acarretando a morte do hospedeiro ao final do 72
desenvolvimento do parasitóide (Godfray, 1994). Os poucos estudos sobre riqueza de famílias de vespas parasitóides no estado do Espírito Santo concentram-se em áreas de proteção ambiental, como por exemplo, na Estação Biológica de Santa Lúcia (Santa Teresa), Parque Estadual da Fonte Grande (Vitória), Parque Estadual da Pedra Azul (Domingos Martins) e Reserva Biológica de Duas Bocas (Cariacica), ocasionando na falta de conhecimento sobre esta fauna nos remanescentes de Mata Atlântica do resto do estado. O objetivo deste estudo foi traçar um perfil da fauna de vespas parasitóides em uma área de Mata Atlântica da região de Alto Bérgamo, João Neiva, ES, reconhecendo as famílias presentes e suas abundâncias relativas, com vistas a gerar dados sobre o padrão de ocorrência das famílias de vespas parasitóides em áreas de Mata Atlântica do Espírito Santo.
Episteme - Revista Científica da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Perfil da fauna de vespas parasitóides (Insecta, Hymenoptera) em uma área de Mata Atlântica de João Neiva, ES, Brasil
A amostragem foi realizada em uma área de Mata Atlântica na região de Alto Bérgamo (19º44’46’’ S 40º26’43’’ W), João Neiva, ES, situada a 478 m de altitude. As coletas ocorreram no período de 27 de outubro a 03 de novembro de 2008, utilizando-se oito armadilhas Malaise. A armadilha Malaise utilizada consistiu de uma tenda de malha fina, branca no teto e preta nas demais partes, com 2,05m de comprimento, 1,5m de altura na parte frontal e 1,1m na parte posterior; a face frontal com 1,0m de largura e a posterior com 1,1m; o teto com 0,9m de largura e 2,0m de comprimento. O material analisado pertence à Coleção Entomológica da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). A identificação das famílias de Hymenopteraparasitóides seguiu Fernandéz&Sharkey (2006). Neste estudo foram incluídas as famílias pertencentes à série Parasitica(Terebrantia), as pertencentes à superfamília Chrysidoidea e as famílias de Vespoidea que apresentam hábito parasitóide.
3 Resultados Foram amostradas 1.086 vespas parasitóides pertencentes a 17 famílias distribuídas em oito superfamílias (Tabela I). Das oito superfamílias coletadas, Chrysidoidea foi a mais frequente, com 39,87% seguida de Vespoidea (24,03%), Ichneumonoidea (20,62%), Proctotrupoidea (5,43%), Evanioidea (5,15%), Platygasteroidea (3,13%), Chalcidoidea (1,47%) e Cynipoidea (0,27%). As famílias que apresentaram maior frequência foram Bethylidae (39,13%), Pompilidae (17,40%) e Ichneumonidae (12,70%) e em menor frequência as famílias Eucoilidae (0,27%), Thiphiidae (0,27%), Dryinidae (0,27%), Mymaridae (0,18%), Encyrtidae (0,09%) e Monomachidae (0,09%). Neste estudo foram reconhecidos 11 gêneros de Bethylidae: Dissomphalus (42,6 %), Pseudisobrachium (36, 4 %), Apenesia (6,7 %), Anisepyris (6 %), Chlorepyris (3,7 %), Epyris (1,9 %), Holepyris (1,2 %), Goniozus (0,9 %), Bakeriella (0,2 %), Laelius (0,2 %) e Cephalonomia (0,2 %).
Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 72-75
Tabela 1 - Abundância e frequência das superfamílias e famílias de vespas parasitóides coletadas por meio de armadilha Malaise na região de Alto Bérgamo, João Neiva, ES, Brasil, no período de 27 de outubro a 03 de novembro de 2008
Famílias Chalcidoidea Chalcididae Pteromalidae Mymaridae Encyrtidae Chrysidoidea Bethylidae Chrysididae Dryinidae Cynipoidea Eucoilidae Evanioidea Evaniidae Ichneumonoidea Ichneumonidae Braconidae Platygasteroidea Scelionidae Proctotrupoidea Diapriidae Monomachidae Vespoidea Pompilidae Mutillidae Thiphiidae Total
Abundância 16 9 4 2 1 433 425 5 3 3 3 56 56 224 138 86 34 34 59 58 1 261 189 69 3 1.086
Frequência (%) 1,47% 0,82% 0,36% 0,18% 0,09% 39,87% 39,13% 0,46% 0,27% 0,27% 0,27% 5,15% 5,15% 20,62% 12,70% 7,91% 3,13% 3,13% 5,43% 5,34% 0,09% 24,03% 17,40% 6,35% 0,27% 100%
4 Discussão Azevedo & Santos (2000) e Azevedo et al. (2002) obtiveram 30 e 28 famílias na Reserva Biológica de Duas Bocas (RBDB) e no Parque Estadual da Fonte Grande (PEFG), respectivamente, enquanto em nosso estudo foram encontradas 17 famílias. Essa diferença está relacionada, provavelmente, aos diferentes métodos de coleta utilizados nestes estudos e ao tempo de coleta. Os estudos de Azevedo& Santos (2000) e Azevedo et al. (2002) utilizaram apenas varredura de vegetação como método de captura, mas as coletas foram feitas mensalmente ao longo de um ano. A varredura de vegetação é considerada o método mais eficiente para a captura de vespas parasitóides, mas 73
CIÊNCIAS BIOLÓGICAS
2 Materiais e Métodos
CIÊNCIAS BIOLÓGICAS
Ariana Pignaton Gnocchi, Juliana Rodrigues Severgnini e Fernanda Tonini Gobbi
a armadilha Malaise costuma ser a mais utilizada, porque é um método de levantamento rápido e que dispensa a presença dos pesquisadores no campo. Alencar et al. (2007) encontraram 28 famílias no Parque Estadual de Pedra Azul (PEPAZ), enquanto em nosso estudo foram encontradas 17 famílias. Essa diferença está relacionada, provavelmente, à quantidade de armadilhas utilizadas, Alencar et al. (2007) utilizaram 16 armadilhas, enquanto as coletas em João Neiva foram feitas por meio de oito. Azevedo et al. (2003) encontraram 35 famílias na Estação Biológica de Santa Lúcia (EBSL), mas neste estudo também foram utilizados, além das armadilhas Malaise, as armadilhas Moericke (bacia amarela) e de varredura de vegetação. As famílias coletadas em João Neiva são normalmente capturadas por meio da armadilha Malaise no estado do Espírito Santo. As famílias Monomachidae, Mutillidae e Pompilidae, que foram encontradas em João Neiva não ocorreram no estudo de Azevedo et al. (2002), realizado no PEFG. A família Pompilidae foi registrada para João Neiva, mas não ocorreu na Estação Biológica de Santa Lúcia (EBSL), em um estudo realizado por Azevedo et al. (2003). Entretanto, foram registradas as superfamílias Ceraprhonoidea e Mymarommatoidea para a EBSL, e estas famílias não foram encontradas em João Neiva. Em estudos de levantamento de vespas parasitóides realizados em áreas de Mata Atlântica no estado de São Paulo, utilizando as armadilhas de Moericke, Malaise e varredura de vegetação, Perioto& Lara (2003) e Periotoet al. (2005) encontraram 23 e 26 famílias de vespas parasitóides no Parque Estadual da Serra do Mar e na Estação Ecológica Juréia-Itatins, respectivamente. Isto demonstra que os resultados encontrados em João Neiva, embora tenham sido os menores localizados no estado do Espírito Santo, ainda representam uma grande diversidade de famílias de vespas parasitóides quando comparadas com estudos realizados fora de nosso estado. Sobre as frequências das famílias, os estudos de Azevedo & Santos (2000), Azevedo et al. (2003) e Azevedo et al. (2002) apontaram Chalcidoidea, Ichneumonoidea e Platygastroidea como as superfamílias mais frequentes, sendo que em 74
Azevedo & Santos (2000) a mais frequente foi Platygastroidea, em Azevedo et al. (2002) foi Chalcidoidea e em Azevedo et al. (2003) Ichneumonoidea. Em Alencar et al. (2007) as superfamílias mais frequentes foram Proctotrupoidea, seguidas de Platygastroidea e Ichneumonoidea. Azevedo et al. (2002). No nosso estudo a superfamília mais frequente foi Chrysidoidea, seguida de Vespoidea e Ichneumonoidea. Estas frequências diferentes das superfamílias (e consequentemente das famílias) podem ser resultado dos tipos de armadilha utilizados, bem como da diferença do esforço amostral. Apenas a realização de mais estudos nestas mesmas áreas confirmarão se a diversidade entre elas é realmente diferente ou foi resultado da amostragem. Devemos ressaltar que para determinar um perfil mais fiel das famílias de vespas parasitóides de um local é imprescindível a utilização de diversos tipos de armadilhas e um longo período de amostragem, e que certamente o estudo ora realizado foi capaz apenas de lançar uma luz sobre a diversidade e abundância de vespas parasitóides que ocorrem em João Neiva.
Agradecimentos A Alair Testa pela autorização das coletas na área de estudo; à Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo pela disponibilização do laboratório para a realização deste estudo; ao Celso Azevedo, curador da Coleção Entomológica da UFES pelo empréstimo do material; e ao Programa de Iniciação Científica da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo pela bolsa concedida a Ariana Pignaton Gnocchi.
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Episteme - Revista Científica da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Perfil da fauna de vespas parasitóides (Insecta, Hymenoptera) em uma área de Mata Atlântica de João Neiva, ES, Brasil
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CIÊNCIAS BIOLÓGICAS
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Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 72-75
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Influência da restrição protéica precoce no crescimento de ossos longos em coelhos (Oryctolagus cuniculus) Ms. Ronald de Mesquita Soares Rega1; Ms. Margareth Costa-Neves2 UNISUAM (Centro Universitário Augusto Motta), Avenida Paris 72, Bonsucesso, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 1 rmsrega@ig.com.br; 2mgcnshanti@yahoo.com.br
RESUMO Foram estudados, pelo método alométrico, os efeitos da restrição protéica no crescimento ponderal da tíbia e do fêmur em coelhos da espécie Oryctolagus cuniculus. Foram utilizados 100 coelhos de ambos os sexos por um período de 42 dias após o desmame, divididos em grupo controle e grupo experimental com restrição protéica. Os resultados indicaram uma redução de 8,7% no crescimento de peso desses ossos no grupo com restrição/desnutrição. Palavras-chave: Crescimento. Fêmur. Tíbia. Coelho. Alometria. ABSTRACT The effects of protein restriction on the weight growth of the tibia and femur in rabbits of the species Oryctolagus cuniculus were studied by the allometric method. One hundred rabbits of both sexes were used for a period of 42 days after weaning, divided into control and an experimental group with protein restriction. The results indicated a decrease of 8.7% growth in bone weight of the group with protein restriction. Key words: Growth. Femur. Tibia. Rabbit. Allometry.
CIÊNCIAS BIOLÓGICAS
1 Introdução A desnutrição precoce, que acontece após o nascimento, pode acarretar permanentes mudanças fisiológicas, metabólicas e estruturais nesses indivíduos, sendo, um fator que leva a doenças em idade mais avançada. Warren & Bedi (1985) mostraram que a desnutrição provoca grandes déficits em todas as dimensões esqueléticas de ratos. Van-der-Werf (1984) observou que uma deficiência temporária do consumo de alimentos afeta o crescimento de ossos e cartilagens em coelho. Segundo Golden (1997) existe impacto da desnutrição no crescimento linear, ósseo e cerebral que pode causar danos irreversíveis. Em 1997 usando o mesmo método quantitativo Neto et al. (1997) verificou que a restrição protéica em Gallus domesticus afeta o crescimento do estômago e do intestino. Bruno et al. (2000) sugere que a restrição alimentar e a alta temperatura ambiental reduz o crescimento ósseo em frangos de corte. Em humanos Yamamoto et al. (2001) verificou que a desnutrição energético-protéica apresenta 76
maiores taxas de incidência e prevalência entre os 12 e os 24 meses de idade, faixa etária de rápido crescimento pôndero-estatural, levando ao comprometimento não só da condição nutricional do indivíduo, mas também de seu crescimento linear, sendo a principal causa de retardo de crescimento intra-uterino ou pós-natal em nosso meio O objetivo deste estudo foi avaliar se a desnutrição proteica pode afetar o crescimento dos ossos longos em coelhos durante o primeiro mês de vida pós-natal utilizando o método alométrico bivariado.
2 Materiais e Métodos A) Animais: Cem coelhos, de ambos os sexos da espécie Oryctolagus cuniculus, foram obtidos para o estudo dos efeitos da restrição proteica sobre o crescimento do fêmur e da tíbia por um período de 42 dias. Animais que apresentaram sinais patológicos claros como más-formações foram excluídos do estudo. Os animais foram divididos em dois grupos: um grupo controle (n = 50), que recebeu
Episteme - Revista Científica da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Influência da restrição proteica precoce no crescimento de ossos longos em coelhos (Oryctolagus cuniculus)
Tabela 1 - Composição da dieta controle (DC)
Composição Milho Pellestsde soja Farinha de carne Fosfato bicálcio Sal Suplementos
Porcentagem 59.80% 20.03% 15.00% 01.45% 00.50% 03.00%
B) A análise estatística: Os dados obtidos (peso corporal e peso dos ossos) foram analisados após a transformação logarítmica do modelo multiplicativo ou função potência utilizado por Huxley (1932): 1) Y = b X K (modelo multiplicativo); 2) Log Y = (K) Log X + b Log (modelo linear). Onde Log Y é a variável dependente (peso dos ossos), Log X é a variável independente (peso corporal), K é o coeficiente alométrico do registro ou declive e b o coeficiente de crescimento inicial. A fim de resolver o problema das estimativas entre X e Y, quando as duas variáveis estão sujeitas a medições de erro, utilizamos o método do eixo maior reduzido EMR (9-12). R2 e a estatística F
foram utilizados para determinar a importância de cada regressão. O teste-t foi igual a 0,05.
3 Resultados e Discussão As tabelas II e III mostram os resultados nos grupos controle e experimental. R2 e a estatística F indicaram que todas as regressões foram significativas (r > 0,90, r2 > 0,81) e o modelo linear apropriado. A análise bivariada indicou alometria positiva (K > 1) nos dois grupos, porém, o grupo com restrição proteica apresentou K menor que o do grupo controle. Ao testar a significância desses coeficientes com test-t todos os coeficientes foram estatisticamente significativos (p < 0,001). Nossos resultados indicam que o crescimento ponderal do fêmur e da tíbia no grupo experimental foi 8,7% menor do que no grupo controle. Outros estudos quantitativos, utilizando o mesmo método alométrico, demonstram que a restrição proteica afeta o crescimento em vários sistemas orgânicos. Neto et al. em 1997 constatou um aumento de 7,5% na taxa de crescimento do estômago e intestino em Gallus domesticus submetidos à restrição proteica. Marques-dos-Santos et al. (1998) relatou que a dieta hipoproteica diminui em 9,4% o crescimento do miocárdio em frangos de corte. Rega & Costa-Neves (2004) revelaram uma redução de 9% no crescimento do encéfalo em coelhos no período pós-desmame. Estudos qualitativos feitos por Sima & Pearson (1975), Gopinath et al. (1976) e Lepri et al. (1994) mostraram que a desnutrição proteica durante o período gestacional e aleitamento em ratos causa
Tabela 2 - Resultados do crescimento ponderal do fêmur e da tíbia usando o método bivariado Log y = KlogX + Log b. Grupo de controle
Log Y (g) Fêmur Tíbia a
K(EMR)a 1.262 1.250
IC - 95%(k)b 1.198-1.325 1.187-1.314
Logb -2.663 -2.646
r (r2) 0.987 (0.974) 0.915 (0.837)
Eixo Maior Reduzido; b 95% Intervalo de confiança para K
Tabela 3 - Resultados do crescimento ponderal do fêmur e da tíbia usando o método bivariado Log y = KlogX + Log b. Grupo experimental com restrição protéica a 8%
Log Y (g) Fêmur Tíbia a
K(EMR)a 1.125 1.099
IC - 95%(k)b 1.068-1.325 1.187-1.314
Logb -2.647 -1.353
r (r2) 0.996 (0.992) 0.957 (0.916)
Eixo Maior Reduzido; b 95% Intervalo de confiança para K
Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 76-79
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CIÊNCIAS BIOLÓGICAS
dieta industrial balanceada a 20% de proteína ad libitun e um grupo experimental, que recebeu dieta restrita à 8% de proteína também ad libitun. Os nutrientes básicos da dieta controle são mostrados na tabela I. As dietas foram preparadas de acordo com American Institute of Nutrition (1977). Os pesos dos animais e dos ossos foram obtidos com uma balança precisão (0,001 g).
Ronald de Mesquita Soares Rega e Margareth Costa-Neves
perturbação no processo de migração celular na camada granular do cerebelo externo. A alometria tem sido usada desde o século 19 para avaliar o crescimento corporal, entretanto, na primeira metade do século 20 Huxley (1924) e Thompson (1948) utilizaram a alometria em muitas pesquisas morfológicas. Os métodos bivariado e multivariado também foram empregados nos estudos de crescimento em outras espécies: primatas (Jungers, 1985), vaca (Szuba, 1986), lagarto (Barbosa, 1989), crustáceos (Valenti, 1989) e humanos (Rega et al., 1991; Costa-Neves et al., 1993). Dependendo dos valores de b e k, a relação filogenética e ontogenética podem ser paralelas, divergentes, convergentes, ou uma combinação destes três (Jacobson, 1978). Em conclusão, a relação alométrica introduzidas por Huxley (1924, 1932) (Marques-dos-Santos et al., 1998; Yamamoto et al., 2001) e Thompson (1948) dá provas da relação entre as taxas de crescimento de duas partes, como um organismo. Estudos que aplicam o método alométrico como modelo matemático para avaliar quantitativamente o efeito que a restrição proteica acarreta no crescimento ósseo ainda são escassos na literatura, porém, novas investigações são necessárias para confirmar se essas alterações são consequências diretas ou indiretas da dieta hipoproteica sobre o peso dos ossos no período pós-natal.
CIÊNCIAS BIOLÓGICAS
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Episteme - Revista Científica da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
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A comunicação em tempos de consumo: uma análise comparativa de Bauman e Castells Eduardo Sabino Centro Universitário Newton Paiva, Av. Presidente Carlos Luz, 220, 650 e 800, Caiçara - Belo Horizonte, MG, Brasil. eduardosabino@caoseletras.com
RESUMO O objetivo deste trabalho é investigar como ocorre a comunicação na sociedade do consumo com base na obra de Bauman e Castells. A sociedade do consumo é uma sociedade em que todas as esferas de atividade de seus habitantes são intermediadas pelo mercado. A mídia, acredita-se, não foge à regra e pode também funcionar com base em princípios de mercado. Este artigo aponta que a comunicação contemporânea não é só influenciada, em sua estrutura, pelo mercado, mas também é uma fonte para o consumismo. Para se chegar a tais direções, optou-se por uma análise comparativa entre dois conceitos-chave de Bauman e Castells, respectivamente: a sociedade líquida e a sociedade em rede. Palavras-chave: Mercado. Consumo. Comunicação. Mercadoria. Sociedade líquida. Sociedade em rede. ABSTRACT The goal of this study is to investigate how communication works in the consumer society based on Bauman and Castells’s work. The consumer society is a society in which all spheres of activity of its inhabitants are intermediated by the market. The media, it is believed, is no exception and can also operate based on market principles. This article indicates that the contemporary communication is not only affected, in its structure, by the market, but it is also a source for consumerism. To achieve these directions, we opted for a comparative analysis of two key concepts of Bauman and Castells, respectively: the liquid modernity and the network society. Keywords: Market. Consumption. Communication. Merchandise. Liquidmodernity. Network society.
FILOSOFIA
1 Introdução A comunicação, na Era Moderna, foi um instrumento indispensável à sustentação do Estado. Afinal, o exercício de sua soberania está inteiramente vinculado à capacidade que ele tem de controlar as informações. Por isso, a chamada globalização da informação contribuiu para o enfraquecimento do Estado, para a liquidez das instituições e a configuração de um novo mundo, que alguns estudiosos arriscam chamar de pós-moderno. Acredita-se, que neste mundo, o consumo media todas as relações humanas e institucionais. Formou-se uma sociedade, conforme Bauman, com a pretensão de satisfazer todos os desejos humanos, como nenhuma outra o fez. Nesse contexto, tentaremos entender os meios de comunicação. 80
A comunicação e o mercado, desde os primórdios da indústria cultural, são indissociáveis. Sabe-se que a comunicação vem quebrando fronteiras, ao passo em que os países intensificam o comércio entre si. A transformação do espaço-tempo alcançada pela evolução da tecnologia acelerou a produção. A acelerada produção, gerada também, entre outros fatores, pela abertura dos mercados, requer informações circulando, de modo instantâneo, por meio dos polos do globo. Informações que vendam não só produtos palpáveis, mas também ideias e valores para a continuidade do sistema. Mas como denunciar a mercantilização da comunicação se, teoricamente, esse papel cabe aos meios de comunicação? Como optar por informações que interessam ao público, quando a verdade
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A comunicação em tempos de consumo: uma análise comparativa de Bauman e Castells
2 A Sociedade Líquida Há alguns conceitos-chave para compreender a obra de Bauman, um deles é o de modernidadelíquida, cunhado por ele para designar o estágio do capitalismo que vem se consolidando no mundo. Cabe aqui dizer: não se trata de uma era partilhada de modo homogêneo em todas as regiões do globo. Alguns estudiosos defendem, por exemplo, a coexistência de características imperiais, prémodernas, modernas e pós-modernas em países como o Brasil, onde o atraso educacional e o coronelismo de cidades do interior dividem lugar com as redes virtuais e o boom do consumo. Na sociedade líquido-moderna não há novidade duradoura. As instituições perderam a solidez, a unidade cultural deu lugar ao hibridismo, todas as ações dos indivíduos em busca de melhoria de vida são intermediadas pelo mercado. As pessoas devem estar em movimento constante. As circunstâncias e estratégias para a realização de um objetivo, qualquer que seja, vivem sob risco de alteração instantânea e completa. Resta aos indivíduos – todos na sociedade líquidomoderna são tratados como indivíduos – uma vida precária, repleta de insegurança e incerteza. Resume Bauman (2005, p. 7)
Líquido-moderna é uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir. A liquidez da vida e da sociedade se alimentam e se revigoram mutuamente. A vida líquida, assim como a sociedade líquido-moderna, não pode manter a forma ou permanecer em seu curso por muito tempo.
Este é o princípio (e o fim) da modernidade líquida: o constante reinício. A identidade das pessoas – antes vinculadas à solidez, por meio da força de instituições como a escola, a igreja, a família e o Estado – hoje são mosaicos a serem frequentemente repintados. Afinal, os modelos do mundo líquido-moderno não são duráveis, e podem cair – e sempre caem – do bem para o mal em curtos lapsos. A qualidade de um produto recebido de “braços abertos” pelos consumidores ontem, será colocada em “xeque” pelos mesmos consumidores amanhã. Em meio à renovação intermitente de mercadorias – e da mercantilização de todas as coisas – os indivíduos líquido-modernos temem serem deixados para trás. Ninguém quer ser visto com aquele celular que já foi, há um ano, de última geração, mas que hoje, perdeu o valor ante os olhos alheios. Na sociedade líquida as mercadorias têm vida curta e abandonam o mercado sorrateiramente, tão logo perdem o poder de deslumbramento. Ser um objeto de consumo – e isso cabe até ao reino das celebridades – é renovar temporariamente as esperanças de prazer dos consumidores. Segundo Bauman (2005, p. 117), a ação das mercadorias é intensa, rápida, sem apegos. Atualmente, os bens de consumo prometem não se tornar intrusos nem tediosos. Garantem que nos devem tudo enquanto nós nada lhes devemos. Prometem estar prontos para uso imediato, oferecendo satisfação instantânea sem exigir muito treinamento nem uma demorada economia
Zygmunt Bauman nasceu em Pôsnarí, Polônia, em 1925. Atualmente é professor emérito de Sociologia das universidades de Leeds e Varsóvia. Tem mais de dezesseis obras publicadas no Brasil. A obra de Bauman analisa os fenômenos sociais da era líquido-moderna, especialmente o consumismo.
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Manuel Castells nasceu na cidade de Hellin, na Espanha, em 1942. Entre 1967 e 1979 lecionou Sociologia na Universidade de Paris. Na década de 90, publicou a trilogia “A era da informação”.
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FILOSOFIA
desinteressa aos patrocinadores da comunicação? Ou ainda, como a comunicação pode optar pelo conhecimento se, no mercado atual, o que vende é o entretenimento? Com o apoio de Bauman1 e Castells2 esse estudo empenhou-se em entender as ligações entre sociedade do consumo e comunicação. Num primeiro momento, apresentaremos a sociedade do consumo de Bauman, nomeada por ele de sociedade líquida. No segundo passo, investigaremos a sociedade em rede de Castells. Em seguida, veremos como funciona a comunicação em ambos os agrupamentos sociais. Ao final, faremos uma breve análise comparativa entre os dois teóricos, a fim de ampliar a compreensão da comunicação em tempos de consumo.
Eduardo Sabino
do dinheiro – satisfazem sem demora. Também fazem o sinal da cruz sobre o coração para aceitar como inevitável o fato de que um dia cairão em desgraça e, quando isso acontecer, sairão de cena tranquilamente, sem reclamação, amargor ou ressentimento.
Imaginar as linhas mestras da sociedade do consumo de Bauman é mais do que se pensar em pessoas às voltas com vitrines. Não só os membros, mas os mecanismos sociais serão bem avaliados se, e somente se, favorecerem o mercado. Nisso, inclui-se a logística dos supermercados, o cálculo do Produto Interno Bruto como a riqueza de um País, os cursos universitários, as pesquisas orientadoras das decisões empresariais e tantas outras ferramentas. Bauman (2007a, p. 109) recorre a Durkhein para tecer peculiaridades desses tempos:
FILOSOFIA
Uma sociedade de consumidores não é apenas a soma total dos consumidores, mas uma totalidade, como diria Durkheim, “maior do que a soma das partes”. É uma sociedade que interpela seus membros basicamente, ou talvez até exclusivamente, como consumidores, e uma sociedade que julga e avalia seus membros principalmente por suas capacidades e sua conduta relacionadas ao consumo [...] É dizer, além disso, que a percepção e o tratamento de praticamente todas as partes do ambiente social e das ações que evocam e estruturam tendem a ser orientados pela “síndrome consumista”.
Na sociedade líquida tudo é orientado pelo e para o consumo. Pensemos em outras esferas, tal a política, e veremos exemplos claros de como a mercadoria totalizou o real. É trivial dizer: o bom funcionamento da economia, em tempos de produção acelerada, requer consumidores nas lojas como formigas sobre o açúcar. Vejamos um exemplo. Em pronunciamento oficial, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva incentivou o consumo como medida de defesa à crise, revelando os dilemas de uma sociedade – tal a brasileira – incorporada recentemente aos padrões da produção capitalista. Diz um trecho do discurso do chefe de Estado: Não tenha medo de consumir com “responsabilidade” (aspas minhas). Se você está com dívidas, procure antes equilibrar seu orçamento. Mas, se tem um
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dinheirinho no bolso ou recebeu o décimo terceiro, e está querendo comprar uma geladeira, um fogão ou trocar de carro, não frustre seu sonho, com medo do futuro. Porque se você não comprar, o comércio não vende. E se a loja não vender, não fará novas encomendas à fábrica. E aí a fábrica produzirá menos e, em médio prazo, o seu emprego poderá estar em risco (Silva, 2008, p.22).
Todos os produtos descartados pela roda veloz da inovação viram sucata. O lixo, conforme Bauman, é o produto mais abundante do mundo líquido-moderno.
2.1. A comunicação na sociedade líquida Em uma das mais primordiais referências da obra de Bauman ao processo de comunicação, o autor menciona o volume de informações que os consumidores devem reter – por pouco tempo – para manter-se em movimento na roldana do mercado-vida. As informações iluminam os desejos dos consumidores, levando-lhes a refazer os percursos rumo à satisfação. É preciso saber, por intermédio da mídia, o que comprar, e o que descartar, para atingir a inovação. Seguir as cores da estação, trocar as roupas, a decoração da casa, mudar o penteado, o cardápio, trocar de carro, tevê, computador, tudo é acompanhado de um número incalculável de informações. Exemplifica Bauman (2007, p. 113) O volume de conhecimento exigido apenas para manter a posição é desconcertante: a multiplicidade vertiginosa de nomes, marcas, logotipos necessários a memorizar e estar pronto a esquecer, à medida que novas levas de ídolos-celebridades, empresas de design, gurus e distribuidores de moda que surgem do nada marcham com toques de trombeta e desaparecem.
Não há referências diretas ao processo de comunicação na obra de Bauman. Quando o faz, na maioria das vezes o pensador não usa termos específicos da área e resume os atos comunicativos entre instituições e pessoas ao marketing, ao qual estão vinculadas as áreas da comunicação, tidas como ferramentas do mercado. Nas observações indiretas, não obstante, é possível distinguir a vi-
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A comunicação em tempos de consumo: uma análise comparativa de Bauman e Castells
Nas revistas sobre estilo de vida responsáveis por ditar padrões, as colunas dedicadas a “novidades” ou “o que é in” (o que você deve ter, fazer e ser visto tendo ou fazendo) aparecem ao lado daquelas devotadas ao que é out (o que você não deve ter ou fazer nem ser visto tendo ou fazendo). As informações sobre os últimos lançamentos vêm no mesmo pacote que as notícias sobre os últimos acréscimos aos depósitos de lixo: o tamanho da segunda parte cresce de um número da revista para o seguinte (Bauman, 2005, p. 112).
O excesso de informações dos tempos líquidomodernos condiz com o exagero de mercadorias e, do mesmo modo, ambas não devem parar de circular em grande volume. Daí a linha tênue, hoje, que separa o verbo informar do verbo vender. A comunicação na sociedade líquida, especialmente a que se dá entre instituições e pessoas, trabalha para a mercantilização da vida. Setores da esfera íntima à pública, antes inegociáveis, são comunicados como novos produtos pelo mercado. As tecnologias da informação, das tradicionais às novas, são usadas para vendas cada vez mais inusitadas. Vendem-se serviços de divórcio, frases de conotação sexual (tele-sexo), orientação para o viver (terapia). Setores nunca antes abarcados pelo mercado, como o próprio meio ambiente, são tomados como produto. A difusão de padrões de consumo tão amplos a ponto de abraçar todos os aspectos e atividades da
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vida pode ser um efeito colateral inesperado e não planejado da “marketilização” dos processos da vida. O marketing penetra as áreas de existência que até recentemente estavam fora das áreas do reino de trocas monetárias e que não eram registradas nas estatísticas do PIB. Quando atinge terras até agora virgens, afasta todos os outros motivos e critérios de escolha que sejam “alheios ao espírito do mercado de commodities” (Bauman, 2007a, p. 116).
Ao exemplificar a inclusão plena do viver na cadeia consumista, Bauman (2007) cita a preocupação com o corpo na contemporaneidade. A seu ver, entre consumidores líquido-modernos, há mais ansiedade pela “boa forma” do que por qualquer outro padrão de consumo. Todos os dias surgem novas opiniões na mídia, mais especialistas sugerem alternativas para o corpo delineado e saudável. Todavia, a ironia do sistema reside nisto: os mesmos que prometem a redução da ansiedade de quem busca a boa forma são os que atingem bons resultados com base na ansiedade desses consumidores. A eliminação da ansiedade significaria, desse modo, a redução drástica do consumo e a derrubada dos pilares da sociedade líquida. Bauman vai além para fechar esse raciocínio. O marketing e, acredita-se, todas as ferramentas de tratamento das informações em favor do mercado, ou seja, o processo de comunicação atual, não estariam atendendo às necessidades das pessoas, mas, pelo contrário, incitando novas necessidades a todo o tempo, alimentando, assim, a insatisfação, sentimento fundamental à busca de novas mercadorias. Disserta Bauman (2007a, p. 121) [...] ao contrário da promessa declarada (e amplamente aceita) dos comerciais, o consumismo não se refere à satisfação dos desejos, mas à incitação dos desejos por outros desejos, sempre renovados – preferencialmente do tipo que não se pode, em princípio, saciar. Para o consumidor, um desejo satisfeito dever ser quase tão prazeroso e excitante quanto uma flor murcha ou uma garrafa de plástico vazia, para o mercado de consumo, um desejo satisfeito seria também o prenúncio de uma catástrofe iminente [...] um volume crescente de know-how oferecido pelo mercado e de engenhocas para colocá-lo em operação é planejado para fazer o “ciclo de desejo” girar mais depressa.
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FILOSOFIA
são baumaniana sobre a difusão das informações na sociedade líquida. Os veículos de comunicação em massa aparecem em posição privilegiada para a manutenção da ordem consumista. Para Bauman, é pela mídia que os valores de consumo são criados e renovados. Ressalta-se que não se trata de uma manipulação da sociedade pela comunicação. Os meios são instrumentos para os grupos sociais que se relacionam e (re) criam dia a dia novas condutas e valores. Por isso, a comunicação é uma peça fundamental do processo, mas está, antes, articulando classes, viabilizando as relações sociais e estabelecendo (pela ação dos sujeitos) os padrões provisórios de vida.
Eduardo Sabino
Ao se indagar sobre a formação de um consumidor, Bauman se volta para as crianças desta sociedade. Para o teórico, o processamento das características vitais para a indústria do consumo ocorre na infância. Já nessa fase aprende-se a escolher, seja entre roupas, jogos de video game, local de lazer (muitas vezes os shoppings), lanches preferidos (o próprio Mc Donalds tem kits infantis com sanduíches e áreas recreativas nas lanchonetes). Contudo, o contato com o mundo do consumo na infância acontece, principalmente, por diversos tipos de mídia. Diz Bauman (2007b, p. 10) As batalhas travadas a respeito da cultura do consumo infantil também são batalhas pela natureza da pessoa e pelo escopo da personalidade no contexto de alcance cada vez maior do mercado. O envolvimento das crianças com matérias, veículos, imagens e significados oriundos do mundo do comércio, a ele referentes e com ele entrelaçados ocupa uma posição central na construção das pessoas e das posições morais na vida contemporânea.
Bauman faz uma comparação interessante. Se nos primórdios de uma sociedade produtora as crianças eram levadas às fábricas para trabalhar, e isso era colocado como um processo educativo, no princípio de uma sociedade consumista, os pequenos serão educados a consumir, a dividir, sempre mais cedo, os desejos dos pais pela mercadoria-vida. Se ontem os responsáveis pelo treinamento das crianças no modo de vida produtor eram os próprios capitalistas industriais, hoje, os responsáveis são os detentores de informações e conhecimentos mercadológicos: os profissionais de comunicação e marketing.
FILOSOFIA
3 A Sociedade em Rede A sociedade em rede, cunhada pelo teórico Manuelll Castells, é uma nova ordem social formada na Era da Informação. O conceito traz em si a premissa de que a sociedade transformou-se em um sistema de redes interligadas em escala global, mediante o uso da tecnologia. Para Castells, desde os anos 70, o mundo passa por um processo de reestruturação vinculado, essencialmente, ao avanço das tecnologias de 84
informação. As novas formas de comunicação vêm possibilitando um modo de vida em que tudo, das empresas aos trabalhadores, dos ambientalistas aos criminosos, organizam-se em rede. A flexibilidade e a descentralização são marcas desses tempos. Afirma Castells (2007, p. 39) O próprio capitalismo passa por um processo de profunda reestruturação caracterizado por maior flexibilidade de gerenciamento; descentralização das empresas e sua organização em redes tanto internamente quanto em suas relações com outras empresas; considerável fortalecimento do papel do capital vis-à-vis o trabalho, com o declínio concomitante da influência dos movimentos dos trabalhadores, individualização e diversificação cada vez maior das relações de trabalho [...].
Para o teórico da sociedade em rede, o modo de desenvolvimento industrial do capitalismo está sendo superado. O novo modo é inteiramente informacional. No primeiro, a essência da produção era o uso das formas de energia nas maquinarias. No segundo, a fonte de produtividade é a tecnologia de geração de conhecimentos, de processamento de informações e comunicação de símbolos. Castells (2007) ressalta que o conhecimento e a informação são importantes em todos os modos de desenvolvimento. Na sociedade em rede, contudo, a informação é, por si mesma, o combustível da produção. No desenvolvimento dos softwares que constituem a tecnologia de ponta em diversos setores, por exemplo, aplica-se informação sobre informação para se obter lucratividade. Na visão do estudioso, uma sociedade não pode ser vista sem o seu aparato tecnológico, e, do mesmo modo, a tecnologia de uma sociedade diz muito sobre seus indivíduos. Por isso mesmo Castells vincula a apropriação das novas tecnologias pela sociedade estadunidense, nos anos 70, à difusão das ideias dos movimentos dos anos 60. Sem a revolução das tecnologias da informação dificilmente esses valores iriam se propagar com tamanha força pelo ocidente afora. Por outro lado, sem aplicação social, a tecnologia não existiria. Comenta Castells (2007, p. 43) Meio inconscientemente, a revolução da tecnologia da informação difundiu pela cultura mais significativa
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A comunicação em tempos de consumo: uma análise comparativa de Bauman e Castells
de nossas sociedades o espírito libertário dos movimentos dos anos 60. No entanto, logo que se propagaram e foram apropriadas por diferentes países, várias culturas, organizações diversas e diferentes objetivos, as tecnologias da informação explodiram em todos os tipos de aplicações e usos que, por sua vez, produziram inovação tecnológica [...].
uma força de trabalho permanente formada por administradores que atuam com base na informação e por aqueles a quem Reich chama de “analistas simbólicos” e uma força de trabalho disponível que pode ser automatizada e/ou contratada/demitida/ envida para o exterior, dependendo da demanda do mercado e dos custos do trabalho (Castells, 2007, p. 244).
A mudança nos modos de produção, de industrial para informacional, expandiu-se a todos os segmentos sociais, configurando uma nova ordem. Nesta, a tecnologia da informação projetada na geração de bens e serviços também media a relação entre as pessoas. Validam esse argumento as redes sociais da web e da internet, os softwares de comunicação usados para troca de informações nas empresas (messenger e skype), a comunicação via e-mails e torpedos, entre outros dispositivos que agilizam e, às vezes, tornam possíveis a comunicação social e as manifestações culturais. A sociedade em rede é caracterizada, em resumo, como uma sociedade apta a se comunicar e garantir seu sustento pelo uso da tecnologia da informação e que, por isso mesmo, vence os limites físicos, organizando-se em redes. Ao longo de seus estudos, Castells enumera e analisa fatos históricos das áreas da eletrônica e da informática, sem deixar de lado o contexto social de tais transformações. As redes – de caráter econômico, político, sociocultural e ambiental – tornam-se maiores conforme se reduzem barreiras entre sociedades (como tarifas alfandegárias), ao passo em que diminui o poder do Estado perante o mercado e a tecnologia se torna mais acessível e avançada. Os vínculos de trabalho são frágeis na sociedade em rede. É quase impossível falar em estabilidade num meio social conectado. As mudanças que ocorrem em um ponto da rede afetam outro, aparentemente longínquo, quase instantaneamente. As forças de trabalho agem, predominantemente, na manipulação da informação. Administradores substituem produtores, ou são, ainda, os próprios produtores num meio onde informação é fonte de riqueza.
A relação entre espaço e tempo, de um ponto de vista social, ajuda no entendimento da vida em rede. O espaço organiza o tempo na sociedade, e ambos foram alterados profundamente pelas tecnologias da informação. Vejamos primeiro o espaço. O espaço de lugares dá lugar ao espaço de fluxos. Há centros de controle na economia global capazes de gerenciar as atividades interligadas de redes empresariais. Os serviços disponíveis (propaganda, relações públicas, assessoria jurídica, gerenciamento de sistemas de informação etc) podem ser resumidos em fluxos de informações. O modelo espacial se caracteriza, hoje, pela concentração e dispersão simultâneas desses serviços. De um lado, são abrangentes e estão em todos os pontos do globo, de outro, tem havido uma concentração espacial da “camada superior” dessas atividades em algumas regiões do planeta. De acordo com os estudos de Castells, foi possível perceber que as funções de maior poder aquisitivo estão concentradas em algumas importantes áreas metropolitanas. Para exemplificar, Castells (2007) cita SaskiaSansen (1996), que identificou: a maior parte dos serviços de consultoria empresarial de âmbito internacional e de finanças internacionais encontram-se divididos entre Nova York, Tóquio e Londres.
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A trilogia “A Era da Informação” faz referência direta ao processo de comunicação. Não haveria sociedade em rede, aliás, sem a modernização dos processos comunicativos. Ao tratar da relação entre comunicação e sociedade, Castells (2007) vai longe: os meios de comunicação são a metáfora do homem e não só mediam suas relações com os símbolos culturais, mas também determinam sua visão de mundo. O homem vê o mundo por 85
FILOSOFIA
O modelo predominante de trabalho na nova economia baseada na informação é o modelo de
3.1 Comunicação e mercado em Castells
Eduardo Sabino
meio de linguagens e as linguagens são, decididamente, os meios de comunicação. Daí, uma mudança considerável na comunicação, a partir do aprimoramento das tecnologias da informação, muda a forma de a sociedade se comunicar e, além disso, as próprias estruturas e conteúdo das mensagens.
FILOSOFIA
Como a cultura é mediada e determinada pela comunicação, as próprias culturas, isto é, nossos sistemas de crenças e códigos historicamente produzidos são transformados de maneira fundamental pelo novo sistema tecnológico e o serão ainda mais com o passar do tempo (Castells, 2007, p. 414).
Castells não chega a aprofundar as transformações na relação entre as pessoas acarretadas pela nova comunicação, apesar de ter apontado, até certo ponto, a identidade do homem global, o andarilho dos espaços de fluxos e vivente do tempo instantâneo. Mas em análise abrangente, Castells tenta alcançar a forma como ocorre a mudança e em que se baseia, nem tanto os efeitos dela. Para ele, a comunicação, sob o viés da rede, integra diversas linguagens de maneira inédita em sistemas interativos. Escrita, oralidade, elementos verbais e não verbais coexistem no paradigma da informação. Apesar de a sociedade em rede ser vista sob a lente da tecnologia, e não do consumo, Castells percebe a grande aproximação entre os meios de comunicação (para ele determinadores da cultura de uma sociedade) e o Mercado. O mercado mundial tornou-se um sistema interdependente, com inclusão de novos segmentos da economia ao tabuleiro de trocas globais, inclusive da comunicação. Aqui buscada como veículo mercadológico para fortalecimento de um negócio e como o próprio negócio. Vejamos como se dá a integração entre mercado e mídia no contexto dos avanços tecnológicos. Configuraram-se na sociedade, a partir dos anos 80, redes globais de comunicação. Não por acaso, o período coincide com a abertura democrática em diversos países. A informação, com o avanço da tecnologia, tornou-se volumosa e dispersa. Principalmente na internet, onde não se tem um centro único de mensagens. Perdeu-se o 86
controle sobre o que se veicula. Este seria um dos principais motivos da crescente perda do poder do Estado: a sua capacidade de controlar os fluxos de informação sustentavam seu poder nos regimes autoritários. Afirma Castells (1999, p. 298) O controle sobre informações e entretenimento e, por meio dele, sobre opiniões e imagens, historicamente tem sido o instrumento de sustentação do poder do Estado, aperfeiçoado na era da mídia. Nesse contexto, O Estado-nação enfrenta três grandes desafios interrelacionados: globalização e não exclusividade da propriedade, flexibilidade e capacidade de penetração da tecnologia, e autonomia e diversidade da mídia. Na realidade, já sucumbiu a esses desafios na maioria dos países.
Essa tendência de separação entre mídia e Estado, não obstante, não pode significar simplesmente a liberdade dos meios de comunicação. O desenvolvimento das novas tecnologias não escapou ao mercado e de certa maneira foi impulsionado por ele. Por meio da comunicação, o mercado, cada vez menos regulamentado e mais global, poderia manipular e criar símbolos culturais em seu favor, e expandir o seu poder em dimensões nunca sonhadas pelos Estados-nações. A explosão das telecomunicações e o desenvolvimento dos sistemas de transmissão a cabo viabilizaram o surgimento de um poder de transmissão de informações sem precedentes. Essa tendência não escapou aos olhos das empresas, que não deixaram de aproveitar a oportunidade oferecida. Realizaramse megafusões e mobilizaram-se capitais em todo o mundo para que se pudesse participar do setor de comunicações, setor esse capaz de estabelecer elos de ligação [sic] de poder nas esferas econômicas, culturais e políticas (Castells, 2007, p. 299).
Talvez por isso hoje, por exemplo, jornais de todo o mundo se sustentam mais pelos anunciantes do que pelos leitores. Sejamos mais diretos: pelos dois, pois são fatores relacionados. Ao passo em que cresce a audiência dos públicos de interesse de uma empresa em um veículo, mais ela pagará por um anúncio. Em resumo, grupos financeiros, para atingir consumidores, tornaram-se a base da comunicação e, certamente, a comunicação tem
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A comunicação em tempos de consumo: uma análise comparativa de Bauman e Castells
4 A Comunicação em uma Sociedade Líquida e em Rede A sociedade líquida e a sociedade em rede partem das mudanças econômicas, científicas e culturais das últimas décadas no mundo. Mais ainda, da velocidade dessas mudanças. A primeira constrói sua crítica a partir do uso social das mercadorias, a outra, do uso social da tecnologia. Por se tratarem de teorias sobre a sociedade contemporânea, ainda que a vejam por diferentes ângulos, existem entre tais pesquisas mais elos que contradições. Nenhuma das duas é total, assim como não existe a verdade absoluta. São visões de mundo fortalecidas por dados históricos, pesquisas anteriores e novas observações. Como em todo estudo, há muitas lacunas entre Bauman e Castells a serem preenchidas. Vejamos agora como podem, inclusive, completarem um ao outro. Na sociedade líquida, a promessa religiosa da eternidade vem sendo trocada pela promessa da intensidade, feita por um mercado em constante renovação. A promessa da intensidade, não muito explorada por Bauman pelo viés comunicativo, está inteiramente ligada ao estudo de Castells Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 80-89
acerca das novas tecnologias da informação. Não seria exagero dizer: a pesquisa do teórico das redes globais dá solidez à sociedade líquida baumaniana. Bauman vê uma sociedade na qual todas as atividades são intermediadas pelo mercado. Dia a dia o consumidor é bombardeado por novos padrões de consumo e por ideias afetadas pela visão mercadológica da vida. Castells não aponta a sociedade em rede como uma sociedade de consumo, mas sustenta o discurso de Bauman, ao provar que o surgimento das novas tecnologias da informação afastou os meios de comunicação do Estado e aproximou-os do mercado. Aproximar a comunicação do mercado, por mais que a imprensa se rotule, desde então, como livre, é ensejar no discurso midiático os valores neoliberais e a ideologia do consumo. Ora, se os meios de comunicação ajudam na formação da visão de mundo do homem, como observou Castells, eles são preponderantes na formação da cultura do consumo, a essência descartável da sociedade líquida. Não só divulgadora dos padrões consumistas, como vislumbra Bauman (apesar de não se referir diretamente aos meios de comunicação) a mídia tornou-se a própria mensagem mercadológica. Os princípios de audiência, por exemplo, levam em consideração o que o público consumidor quer comprar (por isso o entretenimento está presente até na estrutura das notícias). Atrair o público com o que ele quer, não o que precisa, é fundamental para fidelizar uma base de consumidores de interesse dos anunciantes. Comunica-se não só padrões de consumo, mas informações para consumo, em embalagens favoráveis ao gosto dos anunciantes e de seus públicos-alvos. O conteúdo da mídia não difere tanto das mercadorias constantemente renovadas da sociedade líquida e de seus consumidores. Isso porque, quiçá, o mercado e a mídia fundiram-se a ponto de os princípios mercadológicos orientarem o processo comunicativo. Há muito poucos países no mundo, com exceção da China, Cingapura e o mundo islâmico fundamentalista, em que a estrutura institucional e comercial da mídia não tenha passado por mudanças drásticas entre meados da década de 80 e meados dos
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FILOSOFIA
se moldado para atender à sua base de sustentação. Diferente dos Estados, fontes preciosas para os alicerces da identidade nacionalista, a mídia se vincula agora à pluralidade e se esforça para funcionar em rede, para ser global. As privatizações em larga escala conferiram capital para a inserção dos grandes veículos midiáticos no reino das novas tecnologias, o que envolveu a participação de investidores e empresas em todo o mundo. Por isso na atualidade temos, de um lado, o Estado, coisa pública e “limitada”, e de outro, os meios de comunicação, em rede global, abertos para o capital das empresas, e, por isso mesmo, estritamente vinculados ao discurso delas. Se o receptor das informações de uma comunicação mais atrelada ao Mercado, reflete, em seu comportamento, a cultura do consumo, isso é assunto para ser investigado com cautela. Vale agora avaliar intercessões e diferenças entre a sociedade em rede, de Castells, e a sociedade líquida, de Bauman.
Eduardo Sabino
anos 90. As estações de rádio e televisão foram privatizadas em larga escala e as redes oficiais que permaneceram tornaram-se praticamente idênticas às redes da iniciativa privada, pois tiveram que vincular sua programação aos índices de audiência e/ ou às receitas provenientes dos comerciais (Castells, 1999, p. 299).
A sociedade líquida só vive num aterro de fluxos de informações, porque está cada vez mais organizada em rede. As tecnologias da informação de Castells estão por trás da liquidez da sociedade de Bauman. Ao circularem, em alta velocidade, pelos espaços de fluxo, as coisas podem ser substituídas em velocidade jamais vista. É pelo uso da tecnologia que os padrões de consumo podem ser refeitos e rapidamente comunicados a milhões. Para acompanhar a tendência de mercado para vários objetivos (lazer, relacionamento, trabalho), o sujeito líquido-moderno precisa se atualizar frequentemente, por meio do domínio da informação e suas tecnologias. Ou seja, a sociedade do consumo é líquida e em rede.
FILOSOFIA
5 Considerações Finais O Homo sapiens atual quer mais sabedoria do que jamais sonhou seus antecessores, e tem em mãos as tecnologias necessárias para obter informações de toda parte do globo em tempo real. O conteúdo comunicado, todavia, reforça um trajeto interminável, entremeado por bancos e lojas. Vimos neste artigo as visões de Bauman e Castells para a simbiose entre mercado e comunicação. Seja no que tange ao processo comunicativo como um todo ou às próprias mídias, não há consumo e nem produção acelerada sem comunicação intensa de símbolos, informações e imagens. O espetáculo do mercado, mesmo quando toca em questões delicadas, é sempre marcado pela beleza das técnicas publicitárias, ao passo em que a sujeira, o sangue e a fome, intensificados com a globalização dos mercados, parecem problemas individuais. Se cada um fizer sua parte, chegaremos lá. A solução é a solidariedade? Deitar a cabeça no travesseiro após uma jornada de trabalho e algumas esmolas? Graças às “boas 88
ações” o terceiro setor cresce e movimenta milhões. Mas um relatório da ONU para 2020, pequeno facho de luz para além da caverna, prevê mais de 45% de pobres nas grandes cidades mundiais. Se a comunicação está a serviço do mercado, também o estamos. Confrontar o sistema é confrontar a nós mesmos e cada uma de nossas posições de privilégio. Se as imagens de desperdício e degradação ambiental exercem efeito sobre nós, também o fazem as mercadorias na vitrine. Opor-se ao mundo como ele é, no entanto, não é votar em um partido de esquerda. Direita e esquerda andam abraçados por um desfiladeiro. Contrapor em primeira instância é conhecer, aprofundar nas coisas e duvidar de qualquer sombra de verdade em tempos de imagens perfeitas manipuladas no computador. Se tratando de nós, estudiosos da comunicação social, opor-se é lutar por uma outra comunicação. E inclusive, por novos estudos do processo comunicativo. A teoria da bala mágica nasceu em tempos de guerra. Tempos em que um homem era capaz de subir num palanque e arrastar multidões para reafirmarem uma identidade nacional. A comunicação líquido-moderna não é uma injeção de efeitos certeiros, ela se confronta com múltiplos valores, especialmente numa sociedade em que identidades são plurais, inconstantes e ambíguas. A mídia, apesar de sua força, influencia ao lado de outras instituições: a igreja, a escola, a família e o Estado. Mas eis uma provocação conclusiva desta pesquisa: os meios de comunicação e todas as outras instituições adaptam-se cada vez mais às normas do mercado, a maior das instituições contemporâneas. Tornou-se quase uma blasfêmia falar em manipulação da mídia após a abertura democrática (e fortalecimento do mercado). Talvez porque, em parte, não há manipulação. Muitas vezes o sujeito que comunica, seja ele da base ou do ápice do sistema, é dono de um discurso pronto, condizente com a vida atual. O poder do Estado se manifestava pelo autoritarismo e censura, lembremos, o do mercado se manifesta pelo multiculturalismo e pela suposta liberdade de expressão. Zizek (2007) indica: a escravidão só será plena se o cativo acreditar-se liberto.
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A comunicação em tempos de consumo: uma análise comparativa de Bauman e Castells
Referências BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 96p. ______. Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007a. 212p. ______. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007b. 120p. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Rio de Janeiro: USP, 2007. 698p. ______. O poder da identidade. Rio de Janeiro: USP, 1999. 530p. SILVA, Luiz Inácio. Discurso presidencial. São Paulo: O Globo, 22 de dezembro, 2008. 22p. ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real. Rio de Janeiro: Contraponto, 2007. 191p.
FILOSOFIA
A intercessão entre o discurso de Bauman e Castells aponta que os meios de comunicação são produtores do mercado, no sentido de divulgadores dos símbolos do consumismo, e, também, são produto de mercado, pois têm estrutura de funcionamento influenciada por princípios mercadológicos. Além disso, a atuação da mídia na sociedade é limitada por interesses econômicos. O objetivo deste artigo, não obstante, não é nem de longe colocar um ponto final no assunto, mas contribuir para o início desse estudo. A mídia deve ser compreendida no contexto em que vivemos, por isso a teoria deve se dissociar do mercado para entender como a comunicação se tornou mercadológica e quais as consequências disso para a sociedade.
Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 80-89
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Verdade e correção em Habermas Ms. Fábio Eulálio dos Santos Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo, Av. Vitória, 950, Forte São João, 29.017-950, Vitória, ES, Brasil. feulalio@salesiano.com.br
Resumo Este texto esclarece até que ponto pode-se atribuir validade objetiva para os julgamentos morais, a partir das discussões apresentadas por Habermas no quadro teórico da filosofia da linguagem após a guinada pragmática. Trata-se, portanto, de legitimar o pressuposto da ética do discurso: questões práticas podem ser resolvidas racionalmente. É analisado o conceito semântico de fundamentação em contraposição ao conceito pragmático de fundamentação, para no final encaminhar a possibilidade de fundamentação de normas morais a partir da comparação entre a pretensão de validade dos juízos morais – correção – a pretensão de validade de assertivas – verdade. Palavras-chave: Moral. Correção. Verdade. Fundamentação. ABSTRACT This text seeks to understand to what degree we can attribute objective validity to our moral judgments, taking as a point of departure the argument presented by Habermas in terms of language philosophy after a pragmatic turn. We seek therefore to make legitimate the discourse ethics precept: practical questions can be resolved rationally. The concept of semantic grounding as an alternative to pragmatic grounding concept is analyzed, with the final objective of considering the possibility of fundamentation moral norms from a comparison between the pretension to validity of our moral judgments – Correction - with the pretension of the validity of assertions - Truth. Key words: Moral. Correction. Truth. Fundamentation.
FILOSOFIA
1 Introdução O conceito de fundamentação defendido por Habermas abre uma frente contra a objeção de Weber (1992) a respeito da possibilidade, num mundo desencantado, de um procedimento racional, uma fundamentação, que pudesse responder as questões a respeito dos fins práticos, e assim, responder a pergunta: o que devemos fazer? A possibilidade de fundamentação de proposições está ligada à visão do teor cognitivo que temos delas. E para Weber (2005) as proposições valorativas, como “mentir é injusto”, devem ser julgadas conforme as próprias avaliações éticas ou religiosas de cada um, tratando-se de questões subjetivas, para a valoração faltaria uma referência objetiva. Daí, Weber (2005) considerar que o valor de uma norma moral é heterogêneo ao valor de verdade de uma comprovação empírica de fatos. O procedimento racional que conta para a fun90
damentação estaria, segundo a tese de Weber, delimitado ao tipo de conhecimento que produzimos a respeito de fatos, a saber, explicações causais. O conceito de fundamentação subjacente à posição de Weber liga-se ao conceito de verdade baseado na teoria da correspondência. Significa, segundo Habermas (1989), que o conjunto de proposições descritivas tem que se ajustar aos fatos. Portanto as proposições verdadeiras devem “corresponder” a fatos, sendo estes correlatos objetivos das proposições. Ou seja: um procedimento racional só se aplicaria a proposições descritivas, pois somente estas podem ser falsas ou verdadeiras.
2 Conceito Semântico de Fundamentação Hans Albert, no seu livro “Tratado da razão crítica”, expõe o conceito de fundamentação do pensamento tradicional, que o leva ao mesmo
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lugar de Weber. H. Albert apresenta a concepção clássica de fundamentação sob o signo do princípio da razão suficiente, “em virtude do qual nós ponderamos que nenhum fato é verdadeiro ou existente, e nenhuma verdade pode ser verdadeira, sem que haja um fundamento suficiente para ela ser – porque é assim e não de outra forma” (Albert, 1976, p. 41). H. Albert diz que tal princípio da fundamentação suficiente estende-se a todo tipo de convicção que se pretenda fundamentar, seja uma convicção teórica ou moral. H. Albert esclarece que quando se trata da validade de argumentos, a fundamentação suficiente realiza-se pela lógica formal, o que indica para um conceito semântico de fundamentação. De acordo com a concepção semântica um argumento dedutivo válido é aquele que se constitui de uma conclusão que pode ser deduzida de premissas, subsistindo entre elas determinadas regras lógicas essencialmente válidas. H. Albert salienta, porém, que “por meio da dedução lógica nunca se pode obter um conteúdo” (Albert, 1976, p. 25), isto é, a conclusão não dá origem a um saber novo, visto que o seu conteúdo já está contido nas premissas. Na verdade o processo de dedução serve apenas para sintetizar, juntar proposições e não criar novas informações. O resultado é que as proposições de conteúdos ou informativas, não podem ser deduzidas de proposições analíticas. Outro ponto ressaltado por H. Albert é que um argumento dedutivo válido não quer dizer necessariamente que seus componentes, premissa e conclusão, sejam verdadeiros a respeito do conteúdo. Isto é, podem ocorrer termos premissas falsas e conclusões falsas ou verdadeiras. Somente não podem ocorrer que premissas verdadeiras deem origem a conclusões falsas. H. Albert lembra que um argumento dedutivo válido garante apenas a transferência do valor positivo de verdade do conjunto de premissas para a conclusão, e, consequentemente, a retrotransferência do valor negativo de verdade – falsidade da conclusão para o conjunto de premissas. H. Albert aponta o seguinte problema dessa concepção: se se exige uma fundamentação de tudo, então se cobra também uma fundamentação para a base de proposições a partir da qual outras proposições são deduzidas. Considerando a concepção de fundamentação suficiente, quando Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 90-95
se tenta fundamentar essa base de proposições, surge um problema que leva a uma situação com três alternativas que são inaceitáveis, que H. Albert denominou de “trilema de Münchhausen”, que consiste em ter que escolher entre: um regresso infinito, um círculo lógico na dedução, ou uma interrupção do procedimento de dedução em um determinado ponto de modo arbitrário. H. Albert insiste em que a situação não muda se introduzirmos outro processo de dedução diferente da dedução lógica, como a dedução transcendental ou a utilização de procedimentos indutivos, pois, sairíamos do plano da análise dedutiva das proposições que o procedimento dedutivo oferece para a análise dedutiva do próprio procedimento adotado, isto é, H. Albert afirma que se utilizássemos, por exemplo, o procedimento indutivo, teríamos que fundamentar dedutivamente tal procedimento, e teríamos, por fim, que deduzir o princípio de indução. Nesse sentido, ainda estaríamos diante do “trilema de Münchhausen”. Com isso, H. Albert critica todas as teorias que pretendessem transferir o valor de certeza absoluta para conclusões deduzidas a partir de uma base de proposições como princípios indubitáveis universais por advogarem, que seriam acessíveis imediatamente pela percepção dos sentidos ou pelo espírito. H. Albert entende que seria uma posição dogmática, como uma revelação, que se constituiria na verdade na substituição do conhecimento pela decisão. A aceitação de qualquer método, para H. Albert, envolve uma decisão moral, mas que é irracional e tem apenas caráter volitivo. Daí, ele sugere o princípio da verificação crítica como substituto da ideia da fundamentação, que deve possibilitar o julgamento crítico de qualquer convicção. Trata-se de uma posição falibilista, que renuncia a fundamentação para sair do “trilema de Münchhausen”. Para Habermas a tese de H. Albert é imprestável, pois a sua validade como objeção para a fundamentação em geral só tem relevância “com a pressuposição de um conceito semântico de fundamentação, que se orienta pela relação dedutiva entre proposições e que se apoia unicamente no conceito de inferência lógica” (Habermas, 2003, p. 101). Habermas aponta, a partir do marco teórico da virada linguística pragmática, que não se pode 91
FILOSOFIA
Verdade e correção em Habermas
Fábio Eulálio dos Santos
duvidar de tudo ao bel-prazer, assumindo uma posição fora do mundo, de um sujeito solitário, para posteriormente efetuar a fundamentação de tudo, como o faria a filosofia da consciência, que é a que H. Albert contesta como modelo de fundamentação. O exame crítico da linguagem e da interpretação mostra que, no lugar de um sujeito solitário que promoverá a sequência dedutiva de tudo que antes duvidou, entram tanto a mediação pragmática da linguagem quanto um mundo da vida, e, com isso, a autoridade epistêmica não é mais o sujeito solitário, mas a comunidade de todos os sujeitos intérpretes. Isso significa que toda fundamentação já que tem que partir, ao menos, de um contexto pré-compreendido ou uma compreensão de fundo. Assim, destaca que só duvidamos de algo que se mostrou com um problema para nós.
FILOSOFIA
3 Conceito Pragmático de Fundamentação Com a virada linguística pragmática que ficou claro que não se trata mais de uma relação ontológica correspondente bipolar entre proposição e fato, pois não é de uma relação entre sujeito e objeto, mas uma tríplice relação: do ato de fala que faz valer um estado de coisas para uma comunidade de interpretação. Daí, ao contrário de um conceito semântico de fundamentação, Habermas pôde defender um conceito pragmático de fundamentação, a saber, como uma “práxis de justificação pública, na qual pretensões de validade criticáveis são satisfeitas com razões” (Habermas, 2002, p. 50). O discurso é justamente esta práxis de justificação pública. E esta prática de fundamentação já se encontra no mundo da vida. Considerando o discurso, quando o assunto é fundamentação devemos nos voltar não para as relações dedutivas das proposições, mas sim para as relações pragmáticas entre os atos de fala argumentativos, isto é, entre os argumentos proferidos. Como o sentido da fundamentação esclarece-se a partir da dimensão pragmática, temos que fundamentar uma proposição é antes de tudo alcançar o assentimento racional dos envolvidos. Habermas, portanto, tem que demonstrar que as normas morais têm um teor cognitivo que as permitem ser alvo de um procedimento de fun92
damentação. Este é propriamente o pressuposto do discurso prático: questões práticas podem ser resolvidas racionalmente. Trata-se, portanto, contra Weber, de defender uma posição cognitivista para a moral. Weber tinha negado a possibilidade de atribuirmos o valor de verdade para as normas morais. Sua posição é coerente, na medida em que ele parte da concepção de verdade ligada à teoria da correspondência, mas a concepção pragmática de fundamentação abre caminho para um conceito epistêmico de verdade, isto é, como pretensão de validade satisfeita por razões. É por esse caminho que Habermas defende uma posição cognitivista da moral, que permite responder a seguinte pergunta: “até que ponto uma compreensão cognitivista dos juízos morais exige uma assimilação do conceito de ‘correção’ ao de ‘verdade’?” (Habermas, 2004, p. 279). O esclarecimento de Habermas a respeito da correção moral e da verdade encaminha uma resposta que reduz a exigência somente ao ponto de considerar-se também a correção como uma pretensão de validade absoluta – que comporta uma codificação de “sim” ou “não” – assim como se considera a verdade, mas não ao ponto de assimilar os aspectos que esgotam seus sentidos. Isso porque podemos falar de um saber moral, que goza de objetividade, sem que a objetividade deste saber seja confundida com a objetividade do saber que levanta a pretensão de verdade. A tese de Habermas é que tanto a correção de normas morais quanto a verdade de proposições descritivas estabelecem-se no discurso, no sentido de que não temos acesso direto nem às condições de verdade nem às condições que fazem as normas morais merecerem reconhecimento universal. A validade das proposições só pode passar pela prova discursivamente, pelo medium de razões disponíveis. Para a correção moral, entretanto, falta a referência a um mundo objetivo, como é no caso da verdade. Daí uma diferença que força Habermas a afirmar que a verdade é um conceito que transcende toda justificação e que não pode ser identificado como assertibilidade idealmente justificada. Isto porque a independência do mundo objetivo faz do conceito de assertibilidade justificada um conceito que apenas indica as condições de verdade que o próprio mundo deve preencher,
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enquanto o mundo social é construído por nós e, por isso, já contribuímos para o preenchimento das condições de validade de normas morais.
4 Verdade e Correção O núcleo da discussão é posto nestes termos: sobre a relação da pretensão de verdade e da pretensão de correção com a justificação – donde se extrai uma distinção entre verdade e correção – e, depois, sobre a validade incondicional dessas pretensões, que vai aproximá-las sob a forma de uma analogia. O conceito epistêmico de verdade não dá conta do aspecto incondicional e inalienável que atribuímos ao conceito de verdade. A verdade é somente acessível na forma do racionalmente aceitável, ou seja: só temos acesso às razões justificadoras para nos convencer da verdade de uma proposição, que, por sua vez, pode se mostrar falsa no futuro. Assim sendo, entre assertibilidade justificada e verdade, considerada sob o aspecto incondicional, há um espaço que impede a assimilação dum conceito por outro. Habermas salienta, entretanto, que há uma relação entre verdade e justificação, pois uma proposição justificada pelo menos diz a favor da verdade “da mesma” proposição. Se por um lado poder-se-ia chamar a atenção para as condições de justificação, como numa situação ideal de fala, onde o discurso se realizaria, concretizando os pressupostos pragmáticos do agir comunicativo sob a forma de regras, para aproximar verdade e justificação, e então fazer dessas condições ideais a explicação da autorização para termos por verdadeira uma proposição idealmente justificada, por outro lado, a verdade de uma proposição não pode ser considerada um fato epistêmico simplesmente porque não temos acesso direto às condições de verdade, mas apenas um acesso discursivo. É complementando o sentido do conceito de verdade a partir de um conceito pragmático de verdade que Habermas explica tal autorização. A perspectiva pragmática tem em vista o funcionamento da pretensão de verdade ainda no contexto da ação, que é envolvido pelo mundo da vida. Aqui a linguagem está engatada em contextos de ações, em que o que está em jogo é o funcionamento da práxis cotidiana de entendimento. Nesse sentido, Habermas explica que a conexão entre verdade e Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 90-95
justificação não é epistemológica, mas pragmática. Para que esse jogo de cooperação e entendimento mútuo, ainda no contexto da ação e não no contexto do discurso, funcione é necessária a suposição de um mundo objetivo, independente de nossas descrições. É essa interpretação pragmática do conceito de verdade que dá conta das conotações ontológicas que associamos à apreensão dos fatos, e consequentemente, que dá conta também do aspecto incondicional da verdade. No contexto da ação temos um conceito pragmático de verdade e no discurso um conceito epistêmico de verdade. Naquele o que está em jogo é o papel pragmático de uma verdade bifronte, que serve de intermediário entre a certeza da ação e a assertibilidade discursivamente justificada, na medida em que há a possibilidade de transição da ação para o discurso. Adotando como participantes do discurso a posição epistêmica, os atores operam uma discussão acerca da pretensão de verdade da proposição descritiva, que pode ser devolvida discursivamente como assertibilidade idealmente justificada, mas que, por sua vez, é recebida novamente no contexto da ação como uma verdade que guia as ações enquanto certeza. Da perspectiva pragmática, é sempre provisória a postura reflexiva em discursos a fim de restabelecer um saber parcialmente abalado, em que “o resgate discursivo de pretensões de validade ganha o sentido de uma licença para retornar à ingenuidade do mundo da vida” (Habermas, 2004, p. 286). Pois a discussão é apenas um meio para outros fins para os atores que têm que chegar a bom termo com o mundo. E uma vez que são consideradas todas as razões relevantes e todos se convencem que as objeções contra uma proposição esgotaram-se, não faz sentido continuar o discurso, que na perspectiva interna de quem discute não teria fim. A necessidade da ação dentro de um mundo da vida pontua temporalmente os discursos, e, com isso, fornece “o critério para uma orientação por pretensões de verdades independentes de contextos” (Habermas, 2004, p. 287), o que já é pressuposto na ação, visto a pretensão incondicional da verdade. Assim, nessa perspectiva pragmática do conceito de verdade, conferimos uma conotação ontológica ao sentido representativo das nossas afirmações. Isso significa que para nós uma propo93
FILOSOFIA
Verdade e correção em Habermas
FILOSOFIA
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sição é verdadeira porque um determinado estado de coisas “existe”, trata-se no mundo objetivo, sobre o qual podemos descrever fatos. Habermas chama a atenção para o fato de que esse modo de falar ontológico traz ao palco uma ligação entre verdade e referência, isto é, entre a verdade de uma proposição descritiva e a objetividade daquilo sobre o que se descreve algo. Sendo assim, para a pretensão de verdade temos duas determinações de objetividade, a saber, a indisponibilidade e a identidade – o que não é o caso da correção moral, que conta apenas com a identidade. As proposições envolvidas na prática cotidiana resistem à prova da verdade na medida em que funcionam para coordenarem os planos de ação, e, nesse sentido, acompanham o mundo objetivo; porém o fracasso no funcionamento significa que o mundo não jogou junto conosco, isto é, que a proposição que se mostrava como certeza de ação foi desmentida pelo mundo, pois a ela não podia satisfazer. Isso mostra a indisponibilidade do mundo objetivo, que impede manipulações, e a identidade de um mundo comum para todos. É essa perspectiva pragmática da conexão entre verdade de proposições e a objetividade do mundo objetivo que impede uma analogia entre verdade e correção moral para além do plano do discurso, pois no nível pré-reflexivo o teste de prova das correções das normas e juízos morais não se dá em contraste com um mundo independente de nós, mas, ao contrário, ocorre diante de outros sujeitos num mundo social comum. A resistência para provar a correção moral não provém de dados objetivos não dominados, mas da falta de um consenso normativo com outros sujeitos, que somente poderá ser superado se as partes conflitantes ampliarem o mundo social ao se incluírem reciprocamente num mundo construído em comum. Desse modo, não podemos falar de uma relação entre correção e referência como foi feito para a verdade. O mundo que se relaciona com a pretensão de validade moral é construído, portanto no lugar da referência a um mundo objetivo entra a “orientação por uma ampliação das fronteiras da comunidade social e de seu contexto axiológico” (Habermas, 2004, p. 291), que priva a correção moral de um ponto que transcenda a justificação. 94
O consenso atingido pelo discurso sob condições aproximativamente ideais tem conotações diferentes para a verdade de proposições descritivas e para a correção de normas morais, pois a verdade daquela não significa apenas que ela sobreviveu às objeções, mas considerando o mundo objetivo, a verdade de uma proposição descritiva significa também um fato. A referência ao mundo objetivo implica que uma proposição pode mostrar-se falsa mesmo que esteja bem justificada, pois o estado de coisas que ela descreve existe independente de qualquer descrição e, portanto, de qualquer justificação. Porém, isso não se passa do mesmo modo com a pretensão de correção moral. No discurso prático-moral chega-se a um consenso se um determinado tipo de agir deve ser considerado obrigatório para todos. Este consenso alcançado tem algo de definitivo, porque não se deixa contrastar com algo que prescinde da justificação para existir, no sentido de que não estabelece nenhum fato, mas fundamenta uma norma, isto é, diz que uma norma merece reconhecimento intersubjetivo, entendendo que é possível de ser estabelecida por meio da aceitabilidade racional. Se para a verdade o discurso em condições ideais apenas pode apontar as condições de verdade, reconhecendo a verdade das proposições, já para a correção de normas morais ele pode garantir o preenchimento das condições de validade moral. Nesse sentido, diferentemente da verdade, a correção moral tem seu sentido esgotado na aceitabilidade idealmente justificada. A correção é imanente à justificação, “porque a validade de uma norma consiste no fato de que ela seria aceita, ou seja, reconhecida como válida sob condições ideais de justificação, a correção é um conceito epistêmico” (Habermas, 2004, p. 291). A analogia entre verdade e correção enquanto validades absolutas, isto é, o aspecto incondicional da pretensão, guarda também diferenças. Visto que é a perspectiva pragmática do conceito de verdade que permite compreender a verdade como um conceito bifronte incondicional, na medida em que ela não se reduz a considerações epistêmicas de seu sentido, e assim transcende à justificação, temos que a atribuição à correção
Episteme - Revista Científica da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Verdade e correção em Habermas
âmbito de validade, isto é, a inclusão de todos no consenso normativo, explica a incondicionalidade da pretensão de validade moral. É do ponto de vista universalista que examinamos a correção de normas morais, o que pode constituir um equivalente das restrições impostas por um mundo objetivo.
Referências ALBERT, Hans. Tratado da razão crítica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976. HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola, 2002. ______. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. ______. Teorías de la verdad. In: ______. Madri: Catedra, 1989. ______. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. São Paulo: Loyola, 2004. WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Editora Cultrix, 2005. ______. O sentido da “neutralidade axiológica” nas ciências sociais e econômicas. In: ______. Parte 2. São Paulo: Cortez Editora e Editora da Unicamp, 1992.
FILOSOFIA
moral do mesmo status de incondicionalidade é necessariamente diferente, uma vez que esta é imanente à justificação. De fato, as determinações da objetividade do mundo objetivo não podem ser atribuídas integralmente ao mundo social, mas cabe saber o que a orientação de um mundo de relações interpessoais bem-ordenadas e totalmente inclusivo compartilha com o conceito do mundo objetivo. Como antes foi visto, a resistência à prova para a correção moral é composta de outros sujeitos num mundo social, que podem rechaçar tal pretensão, e, nesse sentido, a validade de normas morais mede-se pela natureza inclusiva de um consenso normativo obtido entre as partes conflitantes. Assim, a validade moral só pode ser satisfeita pela inclusão de todas as pessoas. Porém, se esse único mundo social é algo que construímos então para o mundo moral não se pode falar de indisponibilidade, mas somente de identidade como determinação de sua objetividade, na medida em que se trata do mesmo mundo para todos, construído por todos os afetados, mediante a adoção recíproca de suas perspectivas. Assim sendo, se a validade das normas e juízos morais mede-se pela natureza inclusiva do consenso normativo, então a universalidade do
Vitória-ES, 2010, vol. 01, no. 1, p. 90-95
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