a.8 n.15 jul./dez. 2010 - Iftav/Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Nº 15
julho/dezembro 2010 n. 15 a. 8
REDES
Revista Capixaba de Filosofia e Teologia
Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória - ES Diretor: Hugo Scheer Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo Diretor Executivo: Jolmar Luis Hawerroth REDES Revista Capixaba de Filosofia e Teologia Uma publicação do Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória e da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Coordenador Paulo Cesar Delboni pdelboni@salesiano.com.br Vice-coordenador Renato C. Gama Comissão Editorial Antônio Vidal Nunes, Fábio Eulalio dos Santos, Hugo Scheer, Paulo Cesar Delboni e Renato C. Gama. Conselho Editorial Antonio Donizetti Sgarbi (Instituto de Filosofia e Teologia de Vitória - Iftav), Antônio Vidal Nunes (Universidade Federal do Espírito Santo - Ufes), Claudia P. C. Murta (Ufes), Edebrande Cavalieri (Ufes), Franz Helm (Instituto de Teologia das Religiões, St. Gabriel, Viena - Áustria), Geraldo Caliman (Universidade Católica de Brasília - DF), Giovani Marinot Vedoato (Iftav), Guido Gatti (Pontifícia Universidade Salesiana - Itália), Jair Miranda de Paiva (Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo), Joachim G. Piepke (Faculdade de Filosofia e Teologia St. Augustin - Alemanha), Kelder J. B. Figueira (Iftav), Mario Toso (Pontifícia Universidade Salesiana - Itália), Renato C. Gama (Iftav), Tiago Adão Lara (Universidade Federal de Juiz de Fora - MG) e Virgínia A. Carrara (Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo).
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Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória - Iftav Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
REDES
Revista Capixaba de Filosofia e Teologia a. 8 - n. 15 - julho/dezembro 2010 Vitória-ES
FILOSOFIA E RELIGIÃO
ISSN 1679-4265 Redes: Revista Capixaba de Filosofia e Teologia
Vitória
a. 8 n. 15 p. 1-180
jul./dez. 2010
© 2010 - Iftav/Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo Todos os direitos reservados. A reprodução de qualquer parte da obra, por qualquer meio, sem autorização da editora constitui violação da LDA 9.610/98.
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Capa: Edson Maltez Heringer Revisão geral: Djalma José Vazzoler Elaboração e revisão dos abstracts: Jussara Braz da Conceição Editoração: Edson Maltez Heringer | 27 8113-1826 - edsonarte@terra.com.br Impressão: Gráfica Quatro Irmãos | 27 3326-1555 - grafica4irmaos@uol.com.br
Editora: Iftav/Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Redes: Revista Capixaba de Filosofia e Teologia. Ano Vitória, a. Vitória, a. 8, n. 15 (Jul./Dez. 2010). - Vitória : Iftav / Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo, 2010. 180 p. ; 21,5 cm. Semestral ISSN 1679-4265 1. Filosofia - Periódicos. 2. Teologia - Periódicos. I. Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória - ES. II. Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo. CDU 1+2 (05) Tiragem: 300 exemplares | Periodicidade: Semestral
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .................................................................................................7 A REALIZAÇÃO DA ERÓTICA: CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE E. DUSSEL ...................................09-21 The realization of the eroticism: considerations from E. Dussel Daniel Pansarelli EXTERIORIDADE E PRINCÍPIO ÉTICO MATERIAL EM ENRIQUE DUSSEL ..............................................................................22-36 Exteriority and ethical material principle in Enrique Dussel Deodato Ferreira da Costa QUESTÕES MORAIS À LUZ DE ARISTÓTELES E TOMÁS DE AQUINO ..............................................................................37-60 Moral questions in accordance with Aristóteles and Tomás de Aquino Suderlan Tozo Binda O DESAFIO COLOCADO POR MAX WEBER ...................................61-70 The Challenge Raised by Max Weber Fábio Eulálio dos Santos O LUGAR DA METAFÍSICA NO PENSAMENTO MODERNO: O RE-PROPOR DA QUESTÃO SOBRE O SER NO PENSAMENTO DE MARTIN HEIDEGGER .....................71-85 The place of metaphysics in the modern thought: the re-propose of the matter about the being in Martin Heidegger’s thought Werbson Beltrame Pereira O CONCEITO DE FRONTEIRA NA ÓTICA DOS ESTUDOS CULTURAIS .....................................................86-94 The concept of Boundary from the perspective of the cultural studies. Wuldson Marcelo Leite Souza e José Carlos Leite
DIE KATHOLISCHE KIRCHE IM „DRITTEN REICH“ ................95-117 The catholic Church and the National Socialism in Germany P. Karl Josef Rivinius, SVD FALAR DE DEUS NA HISTÓRIA: O DEUS DOS POBRES COMO MANIPULAÇÃO DO DEUS VERDADEIRO? ..................118-139 Talk about God in history: the God of the poor as manipulation of the true god? Adriano Souza Viana AS RAÍZES DA CRIAÇÃO ......................................................................140-151 The roots of creation Francimar Arruda SEGUINDO OS PASSOS DE MARIA: UMA CAMINHADA CHEIA DE FÉ, EMOÇÕES E FATOS SOBRENATURAIS .................................................................152-172 Following Mary’s steps: a walk full of faith, emotion and supernatural facts Regina Coeli F. Silva RESENHA ....................................................................................................173-174 REVISTAS EM PERMUTAS ...................................................................175-178 NOTA AOS COLABORADORES .........................................................179-180
APRESENTAÇÃO
A Revista Capixaba de Filosofia e Teologia (Redes), fundada em 2003, de circulação semestral, é fruto de uma parceria dos cursos de Filosofia da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo e Teologia do Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória (Iftav). O periódico foi concebido para estimular e difundir a construção do conhecimento filosófico-teológico produzido pelos professores e alunos dos citados cursos, bem como de pesquisadores de outras instituições de ensino e pesquisa. O nome Redes conserva a universalidade dos temas básicos da revista, que são filosofia e teologia. O conhecimento é aqui pensado como entrelaçamento de significações. “Rede” traz à tona as ideias de acentrismo, metamorfose, heterogeneidade, multiplicidade, transdisciplinaridade. A Redes busca a coerência entre a práxis dos cursos de Filosofia e Teologia, além da integração multidisciplinar com diversas outras áreas do conhecimento, como as ciências da religião, incluindo aí vários recortes que podem ser feitos no estudo do fenômeno religioso, destacando-se a antropologia, a comunicação social, a história, a pedagogia, a psicologia e a sociologia.
Paulo Cesar Delboni
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A REALIZAÇÃO DA ERÓTICA: CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE ENRIQUE DUSSEL Daniel Pansarelli*
Resumo Propõe-se o estudo de elementos da história da América Latina à luz do pensamento recente de Enrique Dussel, buscando compreender a erótica, conceito caro ao autor, em dois momentos, a saber: a dominação erótica que se realizou como parte da dominação ético-política no processo de colonização e o sentido ético da realização da erótica em um desejado contexto de não opressão. Palavras-chave: Erótica. Ética. História. América Latina.
Introdução Como tudo aquilo que o entendimento humano pode acessar, a história, para fazer algum sentido, deve ser interpretada. Para além de uma sucessão de fatos observáveis e constatáveis, numa palavra, para além da objetividade, é preciso atribuir sentido, incluindo então o elemento subjetivo, humano. Por ser humano, o ponto de vista que fundará a interpretação, o ângulo a partir do qual serão considerados os fatos, é sempre localizado histórica e geograficamente, nunca é universal. Ainda que o resultado da interpretação ambicione sê-lo. As verdades, portanto, têm sido costumeiramente tomadas como construções com prazo máximo de validade, no geral, desconhecido. Essa constatação * Professor no Curso de Filosofia da Universidade Federal do ABC. Graduado em Filosofia, doutor em Educação pela Universidade de São Paulo. Contato: pansarelli@ gmail.com.
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que há tempos é aceita pelas comunidades intelectuais no tocante ao conhecimento científico, parece não ter, ainda, produzido efeitos mais radicais quando o objeto a ser interpretado é a história. Ao abordar o assunto em suas obras mais recentes, destacadamente em 1492: o encobrimento do outro (1994), em Ética da libertação (1998) e no primeiro volume da Política da libertação: história mundial e crítica (2007), Enrique Dussel propõe uma radical reinterpretação da história mundial e, consequentemente, da América Latina, sua história e seu lugar no contexto global. Iniciaremos este artigo com uma exposição sintética da proposta hermenêutica de interpretação da história tal qual elaborada por Enrique Dussel. Passaremos, então, a considerações sobre a forma como as relações eróticas se colocaram ao longo da história, esta última compreendida tal como nos ensina a tradição. Concluiremos, então, apontando novas perspectivas que se abrem às relações eróticas neste novo contexto interpretativo histórico, oferecido pelo esforço dusseliano.
1 História reinventada No “Preâmbulo geral” de sua Contra-história da filosofia, Michel Onfray afirma que a história registrada é sempre a história dos vencedores. O autor entende que a historiografia é uma verdadeira “arte da guerra” que, em sua estratégia ofensiva, registra exclusivamente a “escrita dos vencedores” (ONFRAY, 2008, p. 11, 15). A tomada da historiografia como arma não ocorre ao acaso. O esforço de Onfray será o de mostrar que a “filosofia dos vencedores” (ONFRAY, 2008, p. 16), registrada na história oficial, é aquela que atendeu e, por consequência, ainda atende aos interesses da religião cristã. Dussel, filósofo oriundo da tradição cristã e autor, também, de obra no campo da história da Igreja, parece concordar com a primeira parte da formulação de Onfray, sobre a história dos vencedores, e mesmo com 10
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parte da segunda, sobre os interesses religiosos interferindo na história, na medida em que critica a Igreja naqueles seus atos que se distanciam dos interesses das vítimas.1 A ressalva dusseliana seria acerca da condição de vencedores conferida por Onfray a alguns. Numa perspectiva mais próxima de Paulo Freire, Dussel recusaria o fatalismo imposto pela formulação do pensador francês, buscando construir caminhos para transformação – não reversão – da situação. O exercício hermenêutico de interpretação da história feito por Dussel conduz à identificação de uma dupla possibilidade, paradigmática, de interpretação da realidade. Nos momentos em que trata explicitamente do assunto em sua Ética da libertação, o autor anuncia utilizar o termo paradigma ou paradigmático “para falar como Kuhn” ou “para nos expressarmos como Thomas Kuhn” (DUSSEL, 2002, p. 53, 60). Esta menção não deve passar despercebida, para que não se perca de vista a força com que Dussel pretende tratar a dualidade interpretativa posta. Tenhamos conosco que a comunicabilidade entre os intérpretes de paradigmas diferentes é, no mínimo, muito sofrível. Talvez impraticável. É a partir desta premissa que se podem considerar ambos os paradigmas que serão expostos, um sob perspectiva eurocêntrica, outro que Dussel chama de mundial. Com efeito, logo no início de sua exposição sobre o tema na Ética da libertação, Dussel informa que “há dois paradigmas da Modernidade” (DUSSEL, 2002, p. 50), o que, considerada a profundidade da questão dos paradigmas, faz o autor advertir que [...] exigirá uma nova interpretação de todo o fenômeno da Modernidade, para poder contar com momentos que nunca estiveram incorporados à Modernidade europeia, e que subsumindo o melhor da Modernidade europeia A noção de vítimas é a atualmente utilizada pelo autor para expressar com maior precisão o que anteriormente fora chamado de pobres ou oprimidos. Sobre isso, ver a dissertação Ética da libertação: a vítima na perspectiva dusseliana, de Claudenir M. Alves. 1
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e norte-americana, afirmará “desde fora” dela mesma componentes essenciais das próprias culturas excluídas, para desenvolver uma nova política futura, a do século XXI (DUSSEL, 2007, p. 145).
O primeiro paradigma interpretativo da Modernidade é aquele que o autor chama de europeu, ou que se desenvolve a partir de um horizonte eurocêntrico. Propõe que “o fenômeno da Modernidade é exclusivamente europeu; que vai se desenvolvendo desde a Idade Média e se difunde, posteriormente, em todo o mundo” (DUSSEL, 2002, p. 50). Este paradigma interpretativo, hegemônico – único comumente difundido, portanto, com ar de verdade incontestável – contém em si o que Dussel chama de “‘falácia desenvolvimentista’” (DUSSEL, 1994, p. 13), na medida em que sugere que a cultura europeia superou as demais por meio de um desenvolvimento próprio, interno, intrínseco. Nas palavras do autor, segundo esta interpretação, ter-se-iam registrado na Europa “características excepcionais internas, que lhe permitiram superar essencialmente por sua racionalidade a todas as outras culturas” (DUSSEL, 2002, p. 50). Ainda buscando explicitar a concepção dusseliana sobre este paradigma, antes de pensarmos em suas consequências para a América Latina, observemos como o autor o sintetiza na oitava Tese de sua Ética da libertação: O “paradigma eurocêntrico da Modernidade” (universalmente aceito, que tem em Weber um autorizado expoente), cuja opinião é que a Europa, a partir de uma superioridade intrínseca, se expande na Idade Moderna, sobre todas as outras culturas, devido a algum tipo de superioridade (tecnológica, militar, política, econômica, religiosa etc.) acumulada na Idade Média (DUSSEL, 2002, p. 621).
Esta forma de compreensão da história gerará a divisão didática dos períodos comumente encontrados nas historiografias, em ida12
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des Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea (DUSSEL, 2002, p. 50-1). Duas observações sobre esta compreensão da história precisam ser feitas. Primeiro, a forma ideológica como no imaginário comum tanto a Antiguidade quanto a Modernidade são épocas estritamente europeias. Assim, concebe-se a Europa como centro desde sempre, e sua centralidade teria sido exercida pela Grécia clássica, e posteriormente pela “Itália do Renascimento, a Alemanha da Reforma e do Iluminismo, até a França da Revolução francesa. Tratar-se-ia da Europa central” (DUSSEL, 2002, p. 51). A ausência da centralidade europeia no largo intervalo entre Antiguidade e Modernidade, ou seja, durante a Idade Média, é o segundo elemento a ser observado nesta compreensão eurocêntrica da história e em sua divisão didática. A observação da própria designação dada ao período, Idade Média, que sugere tratar-se de meio, não de princípio nem de fim, carrega em si elementos ideológicos. Período intermediário, sem grandes feitos, idade das trevas, em que a gestação da superior racionalidade centro-europeia se fazia. Assim supostamente se justifica, nesta divisão da história, a ausência da centralidade europeia desde a queda de Roma até o Renascimento: tratava-se apenas de um período intermediário, algo como um intervalo na ordem natural do mundo. O outro paradigma interpretativo, que será defendido por Dussel, é apresentado pelo autor como sendo representativo de um “horizonte mundial” (DUSSEL, 2002, p. 51), o que não deixa de ter uma conotação enviesada, paradigmática, ideológica. Na mesma oitava Tese, já citada, Dussel esclarece que O “paradigma mundial da Modernidade”, que propõe que a Europa, sem ter uma superioridade própria (e se a teve em algum aspecto particular não foi por causa da Modernidade), pelo descobrimento da Ameríndia em 1492 teve um horizonte geopolítico, econômico, político e cultural que lhe deu uma vantagem comparativa (especificamente sobre o mundo otomano-muçulmano e chinês), a partir do qual acumulou durante os REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 9-21, jul./dez. 2010
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séculos XVI e XVII suficiente potencial para superar, a partir do século XVIII, agora sim, as altas culturas asiáticas. É uma miragem eurocêntrica “antecipar” a evidente superioridade (especialmente tecnológica) europeia sobre as outras culturas periféricas, lograda no século XVIII, à Idade Média europeia. Superioridade teve a Europa, certamente, sobre a Ameríndia, ainda no século XV (mas não sobre o mundo otomano-muçulmano, a Índia e, sobretudo, a China) (DUSSEL, 2002, p. 621).
Segundo este paradigma, a centralidade da Europa não se dá desde sempre, mas começa a gestar-se apenas a partir do momento em que ela descobre a América. Durante toda a Idade Média e mesmo no início da Modernidade, “a China se havia adiantado em séculos em relação à Europa, sob um ponto de vista político, comercial, tecnológico e até científico” (DUSSEL, 2007, p. 146). Por seu turno, “a cultura europeia, menos desenvolvida (em comparação à islâmica, indostânica e especialmente à chinesa), separada pelo ‘muro’ otomano-islâmico das regiões centrais do continente asiático-afro-mediterrâneo, periférica, portanto, empreenderá um lento desenvolvimento posterior” (DUSSEL, 2007, p. 146). Este entendimento vem apontar que, em oposição à ideia da centralidade natural europeia, o velho continente começa a deixar sua condição de periferia com a colonização das terras por eles recém-descobertas. Apenas começa, nesta ocasião, a sua escalada rumo ao centro, e o começa somente por ter encontrado uma periferia mais periférica que si mesmo. Por meio da expropriação das riquezas encontradas, vai ampliando lentamente seu poder, ao ponto de séculos mais tarde iniciar a transformação do seu ethos particular em ethos hegemônico, mundial. A conquista desta hegemonia vem, por sua vez, representar a subsunção dos sistemas regionais anteriormente vigentes, por um sistema único, global, pela primeira vez experimentado na história ético-política da humanidade. É o que nosso autor vem chamar de sistema-mundo, que será caracterizado pela expressão de sua totalidade 14
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(dimensão totalitária) e, portanto, pela negação de qualquer forma de alteridade. Há, novamente, uma dupla implicação neste entendimento. Primeiro, que “a Modernidade europeia não é um sistema independente autopoiético, autorreferente, mas apenas uma ‘parte’ do ‘sistema-mundo’: seu centro” (DUSSEL, 2002, p. 51), ou seja, a Europa não constituiu a si mesma como centro, tampouco apresenta-se de maneira qualitativamente superior, mas tão somente ocupa um posto – central – na mesma escala tópica em que se encontra sua periferia. Ligado a isto, está o entendimento de que “a Modernidade, então, é um fenômeno que vai se mundializando” (DUSSEL, 2002, p. 51). Vai, aos poucos, se expandindo, por meio da dominação econômica, que, por sua vez, expressa-se em poderio bélico e, por fim, em imposição cultural. Não há uma condição ontológica ou epistemológica de superioridade, como gostaria Hegel,2 mas apenas uma condição política, que por definição é passível de transformação.
2 Erótica da dominação Na mesma medida em que o paradigma eurocêntrico de compreensão da história é mais amplamente difundido que o outro, mundial, a erótica também vem se caracterizando ao longo da história como uma erótica de dominação. A erótica fálica do conquistador, sexista, masculino, 2 Em sua Ética da libertação, Dussel nos mostra que os chineses já haviam navegado até a costa leste da América do Norte, antes que os espanhóis “descobrissem” o continente. Este entendimento é bastante difundido entre os historiadores, que falam em aproximadamente sete viagens chinesas à América. Documentos históricos chineses confirmam a hipótese. Nas palavras de Dussel: “Os chineses se dirigiram para o leste, chegaram até o Alasca e, ao que parece, até a Califórnia ou ainda mais ao sul, mas por não encontrar nada que pudesse interessar a seus comerciantes, e por distanciarem-se cada vez mais do ‘centro’ do ‘sistema inter-regional’, certamente abandonaram esta empresa. A China não foi a Espanha por razões geopolíticas” (DUSSEL, 2002, p. 53).
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branco, europeu, se faz presente no imaginário popular, nas literaturas diversas e também das ciências. Por erótica compreendemos duas qualidades de relações, a saber: a erótica em sentido amplo e a erótica propriamente dita. Em seu sentido amplo, a erótica é tomada como relação que se constrói em espaços de abrangência quantitativa restrita, inversamente à política, entendida como um campo de “influência muito maior (quantitativamente)” (DUSSEL, 1996, p. 87), portanto como campo das multidões. Assim, assumiremos o campo das relações eróticas como próprio das relações intersubjetivas não massivas, personalizadas, tendo o reconhecimento do rosto do outro como critério limítrofe: no âmbito erótico estão as relações em que o rosto do outro pode ser reconhecido na sua singularidade; são relações como aquela entre o professor e seus estudantes, entre o médico e seu paciente, entre o pai ou a mãe e seus filhos e filhas. Como parte dessas relações encontra-se aquela que poderíamos chamar de erótica propriamente dita, a saber, as relações sensuais, sexuais, de afetividade carnal nas configurações diversas que a sexualidade contemporânea comporta e outras que poderá vir a comportar. Desnudo como pode ser observado na proximidade das relações eróticas, o ser humano tal como concebido na modernidade não teria como formulação originária de sua compreensão a condição de coisa pensante cartesiana. Um século e meio antes do ego cógito, o homem3 europeu começa a formar-se como ego conquiro: o bárbaro habitante da Europa então periférica, que tinha de lançar-se a mortíferas navegações rumo ao centro produtivo da época, as Índias, encontra o sujeito mais fraco que si mesmo, os ameríndios, podendo aliar na conquista desses “fracos” dois desabafos históricos: o poder de agredir, que passava a possuir aquele que era desde sempre agredido; e o poder de enriquecer,
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Homem em particular, não ser humano em geral.
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expropriando as riquezas naturais encontradas, daquele que era, por todo o medievo, o pobre.4 Em suma, a interpretação da história à luz do paradigma mundial sugere que: (1) a Europa ocupava posto periférico nas relações internacionais ao longo da Idade Média, condição que só viria a ser superada com a riqueza extraída do continente americano; (2) a identidade antropológica do europeu, tal como a conhecemos, começa, portanto, a ser gerada com base na sua conquista da América. Este eu conquistador formulará a erótica da dominação, falocrática tal como a conhecemos. Dussel escreve que “chegou àquele mundo cultural ameríndio a conquista do europeu. O varão conquistador se transformou em pai opressor, em mestre dominador [...]. As ‘mulheres’, índias, seriam as mães violentadas do filho: órfão índio ou mestiço latino-americano” (DUSSEL, 1997, p. 128). De forma menos poética, Darcy Ribeiro informa que “a documentação espanhola, mais rica nisso, revela que em Assunção havia europeus com mais de oitenta temericó”,5 constituindo-se verdadeiros “criatórios de gente” (RIBEIRO, 1995, p. 82-3). Esta é a origem da subjetividade que mais tarde caracterizaria o homem europeu. Séculos mais tarde e no ápice da construção e interpretação desta subjetividade, a psicanálise tomaria o modelo falocrático como universal, impondo a toda a humanidade a tragédia edípica como condição nata. Freud afirma que mesmo em sociedades primitivas a manifestação edípica era presente, baseando, para tanto, suas teorias de Totem e tabu em uma leitura exclusivamente eurocêntrica da história. Afirma:
4 Tratamos longamente do assunto nos dois primeiros capítulos de nossa tese de doutoramento, Filosofia e práxis na América Latina, disponível em: http://www.teses. usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-20042010-143015/pt-br.php [acesso em 29 out 2010]. 5 Conforme Darcy Ribeiro, temericós são formas de laço de parentesco classificatório dos índios, representados pela figura da índia que era dada como esposa a um estrangeiro, tornando-o membro da família, inclusive com direitos privilegiados.
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Há homens vivendo em nossa época que, acreditamos, estão muito próximos do homem primitivo, muito mais do que nós, e a quem, portanto, consideramos como seus herdeiros e representantes diretos. Esse é o nosso ponto de vista a respeito daqueles que descrevemos como selvagens ou semisselvagens; e sua vida mental deve apresentar um interesse peculiar para nós, se estamos certos quando vemos nela um retrato bem conservado de um primitivo estágio de nosso próprio desenvolvimento (FREUD, 1976, p. 8).
Para além de tomar preconceituosamente como similares os homens pré-históricos e os aborígenes que mantinham sua condição em tempos de modernidade europeia, Freud revela profunda fragilidade metodológica ao basear-se tão somente em fontes secundárias de uma ciência – a antropologia – que, como se constatou, tinha à época marcas fortes de preconceitos e dogmatismo.6 Críticos do modelo dogmático proposto por Freud, Deleuze e Guattari perguntam: “Será possível que, assim, a psicanálise retome a velha tentativa de nos rebaixar, de nos aviltar e de nos tornar culpados?” Ao que respondem: Ora, na medida em que a psicanálise envolve a loucura num “complexo paternal” e reencontra a confissão de culpabilidade nas figuras de autopunição que resultam do Édipo, ela não inova, mas completa o que a psiquiatria do século XIX tinha começado: erigir um discurso familiar e moralizado da patologia mental (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 70-1). Isso ganha contornos dramáticos quando se “faz de Édipo um tipo de símbolo católico universal, para além de todas as modalidades imaginárias”, residindo na universalização o mal maior: aquilo que talvez
Ainda no início de Totem e tabu, Freud informa: “Tanto por razões externas como internas, escolherei como base dessa comparação as tribos que foram descritas pelos antropólogos como sendo dos selvagens mais atrasados e miseráveis” (p. 8). 6
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descreva os europeus é imposto como padrão antropológico ao mundo, num “processo de edipianização furiosa” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 74-80). Reeditou-se cientificamente o pecado original ao mesmo tempo em que se criou uma desejada escusa ao modelo falocrático instaurado pela modernidade europeia. O homem justifica-se como conquistador; a mulher, seu objeto de conquista. A mais precária das relações eróticas universaliza-se como natural.
3 Erótica. Alteridade realizada O termo eurocêntrico, com o qual vimos lidando criticamente, pode favorecer um equívoco quanto à identificação do ponto preciso de nosso alvo. O ponto que, entendemos, precisa ser questionado e derrubado não é o “euro”, mas o “cêntrico”, sobretudo em função de sua expressão no singular. Em outras palavras, não se trata de fazer aqui um ensaio antieuropeu, mas de defender o direito às tantas perspectivas e possibilidades de ser que se manifestam no mundo, distintas daquela perspectiva única que se vem tentando nos impor desde o início da Modernidade. Neste sentido, talvez nossa palavra-chave seja pluralidade. Tomemos aqui as duas expressões de pluralidade que parecem necessárias. A primeira, mais imediata, é desdobramento direto do questionamento feito por Deleuze e Guattari, a saber, sobre outras formas não edípicas de ser. Salvo por dogmatismo, não há via que leve a compreender que todo ser humano é – e que todo ser humano que vir a ser, será – marcado por um e mesmo complexo. Talvez as condições histórico-políticas europeias tenham favorecido uma erótica da dominação, a qual gerou, por seu turno, o fenômeno edípico em larga escala naquele continente e, por influência eurocêntrica, em outros. Daí à naturalidade há uma transposição que não se pode fazer. Mas, sob uma perspectiva interna à problemática própria da erótica, a pluralidade desejada ganha outros contornos. Na erótica do eu REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 9-21, jul./dez. 2010
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conquistador não há espaço para alteridade. Os outros são objetos a serem conquistados: caças, alimentos, diversão, troféus. O espaço de vida e de manifestação própria da presa é dado pelo predador, o falo. O sujeito, sendo si mesmo, torna-se único, negando ao outro o direito à existência própria. Em um trabalho recente, escrevemos que Sem o reconhecimento da alteridade, sem o pleno respeito à condição de outro, que é condição à ruptura da totalidade que confina o mesmo em si, não é possível se chegar ao outro. Sem este movimento de irrupção da totalidade, os limites do mesmo prevalecem, havendo apenas o movimento pseudo-dialético entre o mesmo e a imagem-do-outro-segundo-o-mesmo. Não há coito, senão masturbação (PANSARELLI, 2010, p. 173). O reconhecimento da alteridade, portanto, passa de possibilidade a necessidade caso se queira consumar a erótica de forma mais intensa, possibilitando que o desejo alcance horizontes antes desconhecidos, inimagináveis. Este passo de irrompimento rumo ao outro, à outra, depende do reconhecimento de sua condição de possuidor de existência própria, de vida não objetivável pelo desejo primário do ego conquistador transformado em ego cógito. Este modelo, moderno-europeu, não é único. Nem desejado.
Referências ALVES, C. M. Ética da libertação: a vítima na perspectiva dusseliana. Dissertação de Mestrado em Filosofia. São Paulo: PUC-SP, 2005. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O anti-Édipo. São Paulo: Editora 34, 2010. DUSSEL, E. 1492: el encubrimiento del otro. Hacia el origen del “mito de la Modernidad”. La Paz: Plural Editores, 1994. ______. Ética de la liberación: en la edad de la globalización y de la exclusión. 4. ed. Madrid: Editorial Trotta, 2002. 20
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A realização da erótica: considerações a partir de E. Dussel
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THE REALIZATION OF THE EROTICISM: CONSIDERATIONS FROM E. DUSSEL Abstract It is offered the study of elements of the history of Latin America in accordance with Enrique Dussel’s recent thought, seeking to understand the eroticism, beloved concept to the author, in two moments, namely: the erotic domination that has come true as part of the ethic-political domination in the process of colonization and the ethic meaning of the da realization of the eroticism in a desirable context of non-oppression. Key words: Eroticism. Ethics. History. Latin America.
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EXTERIORIDADE E PRINCÍPIO ÉTICO MATERIAL EM ENRIQUE DUSSEL Deodato Ferreira da Costa*
Resumo A questão da exterioridade, para além de uma simples metáfora de caráter espacial, se justifica como postura, pessoal e coletiva, crítico-reflexiva – por isso libertadora –, como concepção que rejeita e resiste a toda e qualquer forma de dominação e totalitarismo, que atentam, em toda e qualquer dimensão da vida humana, contra a liberdade, a autonomia, a dignidade e o respeito de pessoas e de grupos ou comunidades, de povos inteiros, em nome do poder ideológico e da hegemonia político-econômica. A exterioridade, bem entendida, é o espaço privilegiado de abertura e liberdade do ente humano, desde onde manifesta e revela sua alteridade. Palavras-chave: Exterioridade. Razão do outro. Exclusão. América Latina. Dussel.
Importa apresentar a questão da exterioridade como uma categoria fundamental que propiciou a Enrique Dussel empreender – desde quando assumiu o princípio da alteridade como lógica norteadora de sua reflexão filosófica a partir da realidade da América Latina – um diálogo profícuo e crítico com a tradição filosófica ocidental bem como trilhar um caminho original e fecundo de um pensar reflexivo e situado que permitiu privilegiar a práxis e a própria vida humana como conteúdos do exercício filosófico. Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas (FAM). Desenvolve tese de doutorado no Programa Integrado de Doutorado em Filosofia (Pidfil) UFPB-UFPE-UFRN. É bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam). *
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O próprio Dussel nos dá o tom da originalidade da reflexão filosófica própria e situada que desenvolve a partir da América Latina: Sem querer me arrogar o direito de representar um movimento amplo, a Filosofia da Libertação, que eu ponho em prática desde 1969, toma como ponto de partida uma realidade regional própria: a pobreza crescente da maioria da população latino-americana; a vigência de um capitalismo dependente, que transfere valores para o capitalismo central; a tomada de consciência da impossibilidade de uma filosofia autônoma dentro dessas circunstâncias; a existência de tipos de opressão que estão a exigir não apenas uma filosofia da “liberdade”, mas uma filosofia da “libertação” (DUSSEL, 1995, p. 45-46).
A categoria da exterioridade proporcionou a Enrique Dussel o instrumental hermenêutico-epistemológico a partir do qual pôde desenvolver seu projeto de pensar a realidade latino-americana – marginalizada e excluída do cenário mundial – como questão filosófica. Aplicada à realidade de pobreza, opressão e exclusão – realidade das vítimas do sistema –, a categoria da exterioridade é entendida aqui como a condição de abertura e acesso ao ente concreto em sua própria condição humana de ser: ser outro enquanto ente distinto que não se reduz à mera representação da consciência dadora de sentido no mundo; ser outro enquanto ente que em sua alteridade de ser é portador de seu próprio sentido. Dussel entende que a filosofia da libertação deu um importante passo justamente quando um grupo de intelectuais argentinos começou a refletir a partir de e com grupos sociais que, dada a condição de pobreza na qual estavam mergulhados, começaram a reivindicar dignidade e melhores condições de vida. Foi assim que a reflexão de uma “comunidade de filósofos” (argentinos, no final da década de sessenta), que desde dentro da sociedade REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 22-36, jul./dez. 2010
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reprimida pela ditadura militar periférica, militantemente articula com movimentos populares (e também populistas) que lutavam por sua libertação, fez compreender a importância do pensamento de Emmanuel Lévinas, não só nem principalmente naquilo que se refere ao “Outro” como linguagem (ainda que também como linguagem), mas essencialmente como pobre: como o miserável que sofre traumaticamente em sua corporalidade a opressão e a exclusão dos “benefícios” da Totalidade. O pobre como o “Outro”: como América Latina periférica, como as classes oprimidas, como mulher, como juventude... (DUSSEL, 1993, p. 14, tradução nossa).
É clara a referência a Emmanuel Lévinas. É do judeu lituano-francês o mérito da sui generis reflexão filosófica sobre a questão do outro no pensamento contemporâneo. A alteridade não é tratada como um simples momento do princípio da identidade, mas é elevada à condição de princípio que norteia e orienta a reflexão, a partir da qual toda subjetividade, em sua ipseidade, é irredutível à representação que se possa fazer dela. Daí, para Lévinas, o outro, enquanto existente, encontrar-se fora, separado, exterior ao mundo do eu que, em seu imperativo de ser, tende à representação, à redução do outro ao mundo que acredita ser o único verdadeiro e o “melhor dos mundos”. Neste sentido, o outro se encontra sempre na exterioridade do mundo do eu e da totalidade que este constitui desde a identidade do si-mesmo, que a tudo permite manejar e abarcar sem mais. A reflexão filosófica levinasiana não serve somente de inspiração, mas oferece mesmo, pelo menos a princípio, o próprio instrumental teórico-interpretativo que permite o irromper de um novo discurso filosófico a partir da realidade da América Latina. É possível até mesmo falar de uma imbricação entre libertação latino-americana e Emmanuel Lévinas. A filosofia da libertação inspirou-se no pensamento de Emmanuel Lévinas, porque ele nos permitia definir claramente a posição de “exte24
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rioridade” (como filosofia, cultura popular, economia latino-americana em relação aos Estados Unidos e à Europa) enquanto “pobres” (quer dizer, desde uma economicidade antropológica e ética) e em referência à “totalidade” hegemônica (político-autoritária, econômico-capitalista, erótico-machista, pedagógico-ilustrada, cultural-imperial-publicitária, religião fetichista etc.) (DUSSEL, 1993, p. 34).
É a partir desta novidade da reflexão que apresenta e constitui a novidade do outro em sua exterioridade como ponto de partida da reflexão filosófica que Enrique Dussel percebe a importância dessa chave de leitura para o projeto de um pensar que inaugura uma nova fase do diálogo filosófico mundial, em vista da “libertação” pretendida. Na realidade, não somos “aquele outro, diferente da razão”, mas, ao contrário, o que pretendemos é expressar eficazmente “a razão do Outro”: do índio assassinado por genocídio, do escravo africano reduzido a uma mercadoria, da mulher vilipendiada como objeto sexual, da criança subjugada pedagogicamente (sujeito “bancário” como a define Paulo Freire). Pretendemos ser a expressão da “Razão” dos que se situam mais além da “Razão” eurocêntrica, machista, pedagogicamente dominadora, culturalmente manipuladora, religiosamente fetichista. Intentamos uma filosofia da libertação do Outro, daquele que está mais além [fora, distante] do horizonte do mundo hegemônico econômico-político (do fratricídio), da comunidade de comunicação real eurocêntrica (do filicídio), da eroticidade fálica e castradora da mulher (do uxoricídio) e, não por último, do sujeito que considera a natureza como mera mediação explorável para a valorização do valor do capital (do ecocídio) (DUSSEL, 1993, pág. 35).
A filosofia da libertação parte de uma situação que não é, pura e simplesmente, a expressão de um momento isolado ou de um determinado período da história da América Latina. Parte de uma história REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 22-36, jul./dez. 2010
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inteira, através dos séculos, de dominação, exploração e opressão do povo latino-americano. É a partir dessa situação entendida como exterioridade que o discurso filosófico crítico-situado ganha sentido. Daí a importância de compreendermos a exterioridade não somente no plano da distinção da condição de cada existente, como ser concreto, desde Lévinas, mas também como o faz a filosofia da libertação, no plano conceitual, como uma categoria analítica, que permite aplicar esta reflexão às demais dimensões da vida humana, mas em especial a uma economia política crítica, desde Marx, por motivos estratégicos. A filosofia da libertação afirma categoricamente a importância comunicativa, estratégica e libertadora da “razão”, denuncia o eurocentrismo e a pretensão de universalidade da razão moderna, e se compromete na reconstrução de um discurso filosófico crítico que, partindo da Exterioridade (com Lévinas e Marx, por exemplo), assume uma responsabilidade prático-política na “explicitação” da práxis de libertação dos oprimidos (DUSSEL, 1993, p. 9).
Por isso, para Enrique Dussel, a exterioridade, dentre as diversas categorias utilizadas pela filosofia da libertação, a saber: – proximidade, totalidade, mediação, alienação, libertação –, é a que tem um destaque significativo, porque dá sentido a todas as demais. Ela constitui mesmo a condição de possibilidade dessa reflexão crítico-filosófica e histórico-libertadora. Daí sua importância: Aqui abordamos a categoria mais importante, enquanto tal, da filosofia da libertação, em minha interpretação. Somente agora se poderá contar com o instrumental interpretativo suficiente para começar um discurso filosófico a partir da periferia, a partir dos oprimidos. Até este momento, o nosso discurso foi como que um resumo do já sabido. A partir de agora começa um novo discurso, que quando for implantado em seu nível político correspondente e com as mediações necessárias, que faltam nos 26
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filósofos do centro que usam estas mesmas categorias, poderemos, agora sim, dizer que é um novo discurso na história da filosofia mundial [...]. Quando nos voltamos para a realidade, como exterioridade, pelo simples fato de ser uma realidade histórica nova, a filosofia que dela se desprende, se é autêntica, não poderá deixar de ser igualmente nova. É a novidade dos nossos povos o que se deve refletir como novidade filosófica, e não ao contrário (DUSSEL, p. 55; ed. brasileira, 1982, p. 45).
O sentido, a noção de exterioridade pode ser compreendida desde o próprio âmbito da vida cotidiana, do sistema ou dos sistemas nos quais sempre nos encontramos desempenhando e assumindo papéis sociais. O ente humano enquanto rosto, enquanto alguém, por definição, guarda uma distância distintiva de todo e qualquer outro ente, humano ou não-humano, vivente ou não-vivente. Diz Dussel: O rosto do homem se revela como outro quando se apresenta em nosso sistema de instrumentos como exterior, como alguém, como uma liberdade que interpela, que provoca, que aparece como aquele que resiste à totalização instrumental. Não é algo; é alguém [...]. Exterioridade quer indicar o âmbito onde o outro homem, como livre e incondicionado por meu sistema e não como parte de meu mundo, se revela (DUSSEL, 1996, p. 56-57; ed. brasileira, 1982, p. 47).
A noção de exterioridade pensada por Dussel assume um lugar mais contundente e determinado na constituição do discurso histórico e libertador. Explicita mesmo o critério metodológico do pensar situado a partir da realidade de onde se empreende a reflexão filosófica. Esta se eleva acima das relações mediadas na singularidade do sujeito, consumadas, no mais das vezes, na intersubjetividade. Por isso, com clareza de intenção, diz o argentino: O rosto do outro, primeiramente como pobre e oprimido, revela realmente um povo, mais do que a mera pessoa singular [...]. Descrever a
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experiência da proximidade como experiência individual, ou a experiência metafísica do rosto-a-rosto como uma vivência entre duas pessoas, é simplesmente esquecer que o mistério pessoal se verifica sempre na exterioridade da história popular. A individualização desta experiência pessoal-coletiva é uma das deformações europeias dependentes da revolução burguesa. Cada rosto, único, mistério insondável de decisões ainda não tomadas, é rosto de um sexo, de uma geração, de uma classe social, de uma nação, de um grupo cultural, de uma idade da história. O outro, a alteridade metafísica, a exterioridade no nível antropológico, é primeiramente social, histórico-popular (DUSSEL, 1996, p. 60; ed. brasileira, 1982, p. 50).
É com essa clareza de intenção que Dussel se reporta ao sentido da exterioridade para o âmbito econômico produtivo, para o centro do sistema capitalista, lugar onde se dá, concretamente, a exploração e a negação do ente humano como tal. Anuncia-se aqui o critério do princípio material do pensar: “O trabalhador ‘livre’ é a exterioridade com respeito ao capital (ao capitalista), quando ainda não vendeu sua capacidade de trabalho. Porém, é igualmente exterioridade, ‘pleno nada’, o pobre (pauper, dizia Marx) descartado pelo capital e expulso do ‘mundo’” (DUSSEL, 1996, p. 57). Na proposta de libertação e de transformação da realidade do mundo pensada e articulada por Dussel ao longo do desenvolvimento de sua obra, o pensamento de Marx se mostra indispensável para sua reflexão filosófica, crítico-libertadora. Cabe aqui pontuar, mais uma vez, em vista da interpretação pessoal, particular, feita por Dussel a respeito da obra de Marx, que o argentino, em seu projeto ético-político que pode ser entrevisto na arquitetônica de sua ética, tem uma maneira peculiar de aceder à realidade, a partir da América Latina, e um posicionamento filosófico-hermenêutico definido de leitura dessa realidade como alteridade, como exterioridade. E é a partir dessas coordenadas que Dussel faz sua leitura filosófica de Marx: 28
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Tudo isto não se desenvolve com tanta claridade em O capital, talvez porque apareceria como demasiado filosófico ou hegeliano, porém, justamente para uma leitura latino-americana, era essencial descobrir o último manancial de seu pensar, que se encontra, segundo nossa interpretação, na positividade da realidade do não-ser do capital (não-capital) que se situa na exterioridade, no âmbito transcendental do capital (que temos denominado metafisicamente: o mais além analético): a alteridade da corporalidade concreta, da pessoa mesma do trabalhador, do sujeito que, no entanto, se encontra – antes do intercâmbio e da obtenção da mais-valia por parte do capital – “cara-a-cara” ante o capitalista mostrando sua “pele” – como escreverá em O capital – sua corporalidade sensível, sofredora, pobre, desnuda... (DUSSEL, 1991, p. 17).
Neste sentido, contrapor-se ao discurso dominador é desmascará-lo ainda lá onde ele imprime a dominação de fato, onde concretamente o homem é atacado em sua dignidade e negado como ser livre. Dussel percebe que a verdadeira libertação só pode acontecer se for efetiva tanto no plano teórico-ideológico quanto no plano prático-produtivo. É preciso trazer a reflexão também para a dimensão econômica da vida, sobre a qual esta realmente se afirma. É no nível da produção material da vida que o discurso se torna mais incisivo e adquire caráter de instrumento de transformação. Aplicada à análise do sistema capitalista de produção, que explora o trabalhador e nega sua dignidade, a categoria da exterioridade indica o lugar a partir do qual o outro homem se afirma como livre e incondicionado ante o sistema. Por isso, faz-se necessário compreender que o critério ético vem de fora, é externo à totalidade ontológica e, neste caso, ao sistema capitalista de produção. Segundo Dussel, Marx entende que a “moral” ou o “direito” burguês justifica, a partir de dentro, tudo aquilo a que forem aplicados os seus próprios princípios. A título de exemplo, podemos lembrar que o trabalho escravo e a fraude em relação à qualidade da mercadoria são considerados injustos no modo de produção capitalista. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 22-36, jul./dez. 2010
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No entanto, o trabalho assalariado e a propriedade privada são perfeitamente condizentes com este modo de produção, mesmo sendo injustos com o trabalhador que, com seu “trabalho vivo”, produz riqueza sem participar efetivamente dela. Importa atentar ainda para a situação do trabalhador sem trabalho, cuja condição é, sem sombra de dúvida, injusta. Aqui, não há por que não reconhecermos a semelhança do pensamento de Marx com o de Lévinas: o outro em sua exterioridade é diferente, distinto da totalidade, seja esta o “sistema” da totalidade ontológica, o mundo da vida vigente, seja o próprio sistema de produção capitalista. Citamos de Marx: Em vista disso, a Economia Política desconhece o trabalhador que não trabalha, o homem de trabalho, à medida que se encontra fora (ausser) dessa relação trabalhista. O mandrião, o sem-vergonha, o mendigo (!), o miserável(!) e o delinquente são figuras (Gestalten) que para ela não existem, mas somente para os outros olhos(!): para os olhos do médico, do juiz, do coveiro, do oficial de justiça, os pobres são fantasmas (Gespenster) que ficam fora (ausserhalb) do seu reino. A existência abstrata do homem enquanto mero homem de trabalho, isto é, de quem por isso mesmo pode diariamente se precipitar do seu pleno nada (Nichts) para o nada absoluto (absolute Nichts) (DUSSEL, 1995, p. 53-54).
Até então aceitamos que o “ser é o fundamento de todo sistema, e do sistema de sistemas que é o mundo cotidiano” (DUSSEL, 1996, p. 57; ed. brasileira, 1982, p. 47), mas, a partir do sentido de exterioridade que até então foi explicitado, é claramente possível afirmar que para além do ser ainda há realidade, da mesma forma como sabemos e acreditamos que há cosmos para além do mundo. Portanto, para além do fundamento e da identidade ontológica da luz que ilumina a totalidade do mundo, há ainda a realidade: realidade daquele que se opõe e resiste à unidade do ser, à compreensão do mundo, à interpretação do sistema constituído e acabado, às determinações e aos condicionamentos da totalidade fechada; que afirma sua alteridade, 30
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seu outro modo de ser, sua cultura, seus direitos, sua dignidade. É a presença interpelante do outro que se encontra além do sistema, do mundo, da totalidade ontológica, que se manifesta como realidade prática e questiona a estrutura do sistema vigente, o status quo de dominação e opressão. Essa percepção da realidade incide diretamente sobre a concepção lógica que sustenta e afirma a verdade do sistema, da totalidade vigente, ou que a nega e busca sua superação. Sobre esse confronto entre lógicas, Dussel esclarece: A lógica da totalidade estabelece seu discurso desde a identidade ou fundamento para a diferença. É a lógica da natureza ou do totalitarismo. É a lógica da alienação da exterioridade ou da coisificação da alteridade, do outro homem. A da exterioridade ou da alteridade, pelo contrário, estabelece seu discurso a partir do abismo da liberdade do outro. Essa lógica tem outra origem, outros princípios: é histórica e não evolutiva; é analética e não meramente dialética ou científico-fática, embora assuma ambas (DUSSEL, 1996, p. 58; ed. brasileira, 1982, p. 48). Para Dussel, cada uma dessas lógicas explicita movimentos consequentes e decisivos na forma de conduzir a realidade do ente humano, da sociedade e da própria humanidade. Além, é claro, de determinar a relação homem–natureza, ser humano–seres viventes não humanos. Assim, no interior da totalidade fechada o movimento lógico está voltado para a identificação, a diferenciação e a exclusão. Ao contrário, no âmbito da exterioridade, por manter-se numa perspectiva de abertura, o movimento lógico está voltado para a alteridade, para a distinção e para a convergência, permitindo a plena manifestação do outro em sua exterioridade. Cabe lembrar que o confronto dessas lógicas se dá exatamente no transcorrer da própria realidade histórica, e só se justifica porque em algum momento dessa mesma história a totalidade se fechou na intenção de sua autoafirmação hegemônica, de sua totalização e absolutização, não reconhecendo a real presença do outro em sua exterioridade alterativa. Diz o argentino: REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 22-36, jul./dez. 2010
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O outro é exterioridade de toda totalidade porque é livre. Liberdade aqui não é somente uma certa possibilidade de escolher entre diversas mediações que dependem do projeto cotidiano. Liberdade agora é a incondicionalidade do outro com relação ao mundo no qual sempre sou centro [...]. É-se outro na medida em que se é exterior à totalidade, e neste mesmo sentido se é rosto (pessoa) humano interpelante. Sem exterioridade não há liberdade nem pessoa (DUSSEL, 1996, p. 61; ed. brasileira, 1982, p. 50-51).
A questão da exterioridade, bem entendida, como âmbito de abertura e de liberdade a partir do qual o outro se manifesta na inteireza e na integridade de sua alteridade, é, no fim das contas, a condição de possibilidade real e concreta da própria história humana e de tudo o que a caracteriza e a constitui. Sem exterioridade não há alteridade, não há novidade. A liberdade do outro, em sua exterioridade alterativa, é a fissura que fende a totalidade e, com sua resistência de outro, a abre, desde seu interior, para um novo momento no tempo histórico. Importa, então, compreender que a questão da exterioridade, para além de uma simples metáfora de caráter espacial, se justifica como postura, pessoal e coletiva, crítico-reflexiva – por isso libertadora –, como concepção que rejeita e resiste a toda e qualquer forma de dominação, de totalitarismo, que atentam, em toda e qualquer dimensão da vida humana, contra a liberdade, a autonomia, a dignidade e o respeito de pessoas, de grupos ou comunidades, de povos inteiros, em nome, pura e simplesmente, do poder ideológico e da hegemonia político-econômica. A exterioridade, bem entendida, é o espaço privilegiado de abertura e liberdade do ente humano desde onde manifesta e revela sua alteridade. Diz Dussel: A categoria da exterioridade pode ser entendida de maneira equivocada e pensar-se que o que está “além” do horizonte do ser do sistema o é de maneira total, absoluta e sem nenhuma participação no interior 32
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do sistema. Para evitar esse mal-entendido dever-se-ia compreender a exterioridade como transcendentalidade interior à totalidade. Nenhuma pessoa, enquanto tal, é absolutamente ou só parte do sistema. Todas, mesmo no caso das pessoas membros de uma classe opressora, têm uma transcendentalidade com relação ao sistema, interior ao mesmo (DUSSEL 1996, p. 64; ed. brasileira, 1982, p. 53).
Trata-se, então, de considerar os graus de exterioridade no interior da totalidade, sem, no entanto, desconsiderar a irredutibilidade do outro ao mesmo, ao sistema com o qual se defronta. Ora, se realmente levarmos a sério essa questão, em toda discussão racional, mesmo e principalmente na de nível transcendental e universal, teríamos de incluir, indispensavelmente, como elemento de sua definição e como elemento crítico dessa razão, uma possível “exterioridade” – em grau diverso – de cada pessoa, de cada participante de todo grupo, classe ou instituição e mesmo de toda e qualquer comunidade de comunicação real, como sendo um outro em potência. Outro não destituído de racionalidade, mas, ao contrário, portador de sua própria razão, como sendo a “razão” do Outro. Uma outra razão que “interpela” e “provoca” a fim de fazer reconhecer o princípio do qual parte sua argumentação racional como postulação da verdade que se revela a partir da exterioridade do outro. Assim, se tomarmos como referência a comunidade humana, será preciso aceitar que cada um dos membros possui o direito de se posicionar a partir do lugar onde se constitui como outro na composição dessa comunidade. Posicionar-se a partir da exterioridade não implica negar a comunidade, mas permite descobri-la e dela fazer parte de forma livre, sem ser reduzido e conformado a parâmetros, cânones e dogmas hegemônicos sempre possíveis de surgir. Participar da comunidade humana (ou de toda e qualquer outra comunidade de âmbito menor) a partir da exterioridade é ressignificar o sentido da unidade maciça que se fecha em si e abrir-se a um novo momento da história, cujo respeito às diferenças singulares, às diversidades coletivas se constitua no modus REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 22-36, jul./dez. 2010
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operandi de uma comunidade que se paute nas distinções e na pluralidade da vida humana. Em outras palavras, a racionalidade que legitima a comunidade humana (e toda e qualquer comunidade real) não pode se fechar, em momento algum, à razão do outro, como se esta não tivesse o direito de justificar e legitimar a verdade que se explicita a partir de sua alteridade como fundamento de sua própria vida. Deixemos as palavras finais deste pequeno trabalho a Enrique Dussel: “Uma razão que se preze desse nome sempre estará aberta à ‘razão do Outro’, a outra razão: e somente esse tipo de razão é que se pode denominar de razão crítica e histórica e, muito mais do isso, é uma razão ética” (DUSSEL, 1995, p. 62).
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Exterioridade e princípio ético material em Enrique Dussel
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Deodato Ferreira da Costa
EXTERIORITY AND ETHICAL MATERIAL PRINCIPLE IN ENRIQUE DUSSEL Abstract The matter of exteriority, to beyond of a simple metaphor of spacial nature, justifies itself as attitude, personal and collective, critical-reflexive – therefore liberating –, as conception that rejects and resists to all and any form of domination, of totalitarism, that make an attempt, in all and any dimension of the human life, on the liberty, the autonomy, the dignity and the respect of the persons, of groups or communities, of entire peoples, in the name of the ideological power and of the political-economic hegemony. The exteriority, well understood, is the privileged space of openness and liberty of the human being, from where he/she manifests and reveals his/her alterity. Key words: Exteriority. Reason of the Other. Exclusion. Latin America. Dussel.
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QUESTÕES MORAIS À LUZ DE ARISTÓTELES E TOMÁS DE AQUINO Suderlan Tozo Binda*
Resumo A partir de alguns tópicos da filosofia de Aristóteles e da filosofia de Tomás de Aquino, buscamos interpretar questões morais relevantes, discorrendo sobre assuntos que perpassam o “ato humano” como tal, caracterizando, assim, nossa liberdade em certas circunstâncias. Discutimos perguntas como estas: Alguma circunstância justifica nosso ato? Existe algum ato humano que vale por si mesmo? O homem pode ser injusto contra si mesmo? E, se pode, quais as suas condições? O que torna legítima a finalidade de uma ação? Temos consciência que não fazemos justiça à grandeza desses dois autores, mas, apesar da “distância” que nos separa e de nossas próprias limitações, deles buscamos “escutar algumas palavra”. Palavras-chave: Aristóteles. Tomás de Aquino. Voluntariedade. Circunstância. Ato moral.
Introdução Tomaremos o pensamento de Aristóteles e o de Tomás de Aquino para trabalhar algumas questões morais da ordem do dia, mas à luz do filósofo grego, que viveu entre os anos 384 a. C. e 322 a. C. e de Santo Tomás, que viveu de 1225 a 1274. Não temos a pretensão de confrontar o pensamento dos dois filósofos entre si e com o pensamento atual, mas simplesmente trabalhar questões morais que são nossas hoje também, com a ajuda do pensamento aristotélico e do pensamento tomasiano. *
Professor de Filosofia na Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo.
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As questões trabalhadas, as do pensamento de Aristóteles, são: Em uma dada “circunstância” justifica-se fazer uma opção por uma vida ou outra? Existe algum “ato humano” que vale “por si mesmo”? Até que ponto diante da “violência” o homem é livre? Há possibilidade de injustiça a si mesmo ou não? Trabalharemos tais questões recorrendo ao pensamento de Aristóteles, com pequenas críticas efetuadas por nós e a partir de novos critérios1, mas nossa intenção primordial é perceber como “o filósofo”, em seu tempo e com seus recursos, respondeu a tais questões. As questões trabalhadas, as do pensamento de Tomás, são: Como um princípio da ordem universal-formal pode servir de orientação nas particularidades da vida cotidiana? Em que medida as circunstâncias influenciam uma ação? Quando a finalidade é legítima? Quando um ato moral é legítimo? Qual o fundamento da ação livre? Trabalharemos primeiro as questões referentes à filosofia de Aristóteles, logo depois discorreremos sobre as questões referentes à filosofia do Doutor Angélico. Não temos a pretensão de oferecer respostas absolutas e que dissequem a filosofia de ambos os filósofos, mas uma tentativa de dizer uma palavra sobre questões contundentes sob o olhar de dois Grandes Filósofos.
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Questões discutidas à luz de Aristóteles
1.1 Em uma dada “circunstância” justifica-se fazer opção por uma vida ou por outra? Trabalharemos em primeiro lugar as questões referentes à filosofia de Aristóteles, buscando utilizar como referência sua obra Ética a Nicômaco. Temos consciência que a obra tem muito mais a oferecer, mas para o momento queremos discutir somente as questões levantadas aqui. O que não é justo para com Aristóteles, mas somente para tornar mais compreensível o texto. 1
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Primeiro observamos que Aristóteles coloca um limite na questão quando afirma: “[...] todas as coisas que se cumprem por medo de mal maior por motivo de qualquer bem, colocam a questão se são involuntárias ou voluntárias” (ARISTÓTELES, 2005, p. 56). E observa ele que o mal será sempre maior que o bem alcançado caso não realize a ação à qual está constrangido a realizar; ou seja, não cumprir a ação à qual está constrangido levará a um mal pior. Aristóteles nos oferece o seguinte exemplo������������������������� : “[...] se um tirano ordenasse a uma pessoa que praticasse um ato ignóbil, e tal pessoa tivesse os pais e os filhos em poder daquele tirano e por isso cometesse o ato para salvá-los, pois do contrário seriam mortos [...]” (ARISTÓTELES, 2005, p. 56). Nossa atenção se endereça sobre esse “ato ignóbil”, que Aristóteles não define; porém, vamos supor que para salvar a vida de meus genitores e meus filhos tenho de matar dez pessoas inocentes. Afirma Aristóteles: “Em verdade, os homens são às vezes até louvados pela prática de ações desse tipo, quando se submetem a algo vil ou menos em troca de alguma coisa nobre e elevada [...]” (ARISTÓTELES, 2005, p. 57), mas no ato ignóbil em nosso exemplo, o que seria coisa mais nobre e elevada? Em tal circunstância, qual princípio devo tomar para guiar-me? Existiria tal princípio? Ou ainda como manter-se “sujeito” em tal circunstância? Tal circunstância tolhe por completo a voluntariedade da ação ou ainda oferece um espaço à voluntariedade? Devemos ser justos, pois logo adiante observa ele: “Às vezes é difícil determinar o que devemos escolher e a que custo, e o que devemos suportar em troca de que resultado” (ARISTÓTELES, 2005, p. 57). Em tal situação, podemos nos perguntar o que está e o que não está em nosso poder dada a circunstância?2 É possível em tal circuns Mesmo que Aristóteles tenha definido o campo da ação humana como aquele espaço que depende de nós, em tal circunstância seria possível uma ação voluntária ou não? Tal circunstância oferece espaço à voluntariedade? Parece que cada circunstância é única e pode tolher por completo o espaço da voluntariedade. 2
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tância agir voluntariamente? Se tomarmos como ponto de partida que o ato voluntário é aquele que depende inteiramente do sujeito agente no momento da ação, em tal circunstância que não depende do sujeito agente, pois a circunstância revela-se contingente, como fazer para que em tal circunstância possa-se agir voluntariamente? Ou, em outras palavras, como podemos ter o pleno poder sobre nossa ação ainda que não tenhamos poder sobre as circunstâncias que nos levam a agir? Em tal circunstância bastaria uma disposição interior, ou virtude que permitiria responder racionalmente e prudentemente as situações que não foram escolhidas nem determinadas por nós com um ato voluntário? Existe alguma circunstância em que podemos sacrificar uma vida humana para salvar outra? Se tomarmos o princípio de que é o sujeito na circunstância que escolhe, pois o princípio movente da escolha é inerente ao mesmo, porém, não por sua vontade, mas por motivo da constrição que sofre, a ação será mista. Portanto, sua ação será mista, pois, se, por um lado, sua ação é voluntária por ser fruto de uma escolha, por outro, é involuntária por não partir da sua vontade. A escolha não parte da vontade, mas da constrição que limita o campo da voluntariedade, fazendo com que a circunstância modifique a finalidade de uma ação. Em tal circunstância de constrição, a vontade que se verte em relação ao fim jamais será livre em tal escolha, pois em nenhuma circunstância a vida humana, por ser “fim em si mesma”, poderá ser avaliada em um cálculo entre vantagens e desvantagens, como se ela tivesse um preço em que uma vale mais que a outra. Portanto, em tal circunstância defendemos que um ser humano em suas faculdades normais jamais será totalmente livre para exercer tal escolha, pois a escolha somente é escolha no verdadeiro sentido da palavra, guiada pela vontade.
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1.2 Existe algum “ato humano” que vale “por si mesmo”? Segundo Aristóteles, nem toda ação ou paixão3 admite um meio-termo, pois algumas entre elas têm nomes4 que já em si mesmos implicam maldade, como o despeito, o despudor, a inveja e, no âmbito das ações, o adultério, o roubo, o assassinato, e, segundo ele, nessas ações e outras semelhantes a maldade não está na falta ou excesso, mas implícita nos próprios nomes. Aqui observamos que em tais ações, definidas, por assim dizer, de um modo substancial-formal, nunca será possível haver retidão, mas tão-somente erro.5 Parece que, para Aristóteles, nada que possa ser acrescentado a tais ações mudará o seu valor moral em relação à sua bondade ou à sua maldade, uma vez que essas lembram algo substancial; de fato, afirma o Estagirita: “[...] tampouco a bondade ou a maldade dependem, por exemplo, de cometer adultério com a mulher certa, no momento e da maneira certos, mas simplesmente qualquer delas é um erro” (ARISTÓTELES, 2005, p. 51-52). Ou seja, não é o lugar, o tempo, a modalidade que qualificam tais ações, mas essas em sua essencialidade são em si desqualificadas. Em outras palavras, tais ações já são constituídas de antemão como um ser natural, com substância própria, à qual nada pode ser acrescentado ou tolhido. Substância essa aprisionada por sua essencialidade, que, por não mais admitir coisa alguma, revela-se unívoca. Aristóteles, em tais casos, não deixa espaço nem mesmo à razão para construir a ação estabelecendo conexões várias com diferentes circunstâncias, circunstâncias essas (como, por exemplo, o lugar, o tempo e o modo) que possam mudar a espécie de um ato, torná-lo bom 3 Trataremos em nosso texto somente das ações, não discutiremos a questão das paixões. 4 No sentido de conceitos que em si porta a sua essencialidade. 5 C.f. EN., II, 6, 1107a, 5-15, p. 50-51.
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ou mau; circunstâncias que podem assumir importância particular em relação à razão e tornar boa uma ação que, em si, abstrativamente ou formalmente, seria má. Ainda, como é bom lembrar, acrescentar uma nova espécie moral a tais ações. Qual seria o erro de Aristóteles, segundo o nosso entender? O de conferir “substancialidade-formal” a tais ações. Como tais ações valem em si e por si, não podem ser menos que substâncias; e, sendo assim, não podem ser modificadas. Porém, pensamos que as ações não são substâncias, mas o modo de uma sustância se manifestar incluindo todas as categorias possíveis de sua manifestação, portanto necessariamente envoltas por circunstancialidade. Tratando tais ações como substâncias, Aristóteles perdeu o movimento delas; assim, separadas do movimento, tais ações não adquirirão a condição de objeto da ação nas circunstâncias, e, segundo a lógica da substancialidade-formal, valerão em si e por si, isto é, o nome já diz tudo da ação, bastando, assim, o juízo analítico. Aqui, segundo nosso entender, erra Aristóteles, porque ele analisa de um modo necessário-formal a realidade contingente. Portanto, tais ações que não admitem “algo a mais” valem sim, mas para um mundo perfeito e necessário idealizado pelo filósofo, e não para um mundo imperfeito e contingente onde vive o filósofo. 1.3 Até que ponto diante da “violência” o homem é livre? Aristóteles declara que o ato involuntário é aquele ato que se cumpre por constrição e por ignorância.6 Ora, queremos discutir os atos constritos por violência, como esses se manifestam e até que ponto realmente a violência pode constrangê-los, segundo o pensamento do Estagirita.
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C.f., EN., III, 1, 1110a, 35-36, p. 57.
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Constrito, segundo nosso filósofo, é aquilo no qual o princípio é fora do sujeito, de tal modo que na ação que alguém pratica, ou sofre, não há nenhuma influência7. Como exemplo nos oferece o seguinte: “[...] quando uma pessoa é levada a alguma parte pelo vento, ou por homens que a têm em seu poder” (ARISTÓTELES, 2005, p. 57). Aqui encontramos o primeiro tipo de constrição por violência, violência que nos impede de fazer algo além de sofrer a constrição. No entanto, perguntamos: neste caso, a violência pode coagir a vontade? “Parece” que sim! Pois, neste caso, não se há o que fazer, simplesmente se sofre a coação. Encontramos, assim, um tipo de violência na qual não há espaço para nenhuma reação. O segundo caso de constrição por violência é aquele em que se cumpre uma coisa por medo de um mal maior a motivo de um bem qualquer; nesse caso, segundo o filósofo, se coloca a questão se são involuntários ou voluntários. Como no primeiro exemplo, aqui também existe violência, que podemos chamar de “chantagem”, mas perguntamos: esse tipo de violência pode coagir a vontade? “Parece” que não! Explicamos: a vontade, por ser interior, não pode ser coagida por essa violência, uma vez que dependerá da vontade, mesmo que coagida, a tarefa de fazer a escolha entre bens. Porém, a violência pode agir sobre os atos exteriores pelos quais a vontade se exprime, para produzi-los ou impedi-los; não obstante, será a vontade a realizar tais ações. Afirma Aristóteles: “De fato, nas situações de que estamos falando, o homem age voluntariamente, pois nele se encontra o princípio que move as partes do corpo apropriadas em tais ações, e, quando o princípio motor está no agente, nele está igualmente o poder de praticar ou não tal ação” (ARISTÓTELES, 2005, p. 57). Porém, tais atos são voluntários na medida em que a vontade realiza uma escolha entre bens; não é, todavia, uma escolha realizada “por si
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C.f., EN., III, 1, 1110a, 37-38, p. 57.
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mesma”, mas em vista de uma outra coisa, como, por exemplo, atirar ao mar seus bens para salvar a vida. Sobre o assunto afirma Aristóteles: “Ações dessa espécie são, portanto, voluntárias, embora, em abstrato, talvez sejam involuntárias, pois ninguém as escolheria por si mesmas” (ARISTÓTELES, 2005, p. 57). Portanto, são voluntárias, mas como preço de determinado bem. Afirma ele: Com respeito às ações involuntárias em si mesmas que, entretanto, no momento atual e em virtude das vantagens que trazem consigo, merecem preferência, e cujo princípio motor está no agente, essas, como dissemos, são involuntárias em si, todavia são voluntárias nessas circunstâncias e em troca dessas vantagens (ARISTÓTELES, 2005, p. 57).
Portanto, são ações voluntárias, pois, entre os bens particulares, se exercita a liberdade da escolha. O terceiro caso de coação por violência é aquele em que o medo provocado por um mal iminente vence as forças naturais humanas suprimindo a liberdade; neste caso, segundo Aristóteles, se deve merecer perdão, uma vez que tal medo “parece” agredir a própria lucidez do agente8. Portanto, ações forçadas são somente aquelas em que, sem restrições de nenhum tipo, a causa é externa ao agente, o qual em nada contribui para tal ação.9 1.4 Há possibilidade de injustiça contra si mesmo? A injustiça contra si mesmo, tanto em plano geral, como em plano particular, é, para Aristóteles, impossível. Isto porque o ato de injustiça contra si mesmo implicaria a voluntariedade do caráter do sujeito
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C.f., EN., III, 1, 1110a, 23-25, p. 57. C.f., EN., III, 1, 1110b, 35, p. 58.
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agente e, também, a involuntariedade do caráter do paciente; de modo que fazer injustiça a si mesmo comportaria fazê-la voluntariamente e sofrê-la involuntariamente ao mesmo tempo, o que seria impossível, pois violaria o princípio de não contradição. Pergunta-se Aristóteles: Se agir injustamente não é mais do que prejudicar voluntariamente alguém, e voluntariamente significa conhecendo a pessoa em relação à qual se age, o instrumento e a maneira pela qual se age, e o homem incontinente prejudica voluntariamente a si mesmo, não só ele será voluntariamente tratado de modo injusto, mas também será possível agir injustamente em relação a si próprio (e a questão de saber se alguém pode agir de modo injusto em relação a si mesmo é uma das que estamos investigando em nosso assunto) (ARISTÓTELES, 2005, p. 120-121).
Sendo, neste caso, agente e paciente uma só pessoa, isto é, uma totalidade que parte de um ponto “vital de movimento”10 unívoco que não comporta contradições internas, fica impossível cometer injustiça contra si mesmo, uma vez que, para isso acontecer, necessitaria violar o princípio de não contradição. Assim, para que haja injustiça são necessárias ao menos duas pessoas. Portanto, considerando o ponto “vital de movimento” de uma forma unívoca, isto é, não comportando em si contradições, é impossível em si e por si cometer injustiça contra si. Porém, a partir desse ponto “vital de movimento”, compreendido não mais de um modo unívoco, mas em um sentido metafórico ou analógico, pode-se falar de cometer injustiça contra si mesmo pensando a injustiça que se exprime entre as partes de si mesmo, isto é, das partes que compõem a alma ou princípio de movimento. No entanto, para bem compreender, devemos lembrar que, para o filósofo, este princípio vital de movimento é “composto” por partes diferentes.
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Podemos dizer alma, ou princípio de movimento imanente auto-aperfeiçoante.
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Isto é, a alma é formada por uma parte irracional que não participa da regra, por uma parte racional que possui a regra e por uma parte desiderativa que participa da regra. Portanto, a injustiça, aqui, não é do homem contra si mesmo, mas de uma parte do princípio de movimento que impõe sobre a outra parte o seu poder. Ou seja, há uma espécie de injustiça no homem, não em relação a si mesmo, mas entre certas partes suas. Confirma o Estagirita: Com efeito, as relações que a parte racional da alma guarda para com a parte irracional são desse tipo, e é tendo em vista essas partes que se pensa que um homem pode ser injusto para consigo mesmo, porque tais partes podem sofrer alguma coisa contrária aos seus desejos, de tal modo que parece haver uma justiça entre elas, como aquela que existe entre governante e governado (ARISTÓTELES, 2005, p. 127). Assim, é impossível ao homem, sendo um, sofrer injustiça de si mesmo, mas, porque sua alma é uma, porém com partes diferentes, esta pode fazer injustiça à outra parte, pois, como são partes diferentes, desejam coisas diferentes.
2 Questões discutidas à luz de Tomás de Aquino 2.1 Como um princípio da ordem universal-formal pode servir de orientação nas particularidades da vida cotidiana? Agora discutiremos as questões referentes à filosofia do Doutor Angélico, utilizando como referência bibliográfica sua própria obra: Suma teológica. Como já dissemos, temos consciência que a obra tem muito mais a oferecer, mas para o momento queremos discutir somente as questões levantadas. Primeiro observamos que, de um modo genial, Santo Tomás revela um paralelismo existente entre a ordem das verdades teoréticas e as verdades das ações prática. Em relação às verdades teoréticas, o Ser, cuja 46
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intelecção está inclusa em todas aquelas coisas que alguém apreende, onde o “primeiro princípio indemonstrável é que não se pode afirmar e negar ao mesmo tempo,11 que se funda sobre a razão de ser e não-ser” (AQUINO, 1980, p. 1.760), e sobre esse princípio fundam-se todas as outras coisas. Em relação às verdades das ações práticas, estabelecido que “é” o Bem aquilo que todas as coisas desejam, segundo Tomás, o mesmo Bem é o primeiro que cai na apreensão da razão prática, daí estabelece o princípio de que “[...] o bem deve ser feito e procurado, e o mal, evitado” (AQUINO, 1980, p. 1.760). A tarefa agora é entrelaçar tais verdades com o funcionamento das leis naturais; para isso, afirma o Doutor Angélico: “Sobre isso se fundam todos os outros preceitos da lei da natureza, como, por exemplo, todas aquelas coisas que devem ser feitas ou evitadas pertencem aos preceitos da lei de natureza, que a razão prática naturalmente apreende ser bens humanos” (AQUINO, 1980, p. 1.760). O ponto de partida como base do raciocínio em ambos os casos é evidente, mas indemonstrável. Por um lado, temos o ser, objeto da inteligência teorética; por outro, temos o bem, objeto da razão prática, sendo este aquilo pelo qual todas as coisas naturalmente tendem, realizando, assim, sua finalidade. Tomás chega, assim, a um axioma da lei moral: fazer o bem, evitar o mal; mas ainda agora nos encontramos em um princípio geral, do qual se mede a ação de um modo universal e formal. Portanto, como ancorá-lo, isto é, como torná-lo aplicável nas particularidades exigidas pela vida cotidiana? Para resolver o problema, Tomás retorna à ideia de natureza como constitutivo de um ser em sua realidade profunda e em sua dinamicidade, e por essa mesma natureza um ser exprime-se em suas inclinações originais, inclinações essas que o revelam. Assim, a partir das inclinações naturais, que visam a um bem essencial para o homem, Tomás aplica o
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Princípio de não contradição.
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preceito primeiro, isto é, o axioma universal-formal deve ser aplicado obedecendo à natureza do homem concreto que busca na ação concreta seu bem a realizar. Portanto, o princípio primeiro é sempre o mesmo, a saber, fazer o bem e evitar o mal, mas no cotidiano se ancora sobre o conceito de natureza, natureza essa que manifesta inclinações ou tendências naturais. Sendo assim, em dada realidade podemos nos perguntar: o que é o bem e o que é o mal? Pela lógica do Doutor Angélico fica fácil responder: o bem é o que faz o homem realizar sua finalidade, e o mal é aquilo que o atrapalha de realizar tal finalidade. Portando, o axioma deve sempre levar em consideração a natureza do homem. A lei natural revela-se como uma luz racional e irrecusável, pois essa, na sua dinamicidade, leva o homem a assumir suas tendências naturais, tendências essas que aparecem como anterior a qualquer raciocínio, pois são constitutivas da própria essência do homem; e, quando assumidas em sua racionalidade, portam o homem à sua verdadeira finalidade. 2.2 Em que medida as circunstâncias influenciam uma ação? As circunstâncias são o elemento da ação que, segundo Santo Tomás, sem ser essenciais, caracterizam, contudo, sua qualidade moral, aumentando-a ou diminuindo-a. Porém, observa o doutor angélico: “Os atos humanos são voluntários ou involuntários de acordo com o conhecimento ou a ignorância das circunstâncias” (AQUINO, 2003, p. 137). As circunstâncias necessariamente devem ser consideradas ao se elaborarem juízos, pois essas mesmas circunstâncias são objetos da moral, uma vez que nelas se encontra ou é afastado o meio da virtude nos atos humanos e nas paixões. Ao moralista cabe a tarefa de discernir as circunstâncias que lhe interessam e a elas aplicar as leis morais universais de um modo concreto. O teólogo, em uma circunstância concreta, avalia a ação humana a partir de três olhares diferentes, que 48
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se coordenam entre si. Primeiro, a intenção da bem-aventurança divina como fim último assume a qualidade moral do ato, pois “tudo aquilo que se ordena a um fim, deve ser proporcionado a este fim. Os atos são proporcionados ao fim segundo alguma medida determinada pelas devidas circunstâncias” (AQUINO, 2003, p. 137). Segundo, o olhar do teólogo sobre o ato humano é diferente do olhar do filósofo, isto é, seu objeto é outro. Esclarece Tomás: “Porque o teólogo considera os atos humanos enquanto neles se encontra o bem e o mal, o melhor e o pior, e essa diversidade se deve às circunstâncias [...]” (AQUINO, 2003, p. 137). Terceiro, uma circunstância importante para um teólogo pode ser destituída de valor para um orador ou vice-versa, pois “o teólogo considera os atos humanos enquanto são meritórios ou demeritórios, o que cabe aos atos humanos e para isso se requer que sejam atos voluntários” (AQUINO, 2003, p. 137). A tarefa é determinar quais são as circunstâncias convenientes a aplicar tais procedimentos morais. A esta questão responde o filósofo D’Aquino: [...] os atos são propriamente humanos enquanto voluntários. O motivo e o objeto da vontade é o fim. Por isso, a mais principal das circunstâncias é aquela que atinge o ato quanto ao fim, isto é, para quê. A circunstância secundária é aquela que atinge a própria substância do ato, isto é, o que é feito (AQUINO, 2003, p. 140-141).
Assim, como circunstâncias principais do ato temos, de um lado, a matéria do ato, isto é, o quê é feito, e, de outro, o seu fim, ou seja, o para quê. Portanto, para Tomás, a matéria e o fim da ação constituem os elementos essenciais de um ato, logo, o fim, mesmo não sendo da substância do ato, é a causa principal dele enquanto o move. A circunstância significa aquilo que, estando fora da substância, de certo modo a atinge. Atinge-a de três modos, a saber: “Primeiro, enquanto atinge o ato; segundo, enquanto atinge a causa do ato; terceiro, REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 37-60, jul./dez. 2010
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enquanto atinge o feito” (AQUINO, 2003, p. 139). Porém, o fim que especifica o ato não é a circunstância em si mesma, mas algo acrescido a ela. Explica Tomás: [...] quando o forte age fortemente visando o bem da fortaleza, isto não é circunstância,12 mas, sim, se age fortemente pela libertação de sua pátria, ou do povo cristão.13 O mesmo se deve dizer da circunstância, o que, pois, derramar água sobre outro e o molhar não é circunstância,14 mas o é, se isso o refrigera ou aquece, o cura ou faz mal (AQUINO, 2003, p. 140).
Isto é, a circunstância aqui é acrescida à substância da água, que em si molha, mas que circunstancialmente pode aquecer, resfriar, curar ou matar. 2.3 Quando a finalidade é legítima? Segundo Santo Tomás, a intenção é um ato da vontade que recai sobre o fim último em primeiro lugar, e, em segundo lugar, sobre os fins intermediários. Porém, ele observa que “a vontade, não ordena, mas tende para alguma coisa segundo a ordenação da razão. Por isso, o nome intenção designa o ato da vontade, pressuposta a ordenação da razão, que ordena para o fim” (AQUINO, 2003, p. 178). No entanto, os fins intermediários, como objetos da intenção, não são simplesmente “meios”, ou seja, fazem sim parte da ordem dos meios como bens úteis, mas superam essa ordem, como nos explica o doutor angélico: “[...]
Uma vez que está inerente à substância do forte a defesa da circunstância, assim não lhe cabe nenhum mérito. 13 A segunda ação do forte não é inerente à sua substância, mas a essa é acrescida, por isso é digna de mérito. 14 Uma vez que a ação de molhar faz parte da substância da água. 12
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pode-se considerar no movimento duplo fim: de um modo, o termo último, no qual se aquieta, que é o termo de todo movimento; de outro modo, algum intermédio, que é o princípio de uma parte do movimento, e o fim ou termo da anterior” (AQUINO, 2003, p. 179). Assim, quando nossos atos versam sobre realidades que valem por si mesmas, tais como a Pessoa do outro, a Família etc., essas realidades, sendo dignas em si mesmas, devem ser amadas e queridas por si e em si. Contudo, tais realidades, de certo modo, são subordinadas como fins intermediários ao fim último divino; não, porém, como meio no sentido utilitarista da palavra, ao contrário, devem ser compreendidas como “o que é para o fim”. Falando acerca do movimento intencional, Tomás esclarece: “[...] no movimento pelo qual se vai de A a C por B, C é o termo último; B é termo, mas não é o último. E a intenção pode referir-se a ambos. Por isso, embora seja sempre ‘fim’, nem sempre é necessário que seja o fim último” (AQUINO, 2003, p. 179). Portanto, segundo Santo Tomás, realidades como Família e Pessoa15 não são meios, mas, como afirma o aquinante, “sempre fim” (AQUINO, 2003, p. 179). No entanto, acrescenta Tomás, “nem sempre é necessário que seja o fim último” (AQUINO, 2003, p. 179). Assim, a Pessoa não é meio que se utiliza para alcançar um fim e depois pode ser deixado de lado, mas essa é “abertura” que nos propõe o que é para o fim; a Família não é meio, mas “abertura” que nos envolve no que é para o fim; a Pessoa não é meio, mas fim em sim mesma, essa é “abertura” que nos orienta ao que é para o fim. Em outras palavras, Família e Pessoa, estão para os fins intermediários como Deus está para o fim último, isto é, aquelas participam do fim último em uma analogia intrínseca, porém, não são “o fim último”, mas, desde agora, deste participam.
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Tenho consciência que essas realidades não aparecem no texto.
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Existe assim uma conexão entre as duas faces do movimento da vontade, isto é, um movimento para o fim e um para o que é para o fim. Afirma Tomás: [...] enquanto a vontade se refere a ambos absolutamente e por si. E assim são absolutamente dois movimentos da vontade para os dois. [...] pode-se considerar enquanto a vontade é levada para o que é para o fim, por causa do fim. Assim o movimento da vontade que tende para o fim e para o que é para o fim é um só e o mesmo quanto ao sujeito (AQUINO, 2003, p. 182).
Portanto, esta íntima conexão entre o objeto da intenção que é o “fim” e o o objeto da escolha que não é o meio, mas “o que é para o fim”, é essencial para nosso Autor, pois, estabelecido que um movimento não pode acontecer sem o outro movimento, o objeto da intenção e o objeto da escolha revelam-se como o critério para julgar a qualidade dos atos humanos, e os movimentos que vertem sobre o que é para o fim têm sua dignidade em si mesmos, não são meios, mas vias necessárias para chegar ao fim último. 2.4 Quando um ato moral é legítimo? Os atos morais possuem duas partes essenciais, a saber, um ato interior, que podemos chamar de “intenção” do sujeito agente, e, como não poderia deixar de ser, um ato exterior, que podemos chamar de “obra”. Segundo Santo Tomás, não se trata de dois atos separados, mas de duas dimensões do mesmo e único ato moral. O fim da obra é objetivo, isto é, seu fim está ordenado por sua própria natureza; por exemplo: a esmola é, em si e por si, destinada a amenizar a miséria do pobre, logo é inerente a esse problema a sua finalidade. O fim do agente é subjetivo, uma vez que este reside na intenção deliberativa do sujeito agente como tal; sendo assim, aquele 52
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que oferece a esmola pode visar a amenizar a miséria e o sofrimento daquele que sofre, mas também pode ter a intenção de obter reputação de generoso para obter glória e ser conhecido socialmente. Portanto, agindo assim, sua ação não pode ser moralmente boa, pois transforma o fim objetivo em meio para alcançar benefícios próprios, os quais não são inerentes este fim. É evidente que, segundo Tomás, somente quando o fim do agente coincide com o fim da obra é que temos de fato um legítimo e reto ato moral, que, em si, pode ser digno de louvor. Tomás afirma: É preciso, pois, que qualquer ato individual tenha alguma circunstância pela qual é atraído para o bem ou para o mal, ao menos da parte da intenção do fim. Ora, como é próprio da razão ordenar, o ato que procede da razão deliberativa, se não está ordenado para o devido fim, por isso mesmo contraria a razão, e tem razão de mal. Se, porém, está ordenado para o devido fim convém à ordem da razão, e tem, por isso, razão de bem. É necessário, pois, que se ordene ou não ao devido fim. Portanto, é necessário que todo ato humano procedente da razão deliberativa, considerado no indivíduo, seja bom ou mau (AQUINO, 2003, p. 254).
Assim, segundo o angélico d’Aquino, quando o fim do agente não coincide com o fim da obra, não temos um legítimo ato moral; mesmo que a ação em si seja boa, ela não cumpre sua finalidade legítima, uma vez que se torna um simples meio para alcançar um bem ilegítimo. Esclarece Tomás: “Para cada coisa há o bem que lhe convém segundo sua forma, e o mal que está para ele além da ordem de sua forma. Logo, fica claro que a diferença do bem e do mal considerada acerca do objeto, comprara-se por si à razão, isto é, segundo o objeto lhe é ou não conveniente” (AQUINO, 2003, p. 246). Portanto, quando a finalidade objetiva de uma obra que em si é boa coincide com a intencionalidade deliberativa do sujeito agente, que em si é livre, temos, por assim dizer, o verdadeiro ato moral louvável e REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 37-60, jul./dez. 2010
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bom. Assim, o ato moral tem um caráter ou dimensão individual, cuja intenção deliberativa do sujeito agente é que o regula, porém, esse ato moral deve ser regulado por uma dimensão objetiva do próprio objeto do ato, a saber, a finalidade da obra para a qual esse ato se volta. Podemos, portanto, concluir que o problema moral é com certeza bem pessoal, mas estende-se bem além do simplesmente caráter pessoal de cada indivíduo, elevando-se a uma dimensão objetiva, que oferece as bases para qualificar um ato moral. Assim, temos a dimensão da finalidade inerente à própria obra que, conjugando-se com a intencionalidade do sujeito agente, definira a essência da qualidade do ato moral, uma vez que, “[...] assim como a primeira bondade da coisa material é considerada por sua forma, que lhe dá espécie, assim também a primeira bondade do ato moral é considerada pelo objeto conveniente [...]” (AQUINO, 2003, p. 240). 2.5 Qual o fundamento da ação livre? São Tomás, evidenciando o paralelismo entre a ordem das verdades teoréticas e a das ações a realizar, determina o funcionamento da lei natural, em virtude da qual, segundo ele, nossa razão descobre o bem das inclinações inscritas na própria natureza e, sob tais inclinações que funcionam como base, fundamenta a ordem moral que deve guiar nossa ação prática, isto é, “[...] que o bem deve ser feito e procurado e o mal, evitado” (AQUINO, 1980, p. 1.760). O qualificativo do valor moral consiste na conveniência do ato e do objeto com aquilo que a razão apreendeu como um bem, isto é, “[...] é inerente ao homem a inclinação ao bem segundo a natureza da razão, que lhe é própria, como ter o homem a inclinação natural para que conheça a verdade a respeito de Deus e para que viva em sociedade” (AQUINO, 1980, p. 1.760). Portanto, guiada pela lei natural, a razão será reta, pois, fiel a si mesma, agirá de dentro dos próprios princípios primeiros. Assim, como na ordem teórica, o princípio de identidade é 54
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a base sobre a qual se vai em direção à última Verdade; na ação prática o princípio moral é a base sobre a qual se vai ao último Bem ou Bem por excelência. Esses princípios, ou inclinações naturais, consistem em uma ordem intrínseca à própria razão, que versa sobre o fim último como horizonte, mas que não tem esse horizonte último como objeto dado imediato, impedindo, assim, uma ação direta sobre esse fim. Não tendo como agir sobre o bem último, que se coloca somente como horizonte, o homem deve guiar-se por sua própria natureza, isto é, por aquilo que lhe constitui em sua realidade mais profunda; esta se exprime em inclinações originais, que, por sua vez, revelam o seu próprio Bem. É sobre esse Bem próprio do homem que se aplicam os princípios morais, como já afirmamos; ele serve de base para pensar e escolher entre os bens particulares que se oferecem como uma multiplicidade de bens. Pensando nos bens particulares que são meios para alcançar o Bem último e fazendo escolha entre eles, o homem exercita a sua liberdade. Afirma Tomás que o “Bem é aquilo que todas as coisas desejam” (AQUINO, 1980, p. 1.760), porém, no caso do homem, ser racional, esse ir em direção ao Bem se dá de modo voluntário e livre. Pensando nos bens particulares e fazendo escolha entre eles, a razão age livremente, uma vez que, ao exercitar tais ações, ela mantém-se fiel à sua essência a partir de sua própria lei, não se subordinado, assim, nem a uma lei estranha, como as leis dos sentidos, nem a uma lei externa. Portanto, a razão não é uma fonte autônoma dos valores nem é a medida de si mesma, mas também a razão não é escrava de determinismos “naturais”16 ou de divindades caprichosas. Em seu exercício moral, a razão se reconhece guiada por um valor absoluto, que, no entanto, não é objeto imediato, mas lhe serve como base, como horizonte fundamental. Conduzida por tal horizonte, a razão se faz consciente de
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Determinismos esses na ordem moral, não na ordem biológica etc.
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que a vida, por exemplo, é um valor não porque a razão a criou, mas porque a razão a “reconhece” como tal. Observamos que este horizonte último (Deus, fim último, supremo bem etc.) não é um determinante no sentido que tolhe a liberdade do ato, mas possibilita ao homem reconhecer a “verdade ou bem” do ato. Portanto, metafísica e ética se abraçam, verdade e liberdade não se separam.
Conclusão Ao trabalharmos algumas questões advindas do pensamento de Aristóteles e das concepções de Santo Tomás de Aquino, em primeiro lugar percebemos a atualidade tanto do pensamento, quanto das próprias questões. Em relação ao pensamento, percebemos a magnífica clareza de ambos. Isto é, o rigor filosófico e a arte de pensar com concatenações lógicas rigorosas. Quanto à atualidade das questões, percebemos que, por serem questões humanas, sempre estarão em pauta, uma vez que em qualquer tempo e em qualquer espaço deveremos nos perguntar o que faz com que a ação humana seja de fato humana. Aristóteles nos faz resgatar a questão da determinação de nossa “vontade”; seria o ato humano determinado por uma lei moral a priori, como pensa Kant? Seria nossa vontade determinada por uma tal circunstância? Eis questões que permanecem! O “ato voluntário” seria aquele que não apresenta nenhuma constrição nem externa nem interna? Mas isso seria possível? Em relação à validade do “ato humano por si”, o Filósofo nos faz pensar que não é o lugar, o tempo, a modalidade que qualificam tais ações, mas essas em sua essencialidade são em si desqualificadas. Ou seja, roubo, adultério, assassinato em todo lugar, tempo ou qualquer modalidade não deixam de ser roubo, adultério e assassinato. Mas, perguntamos nós, a vida pode ser encaixada na formalidade lógica? Atos humanos podem ser avaliados sem se levar em conta as circunstâncias? 56
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Nosso filósofo nos apresenta a fragilidade humana quando trabalha a questão da violência, não somos super-homens, somos humanos e, como humanos, sujeitos a termos de agir contra nossa vontade, agredidos em nossa intimidade e levados a práticas que nos violentam. Porém, o Estagirista nos ajuda a compreender que nossa vontade é “sagrada”, pois é desta que partem os atos realmente humanos. Tomando o conceito de “injustiça analiticamente”, Aristóteles nos surpreende com sua capacidade de elucubração. E, de fato, analiticamente não se pode fazer violência contra si, uma vez que o ato de injustiça, neste caso, implicaria a voluntariedade do caráter do sujeito agente e, também, a involuntariedade do caráter do paciente; de modo que fazer injustiça a si mesmo comportaria fazê-la voluntariamente e sofrê-la involuntariamente ao mesmo tempo, o que seria impossível, segundo Aristóteles, já que, para isso, deveria violar o princípio de não contradição. Santo Tomás de Aquino busca resolver a questão de como um universal pode influenciar a ação do mundo real. Pensa ele que, como na ordem teórica, o mais evidente é que o “Ser é e não pode deixar de Ser”,17 isto para o “intelecto”. Assim também, na ordem prática, o bem das coisas é o que deseja a “razão prática”; por isso, o princípio que nos deve guiar na ordem prática de ser é “que o bem deve ser feito e procurado, e o mal, evitado”. Princípio moral entrelaçado com o conceito de “natureza humana” nos faz perguntar: qual o “bem” que emancipa tal natureza? Mas, perguntamos nós, tal natureza existe? Se existe, seria ontológica, biológica ou quiçá psicológica? No restante das outras questões, Santo Tomás nos ajuda a compreender que devemos distinguir aqueles “fins” que constituem a “ação legítima”, que dizem respeito às verdadeiras aspirações humanas. Isto é, a ordem moral não é indiferente à nossa natureza humana.
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Princípio de identidade que garante tal afirmação.
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Portanto, agir moralmente significa agir racionalmente segundo a natureza racional do homem. Assim, não é a vontade que determina a lei moral; esta é imanente à natureza humana, mas é a vontade que executa livremente esta ordem moral em suas particularidades e em circunstâncias concretas, fazendo escolhas entre os muitos bens e, por isso, agindo livre. Ainda podemos recordar que, para a legitimidade do ato moral, segundo Santo Tomás, são necessários dois elementos, a saber: o elemento objetivo, isto é, a lei, que com ele se atinge mediante a razão, e, como a moral de Tomás é uma boa moral cristã, também é necessário o elemento subjetivo, ou seja, a intenção, que, como sabemos, depende da vontade. No entanto, concluímos nosso trabalho observando que toda a filosofia de Aristóteles e a de Tomás estão ancoradas em uma metafísica. Em nosso mundo contemporâneo há espaço ainda para uma filosofia nestes moldes? Teria o “Filósofo” e o “Doutor Angélico” algo a nos dizer?
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Questões morais à luz de Aristóteles e Tomás de Aquino
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MORAL QUESTIONS IN ACCORDANCE WITH ARISTÓTELES AND TOMÁS DE AQUINO Abstract From some topics of Aristóteles’s and Tomás de Aquino’s philosophy, we seek to interprete relevant moral questions, running through about subjects that pass by the ”human act“ as so, thus characterizing our liberty in certain circunstances. We discuss questions such as: Does any circunstance justify our act? Is there any human act that is worthy for itself? Can man be unfair against
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himself? And if so, what are his conditions? What can make the purpose of an action legitimate? We are aware that we don’t do justice to the magnitude of these two authors, but in spite of the “distance” that keeps us apart and of our own limitations, we search to “listen to some words” from them. Key words: Aristóteles. Tomás de Aquino. Voluntairsm. Circunstance. Moral act.
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O DESAFIO COLOCADO POR MAX WEBER Fábio Eulálio dos Santos*
Resumo Este artigo pretende apresentar o desafio colocado por Max Weber, delimitando o significado de responsabilidade no quadro da teoria moral. Weber posiciona-se claramente contra a possibilidade de um procedimento para resolução de conflitos práticos, na medida em que advoga ser impossível qualquer consideração cognitiva a respeito de normas morais do mesmo modo como podemos fazer em relação a “fatos”, como também nega a possibilidade de defender uma ética formal, restando, assim, unicamente um pluralismo ético irredutível num mundo desencantado. Disso resulta o grande desafio de Weber: o de agir com responsabilidade, observando os efeitos das próprias ações. Desafio que, no seu entender, não pode ser satisfeito por uma ética deontológica, e, assim, é colocado diante de todo projeto contemporâneo de fundamentação da moral que segue na tradição kantiana. Palavras-chave: Ética. Responsabilidade. Convicção. Racionalidade. Desencantamento.
Introdução O desafio colocado por Weber situa-se nos seus estudos a respeito da crítica referente à separação entre meios e fins, ao conflito de validade entre as esferas de valor e à tensão entre a ética e outras maneiras “valorativas”, enquadrando-se, por fim, na sua pesquisa sobre a racionalidade, cujo eixo é analisar o processo de racionalização a partir do desencantamento das imagens do mundo religioso e metafísico.
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Professor de Filosofia da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo.
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Weber traça a diferença entre a discussão dos meios e a dos fins de uma ação prática e esclarece que para aqueles os fins já devem estar postos; porém, ressalta que este “posto” não significa fato, mas um “fim estabelecido a priori” (WEBER, 1992, p. 369). Weber segue esclarecendo que o fim é sempre pretendido com fundamentos últimos muito diversos, conforme a ética, mas que, mesmo assim, não poderíamos negar que se pode partir de um fim determinado de comum acordo e apenas discutir os meios através dos quais este fim pode ser alcançado. Para este tipo de discussão, isto é, para a discussão sobre os meios, Weber diz que estamos no nível empírico-científico, enquanto para uma discussão sobre os fins estamos no nível valorativo, que não é científico. Ora, com essa demarcação, Weber sustenta uma diferença a respeito da pretensão de validade para os fins e para os meios, que é realçada quando ele afirma que é importante para as ciências empíricas sustentar que a “validade de um imperativo prático enquanto norma está em outro plano, isto é, é heterogêneo ao valor da verdade de uma comprovação empírica de fatos” (WEBER, 1992, p. 370). Isto significa que a comprovação da validade de um fim não se dá da mesma forma que a comprovação da necessidade de um meio, que pode ser considerado inclusive sem que seja ao fim atribuído o valor positivo, mas que apenas tenha já sido “posto”, visto que o valor do meio é referente à facilidade que proporciona para alcançar o fim estabelecido, considerando os efeitos previsíveis. Assim sendo, Weber chama a atenção para o fato de que não se deve atribuir “valor” positivo às convicções – que dizem respeito aos fins, e não aos meios – simplesmente por serem causas efetivas de uma determinada forma de vida, nem o contrário, ou seja, considerando um fenômeno ético ou religioso como de elevado valor em si mesmo, entender que as consequências desses fenômenos devem receber o mesmo predicado positivo. Para Weber, as comprovações empíricas em nada esclarecem as questões valorativas, que devem ser julgadas diferentemente, conforme as suas próprias avaliações éticas ou religiosas. 62
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O desafio colocado por Max Weber
Weber julga ser um equívoco esperar considerações empíricas sobre fatos, portanto, que a ciência possa responder a questões como, por exemplo, “O que devemos fazer?”. Weber considera que “é incontestável que a resposta a essas questões não nos é tornada acessível pela ciência” (WEBER, 2005, p. 36), uma vez que constituem “dois problemas heterogêneos, de uma parte, o estabelecimento de fatos, [...] ou a identificação das estruturas intrínsecas dos valores culturais [...] e, de outra parte, a resposta a questões relativas à maneira como se deveria agir na cidade” (WEBER, 2005, p. 39).
1 Convicção versus responsabilidade Uma das perguntas que está guiando Weber é sobre a possibilidade de uma ética normativa, isto é, da obrigação de um imperativo prático para todos. Porém, além de não poder contar com a contribuição de uma posição empírica, portanto, científica, para esta questão, Weber faz também uma diferenciação entre valores éticos e valores culturais, que torna a resposta àquela pergunta mais distante, na medida em que ele admite que essas duas esferas de valores podem opor-se, negando-se uma a outra a respeito da obrigatoriedade dos respectivos valores indicados sem que entrem em contradição interna. Weber considera, ainda, que toda ética indica conteúdos, até mesmo aquelas ditas como “formais”, constituindo-se, desse modo, também uma esfera de valor em luta com as outras esferas. Desse modo, Weber julga que a interpretação de que as “proposições ‘formais’, por exemplo, as da ética kantiana, não incluem indicações de conteúdo, representam [...] um grave erro” (WEBER, 1992, p. 372). Weber exemplifica a indicação de conteúdo da ética kantiana tomando a seguinte afirmação sobre a relação erótica de um homem com uma mulher: “Inicialmente a nossa relação era unicamente uma paixão, mas agora é um valor”. Weber diz que a expressão da primeira parte dessa afirmação, segundo REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 61-70, jul./dez. 2010
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os axiomas da Crítica da razão prática, seria: “Éramos apenas meios um para o outro” (WEBER, 1992, p. 373). A ética kantiana reprova moralmente o tratamento do outro como um meio, o que, para Weber, indica que o “caráter ‘formal’ [...] não é indiferente para o conteúdo da ação” (WEBER, 1992, p. 373). Disso resulta, ainda, o reconhecimento de esferas de valores autônomas que não são valores éticos, isto é, aquela, por exemplo, que pudesse tratar o outro como meio. Esta observação de Weber sobre o caráter formal da ética kantiana é colocada contra a pretensão de ancorá-la no quadro das ciências empíricas ou racionais, que faria das verdades éticas formais um fato e, portanto, unívocas. Weber recusa a formalidade da ética kantiana, que pudesse decidir o lado que tem razão – factível e cognoscível – na eterna luta dos valores e, portanto, determinar o imperativo prático a ser seguido por todos. Essa consideração de Max Weber obriga as teorias morais a desenvolver o sentido do caráter formal para a fundamentação da moral e avaliar até que ponto Weber tem razão na sua crítica. A partir dessas considerações, ele deixa de lado a busca pela resposta daquela pergunta sobre a possibilidade de uma ética normativa, na medida em que indica que existem problemas práticos de que a ética não pode dar conta, ou seja, uma resposta unívoca, justamente porque estes estariam numa outra esfera de valor, como, por exemplo, os problemas político-sociais, que revelam as tensões em torno da ética. Weber revela a tensão da ética mostrando que as “consequências do postulado ‘justiça’ não são questões que podem ser univocamente decididas por uma ética” (WEBER, 1992, p. 372), o que constitui, por exemplo, um problema para a teoria moral em Habermas – legítimo continuador do projeto iluminista de fundamentação da moral –, uma vez que ele pretende defender a justiça como escala de medida para julgamentos imparciais. Para Weber, questões da política social são insolúveis, na medida em que são baseadas em premissas éticas, como, por exemplo, se se deve em nome da justiça dar também grandes possibilidades ao grande talento, ou se, ao contrário, se deve compensar a 64
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O desafio colocado por Max Weber
desigualdade de bens espirituais entre os homens, cuidando para que o talentoso, que já usufruiria de um sentimento de prestígio, não pudesse aproveitar as melhores oportunidades. Weber coloca, assim, uma pergunta fundamental, que reflete o desafio sobre o critério do valor ético da ação sob a exigência do nosso tempo, isto é, para a atuação em um mundo racionalizado fora de um contexto religioso: Se o valor próprio da ação ética – a “vontade pura” ou a “mentalidade”, como é habitual denominá-la – deve ser unicamente suficiente para a justificação, seguindo a máxima “o cristão age justamente e remete a Deus os efeitos do seu agir” [...]. Ou se, diferentemente, é preciso levar em consideração a responsabilidade referente às consequências da ação que podem ser previstas como possíveis e prováveis, determinadas pela inserção desta num mundo eticamente irracional (WEBER, 1992, p. 373).
Ora, as duas alternativas são máximas éticas, respectivamente da ética da convicção e da ética da responsabilidade, que estão em eterno conflito. A primeira é caracterizada como uma ética religiosa, e a última, como expressão de uma ação política. A ética kantiana, para Weber, ainda que não seja religiosa, faz parte das éticas da convicção, pois, assim como nestas, a ética de Kant exige a incondicionalidade – “deves porque deves” –, em que o princípio moral determina a vontade enquanto vontade pura sem levar em consideração se o próprio homem tem ou não como alcançar o efeito apetecido. É nesse sentido que se age segundo a justiça, e os resultados e efeitos colaterais entregam-se a Deus, que seria o responsável. O que seria valorado como ação ética tanto para a ética da convicção quanto para a ética kantiana é a intenção, ou seja, a boa vontade no cumprimento do dever pelo dever. Consequentemente, são desconsiderados tanto o contexto da ação quanto os efeitos colaterais e as consequências, na tentativa de suplantar a irracionalidade ética do mundo, que o partidário REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 61-70, jul./dez. 2010
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da ética da convicção não suportaria. Portanto, para as éticas da convicção a ação ética é valorada pela intenção em agir de modo justo, e “não existe responsabilidade pelas consequências” (WEBER, 2005, p. 121).
2 Desencantamento do mundo e pluralismo ético irredutível Weber traz à tona um fato incontestável dos nossos dias: “O resultado final da atividade política raramente corresponde à intenção original do agente” (WEBER, 2005, p. 108). É a partir dessa ideia que Weber propõe uma ética da responsabilidade, em que o homem é responsável pela sua ação, na medida em que leva em consideração os meios para atingir o fim já decidido, em função também dos efeitos colaterais e das consequências previsíveis. Assim, a ética da responsabilidade rejeita veementemente a tese de que “o bem só pode engendrar o bem e o mal só pode engendrar o mal” (WEBER, 2005, p. 115); portanto, rejeita a boa vontade como suficiente para atuação no mundo. A proposta de uma ética da responsabilidade não é a resposta à pergunta sobre qual ética devemos seguir, isto é, quais fins últimos são legítimos para todos. A ética da responsabilidade seria, mais propriamente, uma atitude irrevogável, visto o desafio do nosso tempo, que resulta do processo de desencantamento, de racionalização, promovido pela ciência de onde se prova o inevitável “fruto da árvore do conhecimento”, que consiste no “[...] fato de ter que saber [...] que toda ação singular importante e, muito mais que isso, que a vida como um todo, se não quer transcorrer como fenômeno natural [encantado], mas pretende ser conduzido conscientemente, significa uma cadeia de decisões últimas em virtude das quais a alma [...] escolhe o seu próprio destino” (WEBER, 1992, p. 374).
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O desafio colocado por Max Weber
O desafio colocado por Weber é, portanto, agir segundo as exigências da responsabilidade, pois o processo de racionalização, entendido como o progresso da ciência e da técnica científica, permite ao homem “[...] provar que não existe, em princípio, nenhum poder misterioso e imprevisível que interfira com o curso de nossa vida” (WEBER, 2005, p. 30). Assim, é promovido o desencantamento da civilização ocidental ao desenvolver-se uma ciência que domina a natureza e pode fazer previsões, descartando a possibilidade de o homem negar o conhecimento sobre as consequências das suas ações e, assim, entregá-las a Deus. O homem passa agora a entender a ordem do mundo e é capaz de traçar seu próprio destino, avaliando os meios, as consequências e os efeitos colaterais em razão do fim escolhido. Contudo, a ciência não poderia ensinar a forma de agir corretamente, pois ela só nos fornece os instrumentos técnicos para sermos “senhores da vida”, do nosso próprio destino, ou seja, os meios necessários para alcançarmos um fim já determinado. A respeito deste fim a ciência cala-se. Esse é o reflexo da separação dicotômica entre a discussão sobre os meios e a discussão sobre os fins. Para Weber, num mundo desencantado, não é possível um procedimento científico (racional ou empírico) que pudesse responder aos problemas a respeito dos fins, como, por exemplo, de que maneira os conflitos entre vários fins podem ser concretamente pacificados? Tal problema é, para Weber, de difícil, senão impossível, resolução, uma vez que ele desconfia da capacidade argumentativa da razão prática, e no plano metodológico rechaça o cognitivismo ético. A autonomia das esferas de valor tem como resultado, em Weber, a redução da possibilidade cognitiva, como fica acentuado na sua tese do novo politeísmo no nosso mundo contemporâneo, pois Se há uma coisa que atualmente não mais ignoramos é que uma coisa pode ser santa não apenas sem ser bela, mas porque e na medida em que não é bela [...]. Semelhantemente, uma coisa pode ser bela não apenas sem REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 61-70, jul./dez. 2010
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ser boa, mas precisamente por aquilo que não a faz boa [...]. A sabedoria popular nos ensina, enfim, que uma coisa pode ser verdadeira, conquanto não seja bela nem santa nem boa. Esses, porém, não passam dos casos mais elementares da luta que opõe os deuses das diferentes ordens e dos diferentes valores. Ignoro como poderia encontrar base para decidir “cientificamente” o problema do valor da cultura francesa face à cultura alemã; aí, também diferentes deuses se combatem e, sem dúvida, por todo sempre tudo se passa, portanto, exatamente como se passava no mundo antigo, que se encontrava sob o encanto dos deuses e demônios, mas assume sentido diverso. Os gregos ofereciam sacrifícios a Afrodite, depois a Apolo e, sobretudo, a cada qual dos deuses da cidade; nós continuamos a proceder de maneira semelhante, embora nosso comportamento haja rompido o encanto e haja despojado do mito que ainda vive em nós. É o destino que governa os deuses e não a ciência, seja qual for.1
O belo, o bom e o verdadeiro tornam-se esferas de valor autônomas e distintas, e ainda, dentro da esfera do bom, Weber revela a pluralidade de “deuses”, de significados e fins últimos, que não são determinados pela ciência. Na esfera de valor em que se discutem esses significados e fins últimos, Weber afirma existir uma luta eterna, que cada pessoa trava com as outras a partir das suas convicções. A única contribuição possível da ciência para a esfera de valor a respeito dos fins últimos é esclarecer o significado de tais convicções e as consequências subsidiárias quando se deseja um determinado fim.
Conclusão Se o desafio colocado por Weber é o de agir responsavelmente, então se exige a conscientização de que nós somos “senhores da vida”. Essa exigência remete para a ética da responsabilidade, em que 1
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WEBER, A ciência como vocação, 2005, p. 41-42
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O desafio colocado por Max Weber
as consequências e efeitos colaterais são levados em consideração na medida em que o homem é agora capaz de deliberar sobre os meios de modo estratégico para atingir o fim desejado. Com isso, o desafio expressa um problema que todo projeto de fundamentação da moral deve encarar, pois, ao mesmo tempo em que a consideração sobre as consequências e efeitos colaterais previsíveis é exigida para a consideração sobre a justiça, Weber reserva o aspecto cognitivo apenas para este cálculo, isto é, entre meios e fins, negando a possibilidade de uma consideração cognitiva para os fins, que já deveriam estar “postos” não no sentido de “fato”, mas sim como estabelecidos a priori. Para a fundamentação da moral, tem-se que demover esse obstáculo, pois a impossibilidade de defender uma posição cognitivista para a moral equivale à impossibilidade de fundamentá-la, uma vez que a admissão de determinado fim não estaria apoiada em razões válidas para todos, mas, no máximo, em compromissos ou em acordos desse tipo, em que se mantêm razões diversas, justamente porque não se poderia defender a cognitividade dos fins, mas apenas a cognitividade dos meios. Nesse sentido, tem-se um problema para resolver: como fundamentar uma ética deontológica cognitivista da responsabilidade, uma vez que não se pode atribuir aos fins o estatuto de fato?
Referências HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa I: racionalidad de la acción y racionalización social. Tradução de Manuel J. Redondo. Madri: Taurus Humanidades, 1999. HABERMAS, Jürgen. Teorías de la verdad. In: Teoría de la acción comunicativa: complementos y estudios previos. Tradução de Manuel J. Redondo. Madri: Catedra, 1989. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 61-70, jul./dez. 2010
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KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Tradução de V. Rohden. São Paulo: Martins, Fontes, 2002. WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. Tradução de L. Hegenberg e Octany S. da Mota. São Paulo: Editora Cultrix, 2005. WEBER, Max, O sentido da “neutralidade axiológica” nas ciências sociais e econômicas. In: Metodologia das ciências sociais. Parte 2. Tradução de Augustin Wernet. São Paulo: Cortez Editora e Editora da Unicamp, 1992.
THE CHALLENGE RAISED BY MAX WEBER Abstract This article intends to present the challenge raised by Max Weber, delimiting the meaning of responsibility in the scenery of the moral theory. Weber becomes clearly against the possibility of a procedure for the resolution of practical conflicts, while he defends that it is impossible any cognitive consideration concerning the moral rules the same way as we can do in relation to “facts”, as he also denies the possibility of defending formal ethics, being left over, thus, only an irreductible ethical pluralism in a disenchanted world. From this results the great challenge of Weber: the one of acting with responsibility, observing the effects of the own actions. Challenge that, according to Weber, cannot be satisfied by deonthological ethics, and, thus, is placed before every contemporaneous project of fundamentation of the moral that carries on in the kantian tradition. Key words: Ethics. Responsibility. Conviction. Rationality. Disenchantment.
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O LUGAR DA METAFÍSICA NO PENSAMENTO MODERNO: O “re-propor” da questão sobre o ser no pensamento de Martin Heidegger Werbson Beltrame Pereira*
Resumo O pensamento moderno é caracterizado por muitos como o período da morte da metafísica. A modernidade inaugura um novo horizonte filosófico, o da subjetividade. O ego cogito1 se converte em princípio incondicional, sobre o qual o edifício filosófico se constrói. Em outras palavras: o mundo moderno se assenta numa cosmovisão antropocêntrica tão radicada no racionalismo e no empirismo que não há espaço reflexivo para a metafísica, dificultando o acesso à dimensão ontológica do pensamento. Diante do cenário moderno repousa sobre Martin Heidegger o mérito de ter reproposto a problemática central do pensamento: a interrogação sobre o ser. A pergunta sobre o ser é a pergunta metafísica por excelência. É objetivo central deste artigo esclarecer, a partir das obras Que é metafísica? E Introdução à metafísica, o que Heidegger reflete sobre o lugar da metafísica no pensamento moderno. Palavras-chave: Modernidade. Ciência. Subjetividade. Ontologia. Metafísica.
Introdução Muitos dizem que Heidegger é um pensador intransponível, sendo difícil de entender seu pensamento, suas teorias e principalmente * Graduado em filosofia pela Faculdade Salesiana de Vitória. Aluno do Curso de Teologia do Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória (Espírito Santo) e aluno do Instituto São Tomás de Aquino (Belo Horizonte). E-mail: werbsonbeltrame@gmail.com 1 O ego cogito é a categoria epistemológica a partir da qual a ontologia é explicitada com a racionalidade e com os ditames do sistema totalitário.
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sua metafísica. De certo modo, em todos os filósofos há elementos de difícil compreensão, pois o próprio pensamento e a arte de pensar exigem rigorosidade própria, e não seria diferente com este pensador. É possível que tal dificuldade esteja relacionada não ao pensamento heideggeriano, mas à própria dimensão do ato de pensar. Em se tratando de filosofia, não há possibilidade de introdução: Um abismo separa o espaço ordinário da existência, em que se move tanto o modo de ser habitual, familiar e imediato da vida cotidiana, como o modo de ser objetivo, técnico e exato da vida científica, do espaço extraordinário, em que se agita a investigação filosófica. E nenhuma ponte o poderá transpor. Não, certamente, por estar o espaço da filosofia demasiado distante e sim demasiado próximo de todos os modos de ser da existência histórica (HEIDEGGER, 1987, p. 9).
Uma vez que o leitor consegue descobrir o eixo norteador que perpassa o pensamento heideggeriano, torna-se suavemente manifestado e compreensivo que este pensador esteja querendo revelar nada mais do que o mundo em que o próprio ser humano está habituado a viver. Em outras palavras, Heidegger quer iluminar diante do olhar humano o seu próprio horizonte vivencial, fazendo-o reconhecer-se neste mundo que foi encoberto e, consequentemente, esquecido. Esquecimento, como experimentado pelos gregos, não é nenhum estado subjetivo, nem se relaciona somente com o passado e com a “recordação” deste, nem e simplesmente uma questão do pensar no sentido da “representação”. O encobrimento coloca toda a essência do homem no encoberto e o arranca, assim, neste caminho do descobrimento. Deste descoberto o homem se acha “fora” (weg). Ele não está mais com ele. Negligencia e abandona o que é consignado a ele (HEIDEGGER, 2008, p. 123).
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Com base nessa elucidação, Heidegger analisa e apresenta cuidadosamente as estruturas basilares da modernidade, indo além de uma simples análise. Além de analisar e registrar, ele amplia este registro com lentes muito prestigiosas. Este pensador afirma que nossa existência “[...] é determinada pela ciência. O que acontece de essencial nas raízes da nossa existência na medida em que a ciência se tornou nossa paixão? Os domínios da ciência distam muito entre si” (HEIDEGGER, 2005, p. 51). Heidegger busca demonstrar holisticamente em sua filosofia que o ser humano vive em um mundo onde o imperativo é a ciência e quem publica solenemente a ciência é a técnica. Esta vai à frente daquela e é ela que realiza este mundo através da tecnologia. A expressão de Heidegger busca elucidar, diante do reduzido campo visual da reflexão científica, que sua postura de não querer saber nada sobre o nada é exatamente o movimento contrário que se manifesta com toda robustez, pois “[...] não é menos certo também que, justamente, ali, onde ela procura expressar sua própria essência, ela recorre ao nada. Aquilo que ela rejeita, ela leva em consideração. Que essência ambivalente se revela ali?” (HEIDEGGER, 2005, p. 53).
1 As limitações e obscuridades das ciências empíricas É exatamente neste sentido que, no pensamento heideggeriano, as ciências empíricas não passam de meros resultados adquiridos, sistemática e coletivamente de experiências humanas. É precisamente reflexiva a projeção de tal afirmação apresentada por Heidegger. Devidamente, uma vez afirmado e ficando provado que as ciências empíricas assim procedem, chegar-se-á a uma simples percepção fenomenológica: elas não têm propriamente respostas às perguntas de pleno e fundamental interesse do ser humano e de sua dimensão existencial. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 71-85, jul./dez. 2010
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Diante de tal postura assumida pela ciência moderna, um limite inevitável se anuncia: a dissimulação como acontecimento fundamental caiu em esquecimento. A ciência, nos estreitos limites de seus projetos, obscureceu ainda mais a questão fundamental de todo pensamento. Em outra direção, a da proposta da ciência moderna, afirma Heidegger: [...] o mistério esquecido do ser-aí é eliminado pelo esquecimento. Este, pelo contrário, dá ao aparente desaparecimento uma presença própria. Enquanto o mistério se subtrai retraindo-se no esquecimento e para o esquecimento, leva o homem historial a permanecer na vida corrente e distraído com suas criações. Assim abandonada, a humanidade completa “seu mundo” a partir de suas necessidades e de suas intenções mais recentes e o enche de seus projetos e cálculos. Deles o homem retira então suas medidas, esquecido do ente em sua totalidade (HEIDEGGER, 2005, p. 166).
A grande questão, a saber, não diz respeito às respostas apresentadas pela ciência moderna; de outro vértice, a grande questão está na não elaboração apropriada sobre a questão basilar de qualquer reflexão; afinal, “a elaboração da questão do nada deve colocar-nos na situação na qual se torne possível a resposta ou em que então se patenteie sua impossibilidade. O nada é admitido. A ciência, na sua sobranceira indiferença com relação a ele, rejeita-o como aquilo que ‘não existe’” (HEIDEGGER, 2005, p. 53). É evidente que o pensamento de Heidegger reconhece, antes de tudo, os méritos de tais ciências. O que o pensamento heideggeriano quer mostrar é o verdadeiro lugar da ciência e da técnica na construção da história humana. Ilustradamente, A questão da técnica, Heidegger desvenda a essência da técnica, como característica fundamental da modernidade, à luz de suas intuições mais 74
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caras a respeito da historicidade do ser e de sua verdade. Na verdade toda a sua obra pode ser entendida como uma meditação sobre o ser humano e o seu pensar na sua relação constitutiva com o ser (DOWELL, 2009, p. 427).
Enganado por palavras em demasia, o homem de hoje, vai dizer Heidegger, sente a exigência de acreditar e reclinar sua segurança somente no que se apresenta como garantido e mensurável na vida, “parece, sem dúvida, que, em nossa rotina cotidiana, estamos presos sempre apenas a este ou àquele ente, como se estivéssemos perdidos neste ou naquele domínio do ente” (HEIDEGGER, 2005, p. 55). Acostumado pelas ciências naturais a permanecerem constantemente na dimensão da experiência, desconfia instintivamente das manifestações destituídas de base fática. O homem, encontrando-se nesta dimensão, sente-se profundamente angustiado, sem saber, ao menos, o motivo de sua ansiedade, aflição e sofrimento. Esta é a circunstância: o homem moderno olha-se no espelho tentando se admirar; entretanto, surge o assombro de não reconhecer seu próprio rosto no espelho por ele criado. Para Heidegger, o angustiado não somente ignora a razão de seu estado de consciência como também tem certeza de que coisa alguma no mundo está implicada nesse estado. Isso se comprovaria pelo fato de que, na angústia, todas as coisas do mundo aparecem bruscamente como desprovidas de qualquer importância, tornam-se desprezíveis e dissolvem-se em nulidade absoluta. O próprio angustiado desapareceria de cena, na medida em que seu eu habitual, composto pelas preocupações, desejos e ambições cotidianas e vulgares, passa a ser considerado como insignificante. A própria dissolução do eu nas coisas do mundo e nas trivialidades impede-o de localizar a causa de sua angústia. O que ameaça o angustiado – diz Heidegger – está em tudo e em lugar algum, ao mesmo tempo (HEIDEGGER, 2005, p. 8).
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É esta a condição do homem no mundo da técnica e da ciência moderna. Se este mundo é o da técnica e da ciência, o pensamento heideggeriano se sente implicado em lançar a questão: então não existe mais o mundo da filosofia? O próprio filósofo vai responder: este é o mundo da filosofia sim, como sempre foi, entretanto, de uma filosofia específica. Independente do esquecimento e encobrimento da questão fundamental, este é o mundo da metafísica. Heidegger, em seus estudos, afirma que a metafísica do tempo hodierno tem como fundamento o próprio pensamento humano como base, ou seja, este mesmo fundamento estrutura a ciência e, em certo limite, a técnica e lhes serve de apoio. Os tempos modernos se caracterizam por uma profunda e generalizada crise do pensamento metafísico. As correntes filosóficas que dominam os séculos XVII e XVIII, o racionalismo e o empirismo, não são hostis à especulação metafísica, mas dificultam o acesso à dimensão ontológica do pensamento. A metafísica neste contexto é desdobrada como teoria do conhecimento. A ontologia não articula mais o seu discurso centralizado na problemática do ser, mas na ideia do ser (SILVA, 1994, p. 115).
Consequentemente a essa análise, Heidegger dá um sentido especial a esta metafísica, chamando-a de metafísica da subjetividade.
2 O reclinar sobre o sujeito: a metafísica da subjetividade A metafísica da subjetividade, como toda a metafísica, busca um ponto do qual todo o pensamento possa decorrer. Mas, afinal, neste refletir apresentado por Heidegger, qual é o ponto absoluto desta metafísica moderna, a metafísica da subjetividade? O próprio termo “subjetividade” diz muito, pois o que Heidegger quer mostrar em seu 76
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pensamento é que esta metafísica encontra seu ponto de apoio na própria subjetividade, no sujeito e em seu relacionamento com aquilo que se passou a chamar objeto. Quando o pensamento moderno se pronuncia a respeito do sujeito, estes dois elementos (sujeito e objeto) são apresentados e pensados conjuntamente nas metodologias, nos relacionamentos desse sujeito, em matrizes relacionais entre o sujeito e o objeto, em que o sujeito é aquele que conhece, aquele que manipula o objeto, e o objeto é aquilo que é conhecido e manipulado, tanto do ponto de vista do conhecimento, quanto do ponto de vista da prática. É exatamente a metafísica moderna, a metafísica da subjetividade, que instaura esta relação sujeito–objeto. Aprofundando um pouco mais, para Heidegger, a metafísica da subjetividade não é só aquilo que encerra o tempo presente; há também a junção desta metafísica com o humanismo, de modo que o sujeito de toda estrutura é o homem. Tudo aquilo que é posto para o sujeito, que é o objeto, que é o manipulável, o conhecido, diante do relacionamento sujeito–objeto, implica uma manipulação das coisas pelo sujeito e esse sujeito é o homem. Em outras palavras, a humanidade está vivendo em uma época em que tudo é manipulável para o homem e pelo homem. Este não percebe que “à luz da transcendência exercida no comportamento concreto destacam-se as possibilidades e os limites da pesquisa científica, do cálculo e da técnica, e prepara-se um novo pensamento” (HEIDEGGER, 2005, p. 43). Com a afirmativa de que “tudo é feito para o homem e pelo homem, onde ele manipula tudo”, Heidegger quer anunciar que o homem também está no meio deste tudo e, sendo assim, também é objeto. Coerentemente, o homem se torna mais um dos elementos manipuláveis por ele mesmo. Será exatamente neste momento que o pensamento heideggeriano reclina profundamente sobre o que vem a ser o sujeito e sua ação. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 71-85, jul./dez. 2010
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Desta vez que a verdade do Ser nunca é direta apenas obliquamente acessível à reflexão, enquanto, isto é, retraindo-se em si mesma, ilumina o ente em determinada figura de referência e diferença como o seu ser, a história da existência se tem processado no espaço metafísico, instaurado por esse esquecimento (HEIDEGGER, 1987, p. 17).
No limite, o que tal análise quer anunciar senão esse mundo onde a base do pensamento está mostrando que o ritmo da humanidade atual é o ritmo da manipulação? Tudo tem que ser coisa, tudo tem que ser palpável e mensurável. Tudo tem que ser transportável, tudo tem que ser transformável. Em outras palavras, tudo tem que ser objeto para os olhos e para as mãos. Desperta interesse e encantamento ao homem moderno tudo aquilo que pode ser manuseado e vislumbrado diante de seus olhos. Tudo aquilo que está para além do mensurável não é mais motivo de encantamento e interesse. Há na modernidade uma banalização do mundo, em que tudo é visto como objeto. Tudo se coisifica. Eis o ponto em que o pensamento de Heidegger se alimenta do pensamento de Karl Marx, que anunciou a coisificação e a reificação do mundo. Afinal, diante desta edificação e projeção de tal forma de pensar a metafísica, o que tudo isso significa para este tempo? Para Heidegger, esta é a possibilidade de o homem poder usar as técnicas de forma madura e sadia, pois elas surgiram com esse intuito, e mais, elas são os elementos centrais que facultam ao homem realizar-se através de seu próprio trabalho. Somadamente, isso é, ao mesmo tempo, a possibilidade de o ser humano interpretar as guerras e a violência como algo normal, como uma extensão da manipulação. Diante destas constatações, Heidegger chega ao lobrigar da seguinte afirmação: “Atingimos agora um ponto de nossa caminhada, em que se impõe a questão, ainda que aproximativa, mas inevitável” (HEIDEGGER, 2006, p. 50). 78
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3 O repropor da questão fundamental: a pergunta sobre o ser É chegado o momento na reflexão em que o humanismo mostra sua face que muitos não querem enxergar. Heidegger insiste na hipótese de que na base das ferocidades realizadas em tempos atuais (exemplo: a guerra e outros atos de violência) está a metafísica moderna, a metafísica da subjetividade, que tem suas raízes em Descartes e que sustenta a técnica e o manipulável. A ideia de que as atrocidades da modernidade são naturais e de que elas fazem parte de tal época não são mais aceitáveis a partir do pensamento heideggeriano. É exatamente esta nova visão – de não mais aceitar tais fatos como naturais – que muitos identificam como o grande legado deste pensador à modernidade. Diante de tal constatação heideggeriana, a guerra é apenas mais um processo de manipulação, em que o seu agente é o próprio ser humano. Em outras palavras, ela é mais um fruto, dentre outros vários, da técnica e da tecnologia. Que saída apresenta Martin Heidegger para tal cenário? Este filósofo vislumbra como proposta – que, em certa medida, é uma saída – a dimensão estética do ser humano, lugar onde o próprio homem tem a possibilidade de reencontrar suas raízes. É como se este filósofo estivesse falando diretamente com a humanidade, lançando como proposta parar de usar as mãos de forma desenfreada, deslocando os estruturantes da relação sujeito–objeto. Então, qual é, afinal, a proposta de Heidegger? Usar mais os ouvidos para escutar o que a linguagem diz, excluindo as polaridades e dicotomias, pois “o pensamento do ser não procura apoio no ente. O pensamento essencial presta atenção aos lentos sinais do que não pode ser calculado e nele reconhece o advento do inelutável, que não pode ser antecipado” (HEIDEGGER, 2005, p. 72). Este pensador vai chamar esta postura de escuta de “pensamento dócil à voz do ser”: o que se procura é encontrar a palavra através da qual a verdade do ser chegue à linguagem. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 71-85, jul./dez. 2010
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É possível compreender, neste momento, a afirmativa de Heidegger, em seus estudos sobre a origem da obra de arte: [...] a arte assinala um advento ou um ressalto da história, cada vez que um novo começo se produz, isto é, em cada época, em cada momento de retração desvelante do ser – entre os gregos, na Idade Média e na Idade Moderna. Cada vez abriu-se um mundo novo com a sua própria essência, cada vez a abertura do ente demandou a sua instauração pela constituição da verdade na forma (Gestalt), no próprio ente. Essa instauração daria a medida, preliminarmente poética, da história, em virtude da precedência da linguagem como poesia originária (NUNES, 1992, p. 259).
Em última análise, para Heidegger, a essência da arte depende da essencialização do ser, e essa essencialização constitui o historial. Neste momento Heidegger utiliza a fenomenologia, entendida não mais no sentido apresentado por Husserl,2 e sim no de uma fenomenologia do escutar sem os pré-conceitos modernos. Perfilhadamente, tal postura não se direcionará para aquilo que foi apresentado, mas para aquilo que de fato é, pois “o homem é aquilo enquanto aberto e manifesto, se abre e manifesta seu ser para si mesmo” (HEIDDEGER, 2007, p. 185). Neste movimento o homem escutará aquilo que emerge dos fenômenos visando alcançar a imediação da iluminação do ser. Talvez a cerimônia comemorativa de hoje constitua um impulso nesse sentido [...]. Quando a serenidade para com as coisas e a abertura ao mistério despertarem em nós, deveríamos alcançar um caminho que conduza a um novo solo. Neste solo a criação de obras imortais poderia lançar novas raízes (HEIDEGGER, [19 - -], p. 27).
2 Para Heidegger, reiterar a questão do ser significa elaborar de maneira suficiente a própria pergunta. “Foi nesta perspectiva hermenêutica, com o tempo por horizonte delimitativo, que Heidegger enquadrou essa elaboração em Ser e tempo, depois de apropriar-se do método de Husserl” (NUNES, 1992, p. 45).
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A proposta de Heidegger para a metafísica passa pela reeducação humana do escutar. Ou seja, é o manifestar da própria linguagem sem nenhum véu, deixando o fenômeno brotar, ocorrendo a fenomenologia. No amadurecimento da reflexão, a fenomenologia é precisamente a arte de desvelar aquilo que, no comportamento cotidiano, o homem oculta de si mesmo: o exercício da transcendência. Em outras palavras, o repropor da questão fundamental: – a questão sobre o ser, levando a radicalidade da reflexão – é precisamente a revelação da condição transcendental do homem. Para Heidegger, a problemática metafísica deve ser colocada a partir do próprio homem, ainda que nele não se deva parar. Será convergindo para tal amadurecimento que o ser humano contemplará neste momento as experiências originárias.3 O ser humano agora caminhará à busca daquilo que é: À luz da pergunta a respeito do ser a metafísica histórica se revela como esquecimento do ser. Isto significa que a metafísica se preocupou em indagar o ente e não o ser e instituiu uma doutrina ôntica (do ente), não ontológica (do ser do ente). As consequências deste esquecimento são: a) subjetivismo ou metafísica da subjetividade, ou seja, uma consideração conceitual, essencialista do ente reduzido à sua essência e, portanto, à sua conceituação por obra do sujeito que conhece. b) niilismo: pensar o ente sem pensar o ser é pensar nada do ser, pensar o ente como nada. A metafísica ocidental, sendo uma doutrina do ente sem o pensamento do ser, é no seu conjunto niilismo. A superação do niilismo acontece na recolocação da pergunta sobre o ser. De onde provém e para onde se dirige esta pergunta? Quem faz a pergunta é o homem, ou seja, aquele
3 O que se chama neste momento de “experiências originárias” está diretamente ligado àquilo que Schopenhauer denominava em seu pensamento de “a necessidade metafísica do homem”. Necessidade singularmente humana. Em outras palavras, as experiências originárias são necessidade de infinito, de absoluto. Necessidade sempre pulsante, pelo próprio fato de que o homem está envolto num mundo de inquietações e de insatisfações.
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ente particular ou ente-sen-do, que é caracterizado não só pelo fato de propor a pergunta quanto ao ser, mas também pelo fato de que, propondo a pergunta sobre o ser, põe a si mesmo em questão e torna-se problemático no ato de problematizar o ser (MOLINARO, 2002, p. 53).
Exatamente nesta abertura do homem como Da-Sein4 que Heidegger desloca-se neste momento de uma metafísica para fazer uma ontologia, ficando de lado o humanismo. Para muitos críticos de Heidegger, tal movimento em seu pensamento se apresenta como escândalo, uma vez que, para aqueles, tal mudança é sair do pensamento crítico. Para Heidegger, este é o grande caminho que escapa do pensamento que vai de Platão a Descartes e que sustenta, de certo modo, toda a apologia moderna da técnica e da tecnologia.
Conclusão Por mais que se decrete a morte da metafísica, como tentou fazer a modernidade, a metafísica não morreu e não pode morrer. Tais tentativas não foram suficientes para obscurecer a manifestação presencial daquilo que está entrelaçado à história humana: a metafísica. Perguntar-se sobre o lugar da metafísica na modernidade é na verdade problematizar a própria metafísica. Em outro esclarecimento, situar-se fora dela. O que Heidegger quer afirmar é que, para compreender o que é a metafísica e o seu lugar, é preciso voltar-se aos seus fundamentos. 4 O ser-aí, ou o Dasein, diz respeito à junção das palavras Da-Sein, em que Da (aí) designa o seu ser no mundo, no espaço e no tempo, e Sein (ser) designa a abertura do homem ao ser e a sua transcendência do mundo. Heidegger, em seu livro Ser e tempo, vai dizer: “A presença se determina como ente sempre a partir de uma possibilidade que ela é e, de algum modo, isso também significa que ela se compreende em seu ser. Este é o sentido formal da constituição existencial da presença” (HEIDEGGER, 2008, p. 87). Em poucas palavras: o homem é transcendência para o ser e nisto consiste sua essência.
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Em toda a parte, se iluminou o ser quando a metafísica representa o ente. O ser se manifestou num desvelamento (alétheia). Permanece velado o fato e o modo como o ser traz consigo tal desvelamento, o fato e o modo como o ser mesmo se situa na metafísica e assinala enquanto tal. O ser não é pensado em sua essência desveladora, isto é, em sua verdade. Entretanto, a metafísica fala da inadvertida revelação do ser quando responde a suas perguntas pelo ente enquanto tal. A verdade do ser pode chamar-se, por isso, o chão no qual a metafísica, como raiz da árvore da filosofia, se apoia e do qual retira seu alimento (HEIDEGGER, 2005, p. 77).
Heidegger recoloca a questão principal do pensamento filosófico com um objetivo fundamental: dizer que a metafísica não é uma invenção arbitrária de uma época particular (como observou Kant), mas uma exigência fundamental da razão humana. É a metafísica que faz “des-cobrir” que o horizonte da realidade, da existência, da busca de ser, é muito mais vasto, plenamente ilimitado, em comparação com tudo o que já foi projetado e sistematizado. Mais do que nunca, em tempos modernos a metafísica se faz necessária.
Referências DOWELL, João A. Mac. Semelhança estrutural entre as compreensões heideggeriana e bíblica do homem: uma consideração a partir da questão da técnica. Síntese Revista de Filosofia, Belo Horizonte, v. 36, n. 116, p. 427-443, 2009. HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica. Tradução de Emanuel Carneiro Leão. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 71-85, jul./dez. 2010
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Werbson Beltrame Pereira
HEIDEGGER, Martin. Que é isto, a filosofia?: identidade e diferença. Tradução de Ernildo Stein. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Livraria Duas Cidades, 2006. ______. Que é metafísica. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Nova Cultural, 2005 (Os pensadores). ______. Parmênides. Tradução de Sérgio Mário Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 2008. ______. Ser e tempo. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. 3. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 2008. (Pensamento Humano). ______. Ser e verdade: 1. a questão fundamental da filosofia. 2. Da essência da verdade. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 2007. ______. Serenidade. Tradução de Maria Madalena Andrade e Olga Santos. Lisboa: Instituto Piaget, [19 - -] (Coleção Pensamento e Filosofia). ______. Sobre a essência da verdade. In: HEIDEGGER. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Nova Cultural, 2005 (Os pensadores). ______. Vida e obra. In: HEIDEGGER. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Nova Cultural, 2005 (Os pensadores). MOLINARO, Aniceto. Metafísica: curso sistemático. Trad. João Paixão Netto, Roque Frangiotti. São Paulo: Paulus, 2002. NUNES, Benedito. Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger. 2. ed. São Paulo: Ática S.A., 1992. SILVA, Márcio Bolda da. Metafísica e assombro: curso de ontologia. São Paulo: Paulus, 1994.
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THE PLACE OF METAPHYSICS IN THE MODERN THOUGHT: THE RE-PROPOSE OF THE MATTER ABOUT THE BEING IN MARTIN HEIDEGGER’S THOUGHT Abstract The modern thought is characterized by many as the period of the death of the metaphysics. The modernity opens a new philosophical horizon, the one of the subjectivity. The ego cogito converts itself in unconditional principle, on which the philosophical building constructs itself. In other words: the modern world is agreeded in an anthropocentric cosmovision so rooted in the rationalism and empiricism that there is no reflexive space for the metaphysics, making difficult the access to the onthological dimension of the thought. Before the modern scenery reposes the merit of Martin Heidegger the elucidation of having re-proposed the central problematic of the thought: the interrogation about the being. The question about the being is the metaphysical question par excellence. It is the central objective of this article, to clear up from the works “What is metaphysics?” and “Introduction to metaphysics” what Heidegger reflects about the place of metaphysics in the modern thought. Key words: Modernity. Science. Subjectivity. Onthology. Metaphysics.
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O CONCEITO DE FRONTEIRA NA ÓTICA DOS ESTUDOS CULTURAIS Wuldson Marcelo Leite Souza* José Carlos Leite**
Resumo O presente artigo propõe uma breve investigação sobre a suposição de crise em torno da ideia de fronteira, principalmente no que tange aos estudos sobre cultura. Os termos “hibridação”, “mestiçagem” e outros da mesma cepa provocam a imagem de um mundo “mutante” que se renova, mas é preciso inquirir se esses fluxos encontram resistência ou aceitação no mundo globalizado e analisar sua relação com o capital financeiro e com os movimentos nacionalistas locais assim como sua defesa da tradição e, muitas vezes, a apelação à criminalização da diáspora traduzida pela migração. O mercado – na forma de comércio internacional – percebe nesse possível esfacelamento das fronteiras um modo de aumentar sua clientela, assim acirrando a competição injusta entre a produção local e a das multinacionais. Autores como Zygmunt Bauman, Néstor García Canclini, Stuart Hall, Terry Eagleton, entre outros, são relevantes para compreender essas inter-relações e os conflitos gerados pela percepção de fronteiras cada vez mais porosas, sejam elas culturais, científicas, geográficas ou epistemológicas. Palavras-chave: Fronteira. Hibridação. Fluxo. Cultura.
A repercussão da ideia de que as fronteiras – culturais, econômicas, epistemológicas, geográficas – passam por um processo de dissolução gradativo e intermitente causa pânico a alguns, resignação a outros, * Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e mestrando em Estudos de Cultura Contemporânea (ECCO/UFMT) sob orientação do Dr. José Carlos Leite. ** Professor do Depto. de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea – ECCO/UFMT.
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a uns tantos motivos para celebração e a uma parte serve de foco de observação e análise. Ao último grupo pertencem antropólogos, filósofos, sociólogos e teóricos da cultura que nos visualizam os mais diferentes fenômenos culturais – economia global, nas relações étnicas, nos cruzamentos sociais –, um mundo que se desenvolve sob a égide das transformações, das imbricações, da mobilidade. Segundo Ulf Hannerz, há três palavras-chaves na Antropologia Transnacional: fluxo, fronteira e híbrido. A defesa da interconexão, da interdependência e, ainda, da interdisciplinaridade alcança destaque nas ciências humanas. Hannerz (1997) diz: Nos últimos tempos, em vez de buscarmos a confortadora intimidade da vida provinciana, temos debatido a distância cultural que separa navio e terra firme, e as maneiras de atravessá-la. Fluxo, mobilidade, recombinação e emergência tornaram-se temas favoritos à medida que a globalização e a transnacionalidade passaram a fornecer os contextos para nossa reflexão sobre a cultura. Hoje procuramos locais para testar nossas teorias onde pelo menos alguns dos seus habitantes são crioulos, cosmopolitas ou cyborgs, onde as comunidades são diásporas e as fronteiras na realidade não imobilizam mas, curiosamente, são atravessadas.
Acompanhar os movimentos de um mundo globalizado exige a compreensão do que significa a diversidade cultural e dos elementos que influenciam os estudos culturais na perspectiva de um contexto que modifica a noção de espaço e a de tempo. O espaço se compacta mediante fronteiras porosas, e o tempo se reduz à velocidade das transmissões no ciberespaço. O atravessamento comporta e transporta metamorfoses, choques, passagens. Falar em pureza no que concerne à cultura parece absurdo numa época em que a emergência de cenários, que colocam em evidência as hibridizações culturais, étnicas e sociais, revoluciona o cotidiano. Terry Eagleton, em seu livro Depois da teoria, afirma a necessidade de a teoria cultural gerar novas ferramentas, que REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 86-94, jul./dez. 2010
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cumpram o desafio de interpretar/dar a conhecer a abrangência dessas transfigurações que remodelam as relações socioculturais. Para Eagleton (2005, p. 297), a teoria cultural: Não pode se dar o luxo de continuar recontando as mesmas narrativas de classe, raça e gênero, por mais indispensáveis que sejam esses temas. Precisa testar sua força, romper com uma ortodoxia bastante opressiva e explorar novos tópicos, inclusive aqueles perante os quais tem mostrado até agora, e sem razão aparente, uma timidez excessiva.
Esse misto de convocação e exortação que compõe os últimos trechos da obra de Eagleton pode ser estendido para possíveis avaliações da situação atual do conceito de fronteira. Rupturas, deslocamentos, atravessamentos são movimentos que impelem as fronteiras em suas mais complexas dimensões a se impingirem adaptações, revoluções ou resistência. As linhas divisórias tornaram-se “fantasmas”, ou são espectros que acatam o múltiplo e se abrem à inter-relação, passam à investigação (metódica ou não) mediante a tradução possível na interdisciplinaridade, ou são “monstros gigantescos” a vigiarem fronteiras geográficas amparadas e justificadas num discurso político retórico-tradicionalista que inflama disputas de ordem étnica, política, religiosa. Ainda no que tange aos estudos culturais, Stuart Hall (2003) explica que toda alteração em algumas problemáticas modifica a natureza das indagações formuladas pela crítica, assim como as perspectivas adotadas para a tarefa e as respostas aos desafios propostos. Desse modo, a estagnação não pode ser um imperativo. A fronteira, seja de qual natureza for, se retrai ou se expande. Não há paralisações (ou se tal estado estacionário parece se impor, a retórica política é a principal razão que o leva a preponderar). Nas relações permeadas pelas trocas culturais, possíveis por causa da ultrapassagem pelas fronteiras, o trânsito constante refuta a ideia de imutabilidade. Os limites deixam de ser evidentes, cristalizados. Há uma irrupção de encontros. A diferença cultural é observada como 88
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fundamental para entender o comportamento humano talhado em uma sociedade, sua diáspora e sua mutação. Nesse fluxo toda transmigração realça um novo conhecimento para apurar tais diferenças e promove dificuldades para a sustentação dos discursos identitários. O antropólogo indiano Homi Bhabha observa a intrínseca inquietação relacionada à efetivação de práticas que correspondam à integração das diferenças culturais num ambiente social. “O problema da articulação da diferença cultural não é o problema do pluralismo pragmatista sem amarras ou a ‘diversidade’ dos muitos; é o problema do não-um, o sinal de subtração na origem e repetição dos signos culturais em uma duplicação que não será negada como similitude” (BHABHA, 1998, p. 338). Nem sempre o mesmo ou nunca o mesmo, inevitavelmente? Com os limites sendo corroídos pela globalização (em instâncias que não atravessam o espaço terrestre na mesma aceleração) econômica, política, cultural e os nacionalismos reativados em prol de uma resistência que repele a capitulação de antigos modos de vida, conceitos (como os de mestiçagem, hibridação etc.) surgem de uma zona fronteiriça na tentativa de atingir o centro de um debate sobre equilíbrio de forças entre países periféricos e países hegemônicos. Há o reconhecimento da diversidade, seja ela cultural ou étnica, mas a divisão do poder permanece presa aos números produzidos pelo capital financeiro e ao lucro obtido pela ambição. Segundo Néstor G. Canclini, a relação entre as noções de cultura e o capitalismo foi sempre contígua, os bens simbólicos considerados mercadorias, “suas expressões mais valorizadas tiveram sentido suntuário e os comportamentos culturais operaram como procedimentos para diferenciar e distinguir, incluir e excluir” (CANCLINI, 2005, p. 51). O filtro do capitalismo mostrou, até há algumas décadas, ser eficiente na separação do que é rentável sem ser perigoso, sem se tornar um problema no seu forjado controle das manifestações culturais em torno do mundo. Como escreve Gilberto Dupas (2006, p. 169), “o capitalismo aproveita até os espasmos de rebelião para sua acumulação”. Canclini discute que “[…] no projeto REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 86-94, jul./dez. 2010
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da primeira modernidade, sobretudo a partir da inflexão que o saber antropológico lhe imprimiu, e com a valorização da arte e da cultura na formação das nações, atribuiu-se valor cultural à produção simbólica de todas as sociedades” (CANCLINI, 2005, p. 52). Mas alerta o pensador argentino que esse projeto da modernidade ilustrada, que pretendeu elevar o status da educação, dos meios de comunicação, fracassou por não ter sido capaz de dirimir as diferenças de classe, de garantir o acesso à escola, aos museus, aos teatros e de registrar o domínio de uma elite sobre as ferramentas educacionais. “Se aqui evoco o projeto inclusivo da modernidade inicial, não é porque esqueça as parcialidades, mas sim para contrastá-la com a etapa em que esta utopia se evapora” (CANCLINI, 2005, p. 52). Nesse cenário a assistência às camadas populares sempre se mostrou deficitária. O contexto atual parece propício às reivindicações de visibilidade dos excluídos, dos que estão relegados a segundo plano na ordem social à maneira ocidental. Os híbridos, que anteriormente viviam na “penumbra”, se destacam como vozes atuantes. Porém, essa dinâmica permanece presa à dimensão econômica e não a uma política de igualdade. Zygmunt Bauman diz que “não há mais ‘fronteiras naturais’, nem lugares óbvios a ocupar. Onde quer que estejamos […] não podemos evitar de saber que poderíamos estar em outra parte […] há cada vez menos razão para ficar em algum lugar específico” (BAUMAN, 1999, p. 85). As fronteiras geográficas tornam-se estreitas, o deslocamento aparece como algo viável. Movimentar consagra-se como fortificação de certo status social. No mundo híbrido, chegar ao exterior com segurança é possível para quem é “turista”, como classifica Bauman, àqueles que possuem o poder aquisitivo para viajar e transpor a fronteira; para estes, o espaço se expande e o tempo se torna escasso para aproveitar tantas ofertas de trânsito promovidas pela globalização. Para quem busca romper as demarcações de fronteiras procurando uma vida menos “agreste”, o que se fortifica são as fronteiras. Vide os Estados Unidos e o México neste incipiente século XXI. Esse tratamento é dispensado 90
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aos que são chamados de “vagabundos”, assim conhecidos por representar, para os “turistas”, sintomas de preguiça e perigo; com relação aos “vagabundos”, o espaço os confina e o tempo os esmaga. Bauman alerta que nem sempre a transição (movimento) e as misturas (cultura) favoreceram a compreensão sobre os híbridos, sobre as manifestações produzidas às “margens” da hegemonia. A hibridação cultural dos habitantes globais pode ser uma experiência criativa e emancipadora, mas a perda de poder cultural dos habitantes locais raramente o é; trata-se de uma tendência compreensível mas infeliz dos primeiros confundirem as duas coisas e assim apresentarem sua própria versão de “má consciência” como prova de deficiência mental dos segundos. (BAUMAN, 1999, p. 108).
A consideração do que resultará da porosidade das fronteiras preocupa Ulf Hannerz; a atuação em zonas intersticiais pode significar a tendência de reduzir as dificuldades de relação entre os forasteiros e os locais, mas também um processo de “desculturação” que pode gerar tanto liberdade de movimento quanto o risco de desumanidade. Hannerz (1997), sobre o conceito de fronteira, traça possibilidades de ação que endossem fluxos de experimentações, permutas e originalidade: “A liberdade da zona fronteiriça é explorada com mais criatividade por deslocamentos situacionais e combinações inovadoras, organizando seus recursos de novas maneiras, fazendo experiências. Nas zonas fronteiriças, há espaço para a ação [agency] no manejo da cultura”. As fronteiras consolidadas em antanho como limites dos Estadosnação, atualmente, parecem frágeis barreiras que de maneira recalcitrante se interpõem à emergências dos híbridos, das diferenças, das novidades que aguardam traduções em regiões limítrofes ou mesmo áreas urbanas, pois “[...] a expansão urbana é uma das causas que intensificam a hibridação cultural” (CANCLINI, 2003, p. 285). A ação de traduzir surge como pré-disposição de uma comunicação necessária diante de REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 86-94, jul./dez. 2010
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fronteiras cujos sentidos nos aparecem dispersos e descoordenados. Bauman revela-nos que “a tradução está presente em cada encontro comunicativo, em cada diálogo. E deve ser assim porque a polifonia não pode ser eliminada do modo como existimos [...]” (BAUMAN, 2000, p. 203). Entender as mudanças no que se refere às fronteiras – culturais, epistemológicas, geográficas etc. – dá a oportunidade de perceber o quanto a contemporaneidade já abrangeu dos apelos ao respeito das diferenças culturais, da fomentação dos estudos interdisciplinares, das tentativas de demonstração do quanto a “diversidade é benéfica, ao passo que a uniformidade reduz as nossas energias e os nossos recursos (intelectuais, emocionais, materiais)” (FEYERABEND, 1991, p. 9). O esfacelamento das fronteiras leva os seres humanos a reinterpretar constantemente o mundo que se apresenta novo, desafiador, híbrido, mestiço; olhar a mestiçagem em volta abandonando a ideia totalitária da pureza étnica; perceber o planeta e lê-lo como a exigência de uma renovação cultural necessária (e enfrentar o desafio de vencer a estrutura da sociedade capitalista – e, em certa medida, qualquer tipo de organização social –, que vê as diferenças pelos aspectos da exploração do trabalho, do monopólio financeiro e da intolerância cultural).
Referências BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. ______. Globalização: as consequências humanas. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. ______. BHABHA, Homi. O local da cultura. Tradução Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 1998. 92
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CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2003. ______. Diferentes, desiguais e desconectados: mapas da interculturalidade. Tradução Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005. DUPAS, Gilberto. O mito do progresso: ou o progresso como ideologia. São Paulo: Editora UNESP, 2006. EAGLETON, Terry. Depois da teoria: um olhar sobre os estudos culturais e o pós-modernismo. Tradução Maria Lúcia Oliveira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. FEYERABEND, Paul. Adeus à razão. Tradução Maria Georgina Segurado. Lisboa: Edições 70, 1991. HAAL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. (Org.). Liv Sovik. Tradução Adelaine La Guardia Resende, Ana Carolina Escosteguy, Cláudia Álvares, Francisco Rüdiger e Sayonara Amaral. Belo Horizonte: UFMG; Brasília: Representação da Unesco no Brasil, 2003. HANNERZ, Ulf. Fluxos, fronteiras, híbridos: palavras-chave da antropologia transnacional. In: Revista Maná, p. 7-39, 1997.
THE CONCEPT OF BOUNDARY FROM THE PERSPECTIVE OF THE CULTURAL STUDIES. Abstract The present article proposes a brief investigation about the supposition of crisis around the idea of boundary, mainly in what concerns the studies about culture. The terms “hybridation”, “miscegenation”, and others of the same vine, provoke the image of a “changing” world that renews itself, but
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it is needed to inquire if these fluxes find resistance or acceptation in the globalized world, and their relation with the financial capital and with the local nationalist movements and their defense of the tradition, and many times, the appeal to the criminalization of the Diaspora translated by migration. The market – in the form of international trade – perceives in this possible damage of the boundaries a way to increase its clientele, thus inciting the unfair competition between the local production and the multinational companies. Authors like Zygmunt Bauman, Néstor García Canclini, Stuart Hall, Terry Eagleton, among others, are relevant to understand these interrelations and the conflicts generated by the perception of boundaries more and more porous, either they are cultural, scientific, geographical or epistemological. Key words: boundary. Hybridation. Flux. Culture.
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DIE KATHOLISCHE KIRCHE IM “DRITTEN REICH” P. Karl Josef Rivinius SVD*
Resumo Apresentam-se alguns aspetos e linhas básicas para expor corretamente o tema complexo e muito divergentemente discutido “A Igreja Católica e o Socialismo Nacional”. O caminho de Hitler para o poder não era uma rua de direção única da história alemã que necessariamente levou à sua nomeação de Chanceler do Reich em 30 de janeiro de 1933 e assim à guerra e ao extermínio. As Igrejas cristãs enfrentaram principalmente três perigos: a perda de identidade, o extermínio ameaçador pela luta anti-eclesial, o afastamento da sociedade e o desvio para o âmbito pessoal sem compromisso com a realidade. Elas reagiram aos ataques do movimento nazista de modo diferente. Determinantes eram concepções teológicas, o conceito de ministério, fatores ideológicos, avaliações bastante erradas por pessoas eclesiásticas proeminentes e pelo catolicismo político como também falta de coragem civil diante da injustiça gritante da ditadura nazista, dos excessos da ideologia racista e da índole criminosa do regime. Somente depois da guerra reconheceram-se publicamente as graves faltas, sobretudo as falhas culposas dos líderes eclesiásticos e dos cristãos no “Terceiro Reich”. Palavras-chave: Catolicismo. Nazismo. Terceiro Reich. Clero e leigos. Igreja e política. culpabilidade eclesiástica.
Einleitende Bemerkungen Angesichts des hochkomplexen Sachverhalts „Die katholische Kirche und der Nationalsozialismus“, der unüberschaubaren Literatur Prof. em., Dr. theol., StR z.A., geb. 1936 in Bous/Saar. Studium der Theologie, Geschichte und Erziehungswissenschaft in St. Gabriel/Mödling bei Wien, St. Augustin und Münster; Habilitation an der Universität in Bonn. Schwerpunkte der Veröffentlichungen: Kirchen-, missions- und sozialgeschichtliche Studien. *
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sowie der weit auseinanderklaffenden Bewertungen darüber ist es schier unmöglich, dieses heftig kontrovers diskutierte Thema in all seinen Facetten umfassend, angemessen und differenziert in der gebotenen Kürze zu präsentieren. Deshalb werden lediglich einige Grundlinien und Aspekte zur allgemeinen Information behandelt. Eine bis in die Gegenwart virulente Erkenntnisfrage lautet: Wie waren Adolf Hitler1 und die nationalsozialistische Machtentfaltung überhaupt möglich? Denn hinter der historischen Erfahrung der Machtergreifung durch eine rechtsradikale Partei und der diktatorischen Machtentfaltung ihres „Führers“ artikuliert sich auch immer die Sorge um die Gefährdung einer freiheitlich-demokratischen Rechtsordnung durch extremistische Propaganda und totalitäre Gewalt.2 Obwohl die Fakten längst bekannt sind, wird es stets schwer sein, die nationalsozialistische Eroberungs- und Vernichtungspolitik begreiflich zu machen,
1 Adolf Hitler war das vierte von sechs Kindern aus der dritten Ehe seines Vaters Alois mit der zweiundzwanzig Jahre jüngeren Klara Pölzl. Er erblickte am 20. April 1889 in Braunau/Inn das Licht der Welt. Von 1892 bis 1894 lebte die Familie in Passau, 1894/95 in Linz, nach der Pensionierung des Vaters bis 1897 bei Lambach/Traun und dann in Leonding bei Linz, wo dieser 1903 starb. Die häufigen Wohnsitzveränderungen nötigten zu mehreren Schulwechseln, und sie hatten unter anderem zur Folge, dass er trotz seiner intellektuellen Begabung nach der ersten Realschulklasse in Linz sitzenblieb und seine Leistungen sich trotz des kontinuierlichen Besuchs der Linzer Schule nicht besserten. Aus ungeklärten Gründen verließ Hitler 1905 die Schule für immer. Er verfolgte nun seinen lang gehegten Wunsch, in Wien akademischer Maler zu werden. Da aber seine eingereichten Probezeichnungen als ungenügend beurteilt wurden, nahm man ihn nicht in die Malschule der Akademie auf. Trotz dieses und anderer Misserfolge blieb Hitler vorerst in Wien. Bei Kriegsausbruch 1914 meldete er sich sofort freiwillig ins bayerische Heer. Zu Hitlers Weg in die Politik und den Anfängen des Nationalsozialismus: Hans-Ulrich Thamer, Verführung und Gewalt: Deutschland 1933–1945 (Die Deutschen und ihre Nation, Bd. 5), Berlin 1986, S. 57-111. 2 Grundsätzlich zu diesem Tatbestand: Peter Steinbach, Die Vergegenwärtigung von Vergangenem. Zum Spannungsverhältnis zwischen individueller Erinnerung und öffentlichem Gedenken, in: Aus Politik und Zeitgeschichte (fortan: APuZ) B 3-4 vom 17. Januar 1997, S. 3-13; Gerd Hankel, Vergangenheit, die nicht ruhen darf, in: APuZ 42 (2006) vom 16. Oktober 2006, S. 3-9.
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Die katholische Kirche im „Dritten Reich“
sie mit unseren sprachlichen Mitteln und dem wissenschaftlichen Instrumentarium zu erklären, ohne sie dabei zu verharmlosen. Denn zu singulär und unvorstellbar sind die Massenverbrechen, die vom diesem Regime begangen worden sind. Hitlers Weg zur Macht war keine Einbahnstraße der deutschen Geschichte, die zwangsläufig zu seiner Ernennung zum Reichskanzler am 30. Januar 1933 und zu den weiteren Etappen auf dem Weg in den Krieg und die Vernichtung führte. Zahlreiche Faktoren, Konstellationen und Motive wirkten als Synergieeffekte zusammen, so innen- und außenpolitische Strukturen, Rahmenbedingungen und Umstände, Personen und ihre Wahrnehmung beziehungsweise ihr Handeln sowie Fehleinschätzungen, Zufälle und Versagen. Dies alles machte Hitler letztlich möglich und führte dazu, dass seine Diktatur gefestigt werden konnte, dass sich ideologische Konzepte und propagandistische Kampagnen sich in politisches Handeln umsetzen ließen, etwa antisemitische Parolen und Einstellung, die es seit längerem und auch anderenorts gegeben hatte3, zur Rechtfertigung und Leitlinie der grausamen Politik des millionenfachen Völkermords – namentlich von sechs Millionen Juden4 – auch der Verbrechen an der eigenen Bevölkerung, wurden. 3 Auswahlweise: Willehad Paul Eckert/Ernst Ludwig Ehrlich, Judenhass – Schuld der Christen?! Versuch eines Gesprächs, Essen 1964; Wolfgang Scheffler, Judenverfolgung im Dritten Reich (Zur Politik und Zeitgeschichte, Heft 4), durchgesehene erw. Aufl. Berlin 1964; Léon Poliakov, Geschichte des Antisemitismus. Bd. 2: Das Zeitalter der Verteufelung und des Ghettos. Mit einem Anhang zur Anthropologie der Juden, Worms 1978; Heiner Lichtenstein/Otto R. Romberg (Hrsg.), Täter–Opfer–Folgen. Der Holocaust in Geschichte und Gegenwart (Schriftenreihe der Bundeszentrale für politische Bildung, Bd. 335), Bonn 1995; Salomon Korn, Holocaust-Gedenken: Ein deutsches Dilemma, in: APuZ, B 3 vom 17. Januar 1997, S. 23-30. Ein konziser Überblick: Wolfgang Benz, Die Juden im Dritten Reich, in: Karl Dietrich Bracher/Manfred Funke/Hans-Adolf Jacobsen (Hrsg.), Deutschland 1933–1945. Neue Studien zur nationalsozialistischen Herrschaft (Schriftenreihe „Studien zur Geschichte und Politik“, Bd. 314), 2., erg. Aufl. Bonn 1993, S. 273-290. 4 Extreme judenfeindliche Aktionen, Exzesse gegen die Juden und deren Verfolgung kündigten sich an durch die Geschäftsblockade am 1. April 1933. Die Reichspogromnacht vom 9. November 1938, in der Synagogen in Brandt gesteckt
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Erklärungen für die breite Begeisterung der Massen und für die Machteroberung Hitlers, für den Weg in den Zweiten Weltkrieg und in die Vernichtungslager gibt es in reicher Fülle. Keine Epoche der deutschen Geschichte hat man so intensiv erforscht wie die NS-Zeit. Gleichwohl lassen sich alle Fragen nicht befriedigend beantworten. Das liegt teilweise in der Vielschichtigkeit der nationalsozialistischen Politik und Propaganda selbst begründet, die ihr menschenverachtendes Gebaren hinter den Verlockungen einer scheinbaren zivilisatorischen Normalität kaschierte. Ein weiterer Grund ist das singuläre historische Phänomen des Nationalsozialismus und seiner Verbrechen, die bei allen Versuchen einer rationalen Deutung immer auch zu einer moralischen Wertung des Betrachters zwingt, zum historischen Begreifen und zugleich zum Verurteilen. In der Forschung besteht allerdings Einigkeit darin, dass es keine einfachen Interpretationen für Aufstieg und Fall des Nationalsozialismus, für die Verlockungen und die Gewalt des „Dritten Reichs“ gibt. Keiner von den ins Feld geführten Faktoren – Ideologie und Propaganda, Terror der SA [= Sturmabteilung], der Versailler „Schandvertrag“ von 1919, die kommunistische Revolutionsdrohung aus Moskau, die und Geschäfte von Juden verwüstet worden sind, war keineswegs eine spontane Reaktion der Bevölkerung, wie Propagandaminister Josef Goebels behauptet hat, sondern eine von oben inszenierte und gesteuerte Gewalttat. Man wirft Papst Pius XI. vor, dass er sich gegenüber diesen und anderen Geschehnissen gegen die Juden wie überhaupt gegenüber dem Antisemitismus zu defensiv verhalten habe. Über die Gründe und Motive, warum die unter dem Pontifikat Pius’ XI. von Jesuiten entworfene und projektierte Enzyklika gegen den Antisemitismus nicht publiziert worden ist, lässt sich nur spekulieren. Zum Verhalten seines Nachfolgers Pius XII. gegenüber dem Nationalsozialisten und in der Judenfrage: John Cornwell, Der Papst, der geschwiegen hat, München 1999; Daniel Jonah Goldhagen, Die katholische Kirche und der Holocaust. Eine Untersuchung über Schuld und Sühne, Berlin 2002; Klaus Kühlwein, Warum der Papst schwieg. Pius XII. und der Holocaust, Düsseldorf 2008; Klaus Lohrmann, Die Päpste und die Juden. 2000 Jahre zwischen Verfolgung und Versöhnung, Düsseldorf 2008. Neuestens zur Haltung Pius‘ XII. zur Vernichtung der Juden vom Botschafter des Staates Israel beim Hl. Stuhl: Mordechay Lewy, in: FAZ, Nr. 72 vom 26. März 2010, S. 9. 98
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Massenarbeitslosigkeit oder die sozio-ökonomischen Interessen der Großindustrie und des Großgrundbesitzes – vermag den nationalsozialistischen Aufstieg zur Macht noch die Politik des Führerstaats zu erklären. Sie verschränken und bedingen sich wechselseitig: „In einem doppelgleisigen Prozess des Machtverfalls beziehungsweise des Machtverlustes der Demokratie einerseits und der politisch-sozialen Expansion der nationalsozialistischen Bewegung andererseits wurde der politische Handlungsspielraum zuerst der demokratischen, dann aber auch der konservativ-autoritären Kräfte zunehmend eingeengt. Dieser Prozess wurde beschleunigt durch politische Fehleinschätzungen, persönliche Machtkämpfe und Intrigen.“5
Katholische Kirche und Nationalsozialismus Man hat sich vor Augen zu halten, dass der Nationalsozialismus eine revolutionäre Bewegung von elementarer Wucht gewesen ist, die sich nach allen Richtungen Bahn gebrochen hat: Jugend, Schulwesen, Universitäten, Presse und Politik. Nach Hitlers Regierungsübernahme als Reichskanzler am 30. Januar 1933 und der Etablierung seiner Herrschaft durch die „Notverordnung zum Schutz von Volk und Staat“ vom 28. Februar und dem Ermächtigungsgesetz vom 24. März war geschlossener, offener Widerstand kaum mehr möglich. Wer sich der Bewegung anschloss, sei es freiwillig, gezwungen oder aus opportunistischen Erwägungen, verlor seine Selbstbestimmung. Wer sich nicht anpasste oder opponierte, riskierte Kopf und Kragen. Wer ihr zu entweichen suchte, traf auf den Anspruch einer sämtliche Lebensbereiche umfassenden und durchdringenden Politisierung. Der Rückzug in die innere Emigration war fast unmöglich geworden. 5 Hans-Ulrich Thamer, Ursachen des Nationalsozialismus, in: Informationen zur politischen Bildung, Nr. 251: Nationalsozialismus I. Von den Anfängen bis zur Festigung der Macht, Bonn 1996, S. 4.
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Die christlichen Kirchen sahen sich mit allen drei Gefahren konfrontiert: dem Identitätsverlust, der drohenden Vernichtung im Kirchenkampf, der Abdrängung ins Private, Unverbindliche. Sie haben auf die Attacken der NS-Bewegung je unterschiedlich reagiert. Dabei spielten Verschiedenheiten der Kirchenverfassung und der Kirchenstrukturen, der theologischen Konzeptionen, des Amtsverständnisses neben anderen Faktoren eine maßgebliche Rolle. Zur Vorgeschichte, dem Aufstieg des Nationalsozialismus zwischen 1930 und 1933 und die Reaktion der Katholiken darauf bilanziert Rudolf Morsey: „Die katholische Volksminderheit, die weder den Aufstieg der Nationalsozialistischen Deutschen Arbeiterpartei und 1933 deren ‚Machtergreifung‘ verursacht noch zum anschließenden Wahlsieg der NSDAP beigetragen hat, ist nicht ‚mit festem Schritt und Tritt‘ in das ‚Dritte Reich‘ hineinmarschiert; sie hat allerdings dessen Machtbefestigung auch nicht zusätzlich erschwert. Hingegen blieb der Katholizismus als Institution, als soziale Großgruppe mit dem Anspruch auf Autonomie, intakt. Er entzog sich dadurch als Ganzes der ‚Gleichschaltung‘, der 1933 die politische Szene beherrschte und so rasch zu dem erstrebten Ziel der Regierung führte.“6
1 Der Vatikan und das NS-Regime: Das Reichskonkordat Beim nun herrschenden System konnte von Anerkennung der Autorität des Papstes und von positiver Würdigung kirchlicher Wirksamkeit keine Rede sein, auch wenn Hitler dies in seiner Regierungserklärung behauptet hatte. Die Tendenz zu unerbittlicher politischen Gleichschaltung und des nationalsozialistischen Totalitätsanspruchs, die 6 Rudolf Morsey, Die katholische Volksminderheit und der Aufstieg des Nationalsozialismus 1930–1933, in: Klaus Gott/Konrad Repgen (Hrsg.), Die Katholiken und das Dritte Reich, 3., erw. und überarb. Aufl. Mainz 1990, S. 9-24, hier S. 24.
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mit der Unterdrückung und Beseitigung demokratischer Parteien und somit auch die des deutschen Katholizismus – Zentrum und Bayerische Volkspartei einherging – war offenkundig. Es stand schließlich zu befürchten, dass die NSDAP und ihre Gliederungen mit staatlicher Unterdrückung versuchten, neben der politischen auch eine weltanschauliche Gleichschaltung auf der Basis einer völkisch-rassistischen Ideologie bei Eliminierung christlicher Normen und kirchlichen Einflusses durchzusetzen. Papst Pius XI. (1857–1939) und namentlich sein Kardinalstaatssekretär Eugenio Pacelli zeigten sich überzeugt, dass das NS-Regime keine kurzfristige Angelegenheit sein werde. Diese Einsicht veranlasste den Hl. Stuhl, Mitte April 1933 das Angebot von deutscher Seite zu Konkordatsverhandlungen aufzunehmen, zumal in den folgenden Wochen der nationalsozialistische Terror insbesondere auch gegen katholische Organisationen und Einrichtungen sich intensivierte. Vom deutschen Episkopat bedrängt, erklärte sich der Vatikan bereit, am 20. Juli 1933 das Reichskonkordat mit der Regierung zu unterzeichnen. Bei den Konkordatsverhandlungen bestand Hitlers Absicht darin, die von Klerikern geführte Zentrumspartei und die Bayerische Volkspartei durch den sogenannten Entpolitisierungsartikel, dem zufolge den Geistlichen künftig jede parteipolitische Aktivität untersagt wurde, nachhaltig zu schwächen. Mit der Auflösung der politischen Parteien besaß dieser Artikel 32 des Reichskonkordats nur noch marginalen Wert. Es lässt sich nicht in Abrede stellen, dass die Regierung Hitler durch das Konkordat, das ja einen völkerrechtlichen Vertrag darstellte, bei manchen deutschen Katholiken einen Prestigegewinn erfahren hat.7 Der Konkordatsabschluss trug zunächst dazu bei, Vorbehalte gegen den neuen Staat abzubauen. Episkopat und auch Laienkatholizismus
7 Hierzu u. a.: Gerhard Besier/Francesca Piombo, Der Heilige Stuhl und HitlerDeutschland. Die Faszination des Totalitären, München 2004.
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versprachen sich nach den turbulenten Auseinandersetzungen des Frühjahres von der Einigung im Sommer ein signifikantes Zeichen für ein einvernehmliches Nebeneinander von Kirche und Staat. „Dieser temporäre Prestigegewinn war, so scheint es, der eigentliche Preis, den der Vatikan für das Reichskonkordat zu bezahlen hatte. Er hatte dies einkalkuliert.“8 Hitler selbst hatte gelegentlich geäußert: „Wir werden niemals dulden, dass im völkischen Staat sich irgend etwas über die Autorität dieses völkischen Staates stellt, auch keine Kirche!“ Und in der Tat zeigte sich bereits im Herbst 1933, welch tiefe Gräben zwischen Vertragstext und Konkordatsvollzug klafften. Denn die nationalsozialistischen Organisationen dachten nicht daran, sich durch katholischkirchliche Aktivitäten in ihrem totalitären Erfassungsanspruch beeinträchtigen zu lassen. Die administrative Unterdrückungspolitik wurde seit 1934/35 durch die massive weltanschauliche Kampfansage der Partei überlagert, die ebenfalls die evangelische Kirche in Mitleidenschaft zog. Die katholische Kirchenleitung hat die schrittweise Einengung und fortgesetzte Diffamierung nicht widerspruchslos hingenommen, vielmehr unter ständiger Berufung auf das Reichskonkordat Protest eingelegt. In der Regel bediente sie sich dabei des Mittels der schriftlichen Eingabe. „Neben dem Vatikan, dessen scharfe Protestnoten auf diplomatischem Weg übermittelt wurden, protestierten die deutschen Bischöfe bei den zuständigen staatlichen Stellen, während konkurrierende Parteiinstanzen meist ignoriert wurden.
Dieter Albrecht, Der Hl. Stuhl und das Dritte Reich, in: Gotto/Repgen, Die Katholiken und das Dritte Reich, S. 25-47, hier S. 28. Umfassend zum Sachverhalt: Ludwig Volk, Das Reichskonkordat vom 20. Juli 1933. Von den Ansätzen in der Weimarer Republik bis zur Ratifizierung am 10. September 1933 (Veröffentlichungen der Kommission für Zeitgeschichte. Reihe B: Forschungen, Bd. 5), Mainz 1972; Thomas Brechenmacher (Hrsg.), Das Reichskonkordat 1933. Forschungsstand, Kontroversen, Dokumente (Veröffentlichungen der Kommission für Zeitgeschichte. Reihe B: Forschungen, Bd. 109), Paderborn 2007. 8
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Sprecher des Episkopats war der greise Breslauer Erzbischof Adolf Kardinal Bertram (1859–1945), der sich bei seiner Abwehrtaktik freilich von der Absicht leiten ließ, nichts seinerseits zu unternehmen, was dem Regime einen Vorwand zu noch härterem Vorgehen hätte liefern können. Hirtenbriefe wie interne Eingaben blieben gleichermaßen erfolglos.“9
2 Die Enzyklika „Mit brennender Sorge“ Das bekannteste päpstliche Dokument im Kirchenkampf des „Dritten Reichs“ ist die in deutscher Sprache abgefasste Enzyklika Papst Pius‘ XI. „Mit brennender Sorge“ vom 14. März 1937. Sie ist am 21. März (Palmsonntag) in den katholischen Kirchen Deutschlands verlesen und zugleich in hoher Auflage gedruckt worden.10 Über die repressiven Vorgänge in Deutschland war der Vatikan bestens informiert, denn an warnenden Stimmen hatte es nicht gefehlt. So hatte beispielsweise schon zwei Monate nach der Machtübernahme der Nazis die im Oktober 1998 von Papst Johannes Paul II. heilig gesprochene Karmelitin Edith Stein (1891–1942) an Papst Pius XI. geschrieben: „Seit Wochen sehen wir in Deutschland Taten geschehen, die jeder Gerechtigkeit und Menschlichkeit – von Nächstenliebe gar nicht zu reden – Hohn sprechen […]. Seit Wochen warten und hoffen
Ulrich von Hehl, Die Kirchen in der NS-Diktatur. Zwischen Anpassung, Selbstbehauptung und Widerstand, in: Bracher/Funke/Jacobsen (Hrsg.), Deutschland 1933–1945, S. 153-181; das Zitat: S. 173. 10 Wortlaut der Enzyklika: die deutsche Fassung in: AAS 29 (1937), S. 145-167; die italienische Version „Con viva ansia“: ebd., S. 168-188; Ludwig Volk, Die Fuldaer Bischofskonferenz von Hitlers Machtergreifung bis zur Enzyklika „Mit brennender Sorge“, in: Stimmen der Zeit 183 (1969), S. 10-31, 174-194; Heinz-Albert Raem, Pius XI. und der Nationalsozialismus. Die Enzyklika „Mit brennender Sorge“ vom 14. März 1937, Paderborn u. a. 1979; 9
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nicht nur die Juden, sondern Tausende treuer Katholiken in Deutschland – und ich denke in der ganzen Welt – darauf, dass die Kirche Christi ihre Stimme erhebe, um diesen des Namens Christi Einhalt zu tun. Ist nicht diese Vergötzung der Rasse und der Staatsgewalt, die täglich durch Rundfunk den Massen eingehämmert wird, eine offene Häresie?“11 Diesen Brief hat der Vatikan erst im Jahr 2003 freigegeben, warf er doch ein ungutes Licht auf den Hl. Stuhl, weil sich der Papst erst vier Jahre nach Edith Steins Bitte zu einer öffentlichen Reaktion durchgerungen hatte.12 Inzwischen liegen neue Erkenntnisse zur Genese der erwähnten Enzyklika vor, die auf Dokumenten aus dem vatikanischen Geheimarchiv zum Pontifikat Papst Pius XI. beruhen, die Papst Benedikt XVI. am 18. September 2006 zu wissenschaftlichen Zwecken vollständig freigegeben hat. Danach scheint es relativ sicher zu sein, dass der Initiator für das päpstliche Rundschreiben der Bischof von Münster, Clemens August Graf von Galen, gewesen ist. Denn dieser hatte sich Anfang März 1936 in einer Denkschrift direkt an den Kardinalstaatssekretär Eugenio Pacelli gewandt, worin er ungewöhnlich deutlich das öffentliche Schweigen der Bischöfe kritisierte: „Die Taktik des Verhandelns hinter verschlossenen Türen und der nicht veröffentlichten Eingaben an Regierungsstellen war richtig, solange man hoffen durfte, bei den Regierungsstellen wirklichen Friedenswillen und Rücksicht auf Gerechtigkeit zu finden. Zu solcher Hoffnung ist
11 Zitiert in Hubert Wolf, Papst und Teufel. Die Archive des Vatikan und das Dritte Reich, München 2008, S. 212 f. Über den Kontext dieses Schreibens: ebd., S. 208-216. 12 Beachte auch das Schreiben von Generalsuperior Josef Grendel SVD (1878– 1951) aus Rom vom 15. Juli 1936 an Kardinalstaatssekretär Eugenio Pacelli, worin er gegen das Treiben nationalsozialistischer Kräfte eine entsprechende Enzyklika anregte (AG/SVD, Nr. 12: Juli 1933-Dez. 1937). Zum Gesamtvorgang: Josef Alt, P. Josef Grendel SVD und seine Stellungnahme zum Nationalsozialismus, in: Verbum SVD 35 (1994), S. 365-388.
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wohl kein Grund mehr vorhanden.“ Jetzt sei eine „andere Taktik, das Hervortreten an die Öffentlichkeit“ unerlässlich, weil die Regierung jeden Anschein zu vermeiden suche, „vor der Öffentlichkeit als Angreifer der Kirche erkannt zu werden“. Wegen der „Uneinigkeit des deutschen Episkopats“ sei ein Wort des Papstes erwünscht.13 Bevor Hitler salonfähig wurde, hatten die deutschen Bischöfe keinen Zweifel gelassen: Kein Katholik durfte gleichzeitig ein Nazi sein, anderenfalls sollte ihm die Beisetzung verwehrt werden. Von Seiten der Nationalsozialisten unternahm man indes alles, um die katholische Kirche in Misskredit zu bringen. Dazu zählten in den Jahren 1935/36 vor allem die Sittlichkeits- und Devisenprozesse gegen Geistliche und Ordensleute.14 In dieser prekären Situation versuchte man in Verhandlungen, eine zufriedenstellende Beilegung der peinlichen Angelegenheiten zu erreichen. Als dies geschehen war, entschied sich der Papst, den Weg vorerwähnter Enzyklika zu beschreiten. Ein Indiz dafür deutete sich bereits in seiner Weihnachtsansprache vom 24. Dezember 1936 an. Unter Bezugnahme auf den wenige Monate zuvor ausgebrochenen Spanischen Bürgerkrieg, in dem Hitler-Deutschland General Franco offen unterstützte, warnte Pius XI. über Radio Vatikan: „Das ist eine neue Mahnung – ernster und drohender als alle bisherigen – für die ganze Welt, besonders für Europa und seine christliche Kultur. Das sind Ereignisse, die mit erschreckender Gewissheit und Deutlichkeit offenbaren und ankündigen,
Wolf, Papst und Teufel, S. 244. Hans Günter Hockerts, Die Sittlichkeitsprozesse gegen katholische Ordensangehörige und Priester 1936/37. Eine Studie zur nationalsozialistischen Herrschaftstechnik und zum Kirchenkampf (Veröffentlichungen der Kommission für Zeitgeschichte. Reihe B: Forschungen, Bd. 6), Mainz 1971; Petra Madeleine Rapp, Die Devisenprozesse gegen katholische Ordensangehörige und Geistliche im Dritten Reich. Eine Untersuchung zum Konflikt deutscher Orden und Klöster in wirtschaftlicher Notlage, totalitärer Machtausübung des nationalsozialistischen Regimes und im Kirchenkampf 1935/36, Diss. Bonn 1981. 13 14
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was für Europa und die ganze Welt bevorsteht, wenn man nicht sofort und wirksam zu Schutz- und Heilmitteln greift.“15 Der deutsche Rundfunk unterdrückte die Weihnachtsansprache. Angesichts der zahlreichen Anfeindungen durch das NS-Regime waren die Kirchenoberen darüber nicht erstaunt. Man entschied sich infolgedessen, die päpstliche Botschaft geheim zu verbreiten. Der vom Münchener Kardinal von Faulhaber erstellte erste Entwurf der Enzyklika16 erhielt von Kardinalstaatssekretär Pacelli und seinen Mitarbeitern die definitive Fassung. Sie wendet sich nicht zuerst an die Bischöfe, sondern gezielt an die katholische Bevölkerung. Den Katholiken sollte eindeutig
So Hubert Wolf in einem am 14. März 2007 ausgestrahlten Beitrag von Christoph Vormweg im Westdeutschen Rundfunk. Zur Enzyklika gegen den Nationalsozialismus hatte der Papst sich nur bewegen lassen, weil die Entwicklung des Bürgerkriegs in Spanien gleichzeitig eine Verurteilung des Bolschewismus und seiner Expansion in Europa möglich machte. Lediglich durch eine „Symmetrie“ der Verdammung sah er die Überparteilichkeit des Hl. Stuhls gewährleistet (Wolf, Papst und Teufel, S. 300). 16 Kardinal Faulhaber, der sich nach der außerordentlichen Plenarsitzung des deutschen Episkopats am 12. und 13. Januar 1937 in Fulda unmittelbar mit den Kardinälen Adolf Bertram und Karl Joseph Schulte sowie mit den Bischöfen Clemens August Graf von Galen und Konrad Graf von Preysing auf Einladung des Papstes zu Beratungen über die kirchenpolitische Lage in Deutschland nach Rom begeben hatte, war am Abend des 18. Januar von Kardinalstaatssekretär Pacelli gebeten worden, einen ersten Entwurf der Enzyklika auszuarbeiten. Streng geheim verfasste dieser dann in den drei folgenden Nächten einen handschriftlichen Entwurf in deutscher Sprache, den er am 21. Januar Pacelli übergab. „Niemand weiß von diesem Schreiben. Darum habe ich es in den Nachtstunden geschrieben, damit auch kein Maschinenschreiber davon erfahre“, bemerkte der Münchener Kardinal (Stenographischer Entwurf des Begleitschreibens Faulhabers an Pacelli vom 21. Januar 1937, in: Ludwig Volk, Akten Kardinal Michael von Faulhabers 1917-1945, Bd. 2, Mainz 1978, S. 282). Der Einzige, den Pacelli ins Vertrauen zog, war der Jesuitengeneral Wladimir Ledóchowski, der bereits die ersten Vorarbeiten des Heiligen Offiziums begleitet hatte. Der ursprüngliche Anfang der Enzyklika „Mit großer Sorge“ ist vermutlich von Pacelli in „Mit brennender Sorge“ verändert worden. Diesen Terminus hat Generalsuperior Grendel in seinem Brief vom 15. Juli 1936 (!) an den Kardinalstaatssekretär verwendet, worin er um eine kritische Stellungnahme des Papstes zum Treiben des nationalsozialistischen Regimes gebeten hatte (siehe Anm. 12). Im Einzelnen zur Genese und der Überarbeitung des Entwurfs der Enzyklika: Wolf, Papst und Teufel, S. 298-306. 15
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und klar gezeigt werden, dass das Wertesystem der Kirche im Widerspruch zur nationalsozialistischen Ideologie stand. In der Enzyklika protestierte Pius XI. auf scharfe Weise gegen die nationalsozialistische Kirchenpolitik und die Ideologie der NSDAP, außerdem verurteilte er klar und ausdrücklich die Rassendoktrin des Regimes. Dadurch wuchsen allerdings innerkirchlich die Spannungen im Episkopat über den richtigen Kurs gegenüber dem nationalsozialistischen System.17 Das päpstliche Rundschreiben wollte als „ein Wort der Wahrheit und der seelischen Stärkung“ verstanden werden. Es beginnt mit den Worten: „Mit brennender Sorge und steigendem Befremden beobachten wir seit geraumer Zeit den Leidensweg der Kirche, die wachsende Bedrängnis der ihr in Gesinnung und Tat treubleibenden Bekenner und Bekennerinnen inmitten des Landes und des Volkes, dem St. Bonifatius einst die Licht- und Frohbotschaft von Christus und dem Reich Gottes gebracht hat.“ In ihr wurde die deutsche wie auch die Weltöffentlichkeit über die politischen Ursachen und Ziele des Kirchenkampfs informiert, die Rassenpolitik der Nationalsozialisten scharf verurteilt: „Der ‚Anschauungsunterricht der vergangenen Jahre‘ enthülle ‚Machenschaften, die von Anfang an kein anderes Ziel kannten als den Vernichtungskampf‘. Im Dienste der Wahrheit wurde erneut und in feierlicher Form die
17 Hinweise auf die diesem Verhalten zugrundeliegenden Theologie: Joachim Maier, Von Gott reden in einer zerrissenen Welt. Beobachtungen zu einer „Theologie“ Clemens August Graf von Galens in seinen Predigten und Hirtenbriefen, in: Joachim Kuropka (Hrsg.), Clemens August Graf von Galen. Neue Forschungen zum Leben und Wirken des Bischofs von Münster, Münster 1992, S. 273-296; Konrad Repgen, Die deutschen Bischöfe und der Zweite Weltkrieg, in: Historisches Jahrbuch 115 (1995), S. 410-452; Antonia Leugers, Gegen eine Mauer bischöflichen Schweigens. Der Ausschuss für Ordensangelegenheiten und seine Widerstandskonzeption 1941–1945, Frankfurt a. M. 1996. Lydia Bendel-Maidl, Thomanische Staatslehre. Barriere oder Hilfe in einem totalitären Staat? Ausgewählte Themen aus Peter Tischleders katholischer Staats- und Gesellschaftslehre, in: Hans-Jürgen Karp/Joachim Köhler (Hrsg.), Katholische Kirche unter nationalsozialistischer und kommunistischer Diktatur. Deutschland und Polen 1939-1989, Köln 2001, S. 41-73.
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Unvereinbarkeit von katholischer Glaubenslehre und nationalsozialistischer Weltanschauung an zentralen Punkten herausgearbeitet und betont […]. Unter Verurteilung des nationalsozialistischen Grundsatzes ‚Recht ist, was dem Volke nützt‘ wurde in der Tradition christlicher und naturrechtlicher Argumentation betont und eingeschärft, ‚dass der Mensch als Persönlichkeit gottgegebene Rechte besitzt, die jedem auf ihre Leugnung, Aufhebung oder Brachlegung abzielenden Eingriff von Seiten der Gemeinschaft entzogen bleiben müssen‘. […] Zur seelischen Stärkung schließlich wurden die Gläubigen in Deutschland ermutigt, in ihrer Selbstbehauptung nicht nachzulassen; die Kirche werde auch weiterhin ihre Rechte und Freiheiten verteidigen, ‚im Namen des Allmächtigen, dessen Arm auch heute nicht verkürzt ist‘.“18 Unter strengster Geheimhaltung wurde die Enzyklika durch Kuriere verteilt; kein Nazi-Spitzel erfuhr etwas von dieser Aktion. Da man von Seiten der Kirchenbehörden nicht um die vorgeschriebene Genehmigung zum Verlesen des päpstlichen Schreibens nachgesucht hatte, fiel die Reaktion der Nationalsozialisten entsprechend hart aus. Druckereien und Verlage, die für die Verbreitung der rund 300.000 Exemplare der Enzyklika gesorgt hatten, wurden konfisziert, die Kirchenorganisationen mit Spitzeln systematisch unterwandert.19 Außerdem nahm die Justiz auf Hitlers Anordnung vom 6. April 1937 die vorübergehend eingestellten Sittlichkeitsprozesse gegen Kleriker und Ordenschristen wieder auf. Im Allgemeinen hüteten sich die Nationalsozialisten jedoch davor, prominente Kirchenleute zu Märtyrer zu machen, denn sie fürchteten den erbosten Unmut der Katholiken, die über ein Drittel der deutschen Bevölkerung ausmachten. Die endgültige Rache und Abrechnung sollten erst später erfolgen.
Zitat in: Albrecht, Der Hl. Stuhl und das Dritte Reich, S. 34 f. Hierzu etwa: Wolfgang Dierker, Himmlers Glaubenskrieger. Der Sicherheitsdienst der SS und seine Religionspolitik 1933-1941 (Veröffentlichungen der Kommission für Zeitgeschichte. Reihe B: Forschungen, Bd. 92), 2., durchges. Aufl. Paderborn u. a. 2003. 18 19
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3 Der sogenannte „Klostersturm“ Die Jahre des Kirchenkampfs gehören zu den am intensivsten erforschten Bereichen kirchlicher Zeitgeschichte. Die Verurteilung des Meissner Bischofs Petrus Legge im Rahmen der Devisenprozesse 1935 sowie die menschenverachtende Ausweisung von Bischof Joannes Baptista Sproll 1938 aus seiner Diözese Rottenburg bildeten lediglich die episkopale Spitze von schier endlosen weltanschaulich wie kirchenpolitisch bedingten Konfrontation, Verunglimpfungen, Repressionen und öffentlichen Verleumdungskampagnen. Neben der dezidiert antikatholischen Stoßrichtung der Devisen- und Sittlichkeitsprozesse sind insbesondere zu erwähnen: Die Auseinandersetzungen um Alfred Rosenbergs „Mythus des 20. Jahrhunderts“20, die staatspolitischen Maßnahmen gegen das öffentliche Auftreten und schließlich das Verbot katholischer (Jugend-)Organisationen (1934-1937/39), die regional gestaffelten Schulkämpfe (Ausschluss der Geistlichkeit vom Religionsunterricht (1935/37), die Aufhebung der Bekenntnisschule (1936-1939), die mancherorts angeordnete Entfernung von Schulkreuzen (1937), die durch das Hitler-Porträt zu ersetzen waren, wobei hier namentlich die Vorgänge im Oldenburger Land Erwähnung verdienen, sowie die stark eingeschränkte Kontrolle der kirchlichen Presse. Diese als neuen Kulturkampf verstandenen Maßnahmen drängten die katholische Kirche sukzessiv in die „Sakristei“ ab. Dagegen protestierten die Kirchenleitungen zwar mit intelligenten und letztlich vergeblichen Eingaben, aber nicht durch ein kraftvolles und entschiedenes Auftreten bei den maßgeblichen Regierungsstellen. Der Reichs- und Preußische Minister für Wissenschaft, Erziehung und Volksbildung ordnete am 1. Juli 1937 an, den Religionsunterricht
20 Raimund Baumgärtner, Weltanschauungskampf im Dritten Reich. Die Auseinandersetzungen der Kirchen mit Alfred Rosenberg, Mainz 1977.
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nur durch Lehrer mit vorgeschriebener Prüfung erteilen zu lassen und Geistliche nur insofern einzusetzen, als Lehrkräfte nicht zur Verfügung stünden, so dass Geistliche ab dem Schuljahr 1937/38 zu ersetzen seien. An der Saar führte dies beispielsweise zum völligen Entzug der Lehrerlaubnis für Geistliche ab dem 1. Dezember 1938. Als weitere einschneidende Maßnahme wurde 1938 der Religionsunterricht an den Volksschulen auf zwei und bei den Höheren Lehranstalten auf eine Wochenstunde herabgesetzt und durch ministerielle Bekanntmachung vom 17. März 1939 auf die Eckstunden verlegt. Gemeinhin erblickten die Nationalsozialisten in den Kloster schulen und ähnlichen Einrichtungen ein verderbliches Wirken auf die ihnen anvertraute Jugend im Sinn der Staatsfeindschaft, weil sie Brutstätten der politischen Jugendverderbnis seien. Dies hatte zur Konsequenz, dass man mit der Zeit den Unterrichtsbetrieb in den Klosterschulen untersagte. Wegen der Entfremdung der deutschen Jugend von der Volksgemeinschaft und der Verweigerung der vom Staat verlangten Erziehungsform wurden den in kirchlicher und ordenseigener Trägerschaft befindlichen Schulen der Charakter einer vom Staat anerkannten Lehranstalt entzogen. Schulen sowie sonstige Bildungs- und Erziehungseinrichtungen religiöser Institutionen unterstanden fortan der alleinigen Leitung eines von der staatlichen Behörde eingesetzten Schulleiters. Dieser war für die einheitliche nationalsozialistische Erziehung der ihm anvertrauten Jugend gegenüber der Schulaufsichtsbehörde verantwortlich, und er hatte in dieser Hinsicht nur ihren Anordnungen Folge zu leisten. Leiter, Lehrer und Erzieher mussten politisch zuverlässig sein. Der Schulbehörde blieb es vorbehalten, nicht zuverlässige Lehrer zu entlassen und geeignete Kräfte einzustellen. Die erste Forderung enthielt auch die Forderung der Mitgliedschaft aller Schüler in der Hitler-Jugend. Am 9. November 1939 verfügte der Erlass des Reichsministers für Wissenschaft, Erziehung und Volksbildung die Schließung sämtlicher Privat- und Ordensschulen. 110
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Abschließende Bemerkungen Die Kapitulation und der Zusammenbruch des Nazi-Systems im Mai 1945 bedeuteten unter anderem das Ende eines nicht erst 1933 oder 1918 beschrittenen deutschen Irrwegs. Mehr als fünfundfünfzig Millionen Menschen hatten den Tod gefunden, weite Teile Europas waren durch die Kriegshandlungen zerstört und verwüstet worden, sehr viele Menschen hatten ihre alte Heimat verloren und suchten anderenorts ein Unterkommen.21 Lässt man am Schluss die Verhaltungsweise der Kirchenleitung und der Katholiken im „Dritten Reich“ Revue passieren, dann drängt sich die Frage auf, warum man beispielsweise die Auflösung des Politischen Katholizismus sowie die Lähmung des katholischen Vereins- und Verbandssystems weitgehend widerspruchslos hingenommen hat, warum Episkopat und Kirchenvolk zu den Rassengesetzen geschwiegen, waren sie angesichts des schreienden Unrechts der nationalsozialistischen Diktatur, der rassenideologischen Exzesse und des verbrecherischen Charakters des Regimes nicht öffentlich demonstriert und kraftvoll protestiert, warum sie nicht in einer fest geschlossenen Phalanx dagegen aktiven Widerstand geleistet haben, vielmehr gekuscht haben, warum es als Folge der sogenannten Reichskristallnacht vom 9. auf den 10. November 1938 – sie war der Auftakt der systematischen Judenverfolgung, der Beginn des Holocausts –, als in ganz Deutschland ein
Auswahlweise ein Überblick zum sperrigen und kontrovers diskutierten Thema des Widerstands einzelner Personen und Gruppen sowie zu den Gründen und Motiven des Versagen der Mehrheitsbevölkerung: Peter Steinbach, „Stachel im Fleisch der deutschen Nachkriegsgesellschaft.“ Die Deutschen und der Widerstand, in: ApuZ, B 28 vom 15. Juli 1994, S. 3-14; ders., Der 20. Juli 1944 – mehr als ein Tag der Besinnung und Verpflichtung, in: ebd., B 27 vom 28. Juni 2004; Günther Gillessen, Zum Streit über den 20. Juli, in: Die politische Meinung 43 (1998), S. 73-81; Rüdiger von Voss, „Es ist aus.“ Zum Verständnis des 20. Juli 1944, in: ebd., S. 82-90. 21
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Großteil der 1200 Synagogen und Gebetshäuser in Brand gesetzt, etwa 7500 Geschäfte und Einrichtungen jüdischer Mitbürger geplündert und zerstört, zahlreiche jüdische Friedhöfe verwüstet und viele Juden verhaftet worden waren, keinen öffentlichen Protest, kein Zeichen der Solidarität mit den Juden gab. Am 23. August 1945 veröffentlichten die deutschen Bischöfe in Fulda einen Hirtenbrief, dem ersten Pastorale nach dem Krieg, worin sie sich als Repräsentanten der katholischen Kirche zur Mitverantwortung an den entsetzlichen Geschehnissen im „Dritten Reich“ bekannten. In ihm erklärten sie unter anderem: „Furchtbares ist schon vor dem Krieg in Deutschland und während des Krieges durch Deutsche in den besetzten Ländern geschehen. Wir beklagen es zutiefst: Viele Deutsche, auch aus unseren Reihen, haben sich von den falschen Lehren des Nationalsozialismus betören lassen, sind bei Verbrechen gegen menschliche Freiheit und menschliche Würde gleichgültig geblieben. Viele leisteten durch ihre Haltung den Verbrechern Vorschub, viele sind selbst Verbrecher geworden. Schwere Verantwortung trifft jene, die auf Grund ihrer Stellung wissen konnten, was bei uns vorging, die durch ihren Einfluss solche Verbrechen hätten verhindern können und es nicht getan haben, ja diese Verbrechen ermöglicht und sich dadurch mit den Verbrechern solidarisch erklärt haben.“22 Zwei Monate später, am 19. Oktober 1945, äußerten ebenfalls die Kirchenvertreter der erst wenige Wochen zuvor gegründeten EKD dieses peinliche Versagen in der „Stuttgarter Schulderklärung“: „Mit großem Schmerz sagen wir: Durch uns ist unendliches Leid über viele Länder und Völker gebracht worden. Was wir unseren Gemeinden oft bezeugt haben, das sprechen wir jetzt im Namen der ganzen Kirche aus:
22 Zitat in der „Erklärung der deutschen Bischöfe zum 30. Januar 1983“, in: Arbeitshilfen, Nr. 30: Erinnern und Verantwortung (30. Januar 1933 – 30. Januar 1983), Bonn 1983, S. 19.
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Wohl haben wir lange Jahre hindurch im Namen Jesu Christi gegen den Geist gekämpft, der im nationalsozialistischen Gewaltregiment seinen furchtbaren Ausdruck gefunden hat; aber wir klagen uns an, dass wir nicht mutiger bekannt, nicht treuer gebetet, nicht fröhlicher geglaubt und nicht brennender geliebt haben. Nun soll in unseren Kirchen ein neuer Anfang gemacht werden. Gegründet auf die Heilige Schrift, mit ganzem Ernst ausgerichtet auf den alleinigen Herrn der Kirche, gehen sie daran, sich von glaubensfremden Einflüssen zu reinigen und sich selber zu ordnen. Wir hoffen zu dem Gott der Gnade und Barmherzigkeit, dass Er unsere Kirchen als Sein Werkzeug brauchen und ihnen Vollmacht geben wird, Sein Wort zu verkündigen und Seinem Willen Gehorsam zu schaffen bei uns selbst und bei unserem ganzen Volk. Dass wir uns bei diesem neuen Anfang mit den anderen Kirchen der ökumenischen Gemeinschaft herzlich verbunden wissen dürfen, erfüllt uns mit tiefer Freude. Wir hoffen zu Gott, dass durch den gemeinsamen Dienst der Kirchen, dem Geist der Macht und der Vergeltung, der heute von neuem mächtig werden will, in aller Welt gesteuert werde und der Geist des Friedens und der Liebe zur Herrschaft komme, in dem allein die gequälte Menschheit Genesung finden kann. So bitten wir in einer Stunde, in der die ganze Welt einen neuen Anfang braucht: „Veni Creator Spiritus!“.“23
Literatur BAUMGÄRTNER, Raimund, Weltanschauungskampf im Dritten Reich. Die Auseinandersetzungen der Kirchen mit Alfred Rosenberg, Mainz 1977. Die Erklärung über die Mitverantwortung der protestantischen Kirche für die Verbrechen des Nazi-Regimes ist stellvertretend von elf Ratsmitgliedern der EKD unterzeichnet worden (Evangelischer Pressedienst [epd] vom 13. Oktober 2005). 23
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THE CATHOLIC CHURCH AND THE NATIONAL SOCIALISM IN GERMANY Abstract The article shows some aspects and basic principles in order to explain correctly the complex and very divergently discussed matter of “The Catholic Church and the National Socialism.” Hitler’s way to power has not been a one-way street of the German history, which conducted necessarily to the appointment of Chancellor of the Reich on January 30, 1933 and therefore to war and extermination. The Christian Churches has been faced mainly three threats: the loss of identity, the threatening extermination through the anti-ecclesiastic battle, the withdrawal of the society and the noncommittal to the reality. They reacted to the attacks of the Nazi-movement in a different way. Determinant were theological concepts, the concept of ministry, ideological factors, too much misjudgment by prominent ecclesiastical persons and by the political Catholicism as well as the lack of civil courage before the crying injustice of the Nazi-dictatorship, the excesses of the Nazi-ideology, and the criminal character of the regime. Only after the end of the war, one admitted publicly the serious faults, principally the culpable faults of the ecclesiastic hierarchy and the Christians in the “Third Reich.” Key words: Catholicism. National Socialism. Third Reich. Clergy and laymen. Church and politics. Ecclesiastical culpability.
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FALAR DE DEUS NA HISTÓRIA: O DEUS DOS POBRES COMO MANIPULAÇÃO DO DEUS VERDADEIRO? Adriano Souza Viana*, Angelo José Salvador, Edson Kretle, Emerson Sbardelotti Tavares e Fábio Milioli Saith
Resumo No presente artigo gostaríamos de transcrever aos leitores a riqueza da reflexão sobre a fé e sobre Deus que nascem dos debates em cursos de graduação em teologia. Propomos-nos mesclar várias perspectivas diferentes sobre uma temática comum, pois aqui queremos colocar pontos de vistas diferentes que tentam justificar uma mesma concepção teológica. Pretendemos versar sobre as imagens de Deus que temos, sobre nossa maneira de discursar sobre Ele. E somos provocados pela dúvida se o “Deus dos pobres” não seria também uma manipulação ideológica do verdadeiro Deus. E para isso pensamos a temática a partir de quatro perspectivas: bíblica, filosófica, teológica e pastoral. Palavras-chave: Imagem de Deus. Deus verdadeiro. Deus dos pobres. Manipulação de Deus.
Introdução Aqui precisamos explicar um pouco como nasce este artigo. Nas aulas de Teologia Fundamental, do Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória do Espírito Santo, ministradas pelo professor Dr. Giovani Marinot Vedoato, estudávamos e debatíamos o livro de Renold Blank, Deus na história. São Paulo: Paulinas, 2005. Adriano Souza Viana, Angelo José Salvador, Edson Kretle, Fábio Milioli Saith – graduados em Filosofia pela Faculdade Salesiana de Vitória/ES; Emerson Sbardelotti Tavares – graduado em Turismo pela Faculdade de Turismo de Guarapari/ES – graduandos do curso de Teologia do Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória do Espírito Santo (Iftav). *
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Debatíamos sobre as “imagens de Deus” e as possíveis manipulações ideológicas que podem advir dessas concepções teológicas. Para exemplificar o que afirmamos como imagem de Deus citaremos exemplos do censo comum religioso: Deus castigador, Deus Rei em seu trono, Deus Juiz, Deus da prosperidade, Deus da Bênção etc. Surgiu então a provocação de um dos nossos colegas. Blank, em seu livro, afirma que o Deus de Israel é o Deus dos pobres, não o deus do poder dominante (BLANK, 2005, p. 47). O colega indagou: “Não seria essa afirmação, ‘Deus dos pobres’, também uma manipulação do Deus verdadeiro”?1 Sendo essa provocação feita a estudantes que foram educados na fé das Comunidades Eclesiais de Bases (CEB), numa eclesiologia que sempre afirmou a “evangélica opção preferencial pelos pobres”, o debate acalorou-se. Fomos então motivados pelo professor a responder a questão em quatro perspectivas: da interpretação bíblica, da teologia, da filosofia e na perspectiva pastoral. Essas respostas se transformaram no presente artigo. Sentimo-nos impelidos a buscarmos os fundamentos de nossa fé, e mostramos racionalmente os argumentos que dão sentido à crença no Deus libertador dos pobres.
1 Perspectiva da interpretação bíblica Propondo-nos a falar sobre Deus numa perspectiva da interpretação bíblica, parece-nos fundamental retomarmos o documento da Pontifícia Comissão Bíblica, “A interpretação da Bíblia na Igreja”, nº 134,
1 A Introdução do livro e título do primeiro capítulo se refere ao tema do “Verdadeiro Deus”. Blank se propõe a fazer uma redescoberta do sentido do Deus judaico-cristão no percurso histórico, baseando-se em pesquisas bíblicas e teológicas.
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em que é explanado de forma sintética e densa o que a Igreja Católica pressupõe sobre os limites e as qualidades dos métodos exegéticos e interpretativos nos últimos anos. A Igreja nos ajuda a interpretar a Bíblia. O documento nos mostra os pontos positivos e os negativos dos principais métodos e abordagens a partir dos quais podemos interpretar o texto bíblico e então falarmos sobre Deus. E afirma: “Nenhum método científico para o estudo da Bíblia está à altura de corresponder à riqueza total dos textos bíblicos” (PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, 2006, p. 46). Tendo isso como ponto de partida, propomo-nos discorrer sobre como falar de Deus na interpretação bíblica, levantando algumas considerações sobre o texto de Blank e as abordagens de interpretação bíblica que ele utiliza como fundamento para suas ideias. Principalmente citaremos a abordagem sociológica e a da libertação. Como afirmamos na introdução, este artigo nasce de um debate em sala de aula. Um dos alunos questionou o texto de Renold J. Blank, que então estudávamos, o livro Deus na história. Ele o criticou por fazer interpretações bíblicas e não ser um biblista. E se perguntou se as afirmações propostas pelo autor não seriam também uma manipulação do discurso sobre o verdadeiro Deus. Pelo que nos parece, a crítica é infundada, pois Blank mostra em seu texto conhecimento de causa sobre o que fala. E também a referência a outros autores nos garante que sua pesquisa foi sustentada por uma interpretação bíblica renomada. As ideias do discurso sobre Deus apresentadas por Blank são, entre outras: “o Deus verdadeiro não fica do lado do poder”; “não fica ligado a um lugar”; “não está preso ao círculo cúltico do templo”; “rejeita toda exclusão e opressão”; “oferece uma aliança”; “quer uma sociedade igualitária”.2
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Temas tratados em todos os capítulos.
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Pois bem. A crítica a que fizemos referência acima interrogava se todos esses discursos sobre o “Deus dos pobres” não seria uma forma de fechar-se em uma imagem de Deus, ocultando o “Deus verdadeiro”. Propomos então uma defesa das ideias de Blank numa perspectiva da interpretação bíblica a partir de duas abordagens. Uma, através das ciências humanas, e outra, contextual.3 A primeira é a abordagem sociológica, que nos textos de Blank encontramos de forma velada quando ele cita o historiador de Israel John Bright. Esse historiador norte-americano reconstrói em teorias a história de Israel, nos aspectos político, étnico, religioso etc., com base no seu conhecimento também de uma teoria sociológica, sobretudo do exegeta alemão Martin Noth. Bright, no prefácio à primeira edição de seu livro História de Israel, diz que aprendeu com ele (BRIGHT, 1981, p. 11), embora afirme também que há dessemelhanças entre suas ideias. A abordagem sociológica também foi bem explorada pelos norte-americanos após Bright. Aqui citamos Jorge Pixley, que também faz menção à teoria sociológica de Martin Noth (PIXLEY, 1989, p. 16). E também citamos o exegeta Norman Karol Gottwald, que se propõe a vincular Bíblia e sociologia em seus livros. Pixley afirma que Gottwald também usa a abordagem sociológica e evidencia o contexto no qual a fé em Yahweh nasce e cresce. A história se inicia, segundo ele, por uma insurreição camponesa, ou seja, os pobres se rebelam contra os reis da Palestina (PIXLEY, 1989, p. 17). Portanto, concluímos que Blank está muito bem embasado ao afirmar suas ideias e mostrar que o Deus verdadeiro da experiência judaico-cristã é realmente o Deus dos pobres. E a interpretação bíblica com uma abordagem sociológica nos ajuda a confirmar isso.
Essas abordagens são explicadas no documento da Pontifícia Comissão Bíblica, p. 66-78. 3
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A segunda abordagem, que chamamos acima de contextual, é a da Libertação. Essa abordagem é identificada pelo documento da Pontifícia Comissão Bíblica (PIXLEY, 1989. p. 74-78). Porém, é afirmado que “ela não adota um método especial”. Ao invés de se contentar com uma interpretação objetivante que se concentra sobre aquilo que diz o texto em seu contexto de origem, procura-se uma leitura que nasça da situação vivida pelo povo. Se este último vive em circunstâncias de opressão. É preciso recorrer à Bíblia para nela procurar o alimento capaz de sustentá-lo em suas lutas e suas esperanças [...] (PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, 2006, p. 75).
Essa abordagem tem alguns princípios que podemos ver na opção teológica de Blank. Aqui nos basta fazer a seguinte citação: “Deus está presente na história de seu povo para salvá-lo. Ele é o Deus dos pobres, que não pode tolerar a opressão nem a injustiça” (PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, 2006, p. 76). Dessa forma, concluímos, nesta primeira perspectiva do discurso sobre Deus, que a interpretação bíblica utilizada por Blank se baseia naquilo que a Igreja Católica também acredita sobre uma interpretação possível e madura dos textos sagrados. O livro Deus na história nos aponta para uma interpretação bíblica que nos fala sobre o Deus revelado para um grupo social específico, os pobres.
2 Perspectiva da filosofia Nesta parte do artigo será analisada a problemática sobre o tema Deus no viés filosófico. Mas, devido à infinidade desse esboço, optou-se, ainda de forma limitada, pelo pensamento de Pseudo-Dionísio, Tomás de Aquino, Immanuel Kant e Karl Popper. Com a crise da racionalidade iluminista-positivista parece que refletir sobre Deus na contemporaneidade é filosoficamente quase um 122
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absurdo. Esse “descrédito” pelo tema Deus tomou esse direcionamento depois que Feuerbach e os “Mestres da suspeita”, Nietzsche, Marx e Freud, fizeram severas e contundentes críticas à religião e consequentemente ao termo Deus. A formulação dessas apreciações é de grande relevância no meio filosófico, que vale a pena citá-las, mesmo que seja de forma frenética. Para Ludwig Feuerbach, o conhecimento que o homem tem de Deus é apenas o “autoconhecimento de si próprio”, logo, o “mistério da teologia é a antropologia”. Já para Karl Marx a religião é o ópio do povo, pois essa impede que os homens busquem a superação da desigualdade social. Com Sigmund Freud a ideia que se faz de Deus é apenas uma “ilusão infantil”. Por fim, Friedrich Nietzsche anuncia a morte de Deus, e a humanidade livre da tutela da religião poderá criar os valores do super-homem. Todos esses grandes pensadores pensavam que a racionalidade filosófica e científica extinguiriam a religião e Deus da história humana. Hodiernamente evidencia-se a “crise da razão” e depara-se com a denominada “Revanche do Sagrado”, em virtude da qual a temática religiosa e as reflexões de “um Deus para hoje” reaparecem com imensa força. 2.1 O falar de Deus em Pseudo-Dionísio? Dionísio é um personagem histórico convertido por Paulo, quando esse estava no areópago grego. Tal narrativa é explicitada em At. 17, 34. Pseudo-Dionísio, o Aeropagita, é um pseudônimo que esse filósofo utilizou a fim de garantir bom êxito em suas obras. Os escritos de Pseudo-Dionísio foram profundamente marcados por Plotino, e por tal motivo é evidente nas suas obras uma fusão entre o neoplatonismo e o pensamento cristão. O pensamento desse autor é hodiernamente reconhecido no campo da filosofia, mas é principalmente no âmbito teológico e místico que são mais enfatizadas as contribuições oriundas desse sábio homem. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 118-139, jul./dez. 2010
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Notória também é a distinção que ele faz na temática sobre o conhecimento de Deus. Pois, para ele, o conhecimento de Deus começa com a via positiva ou catafática e termina com a via negativa ou apofática. Veja o que se afirma: O método catafático consiste em ir afirmando de Deus as perfeições que se encontram nas criaturas, escolhendo as mais elevadas, tais como a bondade, a sabedoria, a vida, a unidade etc [...]. Todavia, uma vez que o ser divino, como ser infinito, não se reduz a nenhuma das coisas finitas nem tampouco à sua totalidade, mas transcende todas elas, Deus é, propriamente, inominável. Por esse motivo, temos necessidade de recorrer ao método ou caminho apofático, que consiste em negar no que se refere a divindade tudo aquilo que em qualquer perfeição, aos olhos do homem, existe de imperfeição [...] consiste em descrever de Deus aquilo que ele não é, terminando assim no silêncio místico, ou seja, a apreensão totalmente desnudada, direta, embora além de qualquer possibilidade de conhecimento (PSEUDO-DIONÍSIO, 2004, p. 6).
Já detecta em Pseudo-Dionísio a não pretensão de manipular Deus, muito pelo contrário, o reconhecimento de que o inefável está muito para além de todas as tentativas de compreensão humana. Logo, o que se sabe acerca de Deus jamais esgota sua “deidade”; portanto, o sentimento de contemplação é a via não de conhecer Deus, mas de sentir a presença do “totalmente outro” na experiência mística. 2.2 Falar de Deus em Tomás de Aquino? Com Tomás de Aquino, o maior expoente entre os escolásticos, pretende-se abordar a questão: como falar e conhecer Deus? Tomás é conhecido pela enorme obra Summa theologiae, na qual esclarece numerosas questões sobre a doutrina cristã. O aquinense elabora cinco vias para justificar logicamente e 124
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racionalmente a existência de Deus pelo caminho a posteriori, ou seja, da criação para o Criador. Tais provas ficam explícitas na questão II, artigo III da Suma teológica, em que o autor discorre detalhadamente sobre cada uma delas. Cada uma merece ao menos uma citação breve: a primeira é a do motor imóvel; a segunda, da causalidade eficiente; a terceira, do caminho do ser possível e do ser necessário; a quarta procede dos graus que se encontram nas coisas; e a quinta e última via detecta o governo ou a ordem do mundo. Especificamente na questão XII da Suma teológica Tomás explicita em 13 artigos como Deus pode ser conhecido pelo gênero humano. Vale citar a passagem do artigo XI desse grande escritor: Ora, é manifesto que a divina essência não pode ser conhecida pelas naturezas das coisas materiais. Pois, como já demonstramos, o conhecimento de Deus, por meio de qualquer semelhança criada, não é a visão da sua essência. Por onde, é impossível à alma do homem, nesta vida, ver a essência de Deus. [...]. Logo, ser a alma elevada até ao supremo inteligível, que é a essência divina, não lhe é possível enquanto viver esta vida mortal (AQUINO, 1980, p. 103).
Tomás evidencia algumas relações entre Deus e a criação. Para esse escolástico, não há identidade entre Deus e as criaturas, pois o Ser Supremo, em sua condição divina, se difere em sua essência da criação. Porém, não existe equivocidade, pois se pode chegar ao Criador demonstrando sua imagem refletida no mundo; foi isso que fez Tomás nas cinco vias que foram elucidadas anteriormente. Portanto, o caminho mais seguro para falar de Deus e das coisas criadas é a relação de analogia; aquilo que se fala das criaturas pode-se falar de Deus, mas jamais da mesma forma e intensidade. Na teologia tomista, por mais que se especule a respeito de Deus, fica explícita novamente e é assegurada, como também em Pseudo-Dionísio, a transcendência de Deus, realçando o sentido da teologia negativa. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 118-139, jul./dez. 2010
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2.3 Como falar de Deus em Kant? Na modernidade desponta a ilustre figura do filósofo de Königsberg: Immanuel Kant. Esse filósofo possui três grandes obras: A crítica da razão pura, de 1781; A crítica da razão prática, de 1788, e A crítica da faculdade de julgar, de 1790. Em sintonia com o tema desse esboço, ater-se-á a uma análise de A crítica da razão pura e da forma como a temática acerca do conhecimento de Deus é tratada nessa obra. Kant tornou-se conhecido pela “virada gnosiológica” que suas reflexões ocasionaram. Agora o conhecer inicia-se com os dados da sensibilidade, oriundos do tempo e do espaço, que depois são subsumidos numa das categorias do intelecto: “sem sensibilidade nenhum objeto nos seria dado, e sem entendimento nenhum seria pensado. Pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas” (KANT, p. 92, 1999). Para a metafísica tradicional, a razão busca três conhecimentos fundamentais: a alma, o mundo e Deus. Porém, Kant é categórico ao afirmar a impossibilidade de conhecer esses objetos no âmbito da razão pura, pois ambos estão fora da experiência possível. Portanto, pode-se falar deles, mas jamais conhecê-los. Para o filósofo de Königsberg, é impossível demonstrar racionalmente a existência de Deus, da alma e do mundo, logo, poderia dizer que esse pensador alemão seria agnóstico ou ateu? Muito pelo contrário, Kant apenas pretende esclarecer até que ponto devem ser respeitados os limites da razão. “[...] jamais ousarmos elevar-nos com a razão especulativa acima dos limites da experiência” (KANT, p. 42, 1999). 2.4 Como falar de Deus em Karl Popper? Karl Raimund Popper, quase na mesma linha de Kant, delimita os horizontes da ciência. Para ele, no início de todo o conhecimento o que existe são as hipóteses. Portanto, as teorias não se concluem da 126
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experiência, pois essas, antes de serem verificadas, possuem caráter hipotético. Em sua obra Conhecimento objetivo traz a seguinte afirmação: “Todas as teorias são hipóteses; todas podem ser derrubadas”. Popper, em seu racionalismo crítico, desenvolve como critério científico não mais o verificacionismo, mas a falseabilidade, que agora passa a ser o que serve na apreciação de uma teoria científica: “O falsificacionista exige que as hipóteses científicas sejam falsificáveis, no sentido que discuti. Ele insiste nisto porque é somente excluindo um conjunto de proposições de observação logicamente possíveis que uma lei ou teoria é informativa” (CHALMERS, p. 67, 1993). No âmbito da racionalidade científica empirista, a verificabilidade de um enunciado é a condição necessária para que seja considerado como dotado de sentido. A afirmação da existência ou da não existência de Deus ou do conhecimento de sua essência é privada de sentido, pois há impossibilidade lógico-empírica de verificação ou de falsificação. “Deus é, então, um pseudoproblema filosófico”. Sábia é a afirmação que Wittgenstein faz no prefácio de sua obra Tractatus lógico-philosophicus: “O que se pode dizer, em geral se pode dizer claramente; e o que não se pode falar, se deve calar”. Portanto, concluímos que a atitude de absolutizar algumas imagens de Deus racionalmente é inconcebível, pois tanto a filosofia como a teologia sempre acentuaram que no discurso analógico sobre Deus há mais diferenças que semelhanças. E um Deus totalmente compreendido deixa de ser Deus.
3 Perspectiva da Teologia “Discursar” a respeito de Deus para a teologia é primeiramente uma postura de fé. Para Clodovis Boff, ela tem a primazia (BOFF, 1998). Falar de Deus a partir da teologia, contrariamente ao que parece à primeira vista, não é fácil. Portanto, não se falará aqui de Deus como mero objeto produzido pela especulação da razão (crítica feita por REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 118-139, jul./dez. 2010
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Kant), mas como aquele absoluto que pode ser parcialmente alcançado, mas nunca suficientemente conhecido, pois o criador abarca a criatura e não o contrário. O presente trabalho delineará o pensamento teológico de algumas figuras importantes do debate atual. Para João Batista Libânio, um discurso sobre Deus totalmente puro é impossível, pois estamos mergulhados na história. Sempre haverá infiltrações ideológicas. Segundo o teólogo, é necessário ter consciência crítica e discutir os diferentes pontos de vista sobre Deus para baixar o teor ideológico. Enfim, concretamente, é preciso determinar o aspecto de Deus que se quer discutir (revelação, salvação, encarnação), para perceber aí o jogo ideológico possível.4 Na vertente da Teologia Espiritual, França Miranda argumenta que os efeitos da ação de Deus podem ser captados à luz da fé. Deus atua na História, e sua ação está descrita em toda a Sagrada Escritura. Para Miranda, é o Espírito Santo que possibilita o conhecimento dos efeitos da ação de Deus no Mundo. Também o discurso teológico deve partir, como os outros, das consequências da presença atuante do Espírito, só que em seu nível epistemológico próprio. A saber, os efeitos da ação divina são captados e interpretados à luz da fé, dom de Deus que capacita o homem a ultrapassar uma perspectiva meramente humana e olhar o fenômeno na ótica divina. Captar os efeitos da ação do Espírito enquanto potencializado pelo mesmo Espírito é o que permite ao ser humano um discurso rigorosamente teológico sobre a experiência de Deus (Perspectiva Teológica, a. 30, n. 81, maio/agosto 1998, p. 161-181). João Batista Libânio, em resposta a questão enviada por e-mail: “Como não manipular Deus do ponto de vista teológico? Todo o discurso a seu respeito seria uma ideologia? Resposta: BH, 5 de maio de 2009. Angelo: “Pureza total de um discurso sobre Deus é impossível enquanto estivermos na história. Certa dose de ideologia penetra tudo. A defesa que temos é a consciência crítica que procura diminuir os aspectos ideológicos. Daí a necessidade do diálogo entre os diferentes discursos. Para uma resposta concreta, teria que ver sobre que ponto de Deus se discute para perceber aí o jogo ideológico possível.” 4
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Mesmo partindo da presença do Espírito, que conduz ao conhecimento de Deus, não é possível evitar, em último caso, manipulação da interpretação dos efeitos de Deus. Quando o ser humano se sobrepõe na compreensão do que seja a ação de Deus no mundo, fechando-se a dinâmica do Espírito, o discurso sobre Deus se torna mero palavrório. Numa linha atual e mais popular da espiritualidade se tem a figura de Anselm Grün. Para ele, todos possuem alguma imagem de Deus; elas são necessárias enquanto fazem a mediação entre o homem e Deus; no entanto, aquelas são provisórias e devem ser ressignificadas à medida que o discurso sobre Deus se alarga (GRÜN, 2001). O teólogo espanhol Andrés Torres Queiruga afirma que é de suma importância destruir nossos ídolos, a fim de que, aceitando os novos dados, deixem espaço para o Deus sempre maior. Não se pode cair na ideologia de preservar uma imagem de Deus apenas para servir de bengala às convicções pessoais mais convenientes. O teólogo afirma categoricamente: Resistir sistematicamente a toda crítica pode parecer zelo pela glória de Deus, porém, geralmente, indica o narcisismo de quem não quer renunciar às próprias concepções e a insegurança de quem não se atreve a abrir-se ao processo inacabável de “deixar Deus ser Deus”, expondo-se ao rompimento de suas imagens, uma após a outra (QUEIRUGA, 1993, p. 29).
Queiruga afirma ainda que só a partir do momento em que reconhecemos Deus como Pai é que derrubaremos as falsas imagens de Deus, pois todos se veem como filhos muito amados e participantes desse amor (QUEIRUGA, 1993, p. 100-102). O conhecimento de Deus, para a Teologia da Libertação, segue seu método peculiar adaptado à realidade dos pobres. Aquela interpreta o concreto da história e, acima de tudo, o sofrimento do pobre. Não é possível conhecer a Deus negligenciando a dor alheia. Portanto, para se chegar a Deus é de suma importância ir ao encontro dos expurgados do REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 118-139, jul./dez. 2010
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sistema; esta é a condição de possibilidade para conhecer Deus. Onde está o pobre também está Deus (SOBRINO, 1994). No entanto, como a discussão gira em torno de como falar de Deus sem cair em ideologias anacrônicas, o pobre se torna o lugar epistemológico para a elaboração de uma teologia. Toda elaboração conceitual possui uma ideologia, e, mesmo falando do pobre sofrido, também se parte de um lugar; é o momento de ideologização do pobre. Esse é sem dúvida um limite, mas a Teologia da Libertação não para no pobre, porque sua reflexão parte de uma vivência sadia da história humana, que aponta para algo que transcende essa mesma história; logo, a salvação do homem é integral. O pobre não pode permanecer em seu estado, ele é levado a, já neste mundo, sentir-se humanizado. Tal via seria o ponto de partida para diminuir o grau ideológico para o conhecimento de Deus. Como foi afirmado no início, um discurso totalmente puro sobre Deus não é possível. Muitos tentaram ao longo da história; e, por mais sinceros que fossem, vez ou outra a compreensão se mostrou débil, incapaz de explicar os desígnios de Deus. Por isso, nunca haverá um discurso totalmente puro a respeito desse grande mistério.
4 Perspectiva pastoral “Quando quero rezar e não há uma Igreja por perto, me ajoelho em frente a uma árvore e rezo.” Cartola
Não há possibilidade de falar de Deus hoje em dia sem se deixar tocar por Deus e a partir deste toque agir na pastoral em nossos grupos, comunidades, paróquias e dioceses. A partir do hálito de vida soprado em nossas narinas por Ele, nossa sensibilidade se recusa a ver a condição humana fora da relação com o cosmo: com toda a criação, com todos 130
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os seres viventes. É fazer valer o pedido do Salmo 27,4: “Uma coisa peço a Iahweh, a coisa que procuro: é habitar na casa de Iahweh todos os dias de minha vida para gozar a doçura de Iahweh e meditar no seu templo” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2002). Leonardo Boff, afirma que: Nós brasileiros, mais do que um povo religioso, somos um povo místico. Nós não acreditamos em Deus, isso é coisa dos europeus, nós sentimos Deus. Sentimos Deus na pele, no corpo, e por isso toda hora falamos: vá com Deus... fique com Deus... Deus está dentro do nosso cotidiano na vida. Não dá para entender o mundo sem colocar Deus dentro. Jesus Cristo apresenta Deus como Abbá, um pai que tem as características de mãe. Como uma galinha que cuida dos pintinhos, como o pai do filho pródigo que acolhe o filho: olha na esquina, ele está chegando, corre ao encontro cheio de misericórdia, isto é, cheio de entranhas, coisas que as mulheres têm. É um Deus-ternura, mais mãe do que pai, ou então um pai-maternal e uma mãe-paternal... Encontrar Deus não só nas Escrituras Sagradas, nos textos da Tradição, na hóstia consagrada, no cálix bento, mas encontrar Deus na natureza, na pedra, no sol, encontrar Deus nos pobres, de tal forma que, abraçando o mundo, está se abraçando Deus (PROGRAMA, 2009).
Falar de Deus hoje deve ser o ponto de partida na realidade em que estamos plantados, na realidade em que somos adubados, na realidade em que brotam os frutos da nova estação, na realidade em que devemos ser podados e cortados para que uma nova vida germine. Esta realidade compreende um mundo em que a economia é globalizada e excludente, a técnica é acelerada, a comunicação é sem fronteiras e há um rápido crescimento do pluralismo religioso. E podemos dizer que o tempo ainda não é o de negar a razão, mas não podemos viver a ditadura da razão. A dor do mundo está aí na nossa frente. Os valores não são animados e empurrados somente pela ética, mas sim pelo coração, pelo REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 118-139, jul./dez. 2010
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sentimento, que está diretamente enraizado na concepção que temos de Deus. O mundo é partilhado vergonhosamente pelo G-8 e cortejado pelo G-20, e quem deveria tratar dos assuntos referentes à humanidade e à vida do Planeta seria a ONU, mas isso, infelizmente, é um sonho que tão cedo não veremos realizado; precisamos, todavia, estar atentos como as virgens prudentes do Evangelho. Falar de Deus hoje é não esquecer as nossas matrizes culturais: indígena, europeia e africana. Elas nos lembram todos os dias que somos o povo mais propenso ao diálogo e ao encontro, pois estamos juntos e misturados na dinâmica da vida. Somos como o trabalho das mulheres na produção da panela de barro em Goiabeiras, Vitória/ES; que tiram do barro, do mangue e das árvores do mangue o necessário para moldarem o símbolo que ilustra tão bem a cultura capixaba e que embeleza a culinária deste mesmo povo; é um trabalho honroso e divinal, que mantém viva a memória daquelas outras tantas paneleiras que iniciaram a tradição da fabricação das panelas de barro conhecidas mundialmente. E elas são descendentes de indígenas, de europeus, de africanos; por isso, a moqueca capixaba é a melhor moqueca do mundo e o sexto melhor prato para ser apreciado, segundo a OMS, pois não engorda e é leve. Na raiz de tudo isso está a disponibilidade, o empenho e a garra de gerações inteiras de mulheres, que, assim como Sefra e Fua, ajudam a dar à luz o sonho da posteridade; ao perpetuarem este sonho e ao fazerem feliz todo um povo, aproximam-se muito de Deus e veem a Deus mais do que o faz a maioria de nós. Falar de Deus hoje é percorrer todo o projeto de salvação, cuja prática e pedagogia libertadora está implícita e explícita na Primeira e na Segunda Aliança, no Concílio Vaticano II, nas conferências de Medellín, Puebla e Aparecida, operando em nós uma transformação, impulsionando-nos para a prática pastoral: para que todos tenham vida e a tenham em abundância. Que rezem, orem o Pai Nosso, mas reivindiquem a justiça e a solidariedade do Reino, o Pão Nosso.
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4.1. Quem, afinal, é Deus? “Nosso Deus é o artista do Universo. É a fonte da luz, do ar, da cor. É o som, é a música, é a dança. É o mar, jangadeiro e pescador. É o seio materno sempre fértil, é beleza, é pureza e é calor.” Zé Vicente
Ele sempre irá responder: “Eu sou aquele que é!” (Ex 3, 14). Ele é realidade transcendente. Sendo transcendente, nunca saberemos de fato o que ou quem é Deus, só sabemos daquilo que não é, pois a nossa ideia de Deus é sempre limitada, Ele está além de tudo o que possamos sonhar ou pensar ser. Mas o desejo que possuímos é o de que, da mesma forma que Jesus, nós também possamos crescer em graça e em sabedoria, por uma intimidade profunda com Ele, com base na qual a nossa existência será inspirada, e poderemos, portanto, chamá-lo de Abbá. Na América Latina e no Caribe, diferentemente do que ocorre na Europa, Deus é aquele que escolhe os pobres (não são os pobres que escolhem a Deus), pois aqui, neste continente, a pobreza é institucionalizada. Somos um continente de hapirus (os mais pobres – pessoas desalojadas, sem terra, excluídas nas cidades e nos campos), onde desde cedo, por causa do batismo, alimentamos a vontade de construir uma sociedade distinta, sem exploradores e explorados; uma terra sem males. O Deus que foi passado para a geração que nasceu no Brasil nos anos 1970 e era jovem nos anos 1980 foi o Deus da Teologia da Libertação: divinamente humano, humanamente divino; próximo de seu povo, em suas lutas, em seus sorrisos, em seus martírios. Um Deus que entrava nas casas através da Bíblia traduzida para o português e nas mãos do povo. E lá ia o povo se reunir debaixo de uma árvore, para se encontrar, sorrir e celebrar a vida de um jeito simples, despojado, de analfabetos a homens novos, de analfabetas a mulheres novas. Eram as REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 118-139, jul./dez. 2010
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comunidades eclesiais de base se espalhando por todo o Brasil, sofrendo na pele perseguições, a exemplo das Primeiras Comunidades, por causa do Reino, sendo a voz profética num tempo em que o milagre era economicamente favorável às elites nacionais, fazendo com que os ricos se tornassem cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Foi um período profético. Deus caminhava junto. Ele via a miséria do povo, ouvia seu grito por causa dos seus opressores e descia a fim de libertar. Cuidava das feridas e soprava, beijava e abraçava, e os agentes de pastoral iam em frente, havia um ardor missionário contagiante, pois acreditar em Deus sempre foi uma opção de vida. O convite para participar da messe era feito, muitas vezes, com o testemunho daqueles que tombaram e daqueles que insistiam em continuar, mas aceitar ou não sempre foi uma escolha pessoal. Antes do Concílio Vaticano II se tinha uma atitude de fé que levava a acreditar em Deus envolvendo razão e levando o ser humano a aprender uma doutrina; esta, por sua vez, conduzia a um saber sobre Deus e nada mais. Com o Concílio Vaticano, Medellín, Puebla e Aparecida, a atitude leva a comprometer-se com Deus, envolvendo todo o ser; este desenvolve uma prática de vida que o conduz à conversão, à mudança de dentro para fora. José Maria Vigil, no que refere à ação pastoral, nos diz que: Para o Jesus histórico o Deus do Reino é o centro, e não há nenhuma outra mediação para ele senão a promoção de seu próprio Reinado. A missão de Jesus não é outra senão o anúncio e a promoção desse Reino. [...]. Na linguagem do evangelho de Jesus, Deus é sempre o Deus do Reino, e o Reino é sempre o Reino de Deus, de forma que o teocentrismo e reinocentrismo se implicam mutuamente. [...]. Esse foi o tema de sua pregação, sua obsessão, seu sonho, a paixão que o movia, a causa pela qual viveu e lutou, aquilo que em sua vida teve valor absoluto para ele. A figura de Jesus não foi a do fundador de uma religião ou de uma Igreja, e sim a de um profeta apaixonado pelo Reino de Deus, causa última que o fez viver e morrer (VIGIL, 2006). 134
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“A ação de Deus se dá através da nossa ação. E pode se perguntar: ‘Deus faz milagre na História?’. Faz! Mas jamais fora das coordenadas da História” (TAVARES, 2005). 4.2 Um Deus para hoje “No chão da vida nasce o Povo de Deus. No Deus da Vida nasce o Povo dos Céus.” Emerson Sbardelotti / Lula Barbosa
Qual é a imagem de Deus que nós temos? Qual é o conceito que temos de pastoral? Perguntas importantes para a nossa caminhada enquanto seres humanos, para o nosso artigo, para a nossa vida em grupo, em comunidade. A imagem de Deus na Primeira e na Segunda Aliança que se propõe e que se aproxima mais de uma pastoral comprometida com o Reino é esta: a) Na Primeira Aliança, o grande perigo para Israel era contaminar Iahweh com os cultos da fecundidade. A paternidade divina surge fundamentada na saída do Egito. Como se disse anteriormente, Deus escolhe os hapirus. Os profetas usarão expressões cheias de ternura para significar esta paternidade, que na verdade é maternidade. b) Na Segunda Aliança, teremos a experiência fundante do Abbá em Jesus. Esta vivência constitui a intimidade original e profunda de sua personalidade. Por causa dela Jesus cria uma reação em cadeia, contaminando todo o seu grupo de amizades, levando-os à radicalidade infantil de chamar Deus de papai, uma experiência única. Deus é para sempre definido como paternidade revelada e entranhável, como fonte de ternura e confiança. Deus é o que alimenta o mistério em Jesus e a partir deste se abre para todas as criaturas. Fuentes nos diz que: REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 118-139, jul./dez. 2010
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Etimologicamente, o termo “pastoral” deriva de pastor. No início do seu uso (finais do século XVIII e princípios do século XIX) referia-se basicamente à doutrina e prática de formar pastores (presbíteros), e ao modo de realizar o ofício da cura animarum (cuidado das almas) próprio do pároco. A partir daí, este conceito foi evoluindo, ganhando grande variedade de significados, alguns reducionistas, outros ambíguos ou mesmo errôneos (FUENTES, 2008).
Uma nova imagem para Deus hoje, uma nova pastoral para hoje só terá sentido se, primeiro, quem busca seus significados souber o quanto significa ser humano. Os profetas da Primeira Aliança e o próprio Jesus sabiam muito bem o que significava ser judeu naquele momento da história da humanidade e a missão que tinham a realizar. Sentiam muito bem a imagem de Deus que os animava. Falar hoje de uma nova imagem de pastoral num mundo globalizado é mais complicado do que se imagina. Com o advento da internet, os diversos estratos da juventude não se colocam mais à disposição para o exercício da fé em comunidade. O sagrado está no shopping center, e a virtualidade é mais próxima do Deus espiritualizado que imaginam para si. Apesar de conhecerem e saberem o que é um pastor e seu ofício, eles residem em sua maioria em cidades populosas, onde dificilmente verão rebanhos e montanhas ao estilo clássico bíblico; portanto, o discurso do Bom Pastor, por exemplo, irá soar apenas como mais uma fábula ou como um preceito moral de fim de história que os mais velhos contam ou contavam. Mas há também os jovens que se sentem atraídos por Deus e estão se colocando à disposição nas mais diversas equipes e pastorais. E, conscientes do papel que desenvolvem, vão dando um novo vigor à caminhada de suas comunidades, paróquias, dioceses, independente de serem ou não apoiados pela hierarquia, o que sempre representou um grande problema, principalmente para as Pastorais da Juventude, mas que também sempre foi encarado como desafio a ser vencido. E 136
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foram e venceram. Olhe a quantidade de jovens que participaram do último Intereclesial das CEBs em Porto Velho em julho de 2009, e que participaram do Encontro Nacional de Fé e Política em Ipatinga em novembro de 2009 e também do Fórum Social Mundial na Grande Porto Alegre em janeiro de 2010. O Espírito de Deus sopra sempre onde quer. Não há como controlar. Só podemos sentir e nos maravilhar e seguir em frente. A experiência de Deus é senti-lo em intimidade profunda, amorosa, através da fé em Jesus e colocado em prática nas ações comunitárias em que estivermos inseridos. O encontro e o diálogo com Deus na oração nos impulsiona todos os dias a irmos em busca do irmão, do outro. Pois Deus se manifesta na realidade humana, em sua cultura e em sua história sem excluir ninguém. Ele aglutina, sorri, se compadece, abraça e beija. A ação pastoral enquanto serviço emanado do amor é uma autêntica vivência de Deus.
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Falar de Deus na história: o Deus dos pobres como manipulação do deus verdadeiro?
TALK ABOUT GOD IN HISTORY: THE GOD OF THE POOR AS MANIPULATION OF THE TRUE GOD? Abstract In this current article we would like to demonstrate to the readers the wealth in reflection about faith and God, which emerges from the debates in graduation courses in theology. We propose to try to join several different perspectives around a common theme, for here we intend to place different points of view which try to justify one same theological conception. We want to express the images of God that we have, about our own way we use to talk about Him. And we are provoked by the doubt whether the “God of the poor” would not be an ideological manipulation of the true God either. For so we think about the theme from 4 perspectives: Biblical, Philosophical, Theological and Pastoral. Key words: Image of God. True God. God of the poor. Manipulation of God.
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AS RAÍZES DA CRIAÇÃO Francimar Arruda*
Resumo Este texto tem como meta revelar as bases do impulso criador, que aniquila o artista, consumindo-lhe todas as suas energias, e lhe renova suas forças vitais. Queremos levantar a hipótese de que a crueldade, categoria trabalhada por Nietzsche, é um fator constitutivo da arte e, sobretudo, uma de suas raízes. Nossa intenção não é esclarecer como a crueldade se faz presente nas diversas manifestações históricas, mas mostrar como o próprio processo de criação, enquanto experiência vital, contém a crueldade. É no processo criador que podemos claramente apreender o impulso de morte gerando o impulso de vida; nessa dialética, a síntese é a obra de arte, e vamos capturá-la no processo ético e estético da crueldade. palavras-chave: Filosofia. Arte. Crueldade.
A atividade de criadores como Van Gogh, Pablo Picasso, Antonin Artaud, Fernando Pessoa, Nietzsche e tantos outros, por ser marcada por uma espécie de obsessão, em que o impulso criador tanto parece aniquilar o artista, consumindo-lhe todas as energias, quanto lhe renovar as forças vitais, nos fez levantar a hipótese de que a crueldade é um fator constitutivo da arte, uma de suas raízes. Nossa intenção não é esclarecer como a crueldade se faz presente na arte trágica, em suas diversas manifestações históricas, mas, sobretudo, revelar como o próprio processo de criação – enquanto experiência vital – contém a crueldade.
Mestre em Filosofia, Doutora em Teoria do Imaginário (UFRJ). Pós-doutorado em Filosofia na Université de Bourgogne, França. Autora de: “Algumas palavras sobre Bachelard”, “O encontro entre poesia e pensamento”, “Algumas reflexões sobre a arte”, “As possíveis tensões entre sentido e alteridade”, “Les diableries de l’humour”, “La rencontre avec Bachelard”, “La question des complexes et leur dimention esthétique”, entre outros. *
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As raízes da criação
Em O teatro e seu duplo, Antonin Artaud traça uma diferença entre duas concepções de crueldade. Enquanto uma, de natureza psicológica e moral, vincula-se ao sadismo, à violência, à perversão, a outra diz respeito a uma concepção do ser. E, aliás filosoficamente falando, o que é a crueldade? Do ponto de vista do espírito, a crueldade significa rigor, aplicação e decisão implacáveis, determinação irreversível, absoluta. Aquilo que age sob a forma de uma determinação absoluta é a própria vida. No fogo da vida, no apetite da vida, no impulso irracional para a vida existe uma espécie de maldade inicial: o desejo de Eros é uma crueldade pois passa por cima das contingências; a morte é crueldade, a ressurreição é crueldade, a transfiguração é crueldade (ARTAUD, 1984, p. 131).
Neste sentido, a crueldade relaciona-se a uma disposição estética ou criadora, a qual funda-se mesmo numa concepção ontológica, em que a própria vida é vista como crueldade. E finaliza Artaud: “Portanto eu disse crueldade como poderia ter dito vida ou como teria dito necessidade, porque quero indicar sobretudo que para mim o teatro é ato e emanação eterna, que nele nada existe de fixo, que eu o indico a um ato verdadeiro, portanto vivo, portanto mágico (ARTAUD, 1984, p. 145). Esta concepção de crueldade está presente também em Nietzsche. Assim como Artaud, aquele filósofo atribui à noção de crueldade um duplo sentido. Em Nietzsche, a compreensão de vida como vontade de poder comporta uma dimensão cruel, já que implica luta, tensão, violação: a vida mesma é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e, no mínimo, exploração. A partir dessa colocação de crueldade, surgiram as seguintes questões que motivaram este trabalho: de que modo, em Nietzsche, a crueldade se mostra como condição da obra de arte? Esta concepção nietzschiana, que admite a relação entre crueldade e criação, encontra repercussão entre os artistas? Se existe uma tal confirmação, será legítimo pensar numa ética da criação, cujo fundamento seria mesmo a crueldade? REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 140-151, jul./dez. 2010
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Francimar Arruda
Embora o poeta e o filósofo diferenciem os dois modos de compreensão da noção de crueldade, tênue é o fio que separa um modo do outro, pois é somente o fato de a vida comportar a luta, a agressividade e a violência que possibilita a existência da crueldade como perversão enquanto passagem súbita do sentimento de impotência para onipotência. A crueldade não diz respeito a um valor moral em si; ela não se funda na inclinação do ser humano para o bem ou para o mal. Pelo contrário, é a essencial imoralidade da vida que funda o problema da crueldade. A obra de Nietzsche tende a refletir as tendências, no século XIX, de constatar a agressividade como constitutiva da natureza humana. Nietzsche, assim como Shopenhauer e Freud, admitem que a crueldade surge como consequência de um instinto selvagem que teve – necessariamente – de ser reprimido para que pudesse existir mesmo a cultura, a civilização. Assim, para Nietzsche, o desejo de poder seria um desejo de vida; não, porém, como muitos compreenderam de uma forma errônea, um poder sobre o outro, mas, sim, um poder sobre si, e é neste sentido que ele é essencialmente ético. A noção nietzschiana de crueldade assemelha-se à interpretação estoica, indicando a insensibilidade à dor e a busca do sofrimento, associando-se ao rigor, à dureza, à determinação ou aplicação absoluta. Conforme define Sêneca (1993), “a crueldade é a excessiva dureza do coração na aplicação das penas” ou como “a inclinação da alma para o partido mais rigoroso” (SÊNECA, 1993, p. 13). Assim, podemos dizer que o conceito nietzschiano de crueldade difere-se do sentido psicanalítico de perversão, relacionando-o a uma disposição criadora, que comporta a agressividade, o rigor, a determinação absoluta, possuindo, assim, um sentido ético e estético. A noção de crueldade se encontra em diversos textos de Nietzsche1
Identificamos a presença da noção de crueldade nos seguintes textos: O nascimento da tragédia, Humano demasiado humano, O viajante e sua sombra, A gaia ciência, Vontade de potência, Para além do bem e do mal e Assim falou Zaratrusta. Mas o texto que mais desenvolve este conceito é a Segunda Dissertação de A genealogia da moral. 1
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e possui um significado preciso, isento de polêmicas. Isto porque o próprio Nietzsche esclarece o sentido de sua tese: a crueldade (em A genealogia da moral) é pela primeira vez revelada como um dos mais antigos e indeléveis substratos da cultura (1985, p. 138). É por ser o fundamento da cultura que o tema da crueldade pode se mostrar tanto como um instrumento de crítica à Moral quanto como um modo de afirmação da vida, apresentando-se como um traço do tipo artista-nobre. Assim, a primeira direção possuiria um aspecto negativo, operando a crítica dos valores; já a segunda, um aspecto positivo, revelando uma nova determinação do agir humano. No entanto, um sentido se relaciona ao outro; porquanto, para Nietzsche, é a tentativa de negar o sofrimento essencial à vida que torna o ser humano cruel, um ser que extrai sua potência da dor. A assunção da crueldade da vida, pelo contrário, torna o homem criador: o criador compreende que toda elevação da vida exige a dor, exige um sacrifício superior. É somente a partir de uma disciplina rígida, de uma determinação implacável, que se torna possível produzir novos valores, novas interpretações da vida. É esta determinação, esta ausência de compaixão com o que já não corresponde a uma afirmação, esta submissão à necessidade da vida, que Nietzsche chamou de dureza. “Todos os criadores são duros”, afirmará Zaratrusta. O primeiro sentido possui maior abrangência que o segundo, por relacionar-se à história dos valores morais, à religião, à psicologia. Como tal, a noção não somente opera uma crítica como também revela que a crueldade constitui um traço essencial de toda Moral. Assim, a crueldade como característica básica da natureza humana deveria ser demonstrada não apenas com base nos textos de Nietzsche, mas sobretudo na experiência da criação artística. O tema da vida como dinâmica de criação e a fusão entre o gesto estético e o ético deveriam se revelar com maior precisão naquele modo de ser que deixa transparecer com maior intensidade a ideia de criação. O artista torna-se, desta forma, o modelo da ética nietzschiana, aqui denominada de ética da crueldade, por afirmar a dureza como disposição fundamental do criador. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 140-151, jul./dez. 2010
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Uma tal hipótese funda-se no pressuposto de que a arte contém um componente de crueldade. Ao falarmos que a arte contém a crueldade, não nos referimos nem às inclinações para as perversões presentes em certos criadores nem à relação entre agressividade e sublimação como fundamento da arte nem ao efeito da obra sobre o público-expectador nem à teatralização do sofrimento presentes em certas experiências contemporâneas tampouco a um estilo. A relação entre arte e crueldade não se resume, por conseguinte, nem na identificação de traços de violência na obra de arte nem na inversão dos valores, operada na Modernidade, que tende a elevar a categoria do feio, do mal, do grotesco, à condição de Belo. A partir, então, desta delimitação é que se inscreve o sentido ético-estético da crueldade. A relação entre crueldade e arte se funda na compreensão da vida como criação. Em Nietzsche, a noção de crueldade resgata uma disposição ativa, própria ao criador e, como tal, aponta para uma ética-estética caracterizada pela afirmação da dor como fator constitutivo da existência. É a partir da dor que se dá a metamorfose, a transfiguração da existência: transformar é sofrer. Crueldade é a dureza, compreendida como uma ausência de compaixão que permite destruir o já estabelecido, a forma, o ser, em prol do devir, da transfiguração da vida. Assim, ao falarmos que a arte contém a crueldade, nos referimos à disposição do artista em relação ao obrar. A crueldade está presente na paixão do artista; no desenvolvimento de um talento; na recusa à facilidade e na afirmação da dificuldade como um estímulo; na atividade de concepção e realização da obra; no modo como a obra adquire o caráter de um imperativo, sujeitando o artista, isto é, na forma como a criatura parece conduzir o criador, consumindo-lhe todas as energias e não dando ao artista a possibilidade de deliberar. É este fenômeno que caracteriza o ethos do criador. Por tudo isso, trabalhamos com a hipótese da existência de um vínculo entre a atividade criadora ou criação artística e a crueldade. O tema da experiência da criação, por sua vez, remetendo-se à 144
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noção de criatividade, mostra-se dotado de grande abrangência e complexidade2, seja quando considerado no interior da própria filosofia, seja quando visto sob a ótica da psicanálise, em que se nota uma grande dedicação ao tema, sobretudo ao problema do gênio e da inspiração. A experiência da criação resiste às tentativas de redução, por dizer respeito à própria essência do homem: a necessidade de criar ou de impor sentido e finalidade é algo constitutivo do ser humano. A existência é inconcebível sem sua dimensão criadora. Deste modo, o problema da criatividade cede lugar a uma abordagem que considera o fenômeno da criação a partir de uma ótica existencial. Em suma, adotamos aqui uma solução empregada por Fayga Ostrower (1977) em seu estudo sobre a criatividade: viver é criar. Esta solução se amolda perfeitamente à perspectiva nietzschiana, cujo conceito de vontade de poder se identifica à vida, que contém em si a dimensão criadora. A partir dessa correlação identificamos a crueldade como um traço essencial ao processo de criação. O artista é cruel consigo mesmo ao erigir a sua existência a partir da sua disponibilidade para a criação. A criação comporta a não liberdade do artista e, como tal, aponta para a imoralidade, pois a teoria do livre arbítrio está na base de toda a moral. [...] entre os antigos filósofos, ninguém teve a coragem de afirmar a teoria da vontade que não é livre (isto é, uma teoria que nega a moral); ninguém teve a coragem de definir como um sentimento de potência revela o que há de típico na alegria, em toda espécie de alegria (felicidade): pois a alegria que busca a potência era considerada imoral (ROSSET, 2000, p. 45). A criação artística, então, é o processo pelo qual uma força – uma necessidade interior que quer libertar-se – coage o artista e lhe tolhe a liberdade, não lhe deixando margem para escolha. Conforme afirma Pablo Picasso: 2 Para uma melhor compreensão vale a pena conferir o texto de Daniel Boonstein (1995).
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Se existe uma liberdade naquilo que nós fazemos, essa liberdade reside em libertar qualquer coisa dentro de nós mesmos! E ainda: é preciso ter muito cuidado com o que se faz, visto que é quando nos julgamos menos livres que somos, por vezes, mais livres. Na realidade, não somos mais livres quando sentimos ter asas de gigante, que nos impedem de pisar a terra firme (1968).
Nesse mesmo texto de Heléne Parmelin, Picasso disse..., este afirma que a ausência de liberdade do artista no interior do processo de criação é tal que o pintor chega a declarar: “A pintura é mais forte do que eu, ela me faz fazer isto que ela quer”. Esta frase subverte nossa compreensão do artista como criador, assim como nossa compreensão da criação associada à causalidade. O artista se coloca aqui como o instrumento de uma obra: o eu, cuja força residiria justamente no livre-arbítrio, na capacidade de escolher e decidir a partir da consciência, se retrai frente a uma necessidade mais elevada. É a partir dessa submissão a uma necessidade – o pintar – que Picasso vem a ser o pintor, vem a ser isto que ele é. A tradicional relação de causa e efeito não basta aqui para compreendermos o processo criador, pois, aqui, Picasso nos diz que ele não é o criador, a causa das obras, mas sim que a pintura é criadora. Quer dizer, é a atividade que, por si, gera a circularidade da situação e esta se dá na medida em que é no exercício da pintura que nasce o pintor, e, respectivamente, é com o pintor que nasce a pintura enquanto obra. O pintor é assim, ao mesmo tempo a causa e o efeito, aquele que ordena e aquele que obedece. Quanto mais o pintor libera esta possibilidade de ser, mais ele se torna passível de ser coagido pelo impulso criador. Mas como a pintura pode coagir de tal modo? Como tal atividade pode adquirir o caráter de uma necessidade inexorável? Esta pergunta perde a razão de ser se lembrarmos que, em Nietzsche, todo devir tem o caráter de necessidade. Colocar a questão desse modo é exigir um sentido e um valor previamente colocados antes mesmo da realização da atividade, é operar uma separação entre a ação e o agente e, além 146
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disso, é estabelecer para a ação uma finalidade para além de si mesma. Tal modo de pensar faz-nos recair na ótica do utilitarismo e da moral. Pintura é atividade, ação. O que a atividade da pintura quer? Sem querer cair em tautologia, podemos afirmar que a pintura quer tornar-se pintura, fazer-se visível: ser forma, cor, espaço, visualidade, quer vir a ser. O pintor é um instrumento para tal fim. Toda atividade, em sua aspiração ao ser, possui um modo próprio, um ritmo, um tempo que, como tal, exerce um poder de coação. Ao pintar,3 o pintor parece participar da força criadora que instaura ou determina o ente. Esta força nada mais é do que a natureza. É neste sentido que o próprio Picasso afirma que a natureza é mais forte que o homem, assim como a pintura é mais forte que o pintor. “Queira ou não, o homem é o instrumento da natureza, ela lhe impõe o caráter, a aparência. Jamais poderemos contrariar a natureza... ela é mais forte do que o mais poderoso dos homens; é por isso que devemos ficar sempre de bem com ela” (PARMELIN, 1968, p. 43). O criador experiencia a própria dinâmica da vida enquanto movimento gratuito de geração e destruição. É por esse motivo que, para Nietzsche, a arte se apresenta como um movimento contrário ao niilismo. Não se trata de pensar que a arte combate o niilismo enquanto força presente nos valores morais decadentes ou no ideal ascético. Antes disso, em seu sentido superior e em seus momentos mais elevados, a arte é movimento contrário por afirmar plenamente a atividade, o devir, sem buscar um sentido para além da atividade, para além de si mesma. A pintura faz o que ela quer: ela quer plenamente a si mesma, quer um máximo de potência. Podemos interpretar a frase de Picasso afirmando que a atividade pintura é mais forte que o eu, sobretudo pelo fato de ela dar origem, identidade, determinação a este eu, quer dizer, por ela ser o lugar onde se dá a realização do ser, enquanto que o eu não é nada,
Essas reflexões podem ser estendidas a toda produção de arte, tais como a escultura, a literatura e a poesia, entre outras. 3
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ele é somente aquilo que carece de determinação, o animal indeterminado, como também é o lugar do erro, do ressentimento e do ideal ascético: o que atribui valor ao indivíduo é justamente o seu grau de entrega a este devir ou a uma tarefa. Neste sentido, a pintura é mais forte por ser o lugar da verdade, isto é, da realização do ser. Assim, a realização fenomenal do ser se dá numa estrutura marcada pela ausência de liberdade e, consequentemente, pelo sofrimento. Porém, é nesta submissão ou obediência que o homem passa a gozar e exercer a força que lhe é mais própria: o sofrimento transfigura-se em alegria, sentimento de potência, maestria, responsabilidade. No entanto, na medida em que o artista é o instrumento da obra, ele é também inocente. Esta fusão entre inocência e responsabilidade é o que configura o trágico: a ausência de uma finalidade prévia ou transcendente para a ação se alia à ausência de liberdade, já que o indivíduo não distingue claramente entre a esfera que pertence a si mesmo e aquela que diz respeito ao outro. Se a crueldade nada mais é do que uma vontade de aprofundamento, o aprofundar se mostra aqui como uma entrega, como um deixar agir em si mesmo uma força que determina, impõe sentido e transfigura. A pintura leva o pintor a fazer o que a pintura quer, ou seja, pintar. Mas pintar é também o jogo da elaboração, da seleção, da destruição, da expressão, de composição da forma. A atividade criadora implica obedecer às regras deste jogo, e este obedecer é também aplicação, disciplina, rigor, determinação implacável. Quer dizer, por um lado, o artista deve ser tão forte quanto a pintura para ter o direito a pintar; por outro, deve ser suficientemente fraco para admitir a si mesmo como um instrumento do pintar, como fez Picasso. O querer único que se mostra como uma necessidade: eis a fonte da virtude. Deste modo, a liberdade não se encontraria nem antes nem durante nem depois da realização. A liberdade é, então, o poder dispor de si a fim de tornar possível a realização de um ato, de uma tarefa. Em outras palavras, o essencial é o estar-disposto a superar uma determinada resistência e, para tanto, dispor-se também a sacrificar o bem-estar, a saúde, 148
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a facilidade e a felicidade. Liberdade é, assim, o sacrifício. O sentido superior do sacrifício consiste no aniquilamento da liberdade individual, a fim de atender a um objetivo mais elevado: a autossuperação como dinâmica essencial da vida. Esse objetivo constitui o sentido superior do sacrifício, o qual distingue-se radicalmente do sacrifício moral, que tem como característica um fim consciente e particular a ser atingido. Para formar um novo homem, o pintor, é necessário levar ao extremo a atividade de pintar, isto é, destruir o não pintor. Para tanto, é necessário haver crueldade: a ausência de compaixão para com o eu que quer se conservar. A duplicidade da liberdade consiste no fato de ela ser e não ser, nós a temos e não a temos, nós a conquistamos. “E se a vossa dureza não quisesse fulgurar, cortar e retalhar, como poderíeis, algum dia – criar comigo? Porque os criadores são duros... Duríssimo é somente o mais nobre” (NIETZSCHE, 1981). A crueldade, enquanto alegria, consiste nesta determinação superior, conforme caracteriza Artaud, ou segundo Clement Rosset (2000); a crueldade é a recusa da complacência em relação a qualquer coisa. É sobretudo na atividade artística que o homem exerce este modo superior de crueldade: dureza, afirmação do poder-mais-próprio, disciplina, domínio, extrema exigência, jogo com a incerteza, determinação absoluta, submissão a uma necessidade, arte-superação. Estas descrições apontaram para o sentido geral de nossa tese: a criação artística como modelo para descrever a noção de crueldade e o pensamento ético que aflora da própria criação. Por fim, utilizaremos as palavras de Otto Rank (1984, p. 117), que tão bem compreendeu as raízes do impulso criador, quando nos diz: São raros os homens criadores que não pagam caro a centelha divina de sua capacidade genial. É como se cada ser humano nascesse com um capital limitado de energia vital. A dominante do artista, isto é, seu impulso criador, arrebatará a maior parte dessa energia, se verdadeiramente for um artista; e para o restante sobrará muito pouco, o que não permite que o outro valor possa desenvolver-se. O lado humano é REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 140-151, jul./dez. 2010
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tantas vezes e de tal modo sangrado em benefício do lado criador que, ao primeiro não, cabe senão vegetar num nível primitivo e insuficiente.
Referências ARTAUD, A. O teatro e seu duplo. São Paulo: Max Limonad, 1984. BOONSTEIN, Daniel. Os criadores: uma história da criatividade humana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. NIETZSCHE, F. La naissance de la tragédie. Paris: Gallimard, 1980. ______. Humain, trop humain. Paris: Hachetle, 1988. ______. A Gaia ciência. São Paulo: Hermes, 1981. ______. La volonté de puissance. Paris: Le livre de Poche, 1991. ______. Além do Bem e do Mal. São Paulo: Cia das Letras, 1992. ______. A genealogia da moral: um escrito polêmico. São Paulo: Brasiliense, 1987. ______. Assim falou Zaratrusta: um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. OSTROWER, F. Acasos e criação artística. Rio de Janeiro: Campus, 1990. PARMELION, H. Picasso disse... Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1968. ROSSET, C. O princípio de crueldade. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. ______. Alegria – a força maior. Rio de Janeiro: Relume Dumaiá, 2000. RANK, O. L’art et l’artiste: créativité et développement de la personalité. Paris: Payot, 1984. SÊNECA, Entreviens, lettres a Lucilius. Paris: Robert Lafond, 1993. 150
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THE ROOTS OF CREATION Abstract This text aims to reveal the bases of the creative impulse, which wipes out the artist so much, consuming all his/her energies, as well as renewing his/ her vital strength. We want to raise the hypothesis that the cruelty, cathegory worked by Nietzsche, is a constitutive factor of the art, and especially, one of its roots. Our intention is not to clear up how the cruelty is present in the several historical manifestations, but, to show how the process of criation itself, as vital experience, contains the cruelty. It is in the creative process that we can clearly learn the impulse of death generating the impulse of life; in this dialectics, the synthesis is the work of art, and we will capture it in the ethic and aesthetic process of cruelty. Key words: Philosophy. Art. Cruelty.
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SEGUINDO OS PASSOS DE MARIA: UMA CAMINHADA CHEIA DE FÉ, EMOÇÕES E FATOS SOBRENATURAIS1 Regina Coeli F. Silva*
Resumo Através de alguns textos apócrifos – além dos canônicos –, pretende-se neste escrito mostrar dimensões novas da figura da Virgem Maria, bem como de José, seu companheiro e esposo. Pensado em cinco passos, trata-se essencialmente de um texto reflexivo e espiritual, podendo ser utilizado tanto para reflexão individual do leitor, quanto por qualquer grupo de espiritualidade que dele queira fazer uso. Palavras-chave: Virgem Maria. José. Evangelhos apócrifos. Espiritualidade.
Introdução Inicio dando breves explicações para depois conectá-las com alguns de nossos dogmas mariais. Para tal, terei que fazer uso de textos apócrifos2, que foram silenciados pela Igreja hegemônica, mas por ela aproveitados como embasamento para tais dogmas. O Protoevangelho de Tiago (FARIA, 1989) narra a história de Joaquim e Ana, pais de Maria, cujas imagens são vistas nas igrejas, mas nada se fala do drama vivido pelo casal. Pelo que se depreende do texto, Joaquim afasta-se triste de Ana, num retiro voluntário, após ter suas ofertas 1 Texto elaborado como subsídio para um encontro de espiritualidade do Grupo Ora-Ação, Vitória, ES, maio-junho de 2010. * Graduada em Línguas Neolatinas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Estudou Teologia na mesma Universidade. Autodidata, estuda também os apócrifos. E-mail: sergina.silva@gmail.com. 2 Vejam “Referências”.
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recusadas no Templo, pois não possuía descendência. Ana, por sua vez, lamenta-se por se sentir viúva e estéril. Após várias lamentações (“ais”), Ana recebe a visita de um anjo do Senhor que lhe anuncia o fim de sua esterilidade, ao que Ana promete que levará a criança para servir ao Senhor “[...] todos os dias de sua vida” (FARIA, 1989, p. 33). Ao mesmo tempo, Joaquim também recebe uma visita angélica, comunicando-lhe que sua esposa concebeu. O fato gera polêmica entre os estudiosos e tradutores dos diversos manuscritos, pois Ana teria concebido estando o marido ausente. O tempo verbal empregado no texto é o passado – concebeu –, em lugar do futuro, como querem alguns – conceberá. Ora, se concebeu na ausência do marido, é porque a concepção foi miraculosa. E os milagres se sucedem, sempre tendo os pais envolvidos, para que nada quebre a pureza da menina. Finalmente, aos três anos, Maria é levada ao Templo e lá consagrada para servir ao Senhor, e o sacerdote que a recebe a abençoa, dizendo: “O Senhor exaltou teu nome por todas as gerações. Em ti, nos últimos dias, o Senhor mostrará a salvação aos filhos de Israel.” Quando Maria completou 12 anos, vivendo cercada por fatos miraculosos, os sacerdotes, temendo que sua menarca se desse no Templo, convocaram os viúvos da cidade, e sobre quem o Senhor fizesse um sinal, este seria o marido escolhido para ela. O sinal recaiu sobre José, que se recusou, sob a alegação de ser velho e ter filhos, mas os sacerdotes o amedrontaram, levando-o, assim, a tomá-la sob sua guarda. A nota 3 (FARIA, 1989, p. 42) explica que os filhos de José seriam os irmãos de Jesus. Com mais enfeites, o texto narra agora a Anunciação, a visita de Maria a Isabel, onde há o relato de uma bênção a Maria por um dos sacerdotes do Templo. O interessante aqui é notarmos que quem diz a Maria que ela será bendita entre todas as gerações da terra é o sacerdote. Há também uma observação curiosa na narrativa, que diz: Donde me vem a felicidade de ser visitada pela mãe do meu Senhor? O que está em meu seio saltou dentro de mim para bendizer-te. Maria esquecera-se dos mistérios de que lhe falara o anjo Gabriel. Elevou os
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olhos ao céu e disse: “Quem sou eu, Senhor, para que todas as mulheres da terra me proclamem bem-aventurada?” (FARIA, 1989, XII, 2).
A Visão de José é outro tema estranho aos livros oficiais – José, no instante do nascimento de Jesus, vê tudo parado; nada se move.3 O nascimento de Jesus narrado aqui é interessantíssimo: José sai em busca de uma parteira, encontra-se com uma mulher que lhe pergunta quem vai dar à luz, ao que José responde: “Eu a recebi como minha mulher, mas ela não é minha mulher. Ela concebeu do Espírito Santo”. A narrativa segue dizendo que da gruta saiu uma luz insuportável aos olhos e, quando ela se afastou, apareceu o menino, para espanto da parteira, que não cessou de maravilhar-se, e vai assim ao encontro de uma tal Salomé, que diz: “Tão certo como vive o Senhor meu Deus, se não introduzir meu dedo e não examinar sua natureza, não acreditarei que a virgem deu à luz”. Sob o título “Virgindade de Maria”, encontramos uma Salomé que, ao tocar a genitália de Maria, tem sua mão atingida pelo fogo, o membro desprendendo-se dela. Arrependida, pede perdão a Deus, e um anjo lhe aparece dizendo-lhe que tome a criança nos braços – sendo assim curada e justificada –, mas que não espalhe a notícia enquanto o menino não chegar a Jerusalém. Há também a visita dos Magos, que é quase igual à que estamos habituados a ler. Segue-se o episódio da matança dos inocentes, que é bem diferente, incluindo um trecho sobre Isabel, que, temendo pela vida de João Batista, pediu a Deus que uma montanha se abrisse para escondê-los, e assim se cumpriu, acompanhados por um anjo. Um relato sobre a “Morte de Zacarias” mostra Herodes buscando o menino João e tentando forçar Zacarias a lhe indicar o lugar do esconderijo. Diante da alegação de que não sabia de seu paradeiro, foi então Zacarias assassinado no Templo do Senhor. “Simeão substitui a Zacarias” é o novo título que narra como os sacerdotes encontraram o sangue coagulado Significa que o mundo parou por causa da importância do momento. Tudo ficou em suspenso. 3
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de Zacarias. Três dias depois reuniram-se, e a sorte recaiu sobre Simeão, “[...] que era aquele que tinha sido informado pelo Espírito Santo de que não veria a morte enquanto não visse o Cristo em carne” (p. 62). O Epílogo informa que Tiago escreveu esta história e retirou-se para o deserto até o fim de um tumulto em Jerusalém (p. 62). O que nos passa o “Evangelho de Maria”? Fixa-se em Maria virgem, e não na vinda do Messias! Penso que aqui já temos um começo de caminhada, pois este é um ponto que separa (ou une) os cristãos! Outro ponto que gera controvérsias é a assunção de Maria. Crença dos católicos e escândalo para os membros de Igrejas reformadas históricas. A “dormição” (dormitio) de Maria faz parte da nossa tradição. Vemos Maria levada por Jesus aos céus, onde, ressuscitada, é coroada por Ele como Rainha do Céu. A dormição quase não é mencionada no catolicismo (cf. FARIA, 2009, p. 228).4 Seguindo o mesmo autor, lemos que “muitos fatos da vida de Maria foram transformados em dogmas de fé”. Assim, ainda segundo Faria (p. 229), Maria “[...] evoca, em cada um de nós, o lado mãe que somos ou queremos ser. Esse dado vem completado pela sua liderança apostólica e seu papel importante na vida de Jesus, em várias etapas de sua vida, não somente no nascimento, como soa nos canônicos”. Pelo que percebo, o autor tenta nos mostrar, sem entrar em
Vejam a seguinte explicação: “Maria aparece pela última vez nos escritos do Novo Testamento no primeiro capítulo dos Atos dos Apóstolos: ela está no meio dos apóstolos, em oração no cenáculo, aguardando a descida do Espírito Santo. À concisão dos textos inspirados opõe-se a abundância das informações acerca de Nossa Senhora nos escritos apócrifos, especialmente no Protoevangelho de Tiago e na Narração de São João, o teólogo, sobre a dormitio (passagem da santa Mãe de Deus). O termo dormitio é o mais antigo que se refere ao desfecho da vida terrena de Maria. Esta celebração foi estabelecida no Oriente no século VII, com o decreto do imperador bizantino Maurício. No mesmo século, a festa da ‘Dormitio’ (= passagem para a outra vida) foi introduzida também em Roma pelo papa oriental, Sérgio I. Mas passou-se um século antes que o termo dormitio cedesse lugar ao mais explícito, ‘Assunção’.” Disponível em – http://www.santuariosaojose.com.br/santos/0815.php. Acesso – junho de 2010. 4
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confronto com a tradição da Igreja, que os dogmas limitam a mulher, porque criam a imagem de mulher inacessível, termo que ele mesmo emprega. É lamentável que a Igreja despreze os apócrifos, porque neles encontramos um lado materno mais patente, enfatizam mais a dimensão do apostolado de Maria, mas mantêm a resignação. Caminhar com Maria hoje não é um mero resignar-se à situação ainda imposta pela Igreja. Esse rigor, esse endurecimento diante de alguns acontecimentos do cotidiano parece cada vez mais a voz de uma Igreja insegura. Entretanto, Maria fala. Aparece, para quem crê, aos simples e pobres, aos inocentes, como em Fátima e Lourdes,5 fatos confirmados pela Igreja até com a promulgação do dogma da Imaculada Conceição. Em síntese, o que temos conservado pela voz do povo e que não consta nos sinóticos? a) Ana e Joaquim, esterilidade e milagre. b) Maria criada no templo. c) José velho e cheio de filhos. d) Maria dando à luz, envolta numa claridade que saía de uma gruta;6 o menino apareceu-lhe ao lado miraculosamente. e) Vida de Maria com a família de José. f) Morte de José acompanhada por Jesus e Maria. g) Dormição (uma tradição) ou morte de Maria; levada aos céus por Jesus e por Ele coroada Rainha do Céu (é a assunção, dogma e festa da Igreja católica). h) Maria fala e tem ascendência sobre os apóstolos. i) Primeira manifestação de Jesus (não a Míriam de Magdala, mas à sua mãe). j) Maria encarregada de divulgar a notícia da ressurreição.7
5 Além de aparições mais recentes: em Garabandal, Espanha, nos anos 1960, e em Medjugorje, na Bósnia-Herzegóvina, nos anos 1980. 6 Vejam: gruta, e não manjedoura. 7 Os apócrifos citados por Faria, 2003, cap. 5, são os seguintes: Protoevangelho de Tiago; Evangelho do Pseudo Mateus; História de José, o Carpinteiro; Evangelho Armênio da Infância; Evangelho dos Hebreus; Livro da Infância do Salvador; Pistis Sophia; Aparição a Maria: Fragmentos de Textos Coptas; Lamentações de Maria: Evangelho de Gamaliel; Maria Fala aos Apóstolos: Evangelho de Bartolomeu; Trânsito de Maria do Pseudo Militão de Sardes; Livro do Descanso; O Evangelho Secreto da Virgem Maria; Evangelho Árabe da Infância.
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A partir da nossa cultura e tradição religiosas, Maria ficou, especialmente nas cenas narradas pelos sinóticos, como uma indagação. Qual foi sua reação? Pelos sinóticos, não saberemos; já os apócrifos nos trazem complementos. Imagino-a de pé, diante da cruz, cantando uma canção de ninar para Jesus, sentindo-o pequenino nos braços, e, quando chegou a hora da morte, ela, vendo-o assim adormecido, entregou-o ao Pai.8 Na verdade, ela entregou junto com o Pai seu Filho ao mundo, e isto é importante ser ressaltado. Noutras palavras, esta coparticipação de Maria na vida, morte e ressurreição de Cristo é guiada pelo “sim” a Deus de uma vez para sempre. Neste sentido, Maria foi, da parte humana e criatural, a única que se deu totalmente a Deus a ponto de entregar-Lhe também a vida de seu Filho. Ela é, assim, a resposta esperada por Deus durante séculos (da parte humana). É o motivo da alegria da Criação, a voz autêntica de toda criatura de Deus. Penso que, em Maria, Deus Pai e Criador sente justificada sua expectativa de que, um dia, alguém, totalmente humano e criatural, respondesse um SIM incondicional!
1 Primeiro passo – José, o servo amoroso e obediente a Deus a) A virgindade total de Maria – O cristianismo inicial dos primeiros séculos, em quase sua totalidade, proclama Maria virgem antes, durante e depois do parto. Nos evangelhos do “cristianismo hegemônico”9 encontramos os relatos em Mateus e Lucas (Mt 1,18-25; Lc 1,26-2,19). Como estou diante de pessoas de tradição católica,10 permito-me não
Vejam final do artigo. Esta é uma expressão utilizada por Faria. 10 Refiro-me aos membros do Grupo Ora-Ação. 8 9
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ficar, a todo instante, explicitando as referências escriturísticas. Fiquemos, pois, com os fatos e as reflexões que daí brotam. Em Mateus, é José quem recebe a visitação e está adormecido. O ativo dorme, mas nem por isso deixa de temer11 e obedecer. Por que “o ativo”? Pensemos na situação das mulheres de seu tempo – elas não tinham voz nem vez, eram meros receptáculos do sêmen que o “ativo” lhes depositava; assim, natural seria que a “passiva” é que estivesse adormecida. Por que me refiro a José temente e obediente? Não devemos encarar o temor a Deus como um impeditivo de nossa liberdade, mas coauxiliar da obediência. Aprofundemos um pouco essas noções, porque as traduções costumam dizer “não tenhas medo” e isso limita a extensão do termo, ou seja, este não temer quer significar mais profundamente uma abertura às palavras do anjo, um despojar-se de seus preconceitos, daí podermos concluir que é coauxiliar da obediência, isto é, total atenção – ter os ouvidos abertos, logo, o coração e a mente totalmente inclinados para Deus. Tal foi a atitude de José: desfez-se de seus conceitos anteriores e deixou-se envolver pelo anúncio. Ele também é virgem. Por quê? Foi chamado a participar da vinda do Messias e não se recusou; antes, deu sua adesão de uma vez para sempre. Significa que, em si próprio, em seu interior, a semente do Verbo também se encarnou. À semelhança de Maria, optou por Deus, como uma criança que confia ilimitadamente na palavra de seu Deus e Pai. Nele havia ausência de malícia. Ausência de malícia é não à concupiscência. Não à concupiscência é fiat libertador. “Tornar-se como um destes pequeninos” é ter o coração de criança. É ser virgem diante de Deus!
11 Este verbo está significativamente presente em toda a Bíblia: a) 129 incidências na Bíblia Sagrada (Edição Pastoral), op. cit. Refer. {Obs.: foram pesquisados aqui os seguintes verbetes, além de “temer”: “temerá”, “temeram”, “temerão”, “temerem”, “temeria”, “temeu”, “temia”, “temiam”, “temido”, “temível”, “temo” e “temor” [de Deus].} e b) 101 incidências na tradução de João Ferreira de Almeida, conforme Chave..., op. cit. Refer. {verbetes: “temer”, “temível” e “temor” [de Deus].} À frente faço um breve comentário sobre o sentido da expressão “temor de Deus”.
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b) Em Lucas, o relato é mais longo e adornado, de tal forma que toda a arte que se produziu em torno da Anunciação enfoca sempre Maria recebendo a mensagem. Poucos se lembram de que a situação de José é análoga. Aqui, no entanto, a “passiva” está desperta e dialoga com o anjo, até culminar no reconhecimento da total dependência do seu Senhor12 e seu assentimento, não como algo prefixado ao qual ela tem que se resignar, mas com liberdade para a resposta. Aqui também estamos diante de uma total virgindade original, tal como fomos criados, e a seguiríamos se não fosse por nosso orgulho, que é o nosso maior inimigo; este sim, é o impeditivo de nossa libertação. Perguntemo-nos: em que situações eu me percebo como serva(o) inútil, só tendo valor quando a serviço de Deus? Quantas vezes eu disse fiat ao anjo do Senhor e possibilitei a vinda do Messias no meio que frequento? Será que algum dia entendi o verdadeiro significado do temor a Deus? Alguma vez eu me senti manipulado(a) dentro da minha Igreja para ter medo de Deus, em vez de temê-lO? Como entendemos temor e obediência a Deus após a leitura dos relatos da Anunciação em Lucas e Mateus? Nossa ótica mudou ou ainda é a mesma por causa da educação religiosa que recebemos ao longo de nossas vidas?
2 Segundo passo – O Silêncio de Maria e o nosso silêncio Maria fala pouquíssimo, se tomarmos em consideração apenas o conjunto de evangelhos oficiais, permitido pela Igreja hegemônica. Tal não sucede nos apócrifos, que falam de sua atuação como mulher de José (envolvida com uma família numerosa), mãe de Jesus, sua
Serva, logo, só é útil para servir a Deus, assim como todo ser humano deve ser. Esta é a grande dificuldade para nosso orgulho: entendermos que fora do serviço a Deus somos inúteis. 12
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seguidora, sua apóstola (ao lado de Maria Madalena e outras mulheres que o seguiam de perto). Uma das coisas que nos chama a atenção é que Maria conservava aqueles fatos em seu coração (cf. Lc 2,19.51). Existe algo no meio teológico que se chama “segredo messiânico”: os silêncios de Maria e os pedidos para que se guardassem algumas coisas em segredo (volta dos Magos, por exemplo; sigilo de Salomé para que não divulgasse “as maravilhas” que ela estava presenciando no Protoevangelho de Tiago XX,1-4)13 ou mesmo quando Jesus operava curas e feitos inexplicáveis, muitas vezes recomendando silêncio sobre o que os apóstolos presenciavam. Lembrar ainda da declaração de Pedro em resposta à pergunta de Jesus sobre quem Pedro achava que Ele seria e o pedido de Jesus que não se divulgasse que Ele era o Cristo (cf. Mc 8,27-30; Mt 16,13-20; Lc 9,18-21). Esses silêncios, segredos nos soam como uma constante nos escritos que estamos examinando. Tal fato nos leva a uma pergunta: de que forma o silêncio se impõe para cada um de nós na vida cotidiana? Ou ainda: você tem o hábito de praticar o silêncio interior? Em nossa Igreja, o hábito do silêncio é bem antigo; já o encontramos nos Padres do Deserto, quando eles se retiravam do mundo para
13 Quanto aos apócrifos, não há, como nos sinóticos, aquela divisão que conhecemos. Por exemplo, na parte em que cito os fragmentos coptas relativos ao encontro de Maria com o Salvador: Segunda Parte (I, I-VI, 2), então, a narrativa do encontro está no III. 1; III. 2.; III. 3 e III. 4. O número IV já traz outro assunto, que nada tem a ver com Maria, mas com a descida aos mortos, assim por diante. Como se vê, não há sequência, nem um perfeito entendimento em certas passagens. As que mais nos falam de perto são realmente as de Maria e Jesus em diálogo, que reforçam a crença popular e a devoção marial a partir do que é colocado na boca de Jesus em suas louvações durante sua manifestação após a ressurreição exatamente a ela. Parece que muitos não se conformaram com o silêncio de Jesus a Maria, sua mãe, e fizeram ou compuseram algo que preenchesse essa lacuna dos sinóticos, ou, ainda, que Maria teria sido conhecida e reconhecida de tal modo pelas comunidades cristãs iniciais, que sua lembrança restou na memória do povo com os nomes que Jesus a chama e que parecem mais uma ladainha. Nomes esses que até hoje ainda encontramos em liturgias ou escritos piedosos sobre ela.
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praticar o silêncio, para alcançar um nível de interiorização e reflexão só possível longe das interferências do mundo. Para nós, na agitação diária do corre-corre, inserir uma pausa e se permitir um esvaziamento interior é bastante saudável, revigorante mesmo. Neste momento de esvaziamento, podemos fazer a experiência oposta: a do preenchimento. Que preenchimento? O de Deus! Recordemo-nos aqui que Maria só pôde ser preenchida pelo amor de Deus porque estava totalmente esvaziada de conceitos (preconceitos); por isso ela é a Gratia Plena. É revigorante, disse eu, porque refazemos o percurso de Maria. Ela guardava tudo no interior do seu coração, mas certamente não eram mágoas. Nós também, em nossa vida diária, se quisermos, temos a oferta de Deus para uma intimidade maior com Ele. Foi o que Maria fez desde o episódio da Anunciação até o fim de sua vida.14
3 Terceiro passo – Com Maria, somos chamados(as) à intercessão .
Aqui, pretendo chamar a atenção para o nosso papel de medianeiros, como chamamos a Maria. Seria, então, a partir do texto de João 2,1, nas Bodas de Caná. É baseada neste texto que a Igreja justifica o 14 Para os que desejarem um aprofundamento sobre o silêncio construtivo, ver GRÜN, 2004. Pequeno, porém denso, o livro traz experiências que os antigos monges (do III ao VI século) fizeram com o silêncio. Contribui para se ter mais clareza sobre a prática, mostrando que o silêncio é fundamental no sentido de o ser humano trabalhar seu interior para enfrentar melhor os desafios postos por seu cotidiano. Indico, igualmente, os subtítulos de um programa de retiro preparado pelos irmãos de Taizé (cf. Ibidem, p. 50-52), para posterior aprofundamento, que mencionam as diversas áreas que em mim precisam silenciar: a) Silêncio da fantasia (relativo às emoções e tristezas); b) silêncio da memória; c) silêncio do coração (desejos, antipatias, o exagero do apego); d) silêncio do amor-próprio; e) silêncio do espírito (pensamentos vãos); f) silêncio do julgamento; g) silêncio da vontade (angústias do coração, sentimentos de abandono); h) silêncio consigo mesmo (silenciar a autocomiseração).
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papel da mediação de Maria perante Jesus. Tal fato tem levado as Igrejas reformadas históricas a se afastarem dos católicos, com a afirmação [correta] de que, entre Deus e o ser humano, a única mediação é a de Jesus. Todavia, no texto, Maria profere uma frase que é eco da de Gn 41,55: “Façam tudo o que ele lhes disser”.15 O que temos de concreto na Igreja católica, como na ortodoxa? A aceitação de Maria como ponte para Jesus. Dessa forma, alinhamo-nos com a maioria dos que seguem o cristianismo, ressaltando que as devoções exageradas de algumas pessoas são simplesmente reflexo de uma catequese mal dirigida. Mas não tenho qualquer intenção de anular o papel de Maria, pelo contrário. Já disse anteriormente que seu relevo maior nos vem dos apócrifos; entretanto, os canônicos não nos permitem duvidar da importância do papel que ela teve na construção do cristianismo. Se ela é mediadora, nós também podemos ser. Esta afirmação pode gerar em alguns certo desconforto, por acharem que é muita pretensão nossa. Os evangelhos canônicos estão cheios de exemplos de pessoas que intercediam por outras; basta um pouco de paciência e ler com calma. Também é recomendação de Jesus que peçamos pelos nossos irmãos, inclusive por aqueles que nos perseguem. Ou, ainda, em João, quando se despede do seu grupo, Ele diz que tudo o que pedirmos em seu Nome o Pai nos dará (cf. 16,24), e sustenta: “Até agora, nada pediram em meu nome; peçam e receberão, para que a alegria de vocês seja completa”. Se dependêssemos exclusivamente do Quarto Evangelho para termos uma história sobre Jesus, não conheceríamos o nome de sua
As citações escriturísticas são feitas a partir da tradução de A Bíblia de Jerusalém. Entretanto, considerando que no Brasil não se usa comumente – a não ser com extrema formalidade e em discursos oficiais – a segunda pessoa do plural (vós), preferi manter o texto original, somente flexionando o verbo para a terceira do plural (vocês / eles / elas). Gn 41,55: “Em seguida, houve fome também no Egito, e o povo clamou ao faraó pedindo pão. Este disse a todos os egípcios: ‘Vão a José e façam o que ele lhes disser’.” 15
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mãe. Ele prefere chamá-la de “mulher”. Pois bem, é a “mulher” do Evangelho de João que inaugura a “hora” de Jesus, pedindo.16 Será que nos sentimos capazes de pedir desinteressadamente pelo outro? Joguemos a pergunta para a vida diária: somos intercessores uns dos outros em nossa vida profissional? Na familiar? Por um estranho que nos amola com um pedido desagradável de atender? Conseguimos furar as burocracias para sermos solícitos [solidários] com os mais necessitados? O pedido do pobre nas filas, nos hospitais é emergência e pode salvar uma vida. Vocês acham que estamos calejados e não nos sensibilizamos com certos pedidos de tanto nos decepcionarmos com as “verdades” e que, depois, ficamos sabendo que foram chantagem emocional? Temos a capacidade e a luz suficiente, nesta altura da vida, para apagarmos da nossa memória e do nosso emocional as decepções advindas dos falsos pedidos? O que nos falta? Fé? Como orar também pelos que nos perseguem? Como pedir por alguém que nos feriu? Trata-se, na verdade, de perdão. Como seguir os passos da Medianeira e guardar no coração, em silêncio, uma decepção, sem reter mágoas? É bom lembrarmos que, por nosso batismo, somos profetas, sacerdotes e reis (também nós mulheres!). Temos o poder de ligar e desligar na terra, como no céu. Façamos um pequeno exercício: interiormente, no segredo de nossos corações, vamos orar por alguém que nos marcou tristemente. Entreguemo-lo nas mãos de Jesus, para que Ele opere o milagre da transformação. Sejamos obedientes (atentos) a Jesus e à sua mãe (ela conserva sem rancor, apenas meditando; Ele nos diz: “Até agora nada pediram em meu nome”). O final deste versículo nos lembra: “[...] para que a alegria de vocês seja completa.” Respiremos profundamente e experimentemos essa alegria plena. “Mulher” – correlacionar esta palavra à mulher de Gn 3,15-16. Se pela mulher entrou o pecado [no mundo], pela mulher do Quarto Evangelho se dá a resposta a Deus: o SIM! de Maria. Eva foi a mãe de todos os viventes e Maria é a Mãe do Vivente, do Filho do Homem, de Deus, da Igreja. Em caso de dúvida, consultem a nota “o” de ABJ, referente à passagem Jo 2,4. 16
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4 Quarto passo – Como Maria entendia a missão do seu Filho? Como entendemos a missão dos nossos filhos? Nas relações com a família, o que podemos pensar no início da vida de Jesus é, no mínimo, que para Maria não havia ainda um entendimento pleno do que acontecia na vida de seu Filho. Os apócrifos citados nos falam que Maria parecia ter-se esquecido já dos mistérios que o anjo que a visitara lhe revelara (cf. RAMOS, 1989, Visita de Maria a Isabel; A História do Nascimento de Maria XII,1-3). Nos canônicos, a história se repete já com Jesus adulto e parece contradizer os episódios da Anunciação e da Visitação. Em Mt 12,48, Mc 3,33 e Lc 8,21 bem como em Mc 3, 20-21 e em Lc 2,49-50, percebe-se que seus parentes, inclusive sua mãe, têm dificuldade de entender a postura de Jesus, achando mesmo que Ele enlouquecera, como traduz ABJ para Mc 3,20-21. As respostas de Jesus também nos deixam perplexos, pois pergunta quem seriam sua mãe e seus irmãos, e Ele mesmo responde: aqueles que fazem a vontade de meu Pai (cf. textos citados anteriormente). O que Maria deveria pensar de tudo o que estava acontecendo? Jesus crescera dentro de sua religião como qualquer judeu piedoso. Ele era tão normal e coerente nas suas atitudes diárias que nem em sua própria terra lhe davam crédito como Filho de Deus. Não somos só nós que temos memória curta; o povo daquela época parecia ter-se esquecido de tudo o que fora anunciado a respeito da vinda do Messias, a tal ponto que Jesus exclama: “Um profeta só é desprezado em sua pátria, em sua parentela e em sua casa” (cf. Mc 6,1-6; Mt 13,53-58; Lc 4,16-24). Entendemos, pela leitura dos textos, que sua mãe se preocupava com o Filho, e, muito provavelmente, gostaria de preservá-lO dos comentários que se espalhavam a respeito dEle. Talvez temesse por sua vida e mantivesse guardados no seu íntimo os acontecimentos do nascimento. São apenas pistas que levantamos a partir dos sinóticos, porque, se dependêssemos do apócrifo citado, concluiríamos que ela (Maria) 164
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realmente não se dava conta da real situação. Neste ponto os sinóticos nos ajudam melhor, uma vez que Jesus não nascera em Nazaré, mas ali se criara do modo mais natural do mundo, como qualquer rapaz de seu tempo: Ele era o carpinteiro, filho de José, sua mãe era conhecida como Maria e seus irmãos e irmãs ali viviam. Reflitamos sobre nossa postura familiar: os que têm filhos se interessam em esconder suas atividades para preservá-los? Qual a reação de uma família quando um de seus membros começa a apresentar um comportamento fora dos padrões de sua criação? Como encaramos um(a) filho(a) que pretende ingressar na vida consagrada? Nossas reações interferem na vida desse membro da família a ponto de magoá-lo, de fazê-lo sentir-se injustiçado e incompreendido? Nossas relações e reações pais-filhos, como andam? Estamos muito alienados dos ideais de nossos(as) filhos(as), porque muito envolvidos com a vida profissional e demais afazeres? Como nos sentimos quando examinamos Maria assim tão de perto? O que pensamos dela: uma jovem mãe que, de tão pura, não reteve nem as palavras de um anjo, como se realmente fosse uma criança? Mas como uma criança iria questionar, como ela o fez, a respeito da concepção de seu Filho e logo depois esquecer-se do fato extraordinário? Parece que destoa. Seu modo natural de agir não seria o receio do cumprimento da profecia de Simeão? (cf. Lc 2,33-35). Confiramos lá no evangelho.17 Por nossas alegrias e tristezas, por tudo o que vivemos no seio de nossas famílias e relações de amizade, façamos cada um(a) [que desejar] um voto ou uma oração espontânea, depositando-a confiantes naquela que teve sua alma traspassada por uma espada – nossa Mãe e a
17 Vejam a seguinte nota (ABJ, 1985, p. 1932): “f) Verdadeira Filha de Sião, Maria suportará em sua própria vida o destino doloroso de seu povo. Juntamente com seu Filho, estará no âmago dessa contradição pela qual os corações deverão revelar-se pró ou contra Jesus. O símbolo da espada pode ter-se inspirado em Ez 14,17, ou, segundo outros, em Zc 12,10.”
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de nosso Senhor –, para que ela a entregue a seu Filho em nosso favor. Saibamos agradecer no interior do nosso coração...
5 Quinto passo – Diante da páscoa de Jesus (paixão, morte e ressurreição), mistério fundante da nossa fé, que sentido vemos no culto a Maria? Os três evangelhos sinóticos não mencionam a presença de Maria, mãe de Jesus, junto à cruz. Apenas o faz o Quarto Evangelho, dizendo, diferentemente dos outros, que ela estava perto da cruz, junto com o “discípulo que Jesus amava” e as outras mulheres, inclusive Madalena (cf. Jo 19,25-27). Então, o Evangelho de João tem, neste momento, duas coisas que nos chamam a atenção: menciona a presença da mãe de Jesus perto da cruz (os outros três colocam as mulheres observando de longe) e, sem nunca ter citado seu nome, é o único que a inclui na cena da crucifixão. Conforme já assinalei, temos ainda uma peculiaridade curiosa: o escritor do Quarto Evangelho, além de não mencionar o nome de Maria, a chama de “mulher”. Isso está presente também nas Bodas de Caná. Nenhum dos quatro evangelhos coloca Maria unida aos apóstolos por ocasião do Pentecostes, mas os Atos dos Apóstolos o faz. A revelação da ressurreição do Senhor é sempre feita às mulheres ou a Madalena, mas não menciona Maria, mãe de Jesus. Em contraponto, nos apócrifos temos uma sensível diferença. Nos Fragmentos de textos coptas, fonte citada, temos o título: “Jesus Ressuscitado Aparece à sua Mãe”, iniciando-se da seguinte forma: As mães que neste mundo viram a morte de seus filhos sentem grande consolo quando vão ao túmulo para ver o corpo daquele que elas choram. Eu saí com todos estes... para vê-lo... pregado na sua cruz como um malfeitor... e eis que... Abriu os olhos, pois os conservava baixos 166
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para não enxergar o mundo por causa dos escândalos. E disse-lhe com alegria: “Mestre, meu Senhor, meu Deus, meu Filho, tu ressuscitaste e ressuscitaste em perfeita forma”. A ordem final de Jesus a sua mãe após o encontro foi a de que ela se apressasse em avisar aos irmãos para o encontro na Galileia (III. 1; III. 2 e III. 4).
Ainda encontramos Maria (mãe), e não Madalena, no jardim falando com Filogênio, o jardineiro, que a reconhece chamando-a de Thalkamarimah, que o próprio livro explica, em seu contexto, significar: júbilo, bênção, alegria. A nota ao texto de n.º 34 diz parecer uma tentativa de reproduzirem palavras aramaicas aglutinadas (cf. RAMOS, 1990, p. 205). Mais adiante, o mesmo Filogênio narra a Maria o que ouviu da boca do Senhor ressuscitado, revestido já da glória de Deus: Maricha, marina, Thiath, que significa “Mariham, mãe do Filho de Deus”. Maria também fala naquele idioma a seu Filho e este dirige-lhe uma espécie de ladainha, louvando-a com nomes como: “santa arca, minha cidade, minha morada, minha veste de glória, meu cântaro cheio de água santa, placa fixada no paraíso do sétimo céu e que se interpreta Chomtmach”. Dá-lhe novamente a ordem de ir aos irmãos contar tudo. Entretanto, Maria pede a seu Filho: “Meu Senhor, antes de voltar para junto de teu Pai, abençoa o meu seio, no qual estiveste”. O Salvador lhe dá a seguinte resposta: “Tu te assentarás à minha direita no meu reino”. E adiante: “Tu serás bendita no céu e na terra; pelos anjos serás chamada Cidade do Grande Rei” (RAMOS, 1990, p. 208).18 O que lhes apresentei é apenas um resumo do diálogo ocorrido entre Maria e o Salvador (porque é assim que o texto o menciona). 18 Falamos em fragmentos coptas: segundo a fonte citada, na coleção “Bíblia Apócrifa” (Vozes), à p. 162 lemos que o copta era língua egípcia com numerosas palavras gregas, sendo “copta” uma corruptela de Aigiptios e que é de uso litúrgico atualmente. Sua datação é das mais antigas do Oriente (séculos III e IV). Não há como identificar os autores dos textos apresentados, e igualmente é difícil sua datação, “podendo situar-se entre o V e o VII séculos” (ibidem).
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Mesmo sendo necessárias outras pesquisas, penso que aqui já temos alguns elementos para nossa reflexão-meditação-aprofundamento nos passos de Maria. a) Se os sinóticos são tão reservados em relação à figura de Maria, os apócrifos são eloquentes e nos fazem supor que o culto à mãe de Deus já era grande. b) Reparemos que as Igrejas do Oriente são mais fixadas em Maria que as do Ocidente. c) Será que os sinóticos não falam tanto de Maria por causa da mentalidade profundamente patriarcal reinante na época em que foram montados? d) A virgindade biológica era prioridade nos países de cultura oriental, e até hoje vemos no Islã que, no Paraíso, o santo que lá chega é recebido por virgens. Tal deveria ser também nos escritos sobre Jesus (refiro-me aos apócrifos), pois, no cuidado de Maria no Templo, havia virgens sempre ao seu redor, bem como em outras passagens. e) Ou será que foram escolhidos os quatro evangelhos exatamente por não falarem tanto das virgens e de sua importância, para colocar em primeiro plano que quem deveria vir era o Filho de Deus, e não mais uma virgem? f) Interessante notarmos que, mesmo assim, o útero que deveria dar à luz o Filho de Deus tinha que ser imaculado.19 Reflitamos no presente, com embasamento no passado: a virgindade já teve o seu auge em nossa cultura. Atualmente ainda achamos que o casal deve-se preservar de relações íntimas pré-matrimoniais? Que pensamos e estamos acostumados a ver nos casamentos atuais: a) uma encenação (porque nenhum dos dois frequenta a Igreja), b) uma convicção, c) uma verdadeira fé no matrimônio como sacramento? Quanto à situação de Maria, como cada um(a) a vê? Como sente Maria? Que sentido tem ela na sua vida? Em comunhão com algumas pessoas
19 Esta afirmação é polêmica. Deus não disse ser pecado a relação [carnal] homem – mulher; pelo contrário, ordenou que se multiplicassem. Noutras palavras, a sexualidade humana – e seu exercício – é um dom e aponta para o amor que une o homem à mulher e vice-versa. Confiram, p. ex., Gn 1-2 e o Cântico dos Cânticos.
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mais esclarecidas e vindas de Igrejas reformadas históricas, você, especialmente você, acha que há exagero por parte dos fiéis católicos quanto ao culto de veneração a Maria? Você acha que confundem a cabeça do fiel os diversos nomes que Maria toma de acordo com o lugar em que é venerada? (Refiro-me às pessoas menos esclarecidas.) Como você chama a Mãe de Deus: Maria, Nossa Senhora, Nossa Senhora da Penha, Virgem Mãe, Virgem Santíssima...? Você, nas suas horas de aflição, consegue se reportar a Maria, sentindo-a mais próxima, mais humana, ou vai direto a Jesus? Como você gosta de orar a Maria? E a Jesus? Será que, como eu, você só consegue entender a humanidade de Jesus se passar pelo ventre de Maria, ou acha que com ou sem ela Ele, o Verbo de Deus, se encarnaria? A partir da cena de Maria aos pés da cruz (Jo 19,25-27) e lendo o que os apócrifos relatam sobre esta experiência dolorosa e as palavras de Maria indo ao encontro do Filho ressuscitado (seu júbilo, sua alegria), você seria (se sentiria) capaz de escrever um pequeno poema que retratasse o seu sentimento diante de duas experiências antagônicas: a tristeza da morte injusta e cruenta na cruz e a alegria do primeiro encontro após a ressurreição? Tente orar este poema! Deus os abençoe neste momento de oração profunda e compartilhada, e durante todos os dias de suas vidas! Louvado seja, para sempre, Cristo Jesus!
Maria diante do Filho crucificado Como te olhar agora nos olhos, se estão cobertos de sangue e decepção? Como te encarar diante desta gente que te carrega para a morte? Te olho afastada, pois não me permitem aproximar-me de ti. Te lembro pequeno, quando caías e eu corria para te erguer. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 152-172, jul./dez. 2010
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Não queria que te machucasses. E a gora, meu filho tão querido!? Peço inspiração ao Altíssimo, a quem tu chamavas de Paizinho, e só me chegam os gritos enlouquecidos deste povo. Do meu povo. Daquele mesmo povo que tantas vezes eu vi recorrer a ti. Meu filho. Meu filhinho. Teu sofrimento é o meu. Por dentro estou sangrando e cheia dos vergões que tu recebes pelos chicotes. Mas irei até onde plantaram tua cruz. Lá, contigo, também eu, tua mãe, estarei presa. E, quando teu último hálito sair de teu peito, também eu morrerei. Te senti o primeiro respiro em meus braços. Suspirarei teu último alento de onde eu estiver. Não é só a Adonai que ofertarás teu sofrimento. Eu estou aqui. Como é, filho, como verei o mundo depois de ti? Será que não vão entender nunca? Sou tua mãe e tua serva. Nada tenho fora de ti e em ti tudo sou. Olho em redor... busco socorro... só vejo o João, que chora baixinho e se aproxima de mim como uma criança perdida. Que é dos outros? E Pedro, meu filho, que te jurou fidelidade? Sinto vergonha de ver a humanidade sedenta de sangue e morte. E quem vai morrer agora és tu.Tapo os olhos com meu manto. Seco com ele meu rosto e ponho-me de pé. É, meu filhinho, será de pé que aguardarei teus últimos instantes. Agora já te olho. Ouço o que restou da tua voz. Abraço João. Ficaremos juntos, esperando as tuas Promessas. Aos poucos te sinto como um bebê em meu colo. Lembro a canção que cantava para te adormecer e canto-a baixinho. Te entrego adormecido nos braços de teu Paizinho!
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Referências BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém (ABJ). Tradução coletiva. São Paulo: Ed. Paulinas, 1985. BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada (Edição Pastoral). Tradução coletiva. São Paulo: Paulus, 2002. Disponível em < http://www.paulus.com.br/ BP/_INDEX.HTM>. Acesso em mai. 2010 CHAVE bíblica. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1970, p. 467-468. FARIA, Jacir de Freitas. Apócrifos aberrantes, complementares e cristianismos alternativos (Poder e heresia! – Introdução crítica e histórica à “Bíblia Apócrifa do Segundo Testamento”). Petrópolis: Vozes, 2009, 256 p. ______. As origens apócrifas do cristianismo (Comentário aos evangelhos de Maria Madalena e Tomé). São Paulo: Paulinas, 2003, 176 p. GRÜN, Anselm. As exigências do silêncio. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 2004, 88 p. RAMOS, Lincoln (Trad. e Org.). Fragmentos dos evangelhos apócrifos. Petrópolis: Vozes, 1990, 216 p. ______. Protoevangelho de Tiago (A história do nascimento de Maria). 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1989, 67 p. ______. São José e o Menino Jesus (História de José, o carpinteiro – Evangelho de Pseudo Tomé). Petrópolis: Vozes, 1990, 88 p.
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FOLLOWING MARY’S STEPS: A WALK FULL OF FAITH, EMOTION AND SUPERNATURAL FACTS Abstracts Through some apocryphal texts— besides the canonical ones—, we intend in this writing to show the new dimensions of the figure of the Virgin Mary, as well as of Joseph, her companion and husband. It was thought of five steps, it deals essentially with a reflexive and spiritual text, and it can be used both for individual reflection of the reader, and for any group of spirituality who wishes to make use of it. Key words: Virgin Mary. Joseph. Apocryphal evangels. Spirituality.
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REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 152-172, jul./dez. 2010
RESENHA CARVALHO, José Maurício de. Ética. São João del-Rei: UFSJ, 2010, 240p.
Prof. Dr. Antônio Vidal Nunes*
Dr. José Maurício de Carvalho, professor da Universidade Federal de São João del-Rei, reconhecido pelo seu labor investigativo em torno da filosofia brasileira, brinda-nos com mais um importante livro sobre ética. Uma leitura necessária a todos aqueles que se interessam pela filosofia no Brasil e pela discussão ética. Em seu itinerário reflexivo o referido pensador pátrio percorrerá dois momentos importantes. Na primeira parte busca explicitar a gênese da ética na Grécia antiga, como parte do novo conhecimento filosófico ali surgido. Descreverá o modelo ético aristotélico assim como outros que surgirão posteriormente. Como base neste horizonte mais amplo da tradição filosófica no tocante à ética, passará a expor estudos realizados a partir de expressões brasileiras. Neste sentido, estudará a filosofia moral de José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, a presença da reflexão ética portuguesa em nossa cultura brasileira e a ética em sua relação com a importante tradição culturalista brasileira de pensar; a mesma forma explicita as posições de Miguel Reale, um dos expoentes mais destacado do culturalismo pátrio. Na segunda parte de seu livro dedicada à filosofia contemporânea o prof. José Maurício destaca a importância da ética a partir de um novo pressuposto: o homem enquanto ser que escolhe. Não somos possuidores de liberdade absoluta. Sempre fazemos nossas escolhas dentro de um determinado contexto existencial e histórico. Enquanto
* Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 173-174, jul./dez. 2010
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Resenha
ser histórico, o homem é possuidor de uma existência aberta, é chamado a escolher permanentemente. Daí a responsabilidade que devemos ter com todas as nossas atitudes, atos e projetos em relação aos demais homens e ao mundo que nos cerca. O homem é um ser social, não vive isolado, sua vida depende dos demais. Como base nos valores o homem se orienta no mundo e define as condições de relacionamento humano ideal com base em determinados projetos humanos. Como ressaltará o autor, estamos passando por uma grande crise, cuja extensão ainda não conhecemos bem, mas de qualquer modo ela nos leva à busca de novos caminhos, de atualizações necessárias à existência humana. Daí a importância da reflexão ética como parte da recriação da cultura e da sociedade; sobretudo em um contexto marcado pelo consumismo, pela violência, pelo desrespeito humano, pela exploração desordenada da natureza, pelas perdas de referências axiológicas etc. Os desafios estão colocados; é preciso repensar o processo de realização humana em novas bases. E qual é o papel da filosofia neste contexto dramático da existência humana? Dirá o pensador mineiro, concluindo o seu livro, “[...] que o desafio da filosofia é entender tais mudanças e pensá-las a partir dos valores nucleares que o ocidente criou. A ética é a disciplina que nos colocará no centro desta mediação”. De forma clara, simples e acessível, o livro trata de forma profunda os problemas e desafios que se colocam para todos nós no presente. Bem... Está feito o convite à leitura deste pertinente trabalho.
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REVISTAS EM PERMUTAS NACIONAIS Título – Local – Periodicidade 1. Analytica: Revista de Filosofia da UFRJ – Semestral 2. Atualidade Teológica: Revista do Departamento de Teologia da PUC-Rio – Bimestral 3. Caminhando: Revista da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista – Semestral 4. Revista de Catequese: UNISAL – Trimestral 5. Cognitio: Revista de Filosofia da PUCSP – Semestral 6. Coletânea: Revista de Filosofia e Teologia Faculd. de S. Bento – RJ. – Semestral 7. Direito: Revista da Faculdade de Direito de Cachoeiro do Itapemerim- ES – Semestral 8. Espaços: Revista de Teologia do Instituto S. Paulo de Estudo Superior – Semestral 9. Estudos Teológicos: Inst. Ecumênico em Teologia Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – Semestral 10. Horizonte Teológico: Inst. Santo Tomás de Aquino – ISTA – Semestral 11. Hypnos: Revista de Filosofia da PUCSP – Semestral 12. Kriterion: Revista de Filosofia da UFMG – Semestral 13. Razão e fé: Revista Inter e Transdisciplinar de Teologia. Filosofia e Bioética – Semestral 14. Rhema: Revista de Filosofia e Teologia do ITASA – MG – Quadrimestral 15. Religião & Cultura: Revista do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUCSP -Semestral 16. Repensar: Revista de Filosofia e Teologia do Inst. Paulo VI – RJ – Semestral 17. Revista de Ciências da Educação: UNISAL – Semestral 18. Revista Dominicana de Teologia: EDT – Semestral REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 175-178, jul./dez. 2010
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Revistas em Permutas
19. Revista Filosofia da PUCPR – Semestral 20. Revista Litterarius: FAPAS RS – Semestral 21. Sapientía Crucís: Revista Filosófico-Teológica – Anápolis – GO – Anualmente 22. Scientia: Revista Interdisciplinar do Centro Univ. Vila Velha ES – Semestral 23. Theós: Revista de Reflexão Teológica da Faculdade Teológica Batista de Campinas – Semestral 24. TQ: Teologia em Questãoda Faculdade Dehoniana SP – Semestral 25. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da UNESP – Semestral 26. Veritas: Revista de Filosofia da PUCRS – Trimestral 27. Via Teológica: Faculdade Teológica Batista do Paraná – Semestral
REVISTA EM PERMUTA INTERNACIONAL Título – Local – Periodicidade 1. Stromata: Revista Filosofia y Teologia Universidad Del Salvador – Argentina – Semestral
REVISTAS NACIONAIS – ASSINATURA Título – Periodicidade 1. Caros Amigos – Mensal 2. Concilium – Bimestral 3. Estudos Bíblicos – Trimestral 4. Família Cristã – Mensal 5. Grande Sinal – Bimestral 6. Mundo e missão – Mensal 7. Perspectiva Teológica – Quadrimestral 8. REB – Revista Eclesiástica Brasileira – Trimestral 176
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Revistas em Permutas
9. Revista de Liturgia – Bimestral 10. Revista de Cultura Teológica – Trimestral 11. Revista Vitória – Bimestral 12. RIBLA – Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana – Trimestral 13. SEDOC – Bimestral 14. Tempo e presença – Bimestral 15. Revista de Koinoina – Bimestral 16. Síntese – Quadrimestral
CADERNOS Título – Periodicidade 1. Cadernos Adenauer – Bimestral
REVISTAS INTERNACIONAIS – ASSINATURAS Título – Local – Periodicidade 1. Bíblica: Editrice Pontifício Instituto Bíblico – Roma – Bimestral 2. Christus: Revista de Teología y Ciências Humanas – México – Bimestral 3. Diakonia: Internationale Zeitschrift für die Práxis der Kirche – Bimestral 4. Diakonia: Província Centroamericana de la Companía de Jesús Centro Ignaciano de Centroamérica – El Salvador – Trimestral 5. Família et Vita: Pontificium Consilium pro Família Stato Città Del Vaticano – Quadrimestral 6. Il Regno: Bologna – Quinzenal 7. Journal for the Study of the Old Testament – Trimestral 8. Journal for the Study of The New Testament – Trimestral
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Revistas em Permutas
9. Medellín: Teologia y pastoral para américa latina – Colombia – Trimestral 10. Misiones extranjeras – Madrid – Bimestral 11. Moralia: Revista de ciências Morales Instituto Superior de Ciências Morales – Madrid – Trimestral 12. Recherches de Science Religiuse – França – Trimestral 13. Revista de Espiritualidad – Madrid – Trimestral 14. Revista Mensaje – Santiago – Trimestral 15. Revue Biblique – L’école Biblique et Archéologique Française – França – Trimestral 16. Revue d’Histoire Ecclésiatique – França – Trimestral 17. Reseña Bíblica – Asociación Bíblica Española – Trimestral 18. Spiritus: Revue d’ expériences et recherches missionnaires – França – Trimestral
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NOTA AOS COLABORADORES Os trabalhos submetidos à Revista Capixaba de Filosofia e Teologia (REDES) devem enquadrar-se na linha editorial da revista, e observar as normas e orientações indicadas abaixo. Os trabalhos submetidos serão avaliados pelo Conselho Editorial, mas sua publicação não expressará necessariamente o posicionamento do Conselho nem das instituições mantenedoras. A responsabilidade pelos artigos assinados é exclusiva dos autores. Os direitos autorais dos trabalhos aprovados são automaticamente transferidos à REDES como condição para sua publicação. Os textos que não forem aprovados para publicação não serão devolvidos aos seus autores. O autor que tiver seu trabalho publicado terá direito a três exemplares da revista. 1. A Revista REDES publica artigos e resenhas, assim como reedita trabalhos clássicos e documentos históricos relacionados à temática da revista. Os artigos e resenhas devem ser inéditos e não podem ser simultaneamente submetidos a outro periódico. 2. Podem ser submetidos trabalhos redigidos em Português ou Espanhol. 3. Os originais devem ser enviados ao Coordenador da revista em três vias impressas, das quais uma com identificação de autor e duas sem identificação, e uma cópia em arquivo eletrônico com identificação de autor(es) e título do trabalho. Os originais devem ser acompanhados de cartas submetendo o trabalho para publicação, e de uma folha à parte, em caráter de obrigatoriedade, contendo informações completas sobre o(s) autor(es): nome, vínculo institucional, endereço para correspondência, telefone, fax e correio eletrônico. De tais informações somente o endereço eletrônico será divulgado na publicação. 4. Os trabalhos devem ser digitados em espaço um e meio, com margens de 3 cm na margem superior e esquerda e 2 cm na margem inferior e direita, e apresentados em papel tamanho A4, impresso em um único lado e com páginas numeradas. Os artigos não devem ultrapassar 40 páginas (cerca de 10.000 palavras) e as resenhas não devem exceder 10 páginas (2.500 palavras). REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 15, p. 179-180, jul./dez. 2010
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Nota aos Colaboradores
5. Preferentemente o texto deve ser editado no formato Word, obedecendo às seguintes recomendações:
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– Endereço eletrônico: revistaredes@salesiano.com.br
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