a.9 n.16 jan./jun. 2011 - Iftav/Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Nº 16
n. 16 janeiro/junho 2011 a. 9
REDES
Revista Capixaba de Filosofia e Teologia
Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória - ES Diretor: Hugo Scheer Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo Diretor Executivo: Jolmar Luis Hawerroth REDES Revista Capixaba de Filosofia e Teologia Uma publicação do Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória e da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Coordenador Paulo Cesar Delboni pdelboni@salesiano.com.br Vice-coordenador Renato C. Gama Comissão Editorial Antônio Vidal Nunes, Fábio Eulalio dos Santos, Hugo Scheer, Paulo Cesar Delboni e Renato C. Gama. Conselho Editorial Antonio Donizetti Sgarbi (Instituto de Filosofia e Teologia de Vitória - Iftav), Antônio Vidal Nunes (Universidade Federal do Espírito Santo - Ufes), Claudia P. C. Murta (Ufes), Edebrande Cavalieri (Ufes), Franz Helm (Instituto de Teologia das Religiões, St. Gabriel, Viena - Áustria), Geraldo Caliman (Universidade Católica de Brasília - DF), Giovani Marinot Vedoato (Iftav), Guido Gatti (Pontifícia Universidade Salesiana - Itália), Jair Miranda de Paiva (Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo), Joachim G. Piepke (Faculdade de Filosofia e Teologia St. Augustin - Alemanha), Kelder J. B. Figueira (Iftav), Mario Toso (Pontifícia Universidade Salesiana - Itália), Renato C. Gama (Iftav), Tiago Adão Lara (Universidade Federal de Juiz de Fora - MG) e Virgínia A. Carrara (Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo).
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Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória - Iftav Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
REDES
Revista Capixaba de Filosofia e Teologia a. 9 - n. 16 - janeiro/julho 2011 Vitória-ES
FILOSOFIA E RELIGIÃO
ISSN 1679-4265 Redes: Revista Capixaba de Filosofia e Teologia
Vitória
a. 9 n. 16 p. 1-240 jan./jun. 2011
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Editora: Iftav/Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Redes: Revista Capixaba de Filosofia e Teologia. Ano Vitória, a. Vitória, a. 9, n. 16 (jan./jun. 2011). - Vitória : Iftav / Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo, 2011. 240 p. ; 21,5 cm. Semestral ISSN 1679-4265 1. Filosofia - Periódicos. 2. Teologia - Periódicos. I. Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória - ES. II. Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo. CDU 1+2 (05) Tiragem: 300 exemplares | Periodicidade: Semestral
SUMÁRIO APRESENTAÇÃO .................................................................................................7 A EXISTÊNCIA SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO ............................ 9-37 The existence according to Thomas Aquinas Sávio Laet de Barros Campos ALGUMAS PREMISSAS FILOLÓGICAS PARA A COMPREENSÃO DO SENTIDO DE BEATITUDE NO DE BEATA VITA DE S. AGOSTINHO ..........................................38-56 Some philological premises to the understanding of the meaning of beatitude in Saint Augustine’s ‘De Beata Vita’ Adriano Beraldi ALGUNS ASPECTOS DA RECEPÇÃO DO PENSAMENTO ZUBIRIANO NA IBEROAMÉRICA ........................57-86 Some aspects of the reception of the Zubirian thought in Ibero-America Everaldo Cescon LA CONCEPCIÓN ACERCA DEL SER HUMANO: FUNDAMENTO DEL HUMANISMO EN EL PENSAMIENTO MARXISTA CUBANO DE LA PRIMERA MITAD DEL SIGLO XX .......................................................87-129 The conception concerning human being: base of humanism in the Cuban Marxist thought of the first half of the 20th Century Freddy Varona Domínguez LA FILOSOFIA DEL DIALOGO DI MARTIN BUBER .................130-143 The philosophy of dialogue of Matin Buber Paulo Cesar Delboni MARX E SEU MÉTODO: PARA ALÉM DA COMPREENSÃO DA HISTÓRIA DA HUMANIDADE ................144-166 Marx and his method: beyond the understanding of the history of humanity Renato Almeida de Andrade
COSMOPOLITISMO E INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA .......167-188 Cosmopolitism and South American integration Giuseppe Tosi A CONTRIBUIÇÃO DA FILOSOFIA DA RELIGIÃO E DO PENSAMENTO FRACO DE GIANNI VATTIMO NA EPISTEMOLOGIA DO ENSINO RELIGIOSO ...............................190-205 The contribution of phylosophy of religion and of weak thought of Gianni Vattimo in the epistemology of religious teaching Jorge Luis Vargas dos Santos TEÓRICOS DO SAGRADO: ALGUMAS CONCEPÇÕES E PERCEPÇÕES .........................................................206-217 Theorists of the Sacred: some conceptions and perceptions Alessandro Vescovi CAMPO E CIDADE: UMA ABORDAGEM SOCIOLÓGICA NO PRIMEIRO TESTAMENTO ...........................218-234 Country and city: a sociologic approach in the Old Testament Adriano de Souza Viana REVISTAS EM PERMUTAS ...................................................................235-238 NOTA AOS COLABORADORES .........................................................239-240
APRESENTAÇÃO
A Revista Capixaba de Filosofia e Teologia (Redes), fundada em 2003, de circulação semestral, é fruto de uma parceria dos cursos de Filosofia da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo e Teologia do Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória (Iftav). O periódico foi concebido para estimular e difundir a construção do conhecimento filosófico-teológico produzido pelos professores e alunos dos citados cursos, bem como de pesquisadores de outras instituições de ensino e pesquisa. O nome Redes conserva a universalidade dos temas básicos da revista, que são filosofia e teologia. O conhecimento é aqui pensado como entrelaçamento de significações. “Rede” traz à tona as ideias de acentrismo, metamorfose, heterogeneidade, multiplicidade, transdisciplinaridade. A Redes busca a coerência entre a práxis dos cursos de Filosofia e Teologia, além da integração multidisciplinar com diversas outras áreas do conhecimento, como as ciências da religião, incluindo aí vários recortes que podem ser feitos no estudo do fenômeno religioso, destacando-se a antropologia, a comunicação social, a história, a pedagogia, a psicologia e a sociologia.
Paulo Cesar Delboni
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A EXISTÊNCIA SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO Sávio Laet de Barros Campos*
Resumo Este artigo versa sobre a noção de existência na ontologia de Tomás de Aquino. Trata do existir entendido como ato de ser. Para desenvolver esta temática, definiremos alguns termos recorrentes na ontologia de Tomás: substância, essência, acidente, matéria, forma, ente, ato e potência. Tendo procedido à análise desses termos, tentaremos relacioná-los com o ser. Destarte, abordaremos a questão da relação entre: ser e substância, ser e ente, essência e existência, ser e ato e ser e perfeição. Palavras-chave: Existência, ato, perfeição.
Introdução Este trabalho versa acerca da noção de existência no âmbito da ontologia tomásica. Ele trata do existir entendido como ato de ser (actus essendi). Para desenvolver esta temática, teremos de definir alguns termos recorrentes na ontologia tomasiana: substância (substantia), essência (essentia), acidente (accidens), matéria (materia), forma (forma), ente (ens), ato (actus) e potência (potentia). Uma vez tendo procedido à análise desses termos, num esforço sintético tentaremos relacioná-los
* Bacharel-Licenciado e Pós-Graduando em Filosofia pela Universidade Federal de Mato Grosso [UFMT], Sávio cursou ainda algumas disciplinas teológicas (Revelação e Fé; Transmissão da Revelação e Teologia do Direito Canônico) no SEDAC (Studium Eclesiástico D. Aquino Corrêa). Foi pesquisador do Grupo de Estudos Polis-Éthos (registrado no CNPq) da UFMT. Também participou como estudioso da filosofia medieval no grupo de “Pesquisas em Filosofia Antiga e Medieval” (com registro no CNPq) vinculado à mesma instituição.
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com o ser (esse). Destarte, abordaremos a questão da relação entre: ser (esse) e substância (substantia), ser (esse) e ente (ens), essência (essentia) e existência, ser (esse) e ato (actus) e ser (esse) e perfeição (perfectione). Privilegiaremos, a título de fontes, a Summa contra gentiles (1258 a 1264), na tradução brasileira de Odilão Moura, revista recentemente (1996) pelo Prof. Luis Alberto De Boni, e a Summae theologiae (12661274) – obra-prima do autor – máxime na sua “Prima Pars”, composta entre os anos 1266 e 1272. Transitaremos por esta última na sua mais recente tradução brasileira – empresa de fôlego das Edições Loyola – e que resultou no aparecimento de nove volumes, entre os anos de 2001 e 2006. No que concerne aos comentadores de Tomás, trafegaremos pelo clássico Le thomisme: introduction au siystème de Saint Thomas D’aquin (1919), de Étienne Gilson. Frequentaremos a versão castelhana (1951) desta obra – única autorizada do original francês – por Alberto Oteiza Quirino: El tomismo: introducción a la filosofía de Santo Tomás de Aquino. Lançaremos mão também do introito de Luís Jean Lauand, Tomás de Aquino: vida e pensamento – estudo introdutório geral (e da questão “Sobre o verbo”), disponível na obra Verdade e conhecimento, lançada pela Martins Fontes em 1999.
1 A existência em Tomás de Aquino 1.1 Substância (Substantia) e essência (Essentia) Permanecendo fiéis ao “método” de explanação de Tomás, segundo o qual “[...] todo o nosso conhecimento se origina a partir dos sentidos” (TOMÁS DE AQUINO, 2001. I, 1, 9, C),1 começaremos por designar aqueles seres que nos são dados pela nossa mais imediata experiência sensível. Designá-los-emos pelo termo “substância”
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“[...] quia omnis nostra cognitio a sensu initium habet.”
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(substantia) (GILSON, 1951, p. 46, 47).2 Essas substâncias constituem um todo completo, a formar uma unidade ontológica passível de existir e de ser definida. Ora, à substância, enquanto passível de definição, chamaremos de essência (essentia): “Quando a substância pode ser concebida como una e definida, toma o nome de ‘essência’. A essentia não é, pois, senão a substância enquanto é suscetível de definição” (GILSON, 1951, p. 46, 47, tradução nossa).3 Ora bem, dissemos que a substância forma uma unidade ontológica suscetível de ser definida. Dissemos ainda que essa unidade ontológica, enquanto passível de ser expressa num conceito (conceptus), será chamada de essência, e que essa essência (essentia) irá designar essa mesma unidade ontológica, ou seja, será ela que – enquanto expressa na definição – irá dizer-nos o que é (quid est) a substância: “Exatamente a essência é o que a definição disse que é a substância” (GILSON, 1951, p. 46, 47, tradução nossa). Portanto, será a essência (essentia), expressa num conceito (conceptus), que responderá à pergunta: “Quid sit?”; isto é, será ela que nos irá fazer conhecer o que uma coisa (res) é, o seu quid est. Por conseguinte, enquanto expressa numa definição, a essência deverá ser chamada quididade (quidditas): “E, visto que aquilo pelo que a coisa é estabelecida no próprio gênero ou espécie é isto que é significado pela definição indicando o que a coisa é, daí vem que o nome de essência é transformado pelos filósofos no nome de quididade [...]” (TOMÁS DE AQUINO, 2005c. I, 3).4 2 “Partiendo, com Santo Tomás, de los entia, o seres, que nos son dados por la experiencia sensible, los designaremos con el término ‘sustancias’.” 3 “Cuando la sustancia puede ser concebida como una y definida, toma el nombre de ‘esencia’. La essentia no es, pues, sino la sustancia em cuanto es susceptible de definición.” 4 “Significar lo que es una substancia, es responder a la pregunta quid sit; por eso, en tanto está expresada en la definición, la esencia se llama ‘quididad’”. Tradução: “Significar o que é uma substância é responder à pergunta quid sit; por isso, enquanto está expressa na definição, a essência se chama ‘quididade’” (GILSON, 1951, p. 47).
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1.2 A substância como uma essência que existe por si É costume definir o termo substância como um “ser por si” (ens per se). Na verdade, essa definição, sem ser inexata, está, no entanto, incompleta. Com efeito, um “ser por si” (ens per se) que não possuísse qualquer outra determinação, não estaria apto para existir, salvo se ele fosse o seu próprio ser (suum esse), mas, neste caso, já não seria uma substância, e sim o ipsum esse subsistens. Entretanto, ainda não temos como saber se esse ser existe ou não. Portanto, cuida afirmar que a substância é um modo de ser que, delimitado por uma essência, existe por si (per se). Aliás, é exatamente por que a substância é algo determinado por uma essência, que ela é suscetível de ser definida. De fato, é da natureza da substância ser cognoscível, ou seja, passível de ser concebida. Mas o que torna uma substância cognoscível, isto é, suscetível de ser definida num conceito, é justamente o fato de ela ser uma determinada substância. E o que, por seu turno, assim a determina, é exatamente a sua essência. Por isso, uma definição mais adequada e restrita de substância seria: a substância é uma essência ou quididade que “é por si” (per se). Do termo substância, diz Santo Tomás: “O que ele significa é a essência à qual pertence ser de tal modo, a saber, ser por si mesma [...]” (TOMÁS DE AQUINO, 2001 I, 3, 5, ad 1). 1.3 A substância como “ser por si” (ens per se): substância e acidentes Resta ainda precisar o que significa, quando aplicado à substância, o termo “ser por si”. Ora bem, ser por si quer significar, com relação à substância, que ela possui uma unidade ontológica que a distingue de todas as demais coisas, ou seja, que ela possui um ser distinto de todos os demais seres. Diz-se ainda que a substância existe por si, porquanto tal unidade ontológica concede-lhe todas as condições requeridas para 12
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que possa existir. E essa unidade ontológica lhe é conferida, antes de tudo, pela sua essência.5 Sem embargo, toda substância é, deveras, detentora de todas as determinações necessárias para que possa existir.6 No entanto, tais determinações não existem nelas do mesmo modo. Tomemos uma substância. Antes de qualquer coisa, o que a determina, conforme já dissemos, é a sua essência. Um homem, por exemplo. A primeira coisa que o determina enquanto tal é a sua essência ou quididade, isto é, o seu quid est, aquilo sem o qual ele não poderia ser o que é, homem. Trata-se, desta feita, daquelas determinações que serão expressas na sua própria definição de homem: animal racional.7 Entretanto, ao verificarmos um homem concreto, a saber, uma substância racional concretamente realizada, perceberemos que tal substância é também dotada de outras tantas determinações complementares que não são senão exigências intrínsecas daquela sua determinação primeira, vale dizer, da sua essência. Com efeito, todo homem, exatamente por ser um animal racional, precisa ter um corpo, e este corpo, por sua vez, precisa ter sangue, ossos etc. Por conseguinte,
É a essência (essentia) que dá à substância (substantia) as condições requeridas para que ela possa existir como tal substância. Entretanto, não compete à essência, como se verá mais adiante, conceder à substância o ato de ser (actus essendi) pelo qual ela se torna um ente (ens), isto é, um ser que existe, que tem e exerce o ato de ser (actus essendi). 6 “Se dice que existe por sí, porque constituye una unidad de ser distinta de toda otra y por contener en sí todas las determinaciones para su existencia.” Tradução: “Se diz que existe por si, porque constitui uma unidade de ser distinta de toda outra e por conter em si todas as determinações requeridas para sua existência” (GILSON, 1951, p. 47, 48, tradução nossa). 7 “Sin embargo sus diversas determinaciones no existen en él con el mismo título ni de la misma manera. Están primeiro aquéllas sin las cuales no podríamos darle el nombre de hombre. Tales son las determinaciones que expresan las definiciones.” Tradução: “Sem embargo, suas diversas determinações não existem nela com o mesmo título, nem da mesma maneira. Estão primeiro aquelas sem as quais não poderíamos dar-lhe o nome de homem. Tais são as determinações que expressam as definições” (GILSON, 1951, p. 48, tradução nossa). 5
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também necessita ocupar um lugar no espaço e estar sujeito ao tempo. Ora, são essas determinações complementares que designamos com o nome de acidentes (accidens).8 E é ao sujeito (subiectum) de todas estas determinações complementares que chamamos substância. Na verdade, é este sujeito que, na sua integralidade, existe por si. Todavia, conquanto concretamente não consigamos distinguir uma substância dos seus acidentes, devemos notar sempre que todos esses acidentes existem na substância, por ela e para ela, mas não o contrário. Com outras palavras, os acidentes pertencem à substância, e não vice-versa. Porém, não se trata de pensar nos acidentes como meros agregados da substância, pois isto também comprometeria a unidade existencial, inerente a toda substância como tal. Os acidentes, na verdade, não têm existência própria fora da substância. A única forma de eles existirem é na substância e pela substância. Mas todos estes, quer dizer, a substância e os seus acidentes, existem, por sua vez, em virtude de um ato único de existir, que será o ato de existir da substância completa, isto é, da sua essência e das suas determinações complementares. A falar com máxima exação, será justamente este ato único de existir que dará existência à substância na sua inteireza e unicidade.9 Mas ainda nos falta determinar a procedência de tal ato de existir. 8 “Supongamos esta sustancia concretamente realizada: todas las determinaciones complementarias lo estarán al mismo tiempo, y lo estarán por ella. Por ser un animal, um hombre deve tener cierto color y cierta talla ocupará necesariamente en el espacio cierto lugar y cierta posición relativa. Llámase sustancia al sujeto de estas determinaciones complementarias, que a su vez reciben el nombre de accidentes.” Tradução: “Suponhamos esta substância concretamente realizada: todas as determinações complementares estarão nela ao mesmo tempo, e estarão nela por ela. Por ser um animal, um homem deve ter certa cor e certo tamanho, ocupará necessariamente no espaço certo lugar e certa posição relativa. Chama-se substância o sujeito destas determinações complementares, que, por sua vez, recebem o nome de acidentes” (GILSON, 1951, p. 48, tradução nossa). 9 “Hablar de las cosas como de sustancias no es concebirlas como grupo de accidentes ligados por cierta cópula a un sujeto; todo lo contrario: es decir que ellas están como unidades de existencia, en las que todos sus elementos constitutivos son, em virtude de um mismo e único ato de existir, que es el de la sustancia. Los accidentes
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Desta forma, já podemos estabelecer que não devemos entender este “existir por si” da substância, como se ela tivesse em si (a se) a causa mesma da sua existência. Em verdade, o único ser que existe por si, não tendo alhures a causa da sua existência, é Deus, que não é propriamente uma substância. Assim, quando aplicado à substância, este “existir por si” significa que ela possui todos os requisitos necessários para existir, e que tudo o que nela há, existe em virtude de um ato único de existir, o qual é responsável pela sua existência como substância, ou seja, enquanto uma unidade existencial.10 1.4 Forma e matéria No plano do conhecimento intelectual, que atinge o ser das coisas, atende abstrair das substâncias sensíveis, as únicas que nos são diretamente acessíveis, aquilo que nelas possui um ser próprio, vale dizer, aquilo que nelas “existe por si” de fato e de direito. Isto é possível,
no tienen existencia propia que se agregue a la de la sustancia para completarla. No tienem, pues, otra existencia que la de ella. Para ellos, existir, es simplesmente ‘existirem-la-sustancia’ o, como se dice también, su esse est inesse.” Tradução: “Falar das coisas como de substâncias não é concebê-las como grupos de acidentes ligados por certa cópula a um sujeito; ao contrário: é dizer que elas estão como unidades de existência, na qual todos os seus elementos constitutivos são em virtude de um mesmo e único ato de existir, que é o da substância. Os acidentes não têm existência própria que se agregue ao da substância para completá-la. Não têm, pois, outra existência que a dela. Para eles, existir é simplesmente ‘existir-na-substância’ ou, como se diz também, seu esse est inesse” (GILSON, 1951, p. 48, tradução nossa). 10 “La sustancia no existe por si, en el sentido de que no tenga causa de su existencia: Deus, el único que existe sin causa, no es una sustancia; ella existe por si en el sentido de que lo que es le pertenece en virtud de un acto único de existir, y se explica inmediatamente por este acto, razón suficiente de todo lo que es.” Tradução: “A substância não existe por si, no sentido de que não tenha causa de sua existência: Deus, o único que existe sem causa, não é uma substância; ela existe por si, no sentido de que o que ela é pertence-lhe em virtude de um ato único de existir, e se explica imediatamente por este ato, razão suficiente de tudo o que ela é” (GILSON, 1951, p. 49, tradução nossa). REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 9-37, jan./jun. 2011
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visto que – a modo de abstração (abstractio) – é sempre exequível separar aquilo que existe por si, a substância, dos seus acidentes.11 De resto, nada impede que consideremos à parte aquilo que “existe por si”, prescindindo, pois, daquilo que não tem existência própria, embora, na realidade, ambos existam num todo uno e indiviso, isto é, como substância. Ora, uma coisa que é peculiar às substâncias sensíveis é que elas se encontram divididas em classes. O que as classifica enquanto pertencentes a uma dessas classes é exatamente aquele elemento que, presente nelas, as torna passíveis de serem expressas num conceito. Portanto, tal elemento é o que as coloca dentro de uma dessas classes, tornando-as cognoscíveis para nós, que temos um conhecimento naturalmente conceitual, ou seja, geral. Com efeito, o elemento que torna as substâncias sensíveis suscetíveis de serem expressas em conceitos é o que chamaremos, doravante, de forma (forma). É a forma, portanto, o que determina essas mesmas substâncias, colocando-as numa espécie (species), conforme assevera o próprio Tomás: “E o modo de cada substância composta de matéria e forma é segundo a sua forma, pela qual ela pertence a uma determinada espécie” (TOMÁS DE AQUINO, 2006, 8, 43). Uma notável propriedade destas substâncias é a de serem distribuídas em classes, cada uma das quais constitui o objeto de um conceito, que, por sua vez, pode ser expresso em uma definição. É um fato inegável, de qualquer maneira que se lhe interprete, que pensamos por ideias gerais, ou conceitos. Para que este fato, que é real, seja possível, é necessário que o dado de nossa experiência sensível seja conceptualizável, isto é, que sua 11 “El análisis de lo que constituye el ser mismo de las cosas puede, pues, hacer abstracción del accidente, desprovisto de ser própio, y fijarse sobre la sustancia. Las únicas sustancias de las que tenemos experiencia directa, son las cosas sensibles, cuyas cualidades percibimos.” Tradução: “A análise do que constitui o ser mesmo das coisas pode, pois, fazer abstração do acidente, desprovido de ser próprio, e fixar-se sobre a substância. As únicas substâncias das quais temos experiência direta são as coisas sensíveis, cujas qualidades percebemos” (GILSON, 1951, p. 49, tradução nossa).
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natureza se preste a um conhecimento por conceitos. Designemos, pois, com um termo distinto o que, no real, faz possível o conhecimento conceitual. Chamemos a este elemento a forma da substância. Diremos, pois, que toda substância implica uma forma, e que, em virtude desta forma, uma substância pode classificar-se em uma espécie determinada, cuja definição expressa o conceito (GILSON, 1951, p. 49, tradução nossa).12
Cuida precisar agora como podemos distinguir as substâncias que pertencem a uma mesma espécie, ou seja, que possuem uma mesma forma. De fato, na nossa experiência mais imediata, não encontramos o “homem”, mas, sim, indivíduos humanos. Sem embargo, urge saber o que é que torna tais substâncias diversas, já que todas elas possuem uma mesma e única forma. Ora, chamaremos de matéria (materia) o princípio de individuação dessas substâncias, que se encontram em uma mesma espécie.13
12 “Una notable propiedad de estas sustancias está la de ser distribuibles en clases, cada una de las cuales constituye el objeto de un concepto, a su vez expresable en una definición. Es un hecho innegable, de cualquier manera que se lo interprete, que pensamos por ideas generales, o conceptos. Para que este hecho, que es real, sea posible, es necesario que el dato de nuestra experiencia sensible sea conceptualizable, es decir, que su naturaleza se preste a su conocimiento por conceptos. Designemos, pues, con un término distinto lo que, en lo real, hace posible el conocimiento conceptual. Llamemos a este elemento la forma de la sustancia. Diremos, pues, que toda sustancia implica una forma, y que en virtud de esta forma una sustancia puede clasificarse en una espécie determinada, cuya definición expresa el concepto.” 13 “Por otra parte, es un hecho de experiencia el que las especies no existen como tales; ‘hombre’ no es una sustancia; las únicas sustancias que conocemos son los individuos. Por lo tanto debe haber en el individuo un elemento diverso de la forma, que será precisamente el que distinga unos dos otros, a los representantes de la misma especie. Designemos ahora este nuevo elemento de lo real con um término distinto. Llamémosle materia.” Tradução: “Por outra parte, é um fato de experiência que as espécies não existem como tais; ‘homem’ não é uma substância; as únicas substâncias que conhecemos são os indivíduos. Portanto, deve haver no indivíduo um elemento diverso da forma, que será precisamente o que distingue uns dos outros, aos representantes de uma mesma espécie. Designemos agora este novo elemento do real com um termo distinto. Chamemos-lhe matéria” (GILSON, 1951, p. 49, tradução nossa).
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Portanto, a falar com exação, toda substância sensível é uma unidade existencial composta de matéria e forma. Assim a define, com meridiana clareza, Gilson: “[...] toda substância é, ao mesmo tempo e indivisamente, uma unidade de existência de uma forma e de uma matéria” (GILSON, 1951, p. 49, tradução nossa).14 1.5 O ato de existir da substância Estabelecidas essas premissas, falta-nos arguir ainda: de onde provém este ato único de existir da substância? Procede da matéria? Emana da forma? Ou dimana do composto da união de ambos? Que não seja a matéria o ato (actus) pelo qual existe (quo est) a substância, fica claro quando se tem presente que a matéria não tem existência alguma fora da forma, da qual é matéria. A matéria está para a forma como a potência (potentia) para o ato. Portanto, a matéria existe, pela forma, na substância – unidade de matéria e forma. Destarte, fora da substância, a matéria não tem existência alguma. Ora, uma vez que carece de existência própria, a matéria não pode ser causa da substância, que justamente possui uma existência própria. Di-lo-á o próprio Aquinate: “Segundo, porque o ser não é ato próprio da matéria, mas do todo substancial. Pois o ser é ato daquilo do qual podemos dizer que é. Ora, o ser não se atribui à matéria, mas ao todo. Donde não se poder afirmar que a matéria é, mas substância é o que é aquilo que é” (TOMÁS DE AQUINO, 1996, II, LIV, 1, 1289). Que não seja a matéria o que faz com que a substância seja, conhece-se no que a matéria não é suscetível de existir sem uma forma qualquer. Sempre será a matéria de uma substância que, por ter uma forma, é objeto de conceito e de definição [...]. Tomada precisamente como “[...] toda sustancia es a la vez e indivisamente una unidad de existencia de una forma y de una materia.” 14
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matéria, separada de tudo aquilo que forma parte, não tem existência. [...]. Carecendo de existência própria, a matéria não pode causar a da substância (GILSON, 1951, p. 50, tradução nossa).15
Tomemos agora a forma, e veremos que também ela não explica o ato último que dá à unidade ontológica, a qual chamamos substância, o ato de ser (actus essendi) que a torna um ente (ens). Atesta o próprio Tomás que “[...] nem a forma é o ser [...]” (TOMÁS DE AQUINO, 1996, II, LIV, 1 (1290)).16 Com efeito, a forma certamente ocupa um lugar mais nobre do que a matéria na substância. É por ela, antes de tudo, que a matéria passa a ser a matéria de uma dada substância.17 Além disso, é pela forma que a própria substância passa a ser o que é, isto é, uma unidade ontológica composta de matéria e forma e capaz de possuir uma existência própria.18 É a forma, ademais, que especifica a substância como sendo uma determinada substância. É ela, portanto, que coloca a substância numa espécie e, desta feita, que confere à substância uma inteligibilidade própria. Sem embargo, é a forma que dá uma essência específica à substância, tornando-a, assim, suscetível de
15 “Que no sea la materia lo que hace que la sustancia sea, se conoce en que la materia no es susceptible de existir sin una forma cualquiera. Siempre será la materia de una sustancia que, por tener una forma, es objeto de concepto y de definición. [...]. Tomada precisamente como materia, separada de todo aquello de que forma parte, no tiene existencia. [...]. Careciendo de existencia propia, la materia no puede causar la de la sustancia.” 16 “[...] nec forma est ipsum esse [...]” (grifo nosso). 17 “La materia no es más que un potencial determinable por la forma, siendo la forma el acto que hace la materia sea la de tal o cual sustancia determinada.” Tradução: “A matéria não é mais que um potencial determinável pela forma, sendo a forma o ato que faz com que a matéria seja a de tal ou qual substância determinada” (GILSON, 1951, p. 50, tradução nossa). 18 “El papel própio de la forma es, pues, constituir la sustancia como sustancia. [...]. Concebida así, la forma es aquello por lo cual sustancia es lo que es.” Tradução: “O papel próprio da forma é, pois, constituir a substância como substância. Concebida assim, a forma é aquilo pelo qual a substância é o que é” (GILSON, 1951, p. 50, tradução nossa).
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ser expressa num conceito.19 No entanto, isto não é tudo, visto que, uma coisa é explicar o “porquê” de algo ser o que é; outra, bem distinta, é dizer “porque” tal coisa existe, é um ente (ens). Ora, é precisamente isto o que a forma não explica.20 Assim, conclui Tomás: “Logo, nos compostos de matéria e forma, nem a matéria, nem a forma podem ser ditas o que é [ipsum quod est], nem ser [ipsum esse]” (TOMÁS DE AQUINO, 1996, II, LIV, 1 (1292)).21 Nem mesmo com relação às formas subsistentes pode-se dizer que o ato último pelo qual a substância passa a ser um ente não é a forma: “[...] a forma subsistente não é um não-ente, mas um ato que é forma participante do último que é ser” (TOMÁS DE AQUINO, 2006, 8, 44). Doravante, se não é pela matéria nem pela forma, tomadas isoladamente, que a substância existe (é um ens), então, deve haver algo que justifique por que com a composição de matéria e forma passa a existir o que antes não existia, a saber, a substância. Como, pois, da união de matéria e forma, que, tomadas em separado, não subsistem, pode nascer um ser que subsista, qual seja, a substância?22 Assim, na 19 “Con seguridad que la forma es un elemento de la sustancia más noble que la materia, ya que es la que la determina y le confiere la inteligibilidad.” Tradução: “Com certeza, a forma é um elemento da substância mais nobre que a matéria, já que é ela que determina e confere inteligibilidade à matéria” (GILSON, 1951, p. 50, tradução nossa). 20 “Explicar un ser como sustancia, equivale a decir por qué dicho ser ‘es lo que es’. [...]. Sin embargo esto no es todo, ya que una vez explicado por qué un ser es lo que es, queda por explicar lo que hace que dicho ser exista.” Tradução: “Explicar um ser como substância equivale a dizer por que tal ser ‘é o que é’. [...]. Sem embargo, isto não é tudo, já que, uma vez explicado por que um ser é o que é, resta explicar o que faz com que tal ser exista” (GILSON, 1951, p. 51, tradução nossa). 21 E ainda: “Pois o ser da coisa não é sua forma nem sua matéria, mas algo que sobrevém à coisa através da forma” (TOMÁS DE AQUINO, 2006, 8, 44). 22 “Ya que ni la materia, ni la forma pueden existir aisladas, compréndese bien la possibilidad de la existencia de su compuesto, pero no se ve cómo su unión puede engendrar la existencia actual. Cómo la existencia podria surgir de lo que no existe?” Tradução: “Já que nem a matéria nem a forma podem existir isoladas, compreende-se bem a possibilidade da existência do seu composto, porém, não se vê como sua união pode engendrar a existência atual. Como a existência poderia surgir do que não existe?” (GILSON, 1951, p. 51, tradução nossa).
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análise do real, o ato de ser (actus essendi) passa a ser o ato primeiro e fundante: “Forçoso é, pois, fazer passar a existência para primeiro lugar, como termo último que pode alcançar a análise do real” (GILSON, 1951, p. 51, tradução nossa).23 Podemos dizer que aqui nos encontramos no epicentro da doutrina tomásica. É este o ponto nevrálgico no qual descobrimos que a análise do real não termina na substância, e que o ser não se encerra na forma da substância. Com efeito, o ser (esse) não se identifica com a substância que o possui. Desta maneira, somos transportados, pelo próprio Tomás, da “ontologia essencial” de Aristóteles – que finda no acabamento da substância – para a sua própria ontologia, transfigurada em “ontologia existencial”. Tal “ontologia existencial” se define pelo fato de que, para além da substância, há um ato de ser (actus essendi) pelo qual ela existe, isto é, pelo qual ela se torna um ente, ou seja, um sendo.24 Destarte, não é mais a forma que dá a última palavra sobre o ser, isto é, o ser não consiste mais naquele elemento que faz com que a substância seja o que é e se encontre numa determinada espécie. O ser, propriamente falando, deixa de designar a forma da coisa (res). Doravante, a forma passa a ser como um quo est secundário da substância, subordinado ao seu verdadeiro quo est primário, que é o ato de ser (actus essendi). Com efeito, para além da forma, e precedendo-a, há um “Forzoso es, pues, llegar a hacer pasar la existencia a primer lugar, como último término que pueda alcanzar el análisis de lo real.” 24 “Convengamos en llamar ‘esencial’ a toda ontología, o doctrina del ser, para la cual las nociones de sustancia y de ser equivalgan. Se dirá entonces que, en uma ‘ontología essencial’, el elemento que termina al acabamiento de la sustancia es el elemento último de lo real. No puede suceder lo mismo en una ‘ontología existencial’, en la que el ser se define en función de la existencia.” Tradução: “Convecionamos chamar ‘essencial’ toda ontologia, ou doutrina do ser, para a qual as noções de substância e ser equivalem-se. Dir-se-á então que, em uma ‘ontologia essencial’, o elemento que termina o acabamento da substância é o último elemento do real. Não pode suceder o mesmo em uma ‘ontologia existencial’, na qual o ser se define em função da existência” (GILSON, 1951, p. 51, tradução nossa). 23
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ato de ser (actus essendi) que faz com que a substância – cuja essência cuida à forma determinar – exista, seja um ente. Tomás arrola este argumento, arrazoando que o esse se comporta como ato com relação à própria forma, que só passa a ser princípio de ser para a substância, enquanto é atualizada (actuatio) pelo esse, atualidade (actualitas) primária que torna a substância um ente: Além disso, porque o ser está como ato para a forma [ipsam etiam formam comparatur ipsum esse ut actus], pois, por esse motivo, nos compostos de matéria e forma, a forma é dita princípio do ser [principium essendi], porque é complemento da substância [complementum substantiae], cujo ato é o ser [actus est ipsum esse] (TOMÁS DE AQUINO, 1996, II, LIV, 1 (1291)).25
Estamos diante de um evento verdadeiramente epocal. Trata-se realmente de uma nova ideia, geratriz de todas as outras; originária, ademais, do sistema que abordamos. A substância – um composto de matéria e forma –, unidade ontológica e existencial, não existe, doravante, nem em virtude da matéria nem em virtude da forma nem mesmo em virtude do composto, senão que passa a ser um ente
25 Adiante, ele é ainda mais claro: “[...] o ser é aquilo que faz a substância denominar-se ente” (TOMÁS DE AQUINO, II, LIV, 1 (1292); “Cuando se la contempla con relación a la existencia, la forma cesa, efectivamente, de aparecer como la última determinación de lo real. [...]. Desde este segundo punto de vista, la forma sustancial aparece como un quo est secundario, subordinado al quo est primário que es el acto mismo de existir. Más allá de la forma, que hace que un ser sea tal ser, de tal especie determinada, es preciso poner el esse o acto de existir, que hace que la sustancia así constituída sea un ens.” Tradução: “Quando contemplada com relação à existência, a forma cessa, efetivamente, de aparecer como a última determinação do real. [...]. A partir deste ponto de vista, a forma substancial aparece como um quo est secundário, subordinado ao quo est primário, que é o ato mesmo de existir. Mais além da forma, que faz com que um ser seja tal ser, de tal espécie determinada, é preciso por o esse ou ato de existir, que faz com que a substância assim constituída seja um ente” (GILSON, 1951, p. 51, tradução nossa).
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por força de um ato de ser (actus essendi), que lhe é ulterior. Em outras palavras, se a forma é o quo est da substância, o ato de ser (actus essendi) é o quo est da própria forma. Por conseguinte, é o esse, no seu primado absoluto, que faz com que a substância seja um ente. É o que conclui o Aquinate: “Todavia, a forma pode ser dita pelo qual é [quo est] a coisa, enquanto princípio do ser [principium essendi]; mas a substância toda [tota substantia] é que o que é [quod est], e o ser [ipsum esse] é aquilo que faz que a substância [substantia] denomine-se ente [ens]” (TOMÁS DE AQUINO, 1996, II, LIV, 1 (1292)).26 O que é exatamente o ser (esse)? É o existir? Mas o próprio existir, o que é? É um ato ou um estado? O ser (esse) se confunde com o ente? Qual a sua relação com a essência? Como ele se comporta em relação à substância? É dessas e outras questões que, concisamente, passaremos a tratar.
2 O ser (esse) e o ente Segundo Tomás, “[...] o termo ser designa um ato”.27 De fato, “o ato é o que mais propriamente é” (LAUAND, 1999, p. 61). No entanto, o que é o ato? Ora, não há uma definição rigorosa para ele. 26 “Lo que interesa retener ante todo, es que la misma sustancia, o el compuesto, no existe más que en virtud de una determinación ulterior, esta vez verdaderamente suprema, que es su mismo acto de existir. En este sentido, o esse es el quo est de la forma, que a su vez es el quo est de la sustancia; es pues lo que hace que la sustancia seja un ens, que posea el acto de existir.” Tradução: “O que interessa reter, antes de tudo, é que a mesma substância, ou o composto, não existe mais que em virtude de uma determinação ulterior, desta vez verdadeiramente suprema, que é seu mesmo ato de existir. Neste sentido, o esse é o quo est da forma, que, por sua vez, é o quo est da substância; é, pois, o que faz com que a substância seja um ens, que possua o ato de existir” (GILSON, 1951, p. 51, tradução nossa). 27 “Esse actum quendam nominat” (TOMÁS DE AQUINO, 1996, I, XXII, 4 (208), o parêntese é nosso). Numa passagem da Summae Theologiae, Tomás usa o termo ens como sinônimo de esse. Ele diz: “[...] o ente designa propriamente algo que está em ato” (TOMÁS DE AQUINO, 2001, I, 5, I, ad 1).
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Com efeito, potência e ato são noções tão fundamentais que escapam a toda definição estrita. Sabe-se, contudo, que com o termo latino “actus” quer-se traduzir o termo grego energéia, que designa uma ação ou atividade. Logo, sendo, antes de mais nada, um ato (actus), o “ser é, acima de tudo, atividade, ato” (LAUAND, 1999). Agora bem, este mesmo ser (esse) concebido como ato coloca a substância num estado, o estado de ente, ou seja, num sendo. E, por isso mesmo, tendemos a identificar o ser (esse) com o ente (ens). No entanto, cumpre discriminar sempre e cuidadosamente o esse como ato de ser, que é o que funda e sustenta a substância no estado de ente, do próprio ente, que é propriamente um estado, o estado de habens esse.28 Portanto, importa que não “entifiquemos” o esse, pois “todas as coisas, todos os entes são, antes de tudo, aqueles que ‘exercem o ato’ de ser” (LAUAND, 1999, p. 61), e não o próprio ser (esse). Destarte, cuida que distingamos o ser (esse) e o ente (ens), como diferenciamos um ato de um estado. De fato, após termos ultrapassado a substância, o próprio ente, e havermos chegado finalmente ao esse entendido como ato de ser (actus essendi), corremos o risco, de resto, sempre presente para nós – cujo modo de conhecer natural é conceitual –, de transformarmos o mesmo esse como ato de ser (actus essendi) numa espécie de essência (essentia), suscetível, por conseguinte, de ser expressa num conceito. Ora, tal
28 “Para comprender este principio en su naturaleza propia, es necesario recordar que, como todo verbo, el verbo esse designa una acción, un acto, y no un estado. El estado en él que el esse coloca a aquello que lo recibe, es el estado de ens, es decir un “siendo”. Tradução: “Para compreender este princípio em sua natureza própria, é necessário recordar que, como todo verbo, o verbo esse designa uma ação, um ato, e não um estado. O estado no qual o esse coloca aquilo que o recebe, é o estado de ens, isto é, um ‘sendo’” (GILSON, 1951, p. 53, tradução nossa). Em outro lugar, ensina Gilson dizendo que ens diz-se daquilo que possui o ato de existir, habens esse: “Nunca estará de más repetirlo: el ens no es ni puede ser último sino refiriéndose al existir; ens significa habens esse”. Tradução: “Nunca será demais repeti-lo: o ens não é nem pode ser último senão referindo-se ao existir; ens significa habens esse” (GILSON, 1951, p. 63, tradução nossa).
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procedimento, longe de nos fazer apreender o ser (esse) numa definição, só nos alienará dele, fazendo-nos esquecê-lo em sua singularidade. Com efeito, como dissemos, o ser é, antes de qualquer coisa, um ato. E um ato, conforme também já averiguamos, é uma noção tão universal que não se deixa definir. Logo, sendo um ato, “[...] o ser escapa a qualquer definição” (LAUAND, 1999, p. 61). Desta sorte, “não podemos transformá-lo num conceito, como o fazemos com a essência de qualquer coisa, porque é anterior a qualquer ideia” (LAUAND, 1999, p. 62). O termo grego eidos (ideia) é traduzido, em latim, por forma. Logo, “por ideias, portanto, se entendem as formas de todas as coisas que existem fora das coisas mesmas” (TOMÁS DE AQUINO, 2001, I. 15, 1, C). Porém, o esse, em conformidade com o que temos dito, não é a forma, mas é o quo est da própria forma. E, sendo a forma o que na substância é suscetível de ser expresso num conceito, “o ser é, e sempre será, um mistério que o homem não pode esgotar” (LAUAND, 1999, p. 61); porquanto, ele não pode ser expresso num conceito, ele não se deixa prender numa ideia. Ora bem, uma filosofia em que o ser designa, antes de tudo, um ato, é uma filosofia do real, pois o “[...] ato é o que é real, fático, já realizado [...]” (LAUAND, 1999, p. 62). Ademais, tal filosofia torna-se, assim, o que há de mais oposto a um sistema essencialista, como bem frisa o Prof. Lauand: “Ao contrário de todo pensamento essencialista, Tomás não parte das essências, mas das coisas, dos entes, da realidade” (1999, p. 62). É ainda Lauand quem afirma: “É pelo ato de ser que Tomás supera todo tipo de essencialismo e é ‘o mais existencialista de todos os filósofos’” (1999, p. 60). Note-se bem, todavia, que não se quer com tal distinção, qual seja, entre ser (esse), ente e essência, olvidar a importância da essência nem esquivar-se do plano conceitual, mas apenas transcendê-los, ultrapassá-los, como exige a própria realidade. Esta distinção não corresponde, nem de longe, a uma separação entre esses elementos. Aliás, na concretude do real todos eles se encontram em uma unidade REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 9-37, jan./jun. 2011
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inviolável: o ser (esse), o ente (ens) e a essência (essentia) estão intrinsecamente unidos na unidade indivisa da substância (substantia). Como se dá a unidade desses elementos no real? Explica Lauand: “Todo ente é e é algo: é homem, é cão, é pedra. Nesta composição, se o responsável pelo é do ente é o ato de ser, seu complemento necessário, a essência, corresponde ao ‘quê’ que o ente é” (LAUAND, 1999, p. 62). Por conseguinte, se o ente é o que exerce o ato de ser (actus essendi), “[...] a essência é a medida da recepção do ato de existir” (LAUAND, 1999, p. 63). De fato, se a substância é um ente pelo ato de ser (actus essendi), a essência é o que o ente é, e, assim, “[...] a essência é o que responde à pergunta: ‘O que é isto’?” (LAUAND, 1999, p. 63). Em uma palavra, o ente, em nossa experiência, é sempre alguma coisa que existe, alguma coisa que possui e exerce um ato de ser (actus essendi) delimitado pela sua essência. Assim, pois, ser (esse), ente (ens) e essência são inseparáveis na nossa experiência sensível, conquanto permaneçam distintos. Joseph Nicolas assim sintetiza esta unidade na diversidade ou estes desdobramentos do conceito de ser: Quando se fala de ser, pode-se tratar do que é uma realidade (sua essência), do ato de existir que a faz ser real (sua existência), do ser que exerce esse ato e que se define como sendo isto em vez daquilo (é o ens, o sendo). Inseparabilidade da essência e da existência, pois nada é concebível como existente senão conforme uma essência. Mas distinção real, “o que é” um ser não pode identificar-se com o fato de ser, nem, sobretudo, com o ato pelo qual ele “é” (MARIE, 2001. p. 41).
3 A clássica distinção entre essência e existência Essência e existir atende saber distingui-los, sem eliminá-los. Cuida frisar-lhes a diferença sem suprimi-los ou confundi-los. A consagrada distinção entre essência e existência, tal como é explanada por certos comentadores, segundo nos parece, não é satisfatória, porquanto resulta numa tentativa de essencializar o ato de ser (actus essendi), como se a existência da coisa fosse, então, a essência do esse.29 De fato, 26
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importa sublinhar que a existência da substância é um estado, ou seja, o fato de ela existir é o que a faz ou a torna um ente, um “sendo”. E, como temos dito, o ente (ens) é o que é, e não o ato de ser (actus essendi) pelo qual (quo est) a coisa (res) é e é o que é (quod est). O ente, segundo também temos afirmado, é como que o exercício, por assim dizer, do ato de ser (actus essendi) que ele possui, não sendo, todavia, o próprio ato de ser (actus essendi), haja vista que o ato de ser (actus essendi) é um ato, e não propriamente um estado, o estado de ente. Portanto, cumpre-nos dizer que a clássica distinção é insuficiente. Na verdade, esta confusão entre existência e existir, entre ser (esse) e ente, procede do fato – tão corriqueiro quanto inevitável para nós – de que na nossa experiência concreta não encontramos nada que seja um puro ato de ser (actus essendi), mas tão-somente algo que existe: “uma árvore existente”, “um homem que existe” etc. De fato, nós só encontramos entes que exercem o ato de ser (actus essendi), sem sê-lo por essência (per essentiam). Por isso mesmo, tendemos a identificar o ser (esse) com aquilo que o tem e exerce, a saber, o ente (ens). Destarte, como o quid est do ente nos é apreensível, enquanto confundimos o esse com o ente, supomos que também o esse – tal como a quididade de um ente qualquer – possa também ser definido num conceito. E, assim, inclinamo-nos a pensar o esse como sendo algo estático. Mas a verdade é que o esse não é como uma essência, nem sequer tem uma essência se considerado em si mesmo. Ao contrário, o esse, enquanto tal, é simplesmente um ato. Decerto a existência de uma coisa atesta que ela possui o esse de algum modo, mas tal estado de existente não é o próprio ato de ser (actus essendi), senão que é apenas a expressão evidente do seu vigor e como que a manifestação da sua presença. 29 “Hablar de la distinción entre esencia y existencia, es expresarse como si la misma existencia fuera una esencia: la esencia del ato de existir. Y esto es ponerse a tratar como una cosa lo que es un ato.” Tradução: “Falar da distinção entre essência e existência é expressar-se como se a mesma existência fosse uma essência: a essência do ato de existir. E isto é tratar como uma coisa o que é um ato [...]” (GILSON, 1951, p. 54, tradução nossa).
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4 O esse: o ato dos atos e a perfeição das perfeições O esse é o ato, havíamos dito, da própria forma.30 E, seguindo este raciocínio, dissemos também que o esse passa a ser o quo est primário da própria substância, enquanto a forma passa a ser apenas o quo est secundário da mesma substância. De fato, como é a forma que determina o ser da substância, e é o esse que determina o ser da própria forma,31 a substância deve ao esse, em último termo, o seu status de ente, conforme deixa claro Frei Tomás: “Todavia, a forma pode ser dita pelo qual é [quo est] a coisa, enquanto princípio do ser; mas a substância toda é o que é [est ipsum quod est], e o ser [ipsum esse] é aquilo que faz a substância denominar-se ente [ens]” (TOMÁS DE AQUINO, 1996, II, LIV, 1 (1292)). Assim, sendo o esse o que confere o ser a todas as coisas, é ele o que mais propriamente se pode designar como ser: “Para Sto. Tomás, o ser é antes de tudo existir. O ser se define em função da existência” (MARIE, 2001, p. 40). Desta sorte, numa “ontologia existencial” como a tomásica, o ser passa a designar realmente um ato (actus), o ato de ser ou existir (esse, actus essendi), como já explicamos. E há mais. Como cada coisa é perfeita na medida em que está em ato,32 o esse, sendo um ato em si mesmo e um ato com relação a todas as coisas, é, ipso facto, “Ora, qualquer forma particular só se encontra em ato se se lhe acrescentar o ser [esse]” (TOMÁS DE AQUINO, 2005b, p. 220, 221). 31 “Portanto, o ser [esse] é o complemento de todas as formas. De fato, a forma só chega à conclusão quando tem o ser [esse]; e só tem o ser [esse] quando é em ato. De modo que não existe nenhuma forma a não ser mediante o ser [esse]” (TOMÁS DE AQUINO, 2005d, p. 220). 32 Por que uma coisa é perfeita enquanto está em ato?, poder-se-ia arguir-nos. Diz-se perfeito, do latim perfectio, ao que está totalmente feito (totaliter factus). Portanto, per-fectum diz-se sempre de algo que já está realizado, consumado, concluído. Ora, opõe-se a esta noção de perfeição a noção de potência. Do latim, o termo potentia designa sempre o que pode ser, mas ainda não é; potência é sempre uma capacidade de vir-a-ser. Ao contrário, o ato, do latim, actus, praticamente coincide com a definição que propomos dar para perfeição. Entretanto, o ato designa, antes de tudo, algo já realizado, completo, arrematado. 30
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o que há de mais perfeito na coisa33 e a perfeição das perfeições, isto é, a fonte de todas as demais perfeições.34 De fato, enquanto o esse é a atualidade de todo ato, e sendo o ato a própria perfeição de uma coisa, é do esse que procede toda perfeição: “[...] o ser [esse] é a atualização [actualitas] de qualquer forma ou natureza. Não se entende a bondade ou a humanidade em ato, a não ser enquanto as entendemos como existindo [esse]” (TOMÁS DE AQUINO, 2001. I, 3, 4, C). Em uma palavra: “Ora, aquilo que é o mais formal (maxime formale omnium) é o próprio ser (ipsum esse)”,35 e, sendo assim, é o epicentro ou o polo de onde dimana toda perfeição. Dizer, afinal, que o esse é um ato para si próprio, corresponde a dizer que ele não é o ato de uma essência, mas sim o ato pelo qual a essência – e toda a substância, inclusive a própria forma – passa a ser um ente.36 Por isso, em relação à forma e à própria substância como um todo, o esse não se comporta como tendo delas recebido algo; ao contrário, foi ele (o esse) que lhes conferiu e confirma o estado de habens esse: Deve-se dizer que o ser (ipsum esse) é o que há de mais perfeito entre todas as coisas, pois a todas se refere como ato. E nada tem atualidade senão enquanto é: o ser (ipsum esse) é, portanto, a atualidade de todas as coisas, até das formas. Por conseguinte, não se refere às coisas como o recipiente ao que é recebido, e sim como o que é recebido ao recipiente (TOMÁS DE AQUINO, 2001, I, 4, 1, ad 3). “[...] esse est inter omnia perfectissimum [...].” Tradução: “[...] o ser é a mais perfeita de todas as coisas” (TOMÁS DE AQUINO, 2005b, p. 220). 34 “O ser [esse] é a atualidade de todo ato e, portanto, a perfeição de toda perfeição” (TOMÁS DE AQUINO, 2005b, p. 2119). 35 “O ser, concebido como raiz de tudo, é o que põe em ato tudo aquilo que existe. [...] o ser é o ato supremo, a forma de todas as formas” (TOMÁS DE AQUINO, 2001, p. 220). 36 “Além da forma que faz que tal ser se situe numa espécie determinada, é preciso situar o esse ou ato de existir que faz com que a substância assim constituída seja um ens, um ser” (MARIE, 2001). 33
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5 O ser (esse) e a essência Sendo o esse um ato para si mesmo, isto significa, finalmente, que ele é puro, isto é, isento de toda ulterior determinação, ele simplesmente existe. Agora bem, este existir puro, por mais nada determinado, é, ademais, infinito. Além disso, enquanto puro ato – e o ato é o que responde por toda perfeição –, o esse, sendo um ato ilimitado, é também uma perfeição infinda. Ele é o que é: unicamente ato de existir. Único, de fato, porque nada pode ser concebido, enquanto existindo, que exista fora dele, visto que, sendo ele o próprio existir, nada pode existir independentemente dele, e nem ser o que ele não seja, de forma mais eminente.37 É claro que, para um ato de existir como este, nem se colocaria o problema da distinção entre essência e existir (esse), pois, se assim nos pudéssemos expressar, no caso do tal ato puro de existir, a sua essência seria precisamente existir (esse). Ele existiria em virtude de si mesmo, seria o seu próprio existir (suum esse). Porém, bem se vê que não é exatamente deste ipsum esse subsistens que estamos falando agora, e, sobre a sua existência ou não, nada podemos concluir ainda. Por hora, com relação a ele, podemos apenas postular que, se verdadeiramente existe, deverá, deveras, ser de tal forma que a sua própria essência (essentia) seja ato puro de existir (esse). Dito de outra forma, se existir, existirá por si mesmo (a se).38 “Poner semejante acto, sin outra determinación, es ponerlo como puro, ya que no es sino el acto de existir; pero es también ponerlo como absoluto, ya que es todo el acto de existir; y, finalmente, es ponerlo como único, ya que nada que sea puede concebirse como siendo que el acto puro de existir no lo sea.” Tradução: “Por semelhante ato, sem outra determinação, é pô-lo como puro, já que não é senão o ato de existir; porém, é também pô-lo como absoluto, já que é todo o ato de existir; e, finalmente, é pô-lo como único, já que nada que seja pode conceber-se como sendo que o ato puro de existir não o seja” (GILSON, 1951, p. 55, tradução nossa). 38 “Que el acto puro de existir exista o no, todavía lo ignoramos a esta altura de nuestra investigación; pero está claro, por lo menos, que si tal ser existe, existe en cierto modo por derecho propio, como ser cuya esencia misma es el existir.” Tradução: “Que o ato puro de existir exista ou não, todavia ignoramo-lo a esta altura de nossa investigação; porém, está claro, pelo menos, que, se tal ser existe, existe de certo modo por direito próprio, como ser cuja essência mesma é o existir” (GILSON, 1951, p. 55, tradução nossa). 37
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No entanto, no nosso contato com as coisas sensíveis – as únicas, aliás, que nos são imediatamente acessíveis –, encontramos apenas atos de existir finitos e limitados. Na nossa experiência mais concreta com o real, deparamo-nos somente com “um animal que existe”, com “um homem existente”, ou com uma “árvore que existe”. Todos estes seres compõem espécies que se distinguem uma das outras pelo fato de cada uma ter uma essência própria.39 Portanto, dados atos de existir, encontrá-los-emos definidos e determinados pelas diversas essências que constituem os entes que povoam este mundo. E é justamente em relação à existência destas substâncias que se coloca, de forma inalienável, o problema da distinção, nelas, entre essência e ato de existir (esse, actus essendi), já que em nenhuma delas a essência se identifica com o ato de existir. De fato, a essência de uma árvore é ser uma árvore, de um animal, ser um animal, de um homem, ser um homem. Assim sendo, a existência não se inclui em nenhuma dessas essências. Por conseguinte, o fato de elas existirem torna-se um problema inolvidável para o metafísico, já que não possuem em si a razão do seu existir.40
39 “Son, como lo hemos dicho ya, las sustancias concretas, objeto de nuestra experiencia sensible. Ninguna dellas nos es conocida como un puro acto de existir. Distinguimos a cada una de ellas como siendo ya ‘un árbol existente’, o ‘un animal existente’, o ‘un hombre existente’. Esta determinación específica de los atos de existir, que sitúa a cada uno de ellos en una espécie determinada, es precisamente lo que llamamos su esencia.” Tradução: “São, como já temos dito, as substâncias concretas, objeto de nossa experiência sensível. Nenhuma delas nos é conhecida como um puro ato de existir. Distinguimos a cada uma delas como sendo já ‘uma árvore existente’, ou ‘um animal existente’, ou ‘um homem existente’. Esta determinação específica dos atos de existir, que situa cada um deles em uma espécie determinada, é precisamente o que chamamos sua essência” (GILSON, 1951, p. 55, tradução nossa). 40 “Ahora bien, si se trata de tales seres, los únicos de que tenemos conocimiento empírico, el problema de su existencia se impone ao pensamiento. [...] en um árbol, un animal o un hombre. Su esencia es ser ya un árbol, ya un animal, ya un hombre;
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Ora bem, já dissemos que o ser (esse) é, antes de qualquer coisa, um ato, uma ação ou uma atividade. Aliás, é a primeira e a mais fundamental das ações, pois todas as demais ações de uma natureza procedem dele, tendo em vista que o “[...] agir segue o ser em ato [...]” (TOMÁS DE AQUINO, 2001 III, LXIX, 10 (2450)),41 e o “[...] o modo de agir [modus operandi] de toda coisa é uma consequência de seu modo de existir [modum essendi]” (TOMÁS DE AQUINO, I, 89, 1, C).42 Contudo, ao mesmo tempo, segundo a arguta observação do Prof. Lauand, “[...] o ser não é uma atividade a mais que deriva da natureza de cada coisa. O ser – no sentido de ser-real – está fora e acima da série de características que compõem a essência” (LAUAND, 1999, p. 61). Com outras palavras, a raiz da ação de todas as coisas, isto é, a causa primeiríssima de toda atividade das criaturas não procede da natureza delas, pois o ato de todas as ações é o existir (esse), que, precisamente, nenhuma delas possui por essência (per essentiam). Por conseguinte, neste ponto de vista, a vetusta distinção entre essência e existência recupera, ao menos parcialmente, o seu sentido. Entretanto, melhor seria concebê-la e colocá-la como uma distinção
em ningún caso su esencia es el existir. El problema de la relación de la esencia con su acto de existir se plantea, pues, de una manera ineluctable respecto de todo ser cuya esencia no sea el existir.” Tradução: “Agora bem, se se trata de tais seres, os únicos de que temos conhecimento empírico, o problema de sua existência se impõe ao pensamento. [...] uma árvore, um animal ou um homem. Sua essência é ser já uma árvore, já um animal, já um homem; em nenhum caso sua essência é o existir. O problema da relação da essência com seu ato de existir se coloca, pois, de uma maneira inelutável, com respeito a todo ser cuja essência não seja o existir” (GILSON, 1951, p. 55, tradução nossa). 41 “[...] agere sequitur ad esse in actu [...].” 42 “O ato [actus], com efeito, é o princípio da ação [actionis principium est]” (TOMÁS DE AQUINO, 1996, II, VI, 6 (884)); “[...] a coisa age [agit] enquanto é ato [actu]” (TOMÁS DE AQUINO, 1996, I, XVI, 4 (131)); “Além disso, nenhuma coisa opera [agit] senão enquanto está em ato [actu]” (TOMÁS DE AQUINO, 1996, I, XXVIII, 4 (265)). E ainda: “[...] todo ser [unumquodque] age [agit] enquanto está em ato [actu]” (TOMÁS DE AQUINO, 2001, I, 25, 1, ad 1). 32
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entre essência e ato de existir (esse, actus essendi). É o que conclui Gilson: “Tal é também o alcance da distinção de essência e existência, que indubitavelmente seria melhor chamar distinção de essência e de existir” (GILSON, 1951, p. 55, tradução nossa).43 Com efeito, o que fica estabelecido como certo é que um ente cuja essência não seja ato de ser (actus essendi) não existe por direito próprio. Ora, é justamente com isto que nos deparamos na nossa experiência sensível mais imediata. Encontramo-nos, de fato, diante de entes cuja essência não é ato de ser (actus essendi). Destarte, tais entes, inobstante existam, poderiam também não existir. Em uma palavra, são entes contingentes, isto é, entes cuja essência não implica ou inclui o ato de ser (actus essendi). Esses entes, por conseguinte, não têm em si a razão suficiente da sua existência, a saber, o fato mesmo de serem entes. Dito isso, teríamos que colocar em seguida a questão da existência de Deus – ser necessário e Ipsum Esse Subsistens –, mas isso já excederia o objeto de estudo deste ensaio.
Conclusão Nem a hyle (matéria), nem a morphé (forma), tampouco o sínolo, constitui, para Tomás, o núcleo mais íntimo do real. Antes, o pulsar primeiro da realidade – o coração do real –, em Tomás, está no ato de existir (esse),44 ou seja, naquele ato de ser (actus essendi) pelo qual a própria substância (ousía) passa a ser um ente (ens), um existente. A metafísica
“Tal es también el alcance de la distinción de esencia y existencia, que indudablemente sería mejor llamar distinción de esencia y de existir.” 44 “Así entendido, el acto de existir se sitúa en el corazón o, si se quiere, en raiz misma de lo real. Es, pues, el principio de los principios de la realidad.” Tradução: “Assim entendido, o ato de existir se situa no coração ou, se se quiser, na raiz mesma do real. É, pois, o princípio dos princípios da realidade” (GILSON, 1951, p. 52, 53, tradução nossa). 43
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tomasiana não se encerra, portanto, no hilemorfismo aristotélico. Tomás não deixa de se referir a esta ontologia existencial. Para ele, nas substâncias sensíveis há duas composições (compositio) de potência (potentia) e ato (actus), a saber, a de matéria e forma, que constitui a substância (substantia), e a de substância (substantia) e ser (esse), pela qual a substância passa a ser um ente (ens), ou seja, a existir: Porém, nas substâncias compostas de matéria e forma há dupla composição de ato e potência: uma, é a da própria substância, que se compõe de matéria e forma; outra, da própria substância (que já é composta) e ser, composição que também pode ser expressa assim: o que é e ser, ou o que é e pelo qual é. (TOMÁS DE AQUINO, 1996 II, LIV, 3 (1295)).45
Eis, enfim, estabelecida a primazia do esse. Isto implica que, antes da bondade, há o ser, fonte de toda bondade: “[...] todo ente, enquanto tal, é bom” (TOMÁS DE AQUINO, 2001, I, 5, 3, C). Em uma palavra, isto significa que, como diz Tomás: “[...] o ser (esse) é a atualidade (actualitas) de todas as coisas (omnis rei) [...]” (TOMÁS DE AQUINO, 2001, I, 5, 1, C). Ora, com este primado do ipsum esse ultrapassamos o plano da essência, visto que, acima de toda e qualquer forma (que é o quo est que
45 Mesmo em relação às substâncias separadas, uma coisa é o ato de ser; outra é a substância receptiva desse ato: “Logo, em todo e qualquer ser – exceto o primeiro – há tanto o próprio ser como ato, quanto à substância que possui o ser da coisa como potência receptiva deste ato que é o ser” (TOMAS DE AQUINO, 2006, 8, 42); “En resumen: en las sustancias concretas que son objeto de la experiencia sensible, escalónanse en profundidad dos composiciones metafísicas: la primera, la de la materia y de la forma, constituye la sustancialidad de la sustancia; la segunda, la de la sustancia com el ato de existir, constituye la sustancia como ser, por hacer de ella un existente.” Tradução: “Em resumo: nas substâncias concretas, que são objeto da experiência sensível, escalam-se em profundidade duas composições metafísicas: a primeira, a de matéria e forma, constitui a substancialidade da substância; a segunda, a da substância como ato de existir, constitui a substância como ser, por fazer dela um existente” (GILSON, 1951, p. 52, tradução nossa).
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determina o quod est da substância, isto é, a sua essência),46 encontra-se o ipsum esse, que é o ato da própria forma, ou seja, o seu quo est: “Dizer que o existir se comporta como um ato, ainda com respeito à forma – ad ipsam etiam formam comparatur esse ut actus – é afirmar a primazia radical da existência sobre a essência” (GILSON, 1951, p. 52, tradução nossa).47 Fica estabelecido, além disso, que o ato de ser (actus essendi) não é um agregado à coisa; ao contrário, ele é o que há de mais íntimo em algo, é o que por primeiro deve-se denominar ser. E é por isso, aliás, como bem acentua Lauand, que “[...] o ato de ser é que é o ponto de partida [...]”, ou seja, partimos dele exatamente porque ele é “[...] o elemento mais fundamental de todos os entes” (LAUAND, 1999, p. 63). De fato, o esse é o que há de mais basilar na substância. Destarte, assim é porque antes de possuir o ser (esse), a própria essência, que é o quid est da substância, é um puro nada, conforme afirma o próprio Aquinate: “Antes de possuir o ser [esse], a essência é um puro nada” (TOMÁS DE AQUINO, 2005b, 3, 5, ad 3. p. 219). Ademais, é o esse o que determina a própria forma, que é a que, por seu lado, determina e dá unidade existencial à substância. Logo, o esse é o que funda a mesma substância no que ela tem de mais íntimo, a saber, a sua unidade existencial de matéria e forma: “Ora, o ser (esse) é o que há de mais íntimo e de mais profundo em todas as coisas, pois é o princípio formal de tudo o que nelas existe [...]” (TOMÁS DE AQUINO, 2001, I, 8, 1, C). Conclui Tomás: O ato primeiro é o ser subsistente [esse subsistens] por si mesmo. Por isso, todas as coisas recebem o último complemento pela participação no ser [esse]. [...]. Por isso, afirmo que o ser substancial de todas as coisas não
46 A forma, ao determinar a essência (essentia), determina também os complementos da essência (essentia). 47 “Decir que el existir se comporta como um acto, aun com respecto a la forma – ad ipsam etiam formam comparatur esse ut actus – es afirmar la primacía radical de la existencia sobre la esencia.”
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é um acidente, e sim a atualidade de todas as formas existentes, sejam elas dotadas ou não de matéria (TOMÁS DE AQUINO, 2005d, XII, 5, 1. p. 220).
E não é só. Neste mesmo sentido, di-lo-á o mesmo Tomás que, sendo o esse o que há de mais íntimo no ente, medir-se-á a profundidade de tudo mais que houver no ente pela sua maior ou menor proximidade do esse. Corolário espontâneo de tudo quanto dissemos é que, para Tomás, não é esse que deriva de essentia, mas sim essentia é que deriva de esse. Com outras palavras ainda, não é correto dizer que algo é (esse) porque é um ser (ens), mas, sim, que algo é um ser (ens) porque é (esse). “Esse não deriva de essentia, senão essentia de esse. Não se diz de um objeto qualquer que é porque é um ser, senão, melhor, ou ao menos deveria concebê-lo assim, que é um ser porque é. Por isso o existir não é um acidente da essência” (GILSON, 1951, p. 63, tradução nossa).48
Referências GILSON, Etienne. El tomismo: introducción a la filosofía de Santo Tomás de Aquino. Trad. Alberto Oteiza Quirno. Buenos Aires: Desclée de Brouwer, 1951. LAUAND, Luiz Jean. Tomás de Aquino: vida e pensamento – estudo introdutório geral (e à questão “sobre o verbo”). In: Verdade e conhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 1999. MARIE, Joseph Nicolas. Introdução à Suma Teológica. Trad. Henrique C. de Lima Vaz et al. São Paulo: Loyola, 2001. MONDIN, Battista. Quem é Deus? Elementos de teologia filosófica. 2. ed. Trad. José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2005. “Esse no deriva de essentia, sino essentia de esse. No se dice que un objeto cualquiera que es porque es um ser, sino más bien, o al menos debería concebírselo así, que es un ser porque es. Por eso el existir no es un acidente de la esencia [...].” 48
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TOMÁS DE AQUINO. De natura accidentium. In: MONDIN, Battista. Quem é Deus? elementos de teologia filosófica. 2. ed. Trad. José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2005a. ______. De potentia. In: MONDIN, Battista. 2. ed. Quem é Deus? Elementos de teologia filosófica. Trad. José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2005b. ______. O ente e a essência. 2. ed. Trad. Carlos Arthur do Nascimento. Rio de Janeiro: Vozes, 2005c. ______. Quodl. XII, 5, 1. In: MONDIN, Battista. Quem é Deus? Elementos de teologia filosófica. 2. ed. Trad. José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2005d. ______. Sobre os Anjos. Trad. Luiz Astorga. Rev. Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2006. ______. Suma contra os gentios. Trad. Odilão Moura e Ludgero Jaspers. Rev. Luis A. De Boni. Porto Alegre: EDPUCRS, 1996. 2 v. ______. Suma teológica. Trad. Aimom- Marie Roguet et al. São Paulo: Loyola, 2001. v. I.
THE EXISTENCE ACCORDING TO THOMAS AQUINAS Abstract This article studies the notion of existence in Thomas Aquinas’ ontology. It discusses the existence understood as the act of being. To develop this theme, we will define some recurrent terms in Thomas’ ontology: substance, essence, accident, matter, form, being, act and potentiality. Having conducted to the analysis of these terms, we will try to relate them to the being. Thus, we will deal with the issue of the relation between: being and substance, being and entity, essence and existence, being and act and being and perfection. Key words: Existence, act, perfection.
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ALGUMAS PREMISSAS FILOLÓGICAS PARA A COMPREENSÃO DO SENTIDO DE BEATITUDE NO ‘DE BEATA VITA’ DE S. AGOSTINHO Adriano Beraldi*
Resumo Neste artigo procuramos esclarecer a acepção do termo beatitudo para o “jovem” Agostinho através de um recurso filológico, mais exatamente pela via etimológica. Esse recurso visa a uma melhor compreensão da concepção do pensador sobre o tema da felicidade à época de seus escritos iniciais, especificamente na obra De beata vita, composta no ano de 386. Entendemos que este aspecto, embora pouco explorado, é um interessante viés introdutório à referida obra bem como aos demais trabalhos compostos no período da produção intelectual agostiniana conhecido como “Diálogos de Cassiciacum”. Palavras-chave: Beatitudo, e δαιμονία, mακαρία, etimologia, paganismo, cristianismo.
Introdução Para o pensamento grego em geral, o alcance da ε δαιμονία, isto é, da felicidade como escopo último de todo ser humano, implicava o exclusivo exercício das instâncias noéticas e volitivas essenciais ao homem per se. Esta concepção, mutatis mutandis, foi aquela herdada por figuras do pensamento pagão latino, cujos influxos sobre Agostinho revelam-se praticamente inegáveis, como Cícero e Sêneca.1 Assim, Mestre em filosofia (UFES). Sobre tais influxos cf., entre outros, AUGUSTIN, Saint. De beata vita/La vie heureuse. Introduction, texte critique, traduction, notes e tables par J. Doignon. Paris: Bibliothèque Augustinienne, 4/1. Les oeuvres de Saint Augustin, 1986 e SANGALLI, Idalgo José. O fim último do homem. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998. * 1
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Algumas premissas filológicas para a compreensão do sentido de Beatitude no De Beata Vita de S. Agostinho
entre os latinos, a felicidade, desde esse horizonte teleológico, passa a se expressar, grosso modo, através do lema beatitudo. Embora não haja um alinhamento por parte de Agostinho no tocante ao aspecto eudaimônico da exclusividade, digamos, logocêntrico-volitiva, uma vez que a felicidade humana tem que estar, para nosso pensador, submetida à graça divina,2 esta condição encontra-se inserida ao longo das reflexões do De beata vita: ainda que não bastantes, a ratio (razão) e voluntas (vontade) são importantes na construção de uma vida feliz. Mas o que fica claro já desde o preâmbulo da obra é que, nelas mesmas, ratio e voluntas não são mais suficientes para a beatitudo. Ou seja, ao contrário daquela tradição que o influenciara, em Agostinho, o homem deixa de possuir autonomia para o atingimento da felicidade: sem a intervenção da Graça, simplesmente não estamos aptos a alcançá-la. De todo modo, no supracitado preâmbulo, Agostinho deslinda uma rica alegoria. Nela, a beatitudo é o objetivo a ser alcançado pelos navegantes em um vasto oceano, metáfora3 para a nossa condição existencial. E esta alegoria envolve a sua própria experiência de vida, descrevendo a particular “navegação” agostiniana em busca da felicidade, o que justifica a classificação do De beta vita como as suas “primeiras Confissões”.4 Mais. Este estilo alegórico nos permite pontuar, ainda que brevemente, interessantes aspectos desse seu “itinerário”, o que ajudará a nos situarmos para a posterior análise etimológica do termo beatitudo empregado pelo nosso filósofo.
Já no início do diálogo De beata vita (I, 1) Agostinho declara a insuficiência da razão e da vontade humanas para a consecução da felicidade. 3 O estilo metafórico percorre praticamente toda a obra, sendo uma de suas mais interessantes marcas. Esse aspecto do De beata vita valeria, certamente, um estudo próprio. Mas aqui tal signo aparecerá mencionado somente de passagem, pois, levado a cabo na profundidade que merece, extravasaria, e muito, nosso propósito específico. 4 “Les premières confessions de Saint Augustin” é o título de um artigo de Pierre Courcelle para a Revue des Études Latines, n. 22, 1943-1944, referindo-se ao trecho I, 4 do De beata vita. Cf. também AUGUSTIN, 1986, n. compl. 3, p. 135-140. 2
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Seu verdadeiro percurso começa com o primeiro contato com a filosofia ainda em sua terra natal, Tagaste, no norte da África, através da retórica de Cícero na obra Hortensius – de cunho protréptico e da qual, hoje, só nos restam fragmentos.5 A partir dessa leitura, Agostinho, tomado de entusiasmo, aventura-se na navegação e enfrenta as primeiras “névoas da rota”. Com os maniqueus e sua doutrina materialista-dualista, após um longo convívio, aos poucos vai se desiludindo, descobrindo que as supostas verdades que escondiam não passavam de vacuidades veladas. Frustrado, ele segue os “ventos” rumo aos Acadêmicos, e, entre eles, sofre o fustigar das “vagas” da incerteza cética que dominava o ecletismo da Escola nesse período. Finalmente, depois de “oceanos” de angustiada busca, percurso que descreverá pormenorizadamente em suas futuras Confessiones, Agostinho chega, em 384, a Milão, onde ocupa por algum tempo, e não sem destaque, a função de professor de retórica,6 período em que também trava contato com o neoplatonismo, bastante presente nos círculos instruídos milaneses, inclusive entre aqueles cristãos (quanto ao estoicismo, ao menos em relação a Sêneca, certamente já era conhecido desde os tempos de estudante). Ali, a partir da concepção transcendental da filosofia plotiniana, entrevê o “porto” procurado, e descobre que Deus é a ideia que está além de qualquer imagem material, do mesmo modo que a alma, a realidade humana mais assemelhada a Ele. Lê, então, umas poucas obras neoplatônicas traduzidas para o latim, cotejando-as com trechos das Escrituras, mas, ainda assim, apesar das várias correspondências possíveis entre
Um dos quais é citado de modo textual no De beata vita, II, 10, como sublinha Werner Beierwaltes. Regio beatitudinis: Augustine’s concept of happiness. In: The Saint Augustine lecture series: Saint Augustine and the agustinian tradition. Villanova: Villanova University Press, 1980. n. 68. p. 34. 6 Tendo lecionado desde 373, sucessivamente, em Tagaste, Cartago e Roma, onde abandona, em definitivo, o maniqueísmo e frequenta a Academia cética de então. 5
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Algumas premissas filológicas para a compreensão do sentido de Beatitude no De Beata Vita de S. Agostinho
ambas as fontes – como aquelas feitas por Ambrósio, por exemplo7 –, sente-se incompleto. A propósito dos elementos deste aporte neoplatônico, seja via Porfírio, seja diretamente de Plotino – de todo modo, ambos na tradução para o latim, dadas as dificuldades com os textos gregos reveladas mais tarde pelo próprio Agostinho (AGOSTINHO, 2009a, I, 14, 23) –, eles emergem não só no De beata vita, mas claramente ao longo de todo o Contra acadêmicos e em outros trabalhos iniciais do filósofo. A este ponto, vale notar que especificar essas contribuições neoplatônicas constitui uma tarefa virtualmente impraticável, ainda que não faltem argumentos em favor de determinados tratados plotinianos, como a Eneada, I, 6, ou escritos de Porfírio, como o De regressu animae (CATAPANO, 2006, p. 128). Aliás, a vexata questio, a controversa questão de quais seriam precisamente os tais Plotini paucissimis libris (pouquíssimos livros de Plotino) mencionados por Agostinho no De beata vita (AGOSTINHO, 1986, p. 58), tem gerado várias hipóteses, muitas não concordes, entre os estudiosos. Um dos maiores óbices a alguma certeza a esse respeito é a própria declaração agostiniana em seus primeiros escritos de que aquelas obras eram traduções de seu contemporâneo Mario Vittorino. Este, convertido ao cristianismo em seus últimos anos, verteu para o latim alguns escritos neoplatônicos, comentários a Cícero e Aristóteles, entre outros, além de compor obras próprias de cunho teológico. Mas, como Agostinho não fornece informações mais pormenorizadas sobre os referidos livros de Plotino, impõe-se a dúvida, dado o caráter de tradução feita por Vittorino, se aqueles seriam acompanhados ou não pelos comentários de Porfírio, ou mesmo se seriam não mais que passagens citadas deste em alguma de 7 As homilias “De Isaac vel anima” e “De bono mortis” são dois casos, entre outros, dessas correspondências. Cf. MORESCHINI, Claudio. História da filosofia patrística. Tradução de Orlando S. Moreira. São Paulo: Loyola, 2008. p. 430-439.
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suas obras. De todo modo, quaisquer que tenham sido efetivamente as obras “plotinianas”, o fato é que as influências, diretas ou não do Licopolitano – e com ele, aquelas platônicas8 –, são, na prática, incontestáveis nesse nosso primeiro Agostinho. Nesse sentido, vale a pena citar que, em relação à referência que Agostinho faria muitos anos depois que lera um pouco antes da sua conversão, em 386, “alguns livros platônicos”,9 há quem defenda que teria ele conhecido efetivamente a doutrina neoplatônica em junho daquele mesmo ano, através das Eneadas de Plotino e alguns escritos de Porfírio (COSTA, 2002, p. 155, n. 36). Assim, pesadas todas essas possibilidades, é a noção de felicidade no Plotino das Eneadas que levamos em conta aqui como influxo neoplatônico, uma vez tratar-se da primeira e principal fonte escrita dessa doutrina.10
8 E não apenas com Plotino. É interessante assinalar aqui a lembrança de G. Catapano. Em Epistolae, 7, I, 2, a doutrina platônica da reminiscência é defendida como notória descoberta socrática em termos bem aproximados daqueles presentes no Mênon e no Fédon. Entretanto, como não se pode comprovar uma leitura direta destes diálogos platônicos por parte de Agostinho, considera-se, amiúde, que ele teria entrado em contato tanto com a teoria da anamnese quanto com a maiêutica socrática, através de Cícero (cf. Tusculanae disputationes, I, XXIV, 57-58). Já para D. Doucet, citado ainda por Catapano, a fonte de Agostinho nos Soliloquia, quando este critica a opinião dos magni philosophi – que não é senão a demonstração socrática da imortalidade da alma, desenvolvida no Fédon – seria o De regressu animae, de Porfírio. Por fim, também nos informa Catapano que, para Franco De Capitani, as possíveis influências de Porfírio não excluem as de Plotino. Cf. CATAPANO, 2006, p. CXXXVII, e n. 368, 371, 374. 9 Cf. Confessiones, VII, 9, 13. Devemos ter em conta que por “livros platônicos” Agostinho estava certamente se referindo ao que hoje chamamos de “neoplatônicos”. Sobre esse ponto cf. B. da Silva Santos in AGOSTINHO, Santo. Contra acadêmicos, A ordem, A grandeza da alma e O mestre. Tradução de Frei Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008. n. 32. p. 21. 10 O alexandrino Amônio Sacas (c. 175-242), mestre de Plotino, nada escreveu, tendo este se incumbido de desenvolver por escrito suas ideias – algo como Platão em relação a Sócrates. Além de Plotino, outros discípulos de Amônio escreveram sobre a doutrina de seu mestre, como Herênio, do qual nada restou, e Orígenes, o pagão, do qual se preservaram apenas os títulos das obras. Permanece, portanto, Plotino como a única fonte direta do provável espírito da escola de Amônio.
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Mas voltemos a Milão e àquele estado de espírito conturbado supramencionados. Lá Agostinho ouve as prédicas do bispo da cidade, Ambrósio, e trava debates com o sacerdote Simpliciano (AGOSTINHO, 2009a, VIII, 2, 3). Até que, como ele próprio relata ao longo do Livro VIII das Confessiones, num jardim daquela cidade, em um dia de agosto de 386 – logo após, portanto, as leituras de Plotino e/ou Porfírio –, durante uma crise de profunda depressão, é repentinamente tomado pela revelação cristã nas palavras de Paulo de Tarso11 e, desse modo, tal qual aquele náufrago da alegoria do preâmbulo do De beata vita que é lançado à terra pela Graça divina, pôde entregar-se ao encetamento da serena vida feliz. A partir de então, Agostinho abandona suas atividades docentes (mais especificamente em setembro de 386) e passa a se dedicar ao que chamou de otium liberali (AGOSTINHO, 2009d, I, II, 4).12 Retira-se com familiares e discípulos para Cassiciacum, uma propriedade campestre de um amigo nos arredores de Milão, no norte da Itália, onde escreve, entre novembro de 386 e março de 387, quatro de seus trabalhos filosóficos iniciais, dentre os quais figura, exatamente, o fulcro de nosso estudo: o De beata vita. Como dissemos, o texto possui a forma de um diálogo e foi composto por ocasião do 32º aniversário de Agostinho, no fim do outono daquele ano de 386. Presentes estão sua mãe, Mônica; seus amigos e discípulos, Alípio, Licencio e Trigésio; seu irmão, Navígio; e seu filho, Adeodato; além de seus primos, Lastidiano e Rústico. Nele, Agostinho desenvolve um debate filosófico justamente sobre a questão da beatitudo.
11 Cf. Rom 13, 13-14. Para esta e para a próxima referência bíblica nos utilizamos da versão da Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002. 12 Trata-se do notório otium philosophandi, o “ócio filosófico”, conforme esclarece B. da Silva Santos in AGOSTINHO, 2008. n. 2. p. 10.
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Felicidade: uma etimologia Para começarmos a empreender uma investigação aprofundada das reflexões presentes no De beata vita, antes de mais nada, parece-nos apropriado um breve recurso, em caráter preliminar, que visa justamente ao esclarecimento do lema que designa o objeto das considerações de Agostinho sobre o tema, isto é, explorar o horizonte etimológico deste termo felicidade13 desde onde nosso pensador articula-se para construir sua reflexão. Esse procedimento permitirá melhor entendimento do emprego da palavra neste texto bem como de outras que a tradição filosófica anterior adotou para significar a sua noção. O latim possui pelo menos dois termos para identificar aquilo que podemos entender por felicidade, que, embora não estejam totalmente desarticulados, guardam entre si notáveis diferenças: felicitas e beatitudo.14 O primeiro vem diretamente de felix, cujo significado imediato, por sua vez, é “fértil” ou “fecundo”, a própria circunstância da abundância da produtividade. Originariamente, a fertilidade que o termo felix indica estendia-se às terras e seus frutos, dotando-o, nos
Para este excurso etimológico cf. BEVENISTE, Émile. O vocabulário das instituições indo-europeias. v. 1. Tradução de D. Bottmann. São Paulo: Editora da Unicamp, 1995; FREUND, William; ALLEN, Andrews. A copious and critical Latin-English lexicon. New York: Harper & Brothers Publishers, 1851; LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. Tradução de F. Correia, M. Aguiar, J. Torres e M. Souza. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999; LEVERETT, Frederick P.; TORREY, Henry W. A new and copious lexicon of the Latin language. Boston: Wilkins and Carter, 1838; REALE, Giovanni. História da filosofia antiga: léxico, índices, biografia. v. 5. Tradução de H. C. de Lima Vaz e M. Perine. 10. ed.. São Paulo: Loyola, 1995; SANTOS, Bento S. Virtude e eudaimonia nos diálogos “socráticos”. Síntese, Belo Horizonte, v. 37, n. 117, p. 5-26, 2010; SPICQ, Ceslas. Noti di lessicografia neotestamentaria. Brescia: Paideia Editrice, 1994; VALPY, Francis E.J. An etymological dictionary of the Latin language. London: Elibron Classics, 1828. Cf. também HARPER, Douglas: <http://www.etymonline.com>. 14 Vale lembrar ainda o adjetivo fortunatus, que, originariamente, designava a feliz circunstância de se estar agraciado pela sorte ou fortuna. 13
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seus primórdios, com uma reverberação talvez “feminina”, o que poderia encontrar no sufixo ix (como em imperatrix ou matrix) um vestígio dessa condição.15 De todo modo, felix acabou por tornar-se, por derivação de sentido, aquele que é beneficiado pela opulência da fertilidade, ou seja, “afortunado”, “próspero”, donde “feliz”, sendo o seu estado o da felicitas. Já a situação de quem é beatus, ou seja, a beatitudo deriva (como aquele seu cognato) do verbo beo, que significa “completar”, “satisfazer”, “encher”, no sentido de nada faltar, de absoluta plenitude, em que tudo está em seu lugar, perfeito. O adjetivo beatus denota, portanto, “cumulado de bens”, “bem-aventurado”, “completo”. Daí a natureza da felicidade da beatitudo, isto é, uma felicidade vinculada à plenitude ou à perfeição. Mas devemos ter em conta que essa perfeição – que, para o estoicismo, por exemplo, podia se realizar na natureza humana em conformidade com uma razão inerente à Natureza tomada universalmente – assume, com o pensamento cristão de Agostinho, a dimensão de uma contemplatio (contemplação) divina, desde onde a própria plenitude de Deus é a condição da felicidade para o homem. Mas há mais. A tradição que influencia Agostinho, mesmo que indiretamente, traz ainda pelo menos mais dois vocábulos sobre os quais vale a pena refletir. São eles os termos gregos ε δαιμονία e μακαρία.16 O vocábulo ε δαιμονία é composto dos étimos ε, o advérbio “bem”, isto é, “com propriedade”, e δαίμων, originalmente algo
Aliás, sendo “dhe” sua raiz indo-europeia – como ocorre no vocábulo latino femina (mulher, fêmea) – e que significa “mamar”, essa especulação se reforça. De fato, além de felare (mamar), deriva daquele mesmo radical indo-europeu o termo grego θήλεια (fêmea). 16 Há ainda indicando felicidade em grego a palavra ε τυχία, mas que num paralelo com os termos latinos seria o correlato de fortuna, uma vez que diz respeito à prosperidade advinda do favor da Τύχη, deusa da fortuna, sendo a ventura daí decorrente relativa à obra do acaso. O mesmo se dá em relação a λβος, que denota uma felicidade proveniente da riqueza, da posse de bens materiais. 15
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como um “ser etéreo”, um “espírito” situado entre deuses e homens, cuja função era exatamente a de intermediação entre a instância humana e a divina. Assim, a palavra ε δαιμονία, significando o estar sob a proteção de um δαίμων apropriado que ordena exteriormente um agir com correção (vale dizer, virtuoso), já possuía uma carga ético-religiosa desde sua gênese. Com o tempo esse δαίμων interiorizou-se, passando a significar a garantia de uma paz íntima identificada com a felicidade. Posteriormente o termo foi empregado sob ângulos distintos ao longo da tradição filosófica greco-helenística, mas que, de modo geral, manteve a noção de satisfação completa da alma humana, desde que tal estado estivesse vinculado intimamente à ρετή (virtude), seja esta entendida como o agir adequado ou como a virtude humana por excelência, isto é, segundo a sua faculdade noética. Por sua vez, μακαρία é a condição do μάκαριος, um composto de μάκαρ, “bem-aventurado” ou “feliz”, no sentido de se estar repleto por uma doação, mais a partícula ιος, designativa do adjetivo.17 Este sentido de plenitude se explicita quando observamos que ao mesmo campo semântico de μακαρία pertencem também χάρις (graça, benefício)18 e χάρισμα (obséquio, dom, mostra de benevolência). Com efeito, no texto neotestamentário μακαρία é a palavra empregada para identificar a felicidade própria da bem-aventurança: na Bíblia,
Efetivamente, ambos, μάκαρ e μάκαριος são adjetivos sinonímicos no grego. Vale notar que o termo se encontra ligado ao divino desde Homero: “μάκαρες θεο”, isto é, “deuses bem-aventurados”, é o modo como ele se refere às potestades olímpicas (Ilíada, XXIV, 99 e passim). Também Hesíodo (Os trabalhos e os dias, 120; 139 e passim) os chama da mesma maneira. Por isso μάκαρ adquiriu já nos primórdios da literatura grega uma conotação quase de “imortalidade”, característica essencial dos deuses. E, como a divindade não está sujeita às vicissitudes terrenas, μάκαρ passou a associarse àqueles mortos que desfrutavam de uma condição especial, como é o caso dos heróis hesiódicos: em Os trabalhos e os dias, 171, eles merecem de Zeus o dom de viver ν μακάρων νήσοισι, ou seja, “na Ilha dos bem-aventurados”. 18 Gratia, em latim. O próprio termo grego χάρις contribuiu para a evolução etimológica da gratia latina. 17
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μάκαριος tem o sentido de “abençoado”,19 o que, em tese, faz μακαρία se identificar mais propriamente com a beatitudo latina e, portanto, com o emprego agostiniano do termo. Ocorre que Agostinho, à época de seus diálogos iniciais, tocado não apenas por trechos das Escrituras (das quais, aliás, possuía um conhecimento ainda não aprofundado), absorvera um amplo influxo daquelas acepções acima descritas com as doutrinas filosóficas que delas se utilizaram de um modo ou de outro. Isso concorreu para promover, ao menos entre a noção de ε δαιμονία (sobretudo em sua concepção neoplatônica) e a de beatitudo (do estoicismo latino e de certo ecletismo), uma síntese que culminará, no referido tratado agostiniano sobre a felicidade, na sua identificação com a posse de Deus, conforme podemos extrair das conclusões do diálogo. Afinal, ao menos nessas reflexões iniciais, o neoplatonismo, o neoestoicismo e o ecletismo constituíam as partes mais significativas dos influxos pagãos em nosso pensador; sendo, inclusive, já identificáveis na produção dos diálogos desse período as convergências e os afastamentos em relação à noção de felicidade de Agostinho. Não obstante, para encerrar esta breve apreciação étimo-filológica, vale ainda assinalar, en passant, ao menos dois exemplos de momentos anteriores àqueles influxos diretos, quando o tema da felicidade mereceu relevantes reflexões dentro da tradição filosófica: a concepção de Platão, retrabalhada posteriormente no ideário neoplatônico, e a posição de Aristóteles, que pela via eclética acabou por alcançar a noção agostiniana sobre o tema. Para tanto, observemos duas passagens de obras mais do que consagradas dentro da história da filosofia.
19 Beatus, na Vulgata; em português, “feliz”, como em Mt 5, 3-11 (no plural beati, “felizes”).
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A primeira, um trecho de A república, em que Platão, através do diálogo entre Sócrates e Trasímaco acerca da ψυχή (alma) em sua relação com a ρετή (virtude) da δικαιοσύνη (justiça), a mais elevada entre as virtudes platônicas, diz o seguinte: – [...] Considere isto. A alma tem como sua obra (ργον) o que não se poderia realizar com nada mais no mundo, como, por exemplo, direção, governo, deliberação, e quejandos, existindo qualquer outra coisa além dela ao que se poderia justamente atribuí-las (aquelas funções), e dizer que são sua função específica? – A nenhuma outra. – E quanto à vida? Devemos dizer que é também uma função da alma? – Mais certamente ainda – Ele disse. – E não diremos também que existe uma excelência ou virtude da alma? – Diremos. – A alma algum dia realizará bem sua função própria se privada de sua própria virtude, ou isso é impossível? – É impossível. – Então, necessariamente, uma alma má irá governar e dirigir mal as coisas, enquanto a alma boa irá bem em todas elas. – Necessariamente. – E não concordamos que a justiça é a excelência ou virtude da alma e seu defeito a injustiça? – Sim, concordamos. – Logo, a alma justa e o homem justo viverão bem e o injusto mal? – Assim parece – disse ele – segundo seu raciocínio. – Mas, além disso, aquele que vive bem é bem-aventurado (μάκαριος) e feliz (ε δαίμων) e o que vive mal o contrário. – Claro. – Então o justo é feliz (ε δαίμων) e o injusto miserável (θλιος) (PLATÃO, 2007, I, 353d-354a). 48
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É com alguma singeleza que Sócrates demonstra que a injustiça jamais poderia ser considerada mais vantajosa que a justiça, como antes Trasímaco queria fazer crer no diálogo. Todavia, o trecho acima reproduzido nos permite, para o nosso caso específico, uma constatação. A de que o Sócrates platônico parte de um pressuposto, não ainda explicitamente declarado à altura desse que é, afinal, apenas o primeiro Livro de A república, mas de modo algum inaudito, que é o seguinte: em última análise, o ργον da alma, sua função mais própria, até aqui,20 tem que ser a justiça, a maior das virtudes, o que carreia necessariamente a felicidade. Nesse contexto, como podemos verificar no próprio texto platônico, tanto μακαρία quanto ε δαιμονία encontram-se conjugadas sob a égide do viver bem, da ρετή da justiça, a obra, nesse âmbito, mais apropriada da alma. Já a segunda importante passagem à qual podemos nos reportar acerca da natureza da felicidade é aquela da Ética a Nicômaco, em que Aristóteles declara: Mas, se a felicidade [ε δαιμονία] consiste na atividade de acordo com a virtude [κατ’ ρετν νέργεια], é razoável que seja uma atividade em conformidade com a maior delas; e esta será a virtude da melhor parte de nós. Se esta parte é o intelecto [νος], ou qualquer outra que seja considerada, por natureza [κατ φύσιν], nossa líder e governante, e tenha o conhecimento das coisas nobres e divinas, ou ela mesma seja também efetivamente divina, ou como sendo relativa à nossa parte mais divina, a atividade dessa parte de nós de acordo com a virtude apropriada constituirá a felicidade perfeita; e como já declarado [no livro VI] essa atividade é a da contemplação [θεωρητική] (ARISTÓTELES, 2003, X, VII, 1).
Mas a este ponto já prefigurando a noção do Bem, estando, de fato, de algum modo, nele subsumida. A consideração da justiça dá azo ao próprio modo de ser do agir moral, negando a μαρτία (erro) radical do desacordo ético-ontológico, que subjaz a este discurso socrático e, de resto, toda a concepção platônica, inclusive sobre a felicidade: esta deve ser o resultado de uma conversão para o Bem. 20
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Assim, Aristóteles indica que a ε δαιμονία consistiria no bem final de uma cadeia de ações, definindo-a como uma νέργεια (ato, atividade)21 da ψυχή, que se dá segundo o λόγος (razão) e de acordo com a ρετή mais perfeita, o que redunda na vida contemplativa,22 num refinado entendimento do papel da prática virtuosa na consecução do melhor fim. Então, para encontrar o sentido de ε δαιμονία, fim último de todo agir humano, devemos considerar o homem nele mesmo, compreender sua “obra” mais própria, seu ργον, aquela atividade que o distingue enquanto homem (HOLTE, 1962, p. 25). Há aqui, portanto, uma teleologia do acabamento, da perfeição, do completar-se nisso que é próprio da noção de ντελέχεια (do adjetivo ντελής, concluído, completo, perfeito) no pensamento do Estagirita. Portanto, podemos depreender do texto aristotélico que a ε δαιμονία é aquela atividade, tanto quanto possível para o homem, que se ajusta à virtude dianoética sumamente superior, o νος, cuja realização se dá pelo θεωρεν. É desde tal atividade de realização da contemplação que o homem se depara com sua possibilidade e seu limite para ser feliz (SANGALLI, 1998, p. 81-83): de fato, o θεωρεν atua como estando presente em nós algo de divino e que, em última instância, constituiria a perfeita e acabada felicidade.23
21 Palavra que deve ser entendida como movimento de realização do que é mais apropriado, pois essa “atividade”, no grego, já traz em si também a significação de vigor, de eficácia e da própria virtude. 22 O que não significa, absolutamente, apatia; ao contrário: a contemplação (θεωρεν) é pura atividade, a ação mais elevada da alma humana. 23 Não devemos, contudo, deixar de assinalar que Aristóteles não ignora as circunstâncias adventícias da vida. Podemos ser felizes dentro da completude do fazer mais próprio, isto é, o fazer excelente da obra; daí Aristóteles trazer a completude do homem para o âmbito da ação humana, para o que dele depende. Contudo, isso não significa converter absolutamente tudo em nosso alvedrio, o que seria desconsiderar o papel da sorte, da fortuna, dos deuses etc. Por isso, o detentor hipotético de uma “felicidade perfeita” aparece identificado com o termo μάκαριος, e não ε δαίμων. Em suma: a ε δαιμονία é algo que, a despeito das intervenientes variáveis, admitidas pelo Estagirita, o homem tem que poder alcançar por ele mesmo; não pode estar fundada em algo heterônomo, tanto quanto não pode ser, mesmo no homem, um algo, uma posse.
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Conclusão Diante do que brevemente expusemos, parece-nos lícito dizer que é possível entrever a existência de elementos da tradição filosófica pagã que se entrelaçam, extrapolando muitas vezes os meros significados etimológicos usados para a designação de felicidade. Se no De beata vita Agostinho elege o termo beatitudo para descrever aquilo que nos textos cristãos gregos se coadunava com μακαρία, não o faz se distanciando totalmente da escolha neoestoica do mesmo vocábulo tampouco se afastando completamente das reverberações “eudaimônicas” que as reflexões do neoplatonismo, do platonismo e do aristotelismo primitivos realizaram quanto ao tema: sob a beatitudo agostiniana, ao menos desse primeiro Agostinho sobre o qual nos debruçamos aqui, restam elementos de todos estes precedentes. Principalmente em dois de seus mais fundamentais aspectos: o agir virtuoso e a contemplação, complementos para uma fé recém-adquirida (trata-se de um neoconverso) e que conjuga os valores morais aos teoréticos para, junto com o decisivo papel da graça de Deus, promover o alcance da vida feliz. Dentro dos limites do De beata vita, aquela posse de Deus citada apenas brevemente mais acima só é factível se uma série de condições impostas por aqueles valores também for observada. Será mesmo possível perceber elementos de um esforço por parte de Agostinho, que já aqui, apenas no princípio de suas reflexões filosóficas, antevê aquilo que seria estabelecido com rara precisão numa futura e célebre fórmula: “compreenda para crer, creia para compreender”24 (AGOSTINHO, 2010, 43, 9). Ou seja, desde o início, o propósito beatífico de
Daí não se resumir a uma virtude, mas se dar de acordo com ela. Daí também esse termo, ε δαιμονία, estar predominantemente vinculado ao humano, cabendo à μακαρία uma maior referência à vida bem-aventurada dos deuses e dos mortos, ainda que permaneça uma proximidade entre ambos os significados (cf. Ética a Nicômaco, I, X). 24 “Intellige ut credas, crede ut intelligas”. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 38-56, jan./jun. 2011
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nosso filósofo já estava posto: alcançar pela fé nas Escrituras a razão que elas abrigavam, o que incluía, em Agostinho, instâncias filosóficas da tradição pagã. Trata-se, enfim, de uma fé que busca a sua inteligência e, assim, alcança a felicidade plena em Deus, conforme se encontra registrado em várias passagens ao longo de pelo menos seus escritos iniciais. Mas, por ora, diante do exposto, podemos afirmar que neste “primeiro Agostinho” a beatitudo, a μακαρία grega, não exclui a ε δαιμονία; ao contrário, a subsume e retrabalha pela via latina, “corrigindo-a” em função do cristianismo, numa original compreensão da filosofia: uma via de acesso bastante privilegiada para a vida feliz.
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Algumas premissas filológicas para a compreensão do sentido de Beatitude no De Beata Vita de S. Agostinho
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SOME PHILOLOGICAL PREMISES TO THE UNDERSTANDING OF THE MEANING OF BEATITUDE IN SAINT AUGUSTINE’S ‘DE BEATA VITA’ Abstract In this article we aim to clarify the meaning of the term beatitudo for the “young” Augustine through a philological resource, more exactly through an etymological way. This resource aims a better understanding of the thinker’s conception on the theme of happiness at the time of his early writings, particularly in the work De beata vita, written in the year of 386. We understood that this aspect, though little explored, is an interesting introductory way to the aforesaid work, as well as to other works written during the Augustinian intellectual production period known as “Cassiciacum Dialogues”. Key words: Beatitudo,ε δαιμονία, μακαρία, etymology, paganism, Christianity.
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ALGUNS ASPECTOS DA RECEPÇÃO DO PENSAMENTO ZUBIRIANO NA IBERO-AMÉRICA1 Everaldo Cescon*
Resumo Exposição descritiva de algumas temáticas – o conceito de Filosofia, uma nova concepção de realidade a partir da noção de inteligencia sentiente e a via para o conhecimento de Deus – desenvolvidas pelos discípulos de Xavier Zubiri. Análise do prolongamento do pensamento zubiriano em Ellacuría, Pintor-Ramos e Torres Queiruga. Aponta-se a possibilidade de aprofundar o diálogo de Zubiri com K. Rahner, com o pensamento judaico (Rosenzweig e Lévinas) e com alguns filósofos pós-modernos (Derrida e Vattimo). Palavras-chave: Filosofia contemporânea, fenomenologia, Xavier Zubiri, ontologia.
Introdução A seguir, procuramos traçar, em linhas gerais, um perfil da influência de Zubiri sobre alguns dos seus discípulos, a saber: I. Ellacuría, A. Pintor-Ramos e A. Torres Queiruga. Apontamos, ainda, para a possibilidade de aprofundar o diálogo de Zubiri com K. Rahner,2 com o pensamento judaico3 e com alguns pós-modernos.4 1 Texto originalmente publicado em Dialegesthai, Rivista Telematica di Filosofia, [in linea], anno 10 (2008) [inserito il 30 luglio 2008], disponibile su World Wide Web: <http://mondodomani.org/dialegesthai/>, [76 KB], ISSN 1128-5478. * Pós-doutor em Filosofia pela Universidade de Lisboa. Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Itália. Professor no PPGFil – Mestrado em Ética – da Universidade de Caxias do Sul, Brasil. E-mail: ecescon@ucs.br 2 Veja-se o esboço sucinto realizado por Solari, 2001, p. 517-635. 3 Sobretudo: Rosenzweig, 1985; Lévinas, 1977, 1987, 1991. 4 Sobretudo DERRIDA, 1996; VATTIMO, 1996a, 1996b.
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Zubiri (1980, 1982a, 1982b, 1983, 1984, 1985, 1999b) foi colhido pela morte quando ainda trabalhava em sua “trilogia teologal”. No entanto, a sua publicação foi sendo preparada pelo trabalho sério e competente de seus discípulos, na “Fundación Xavier Zubiri”, em Madri. Além disso, os discípulos se dedicam à investigação das temáticas zubirianas, procurando explicitar progressivamente seu pensamento. Atualmente, percebe-se inclusive uma tentativa de prolongamento do pensamento zubiriano. Por isso, procuraremos analisar a interpretação e o aprofundamento dos seus discípulos, embora, por uma questão de espaço, tivemos de nos limitar a I. Ellacuría, A. Pintor-Ramos e A. Torres Queiruga. A escolha não foi aleatória, mas baseada na produção literária destes e na sua repercussão. Trata-se de um trabalho árduo e empenhativo, cujo objetivo é fornecer um guia para o aprofundamento de Zubiri.
1 Estudos introdutórios Dentre os estudos introdutórios à obra do filósofo basco, convém destacar “Aproximación a la obra completa de Xavier Zubiri”, de I. Ellacuría. O artigo, publicado logo após a morte de Zubiri, pretende ser “uma primeira aproximação à obra”; determinar “a consistência e as características da filosofia zubiriana”; e, por fim, percorrer o conjunto de sua obra, publicada e inédita, para ter uma ideia geral do modo e dos temas tratados pelo filósofo (ELLACURÍA, 1983, p. 965). I. Ellacuría considera Zubiri “o maior metafísico espanhol depois de Francisco Suárez (1548-1617)”. Pretendeu fazer filosofia pura, à altura dos tempos, pensando sobre o todo das coisas reais enquanto reais. Sua filosofia consistiu em conceituar o que é a realidade, tanto natural quanto pessoal, tanto social quanto histórica e, dessa forma, a realidade em sua consideração transcendental. Assim, afastamos, imediatamente, a possibilidade de qualificar a filosofia zubiriana de “filosofia teológica 58
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ou uma teologia filosófica”. Para Ellacuría, Zubiri realizou, sobretudo, “uma metafísica intramundana, ainda que sua ‘mundanidade’ esteja aberta a realidades transmundanas” (ELLACURÍA, 1983, p. 968). Ao qualificar o tipo de filosofia realizado por X. Zubiri, Ellacuría enfatiza seu rechaço a toda a tentativa de considerá-lo um neoescolástico, ou um neoaristotélico, ou, ainda, um conservador eclético. Ele considera a filosofia zubiriana “uma crítica radical de toda a filosofia anterior, que leva Zubiri a abordar todos os problemas sob outra perspectiva, terminando numa nova visão da realidade”. Embora apreciasse o esforço intelectual do passado, Zubiri manteve um grande distanciamento das teses fundamentais da tradição filosófica, pois esta entrara num “processo de logificação da inteligência e num correspondente processo de entificação da realidade” (ELLACURÍA, 1983, p. 974-975). Na terceira parte de seu artigo, Ellacuría agrupa a filosofia zubiriana em torno de seis grandes blocos temáticos: a filosofia da inteligência, o tema da realidade, Deus como estrito problema filosófico, estudos antropológicos, estudos cosmológicos e a história da filosofia. Naturalmente, a sistematização de Ellacuría não contempla as obras póstumas (ZUBIRI, 1986, 1992, 1993, 1994, 1995, 1996a, 1996b, 1997, 1998, 1999a, 1999c). A. Pintor-Ramos já publicou inúmeros trabalhos sobre o pensamento de X. Zubiri (conforme pode ser verificado nas referências bibliográficas no final deste artigo). Segundo Diego Gracia, “foi um dos poucos filósofos espanhóis que dedicaram anos da sua vida a situar corretamente Zubiri na filosofia europeia do nosso século” (GRACIA, 1993, p. 17). Como estudos introdutórios, destacamos um pequeno volume sobre a Génesis y formación de la filosofía de Zubiri, publicado em 1979, e Zubiri (1898-1983), publicado em 1996. No primeiro, conforme o próprio autor sublinha no “Prólogo a la segunda edición”, procura fornecer alguns “elementos básicos para poder entrar, com alguma garantia, nas obras maduras de Zubiri” REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 57-86, jan./jun. 2011
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(PINTOR-RAMOS, 1996a, p. 10). Pintor-Ramos não pretende “entrar diretamente no núcleo sistemático, ou nos problemas característicos” da filosofia zubiriana (PINTOR-RAMOS, 1996a, p. 15), mas apenas “indicar os diferentes momentos da atividade filosófica de Zubiri, contextualizando-os no marco da filosofia da época” (PINTOR-RAMOS, 1996a, p. 18, 117). É o olhar de um historiador a partir de quatro datas-chave: 1921, 1928, 1942 e 1962. Para este autor, a filosofia de Zubiri só é possível graças à mediação prolongada dos problemas que ocuparam a filosofia contemporânea: “nova conceituação da consciência como intencionalidade objetiva, nova relação da consciência com o desvelamento do ser, superação final do ser como momento já derivado de uma realidade elementar” (PINTOR-RAMOS, 1996a, p. 120). Em 1986 Pintor-Ramos publica um artigo específico sobre a filosofia de Zubiri no pós-guerra (1986c, p. 11), compreendendo o período posterior à guerra civil espanhola, de 1939 a 1962. No texto, o autor procura mais uma vez retificar certas distorções em torno da figura pública de Zubiri. O problema em debate afeta três âmbitos fundamentais: [...] o choque da atitude intelectual de Zubiri com as rígidas diretrizes ideológicas oficiais, o choque de seu pensamento conhecido publicamente com a proclamada filosofia “oficial” e, finalmente, o choque do pensamento religioso de Zubiri com o que era então considerado o pensamento oficial da Igreja espanhola (PINTOR-RAMOS, 1986c, p. 9).
Um dos esclarecimentos realizados por Pintor-Ramos gira em torno do pretenso “apoliticismo” de Zubiri: “Não significa indiferença pela dimensão social do homem – tema tratado em sua filosofia –, nem pelos problemas da sociedade em que vive; significa a decisão consciente de não entrar na luta política e, a este respeito, manter-se numa atitude de ‘independência’” (PINTOR-RAMOS, 1986c, p. 9). Pintor-Ramos considera “exagerado” dizer que Zubiri tenha assumido um “exílio interior”, pois foi posto à margem dos canais de expressão 60
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e difusão das ideias e precisou recorrer a cursos privados para garantir recursos mínimos. O segundo trabalho introdutório ao pensamento do filósofo basco publicado por A. Pintor-Ramos foi entregue ao mercado editorial em 1996. Em Zubiri (1898-1983), Pintor-Ramos procura “introduzir ‘em’ Zubiri, determinando as forças intelectuais que alimentam seu pensamento e as linhas básicas nas quais estas se canalizam” (PINTOR-RAMOS, 1996b, p. 54). A própria estrutura da obra e a “seleção de textos” ressaltam a centralidade da “realidade” no pensamento de Zubiri, fator que leva Pintor-Ramos a concluir: o leitor, malgrado as dificuldades, será “[...] compensado pelo novo modo de situar-se diante da realidade, que tal filosofia propicia”. Outro mérito desta filosofia reside na “implacável exigência de rigor”, que a converte num dos instrumentos formativos mais adequados do nosso tempo para habituar a mente a proceder com rigor e precisão (PINTOR-RAMOS, 1996b, p. 54). No mesmo ano, Pintor-Ramos também publicou Realidad y sentido desde una inspiración zubiriana (1993c). No “Prólogo”, Diego Gracia demonstra que a obra se situa numa “fase de prolongamento do pensamento zubiriano, mediante desenvolvimentos que Zubiri não realizou” (GRACIA, 1993, p. 21). O próprio Pintor-Ramos afirma que sua obra se move em duas linhas complementares: uma, de “[...] pôr à prova as virtualidades do pensamento zubiriano por caminhos que o filósofo não explorou suficientemente”; e outra, de “[...] elevar, à altura de seu pensamento, temas ainda não abordados de modo suficientemente radical” (PINTOR-RAMOS, 1993, p. 24-25). Todos os temas tratados se relacionam com a moral e a história. No livro de Pintor-Ramos, a moral e a história “[...] aparecem sistematicamente conectadas, a partir do centro axial determinado pela questão do ‘sentido’ na filosofia de Zubiri” (PINTOR-RAMOS, 1993, p. 26). A tese final do primeiro capítulo é que “o ato noológico primordial, a impressão de realidade, é sumamente complexo. Tem uma REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 57-86, jan./jun. 2011
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estrutura, às vezes, intelectiva; outras, sentimental; e outras ainda, volitiva” (GRACIA, 1993, p. 19). O segundo e o terceiro capítulos são dedicados à ética. Procuram ver qual a possível fundamentação zubiriana da ética.5 O capítulo seguinte se situa num nível diferente dos anteriores. Os três primeiros se ocupavam dos componentes básicos do ato de apreensão primordial da realidade. Este último se ocupa de um momento ulterior, o do logos. “É o momento no qual aparecem as coisas-sentido e, com elas, a linguagem. Portanto, este é o nível no qual torna-se possível conectar a filosofia zubiriana com todas as análises fenomenológicas do sentido e com os movimentos da filosofia hermenêutica” (GRACIA, 1993, p. 20). O quinto e o último capítulos são dedicados à filosofia e sua história. Sendo prolongamento do pensamento zubiriano, Realidad y sentido desde una inspiración zubiriana supõe, como referência constante, seu livro anterior, Realidad y verdad: las bases de la filosofía de Zubiri (PINTOR-RAMOS, 1994b) – “[...] uma introdução ao pensamento de Zubiri centrando-se no núcleo básico de ideias, no qual os múltiplos problemas concretos estão enraizados” (PINTOR-RAMOS, 1994b, p. 15). Pintor-Ramos afirma que Realidad y verdad expõe suas seguranças, contendo um argumento completo e sistemático, ao passo que Realidad y sentido expõe suas esperanças e suas dúvidas, explorando caminhos mal definidos. “Se o primeiro poderia seguir, sendo válido, ainda que os esboços do segundo estivessem equivocados, o segundo careceria de qualquer consistência sem o primeiro” (PINTOR-RAMOS, 1993c, p. 25-26). Em Realidad y verdad, Pintor-Ramos toma um tema concreto – a verdade –, segue seu desenvolvimento e analisa seu alcance para compreender a filosofia zubiriana. A verdade aparece como um
5 Ética y Estética en Xavier Zubiri procura manifestar o lugar da ética e da estética no pensamento zubiriano e a conceituação específica que Zubiri faz delas no conjunto de sua obra, bem como a influência que seu pensamento exerceu sobre estas questões na filosofia espanhola do século XX.
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tema explícito ao longo de toda a obra de Zubiri. É um dos temas mais clássicos e permanentes da filosofia de todos os tempos. Através do estudo aprofundado deste tema, Pintor-Ramos confronta o pensamento de Zubiri com algumas das abordagens mais clássicas da história da filosofia. Desta forma, precisa a posição do Autor e, simultaneamente, indica possíveis direções nas quais se poderia prolongar seu pensamento. A obra é uma “‘[...] introdução’ que pretende acentuar criticamente o substrato básico, ao qual todo leitor e estudioso de Zubiri precisará remeter-se, para apropriar-se de seu pensamento e avaliá-lo com rigor” (PINTOR-RAMOS, 1994b, p. 16). Ao longo dos seis capítulos que compõem Realidad y verdad, Pintor-Ramos demonstra as três características tradicionais da filosofia, às quais Zubiri procura ser fiel: a “radicalidade”, a “ultimidade” (ultimidad) e a qualificação “teorética” (PINTOR-RAMOS, 1994b, p. 345-355). Como consequência desta última, destaca-se, na concepção zubiriana de filosofia, o “rigor”. Em todos os escritos zubirianos existe uma densidade de ideias expressas com todo o rigor da concatenação lógica, um interminável afã de “precisão”, “claridade” e “concisão”. Nesta linha, aparecem os recursos estilísticos de Zubiri: neologismos léxicos e semânticos, busca de novos termos técnicos, entre outros.
2 A ideia de filosofia As teses filosóficas de Zubiri foram aprofundadas sobretudo por I. Ellacuría (1964a, p. 305-307, 483-508; 1964b, p. 97-155; 1965a; 1965b; 1966, p. 245-286; 523-548; 1970, p. 459-523; 1974a, p. 479-514; 1974b, p. 5-7; 1975, p. 109-112; 1976, p. 49-137; 1978, p. 949-950; 1980, p. 45; 1981, p. 126-139; 1983, p. 965-983; 1984, p. 37-66; 1986, 113-131; 1988, p. 633-650; 1991). Contudo, o seu brutal assassinato, junto com outros cinco companheiros, por uma unidade da Fuerza REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 57-86, jan./jun. 2011
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Armada de El Salvador, pôs “[...] um trágico ponto final num projeto intelectual que pretendia oferecer uma interessante interpretação, em perspectiva latino-americana, do pensamento de Xavier Zubiri” (GONZÁLEZ, 1991, p. 11). De acordo com E. Solari (2001, p. 517635), ninguém aprofundou a recepção de Zubiri na América Latina. No entanto, é certo que alguns discípulos viveram e ensinaram na América Latina, sobretudo I. Ellacuría e G. Marquínez Argote, e outros tantos filósofos e teólogos da libertação reconhecem a influência de Zubiri: J. C. Scannone, J. Sobrino, E. Dussel, A. González, entre outros. Parte importante da filosofia produzida na América Latina depende – direta ou indiretamente – de Zubiri.6 Segundo A. González, Filosofía de la realidad histórica é “[...] uma peça-chave para compreender não só a produção estritamente filosófica de Ellacuría, como também seu pensamento teológico e sociopolítico” (GONZÁLEZ, 1991, p. 11). A obra é uma tentativa de fundamentar o conceito teórico de “práxis histórica” a partir da análise estrutural das suas notas constitutivas: da matéria até à pessoa, do indivíduo até à sociedade. Nesse sentido, a principal contribuição de Ellacuría, de nítida matriz zubiriana, é a concepção da práxis humana como apropriação e transmissão de possibilidades. Para Diego Gracia, é importante destacar que a tese zubiriana de que “o homem precisa assumir a realidade”, em Ellacuría, transforma-se em outra: “o ser humano está obrigado a assumir a realidade e a se assumir com ela. Este é o imperativo ético” (GRACIA, 1991, contracapa). A história, para ele, é o lugar da realização da ética. Ellacuría apresenta a realidade histórica como um grau da realidade que compreende todos os demais: na realidade histórica está presente a realidade física (o movimento da Terra, as mudanças
Cf. Marquínez Argote, 1987, p. 69-80; Domínguez-Miranda, 1997, p. 624-687; Scannone, 1993, p. 93-105. 6
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climáticas, os limites físicos do homem), a realidade orgânica (plantas, frutos, plantações, as necessidades do homem enquanto organismo vivo), a realidade animal (o homem é um animal, ainda que distinto dos demais animais), a realidade humana em seus níveis pessoal, psicológico, familiar, grupal, social e político-econômico. Nenhum nível da realidade compreende os posteriores (por exemplo, nos vegetais não há nada de animalidade ou de humanidade), e em cada nível estão os anteriores (por exemplo, no animal está o físico e o orgânico) (cf. ELLACURÍA, 1970, p. 521-522). Daí se segue, em Ellacuría, uma paixão pela história, pois nela resulta abarcado todo o real. Uma paixão por interpretar a história e agir nela. A história é nossa própria realidade em sua dinamicidade; uma realidade essencialmente aberta, por fazer, que se está fazendo, que já começou a fazer-se. Sua paixão pela história levou-o a buscar um novo modo de fazer também teologia, a partir da realidade: a “teologia histórica”. Esta consiste em refletir sobre a fé a partir do presente histórico (e sobretudo a partir das situações desumanas que requerem uma atenção especial) e refletir sobre o presente histórico a partir da fé, não só para compreender o presente, como também para incidir nele, tornando-o mais humano. Nesse sentido, a Teologia da Libertação seria o que academicamente se costuma denominar uma “teologia fundamental”, ou seja, uma reflexão acerca dos fundamentos da fé e do método a utilizar em sua elaboração. Filosofía de la realidad histórica aprofunda teses já mencionadas em 1970, data da publicação do longo artigo intitulado “La idea de filosofía en Xavier Zubiri” (cf. ELLACURÍA, 1970, p. 461-523). Nesse artigo I. Ellacuría investiga a ideia de filosofia em Xavier Zubiri, respeitando o seu progresso e o seu desenvolvimento. Divide a abordagem em duas seções: a primeira abarca os escritos anteriores a 1962; a segunda analisa a obra Sobre la esencia (ELLACURÍA, 1970, p. 461-462). REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 57-86, jan./jun. 2011
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No seu entender, Zubiri acede à ideia de filosofia por três caminhos: “[...] pela análise do que é filosofar como atitude singular do homem; pela contraposição da filosofia à ciência moderna; e pela discussão do objeto da filosofia” (ELLACURÍA, 1970, p. 462, 520). “Só no fim de cada filosofia se chega a saber o que ela é”. Foi o que ocorreu com Zubiri. À medida que seu pensamento foi avançando, sua ideia da filosofia também foi se esclarecendo. “A filosofia é, para ele, metafísica. O metafísico é o sistema transcendental e dinâmico da realidade” (ELLACURÍA, 1970, p. 522, 523). Quanto ao objeto, a filosofia zubiriana investiga as coisas “tal como são” presentes ao homem, para descobrir nelas o que é a realidade. “Seu objeto não é a realidade em geral, mas o caráter físico, distinto e estruturalmente modulado da realidade, determinado pela função transcendental das distintas coisas, ‘tal como são’” (ELLACURÍA, 1970, p. 523).
3 Inteligência senciente Como sempre ocorre na filosofia, uma nova concepção de realidade implica uma nova concepção de inteligência (cf. PINTOR-RAMOS, 1982, p. 204, 218). Assim, depois de Sobre la esencia, Zubiri publica a trilogia Inteligencia sentiente. Logo após a publicação do primeiro volume (ZUBIRI, 1984), Ellacuría comenta “La nueva obra de Zubiri” (ELLACURÍA, 1981, p. 126-139), que encerra o que o filósofo basco podia pensar sobre o problema do inteligir, do conhecer e do saber. O primeiro volume tinha autoridade suficiente para merecer a atenção de Ellacuría e, no ano seguinte, de Pintor-Ramos (1982, p. 201-218). Ademais, a segunda e a terceira partes são prossecução dos temas básicos tratados na primeira. Ellacuría pretende dar uma contribuição à apresentação do trabalho de Zubiri, oferecendo uma pequena introdução contextual ao seu estudo, assim como fizera com Sobre la esencia (cf. ELLACURÍA, 1965a). Divide seu trabalho em 66
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duas seções: uma sobre o significado sociocultural da obra de Zubiri; e outra sobre o seu significado intelectual. A contribuição intelectual de Zubiri está contida numa “única ideia” (ZUBIRI, 1984, p. 14): “A intelecção humana é formalmente mera atualização do real na inteligência senciente” (ZUBIRI, 1984, p. 13). Em breves páginas, Ellacuría analisa os dois conceitos fundamentais desta proposição: “inteligência sentiente” e “atualização”. Zubiri refuta radicalmente a oposição entre o sentir e o inteligir, que, consequentemente, levava à dicotomia entre o homem e a realidade. Para ele, a inteligência possui um caráter senciente. “Não significa que a inteligência está indissolúvel, permanente e estruturalmente entrelaçada com o sentimento. Senciente se refere […] aos sentidos, à sensibilidade” (ELLACURÍA, 1981, p. 134). Zubiri assumiu a sensibilidade como acesso à verdadeira realidade. E mais do que isso: “Os sentidos nos fornecem os distintos e complexos modos de inteligir” (ELLACURÍA, 1981, p. 135). Ou seja, cada sentido, em função de seu órgão, “[...] me apresenta a realidade de forma diferente” (ZUBIRI, 1984, p. 100). O segundo grande conceito é a intelecção como mera atualização do real. De acordo com Ellacuría, para realizar uma crítica radical do conceptualismo e do abstracionismo, Zubiri precisou elaborar uma nova categoria, a categoria de “atualidade”. Nosso Autor insiste que, desde os gregos, a filosofia cometeu o grave erro da “logificação da inteligência”. A razão foi reduzida basicamente à capacidade de gerar conceitos abstratos, convertendo-se, dessa forma, no que Zubiri denomina “inteligência concipiente”. Consequentemente, é preciso realizar uma reviravolta através da “inteligização do logos”. “Isto significa que a principal e radical função da inteligência é deixar-se apoderar pela realidade ‘sentientemente’ apreendida, ficar apoderada por ela, de modo a que as demais funções intelectivas se desenvolvam a partir desta radical implantação na realidade” (ELLACURÍA, 1981, p. 136). REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 57-86, jan./jun. 2011
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A. Pintor-Ramos, por sua vez, pretende “[...] destacar o horizonte a partir do qual se pode afrontar o estudo da obra”: “[...] colocação adequada na trajetória de seu autor, identificação do problema ou problemas básicos em debate, importância histórica de tal problemática, e alcance de sua abordagem para o pensamento do filósofo” (PINTOR-RAMOS, 1982, p. 202). Ao longo da história da filosofia, o problema do conhecimento sempre se concentrou na dualidade das suas fontes: sensibilidade e inteligência. No entanto, para Pintor-Ramos, Zubiri não pretende contrapor uma nova teoria às teorias tradicionais, mas “[...] antepor a toda a possível teoria uma análise elementar e completa dos fatos” (PINTOR-RAMOS, 1982, p. 207). O problema não é a dualidade, pois tal abordagem já supõe uma hipótese: “A sensibilidade humana e a animal são fundamentalmente idênticas” (PINTOR-RAMOS, 1982, p. 207). Este é o fio condutor de toda a obra (ZUBIRI, 1984, p. 12, 14, 20, 21, 25, 82, 123, 143, 145, 156, 202, 203, 252, 285). Para entender a obra é preciso ter sempre presente que o problema de fundo é a constituição formal da intelecção. Logo, para Pintor-Ramos, “mais que de ‘inteligência sentiente’, rigorosamente falando, se trataria de ‘intelecção sentiente’” (PINTOR-RAMOS, 1982, p. 212, 215). De acordo com ele, e apoiando-se em indicações do próprio Zubiri (cf. 1984, p. 26, 126, 133, 242, 247), a obra pode ser dividida em três blocos: “[...] apresentação do tema, síntese do percurso e enlace com temas ulteriores que continuariam a análise”;7 “[...] análise da ‘intelecção sentiente’, de todos e de cada um de seus componentes”;8 e “[...] a intelecção tanto como ato quanto como resultado”.9
Capítulos I, IX e X. Capítulos II, III e IV. 9 Capítulos V, VI, VII e VIII. Divisão apresentada em A. Pintor-Ramos, 1982, p. 212-213. 7 8
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4 O conhecimento de Deus O tema de Deus foi a preocupação constante e o motor secreto do pensamento metafísico de Zubiri (cf. TORRES QUEIRUGA, 1989, p. 141). Desde 1935, data em que Zubiri anunciou o tema da “religação” (ZUBIRI, 1999b, p. 417-454) até 1984, quando El hombre y Dios culminou sua abordagem, muitos se ocuparam deste filão zubiriano.10 No momento, vamos nos deter em A. Torres Queiruga (1963, 14-15; 1988a, p. 93-140; 1988b, p. 138-152; 1989, p. 141-171; 1990; 1993, 121164; 1995, p. 157-174; 1996a, p. 167-185), que julgamos ser, pelo número de trabalhos, o que mais aprofundou o tema de Deus em Zubiri. Comecemos pelo período de penetração no pensamento zubiriano, analisando a sua tese de habilitação à cátedra de filosofia – Noción, Religación, Trascendencia. Na “Presentación” García-Sabell destaca que Torres Queiruga salva a realidade filosófica do pensador basco, junto com a de Amor Ruibal: “[...] duas criaturas ocupadas em fundamentar o nosso ser no Ser supremo” (GARCÍA-SABELL, 1990, p. XXVI). De fato, o teólogo galego realiza um confronto entre o pensamento sintético de Amor Ruibal e o analítico de Xavier Zubiri. Zubiri “[...] mostra mais explicitamente e com maior exatidão as conexões com a marcha atual da filosofia” (TORRES QUEIRUGA, 1990, p. 9). Naturalmente, o elenco que segue não inclui os trabalhos de Alluntis, (1985) p. 32-47; Andrés Fernandez, (1966) 125-153; Aniz Iriarte, (1986) 237-268; Baciero, 1985) 173-182; Benítez, 1970; Borragán Torre, (1986) 253-277; Cruz Hernández, 1967, p. 231-243; Diaz, (1993) 165-193; Ellacuría; Pintor-Ramos, 1996; Erdozaende Vicente, (1980) 24-36; Gil Ortega, (1989) 158-182; Garcia-Alos, 1983) 265-289; Gómez Cambres, 1982, p. 223-269; 1945, p. 173-183, 230-236, 251-254; 1993; Gonzalez (1993) 273-315; González Álvarez, (1987) p. 57-65; Gonzalez, 1993, p. 7792; Gracia, (1981) 61-78; Gregorio, (1976) 269-305; López Quintas, (1968) 103-116; Llenin Iglesias, 1990; Marías, 1944; Martínez Santamarta, 1980, p. 97-116; 1981; Pelegri, (1988) 462-495; Rivera de Ventosa, (1970) 18-23; 1989, p. 583-590; (1993) 55-119; 1985, p. 67-76; (1992) 467-525; Rovaletti, 1992; Sáez Cruz, 1991; Sánchez-Gey Venegas, 1996, p. 167-185; Torres Queiruda, (1989) 141-171; 1995, p. 157-174; (1986) 301-309; (1988) 93-140; 138-152; (1993) 121-164; (1963) 14-15; 1990. 10
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A aproximação do pensamento dos dois não pretende transformar Zubiri numa espécie de comentarista de Amor Ruibal, mas libertar seu pensamento do perigo do “escolasticismo”. Diante da “atomização da atividade filosófica” na península ibérica (TORREVEJANO, 1987. p. 79), Torres Queiruga pretende colaborar na “[...] criação de uma tradição filosófica que assegure a confluência acumulativa dos distintos esforços” (TORRES QUEIRUGA, 1990, p. 10, 11). No horizonte de rompimento com o escolasticismo e de “retorno às coisas mesmas”, nasce a concepção de conhecimento prévia a qualquer conceito e à distinção sujeito–objeto (TORRES QUEIRUGA, 1990, p. 78).11 E, olhando mais concretamente para a abordagem zubiriana do problema de Deus, Torres Queiruga enumera os seguintes passos: (1) apresentação do tema da “religação”: “En torno al problema de Dios”, 1936; (2) análise da sua articulação com a questão das “provas” da existência de Deus: “Introducción al problema de Dios”, 1963; e (3) implicações antropológicas e religiosas: El hombre y Dios, 1984 (cf. TORRES QUEIRUGA, 1990, p. 82-83). De acordo com Torres Queiruga, a concepção de conhecimento primordial em Zubiri baseia-se na valorização da “sensação”: como modo cognoscitivo que permite à realidade ser ela mesma, apresentar-se “de per si” (de suyo); e como garantia da presença do real na atividade cognoscitiva. Definitivamente, a sensação interessa não enquanto torna presente um “conteúdo” determinado, mas enquanto, nesse conteúdo, torna presente a “realidade” (ZUBIRI, 1984).12 Com o conceito “de per si”, Zubiri pretende preservar a dignidade do real desmembrando-o da sua relação com o homem.13 É um momento de
Cf. García-Sabell, 1990, p. XVIII; Martínez Gómez, 1981, p. 515-543, 538. Cf. Torres Queiruga, 1990, p. 102, 106. 13 “Hemos mantenido enérgicamente la tesis del ser como acto ulterior de lo real, la actualidad de lo real como momento del mundo, independiente de que haya o no haya hombres” (ZUBIRI, 1985, p. 438). 11
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autonomia em relação ao homem. No entanto, para Torres Queiruga, mais do que garantir a autonomia do real, o “de per si” mostra a sua estrita dependência do homem, pois seria justamente a formalidade humana (cf. TORRES QUEIRUGA, 1990, p. 122). Outro marco fundamental de Zubiri analisado por Torres Queiruga é “[...] o acesso primário a Deus: ‘religação’ e conhecimento espontâneo”. El hombre y Dios se encontra bastante determinado pela referência à “religação”. Diante dessa constatação, o teólogo galego procura estabelecer um certo distanciamento, unido a uma busca de “contextualização”, para evitar o “imperialismo hermenêutico” desta categoria (cf. TORRES QUEIRUGA, 1990, p. 185-195). No capítulo oitavo de sua tese (TORRES QUEIRUGA, 1990 p. 329-378),14 declara: “Depois de um estudo demorado, estou convencido de que sua contribuição mais interessante e nova, mais original e fecunda diante do problema de Deus não está na ‘religação’, mas […] na atenção que dedica ao aspecto vivencial e experiencial do conhecimento divino”. Em outras palavras, “as relações entre a fé e o conhecimento, em sua aplicação a Deus, adquirem uma unidade tão íntima e orgânica, a partir de dentro da própria abordagem, que constituem uma autêntica sementeira para a teologia” (TORRES QUEIRUGA, (1989), p. 142). Torres Queiruga analisa “o acesso do homem a Deus”,15 de acordo com a seguinte estrutura: as condições de possibilidade desse acesso; a fé como meio de sua realização; as relações entre a inteligência e a fé; e questões complementares. As condições desse acesso estão “[...] na radical abertura de ambos [Deus e o homem] ao real enquanto real”: de Deus, enquanto fundamento último, e do homem, enquanto essência aberta (cf. ZUBIRI, 1998, 182-183; 186-187; TORRES QUEIRUGA, 1989, p. 144). Embora haja uma “presença divina 14 O texto foi publicado um ano antes da tese doutoral (cf. TORRES QUEIRUGA (1989) 141-171). 15 Capítulo 4 de El hombre y Dios, p. 179-204.
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prévia” em cada um de nós, o acesso pleno só é produzido mediante a resposta do homem, mediante a “entrega” (ZUBIRI, 1998, p. 194197). De acordo com Torres Queiruga, Zubiri se serve da “causalidade pessoal” para aprofundar a ideia de acesso pleno (TORRES QUEIRUGA, 1989, p. 150). Trata-se de uma intuição semelhante à “teonomia” de Paul Tillich: “[...] a razão autônoma unida à sua própria profundidade” (TORRES QUEIRUGA, 1983, p. 529-541).16 Quanto à abordagem zubiriana da fé, na interpretação de Torres Queiruga, o filósofo basco parte da manifestação da insuficiência da definição tradicional de fé. A fé passa a ser “entrega a uma pessoa”17 e, como tal, adesão pessoal, certeza firme e opção livre (ZUBIRI, 1998, p. 218-221). A intenção primária de Zubiri é afirmar a unidade conhecimento–fé, apesar da diferença. De acordo com o filósofo basco, tal unidade se revela em “vontade de verdade real”, que se distingue conforme a índole da realidade a que se dirige (ZUBIRI, 1998, p. 244, 248, 250-251, 252). A vontade de verdade real, por sua vez, se manifesta como “vontade de ‘fundamentalidade’”. Mais do que mera possibilidade, é uma “atitude” de entrega ao fundamento buscado (ZUBIRI, 1998, p. 256-258). Contudo, atualmente se verifica certa dissociação – a dissociação daqueles que se proclamam “religiosos”, mas vivem considerando Deus “[...] como uma realidade em e por si mesma, e nada mais” (ZUBIRI, 1998, p. 260). A partir dessa perspectiva, Zubiri explica o agnosticismo, a indiferença e o ateísmo. Além da tese de habilitação, devemos mencionar, ainda que brevemente, o estudo sobre “El hombre como experiencia de Dios en Zubiri” (TORRES QUEIRUGA, 1996a, p. 167-185). Nele, Torres
16 Obviamente Torres Queiruga, ao citar Tillich, refere-se a P. Tillich, Teología sistemática I, Barcelona 1972, p. 116. 17 “O assentimento a um juízo fundado no testemunho de outro” (ZUBIRI, 1998, p. 211-212).
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Queiruga faz uma abordagem genérica sobre a “experiência”, e efetua a análise da “religação” como radicação experiencial e da experiência de Deus: o “modo” de experiência e a condição de possibilidade. Tratar da “experiência” de modo genérico já é complicado; aplicá-la diretamente a Deus é quase impossível. No entanto, Zubiri chega a expressões de rara precisão, partindo de dois ângulos principais: a sua gnosiologia da “sensação” e o seu conceito de “causalidade pessoal” (TORRES QUEIRUGA, 1996a, p. 177). Lendo Zubiri, percebe-se a presença viva e influente do ambiente teológico renovador, concretamente através de Karl Rahner, e do projeto idealista, mais precisamente de Hegel (TORRES QUEIRUGA, 1996a, p. 175). Depois da fase de penetração no pensamento de Xavier Zubiri, Torres Queiruga inicia uma fase de prolongamento de aspectos da concepção zubiriana (cf. TORRES QUEIRUGA, 1977, 1987, 1991, 1992a, 1992b, 1995, 1996b, 1996c, 1998a, 2000a). Num pequeno opúsculo de 1991, Torres Queiruga (1991) vale-se de quatro metáforas para manifestar “o rosto de Deus em nossa história”, “o fundamento do ser” (P. Tillich), “o grande companheiro” (A. Whitehead), “a negra” (teologia feminista) e “Pai/Mãe” (Jesus de Nazaré). O rosto de Deus descrito pelo teólogo galego, especialmente a partir da primeira e da segunda metáforas, assemelha-se ao descrito por Zubiri como a realidade acedida no final do processo intelectivo do homem. Alguns conceitos chegam a ser idênticos. Veja-se, por exemplo, a manifestação de “[...] Deus como fundamento e fonte do ser” (TORRES QUEIRUGA, 1991, p. 13 23, 32). Consequentemente: “Deus não está fora, mas dentro” (TORRES QUEIRUGA, 1991, p. 13); “Deus está sendo através de nós, manifestando-se em nós e empurrando-nos para que caminhemos, avancemos e sejamos mais” (TORRES QUEIRUGA, 1991, p. 14); “Deus ‘é/faz’ todas as coisas” (TORRES QUEIRUGA, 1991, p. 14-15). Junto com a concepção de Deus, Torres Queiruga aborda outras temáticas de nítida conotação zubiriana: a história religiosa da humanidade como uma busca do REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 57-86, jan./jun. 2011
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rosto verdadeiro de Deus (TORRES QUEIRUGA, 1991, p. 6); a progressividade da revelação como resultado da finitude de nossa inteligência e de nossa liberdade (TORRES QUEIRUGA, 1991, p. 8); a existência do mal como resultado da finitude da realidade (TORRES QUEIRUGA, 1991, p. 21). Em 1997, o teólogo galego retoma a temática da evolução do dogma, pois sente a necessidade de repensar todo o conjunto da fé. O desafio atual, para ele, é retraduzir globalmente o cristianismo (cf. TORRES QUEIRUGA, 1996b, p. 20).18 As palavras e as proposições têm significado em seu contexto: se este muda, aquelas o perdem. Os conceitos teológicos estavam justificados no contexto em que surgiram, mas hoje adquirem um significado diferente. “Se se quer seguir mantendo o que a Bíblia ensina, impõe-se […] uma transformação radical da linguagem” (TORRES QUEIRUGA, 1996b, p. 19). A solução é “[...] mudar o vocabulário e, sobretudo, introduzir os significados, explicitamente, na nova rede conceptual” (TORRES QUEIRUGA, 1996b, p. 25).19 Implica duas coisas: “um profundo e verdadeiro respeito pelo passado” e “uma necessária modéstia”, pois se trata de uma tarefa lenta, que só poderá ser realizada por toda a comunidade dos fiéis (cf. TORRES QUEIRUGA, 1996b, p. 28). O grande objetivo de Torres Queiruga é repensar o problema de Deus. Ajudar a descobrir um Deus digno do homem: amor sem limites; anti-mal; que quer que cumpramos nossas obrigações morais (TORRES QUEIRUGA, 1996b, p. 14-15). “Sua intenção é tornar consciente o novo modo com que experimentamos, hoje, Deus, tratando, assim, de vivenciar sua verdadeira relação conosco” (TORRES QUEIRUGA,
Na mesma linha, pode-se ver Torres Queiruga,1977a. E conforme 1996b, p. 26, 27. Ao longo da obra, Torres Queiruga traduz o significado de três conceitos teológicos: “a moral e a religião” (p. 163-200); “Deus ‘castiga’ o pecador com o ‘fogo eterno’ do inferno” (p. 201-246; cf. 1995); e “o ser humano foi criado ‘para a glória de Deus’” (p. 247-294). Conforme também 2000b, p. 209, 211. 18 19
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1996b, p. 22). Consequentemente, será preciso compreender o sentido real da religião, rompendo o dualismo entre o sagrado e o profano, entre o que pertence a Deus e o que nos pertence. “Quando a pessoa humana se compreende a partir da ação criadora divina, tudo se torna santo e profano” (TORRES QUEIRUGA, 1996b, contracapa). Assim, na primeira parte, Torres Queiruga procura repensar o problema de Deus, criador do céu e da terra, e de criadores. A partir dessa “fundamentação”, com grande “coerência interna”, ele repensa a relação entre moral e religião, a questão da culpa e do perdão e, finalmente, a oração de petição (TORRES QUEIRUGA, 1996b, p. 15).20 Não se trata de um “juízo”, mas de uma análise estritamente “objetiva”, preocupada somente com os efeitos. Em 1998 o teólogo galego publica uma série de reflexões procurando aproximar-se do problema real de Deus, na modernidade, visto que, nela, a abordagem do problema de Deus sofre uma divisão decisiva (TORRES QUEIRUGA, 1998a, p. 9, 17). Na modernidade inicia-se um fenômeno de importância capital: “o ateísmo”. Sua perspectiva é “dialógica”, pois busca “[...] o que afeta a todos”, cruzando facilmente a fronteira que a modernidade estabeleceu entre a filosofia e a teologia. Teologicamente, procura esclarecer, a partir de “dentro”, “[...] o que lhe parece o sentido autêntico do religioso na cultura atual”.21 Filosoficamente, manifesta a sua crítica como questionador “externo”, “[...] como desafio e estímulo à reflexão sobre o religioso”.22 A dinâmica interna vai “[...] do ‘problema’ radical, que se apresenta com o início da modernidade, às ‘dificuldades e prospectivas’ que marcam a situação atual, passando por algumas ‘propostas concretas’ que podem ajudar a vislumbrar o que está em jogo” (TORRES QUEIRUGA, 1998, p. 15). 20 21 22
E conforme contracapa. Como também em 1979; 1992a; 1996b; 1998a, p. 11. Como também em Torres Queiruga, 1990; 1992b; 1998a, p. 11.
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Torres Queiruga apresenta quatro propostas concretas: 1) a obra de John H. Newman, que “[...] examina a possibilidade – lógica e psicológica – da fé em Deus”; 2) o ensaio de Heidegger, que “[...] torna evidente a polaridade do problema: a máxima ausência aponta à possibilidade da máxima presença”; 3) a proposta de Zubiri que, “como alternativa à proposta heideggeriana”, evidencia o realismo espanhol; e 4) a parábola de Flew, para retomar “[...] o problema da objetivação da transcendência e a consequente pergunta acerca da possibilidade e legitimidade da ‘linguagem religiosa’” (TORRES QUEIRUGA, 1998, p. 16-17).
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SOME ASPECTS OF THE RECEPTION OF THE ZUBIRIAN THOUGHT IN IBERO-AMERICA Abstract Descriptive exposition of some themes – the concept of Philosophy, a new conception of reality from the notion of sentient intelligence and the way to the knowledge of God – developed by Xavier Zubiri’s disciples. Analysis of the development of the zubirian thought in Ellacuría, Pintor-Ramos and Torres Queiruga. It is suggested the possibility to deepen the dialogue of Zubiri with K. Rahner, with the Jewish thought (Rosenzweig and Levinas) and with some postmodern philosophers (Derrida and Vattimo). Key words: Contemporary philosophy, phenomenology, Xavier Zubiri, ontology.
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LA CONCEPCIÓN ACERCA DEL SER HUMANO: FUNDAMENTO DEL HUMANISMO EN EL PENSAMIENTO MARXISTA CUBANO DE LA PRIMERA MITAD DEL SIGLO XX Freddy Varona Domínguez*
Resumen A partir de la comprensión del humanismo como concepción, enfoque, modo de pensar y hacer, centrados en los seres humanos (hombres, mujeres, niños, niñas), en su lucha continua por emanciparse de todo tipo de opresión y limitación a sus capacidades y potencialidades, así como en su afán por poseer mejores cualidades, en este artículo el autor profundiza en la esencia humanista del pensamiento marxista cubano de la primera mitad del siglo XX y va a lo que considera la base del humanismo que lo recorre: La concepción del ser humano, y lo hace para destacar algunas de sus características más significativas y revelar aquellas que no pocas veces existen de modo implícito en las ideas de los pensadores marxistas cubanos. Conforma su texto con el desarrollo de los siguientes tópicos: La esencia social del ser humano, su pertenencia a clases y grupos sociales, el individuo y la sociedad en la concepción acerca del ser humano, la fuerza humana interna, la visión del ser humano en su cultura y en los nexos con el tiempo, mediante los cuales expone sus consideraciones con una visión crítica. Palabras-claves: Humanismo, Hombre, Ser humano, Pensamiento marxista cubano.
* Doctor en Ciencias Filosóficas, profesor de la Universidad de Holguín – Cuba, Asesor Nacional de Filosofía del Ministerio de Educación Superior de la República de Cuba.
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El humanismo es una de esas categorías polémicas y de extraordinaria riqueza sustentada en una policromática bibliografía, donde se destacan los estudios filosóficos, psicológicos, pedagógicos y artísticos, mediante los cuales cobra su condición de concepción, enfoque, modo de pensar y manera hacer. No obstante esta gama de matices, lo esencial y distintivo de él está dado por el lugar protagónico de los hombres y las mujeres, vistos individual o colectivamente, así como por el espíritu desalienador y de mejoramiento humano, que se manifiesta, explícita o implícitamente, en consideraciones, propósitos y proposiciones para hacer realidad. Todo esto se sostiene en una determinada concepción acerca del ser humano, de ahí la atención esmerada que se le brinda en este texto dedicado al pensamiento marxista cubano. Para fundamentar la validez del estudio del pensamiento de cualquier pueblo no es necesario usar muchos argumentos o explicaciones. Esta aseveración categórica se basa en una evidencia: Las especificidades, propósitos, influencias foráneas, modos de exposición, entre otras características, constituyen temas de notoria fertilidad investigativa, capaces de brindar una notable variedad de conocimientos en dependencia de muchos factores, entre los cuales están las intenciones del estudioso y su punto de vista: filosófico, historiográfico, económico, sociológico, por sólo mencionar algunos. Además, su valía no depende tan sólo de su contribución a la solución de problemas existentes, sino también de su espíritu renovador, de las vías que abre hacia el futuro, del alcance de su proyección. La semántica del vocablo pensamiento gira alrededor de la palabra idea y sus múltiples significados: imagen, representación, conocimiento, concepto, opinión, juicio. Con esa amplitud y polisemia es posible utilizarlo vinculado tanto a alguien en particular, como a un grupo social, una sociedad en pleno, un pueblo, un período histórico, una obra. En correspondencia con ello, cuando en el presente texto se habla de pensamiento cubano, se trata de ideas, pero específicamente 88
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La concepción acerca del ser humano: fundamento del humanismo en el pensamiento marxista cubano de la primeira mitad del siglo XX
de aquellas que, conformen o no un sistema teórico, están recogidas en escritos que, elaborados dentro o fuera de Cuba, la autoría pertenece a quienes se reconocen a sí mismos como cubanos o cubanas. En el mismo cosmos que forma el pensamiento cubano tiene su espacio el pensamiento marxista cubano, con sus peculiaridades, méritos, limitaciones, entre otros rasgos, que pueden ser atractivos a la mirada de diferentes estudiosos para conocerlo con mayor hondura y así aquilatar su presencia en la historia y la cultura de Cuba, su vigencia y su capacidad para encaminar la patria a niveles superiores en todos los sentidos. Es crucial puntualizar desde el inicio, que el hecho de hablar de pensamiento marxista no significa reduccionismo ni limitación a la obra de Carlos Marx y Federico Engels, sino que al mismo tiempo que la abarca, incluye el desarrollo posterior de la teoría de ambos. La existencia del pensamiento marxista cubano ya rebasa con creces la centuria y no ha sido tímida ni ha estado ubicada exclusivamente en recovecos intelectuales, antes bien, distintivos suyos han sido desde su inicio la participación activa y entusiasta de sus representantes en la vida del país y la revelación palmaria de sus ideales y cosmovisión. De ahí su presencia en todo el cosmos intelectual y práctico de Cuba (de donde a su vez se nutre): la filosofía, la política, la economía, el derecho, el arte, la literatura, la ciencia; en resumen: la sociedad y la cultura cubanas. Sobre la base de estas características no ha de provocar asombro el asegurar que la obra de los pensadores marxistas cubanos es copiosa, de gran riqueza y diversidad; tampoco ha de motivar extrañeza el aseverar que el listado con los nombres de dichos pensadores puede tener una significativa extensión. En el presente texto se estudia a los siguientes pensadores marxistas cubanos: Carlos Baliño López (1848-1926), Julio Antonio Mella (19031929), Rubén Martínez Villena (1899-1934), Juan Marinello Vidaurreta (1898-1977), Blas Roca Calderío (1908-1987), Raúl Roa García (19071982) y Carlos Rafael Rodríguez (1913-1997). En la elección de estas REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 87-129, jan./jun. 2011
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figuras fueron definitorios el alcance, profundidad, amplitud, actualidad y riqueza teórica marxista de su obra; no fue un requisito insalvable el hecho de ser miembro del primer partido marxista cubano. Para ganar concreción y profundidad, el presente estudio se limita al período que se inicia con el surgimiento del pensamiento marxista cubano (ocurrido durante las últimas décadas del siglo XIX) y termina a mediados del siglo XX, porque a partir de los años cincuenta dicho pensamiento entra en una nueva etapa de su desarrollo con la presencia de Fidel Castro Ruz. En el pensamiento marxista cubano, en general y, por supuesto, también en el que se desarrolla durante la primera mitad del siglo XX, el humanismo tiene carácter fundamental y, aunque el grueso de su riqueza la mayoría de las veces está implícita, su consubstancialidad se capta continuamente en los principios y finalidad. No obstante la importancia del humanismo en el pensamiento de marras, aún es insuficiente su estudio, lo cual se hace evidente en la cantidad y variedad de escritos acerca de él, aún por debajo de su grandeza como característica básica y definitoria, así como de sus potencialidades para provocar y sostener reflexiones, no sólo en torno a lo evidente, sino sobre todo acerca de lo subyacente, lo tácito, con la finalidad de revelarlo. Primordial es enfatizar que en el pensamiento marxista cubano de la primera mitad del siglo XX, junto con el humanismo que lo recorre hasta convertirse en parte clave de su esencia se funden la firmeza de ideas y la destreza de expresión, la belleza artística y la profundidad teórica, la concordancia entre la apertura sugerente y la afirmación categórica. Vale agregar que las reflexiones que componen este texto tienen como intención destacar el interés de estos pensadores por la cultura y la historia cubanas, así como la vigencia y perennidad de la lucha de los hombres y mujeres por la eliminación de cualquier fuerza que los oprima, limite o denigre, por su mejoramiento como seres humanos y por una sociedad y una cultura verdaderamente humanistas. 90
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La concepción acerca del ser humano: fundamento del humanismo en el pensamiento marxista cubano de la primeira mitad del siglo XX
Durante la primera mitad del siglo XX en el pensamiento marxista cubano se desarrolla una concepción acerca del ser humano que toma concreción en la patria al afianzarse de manera raigal en la sociedad, la historia y la cultura de Cuba, en estrechas relaciones con la economía, las leyes jurídicas, la moral, el arte, la literatura, entre otras esferas de la vida, donde los nexos primarios son práctico-trasformadores, sin que por ello sean relegados a niveles inferiores los cognoscitivos y axiológicos, tampoco los comunicativos. Esta concepción existe mayormente de modo implícito y aunque su soporte es la categoría filosófica hombre con la abstracción que lleva en sí al ascender a elevados niveles filosóficos, su contenido esencial es concreto, dado por el pueblo cubano, con sus características surgidas en el quehacer diario. Este hecho propicia que los pensadores marxistas cubanos capten al hombre no sólo como poseedor de un cuerpo físico, que le da numerosas facultades, y un cosmos interior con infinita extensión, sino asimismo como sujeto de su actividad, lo que condiciona que lo aprehendan en sus relaciones con los objetos y otros sujetos.
1 El hombre es un ser social que forma parte de clases y grupos sociales La esencia humanista del pensamiento marxista cubano no tiene su apoyatura en la exaltación del individuo aislado y ahistórico. En él es básica la consideración de que el protagonismo humano es posible sólo en el marco social, donde hombres y mujeres unidos poseen un poder ilimitado. A tono con esta afirmación tiene lugar la convicción que explicita Raúl Roa García en 1939 cuando asegura que “la teoría del hombre aparte, de la inteligencia pavoneándose sobre los partidos y sobre las clases sociales, elaborada por el Renacimiento, no es más que una leyenda” (ROA, 1966, 308). REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 87-129, jan./jun. 2011
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En los momentos iniciales del pensamiento marxista cubano, cuando aún no han salido a la luz los aportes de Lenin al marxismo, no hay una idea precisa acerca de la categoría “clase social”. Esta aseveración se evidencia en la obra de Carlos Baliño López, quien sostiene en 1905 que la “clase de color” debía ser una clase proletaria (BALIÑO, 1976, 87), conclusión a la que seguramente llega por ser semejante la situación socio-económica de los obreros y la de los cubanos de piel negra. El modo como Carlos Baliño emplea el concepto clase social demuestra una vez más la importancia de la elaboración teórica y de los conceptos como herramientas de trabajo. El cimiento que en 1905 necesita este pensador cubano sale a la luz en 1919, cuando Lenin (LENIN, 1961, t. 3, 228) publica su definición de clase social. Importante para el marxismo es el desarrollo que el pensador y político ruso le da al concepto de clase social, al proporcionarle los parámetros decisivos y precisos para delimitarlas. Entre dichos parámetros están el lugar que los hombres y mujeres ocupen en un sistema de producción social históricamente determinado, las relaciones en las cuales se hallan con respecto a los medios de producción, el papel que desempeñan en la organización social del trabajo y el modo y cantidad en que reciben la parte de la riqueza social de que disponen. La visión clasista hace posible que las características humanas puedan ser entendidas con mayor profundidad al agrupar al hombre a partir de una base concreta: su posición en las relaciones sociales dada de un modo particular sobre todo por el lugar que ocupa en la producción de bienes materiales y con respecto a los medios con los que produce, todo lo cual es determinante en última instancia en cuanto a las necesidades, intereses, fines y medios para realizarlos. De este modo, representa una contribución de incalculable valía para desentrañar los vericuetos de la esencia deshumanizadora del capitalismo y las vías para su eliminación. Pero a su vez, apunta al obrero como la principal fuerza productora, mayor víctima de la explotación 92
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La concepción acerca del ser humano: fundamento del humanismo en el pensamiento marxista cubano de la primeira mitad del siglo XX
capitalista y del espíritu inhumano burgués y, consiguientemente, eje central de la actividad revolucionaria, capaz de darle al humanismo nuevos matices que no se reducen a su cosmos clasista, pues se abre a todos los trabajadores, a su inclusión en las transformaciones de la sociedad y la cultura por un futuro verdaderamente humanista. La referencia a las clases sociales no deshumaniza al marxismo y, de hecho, tampoco al pensamiento marxista cubano. El énfasis en la pertenencia clasista no conduce a ignorar ni menospreciar la condición humana, ni representa la ubicación en el centro de la atención teórica y práctica de un concepto que no incluye al hombre. Por el contrario, la visión centrada en las clases sociales si ciertamente no destaca a un hombre aislado, sí se centra en el hombre visto pluralmente, es decir, los seres humanos (de los dos sexos y cualquier edad) y los tipos de agrupaciones en las cuales desarrolla su vida. La determinación clasista lleva implícita una visión histórico-concreta. Esta aseveración no significa que se niegue el concepto general de hombre, pero no es lo que prevalece en el pensamiento marxista cubano, lo común es que más que hablar del hombre se hable del obrero, el burgués, el campesino, el pequeño burgués. Pero como también es significativa la pertenencia a grupos sociales, ya sea por la edad, el sexo o por las características de la faena a la cual se dedica, suele estar presente la alusión a los intelectuales, los estudiantes y las mujeres. Todo lo cual le da un nuevo matiz a la lucha contra la alienación y por el mejoramiento humano, es decir, da nuevas tonalidades, más reales, al humanismo que irriga a este pensamiento cubano. Pero si es característico del humanismo en el pensamiento marxista cubano la aprehensión humana mediante clases y grupos sociales, este rasgo en sí no es lo más significativo, sino las consideraciones y conclusiones a las cuales llegan los pensadores, que es lo que verdaderamente constituye el pensamiento marxista cubano, cuya condición de cubano la obtiene por tener como sustento las condiciones específicas cubanas, amén de otros aportes. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 87-129, jan./jun. 2011
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Acorde con la esencia proletaria del marxismo, los obreros constituyen la piedra angular de la concepción acerca del hombre y del humanismo que le es consustancial. De los obreros se subraya su carácter revolucionario, su capacidad de realizar grandes transformaciones y su misión histórica de crear una sociedad sin explotadores, donde los hombres y mujeres puedan desarrollarse plenamente y satisfacer sus necesidades. La economía dependiente y atrasada de Cuba, junto a sus graves problemas sociales, como el desempleo y las difíciles condiciones de trabajo, conducen a que en el propósito emancipador de los obreros coincidan sus intereses clasistas con los de la nación. Ya en 1924 J. A. Mella destaca que los obreros representan el porvenir, porque luchan por los ideales de todo el pueblo: destruir el capital extranjero enemigo de la nación, establecer un régimen de hermandad, de gente sencilla y acabar con los ricos. Señala: “La causa del proletariado es la causa nacional. El es la única fuerza capaz de luchar con probabilidades de triunfo por los ideales de liberación en la época actual. [...] Él anhela establecer un régimen de hombres de pueblo [...] no quiere cambiar al rico extranjero por el rico nacional (MELLA, 1975, 124). Sobre esa base toma consistencia el pedido que Mella le hace a los obreros de Cuba: Sentirse herederos y continuadores del patriotismo de los cubanos precedentes, a pesar de que muchos de ellos fueron representantes de otras clases sociales. De este modo, Mella es el primer pensador marxista cubano que insiste en la significación de la historia de la patria no como añoranza por el pasado, sino como resorte que apunta al futuro (MELLA, 1977, 77; ROCA, 43, 30; RODRÍGUEZ, 1987, t. 3, 45). En pos del objetivo de construir una patria mejor en todos los sentidos, constituye una constante el pedido de lograr la unidad interna de la clase obrera y entre ella y los obreros, los campesinos y los estudiantes, para lograr un mundo sin separaciones clasistas, ni anhelos desmedidos por las riquezas materiales, las cuales llegan a 94
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La concepción acerca del ser humano: fundamento del humanismo en el pensamiento marxista cubano de la primeira mitad del siglo XX
supeditar a hombres y mujeres. Los pensadores marxistas cubanos destacan que sólo entonces podrá ser realizada plenamente la concepción humanista de la sociedad y la cultura. Con frecuencia subrayan que para lograr ese propósito es obligatorio realizar transformaciones radicales, en las que no puede perderse de vista la composición clasista ni la significación que en ella tiene la base económica. La importancia de esta última y de las acciones prácticas en el empeño de alcanzar cambios sociales radicales no disminuye el lugar del aspecto ideológico, antes bien, éste se refuerza a medida que se despliega la revolución. Es común en este pensamiento cubano el establecimiento de nexos entre la condición semifeudal del país y las características más marcadas de la clase obrera. El análisis cimero de estas relaciones lo ofrece Carlos Rafael Rodríguez (RODRÍGUEZ, 1987, t. 1, 28) en 1941 cuando señala de la clase obrera los siguientes rasgo: numéricamente débil, de corta existencia en el país, ligada a una producción de escaso nivel técnico que propicia una explotación más brutal, formada en su mayoría por antiguos campesinos y artesanos arruinados, lo cual sirve a su vez de condición propicia para la presencia en sus miembros de la psicología pequeño burguesa y con ella del anarquismo y el reformismo en el movimiento obrero cubano. A partir de las condiciones de Cuba se estructura la relación entre los intereses clasistas y los de la nación. Otra clase social que acapara la atención de los pensadores marxistas cubanos durante la primera mitad del siglo XX es la de los campesinos, a quienes conciben como aliados de los obreros. En este caso también se destaca el mencionado estudio de Carlos Rafael Rodríguez y junto a él el que realiza Blas Roca Calderío por esa misma época, que publica en 1943 (RODRÍGUEZ, 1987, t. 1, 25). De los campesino destacan como rasgos característicos los vínculos de su existencia con la condición semifeudal de Cuba, su condición de explotados por los latifundistas y terratenientes cubanos y norteamericanos, el no emplear mano de obra asalariada en el cultivo de la tierra (acción que REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 87-129, jan./jun. 2011
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llevan a cabo con su familia), su composición heterogénea (campesinos ricos, medios y pobres) y la cercanía de los campesinos pobres, por el tipo de actividad productiva, a los aparceros, arrendatarios y precaristas, quienes no escapan de la atención de dichos pensadores cubanos, como tampoco ocurre con los semiproletarios, de quienes el rasgo más significativo que señalan es la oscilación de sus intereses entre los de los obreros y los de los pequeños burgueses. En el pensamiento de marras se capta a los campesinos en la explotación a que estaban sometidos y en las difíciles condiciones de vida y de trabajo. Esta situación económico-social se ve como motor de su participación en la lucha revolucionaria, tanto por aspiraciones propiamente clasistas, como por transformaciones sociales de mayor alcance. En este pensamiento cubano no sólo se habla del hombre trabajador, del que vive de su trabajo, eso sería una limitación de incalculables consecuencias tanto en lo teórico como en lo práctico. De tal modo, se tiene en cuenta a los opresores y explotadores. En este caso, otra de las clases sociales que ocupa un significativo lugar en el pensamiento de marras es la burguesía. De ella se subraya su afán de riquezas y, resultante de ello, su espíritu deshumanizado, su corrupción moral y su entreguismo al imperialismo norteamericano. Sobre la base de este rasgo se yergue el criterio de no llamarla burguesía nacional. En relación con esta clase social, por su profundidad, sobresalen de igual modo los estudios realizados por Carlos Rafael Rodríguez a finales de la década del treinta y principio de la del cuarenta, donde dentro de sus particularidades subraya la heterogénea composición, pues “tiene múltiples agrupamientos, con intereses contradictorios entre sí debido a sus relaciones especiales hacia la economía” (RODRÍGUEZ, 1987, t. 1, 15). Carlos Rafael Rodríguez no observa a la burguesía en bloque. Este procedimiento discernidor comienza a aplicarse a partir de la corrección realizada por los comunistas cubanos en el VI Pleno de su organización, celebrado el 21 y 22 de octubre de 1935 cuando entienden que había que penetrar las entrañas de la burguesía para 96
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conocerla más profundamente y observar sus diferencias y divisiones internas. Resulta significativo acotar que Carlos Rafael reconoce la posibilidad de la parte más seria y cautelosa de la burguesía nativa de desarrollar ideas progresistas relacionadas con la paz, la democracia y la independencia económica del país. Carlos Rafael Rodríguez, luego de estudiar profundamente la burguesía en Cuba, la subdivide en dos grandes grupos: el comercial y el industrial. Del primero señala que su núcleo más importante está formado por el sector importador, que es el intermediario entre los pequeños comerciantes y los exportadores extranjeros (RODRÍGUEZ, 1987, t. 1, 16). De los importadores señala que se enriquecían gracias a la débil y servil economía cubana y a su casi nula diversificación industrial. Por tal razón, caracteriza a los importadores como un grupo de hombres quienes no podían apoyar el desarrollo económico cubano, porque atentaba contra sus intereses cardinales y los califica como enemigos de la liberación nacional. No escapa a su atención que la burguesía comercial estaba formada fundamentalmente por extranjeros, lo cual incrementaba su desinterés por el progreso de Cuba. El estudio de este subgrupo lo apoya en la sociedad cubana, por lo cual tiene en cuenta a hombres verídicos, específicamente comerciantes que existían entonces en el país, de los cuales subraya la explotación a la que sometían a los almacenistas, quienes a su vez explotaban al pueblo mediante los precios de los productos. El grupo de la burguesía industrial lo divide Carlos Rafael en dos subgrupos: el azucarero y el no azucarero. Apunta al primero de ellos dos como el más desarrollado y poderoso, ligado a su vez al imperialismo norteamericano, porque realiza el producto que ellos con prioridad le exigían a Cuba. No ha de olvidarse que en la década del 40, cuando este pensador realiza sus estudios sobre la composición clasista cubana, el azúcar constituía alrededor del 80 por ciento del valor de las exportaciones del país (ROCA, 1943, 25), como consecuencia del monocultivo y la monoproducción. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 87-129, jan./jun. 2011
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En el subgrupo azucarero (RODRÍGUEZ, 1987, t. 1, 20) destaca dos sectores, uno formado por los grandes productores extranjeros radicados en Cuba y otro integrado por los cubanos. De estos últimos considera que son los que tienen la posición privilegiada en el sistema económico semicolonial y subraya de ellos su sometimiento a cierta explotación de los imperialistas a través de las medidas restrictivas, pero inmediatamente apunta que este grupo de hombres siempre resuelven sus contradicciones con los imperialistas yanquis mediante compromisos y adulaciones, por eso al mismo tiempo apunta que se encuentran estrechamente vinculados a la política del imperialismo y representan un papel reaccionario en la lucha del pueblo por sus reivindicaciones sociales y por la total soberanía cubana. En este mismo subgrupo señala la existencia de productores menos poderosos, que chocaban con los grandes hacendados, por eso su propio interés los puede empujar a la lucha más directa con el imperialismo, al lado del interés nacional. En el subgrupo industrial no azucarero, Carlos Rafael subraya los lazos que atan a estos hombres a la libertad económica de Cuba como condición para su desarrollo y enriquecimiento. Por ello los ve como un elemento de cierta importancia en la lucha por la independencia, a pesar de su espíritu marcadamente vacilante ante las sublevaciones populares. En torno a los terratenientes y latifundistas también tienen criterios los pensadores marxistas cubanos. Interesante es que para ellos no pierden su condición de humanos a pesar de su esencia inhumana, que es uno de los aspectos que con más frecuencia enfatizan. Como soporte de las reflexiones centradas en este asunto apuntan que la mayoría de los latifundios estaba en manos de compañías extranjeras, las que poseían miles de caballerías de tierra y subrayan que ambos grupos estaban vinculados a las condiciones semifeudales de la agricultura en Cuba y a las fuerzas imperialistas (RODRÍGUEZ, 1987, t. 1, 26). En lo referente al aspecto clasista de la aprehensión del ser humano de los pensadores marxistas cubanos durante la primera mitad 98
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del siglo XX merecen un aparte sus ideas en torno a las clases medias. En este caso salta a la vista la opinión que acerca de ellas tiene Julio Antonio Mella en 1928 (MELLA, 1975, 472) en cuanto a su carácter revolucionario, pues no diferencia posiciones ideológicas de sus integrantes y por ende, de ellos sólo ve actitudes negativas con respecto a la lucha. Esta opinión de J. A. Mella se debe al momento histórico, cuando, por un lado, el fascismo se desarrollaba en Italia y Alemania apoyado en dichas clases y por otro, las mismas no habían demostrado sus posibilidades revolucionarias. Además, acerca de ellas todavía no existían profundos estudios realizados a la luz del marxismo. Con el paso de los años cambia la opinión acerca de las clases medias y sus posibilidades revolucionarias y humanistas, en lo cual es determinante el VII congreso de la Internacional Comunista, celebrado en 1935, donde se rechaza por falsa la concepción del fascismo como movimiento pequeño burgués. A partir de este año, en el pensamiento marxista cubano descuella la caracterización de las clases medias por su posición vacilante con respecto a la burguesía y a los obreros, a pesar de ser explotada por el gran capital, y se subraya la conveniencia de incorporarlas a la lucha por transformaciones sociales revolucionarias, humanistas, beneficiosas a los trabajadores. En el pensamiento marxista cubano la delimitación de estas clases tiene lugar sobre la base del criterio de la condición determinante de las relaciones de producción. Acorde con ello, cuando se habla de estas clases, Carlos Rafael Rodríguez y Blas Roca destacan en ellas a la pequeña burguesía, que conciben como la clase social que agrupa a “aquellos que no teniendo la posibilidad de ser grandes burgueses – poseedores de una gran fábrica, de un gran comercio, etc. – tampoco se consideran, o no lo son de veras, asalariados, obreros de la industria moderna” (ROCA, 1943, 48). La pequeña burguesía señalan que existe en el campo y la ciudad y que se diferencia internamente en la industrial, la comercial y la agrícola. De ellas Carlos Rafael apunta que “siente sobre sí la explotación de los grandes importadores [...] Pero REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 87-129, jan./jun. 2011
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está unida a la forma de explotación del pueblo a través del comercio y de la usura” (RODRÍGUEZ, 1987, t. 1, 27). Es común en el pensamiento marxista cubano considerar que dentro de los rasgos característicos más significativos de la pequeña burguesía están el individualismo y su posición vacilante con respecto al socialismo y al capitalismo, por lo que, Sobre todo a partir de 1935 se ve como fuerza con posibilidades revolucionarias. El estudio acerca de las clases sociales que realizan los pensadores marxistas cubanos tiene en sí una gran significación histórica y teórica, sobre todo por la caracterización que realizan de la composición clasista cubana desde posiciones marxistas, pero en ello no radica su mayor importancia, sino en el procedimiento que emplean consistente en la interrelación de dos aspectos: los intereses propiamente clasistas dialécticamente enlazados a su fundamento económico y la posición que cada clase social tiene con respecto a la independencia de Cuba y sus vínculos con los Estados Unidos, o sea, que no desaparece ni se decolora la atención hacia la gran necesidad histórica cubana: la solución de la contradicción imperialismo norteamericano-independencia nacional.
2 Los grupos sociales en la concepción acerca del hombre En el pensamiento marxista cubano durante la primera mitad del siglo XX la concepción acerca del hombre como ser social asimismo se apoya en grupos sociales delimitados por los conocimientos, la edad, el sexo, entre otros. Dentro de ellos sobresalen la intelectualidad, el estudiantado y las mujeres. Acerca de los intelectuales se configura una sólida concepción que es muestra de la destacada posición que este grupo social ocupa en dicho pensamiento cubano. En ello incide especialmente el aumento del número de intelectuales en las filas del 100
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Partido Comunista de Cuba durante la lucha contra la tiranía del presidente Gerardo Machado (1871-1939. Fue presidente de la República entre 1925 y 1933). La gran atención dada a los hombres dedicados a los quehaceres intelectuales responde asimismo a la necesidad de difundir la teoría marxista, desarrollarla y llevarla a la práctica creadoramente. De ahí la intención de formar dirigentes o cuadros, como también se les llama, que pudieran guiar al movimiento obrero en la revolución. En el pensamiento marxista cubano de esta época no abundan las definiciones, pero sí pueden hallarse consideraciones profundas que sin alejarse de la esencia del marxismo resultan ser novedosas, como la que ofrece Julio Antonio Mella en 1924 con respecto a la intelectualidad. Este joven pensador concibe al intelectual con dos rasgos determinantes: primeramente, es un trabajador, pero un trabajador de pensamiento; segundo, desprende su condición de intelectual de su actitud social específica, porque considera que esa denominación solo la merece quienes ponen su pluma para combatir las iniquidades. A quienes no cumplen con ese requisito los llama tartufos (MELLA, 1975, 88), a pesar de dedicarse a una profesión que se centre en el empleo del intelecto. Mella ubica a los intelectuales en la revolución o en la reacción. No reconoce posiciones intermedias que den margen a la neutralidad o a una salida apolítica, pues les exige a los hombres y mujeres que se definan en el ámbito socio-político; en este caso no admite ambigüedad. Esta idea suya se yergue como principio que encuentra continuación en los sucesivos pensadores marxistas cubanos, es decir, establece la base de la relación de sus compañeros de pensamiento con este grupo social. Dentro de los intelectuales, en el pensamiento de marras se les da especial atención a los profesores universitarios. Ello está dado en gran medida por su deber de moldear el porvenir patrio. Julio Antonio Mella rechaza a quienes con su indiferencia o silencio no hacen otra cosa que apoyar las políticas retrógradas y destaca que por lo general REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 87-129, jan./jun. 2011
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ese tipo de hombres se dedicaba a plagiar conocimientos y a seguir acríticamente las líneas de las academias extranjeras. La causa de esa afirmación está en que en ese período era grande la cifra de profesores reaccionarios o de indiferentes a los problemas de la sociedad cubana y en particular a los relacionados con la política. Julio A. Mella destaca en los profesores universitarios su tendencia a las posiciones reaccionarias por ser defensores de la propiedad individual y de los privilegios sociales. Sobre esta base, en 1928, refuta la tesis del ARPA1 acerca de la intelectualidad como base social de la revolución. Ya cuatro años antes, en 1924, Mella pide un nuevo tipo de profesor universitario, al cual le da la distinción honorífica de Maestro, quien es, según afirma, aquel que “forma el carácter del alumno, y por lo tanto, el que moldea, como artista hábil el futuro de la sociedad en su aula [...] Es aquel que no se olvida nunca” (MELLA, 1975, 118),2 por tanto en su criterio, el verdadero profesor es quien reúne méritos no sólo intelectuales o profesionales, sino ante todo morales, quien sabe marchar con el tiempo e interpretar las necesidades del momento histórico y ponerse al servicio de ellas, pero, y esto es muy importante, el verdadero profesor para Mella es quien es capaz de llegar a los sentimientos de sus estudiantes, y quien con sus virtudes deviene guía inolvidable. Durante la revolución de los años 30, el escaso o nulo espíritu revolucionario de los intelectuales varía, porque a medida que se agudiza la lucha contra la tiranía de Gerardo Machado aumenta entre ellos 1 Alianza Revolucionaria Popular Americana, organización latinoamericana de los años 20 del siglo XX, dirigida por el peruano Víctor Raúl Haya de la Torre, cuyos objetivos latinoamericanistas no estaban claramente definidos, como tampoco lo estaban sus propósitos de integrar las ideas de Bolívar y las de Marx y Engels. 2 La esencia reaccionaria, entreguista y antipopular de muchos intelectuales, sobre todo los graduados en el extranjero, fue condenada por varios pensadores marxistas, entre ellos Rubén Martínez Villena. Ver Martínez, 1978, t. 2, 254. Las características aristocráticas de los intelectuales formados fuera del país fueron también expuestas por Elías Entralgo, autor no marxista que vivió esos años. Ver Elías Entralgo, 1996, 35.
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el número de quienes se comprometen con la revolución, movidos por el hecho de haber comprendido las exigencias del momento histórico. Son continuadores de Mella y al igual que él atribuyen la condición de intelectual no sólo a quien realiza un trabajo mental altamente calificado y con una producción de elevadas magnitudes espirituales, sino a quien se dedica a ese trabajo, pero que lo llevan a niveles superiores al vincularlo a las exigencias político-sociales del momento, en función de las cuales debían poner su caudal de saber y junto a él toda su sensibilidad, rasgos estos que ven como indispensables para desempeñar tareas revolucionarias mayores. Los conocimientos de los intelectuales, su profundidad de pensamiento y amplitud espiritual como cualidades que le permiten ver más lejos, así como su facultad para entender y explicar de un modo más hondo y completo cuanto sucedía a su alrededor, son rasgos de la intelectualidad altamente valorados en el pensamiento marxista cubano, donde se subraya la necesidad de utilizarlos en aras de la revolución y del futuro mejor. “El intelectual, por su condición de hombre dotado para ver más hondo y lejanamente que los demás, está obligado a hacer política” (ROA, 1977, 17), afirma Raúl Roa en 1931, una época harta de problemas y peligros para el pueblo cubano debidos a la enorme crueldad de la tiranía machadista, por lo cual entonces se precisa una activa participación política y es de esa necesidad que se hace eco Raúl Roa. Pero años más tarde, en 1938, cuando las condiciones políticas han variado en cierto sentido a favor de la democracia, sin sobrepasar verdaderamente los límites permitido por la condición neocolonial cubana, Juan Marinello afirma enfáticamente que “el hombre de letras y arte es, y debe ser, ante todo, un hombre; es decir, un elemento socialmente activo, llamado a una función todo lo alta y distinguida que se quiera, pero no aislada del hecho social” y más adelante en el mismo texto puntualiza que “si política es sumar el esfuerzo del escritor y del artista plástico a toda obra de superación humana, de REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 87-129, jan./jun. 2011
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mejoramiento por todos los ángulos, claro está que somos políticos y debemos seguirlo siendo”(MARINELLO, 1989, 222). La obra de los intelectuales, sobre todo la artística, se evalúa con lauros por su calidad, pero se aprecia aún más si junto con su excelencia es capaz de enriquecer espiritualmente a la humanidad, si contribuye con su desalienación y mejoramiento. Esto constituye un principio que está presente en una parte considerable de este pensamiento cubano. En años sucesivos los pensadores marxistas cubanos mantienen su posición con respecto al compromiso social de los intelectuales, sin hacer dejación, en lo esencial, del principio establecido por Mella, pero en correspondencia con las condiciones históricas concretas. En 1946 Juan Marinello asevera que los intelectuales pueden manifestarse en relación con la revolución mediante dos vías: una, como partícipe directo, como protagonista de la misma o, dos, con su obra al servicio del quehacer revolucionario, de la cultura y la sociedad, pues “no se trata de que un intelectual sea un dirigente político, aunque el que tenga disposiciones y decisión para ello puede y debe serlo; se trata de que el intelectual caiga del lado de una solución colectiva en la que, de una parte, mantenga y exalte su inevitable hombría y, de la otra, trabaje por la mejor dignidad de su tarea específica” (MARINELLO, 1977, 143). Esta misma posición la expresa Carlos Rafael Rodríguez dos años después, en 1950, cuando afirma que para que el escritor y el artista manifiesten su fidelidad al pueblo no existe una única vía, que sería la de dedicarse exclusivamente a la lucha, pues ya había llegado el momento cuando el hombre de letras y el artista revolucionario podían “servir sus deberes civiles con su literatura y su plástica, sin renunciar a la condición de genuinos creadores artísticos” (RODRÍGUEZ, 1987, t.. 3, 322). Al intelectual comprometido con la revolución le es formulado, además, un pedido mayor, el de desplegar con la amplitud y sinceridad su capacidad racional y sentimental para percibir las aspiraciones y necesidades de los hombres trabajadores. En ello el paradigma es 104
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José Martí, porque fue capaz de escuchar la voz de la humanidad y de su patria y propiciarles a los cubanos una obra portadora de lo más íntimo de su vida y de la más elevada calidad. Entre los numerosos ejemplos de la admiración profesada a José Martí se puede mencionar dos textos, uno de Julio A. Mella, que data de 1926 (MELLA, 1975, 267), donde recalca al hombre de pensamiento, amante de América Latina e incansable luchador por el bienestar de los hombres trabajadores y humildes de su patria. El otro de esos escritos es de Juan Marinello, quien asevera en 1942 que Gran artista nuestro será el que, con la posesión plena y gozosa de la buena tradición y de las culturas más alejadas, se abrace a nuestro pueblo para pedirle la humana respuesta a sus dolores y a sus esperanzas. Gran escritor nuestro será aquel que tenga oídos para oír nuestro clamor cubano [...] ¿Qué hizo José Martí que no fuera esto? (MARINELLO, 1977, 124)
En este pensamiento cubano se reverencia con mayor fuerza la obra de los hombres de pensamiento, arte, literatura y ciencia cuando estos se relacionan de algún modo con los problemas de los explotados, para denunciarlos y exigir su eliminación. Méritos relevantes se le atribuye a quienes toman conciencia de las urgencias de su época y actúan de acuerdo con ellas. No es un principio político, es una orientación para razonar y remover las fibras de la sensibilidad. Pero no por ello se niega ni menosprecia la calidad innata del creador, antes bien, se le concede gran valía, porque es ella la que hace posible la excelencia de la obra, que nunca ha de ser descuidada. Esta idea está presente en una cantidad considerable de escritos de los pensadores marxistas cubanos. Sin apartarse de estas líneas directrices: el cuidado de la calidad de la obra y la preocupación por la solución de los problemas de los hombres y las mujeres humildes, Juan Marinello, después de REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 87-129, jan./jun. 2011
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sumergirse en la obra de Miguel Navarro Luna y Nicolás Guillén en los años treinta, pone ante los intelectuales dos principios morales: uno enlazado a la identidad cultural que consiste en que a partir del carácter nacional de su obra logre originalidad y universalidad y, dos, comunicación con la multitud. En resumen: La creación ha de salir al mundo con el peso de la tierra que ha surcado y transportar males y remedios, ahí aparece la novedad que la impulsa y que es al mismo tiempo un desafío, como lo es lograr la atención y entendimiento de las grandes masas desde la cumbre de la calidad. Esto exige valentía, por eso piensa que para lograrlo es preciso aprender a ser hombre, es decir, a tener la valentía y la decisión atribuidas por la sociedad a los miembros del sexo masculino (MARINELLO, 1989, 305). La unidad con las masas y la comunicación con ellas es considerada como deber del intelectual por otros pensadores marxistas cubanos. Como parte del pedido que se les hace a los intelectuales de atender su compromiso social, en los años treinta se les incita a que traten en sus obras las diferencias sociales debidas a los colores de la piel. El pedido, dirigido sobre todo a los artistas y escritores, lleva en sí la recomendación de que, sin olvidar el mestizaje antillano, sea visto no sólo con un prisma artístico, buscando agradarles a los europeos y norteamericanos, sino desde la perspectiva social, y devenga una denuncia a la discriminación racial (RODRÍGUEZ, 1987, t. 3, 451). Es notable el reconocimiento que se le da al intelectual que ha decidido tomar el camino de la revolución y con ello mostrar su ruptura con los explotadores, así como su disposición de ponerse al servicio de los explotados. En este camino se unen a la política, el arte, la ciencia y la faena educadora. No significa consagración a las obligaciones propias del político, ni abandono de su labor creadora y mucho menos olvido de la excelencia de su obra, consideración esta que se yergue no sólo sobre el ejemplo de José Martí, pues modelos a seguir también son Montalvo, Heredia, Sarmiento, Mariátegui y otros, incluidos sus compañeros de lucha Julio Antonio Mella y Rubén 106
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Martínez Villena. De este último se subraya el alto vuelo de su obra y sus cualidades de escritor, así como la conjugación de ambas con la sensibilidad política (ROA, 1977, 16). Los pensadores marxistas cubanos durante este período les piden a los intelectuales no sólo virtuosismo de procedimientos en la obra, también en el pensamiento y la conducta, sustentado todo ello en el amor puro a la patria y el optimismo en el futuro, como cualidad positiva de rango supremo. La figura histórica a la cual recurren más frecuentemente como ejemplo de tales méritos es José Martí. La aspiración es lograr intelectuales defensores no sólo de los obreros y la justicia social, sino también de la patria. Esta es la base de la concepción acerca del hombre intelectual, la cual tiene similitud con la de Antonio Gramsci, quien al hablar del intelectual orgánico subraya dos aspectos: Primero, estar unido a las masas hasta formar con ellas un gran bloque intelecto-moral, donde tiene la responsabilidad de la realización de la teoría. Segundo, su unidad con la clase social que le da origen, debido a que él le proporciona “homogeneidad y conciencia de su propia función, no sólo en el campo económico, sino también en el social y político” (GRAMSCI, 1973, 338; ACANDA, 1991, 20).
En la concepción de Gramsci la intelectualidad no es un grupo social con absoluta independencia, porque de ella está desterrada la evasión con respecto a los asuntos socio-políticos y la contraposición entre el hombre o mujer que se dedican a esferas intelectuales, como la ciencia, el arte, el pensamiento, y quienes se desempeñan en la política. Con ello manifiesta su desacuerdo con la contradicción entre la acción y la reflexión, entre el ejecutivo y el pensador. A su vez es expresión del espíritu revolucionario que ha de poseer la transformación radical (cultural) de la sociedad. Los pensadores marxistas cubanos refieren con énfasis la esencia humanista de la obra educadora y de los hombres y mujeres encarREDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 87-129, jan./jun. 2011
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gados de ella. La relacionan con la marcha de las transformaciones económico-sociales y sus nuevas exigencias, las cuales han de repercutir en toda la cadena educacional, sobre todo en la universidad y de igual modo en los distintos sectores intelectuales. Gran significación le conceden. La importancia que le atribuyen a La Alta Casa de Estudios tiene como fuente los nexos entre la cultura, la sociedad, la educación y los destinos de la patria, no obstante, los hombres y mujeres son el centro de las reflexiones, pues son los realizadores y consumidores de esos resultados provechosos. Pero el intelectual no es el único protagonista en este pensamiento cubano, junto a él están los hombres y mujeres pertenecientes al estudiantado. La mayor cantidad de reflexiones en torno a los estudiantes aparece entre mediados de las décadas del 20 y del 30. Esta afirmación no significa que posteriormente hayan sido ignorados. Esta marcada atención la propicia en gran medida la actividad estudiantil revolucionaria de esos años, la cual se incrementa ante todo por dos grandes factores: Uno externo: el movimiento estudiantil de la universidad argentina de Córdoba; y otro interno: la lucha contra el tirano Gerardo Machado. El movimiento estudiantil surgido en 1918 en la universidad de Córdoba contribuye al nacimiento de una nueva generación de latinoamericanos, al dotar a los estudiantes de Latinoamérica de un lenguaje común, a pesar de poseerse en cada país exigencias peculiares. Bajo su influencia surgen núcleos estudiantiles dedicados a estudiar el marxismo y a difundirlo, así como se afianza la unidad entre los estudiantes y la clase obrera (MARIÁTEGUI, 1973, 194). El otro factor que condiciona el aumento de la atención de los pensadores marxistas cubanos hacia el estudiantado es la actividad revolucionaria estudiantil contra el tirano Gerardo Machado. No pocos estudiantes mueren entre 1925 y 1933 en la lucha revolucionaria contra un gobierno cuyo presidente ha quedado en la historia cubana como uno de los más asesinos de Cuba y toda América Latina. 108
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En una especie de martirologio recogen los pensadores marxistas cubanos la entrega de sí mismos que hacen los estudiantes a la revolución cubana. En él brillan como ejemplos hombres reales devenidos héroes por el empeño de alcanzar transformaciones, muchas veces no exclusivamente universitarias, también sociales. Entre ellos están Rafael Trejo, Gabriel Barceló y, como una cumbre de modelo a seguir: Julio Antonio Mella, de quien se destaca que “supo en todo momento ajustar su pensamiento a su conducta” (ROA, 1933, 3). En el pensamiento marxista cubano durante la primera mitad del siglo XX, Julio A. Mella tiene un sitio especial, pues al mismo tiempo que sus continuadores lo admiran como estudiante, además de como luchador y pensador y estudian su pensamiento y acciones, él mismo tiene ideas en torno a los estudiantes que merecen un espacio especial. Su relación con ellos es estrecha desde los primeros momentos de su vida universitaria. Sus cualidades de dirigente le propician el apoyo de sus compañeros y deviene presidente de la Federación de Estudiantes, cargo que a su vez lo une a ellos, en quienes ve una cantera inagotable de héroes y mártires patriotas. La simpatía y admiración que siente Mella por los estudiantes se corresponde con la significación que le da a la educación y a su papel en la consolidación de la independencia cubana. Similar a Mariátegui, no se limita a la aspiración de cambios universitarios, pues comprende el carácter primario de la transformación social. La Universidad Popular “José Martí”, fundada por él, es muestra de su confianza en los estudiantes, de su unidad con los obreros y de su convencimiento del nexo cultura-emancipación social. En 1928 Mella afirma que “los estudiantes: son los más revolucionarios dentro de los trabajadores intelectuales” (MELLA, 1975, 382), o sea, que los considera como parte de la intelectualidad, por lo cual considera que por sus intereses y aspiraciones no pertenecen a la clase obrera y que en comparación con esta clase social su espíritu revolucionario es ínfimo y disminuye al graduarse, porque la inmensa mayoría de ellos pasa a engrosar las REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 87-129, jan./jun. 2011
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filas de la burguesía, por eso, no deja de reconocer que entre ellos hay grupos enemigos de la revolución. Otro grupo social atendido también con esmero son las mujeres, lo cual muestra que en la concepción acerca del ser humano no sólo se tiene en cuenta el sexo masculino. De ellas se habla enfáticamente de su organización, coraje y otras cualidades positivas. En varias oportunidades se convoca a intensificar el trabajo partidista con ellas, sobre todo a partir del II congreso Nacional del PCC (20-22 de abril de 1934), cuando comenzó a ser reconocida con mayor fuerza la capacidad de las féminas (MARINELLO, 1941, 380; ROCA, 1946, 152). Los pensadores marxistas cubanos emplean la distinción genérica de hombres y mujeres, para evitar la disolución de un sexo en el otro. Esta diferenciación se manifiesta en no pocas ocasiones, como en uno de los análisis que hace Carlos Rafael Rodríguez a Antonio Maceo. En este texto que data de 1952, su autor ve al Titán de Bronce “junto a los hombres y mujeres de su piel oscura, humillados todavía por la infamante desigualdad que él y sus compañeros quisieron borrar para siempre en nuestra tierra” (RODRÍGUEZ, 1987, t. 3, 151; MARTÍNEZ, 1978, 260). Que los humanos sean concebidos como seres sociales y miembros de clases y grupos sociales no perturba la existencia de otra característica del pensamiento marxista cubano de esta etapa histórica y es que no pocas veces al hablar de alguien en específico se hace mayor distinción de su obra en beneficio de la humanidad que de su pertenencia clasista. Muchos pueden ser los ejemplos para ilustrar esta afirmación, pero sobresalen unas palabras de Raúl Roa, que datan de 1949, dedicadas a Gabriel Barceló. De él destaca que por su actividad revolucionaria rompió “con la vida muelle y rosada que la perspectiva burguesa le brindaba, se ofrendó a los pobres y a los oprimidos” (ROA, 1977, 673). Aunque en el pensamiento marxista cubano, específicamente hasta mediados del siglo XX, se concibe al ser humano en su marco 110
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clasista, muchas veces se hace referencia a dos grandes polos opuestos: explotadores y explotados. A estos últimos también se les llama masa humilde, masa popular o simplemente pueblo. De éste Mella afirma en 1928 que está formado por “obreros, guajiros, clases medias – es decir quien sufre sobre sus espaldas el ‘nacionalismo’ y el ‘proteccionismo’ de los aliados del capital extranjero: la citada burguesía industrial cubana” (MELLA, 1975, 405).3 Nueve años más tarde, en 1937, J. Marinello enfatiza la importancia del pueblo y de las masas populares cuando al comentar las novelas Don Segundo Sombra, La Vorágine y Doña Bárbara pregunta ¿Por qué no ambicionar para nuestras tierras, parajes de sorpresa, donde las grandes opresiones están criando las ansias impares, el creador que nos da la tonalidad del hombre como Güiraldes, las hambres, todavía a tientas, de nuestras masas como Rivera y el sigilo crítico y vigilante como Rómulo Gallego? [...] Pertrechados con las armas de estos tres relatos grandes, daríamos el salto que quieren y merecen nuestros pueblos (MARINELLO, 1977, 99).
La atención que los pensadores marxistas cubanos le dan a las grandes masas populares denota un humanismo de consistencia popular colmada por la realidad nacional que le sirve de entorno. En él es pilar la praxis socio-cultural como expresión de la situación cubana del momento. De las masas populares reconocen su importancia para el desarrollo de toda obra social y su condición de fuente surtidora de héroes (ROA, 1950, 338). 3 Es grande el número de artículos o ensayos contendientes de la polarización de los hombres en explotadores y explotados. Una muestra elocuente es el libro de B. Roca Los fundamentos del socialismo en Cuba, publicado por primera vez en 1943. En esta obra el pueblo cubano y las masas populares de Cuba constituyen la línea central de atención. Ver Blas Roca. Los fundamentos del socialismo en Cuba, La Habana, Editorial Páginas, 1943, 155 p. Otro ejemplo es el artículo de R. Roa Dictadura y democracia en América, de 1950, donde destaca la participación activa del pueblo. Este trabajo puede localizarse en 15 años después, La Habana, Editorial Selecta, 1950, p. 308
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3 El individuo y la sociedad en la concepción acerca del hombre Desde su surgimiento y hasta mediados del siglo XX, en el pensamiento marxista cubano la concepción acerca del hombre no se limita a las clases y grupos sociales, sino que tiene otras dos características. Una de ellas es el reconocimiento del individuo y el respeto que se le profesa. En 1905 Carlos Baliño reconoce la relación armónica entre los individuos y la sociedad; sostiene que en la realización de los objetivos del colectivo, cada hombre es importante y que la conciencia social clasista se logra cuando cada uno forma la suya propia, así afirma: “Cuando, mejor organizada la sociedad, no tenga el hombre que dedicar casi todas sus energías a la sórdida lucha por el mendrugo [...] podrá desarrollar su individualidad con una libertad y una amplitud desconocidas en la sociedad actual” (BALIÑO, 1976, 123). Este criterio Carlos Baliño lo mantiene a lo largo del tiempo, como lo muestran estas palabras suyas de 1922, cuando reflexiona que Para que nunca la masa trabajadora pueda ser vendida como un rebaño (…) precisa hacer mucha conciencia individual, llevar la propaganda liberadora a los más apartados rincones del país; una propaganda que haga comprender a cada obrero que debe capacitarse para guiarse a sí mismo, teniendo su criterio propio, su idealidad propia, su esfuerzo propio que sumará al esfuerzo común sin perder su individualidad, realizando la variedad en la unidad (BALIÑO, 1976, 170).
Es de señalar que aunque entre los marxistas es un principio inviolable la subordinación irremediable de los intereses individuales a los de la clase obrera y el Partido, en un texto que data de 1949, Raúl Roa cita a Fernando de los Ríos (1879-1949): “La urgencia actual es la reconquista de la unidad del hombre: el hombre como científico, el hombre como sujeto emocional, el hombre refinado en su querer, el hombre capaz no sólo de gozar de una poesía sino capaz de sentir la 112
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avidez de leerla.” Más adelante, en el mismo texto de Roa y sobre la base de las palabras de ese político e intelectual español, el pensador cubano refiere la importancia de la universidad en la formación de las cualidades del ser humano, pero sobre todo sentencia que es preciso “reintegrar al hombre sus potencias arrebatadas, enriqueciendo sin cesar su individualidad” (ROA, 1950, 339). Es decir, que en el pensamiento marxista cubano no se niega al individuo ni la importancia de atenderlo con sus especificidades y singularidades, aunque no es el fin supremo de sus aspiraciones, que se centra en los grupos humanos, sobre todo la clase obrera y sus aliados en el empeño de construir una sociedad nueva y superior. Julio A. Mella, R. Martínez Villena, Juan Marinello, Blas Roca y Carlos Rafael Rodríguez no niegan al individuo ni lo menosprecian, pero brindan la mayor atención a la sociedad y en ella a las clases y grupos sociales, así como al partido comunista. En este caso sobresalen Rubén Martínez Villena y Blas Roca Calderío. Aunque R. Martínez Villena se destaca porque subraya insistentemente la fuerza del colectivismo, reconoce la necesidad de respetar el derecho de expresar libremente el pensamiento y la voluntad individual (MARTÍNEZ, 1978, 292) no disuelve al individuo en la significación que le da a las clases y grupos sociales y reconoce la significación de las convicciones, gustos, aspiraciones e ideales de los hombres por separado; no obstante la referencia no es abstracta, ahistórica e individualista. Individuo y sociedad conforman una unidad dialéctica que se expresa con grandeza mediante la subjetividad, como fuerza interna humana. En cuanto a Blas Roca vale una reflexión similar, que se apoya en sus siguientes palabras: “Un partido vale siempre tanto como valen sus hombres y un partido que tiene a un hombre del valor de Jesús Menéndez, es un partido que vale de verdad” (ROCA, 1978, 189). Una segunda característica es que en el pensamiento marxista cubano la actividad individual no constituye un objeto en sí y sólo acapara la atención cuando es una sobresaliente entrega a la lucha contra REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 87-129, jan./jun. 2011
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la alienación y por el mejoramiento humano, asimismo, de un modo especial, cuando se interconecta con el amor a la patria. Con esos méritos como fundamento existen reflexiones en torno a hombres, cuyos nombres pueden formar un extenso listado. En este caso es preciso apuntar que Carlos R. Rodríguez, y sobre todo Juan Marinello y Raúl Roa destacan frecuentemente, de modo individual, a hombres reales, con sus particularidades y su obra. De hecho, no hablan de un hombre indefinible e indefinido pues los aprehenden en sus relaciones sociales. Carlos R. Rodríguez atiende a los individuos que con su obra han beneficiado de algún modo a la humanidad. Juan Marinello brinda elevada atención a aquellos que se han dedicado a la obra literaria, en la cual subraya la maestría en el idioma, como ocurre con Hernández Catá; la capacidad de los personajes de reflexionar la inquietud latinoamericana, como es el caso de Ricardo Güiraldes; o de captar el modo de hablar popular, propio de Nicolás Guillén. Marinello también tiene en alta estima a los creadores de otras manifestaciones artísticas: Pablo Picasso, Carlos Enríquez, Víctor Manuel, entre otros. Por su parte, Raúl Roa destaca, además, a quienes se han entregado a una meritoria labor educacional, como Rafael Trejo, Julio A. Mella, Gabriel Barceló, José Ingenieros. En la atención al individuo están presentes las características clasistas. Así ocurre en los estudios sobre pensadores de relevante talla histórica, como José de La Luz y Caballero y Enrique José Varona, a quienes ubican en el tiempo en que vivieron y en el marco clasista al cual pertenecieron. Ven a José de la Luz como un indiscutible ideólogo de la burguesía a la cual perteneció y de la cual obtuvo sus mejores amigos, así como también lo fue E. J. Varona., de quien asimismo subrayan su patriotismo y sus logros educacionales (RODRÍGUEZ, 1987, t. 3, 89). Especial simpatía acapara el dirigente de los obreros en la lucha revolucionaria, de quien no olvidan su condición de hombre ni de individuo. La atención no la reducen al frío cumplimiento de sus tareas revolucionarias, pues abarca su capacidad de amar y de relacionarse 114
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con las masas que dirige. No pocos líderes obreros despiertan interés, entre ellos está J. A. Mella, Rubén Martínez Villena y Lenin. De ellos subrayan su capacidad intelectual, amplitud espiritual y consagración incondicional a la lucha (MARTÍNEZ, 1978, t. 2, 307). La importancia dada al individuo también queda en evidencia con la referencia a rasgos individuales de hombres que se destacan por su dación humana. En este caso sobresalen las consideraciones de Raúl Roa, quien subraya los rasgos del carácter, como el coraje de Ernesto Alpízar, la nobleza de Pablo de la Torriente-Brau, el modo de ser huraño de Luís Felipe Rodríguez, y asimismo le da gran importancia a su historia, contradicciones y debilidades, como cuando reflexiona acerca de Martínez Villena, Ramón Roa, entre otros. La referencia a rasgos individuales de los individuos toma presencia asimismo en cuanto al aspecto físico. Nuevamente se destacan las valoraciones de Raúl Roa. Una muestra son sus criterios acerca de Gabriel Barceló. De este joven revolucionario dice que “tenía la mirada fúlgida, la frente amplia, la palidez del asceta, el gesto másculo y la voz de trueno;” de José Joaquín Palma asegura que tenía “reverberantes los ojos azules, tempestuosa la cabellera castaña” (ROA, 1977, 673). La aprehensión multiabarcadora del individuo propicia el interés por las relaciones de amigos y familiares y por aquellos que se destacaron negativamente por hacerle daño a la humanidad; a quienes se condena fuertemente. En lo concerniente al trabajo partidista tampoco es olvidado el individuo, ya que es común la opinión de que este tipo de faena ha de alcanzar a cada militante y a todo aquel que esté bajo la influencia comunista.4 Cabe apuntar que “la universalidad 4 Estos aspectos aparecen diseminados en una gran cantidad de obras, no obstante, puede verse: de Raúl Roa. Los extraños amores de Edgar Allan Poe, en Retorno a la alborada, edic. cit., p. 443; de C. R. Rodríguez. José Manuel Mestre: la filosofía en La Habana, en Letra con filo, t. 3, edic. cit., p. 73 - 87; de Julio A. Mella. El asno con garras, en Artículos y discursos, en Documentos y artículos, edic. cit., p. 251 – 254, de Blas Roca. Palabras sobre la decisión, en Fundamentos, No. 54, La Habana, febrero de 1946, p. 141.
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de lo humano no niega su singularidad, por el contrario se manifiesta de forma histórica. Luego, el humanismo tiene necesariamente que alcanzar al hombre concreto, en su condición de individuo perteneciente a un grupo social históricamente determinado y a la personalidad individualizada con sus especificidades” (FUNG, 1990, 179). La múltiple atención que los pensadores marxistas cubanos dan al individuo patentiza que el humanismo desplegado en su pensamiento está irrigado por la idea de que la lucha por una sociedad y una cultura verdaderamente humanas no ha de ser sólo una decisión colectiva en correspondencia con determinadas condiciones históricas, sino que ha de ser asimismo el fruto de una elección libre y consciente de cada individuo.
4 Fuerza humana: conjugación de posibilidades y realizaciones En fecha tan temprana como es 1904, Carlos Baliño destaca la fuerza espiritual y la potencia de la voluntad humana al afirmar: “Cuando la mayoría, no solo de los obreros del taller, sino de todos los proletarios, esté dispuesta a realizar este cambio, no habrá poder humano que lo impida” (BALIÑO, 1976, 67). Una intelección de esta naturaleza es testimonio de la andanza de su realizador por senderos erigidos con la aceptación de la fuerza humana en todas sus dimensiones, de la valía del hombre como simbiosis de posibilidades y realizaciones centradas en el presente y proyectadas al mañana. En no pocos textos, Carlos Baliño enfatiza la significación del ansia por romper el régimen opresor capitalista y la construcción de uno humanista (BALIÑO, 1976, 105). En relación con esta lucha refiere la abnegación, la valentía y la capacidad de sacrificarse sin temor a las torturas y las humillaciones. La fuerza humana, la disposición, la voluntad y entrega de los hombres y mujeres recorre toda la obra del 116
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joven pensador Julio Antonio Mella como un espíritu que los impulsa a la lucha. Mella cree en la capacidad de esos hombres a quienes ve como luchadores continuos en pos de la realización de sus objetivos sociales centrados en la creación de una patria nueva. En 1926, en plena época de auge revolucionario, Mella le dice a los compañeros de la Universidad Popular que “hay derecho a tener fe y a estar pletóricos de esperanzas para el porvenir” (MELLA, 1975, 227). En ese mismo texto subraya la valentía, la rebeldía y la disposición a entregarse para conseguir un fin y, junto a ello, la dedicación a aprender a realizar lo que se desea, que en este caso es la eliminación del régimen explotador burgués. Pero esta concepción no tuvo un curso lineal en el pensamiento marxista cubano durante la primera mitad del siglo XX. En 1927, en un texto donde analiza diversas temáticas de las relaciones entre la URSS y los países imperialistas, Rubén Martínez Villena muestra la siguiente concepción acerca del hombre: “El marxismo eleva a la categoría de axioma el siguiente postulado: ‘La conciencia del hombre es desplazada por el hecho histórico objetivo externo. De modo que bien poco es el valor de sus deseos, anhelos, afanes, voliciones, en el desarrollo inexorable de los procesos sociales’” (MARTÍNEZ, 1978, 185). Según las anteriores palabras de Martínez Villena, cabe señalar en primer lugar que concibe el marxismo como un corpus inalterable, formado por axiomas, es decir, por postulados cuya certeza se demuestra por su claridad y evidencia, sin necesidad de ninguna otra demostración y, por consiguiente, sin que admita críticas ni cuestionamientos. Y en segundo lugar, que el hombre depende de las condiciones objetivas, las cuales lo atan o mueven irremediablemente. No obstante, no se puede pasar por alto que esta afirmación del joven marxista va enfilada contra los intentos de las fuerzas reaccionarias para frenar la obra revolucionaria, pero de todos modos, a la luz de esas consideraciones a los hombres y mujeres sólo les quedaba seguir REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 87-129, jan./jun. 2011
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los cambios inevitables, marcados por las condiciones objetivas favorables al surgimiento de un nuevo régimen social, así que no valía ninguna obra humana en pos del retroceso, en contra de las leyes de la historia, pues todo intento contra ellas era inútil. Fatalmente, a tono con su opinión, tampoco el hombre podía actuar de ningún modo a favor del progreso, sólo le quedaba esperar por el curso de las leyes objetivas. Este criterio y sobre todo este enfoque no se mantuvieron inalterables en el pensamiento de Rubén Martínez Villena. Seis años más tarde, en 1933, al referirse a unos militantes del Partido Comunista Español sentencia que ellos “fueron incapaces de evolucionar al compás del movimiento revolucionario español” (MARTÍNEZ, 1978, 211). En ese análisis, junto con la aceptación de la incapacidad de esos hombres, reconoce la capacidad y fuerza humanas en medio de las condiciones objetivas. Esos militantes pudieron transformarse, pero no quisieron o no pudieron, es decir, ya entonces concibe al hombre no como un simple producto de las condiciones externas, no como algo incapaz de imponerse a las leyes objetivas y actuar sobre ellas (a favor o en contra), pero conscientemente, con su capacidad racional y sus sentimientos. Excepto esta aseveración de Martínez Villena, en este pensamiento cubano durante esta etapa histórica, la apoyatura de las disímiles reflexiones está en el carácter decisivo, en última instancia, de las relaciones económicas, con lo cual se subraya que el hombre no es una marioneta y que la economía no es el súmmum omnipotente y regidor implacable del destino humano. Así se le da gran atención a la moral, los gustos, la aptitud de decisión, entre otros aspectos en los cuales sobresale el reconocimiento que le dan a la subjetividad. Sobre este fundamento captan al hombre con su capacidad de aprehender las necesidades del momento y de actuar en correspondencia con ellas, con su fuerza y poder para impulsar a sus semejantes a hacerlo, sin ignorar sus posibilidades reales. 118
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El hombre en este pensamiento cubano no es un resultado automático de las transformaciones económicas. Un ejemplo de ello son las siguientes palabras de Carlos R. Rodríguez cuando en 1943 refuta a quienes sostienen que los marxistas sólo piensan en el factor económico. A propósito asevera: ¿Quiere esto decir que los historiadores marxistas afirmamos que los promotores de la guerra del 68 actuaron simplemente siguiendo los dictados de un interés económico mezquino, sin que obraran en ellos ideales? ¿Sostenemos acaso que las acciones en Céspedes y Aguilera, Agramonte y Zambrana, no se producían por amor a la independencia de Cuba, sino por el cálculo estrecho de pesos y centavos? (RODRÍGUEZ, 1987, t. 3, 38).
Carlos Rafael Rodríguez destaca el significativo papel de la subjetividad mediante el reconocimiento de la competencia humana para encaminarse a la realización de sus fines, de un modo consciente y con independencia relativa, es decir, si negar el condicionamiento mutuo entre lo objetivo y lo subjetivo ni el papel determinante de lo material, sobre lo cual la subjetividad actúa de diversas maneras. En ese mismo texto de 1943 asevera: “Si los hombres no fueran «agentes del proceso histórico» capaces con su actuación de impulsarlo o retrasarlo, la historia quedaría estancada” (RODRÍGUEZ, 1987, t. 3, 43). En el pensamiento marxista cubano al subrayar la actuación del hombre sobre la realidad objetiva se valora altamente su fuerza espiritual. Así gozan de reconocimiento los personajes que se destacaron por poseerla, como José Martí, quien aparece frecuentemente como ejemplo por su persistente imposición a sus posibilidades físicas y por aprovechar las condiciones objetivas a favor de la lucha revolucionaria y actuar conscientemente sobre ellas. También es destacable la referencia a Rubén Martínez Villena, con respecto al cual Juan Marinello afirma en 1935 que para aquilatar sus valores excepcionaREDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 87-129, jan./jun. 2011
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les “hay que centrarse no sólo en su momento, sino en su espíritu” (MARINELLO, 1935, 17), idea ésta que expresa más de una vez con diferentes palabras. Consideraciones similares a las anteriores existen acerca de Carlos Marx y el pensador español Fernando de los Ríos, entre otros con cuyos nombres se puede formar un largo listado. La heroicidad en el quehacer cotidiano es arduamente apreciada, de ese modo se sostiene la opinión de que a pesar de la importancia que ejerza una acción y de sus resultados, lo más significativo es el “sentido íntimo, animador, de esa heroicidad” (MARINELLO, 1937, 10), tal y como asevera Juan Marinello en el Discurso que pronuncia en la clausura del II congreso internacional para la defensa de la cultura, celebrado en Valencia el 1ro de julio de 1937. A tono con ello, la fuerza de voluntad, la insistencia, la consagración y el amor son tenidas como grandes características humanas, altamente reconocidas. Con las anteriores cualidades como lente hay no pocas reflexiones y conclusiones. Un ejemplo a tener en cuenta es el criterio de Blas Roca expuesto en 1940 a propósito del XV aniversario de la existencia del partido de los comunistas cubanos. Blas destaca que su fundación tuvo lugar con un escaso número de asistentes: sólo cuarenta, que se sobrepusieron a la difícil situación política de Cuba y que a lo largo de los años su obra ha sido guiada por el amor, la abnegación y el espíritu de sacrificio que les permitió a los comunistas resistir torturas y evadir persecuciones. No por ello ignora o subestima los errores cometidos por sus militantes debido al desconocimiento teórico y a una visión no suficientemente profunda de la sociedad (ROCA, 1940, 660). El sueño con un futuro mejor, la entrega espiritual a alcanzarlo y la confianza en el mejoramiento humano que proporciona la moral exhiben la importancia que se le brinda a la subjetividad, que no se abstrae de las condiciones objetivas, las necesidades de la sociedad y la cultura, las posibilidades reales y la actividad práctica conscientemente planificada, como muestran las siguientes palabras de Raúl 120
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Roa expresadas en 1949: “No basta embriagarse con la reverberante perspectiva de un futuro mejor para que este advenga graciosamente como regalo de Pascuas. Ni basta tampoco darle rienda suelta a la fe, al entusiasmo y a la acción si no se adopta, como punto de partida, un severo examen de conciencia y un solemne compromiso con las exigencias que dimanan de la realidad” (ROA, 1949, 74). Sobre la base de las condiciones objetivas, el entusiasmo tiene una significativa presencia en el pensamiento de referencia e irriga el humanismo que le es consustancial. En textos dirigidos a la organización partidista se enfatiza todo trabajo encaminado a elevarlo y a sembrar optimismo. Un medio para lograr ese propósito es la emulación entre sus miembros, concebida como una vía óptima para impeler a los apáticos y rezagados e incentivar a los mejores a hacer realidad lo que hasta ese momento era solamente posibilidad. “La emulación hace que la disciplina, el cumplimiento de los deberes [...], nazcan de los propios militantes, [...], como una consecuencia natural de su comprensión de la importancia de cada tarea emprendida” (ROCA, 1943b, 71). Con ella, es decir, la emulación, se persigue el nacimiento, desde lo más profundo del alma de cada hombre y mujer, del interés por el cumplimiento de las tareas y el impulso al mejoramiento de cada miembro del partido, por su propio beneficio y por el del trabajo partidista, el cual es más eficaz cuando lo realizan hombres y mujeres mejor preparados. En el pensamiento marxista cubano durante la primera mitad del siglo veinte se valora la subjetividad con una mayor intensidad cuando toda su dimensión está al servicio de la humanidad, la cual es la encargada de reconocer el mérito y, lo más importante, de culminar el propósito de quien se mantuvo fiel a sus fines humanistas. Con entereza y convicción se subraya que si la muerte de alguien remueve las entrañas humanas e impulsa hacia la acción transformadora en beneficio de los hombres y mujeres del pueblo, su significación es mayor. Así abunda la referencia a la muerte de Rafael Trejo y de otros revolucionarios, REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 87-129, jan./jun. 2011
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como también se recalca la culminación de una vida cuando conduce a interiorizar la necesidad del momento y actuar en correspondencia con ella. Largo puede ser el listado de tales acicates. Uno de ellos es Máximo Gorki, de quien en 1937 Juan Marinello dice que “sale de la vida amado por la justicia del mundo” (MARINELLO, 1937a, 7). A lo largo de la primera mitad del siglo XX, el humanismo en el pensamiento marxista cubano tiene su fundamento en hombres y mujeres reales, concretos, que se desenvuelven en su actividad, la cual es un verdadero cause donde demuestran quienes son, exhiben su poderío físico y espiritual, hacen realidad sueños y conforman los ideales que los impulsan a nuevas realizaciones, atendiendo la historia, la sociedad y la cultura cubanas.
5 Visión del hombre en su cultura y en los nexos con el tiempo Los rasgos de la concepción acerca del hombre en el pensamiento marxista cubano durante la primera mitad del siglo XX se deben en gran medida a que toma cuerpo y vida a partir de la malla relacional que forman la sociedad cubana, la historia y la cultura. En torno a esta última existe toda una concepción que se caracteriza por su amplitud y por aprehenderla como un todo, aunque tiene sus especificidades en determinados pensadores. En 1924 Julio A. Mella considera que “nuestra cultura y nuestros esfuerzos tienen como fin revolucionar las conciencias de los hombres de Cuba para formar una nueva sociedad.” Y más adelante en el mismo texto asegura que “la cultura es la única emancipación verdadera y definitiva” (MELLA, 1975, 101). De estas ideas se desprende que para este joven pensador la cultura no es un todo abstracto, sino una totalidad ennoblecedora, capaz de actuar sobre la conciencia y moldear a los hombres y las mujeres para que puedan crear un mundo mejor, 122
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verdaderamente humanista. Cuatro años después, en 1928, una vez más Mella enlaza la cultura al futuro de Cuba, específicamente a su desarrollo, destaca los conocimientos, la obra educacional y el arte. Sobre esta base, se lamenta de que el saber se quede en la posesión de personas que muy poco o nada le aportan a la patria, que no resuelven sus problemas, como el analfabetismo o la necesidad de diversificar la industria, y que convierten las obras artísticas en productos para comerciar. Afirma: Cuando se desea elevar el nivel cultural de la nación, no llegamos a dar más que fábricas de parásitos profesionales sin lograr la resolución del pavoroso problema de los millones de analfabetos, y el más terrible aún del atraso de nuestros conocimientos técnicos, base fundamental para una cultura nacional sólida. Cuando se quiere hacer arte, se busca quien lo ha de pagar, y entonces se le hace a su gusto burgués (MELLA, 1975, 452).
Condena que en esos momentos la cultura no es lo que él desea: un universo favorable al desarrollo de Cuba y a la lucha contra la desalienación y por el mejoramiento humano, sino un escenario que condiciona el surgimiento de rasgos humanos negativos, que engendra el capitalismo. En el pensamiento de marras la cultura no es un simple adorno, un manojo de hechos y frutos para lucir orgullosamente, es resultado del hombre, quien simultáneamente es su mayor beneficiario. Por eso en 1935 Carlos Rafael Rodríguez recalca “el servicio humano a que la cultura será indudablemente destinada” (RODRÍGUEZ, 1987, t. 3, 656) y Juan Marinello en 1941, con motivo del primer aniversario de la muerte del escritor cubano Alfonso Hernández Catá, asegura que en un futuro “la cultura ha de ser la natural y universal proyección del hombre, porque se habrán roto las sujeciones miserables que entraban el vuelo del pensamiento y las aventuras libérrimas del arte” (MARINELLO, 1989, 338). En esta idea de Marinello está presente una concepción amplia e integradora de la cultura. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 87-129, jan./jun. 2011
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Aquí amerita recordar las palabras del pensador español Fernando de los Ríos que Raúl Roa cita en 1949, porque su intención era volver a concebir al hombre integralmente, sin divorciar lo racional y lo sentimental, sin contraponer el científico y el artista, sin restringir su universo espiritual ni sus gustos (ROA, 1950, 338). En el mismo año 1949 Raúl Roa afirma: La cultura no es una categoría abstracta ni una entidad metafísica. Ya sé que para muchos es sólo eso. Y para otros, goce privilegiado de espíritu superior. Ni una cosa ni otra es la cultura. La cultura es un producto social. Y porque lo es, a la sociedad ha de revertir sus frutos. El acceso individual a la misma debe estar en consecuencia, garantizado a todos (ROA, 1949, 74).
De un pensamiento que se yergue desde esa altitud no ha de asombrar su propósito inaplazable de formar una nueva sociedad para con ella realizar el ideal de creación de una cultura superior, humanista, que no es ajena a los cambios económicos. En el pensamiento marxista cubano no cabe duda del carácter determinante, en última instancia, del factor económico y de su incidencia en la cultura. En 1935, en un escrito dedicado a Mella, Carlos Rafael Rodríguez establece nexos entre el desarrollo cultural, específicamente ente la ansiedad cultural de los maestros y alumnos, con el orden económico y formula una interrogante que ratifica las anteriores conexiones: “¿No se advierte que la verdadera cultura criolla sólo podrá surgir cuando la economía tenga asiento mayor?” (RODRÍGUEZ, 1987, t. 3, 660) No obstante la significación que le otorgan al factor económico, no lo absolutizan, porque entienden que una revolución en la conciencia es tan necesaria como la que debe realizarse en las relaciones económicas y hasta cierto punto más importante y difícil. Pero no basta con aprehender al hombre en la malla que forman la cultura, la sociedad y la historia si no se atienden las exigencias que 124
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cada momento histórico trae consigo, las cuales no son exclusivamente cubanas. De este modo, lo universal y lo nacional se conjugan dialécticamente en este pensamiento cubano. Una evidencia de esta característica está en la siguiente afirmación de Juan Marinello en 1937 con respecto a Antonio Maceo, donde está presente el espíritu martiano: “La figura histórica no es sólo humanidad; es humanidad más la realidad que le tocó en suerte superior. Una cosa y otra - hombre y tiempo - no pueden explicarse separadamente [...] la definición [...] del rumbo del líder, está determinado por la pugna entre el arrastre tradicional y una interpretación de lo presente en función de lo futuro” (MARINELLO, 1937b, 21). La aprehensión del hombre en estrecha relación con las exigencias de la historia, con los nexos entre ella, la sociedad y la cultura, con el peso de la economía, es favorecida por la importancia que se le otorga a la actividad, donde se capta la alienación a la cual están sometidos los hombres y mujeres cubanos, muchos de los cuales se convierten en “cosas que deben andar,” (MARINELLO, 1977, 47) y por, consiguiente, donde gana fundamento la convicción de la urgencia de transformar la sociedad cubana. Es, de ese modo, como brota desde sus entrañas la esencia desalienadora de este pensamiento cubano. Con este cimiento, la concepción acerca del ser humano, que está en el fundamento del humanismo que recorre el pensamiento marxista cubano en esta etapa histórica, se ubica concretamente en Cuba y constituye una aprehensión del hombre como sujeto de la actividad, donde tienen gran significación las necesidades, intereses, fines y medios de satisfacerlos (PUPO, 1990, 28) El reconocimiento de las leyes objetivas no conduce a la negación ni al menosprecio de la subjetividad. En el pensamiento marxista cubano al hombre se le reconoce y destaca la infinita capacidad espiritual y física, que lo hace un ser de inagotables perspectivas y caminos a andar, con disposición para proponerse insistentemente metas por las cuales lucha para hacerlas realidad REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 87-129, jan./jun. 2011
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y con tendencia a mejorarse a sí mismo y a perfeccionar todo cuanto está a su alrededor y, con mayor intensidad, lo que es capaz de crear. Es el ser humano un complejo sistema de posibilidades y realizaciones.
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THE CONCEPTION CONCERNING HUMAN BEING: BASE OF HUMANISM IN THE CUBAN MARXIST THOUGHT OF THE FIRST HALF OF THE 20TH CENTURY Abstract From the understanding of humanism as conception, focus, way of thinking and doing, centred in the human beings (men, women, boys, girls), in their continuous struggle to emancipate from every kind of oppression and limitation to their capabilities and potentialities, as well as in their enthusiasm to possess better attributes, in this article the author delves into the humanist essence of the Cuban Marxist thought in the first half of the 20th century and he goes to what he considers the base of humanism to which he appeals: the conception of human being, and he does it to highlight some of his most significant characteristics and to reveal those that not hardly ever exist in an implicit way in the ideas of the Cuban Marxist thinkers. He adapts his text with the development of the following topics: the social essence of human 128
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being, his pertinence to class and social groups, the individual and the society in the conception concerning the human being, the internal human force, the vision of human being in his culture and in the linkages through the ages, before which he exposes his considerations with a critical vision. Key words: Humanism, Man, Human Being, Cuban Marxist Thought.
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MARX E SEU MÉTODO: PARA ALÉM DA COMPREENSÃO DA HISTÓRIA DA HUMANIDADE1 Renato Almeida de Andrade*
Resumo O debate sobre o método em Marx não está em um livro específico, visto que é intrínseco à sua teoria social, mas diluído em toda sua obra. Buscamos captar algumas destas concepções dispostas em algumas de suas obras. Para Marx, não basta compreender a realidade, é preciso transformá-la. O método não comparece como um fim em si mesmo, mas como um meio necessário para se alcançar o concreto pensado. De posse desta compreensão o homem pode intervir racionalmente sobre a história. A imersão na teoria marxiana nos propicia a compreensão de diversas categorias. Estas, organizadas de forma estruturada, podem nos proporcionar o entendimento da realidade e de formas para transformação dela. Neste texto iremos discutir alguns pontos sobre a dialética, a pseudoconcreticidade, a totalidade, a contradição e a mediação. A apreensão e compreensão da realidade como totalidade dialética nos faculta desvendar o real e contribui para sua transformação. Palavras-chave: Marx, método, história, dialética.
Uma parte deste trabalho foi apresentada como requisito da disciplina Teoria Sociológica do Professor Yves Lesbaupin do Mestrado em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Como este texto foi escrito antes do meu livro (O enfrentamento da questão social e o terceiro setor: o serviço social e suas condições de trabalho nas ONGs. Vila Velha: Univila, 2006.), alguns trechos foram publicados naquele livro. * Doutor em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Professor da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo e Assistente Social na Prefeitura Municipal da Serra. 1
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Introdução O debate sobre o método em Marx não está em um livro específico, visto que é intrínseco à sua teoria social, mas diluído em toda sua obra. Neste texto buscamos captar algumas destas concepções dispostas em algumas de suas obras. Para Marx, não basta compreender a realidade, é preciso transformá-la. Dessa forma, a apreensão e a compreensão da realidade contribuem para a definição dos caminhos a serem trilhados na intervenção dos indivíduos em sua própria realidade. Este ato é ontologicamente tão importante quanto a compreensão do real. Nas palavras de Marx (2003), em suas teses sobre Feuerbach, “os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”. Nestes períodos em que as crises cíclicas do capitalismo se tornam mais frequentes, mundializadas e duradouras é que se verifica a atualidade do pensamento marxiano, em especial seu método. Entendemos que o potencial heurístico, transformador e revolucionário do seu método atualiza criticamente o modo como a sociedade entende as formas antagônicas e reais do sistema capitalista, para pensar e intervir nesse sistema com uma atitude transformadora. Na abertura do capítulo “Burgueses e Proletários” do Manifesto Comunista, Marx e Engels (1999) afirmam que a “história de todas as sociedades que já existiram é a história de luta de classes”. Esta afirmação indica a preocupação deles com a compreensão da história e, na verdade, com a intervenção do homem na história. No início deste texto traremos alguns elementos do momento histórico, do contexto em que Marx viveu, lutou e escreveu suas concepções e seu método.
1 Pensando o mundo burguês Com o declínio do sistema de produção feudal e a agonia da idade média, grandes transformações ocorrem no seio da sociedade. Essas REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 144-166, jan./jun. 2011
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alterações se mostram muito claras no mundo da produção e na forma de apropriação pelo homem dos recursos naturais necessários à sua manutenção. As transformações, que se deram em todos os campos da sociedade, tiveram na Revolução Francesa um marco histórico e político e contribuíram para a instalação do modo de pensar burguês. As mudanças ocasionadas nas relações sociais de produção, no mundo da produção e reprodução da força de trabalho, chamadas de “Revolução Industrial”, deram origem ao mundo burguês, o mundo contemporâneo. Neste “novo mundo”, segundo Netto (1993), a economia e a sociedade são organizadas de modo particular, submetidas ambas a uma estratégia global (a da burguesia) e a uma lógica específica (a da valorização do capital). Configura-se assim, a partir dessa estratégia e dessa lógica, um novo padrão de vida social, centralizado na civilização urbano-industrial. Essas transformações não se deram de forma harmônica, se deram de forma dolorosa. Imagine o artesão perdendo o controle sobre a concepção, a produção e a venda de seus produtos, o trabalhador se alienando do fruto do seu trabalho, não mais se reconhecendo na sua criação, a burguesia se consolidando com o aumento do comércio, das navegações, da industrialização e da subjugação do proletariado. Na França a burguesia buscou apoio de outras camadas da população para conseguir a igualdade, a liberdade e a fraternidade: Desde o início da Revolução Francesa, porém, a contradição existente entre esta burguesia – que já gozava dos benefícios do sistema capitalista que se estruturava – e as demais camadas da população que nada ou quase nada possuíam era visível. Os burgueses aceitavam lutar lado a lado com o restante do povo francês contra a nobreza e o clero, mas não tinham a menor intenção de com elas dividir o poder, após a vitória (SPINDEL, 1985, p. 21). 146
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Os críticos franceses atacavam a monarquia, a religião e o absolutismo, atribuindo-lhes o aumento crescente da miséria da maioria da população, e parte do povo também via dessa forma a realidade social daquele período. O povo terminou por aliar-se à burguesia e logo percebeu que continuou a ser explorado, só que de uma forma diferente e muito mais alienante. Neste mundo burguês a exploração é constante, mas a emancipação da humanidade é impossível, pois a ideia de que todos são iguais perante a lei é apenas uma forma de igualdade jurídica, ela não se traduz em igualdade econômico-social. A miséria se alastrou como um vírus por toda a parte no “novo mundo burguês”, o único personagem imune a esta doença foi a própria burguesia, que se enriqueceu dia a dia com a pobreza e o sofrimento alheios. Enquanto existir a propriedade privada (pois esta beneficia a parte da população que possui meios de produção e exclui uma massa, dona da força de trabalho, que é submetida aos mandos e desmandos dos “possuidores”), a maior parte da população ficará condenada a um regime de superexploração e de pobreza permanentes. Em meio a toda essa turbulência social gerada no período, surge uma classe, a que Marx atribui o verdadeiro caráter revolucionário, o proletariado; aquela que conseguirá reverter os rumos da história, levando o homem à sua libertação. Libertação não no ângulo da burguesia, mas sim de “viver” o mundo da necessidade (dar conta do necessário à sobrevivência, como comer, beber, dormir), para saborear em plenitude o mundo da liberdade (fazer a história, revolucionar, criar, ser um homem emancipado). De fato, o reino da liberdade começa onde o trabalho deixa de ser determinado por necessidade e por utilidade exteriormente imposta; por natureza, situa-se além da esfera da produção material propriamente dita. O selvagem tem de lutar com a natureza para satisfazer as necessidades, para manter e reproduzir a vida, e o mesmo tem de fazer o civilizado, sejam quais forem a forma da sociedade e o modo de produção. [...]. Mas REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 144-166, jan./jun. 2011
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esse esforço situar-se-á sempre no reino da necessidade. Além dele começa o desenvolvimento das forças humanas como um fim em si mesmo, o reino genuíno da liberdade, o qual só pode florescer tendo por base o reino da necessidade (MARX apud ANTUNES, 2009, p. 171-172, grifo nosso).
Por estas e outras questões é que a tese do fim da história não encontra fundamento na teoria marxiana nem entre os estudiosos marxistas contemporâneos. Tratar o momento atual como o fim da história é fortalecer o ideal conservador que a burguesia instalou para manter seu domínio de classe; ela assumiu esta mudança, renunciando aos seus ideais emancipadores e revolucionários citados por Marx e Engels (1999) em O Manifesto Comunista. Tendo a possibilidade de utilizar as três principais correntes do pensamento que vinham se desenvolvendo na Europa no século passado (a dialética – filosofia clássica alemã –, a economia política – inglesa – e o socialismo – francês), Marx estabelece relação entre elas e as complementa em suas obras. Sem a inspiração nessas três correntes, admite o próprio Marx, a elaboração de suas ideias teria sido impossível (SPINDEL, 1985, p. 30). Discutir o método, como já apresentamos, não é das tarefas mais fáceis, visto que ele não se descola da teoria social de Marx, não tem autonomia em relação a essa teoria; portanto, é inseparável dela. A imersão do método em Marx na teoria marxiana nos propicia a compreensão de diversas categorias. Estas, organizadas de forma estruturada, podem nos proporcionar o entendimento da realidade e de formas para transformação dela. Neste texto iremos discutir alguns pontos sobre a dialética, a pseudoconcreticidade, a totalidade, a contradição e a mediação. 1.1 A dialética A dialética é um conceito desenvolvido pelo filósofo clássico alemão Hegel. Trata-se de uma concepção sobre o princípio de evolução 148
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da natureza e da sociedade, infinitamente mais rico, complexo e real do que aqueles que eram admitidos pelos demais filósofos de sua época. Na afirmação da dialética hegeliana, cada conceito possui em si o seu contrário, cada afirmação, a sua negação (SPINDEL, 1985, p. 31). Marx era um filósofo materialista, e Hegel era um filósofo idealista. Para os idealistas, era o pensamento, a ideia, que criava a realidade; o espiritual e o absoluto eram forças que se moviam por si mesmas e que movimentavam todo o Universo (daí a necessidade de um espírito superior, de uma criação do mundo, pois as ideias é que determinam a natureza). Já para Marx e Engels, que aprofundaram as ideias materialistas contidas na crítica que Ludwig Feuerbach dirigira ao idealismo de Hegel, o movimento do pensamento era apenas um reflexo do real, pois, na medida em que era produto do cérebro humano e que o homem era, ele próprio, produto da natureza, o pensamento não poderia deixar de ser também um produto da natureza (SPINDEL, 1985, p. 32). Por essa natureza materialista do pensamento de Marx, sua dialética diferia da de Hegel. Em primeiro lugar, como materialista, interessava-lhe descobrir a base material daquelas sociedades, religiões, impérios etc. A ele importava saber qual era a base econômica que sustentava estas sociedades: quem produzia, como produzia, com que produzia, para quem produzia e assim por diante (SPINDEL, 1985, p. 34). Com esta visão materialista foi possível se distanciar da dialética idealista de Hegel e superá-la, visto que, para Marx (1982, p. 18), “as categorias exprimem [...] formas de modos de ser, determinações de existência, [...] aspectos isolados dessa sociedade determinada, desse sujeito”. Assim se verifica que a própria sociedade não começa a partir do momento em que o homem tem consciência dela. Essas categorias não surgem no cérebro, elas têm existência própria na realidade material; são apreendidas; são uma reprodução mental do real. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 144-166, jan./jun. 2011
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“A dialética trata da ‘coisa em si’. Mas a ‘coisa em si’ não se manifesta diretamente ao homem”. Com esta afirmação Karel Kosik (1976) apresenta a dialética da totalidade concreta e nos alerta para a necessidade de nos aproximarmos da “coisa em si”, pois esta não é visível ao olhar desatento do homem no seu dia-a-dia. O “[...] pensamento dialético distingue entre representação e conceito da coisa”; com isso Kosik não apenas distingue duas formas e dois graus de conhecimento da realidade, mas especialmente e sobretudo duas qualidades da práxis humana. Portanto, a realidade não se apresenta aos homens, à primeira vista, sob o aspecto de um objeto que cumpre intuir, analisar e compreender teoricamente, cujo pólo oposto e complementar seja justamente o abstrato sujeito cognoscente, que existe fora do mundo e apartado do mundo; apresenta-se como campo em que se exercita a sua atividade prática sensível, sobre cujo fundamento surgirá a imediata intuição prática da realidade. No trato utilitário das coisas [...] o indivíduo “em situação” cria suas próprias representações das coisas e elabora todo um sistema correlativo de noções que capta e fixa o aspecto fenomênico da realidade (KOSIK, 1976, p. 10).
A partir da dialética podemos perceber as transformações e contradições da sociedade burguesa e de todas as sociedades anteriores. Para Marx e Engels (apud SPINDEL, 1985, p. 35-36), a estrutura político-jurídica e a ideologia (entendia esta como o sistema de ideias e costumes) são o resultado das relações estabelecidas pelos homens em um determinado momento da História, e correspondem a um certo estágio das forças produtivas. Para Marx, [...] na produção social de sua vida, os homens contraem determinadas relações necessárias e independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento 150
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das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social (MARX, 1982, p. 25).
Um dos fundamentos do pensamento marxista é a ideia de que a luta entre as classes é o motor da história. Levando em consideração esse fundamento e o fato de que não é a consciência do homem que determina o seu ser social e sim o seu contrário, o seu ser social (os processos em que se insere no dia-a-dia da produção e reprodução de sua vida material) é que determina a sua consciência, podemos inferir, assim como Marx, que, ao mudar a base econômica, a estrutura da sociedade, revoluciona-se, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura (política, ideológica etc.) erigida sobre ela. O marxismo não se prende apenas a compreender a história da humanidade ou apenas perceber que a luta de classes move a história; ele é uma proposta de transformação da ordem vigente (burguesa) numa nova ordem, em que já não existe propriedade privada, explorados e exploradores; propõe a criação de uma sociedade sem classes, uma sociedade de iguais. 1.2 A pseudoconcreticidade Para perceber o real, o fenômeno, precisamos nos distanciar do censo comum, dos “pré-conceitos”, “pré-disposições” e ilusões causadas por uma cortina de ideologias. O complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera comum da vida humana, que, com a sua regularidade, imediatismo e evidência, penetram na consciência dos indivíduos agentes, assumindo um aspecto independente e natural, constitui o mundo da pseudoconcreticidade (KOSIK, 1976, p. 11).
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A essência está contida no fenômeno, e este se constitui em essência e é por ela formado. Existe uma inter-relação segundo a qual a essência existe a partir de um fenômeno e este se torna compreensível no momento em que se encontra a essência. Para a compreensão do fenômeno é necessário fazer um detour (desvio) e chegar à essência, ou seja, ao elemento fundante do fenômeno. O fenômeno não é radicalmente diferente da essência, e a essência não é uma realidade pertencente a uma ordem diversa da do fenômeno. Se assim fosse efetivamente, o fenômeno não se ligaria à essência através de uma relação íntima, não poderia manifestá-la e ao mesmo tempo escondê-la; a sua relação seria reciprocamente externa e indiferente. Captar o fenômeno de determinada coisa significa indagar e descrever como a coisa em si se manifesta naquele fenômeno, e como ao mesmo tempo nele se esconde (KOSIK, 1976, p. 12, grifo nosso).
O fenômeno se manifesta imediatamente, primeiro e com maior frequência, não se oculta, é perceptível, portanto, àquele que dilui o véu da ideologia, vendo além da pseudoconcreticidade. Para conseguir ultrapassar o fenômeno na direção do entendimento e apreensão da essência [...] o homem, já antes de iniciar qualquer investigação, deve necessariamente possuir uma segura consciência do fato de que existe algo susceptível de ser definido como estrutura da coisa, essência da coisa, “coisa em si” e de que existe uma oculta verdade da coisa, distinta dos fenômenos que se manifestam imediatamente (KOSIK, 1976, p. 13, grifo nosso).
A busca da essência das coisas é a tarefa principal da ciência; este esforço para encontrar a coisa em si não se prende às ideias anteriores, pois, se a aparência do fenômeno e sua essência coincidissem diretamente, como afirma Marx, a ciência não mais teria utilidade. Este entendimento da essência se baseia na decomposição do todo em partes, isto compreende o encontro com o conhecimento. 152
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Porém, o fato de essência, fenômeno e aparência não coincidirem, não implica que sejam polaridades. Pelo contrário, elas não existem de forma autônoma. “[...] toda aparência ou fenômeno é essência que aparece, toda essência aparece de algum modo, nenhuma das duas pode estar presente sem esta relação dinâmica e contraditória” (LUKÁCS, 1979 (2):84) (PONTES, 1995, p. 83).
Deve-se buscar a unidade entre fenômeno e essência, do que é secundário e do que é a essência, já que só através dessa unidade o fenômeno pode mostrar a sua coerência interna, e com isso, o caráter específico da coisa. No caminho desse conhecimento, há uma tentativa de isolar a essência do todo; o secundário não é deixado de lado como irreal ou menos real, mas revela seu caráter fenomênico (do todo) ou secundário mediante a demonstração de sua verdade na essência da coisa. Em Kosik (1976, p. 14-15), a ciência e todo o conhecimento visam a um objetivo e “todo agir é ‘unilateral’, já que visa a um fim determinado e, portanto, isola alguns momentos da realidade como essenciais àquela ação, desprezando outros, temporariamente” (grifo nosso). O homem apreende a realidade a partir do momento em que ele sabe que cria a própria realidade humana (faz a história). Olhar para a natureza não cria conhecimento, nem o simples fato de contemplá-la. O censo comum (pensamento comum, fruto da práxis utilitária; a familiaridade com as coisas e com o aspecto superficial destas) possibilita que uma criança possa crescer e sobreviver no mundo, mas essa ideia a priori dos fatos não possibilita uma compreensão, um detour no encontro da essência para a desmistificação do todo, numa atitude inversa à da contemplação, pois aí já se percebem as contradições das partes do todo, do concreto (unidade da diversidade): O concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação (MARX, 1982, p. 14). REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 144-166, jan./jun. 2011
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A partir do conhecimento crítico dialético, do encontro com a essência num processo de compreensão do todo, o homem (em especial o operariado) pode perceber as contradições presentes e crescentes no mundo capitalista burguês, a exploração do homem pelo homem; a propriedade privada de uns, contra a “pobreza privada” de muitos; o consumo alienante e alienado etc. Essas contradições, entre outras, segundo Marx, conduziriam inevitavelmente à agudização da luta entre as classes fundantes do capitalismo, o que consequentemente provocaria a ruptura com o modo de produção burguês, a ascensão ao poder dos proletários e a implantação do socialismo. Com a tomada de poder pela classe operária haveria um período de articulação e construção das bases do socialismo, chamado de “Ditadura do Proletariado”; neste momento seriam utilizadas as estruturas burguesas, como o próprio Estado, para executar as tarefas necessárias à extinção de toda a divisão de classes, do próprio Estado e de toda a propriedade privada. 1.3 A totalidade Para entender totalidade não basta tomar todos os fatos e colocá-los num mesmo bloco para observação. A totalidade é dialética, é a unidade do diverso. Deve-se tratar a realidade como um todo estruturado no qual qualquer fenômeno pode ser racionalmente cindido em partes e compreendido na sua essência. Para Pontes (1995, p. 70), a “totalidade é uma categoria concreta. É própria da constituição do real. É a essência constitutiva do real; por isso, ontológica”. Segundo Kosik (1976), a totalidade foi elaborada na Filosofia Clássica Alemã como um dos conceitos centrais para distinguir polemicamente a dialética da metafísica. A posição da totalidade, que compreende a realidade nas suas íntimas leis e revela, sob a superfície e a causalidade dos fenômenos, as conexões 154
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internas, necessárias, coloca-se em antítese à posição do empirismo, que considera as manifestações fenomênicas e casuais, não chegando a atingir a compreensão dos processos evolutivos da realidade (KOSIK, 1976, p. 33).
A realidade é pensada e entendida como concreticidade, em Kosik (1976). Esta realidade é um todo que possui sua própria estrutura (assim, não é caótico); ela se desenvolve (portanto, não é imutável, se move) e vai se criando (não comparece como um todo perfeito e acabado, em que só se movem as formas de ordenar suas partes isoladas). Na compreensão da dialética da totalidade as partes estão em relação de interação interna e também de conexão entre si e com o todo. Na construção do conhecimento da realidade busca-se ir às partes, à procura da essência do todo; no retorno à concreticidade verifica-se que as contradições das partes e a correlação destas se estruturam, dando forma e concretude ao movimento do real pensado. Neste movimento, bem diferente do que defendia Hegel, o processo de conhecimento não se confunde com a realidade; nele a realidade está posta e passa a ser conhecida; este conhecimento não é anterior à realidade. Se a realidade é um todo dialético e estruturado, o conhecimento concreto da realidade não consiste em um acrescentamento sistemático de fatos a outros fatos, e de noções a outras noções. É um processo de concretização que procede do todo para as partes e das partes para o todo, dos fenômenos para a essência e da essência para os fenômenos, da totalidade para as contradições e das contradições para a totalidade; e justamente neste processo de correlações em espiral no qual todos os conceitos entram em movimento recíproco e se elucidam mutuamente, atinge a concreticidade (KOSIK, 1976, p. 41-42).
O concreto pensado não pode ser considerado imutável (petrificado) nem observado como “a perfeição”, “completo”, visto por cima das partes, pois as partes são partes do todo e o todo “se cria REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 144-166, jan./jun. 2011
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a si mesmo na interação das partes”, o todo não é melhor ou mais concreto que as partes. Para Kosik (1976), pode-se visualizar três concepções fundamentais do todo ou da totalidade no decurso da história do pensamento filosófico: 1) a concepção atomístico-racionalista, de Descartes até Wittgenstein, que concebe o todo como totalidade dos elementos e dos fatos mais simples; 2) a concepção organicista e organicístico-dinâmica, que formaliza o todo e afirma a predominância e a prioridade do todo sobre as partes (Schelling, Spann); 3) a concepção dialética (Heráclito, Hegel, Marx), que concebe o real como um todo estruturado que se desenvolve e se cria (KOSIK, 1976, p. 42-43, grifo nosso).
O conhecimento da realidade histórica se dá por um processo de apropriação teórica (interpretação crítica dos fatos). O conhecimento se realiza no ato de encontrar na realidade a possibilidade de transformar a totalidade concreta (concreto concreto) em totalidade abstrata (concreto pensado). Nesse processo a dificuldade é manter as características do concreto concreto no concreto pensado, não diminuindo nem degenerando seus aspectos fundantes. Segundo Kosik (1976, p. 50), a “criação da totalidade como estrutura significativa é, portanto, ao mesmo tempo, um processo no qual se cria realmente o conteúdo objetivo e o significado de todos os seus fatores e partes”. A totalidade concreta é a forma de conhecer o real, a partir de uma concepção dialético-materialista. Resumidamente, este método é [...] um processo indivisível cujos momentos são: a destruição da pseudoconcreticidade, isto é, da fetichista e aparente objetividade do fenômeno, e o conhecimento da sua autêntica objetividade; em segundo lugar, conhecimento do caráter histórico do fenômeno, no qual se manifesta de modo característico a dialética do individual e do humano em geral; 156
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e enfim o conhecimento do conteúdo objetivo e do significado do fenômeno, da sua função objetiva e do lugar histórico que ele ocupa no seio do corpo social (KOSIK, 1976, p. 52).
Para chegarmos à totalidade utilizamos a teoria; esta faz uma aproximação, porém, não nos fornece a totalidade, pelo menos não nos garante que a encontramos, só o tempo e a história nos mostrarão a verdade. Essa teoria fornece boas indicações, por exemplo, quanto há totalidade, a teoria dialética recomenda que nós prestemos atenção ao “recheio” de cada síntese, quer dizer, às contradições e mediações concretas que a síntese encerra (KONDER, 1991, p. 44). Para chegarmos ao conhecimento das partes do todo, precisamos de uma noção (síntese) ao menos incompleta sobre o todo. Esta noção incompleta nos possibilita um conhecimento parcial do todo, mas que nos aproximará do entendimento de cada parte (elemento) do todo; estaremos, assim, chegando a uma maior compreensão das partes e, por conseguinte, clareando e aprofundando nossa noção do todo, como diria Hegel, da verdade. 1.4 A contradição A contradição se expressa na realidade, pois esta é cindida pelo conflito, ou seja, pela constante mudança ou pela intenção dessa mudança. Ela é também a luta dos contrários, porta elementos de manutenção e ruptura, a tese e a antítese. Assim como nenhum corpo se conserva inerte no Universo, a sociedade também se encontra em constante movimento. A realidade é dinâmica, o real se encontra em constante mutação; por isso devemos perceber as contradições como sendo este processo de total instabilidade do ser, das relações sociais e dos fenômenos. Tudo o que há no mundo pode ser transformado, tudo muda de lugar, forma ou atitude. E quais as contradições contidas nesses movimentos? REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 144-166, jan./jun. 2011
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O homem, através do trabalho, pode modificar a si e ao mundo, tornando-se novo homem num novo mundo. Nesse processo o homem faz história (segundo Marx, n’O 18 Brumário de Luiz Bonaparte, não nas condições de sua escolha), cria e transforma a vida material. As contradições permeiam esse fazer e contribuem para que essa ação se torne conhecida e inteligível. O mundo está em constante mudança, e a contradição contribui nesse processo de criar e recriar a história. Precisamos também seguir o conselho de Diderot apud Konder (1991), para que não sejamos enganados: No suplemento à Viagem de Bougainville, publicado em 1796, Diderot aconselhava seus leitores: “Examinem todas as instituições políticas, civis e religiosas; ou muito me engano ou vocês verão nelas o gênero humano subjugado, a cada século mais submetido ao jugo de um punhado de meliantes”. E recomendava: “Desconfiem de quem quer impor a ordem” (KONDER, 1991, p. 17).
O pensamento dialético é obrigado, segundo Konder (1991), a um paciente trabalho de identificar gradualmente as contradições concretas e as mediações específicas, que são partes do tecido e que dão vida a cada totalidade. Essa dialética, para Coutinho apud Konder (1991, p. 46), [...] não pensa o todo negando as partes, nem pensa as partes abstraídas do todo. Ela pensa tanto as contradições entre as partes (a diferença entre elas: o que faz de uma obra de arte algo distinto de um panfleto político) como a união entre elas (o que leva a arte e a política a se relacionarem no seio da sociedade enquanto totalidade).
A contradição é a categoria essencial do materialismo dialético, é a lei fundamental da dialética, é a unidade de luta dos contrários. As 158
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leis da dialética, escritas por Engels, podem nos possibilitar entender melhor essa categoria da contradição em Marx: a) Lei da passagem da quantidade à qualidade (e vice-versa). As coisas mudam, mas não mudam no mesmo ritmo: [...] o processo de transformação por meio do qual elas existem passa por períodos lentos (nos quais se sucedem pequenas alterações quantitativas) e por períodos de aceleração (que precipitam alterações qualitativas, isto é, “saltos”, modificações radicais). Engels dá o exemplo da água que vai esquentando, vai esquentando, até alcançar cem graus centígrados e ferver, quando se precipita a sua passagem do estado líquido ao estado gasoso (KONDER, 1991, p. 58). b) Lei da interpenetração dos contrários. Nesta lei tudo tem a ver com tudo, [...] os diversos aspectos da realidade se entrelaçam e, em diferentes níveis, dependem uns dos outros, de modo que as coisas não podem ser compreendidas isoladamente, uma por uma, sem levarmos em conta a conexão que cada uma delas mantém com coisas diferentes (KONDER, 1991, p. 58). c) Lei da negação da negação. O movimento geral da realidade faz sentido, não é absurdo, [...] não se esgota em contradições irracionais, ininteligíveis, nem se perde na eterna repetição do conflito entre teses e antíteses, entre afirmações e negações. A afirmação engendra necessariamente a sua negação, porém a negação não prevalece como tal: tanto a afirmação como a negação são superadas e o que acaba por prevalecer é uma síntese, é a negação da negação (KONDER, 1991, p. 59).
Nesta unidade de luta dos contrários se percebe a importância da contradição, visto que esta categoria possibilita o movimento, a mudança, a superação. Se todas as coisas estivessem dadas, escritas, REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 144-166, jan./jun. 2011
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definidas e imutáveis, a vida poderia perder parte do seu sentido, visto que o futuro já estaria predestinado, e as pessoas não precisariam ou não poderiam querer ter ou ser mais do que já têm ou são. Para esta visão de imutabilidade e de solidez que alguns possuem, Marx e Engels (1999, p. 14) afirmam o seguinte: “Tudo que é sólido derrete-se no ar [...] e os homens são por fim compelidos a enfrentar de modo sensato suas condições reais de vida e suas relações com seus semelhantes”, ou seja, tanto a estrutura quanto a superestrutura podem ser alteradas, e assim são transmutadas todas as relações sociais de produção. 1.5 A mediação A categoria da mediação expressa as relações concretas existentes entre as partes de um todo. A mediação é o caminho existente, percorrido e (ou) passível de ser percorrido, para se conhecerem as correlações concretas e dialéticas entre as partes do todo estruturado. Como exemplo de mediação Marx coloca o trabalho como sendo o principal mediador entre o homem e a natureza e entre este e a própria sociedade. Assim, as mediações criadas historicamente na complexa relação homem-natureza são indicadores seguros e fecundos, do ponto de vista histórico-social, porque efetivamente constituem-se na expressão concreta do evolver do processo de enriquecimento humano, na sua dinâmica de objetivar-se no mundo e incorporar tais objetivações; na sua saga de buscar mediações cada vez menos “degradadas e bárbaras” e cada vez mais humano-igualitárias, tanto no plano do ser social quanto no plano do controle da natureza (PONTES, 1995, p. 78-79).
Em Pontes (1995) percebemos como a categoria mediação traz à tona, segundo Hegel, o “verdadeiro” como sendo um resultado: 160
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A mediação em face da totalidade, segundo o autor, é responsável pela articulação dinâmica, processual entre as partes na sua ação recíproca e o todo, considerando que cada parte se constitui em uma totalidade parcial, também complexa. Daí a justificativa da afirmação de que “a mediação é que faz com que o verdadeiro seja resultado” (Hegel, 1987:14), o que significa, ser fruto de um processo, de múltiplas passagens, de moventes articulações multilaterais e complexas (PONTES, 1995, p. 55).
O trabalho humano é uma mediação que humaniza o próprio ser humano.2 Pontes (1995, p. 78) vê as mediações como sendo “expressões históricas das relações que o homem edificou com a natureza e consequentemente das relações sociais daí decorrentes, nas várias formações sócio-humanas que a história registrou”. Todos os objetos são frutos da mediação. Percebemos em Lukács apud Pontes (1995, p. 79) que a categoria mediação possui esta dimensão ontológica: Não pode existir nem na natureza, nem na sociedade nenhum objeto que neste sentido [...] não seja mediato, não seja resultado de mediações. Deste ponto de vista a mediação é uma categoria objetiva, ontológica, que tem que estar presente em qualquer realidade, independente do sujeito [...].
Entendendo a categoria mediação, perceberemos que os fenômenos não estão isolados, as partes do todo a este pertencem justamente porque possuem uma mediação com a sua estrutura, ou então não seriam partes do todo, seriam objetos externos e sem sentido. A mediação mostra o não isolamento das partes; isto implica que sempre haverá possibilidade de superação de barreiras entre as partes, pois a
É na mediação trabalho que o homem se aproxima da natureza, transforma essa natureza e a si próprio, criando, assim, novas mediações. 2
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síntese é o resultado dessa interação; assim sendo, é o que se apresenta mais próximo da verdade. Para Pontes (1995), a mediação tem um alto poder de dinamismo e articulação entre as partes do todo, e sem as mediações o método dialético se petrifica. A mediação é [...] responsável pelas moventes relações que se operam no interior de cada complexo relativamente total e das articulações dinâmicas e contraditórias entre estas várias estruturas sócio-históricas. Enfim, a esta categoria tributa-se a possibilidade de trabalhar na perspectiva de totalidade. Sem a captação do movimento e da estrutura ontológica das mediações através da razão, o método, que é dialético, se enrijece, perdendo, por conseguinte, a própria natureza dialética (PONTES, 1995, p. 81).
O autor de Mediação e Serviço Social (PONTES, 1995) sintetiza que a apreensão da essência do todo corresponde necessariamente à captura das mediações que são o locus da dialética aparência-essência. A razão não se contenta com a identidade e a diversidade abstratas próprias da positividade do real. Busca as mediações submersas no plano fenomênico. Para superar o mundo da aparência necessário se faz negá-lo, daí a necessidade do caráter negativo da razão (PONTES, 1995, p. 82).
Como já discutimos no item 1.3 – Totalidade –, o todo é estruturado, não é caótico. Ele é formado por partes, e estas estão num constante movimento. Entre as partes existem ligações (mediações) moventes, ligações que informam o real. As essências parciais presentes nas partes, ao serem sintetizadas, fazem emergir a essência total do todo. A mediação nos eleva da percepção dos fatos (abstrato) à apreensão do movimento das partes até chegarmos ao real mediatizado (concreto pensado). 162
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Num determinado estudo, poderíamos pensar nos dados coletados como peças de um quebra-cabeça desmontado, cujo fenômeno é o que se pode ver nelas, e esta disposição não é um caos; ela é um emaranhado de peças3 que dá forma a uma figura, mas a essência ainda não está na figura que se forma ao fim da montagem do quebra-cabeça. A essência seria a substância da figura em si (que nem sempre se expressa na sua forma), influenciada por todas as contradições do processo de montagem, imersa em mediações situadas entre as peças do quebra-cabeça. Nessas mediações não está a forma final da figura, mas sim o conteúdo de possibilidades e rupturas que se poderia ter ao se querer organizar, racionalmente, uma dada situação, um momento da realidade, chegando, assim, à sua concretude.
Considerações Viver é interferir na história. A partir deste debate sobre o método podemos inferir que estar no mundo é participar da vida de forma adaptativa ou transformadora. Estar vivo nos propicia entender parte do que está à nossa volta e de alterar esta realidade da forma como nos for possível. O presente texto não esgota o debate sobre o método, nem sobre sua aplicação na práxis humana. Muitas questões que discutimos aqui podem e devem receber um maior aprofundamento por parte dos que vislumbram a construção de uma nova sociedade, para além do reino da necessidade, alcançar o reino da liberdade. Para além de comer, beber e dormir, o homem pode ser o construtor da realidade, de sua própria história.
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Peças estas que devem ser consideradas como partes do todo, já decomposto.
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Na busca da essência é preciso ir além do nível da empiria, pois, segundo Guerra (1995, p. 200), esta “análise não ultrapassa a aparência dos fenômenos, ou, como afirma Lukács, ‘no empirismo está contido um ontologismo ingênuo (...) uma valorização instintiva da realidade imediatamente dada, das coisas singulares e das relações de fácil percepção’ [...]”. É necessária a apreensão e compreensão da realidade como totalidade dialética, para não nos adequarmos ou enquadrarmos à “ordem” ou aos “novos tempos”. Esta compreensão nos faculta desvendar o real e contribui para sua transformação. A história é feita pelos homens e a simples percepção teórica do real não os transforma em agentes revolucionários, o compromisso ético-político com as classes que hoje vivem da venda de sua força de trabalho é um dos principais elementos na tomada de decisão em função de uma transformação estrutural da sociedade (ANDRADE, 2006, p. 166).
Em Gramsci (1988) encontra-se força inspiradora para a luta, a partir dele percebemos que o “pessimismo da inteligência”, na averiguação do real até então dado, precisa ser corretamente mediado pelo “otimismo da vontade”, numa busca incessante da ansiada “nova sociedade”. “Nesta, não só a produção será coletiva, mas também o será a repartição dos resultados dela” (ANDRADE, 2006, p. 160).
Referências ANDRADE, Renato Almeida de. O Enfrentamento da questão social e o terceiro setor: o Serviço Social e suas condições de trabalho nas ONGs. Vila Velha: Univila, 2006. ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2009. 164
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GRAMSCI, Antônio. Maquiavel, a política e o Estado moderno. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988. GUERRA, Yolanda. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1995. KONDER, Leandro. O que é dialética. 22. ed. São Paulo: Brasiliense, 1991. KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. MARX, Karl. Para a crítica da economia política; salário, preço e lucro; o rendimento e suas fontes. São Paulo: Abril Cultural, 1982. ______. Teses sobre Feuerbach. Disponível em: http://www.marxists.org/ portugues/marx/18 45/tesfeuer.htm. Acesso em: 10/04/2003. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O manifesto do Partido Comunista. 5. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999. NETTO, José Paulo. O que é marxismo. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. PONTES, Reinaldo Nobre. Mediação e Serviço Social. São Paulo: Cortez; Belém: Universidade da Amazônia, 1995. SPINDEL, Arnaldo. O que é socialismo. 15. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.
MARX AND HIS METHOD: BEYOND THE UNDERSTANDING OF THE HISTORY OF HUMANITY Abstract The debate about the method in Marx is not in a specific book, considering that it is intrinsic to his social theory, but diluted in all his work. We search to captivate some of these conceptions disposed in some of his works. To Marx, it is not enough to understand reality, it is necessary to change it. The method REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 144-166, jan./jun. 2011
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does not appear as an end in itself, but as a means necessary to achieve the concrete thought. With this understanding man can intervene rationally on history. The immersion in the Marxian theory propitiate us the understanding of several categories. These ones, organized in structured way, can provide us the understanding of reality and of ways for its transformation. In this text we will discuss some subject matters about the dialectics, the pseudoconcreticity, the totality, the contradiction and the mediation. The apprehension and the understanding of reality as dialectic totality facilitate us to reveal the reality and contribute to its transformation. Key words: Marx, method, history, dialectic.
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MARX E SEU MÉTODO: PARA ALÉM DA COMPREENSÃO DA HISTÓRIA DA HUMANIDADE1 Renato Almeida de Andrade*
Resumo O debate sobre o método em Marx não está em um livro específico, visto que é intrínseco à sua teoria social, mas diluído em toda sua obra. Buscamos captar algumas destas concepções dispostas em algumas de suas obras. Para Marx, não basta compreender a realidade, é preciso transformá-la. O método não comparece como um fim em si mesmo, mas como um meio necessário para se alcançar o concreto pensado. De posse desta compreensão o homem pode intervir racionalmente sobre a história. A imersão na teoria marxiana nos propicia a compreensão de diversas categorias. Estas, organizadas de forma estruturada, podem nos proporcionar o entendimento da realidade e de formas para transformação dela. Neste texto iremos discutir alguns pontos sobre a dialética, a pseudoconcreticidade, a totalidade, a contradição e a mediação. A apreensão e compreensão da realidade como totalidade dialética nos faculta desvendar o real e contribui para sua transformação. Palavras-chave: Marx, método, história, dialética.
Uma parte deste trabalho foi apresentada como requisito da disciplina Teoria Sociológica do Professor Yves Lesbaupin do Mestrado em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Como este texto foi escrito antes do meu livro (O enfrentamento da questão social e o terceiro setor: o serviço social e suas condições de trabalho nas ONGs. Vila Velha: Univila, 2006.), alguns trechos foram publicados naquele livro. * Doutor em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Professor da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo e Assistente Social na Prefeitura Municipal da Serra. 1
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Introdução O debate sobre o método em Marx não está em um livro específico, visto que é intrínseco à sua teoria social, mas diluído em toda sua obra. Neste texto buscamos captar algumas destas concepções dispostas em algumas de suas obras. Para Marx, não basta compreender a realidade, é preciso transformá-la. Dessa forma, a apreensão e a compreensão da realidade contribuem para a definição dos caminhos a serem trilhados na intervenção dos indivíduos em sua própria realidade. Este ato é ontologicamente tão importante quanto a compreensão do real. Nas palavras de Marx (2003), em suas teses sobre Feuerbach, “os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”. Nestes períodos em que as crises cíclicas do capitalismo se tornam mais frequentes, mundializadas e duradouras é que se verifica a atualidade do pensamento marxiano, em especial seu método. Entendemos que o potencial heurístico, transformador e revolucionário do seu método atualiza criticamente o modo como a sociedade entende as formas antagônicas e reais do sistema capitalista, para pensar e intervir nesse sistema com uma atitude transformadora. Na abertura do capítulo “Burgueses e Proletários” do Manifesto Comunista, Marx e Engels (1999) afirmam que a “história de todas as sociedades que já existiram é a história de luta de classes”. Esta afirmação indica a preocupação deles com a compreensão da história e, na verdade, com a intervenção do homem na história. No início deste texto traremos alguns elementos do momento histórico, do contexto em que Marx viveu, lutou e escreveu suas concepções e seu método.
1 Pensando o mundo burguês Com o declínio do sistema de produção feudal e a agonia da idade média, grandes transformações ocorrem no seio da sociedade. Essas REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 144-166, jan./jun. 2011
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alterações se mostram muito claras no mundo da produção e na forma de apropriação pelo homem dos recursos naturais necessários à sua manutenção. As transformações, que se deram em todos os campos da sociedade, tiveram na Revolução Francesa um marco histórico e político e contribuíram para a instalação do modo de pensar burguês. As mudanças ocasionadas nas relações sociais de produção, no mundo da produção e reprodução da força de trabalho, chamadas de “Revolução Industrial”, deram origem ao mundo burguês, o mundo contemporâneo. Neste “novo mundo”, segundo Netto (1993), a economia e a sociedade são organizadas de modo particular, submetidas ambas a uma estratégia global (a da burguesia) e a uma lógica específica (a da valorização do capital). Configura-se assim, a partir dessa estratégia e dessa lógica, um novo padrão de vida social, centralizado na civilização urbano-industrial. Essas transformações não se deram de forma harmônica, se deram de forma dolorosa. Imagine o artesão perdendo o controle sobre a concepção, a produção e a venda de seus produtos, o trabalhador se alienando do fruto do seu trabalho, não mais se reconhecendo na sua criação, a burguesia se consolidando com o aumento do comércio, das navegações, da industrialização e da subjugação do proletariado. Na França a burguesia buscou apoio de outras camadas da população para conseguir a igualdade, a liberdade e a fraternidade: Desde o início da Revolução Francesa, porém, a contradição existente entre esta burguesia – que já gozava dos benefícios do sistema capitalista que se estruturava – e as demais camadas da população que nada ou quase nada possuíam era visível. Os burgueses aceitavam lutar lado a lado com o restante do povo francês contra a nobreza e o clero, mas não tinham a menor intenção de com elas dividir o poder, após a vitória (SPINDEL, 1985, p. 21). 146
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Os críticos franceses atacavam a monarquia, a religião e o absolutismo, atribuindo-lhes o aumento crescente da miséria da maioria da população, e parte do povo também via dessa forma a realidade social daquele período. O povo terminou por aliar-se à burguesia e logo percebeu que continuou a ser explorado, só que de uma forma diferente e muito mais alienante. Neste mundo burguês a exploração é constante, mas a emancipação da humanidade é impossível, pois a ideia de que todos são iguais perante a lei é apenas uma forma de igualdade jurídica, ela não se traduz em igualdade econômico-social. A miséria se alastrou como um vírus por toda a parte no “novo mundo burguês”, o único personagem imune a esta doença foi a própria burguesia, que se enriqueceu dia a dia com a pobreza e o sofrimento alheios. Enquanto existir a propriedade privada (pois esta beneficia a parte da população que possui meios de produção e exclui uma massa, dona da força de trabalho, que é submetida aos mandos e desmandos dos “possuidores”), a maior parte da população ficará condenada a um regime de superexploração e de pobreza permanentes. Em meio a toda essa turbulência social gerada no período, surge uma classe, a que Marx atribui o verdadeiro caráter revolucionário, o proletariado; aquela que conseguirá reverter os rumos da história, levando o homem à sua libertação. Libertação não no ângulo da burguesia, mas sim de “viver” o mundo da necessidade (dar conta do necessário à sobrevivência, como comer, beber, dormir), para saborear em plenitude o mundo da liberdade (fazer a história, revolucionar, criar, ser um homem emancipado). De fato, o reino da liberdade começa onde o trabalho deixa de ser determinado por necessidade e por utilidade exteriormente imposta; por natureza, situa-se além da esfera da produção material propriamente dita. O selvagem tem de lutar com a natureza para satisfazer as necessidades, para manter e reproduzir a vida, e o mesmo tem de fazer o civilizado, sejam quais forem a forma da sociedade e o modo de produção. [...]. Mas REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 144-166, jan./jun. 2011
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esse esforço situar-se-á sempre no reino da necessidade. Além dele começa o desenvolvimento das forças humanas como um fim em si mesmo, o reino genuíno da liberdade, o qual só pode florescer tendo por base o reino da necessidade (MARX apud ANTUNES, 2009, p. 171-172, grifo nosso).
Por estas e outras questões é que a tese do fim da história não encontra fundamento na teoria marxiana nem entre os estudiosos marxistas contemporâneos. Tratar o momento atual como o fim da história é fortalecer o ideal conservador que a burguesia instalou para manter seu domínio de classe; ela assumiu esta mudança, renunciando aos seus ideais emancipadores e revolucionários citados por Marx e Engels (1999) em O Manifesto Comunista. Tendo a possibilidade de utilizar as três principais correntes do pensamento que vinham se desenvolvendo na Europa no século passado (a dialética – filosofia clássica alemã –, a economia política – inglesa – e o socialismo – francês), Marx estabelece relação entre elas e as complementa em suas obras. Sem a inspiração nessas três correntes, admite o próprio Marx, a elaboração de suas ideias teria sido impossível (SPINDEL, 1985, p. 30). Discutir o método, como já apresentamos, não é das tarefas mais fáceis, visto que ele não se descola da teoria social de Marx, não tem autonomia em relação a essa teoria; portanto, é inseparável dela. A imersão do método em Marx na teoria marxiana nos propicia a compreensão de diversas categorias. Estas, organizadas de forma estruturada, podem nos proporcionar o entendimento da realidade e de formas para transformação dela. Neste texto iremos discutir alguns pontos sobre a dialética, a pseudoconcreticidade, a totalidade, a contradição e a mediação. 1.1 A dialética A dialética é um conceito desenvolvido pelo filósofo clássico alemão Hegel. Trata-se de uma concepção sobre o princípio de evolução 148
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da natureza e da sociedade, infinitamente mais rico, complexo e real do que aqueles que eram admitidos pelos demais filósofos de sua época. Na afirmação da dialética hegeliana, cada conceito possui em si o seu contrário, cada afirmação, a sua negação (SPINDEL, 1985, p. 31). Marx era um filósofo materialista, e Hegel era um filósofo idealista. Para os idealistas, era o pensamento, a ideia, que criava a realidade; o espiritual e o absoluto eram forças que se moviam por si mesmas e que movimentavam todo o Universo (daí a necessidade de um espírito superior, de uma criação do mundo, pois as ideias é que determinam a natureza). Já para Marx e Engels, que aprofundaram as ideias materialistas contidas na crítica que Ludwig Feuerbach dirigira ao idealismo de Hegel, o movimento do pensamento era apenas um reflexo do real, pois, na medida em que era produto do cérebro humano e que o homem era, ele próprio, produto da natureza, o pensamento não poderia deixar de ser também um produto da natureza (SPINDEL, 1985, p. 32). Por essa natureza materialista do pensamento de Marx, sua dialética diferia da de Hegel. Em primeiro lugar, como materialista, interessava-lhe descobrir a base material daquelas sociedades, religiões, impérios etc. A ele importava saber qual era a base econômica que sustentava estas sociedades: quem produzia, como produzia, com que produzia, para quem produzia e assim por diante (SPINDEL, 1985, p. 34). Com esta visão materialista foi possível se distanciar da dialética idealista de Hegel e superá-la, visto que, para Marx (1982, p. 18), “as categorias exprimem [...] formas de modos de ser, determinações de existência, [...] aspectos isolados dessa sociedade determinada, desse sujeito”. Assim se verifica que a própria sociedade não começa a partir do momento em que o homem tem consciência dela. Essas categorias não surgem no cérebro, elas têm existência própria na realidade material; são apreendidas; são uma reprodução mental do real. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 144-166, jan./jun. 2011
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“A dialética trata da ‘coisa em si’. Mas a ‘coisa em si’ não se manifesta diretamente ao homem”. Com esta afirmação Karel Kosik (1976) apresenta a dialética da totalidade concreta e nos alerta para a necessidade de nos aproximarmos da “coisa em si”, pois esta não é visível ao olhar desatento do homem no seu dia-a-dia. O “[...] pensamento dialético distingue entre representação e conceito da coisa”; com isso Kosik não apenas distingue duas formas e dois graus de conhecimento da realidade, mas especialmente e sobretudo duas qualidades da práxis humana. Portanto, a realidade não se apresenta aos homens, à primeira vista, sob o aspecto de um objeto que cumpre intuir, analisar e compreender teoricamente, cujo pólo oposto e complementar seja justamente o abstrato sujeito cognoscente, que existe fora do mundo e apartado do mundo; apresenta-se como campo em que se exercita a sua atividade prática sensível, sobre cujo fundamento surgirá a imediata intuição prática da realidade. No trato utilitário das coisas [...] o indivíduo “em situação” cria suas próprias representações das coisas e elabora todo um sistema correlativo de noções que capta e fixa o aspecto fenomênico da realidade (KOSIK, 1976, p. 10).
A partir da dialética podemos perceber as transformações e contradições da sociedade burguesa e de todas as sociedades anteriores. Para Marx e Engels (apud SPINDEL, 1985, p. 35-36), a estrutura político-jurídica e a ideologia (entendia esta como o sistema de ideias e costumes) são o resultado das relações estabelecidas pelos homens em um determinado momento da História, e correspondem a um certo estágio das forças produtivas. Para Marx, [...] na produção social de sua vida, os homens contraem determinadas relações necessárias e independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento 150
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das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social (MARX, 1982, p. 25).
Um dos fundamentos do pensamento marxista é a ideia de que a luta entre as classes é o motor da história. Levando em consideração esse fundamento e o fato de que não é a consciência do homem que determina o seu ser social e sim o seu contrário, o seu ser social (os processos em que se insere no dia-a-dia da produção e reprodução de sua vida material) é que determina a sua consciência, podemos inferir, assim como Marx, que, ao mudar a base econômica, a estrutura da sociedade, revoluciona-se, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura (política, ideológica etc.) erigida sobre ela. O marxismo não se prende apenas a compreender a história da humanidade ou apenas perceber que a luta de classes move a história; ele é uma proposta de transformação da ordem vigente (burguesa) numa nova ordem, em que já não existe propriedade privada, explorados e exploradores; propõe a criação de uma sociedade sem classes, uma sociedade de iguais. 1.2 A pseudoconcreticidade Para perceber o real, o fenômeno, precisamos nos distanciar do censo comum, dos “pré-conceitos”, “pré-disposições” e ilusões causadas por uma cortina de ideologias. O complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera comum da vida humana, que, com a sua regularidade, imediatismo e evidência, penetram na consciência dos indivíduos agentes, assumindo um aspecto independente e natural, constitui o mundo da pseudoconcreticidade (KOSIK, 1976, p. 11).
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A essência está contida no fenômeno, e este se constitui em essência e é por ela formado. Existe uma inter-relação segundo a qual a essência existe a partir de um fenômeno e este se torna compreensível no momento em que se encontra a essência. Para a compreensão do fenômeno é necessário fazer um detour (desvio) e chegar à essência, ou seja, ao elemento fundante do fenômeno. O fenômeno não é radicalmente diferente da essência, e a essência não é uma realidade pertencente a uma ordem diversa da do fenômeno. Se assim fosse efetivamente, o fenômeno não se ligaria à essência através de uma relação íntima, não poderia manifestá-la e ao mesmo tempo escondê-la; a sua relação seria reciprocamente externa e indiferente. Captar o fenômeno de determinada coisa significa indagar e descrever como a coisa em si se manifesta naquele fenômeno, e como ao mesmo tempo nele se esconde (KOSIK, 1976, p. 12, grifo nosso).
O fenômeno se manifesta imediatamente, primeiro e com maior frequência, não se oculta, é perceptível, portanto, àquele que dilui o véu da ideologia, vendo além da pseudoconcreticidade. Para conseguir ultrapassar o fenômeno na direção do entendimento e apreensão da essência [...] o homem, já antes de iniciar qualquer investigação, deve necessariamente possuir uma segura consciência do fato de que existe algo susceptível de ser definido como estrutura da coisa, essência da coisa, “coisa em si” e de que existe uma oculta verdade da coisa, distinta dos fenômenos que se manifestam imediatamente (KOSIK, 1976, p. 13, grifo nosso).
A busca da essência das coisas é a tarefa principal da ciência; este esforço para encontrar a coisa em si não se prende às ideias anteriores, pois, se a aparência do fenômeno e sua essência coincidissem diretamente, como afirma Marx, a ciência não mais teria utilidade. Este entendimento da essência se baseia na decomposição do todo em partes, isto compreende o encontro com o conhecimento. 152
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Porém, o fato de essência, fenômeno e aparência não coincidirem, não implica que sejam polaridades. Pelo contrário, elas não existem de forma autônoma. “[...] toda aparência ou fenômeno é essência que aparece, toda essência aparece de algum modo, nenhuma das duas pode estar presente sem esta relação dinâmica e contraditória” (LUKÁCS, 1979 (2):84) (PONTES, 1995, p. 83).
Deve-se buscar a unidade entre fenômeno e essência, do que é secundário e do que é a essência, já que só através dessa unidade o fenômeno pode mostrar a sua coerência interna, e com isso, o caráter específico da coisa. No caminho desse conhecimento, há uma tentativa de isolar a essência do todo; o secundário não é deixado de lado como irreal ou menos real, mas revela seu caráter fenomênico (do todo) ou secundário mediante a demonstração de sua verdade na essência da coisa. Em Kosik (1976, p. 14-15), a ciência e todo o conhecimento visam a um objetivo e “todo agir é ‘unilateral’, já que visa a um fim determinado e, portanto, isola alguns momentos da realidade como essenciais àquela ação, desprezando outros, temporariamente” (grifo nosso). O homem apreende a realidade a partir do momento em que ele sabe que cria a própria realidade humana (faz a história). Olhar para a natureza não cria conhecimento, nem o simples fato de contemplá-la. O censo comum (pensamento comum, fruto da práxis utilitária; a familiaridade com as coisas e com o aspecto superficial destas) possibilita que uma criança possa crescer e sobreviver no mundo, mas essa ideia a priori dos fatos não possibilita uma compreensão, um detour no encontro da essência para a desmistificação do todo, numa atitude inversa à da contemplação, pois aí já se percebem as contradições das partes do todo, do concreto (unidade da diversidade): O concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação (MARX, 1982, p. 14). REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 144-166, jan./jun. 2011
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A partir do conhecimento crítico dialético, do encontro com a essência num processo de compreensão do todo, o homem (em especial o operariado) pode perceber as contradições presentes e crescentes no mundo capitalista burguês, a exploração do homem pelo homem; a propriedade privada de uns, contra a “pobreza privada” de muitos; o consumo alienante e alienado etc. Essas contradições, entre outras, segundo Marx, conduziriam inevitavelmente à agudização da luta entre as classes fundantes do capitalismo, o que consequentemente provocaria a ruptura com o modo de produção burguês, a ascensão ao poder dos proletários e a implantação do socialismo. Com a tomada de poder pela classe operária haveria um período de articulação e construção das bases do socialismo, chamado de “Ditadura do Proletariado”; neste momento seriam utilizadas as estruturas burguesas, como o próprio Estado, para executar as tarefas necessárias à extinção de toda a divisão de classes, do próprio Estado e de toda a propriedade privada. 1.3 A totalidade Para entender totalidade não basta tomar todos os fatos e colocá-los num mesmo bloco para observação. A totalidade é dialética, é a unidade do diverso. Deve-se tratar a realidade como um todo estruturado no qual qualquer fenômeno pode ser racionalmente cindido em partes e compreendido na sua essência. Para Pontes (1995, p. 70), a “totalidade é uma categoria concreta. É própria da constituição do real. É a essência constitutiva do real; por isso, ontológica”. Segundo Kosik (1976), a totalidade foi elaborada na Filosofia Clássica Alemã como um dos conceitos centrais para distinguir polemicamente a dialética da metafísica. A posição da totalidade, que compreende a realidade nas suas íntimas leis e revela, sob a superfície e a causalidade dos fenômenos, as conexões 154
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internas, necessárias, coloca-se em antítese à posição do empirismo, que considera as manifestações fenomênicas e casuais, não chegando a atingir a compreensão dos processos evolutivos da realidade (KOSIK, 1976, p. 33).
A realidade é pensada e entendida como concreticidade, em Kosik (1976). Esta realidade é um todo que possui sua própria estrutura (assim, não é caótico); ela se desenvolve (portanto, não é imutável, se move) e vai se criando (não comparece como um todo perfeito e acabado, em que só se movem as formas de ordenar suas partes isoladas). Na compreensão da dialética da totalidade as partes estão em relação de interação interna e também de conexão entre si e com o todo. Na construção do conhecimento da realidade busca-se ir às partes, à procura da essência do todo; no retorno à concreticidade verifica-se que as contradições das partes e a correlação destas se estruturam, dando forma e concretude ao movimento do real pensado. Neste movimento, bem diferente do que defendia Hegel, o processo de conhecimento não se confunde com a realidade; nele a realidade está posta e passa a ser conhecida; este conhecimento não é anterior à realidade. Se a realidade é um todo dialético e estruturado, o conhecimento concreto da realidade não consiste em um acrescentamento sistemático de fatos a outros fatos, e de noções a outras noções. É um processo de concretização que procede do todo para as partes e das partes para o todo, dos fenômenos para a essência e da essência para os fenômenos, da totalidade para as contradições e das contradições para a totalidade; e justamente neste processo de correlações em espiral no qual todos os conceitos entram em movimento recíproco e se elucidam mutuamente, atinge a concreticidade (KOSIK, 1976, p. 41-42).
O concreto pensado não pode ser considerado imutável (petrificado) nem observado como “a perfeição”, “completo”, visto por cima das partes, pois as partes são partes do todo e o todo “se cria REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 144-166, jan./jun. 2011
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a si mesmo na interação das partes”, o todo não é melhor ou mais concreto que as partes. Para Kosik (1976), pode-se visualizar três concepções fundamentais do todo ou da totalidade no decurso da história do pensamento filosófico: 1) a concepção atomístico-racionalista, de Descartes até Wittgenstein, que concebe o todo como totalidade dos elementos e dos fatos mais simples; 2) a concepção organicista e organicístico-dinâmica, que formaliza o todo e afirma a predominância e a prioridade do todo sobre as partes (Schelling, Spann); 3) a concepção dialética (Heráclito, Hegel, Marx), que concebe o real como um todo estruturado que se desenvolve e se cria (KOSIK, 1976, p. 42-43, grifo nosso).
O conhecimento da realidade histórica se dá por um processo de apropriação teórica (interpretação crítica dos fatos). O conhecimento se realiza no ato de encontrar na realidade a possibilidade de transformar a totalidade concreta (concreto concreto) em totalidade abstrata (concreto pensado). Nesse processo a dificuldade é manter as características do concreto concreto no concreto pensado, não diminuindo nem degenerando seus aspectos fundantes. Segundo Kosik (1976, p. 50), a “criação da totalidade como estrutura significativa é, portanto, ao mesmo tempo, um processo no qual se cria realmente o conteúdo objetivo e o significado de todos os seus fatores e partes”. A totalidade concreta é a forma de conhecer o real, a partir de uma concepção dialético-materialista. Resumidamente, este método é [...] um processo indivisível cujos momentos são: a destruição da pseudoconcreticidade, isto é, da fetichista e aparente objetividade do fenômeno, e o conhecimento da sua autêntica objetividade; em segundo lugar, conhecimento do caráter histórico do fenômeno, no qual se manifesta de modo característico a dialética do individual e do humano em geral; 156
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e enfim o conhecimento do conteúdo objetivo e do significado do fenômeno, da sua função objetiva e do lugar histórico que ele ocupa no seio do corpo social (KOSIK, 1976, p. 52).
Para chegarmos à totalidade utilizamos a teoria; esta faz uma aproximação, porém, não nos fornece a totalidade, pelo menos não nos garante que a encontramos, só o tempo e a história nos mostrarão a verdade. Essa teoria fornece boas indicações, por exemplo, quanto há totalidade, a teoria dialética recomenda que nós prestemos atenção ao “recheio” de cada síntese, quer dizer, às contradições e mediações concretas que a síntese encerra (KONDER, 1991, p. 44). Para chegarmos ao conhecimento das partes do todo, precisamos de uma noção (síntese) ao menos incompleta sobre o todo. Esta noção incompleta nos possibilita um conhecimento parcial do todo, mas que nos aproximará do entendimento de cada parte (elemento) do todo; estaremos, assim, chegando a uma maior compreensão das partes e, por conseguinte, clareando e aprofundando nossa noção do todo, como diria Hegel, da verdade. 1.4 A contradição A contradição se expressa na realidade, pois esta é cindida pelo conflito, ou seja, pela constante mudança ou pela intenção dessa mudança. Ela é também a luta dos contrários, porta elementos de manutenção e ruptura, a tese e a antítese. Assim como nenhum corpo se conserva inerte no Universo, a sociedade também se encontra em constante movimento. A realidade é dinâmica, o real se encontra em constante mutação; por isso devemos perceber as contradições como sendo este processo de total instabilidade do ser, das relações sociais e dos fenômenos. Tudo o que há no mundo pode ser transformado, tudo muda de lugar, forma ou atitude. E quais as contradições contidas nesses movimentos? REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 144-166, jan./jun. 2011
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O homem, através do trabalho, pode modificar a si e ao mundo, tornando-se novo homem num novo mundo. Nesse processo o homem faz história (segundo Marx, n’O 18 Brumário de Luiz Bonaparte, não nas condições de sua escolha), cria e transforma a vida material. As contradições permeiam esse fazer e contribuem para que essa ação se torne conhecida e inteligível. O mundo está em constante mudança, e a contradição contribui nesse processo de criar e recriar a história. Precisamos também seguir o conselho de Diderot apud Konder (1991), para que não sejamos enganados: No suplemento à Viagem de Bougainville, publicado em 1796, Diderot aconselhava seus leitores: “Examinem todas as instituições políticas, civis e religiosas; ou muito me engano ou vocês verão nelas o gênero humano subjugado, a cada século mais submetido ao jugo de um punhado de meliantes”. E recomendava: “Desconfiem de quem quer impor a ordem” (KONDER, 1991, p. 17).
O pensamento dialético é obrigado, segundo Konder (1991), a um paciente trabalho de identificar gradualmente as contradições concretas e as mediações específicas, que são partes do tecido e que dão vida a cada totalidade. Essa dialética, para Coutinho apud Konder (1991, p. 46), [...] não pensa o todo negando as partes, nem pensa as partes abstraídas do todo. Ela pensa tanto as contradições entre as partes (a diferença entre elas: o que faz de uma obra de arte algo distinto de um panfleto político) como a união entre elas (o que leva a arte e a política a se relacionarem no seio da sociedade enquanto totalidade).
A contradição é a categoria essencial do materialismo dialético, é a lei fundamental da dialética, é a unidade de luta dos contrários. As 158
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leis da dialética, escritas por Engels, podem nos possibilitar entender melhor essa categoria da contradição em Marx: a) Lei da passagem da quantidade à qualidade (e vice-versa). As coisas mudam, mas não mudam no mesmo ritmo: [...] o processo de transformação por meio do qual elas existem passa por períodos lentos (nos quais se sucedem pequenas alterações quantitativas) e por períodos de aceleração (que precipitam alterações qualitativas, isto é, “saltos”, modificações radicais). Engels dá o exemplo da água que vai esquentando, vai esquentando, até alcançar cem graus centígrados e ferver, quando se precipita a sua passagem do estado líquido ao estado gasoso (KONDER, 1991, p. 58). b) Lei da interpenetração dos contrários. Nesta lei tudo tem a ver com tudo, [...] os diversos aspectos da realidade se entrelaçam e, em diferentes níveis, dependem uns dos outros, de modo que as coisas não podem ser compreendidas isoladamente, uma por uma, sem levarmos em conta a conexão que cada uma delas mantém com coisas diferentes (KONDER, 1991, p. 58). c) Lei da negação da negação. O movimento geral da realidade faz sentido, não é absurdo, [...] não se esgota em contradições irracionais, ininteligíveis, nem se perde na eterna repetição do conflito entre teses e antíteses, entre afirmações e negações. A afirmação engendra necessariamente a sua negação, porém a negação não prevalece como tal: tanto a afirmação como a negação são superadas e o que acaba por prevalecer é uma síntese, é a negação da negação (KONDER, 1991, p. 59).
Nesta unidade de luta dos contrários se percebe a importância da contradição, visto que esta categoria possibilita o movimento, a mudança, a superação. Se todas as coisas estivessem dadas, escritas, REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 144-166, jan./jun. 2011
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definidas e imutáveis, a vida poderia perder parte do seu sentido, visto que o futuro já estaria predestinado, e as pessoas não precisariam ou não poderiam querer ter ou ser mais do que já têm ou são. Para esta visão de imutabilidade e de solidez que alguns possuem, Marx e Engels (1999, p. 14) afirmam o seguinte: “Tudo que é sólido derrete-se no ar [...] e os homens são por fim compelidos a enfrentar de modo sensato suas condições reais de vida e suas relações com seus semelhantes”, ou seja, tanto a estrutura quanto a superestrutura podem ser alteradas, e assim são transmutadas todas as relações sociais de produção. 1.5 A mediação A categoria da mediação expressa as relações concretas existentes entre as partes de um todo. A mediação é o caminho existente, percorrido e (ou) passível de ser percorrido, para se conhecerem as correlações concretas e dialéticas entre as partes do todo estruturado. Como exemplo de mediação Marx coloca o trabalho como sendo o principal mediador entre o homem e a natureza e entre este e a própria sociedade. Assim, as mediações criadas historicamente na complexa relação homem-natureza são indicadores seguros e fecundos, do ponto de vista histórico-social, porque efetivamente constituem-se na expressão concreta do evolver do processo de enriquecimento humano, na sua dinâmica de objetivar-se no mundo e incorporar tais objetivações; na sua saga de buscar mediações cada vez menos “degradadas e bárbaras” e cada vez mais humano-igualitárias, tanto no plano do ser social quanto no plano do controle da natureza (PONTES, 1995, p. 78-79).
Em Pontes (1995) percebemos como a categoria mediação traz à tona, segundo Hegel, o “verdadeiro” como sendo um resultado: 160
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A mediação em face da totalidade, segundo o autor, é responsável pela articulação dinâmica, processual entre as partes na sua ação recíproca e o todo, considerando que cada parte se constitui em uma totalidade parcial, também complexa. Daí a justificativa da afirmação de que “a mediação é que faz com que o verdadeiro seja resultado” (Hegel, 1987:14), o que significa, ser fruto de um processo, de múltiplas passagens, de moventes articulações multilaterais e complexas (PONTES, 1995, p. 55).
O trabalho humano é uma mediação que humaniza o próprio ser humano.2 Pontes (1995, p. 78) vê as mediações como sendo “expressões históricas das relações que o homem edificou com a natureza e consequentemente das relações sociais daí decorrentes, nas várias formações sócio-humanas que a história registrou”. Todos os objetos são frutos da mediação. Percebemos em Lukács apud Pontes (1995, p. 79) que a categoria mediação possui esta dimensão ontológica: Não pode existir nem na natureza, nem na sociedade nenhum objeto que neste sentido [...] não seja mediato, não seja resultado de mediações. Deste ponto de vista a mediação é uma categoria objetiva, ontológica, que tem que estar presente em qualquer realidade, independente do sujeito [...].
Entendendo a categoria mediação, perceberemos que os fenômenos não estão isolados, as partes do todo a este pertencem justamente porque possuem uma mediação com a sua estrutura, ou então não seriam partes do todo, seriam objetos externos e sem sentido. A mediação mostra o não isolamento das partes; isto implica que sempre haverá possibilidade de superação de barreiras entre as partes, pois a
É na mediação trabalho que o homem se aproxima da natureza, transforma essa natureza e a si próprio, criando, assim, novas mediações. 2
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síntese é o resultado dessa interação; assim sendo, é o que se apresenta mais próximo da verdade. Para Pontes (1995), a mediação tem um alto poder de dinamismo e articulação entre as partes do todo, e sem as mediações o método dialético se petrifica. A mediação é [...] responsável pelas moventes relações que se operam no interior de cada complexo relativamente total e das articulações dinâmicas e contraditórias entre estas várias estruturas sócio-históricas. Enfim, a esta categoria tributa-se a possibilidade de trabalhar na perspectiva de totalidade. Sem a captação do movimento e da estrutura ontológica das mediações através da razão, o método, que é dialético, se enrijece, perdendo, por conseguinte, a própria natureza dialética (PONTES, 1995, p. 81).
O autor de Mediação e Serviço Social (PONTES, 1995) sintetiza que a apreensão da essência do todo corresponde necessariamente à captura das mediações que são o locus da dialética aparência-essência. A razão não se contenta com a identidade e a diversidade abstratas próprias da positividade do real. Busca as mediações submersas no plano fenomênico. Para superar o mundo da aparência necessário se faz negá-lo, daí a necessidade do caráter negativo da razão (PONTES, 1995, p. 82).
Como já discutimos no item 1.3 – Totalidade –, o todo é estruturado, não é caótico. Ele é formado por partes, e estas estão num constante movimento. Entre as partes existem ligações (mediações) moventes, ligações que informam o real. As essências parciais presentes nas partes, ao serem sintetizadas, fazem emergir a essência total do todo. A mediação nos eleva da percepção dos fatos (abstrato) à apreensão do movimento das partes até chegarmos ao real mediatizado (concreto pensado). 162
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Num determinado estudo, poderíamos pensar nos dados coletados como peças de um quebra-cabeça desmontado, cujo fenômeno é o que se pode ver nelas, e esta disposição não é um caos; ela é um emaranhado de peças3 que dá forma a uma figura, mas a essência ainda não está na figura que se forma ao fim da montagem do quebra-cabeça. A essência seria a substância da figura em si (que nem sempre se expressa na sua forma), influenciada por todas as contradições do processo de montagem, imersa em mediações situadas entre as peças do quebra-cabeça. Nessas mediações não está a forma final da figura, mas sim o conteúdo de possibilidades e rupturas que se poderia ter ao se querer organizar, racionalmente, uma dada situação, um momento da realidade, chegando, assim, à sua concretude.
Considerações Viver é interferir na história. A partir deste debate sobre o método podemos inferir que estar no mundo é participar da vida de forma adaptativa ou transformadora. Estar vivo nos propicia entender parte do que está à nossa volta e de alterar esta realidade da forma como nos for possível. O presente texto não esgota o debate sobre o método, nem sobre sua aplicação na práxis humana. Muitas questões que discutimos aqui podem e devem receber um maior aprofundamento por parte dos que vislumbram a construção de uma nova sociedade, para além do reino da necessidade, alcançar o reino da liberdade. Para além de comer, beber e dormir, o homem pode ser o construtor da realidade, de sua própria história.
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Peças estas que devem ser consideradas como partes do todo, já decomposto.
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Na busca da essência é preciso ir além do nível da empiria, pois, segundo Guerra (1995, p. 200), esta “análise não ultrapassa a aparência dos fenômenos, ou, como afirma Lukács, ‘no empirismo está contido um ontologismo ingênuo (...) uma valorização instintiva da realidade imediatamente dada, das coisas singulares e das relações de fácil percepção’ [...]”. É necessária a apreensão e compreensão da realidade como totalidade dialética, para não nos adequarmos ou enquadrarmos à “ordem” ou aos “novos tempos”. Esta compreensão nos faculta desvendar o real e contribui para sua transformação. A história é feita pelos homens e a simples percepção teórica do real não os transforma em agentes revolucionários, o compromisso ético-político com as classes que hoje vivem da venda de sua força de trabalho é um dos principais elementos na tomada de decisão em função de uma transformação estrutural da sociedade (ANDRADE, 2006, p. 166).
Em Gramsci (1988) encontra-se força inspiradora para a luta, a partir dele percebemos que o “pessimismo da inteligência”, na averiguação do real até então dado, precisa ser corretamente mediado pelo “otimismo da vontade”, numa busca incessante da ansiada “nova sociedade”. “Nesta, não só a produção será coletiva, mas também o será a repartição dos resultados dela” (ANDRADE, 2006, p. 160).
Referências ANDRADE, Renato Almeida de. O Enfrentamento da questão social e o terceiro setor: o Serviço Social e suas condições de trabalho nas ONGs. Vila Velha: Univila, 2006. ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2009. 164
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Marx e seu método: para além da compreensão da história da humanidade
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MARX AND HIS METHOD: BEYOND THE UNDERSTANDING OF THE HISTORY OF HUMANITY Abstract The debate about the method in Marx is not in a specific book, considering that it is intrinsic to his social theory, but diluted in all his work. We search to captivate some of these conceptions disposed in some of his works. To Marx, it is not enough to understand reality, it is necessary to change it. The method REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 144-166, jan./jun. 2011
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does not appear as an end in itself, but as a means necessary to achieve the concrete thought. With this understanding man can intervene rationally on history. The immersion in the Marxian theory propitiate us the understanding of several categories. These ones, organized in structured way, can provide us the understanding of reality and of ways for its transformation. In this text we will discuss some subject matters about the dialectics, the pseudoconcreticity, the totality, the contradiction and the mediation. The apprehension and the understanding of reality as dialectic totality facilitate us to reveal the reality and contribute to its transformation. Key words: Marx, method, history, dialectic.
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COSMOPOLITISMO E INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA Giuseppe Tosi*
Resumo O autor postulará em seu artigo a importância e os limites da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Sua fragilidade se encontra, sobretudo, no âmbito das relações internacionais. Com base nesta fragilidade o autor procurará expor duas possíveis respostas ao problema das relações entre as nações: a do realismo político (da qual fazia parte Maquiavel e outros pensadores) e a do cosmopolitismo (vinculada aos iluministas e Kant). A perspectiva cosmopolita, com suas pretensões universalistas, não obstante os limites que apresenta, é a alternativa mais promissora para o presente e o futuro das relações internacionais. Contudo defende a importância do respeito à singularidades nacionais ou regionais, o fim da dominação entre as nações, e a necessidade de se construir na América Latina, sociedades civis fortes, organizad as para participar de uma sociedade internacionais mais justa e humana. Palavra chaves: Realismo, cosmopolitismo, globalização, América Latinas.
Introdução Quando perguntaram a Norberto Bobbio qual teria sido o acontecimento mais importante do século XX, ele declarou que o evento do qual este século terrível, talvez o pior da história da humanidade, poderia ter sido salvo era a Declaração Universal dos Direitos Huma-
* Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Paraíba e Coordenador do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da mesma universidade. E-mail: pinuccio@uol.com.br.
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nos, proclamada pelas Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948 em Paris (BOBBIO, 1986; 1988). Bobbio, que não era acostumado a um fácil otimismo e não tinha ilusões sobre a história, enxergava, porém, naquele acontecimento a possibilidade de uma virada epocal da história mundial a lembrar-lhe a “profecia” de um pensador que, 200 anos antes, havia pressentido aquele momento: Immanuel Kant. Tratava-se da afirmação do que Kant chamava de Estado Republicano (e que nós hoje preferimos chamar de Estado Democrático de Direito) e de sua projeção no âmbito das relações internacionais, numa perspectiva cosmopolita. A constituição e difusão do Estado de Direito na modernidade, em que ele teve sucesso, garantiu algumas das condições mínimas para a convivência civil previstas pelos jusnaturalistas. Garantiu, como propunha Hobbes, a ordem e a segurança interna com o monopólio legítimo da força e a eliminação dos corpos intermediários e dos conflitos endêmicos que haviam marcado o longo período da Idade Média. Garantiu também, como pensavam Locke e os liberais, um conjunto de direitos civis e políticos, embora somente para uma minoria de cidadãos. O socialismo, agindo contra o liberalismo, conseguiu ampliar os direitos civis e políticos e criar um novo conjunto de direitos econômicos, sociais e culturais. Por isso, o Estado de Direito, apesar de todos os defeitos e limitações, é a herança política mais preciosa que o Ocidente deixou para o resto do mundo, a partir das lições retiradas da sua secular experiência de guerra e de violência (COSTA; ZOLO, 2006). Porém, o Estado de Direito não logrou no âmbito das relações internacionais o mesmo sucesso conseguido no âmbito interno: enquanto internamente o soberano conseguia impor o monopólio legítimo da força, destruindo, assimilando e homogeneizando os antigos corpos intermediários feudais e criando assim as condições para uma ordem interna, do ponto de vista das relações internacionais, durante um longo período da história moderna e contemporânea, o que prevaleceu foi o estado de natureza entre as nações. 168
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Diante desta questão crucial do ponto de vista da filosofia política e da filosofia do direito, temos duas grande respostas ou propostas para o direito internacional, que chamaremos de realistas e cosmopolitistas.
1 Realismo e cosmopolitismo O realismo político não era desconhecido dos antigos: o verdadeiro fundador desta maneira de pensar a política foi o grande historiador ateniense Tucídides em A guerra do Peloponeso, e o contraste entre idealistas e realistas já estava presente nos debates travados por Sócrates com os sofistas Trasímaco e Cállicles, que Platão traçou de maneira magistral no Górgias e na República (PORTINARO, 1999). Porém, é a partir de Maquiavel que o realismo assume as suas características e feições principais: uma antropologia pessimista em relação à natureza humana, questionando-lhe a suposta bondade; uma crítica às teorias utópicas que pretendem apresentar “principados e repúblicas nunca vistos nem conhecidos”; um papel relevante e positivo (e de qualquer maneira irrenunciável) que assume a força e o conflito nas relações entre os indivíduos e entre os Estados, e a centralidade dos Estados soberanos como principais, senão únicos, titulares de direito público internacional. A tradição realista, desde Maquiavel até Max Weber e Carl Schmitt, passando por Hobbes e Hegel, pensa a política internacional em termos de equilíbrio de relações de força e de hegemonia entre Estados soberanos, e é crítica e céptica com relação aos projetos filosóficos, como o de Kant, que imaginam uma república universal ou um governo mundial regido por um direito superior ao direito estatal, um direito de tipo cosmopolita (SCHMITT, 1991; ZOLO, 1995; 2000; 2002, p. 47-57; 2005). A tradição cosmopolita remonta aos estoicos, mas encontra o seu grande representante no Iluminismo, especialmente em Kant. Para o REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 167-189, jan./jun. 2011
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idealismo transcendental kantiano, a política pertence ao âmbito das “ideias” ou “ideais” de razão; ela se ocupa das condições de possibilidade da convivência humana, apontando não simplesmente para “o que é”, mas para a forma como tais relações “deveriam ser”: ou seja, para um fim. Esse telos é, para Kant, no âmbito do direito interno, a criação do Estado Civil Republicano, e no âmbito do direito externo, a realização do direito cosmopolita como garantia da paz perpétua entre as nações (TERRA, 1995; ROHDEN, 1997). O raciocínio cosmopolita encontra o seu ponto de força no que se costuma chamar de domestic analogy. Partindo do pressuposto hobbesiano do estado de natureza, Kant detecta um vazio jurídico nas relações entre as nações que se comportam entre si como se continuassem num permanente estado de guerra, interrompido somente por períodos de trégua, mas não de verdadeira paz. Este vazio jurídico deve ser preenchido com um novo tipo de direito, superior ao direito público externo, que Kant chama de jus cosmopoliticum: um direito supranacional segundo o qual não somente os Estados, mas também os indivíduos seriam sujeitos de direito internacional no âmbito de uma instituição política mundial (KANT, 1993). O “projeto filosófico” de Kant em À Paz perpétua propõe uma Federação Mundial de Estados Nacionais livremente constituída, regida pelo direito cosmopolita (KANT, 1986; 1990). No século XX as teorias kantianas encontraram um grande número de seguidores. Na filosofia política e do direito, o “globalismo jurídico” (ZOLO, 1998, p. 133-148) é hoje uma corrente da teoria do direito e da política institucional em larga medida hegemônica, e numerosos filósofos, políticos, juristas, moralistas e teólogos aderem a uma visão cosmopolita das relações internacionais; pensamos no maior filósofo do direito do século XX, Hans Kelsen (1990), em Norberto Bobbio (1995), em Eric Weil (1990, IV cap.), em Jürgen Habermas (2002; 2006), em John Rawls (2002; 2003), em Hans Küng (1992; 1999) e em Luigi Ferrajoli (2006; 2007), entre outros. 170
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2 O projeto cosmopolita Para que esse projeto não seja uma mera ilusão, mas corresponda a uma tendência real da sociedade mundial nesta época de globalização, é preciso que se realizem pelo menos quatro condições fundamentais: a) uma integração econômica e social mundial com fluxo de mercadorias e de pessoas e informações sempre mais estreita; b) uma sociedade civil global; c) instituições jurídicas e políticas globais; d) um sistema de valores ético-políticos compartilhados tendencialmente universais. A tese que defenderemos neste ensaio é a de que a maioria dessas condições está se dando na atualidade, ainda que de forma desigual, e que a visão cosmopolita constitui a alternativa mais promissora para o presente e o futuro das relações internacionais no mundo globalizado. 2.1 O mercado mundial e a economia-mundo A primeira consideração óbvia é o reconhecimento de que se aprofundam sempre mais os laços que estreitam o mundo: aumentam todos os dias as redes econômicas, as comunicações, o fluxo comercial e financeiro, as migrações dos povos e a difusão das informações e dos modelos de comportamento ocidentais no mundo. Este processo começou nos séculos XV e XVI, com os grandes descobrimentos geográficos, que proporcionaram as condições para a criação de uma história mundial. No século XX, com as duas guerras mundiais, a história da Europa se converte efetivamente na história do mundo (weltgeschichte), e na segunda metade do século, sobretudo após o fim do comunismo e a aceleração dos processos de integração mundial, temos uma economia mundial sempre mais inter-relacionada e interdependente (ZOLO, 2004; HIRST; THOMPSON, 1998; IANNI, 1997). Outro aspecto a ser considerado é que a aceleração do processo de globalização provocou um aumento das situações de risco em âmbito mundial. Vivemos, como afirma Ulrich Beck, numa socieREDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 167-189, jan./jun. 2011
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dade de risco (risikogesellschaf) (BECK, 2001). Há o risco de uma catástrofe ecológica que pode subverter o equilíbrio natural do planeta; continua sempre ameaçador o risco de uma destruição atômica da civilização (CARRETTO, 2005); a instabilidade dos mercados financeiros pode provocar um colapso econômico inesperado com efeitos dominó sobre a economia mundial, como demonstrou a recente e ainda não superada crise financeira e econômica desencadeada em 2008; há o risco de terrorismo, nome genérico e ambíguo para indicar um sistema complexo em que se dão várias formas de violência política em âmbito global (entre as quais deveríamos também incluir o terrorismo promovido pelos Estados). E poderíamos enumerar uma série de riscos que têm em comum o fato de serem sempre fenômenos globais, como as “máfias internacionais” e o crime organizado em escala planetária. Diante deste quadro, é evidente a insuficiência dos Estados nacionais para encontrar soluções a esses problemas, que passam “por cima” de suas fronteiras. O Estado moderno encontrava a sua razão de ser na delimitação clara de um território sobre o qual se propunha estabelecer seu domínio, com fronteiras bem precisas, que ele podia controlar e administrar. Com a crise e, em alguns casos, com a abolição das fronteiras, devido aos fenômenos resultantes da globalização, entra em crise e em declínio também o Estado nacional, até há pouco tempo todo poderoso.1
1 De fato, já existem várias organizações internacionais e supranacionais que decidem os principais assuntos da pauta, tanto governamentais (OIG), como o FMI e o Banco Mundial ou a OMC, quanto não governamentais (OING) com fins lucrativos, como as empresas multinacionais. Tais instituições, porém, não atuam numa lógica “cosmopolita”, mas de mercado e de lucro, que não diminui as desigualdades econômicas e sociais provocadas pela globalização.
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2.2 A sociedade civil global (Global civil society) Outra condição indispensável para a realização do projeto cosmopolita é a criação de uma sociedade civil global, composta por uma rede organizada verticalmente (porém não hierarquicamente) desde o bairro até as Nações Unidas e horizontalmente numa presença territorial capilar dentro das nações e entre as nações, num processo que é, ao mesmo tempo, local e global, numa perspectiva de “globalização alternativa” dos direitos, de denúncia dos malefícios da globalização e de procura de alternativas teóricas e práticas (CAFFARENA, 2001). Esse conceito somente recentemente passou a fazer parte das ciências sociais, sobretudo pela influência dos movimentos não governamentais no-global, e começa a ser estudado e tematizado no meio acadêmico (GLOBAL CIVIL SOCIETY, 2001; 2002; 2003; 2004). Sua expressão mais evidente são os fóruns sociais mundiais, iniciados em Porto Alegre em 2000, que deram origem a numerosos fóruns regionais em várias partes do mundo. 2.3 As instituições políticas e jurídicas globais A constituição dessa sociedade civil global é de fundamental importância para o projeto cosmopolita, porém não consegue dar conta da questão sem a presença de instituições políticas de globalização alternativa. É sempre mais consensual a consideração de que os problemas suscitados pela globalização exigem uma resposta global, que não pode mais ser encontrada nos estreitos limites dos Estados nacionais, mas exige instituições globais que possam suprir as deficiências dos Estados nacionais. Este fato não significa o fim dos Estados nacionais, que ainda têm um papel importante a desempenhar pela sua proximidade com o cidadão, mas indica o predomínio da política internacional sobre a interna, inspirado, quanto menos, no princípio da subsidiariedade (FERRARESE, 2000). REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 167-189, jan./jun. 2011
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2.4 Os direitos humanos como ética tendencialmente universal Finalmente, o processo constante de integração somente poderá ter êxito se se conseguir estabelecer um diálogo entre as civilizações, evitando assim o choque entre elas (HUNGTINGTON, 1997). Para tanto, é preciso, no respeito das tradições e das identidades de cada cultura, encontrar um sistema de valores mínimos compartilhados, um overlapping consensus, como diria Rawls (2002), como premissa para uma convivência pacífica na Terra. Nesta perspectiva, os direitos humanos constituem, se não propriamente um novo ethos mundial, pelo menos um progresso da “autoconsciência da humanidade”, e podem converter-se no ponto de interseção e de consenso (um verdadeiro consensum gentium) entre diversas doutrinas filosóficas, crenças religiosas e costumes culturais. Entendidos em todas as suas dimensões, os direitos humanos podem constituir “o conteúdo material” de uma ética pública, ou, pelo menos, o terreno de discussão essencial para sua constituição (CASSESE, 1994).
3 Entre cosmopolitismo e realismo: poliarquia ou regionalização É difícil dizer qual teoria estaria interpretando melhor hoje a situação das relações internacionais. Segundo Bobbio, a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU de 1948, seria levada a cabo a esperança kantiana de um progresso jurídico da humanidade, cujo signum prognosticum e rememorativum seria a existência deste conjunto de direitos universais que tornariam realidade o ponto de vista cosmopolita (weltbürgerlich), preconizado por Kant (BOBBIO, 1992). Segundo Habermas, estariam sendo criadas as condições para uma Weltinnenpolitik (política interna do mundo) (HABERMAS, 2006). 174
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Mas as pretensões universalistas dos cosmopolitistas estão presentes mais nos documentos e nas declarações do que na realidade. As sistemáticas e maciças violações dos direitos humanos aumentam com a mesma velocidade dos atos de assinatura de tratados e são tão universais quanto as declarações que os proclamam. Pareceria assim que os direitos humanos nada mais seriam do que mera retórica vazia ou mera justificação ideológica para os jogos de poder das grandes potências. A própria incapacidade da ONU de impedir a invasão e ocupação do Iraque por parte dos Estados Unidos, feita à revelia das normas do direito internacional e especificamente da Carta das Nações Unidas, e a divisão provocada na própria União Europeia (EU) sobre a guerra são exemplos emblemáticos de impasse entre as duas grandes e contrastantes concepções das relações internacionais que convivem nos dias atuais. De fato, seria ingênuo afirmar que as condições para a realização do projeto cosmopolita estejam se dando de forma satisfatória no panorama político internacional, tampouco que o cosmopolitismo seja a ideologia dominante nas relações internacionais e nas institucionais políticas globais supranacionais. Aliás, tudo indica que o papel dos Estados nacionais como sujeitos do direito internacional não diminuiu e que a “dialética” entre os povos, ou seja, a guerra, continua a prevalecer no direito internacional: a tentativa de impor uma ordem unilateral por parte dos Estados Unidos, após a vitória no que eles consideram a III guerra mundial, é um exemplo claro desta lógica hobbesiana que ainda governa o mundo. Ao mesmo tempo, porém, é possível constatar que a pretensão dos Estados Unidos de impor uma pax americana nos moldes da pax romana se encontra também mais nos documentos e nos desejos dos “neo” e “theo” conservadores da administração dos Estados Unidos do que na realidade efetiva das coisas. O mundo é por demais complexo e multilateral para que uma potência, porquanto superior e poderosa econômica e militarmente, possa controlá-lo sozinha, REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 167-189, jan./jun. 2011
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impondo uma ordem unilateral (NEES, 2002). A dificuldade dos Estados Unidos e de seus aliados em manter o controle de dois países pobres e prostrados por décadas de guerras como o Afeganistão e o Iraque é um sinal da debilidade desse projeto imperial hegemônico, ao ponto de alguns analistas já falarem em “declínio do Império Americano”, ou de “crise terminal” da hegemonia norte-americana (WALLERSTEIN, 2003). Se uma visão cosmopolita tende a confundir os desejos com a realidade, uma visão meramente “realista” das relações internacionais também não consegue dar conta de todos os fenômenos complexos que a globalização tem provocado. De fato, as duas lógicas – “cosmopolitas” e “realistas” – coexistem no cenário internacional sem que nenhuma consiga prevalecer sobre a outra. Se eliminarmos as posições mais extremas do espectro político, o cosmopolitismo puro e o imperialismo puro, podemos encontrar mais pontos de contato entre o cosmopolitismo e o realismo do que se possa imaginar. Talvez os conceitos de “caos” (ARRIGHI; SILVER, 2001), de “anarquia ordenada” ou de “poliarquia” poderiam ser mais adequados para descrever a situação atual das relações internacionais, nas quais se dá uma disputa entre vários centros de poderes difusos que ninguém pode controlar totalmente. Neste contexto muito complexo, adquirem uma crescente importância os blocos regionais entre os Estados para permitir uma melhor participação nos processos de globalização. Na verdade, o “projeto filosófico” kantiano da paz perpétua se aplica mais à Europa Unida do que propriamente ao sistema das Nações Unidas. Em muitos aspectos, estas se assemelham mais a uma nova Santa Aliança das potências que controlam o Conselho de Segurança do que propriamente à Federação de Estados livres imaginada por Kant (ZOLO, 1998). Poderíamos até afirmar que a União Europeia é a realização quase literal do sonho kantiano referido em À paz perpétua. Com efeito, os três “artigos definitivos para o estabelecimento da paz perpétua entre as nações” parecem ter servido de guia para a formação da União Eu176
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ropeia. O primeiro artigo define que cada Estado tem que se dar uma constituição republicana, o que chamaríamos hoje de democrática: de fato para poder participar da EU é preciso respeitar e praticar os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito (o que cria problemas para a entrada de países como a Turquia). O segundo artigo prega a necessidade de uma Federação de Estados Republicanos, criada por livre e espontânea vontade dos Estados soberanos, sem a existência de um único poder estatal superior e dominante; é o que aconteceu com a criação e a expansão dos Estados da União Europeia através de uma adesão feita pelos governos e referendada pela população. O terceiro artigo prega a necessidade de as relações entre os Estados da Federação serem reguladas por um direito cosmopolita; é o que está acontecendo paulatinamente, sobretudo a partir da criação de uma Constituição europeia que limita os poderes dos Estados soberanos (apesar dos impasses atuais, que representam um momento de redefinição, mas não de falimento do projeto de constituição europeia).2 Apesar dos impasses e das dificuldades, este processo de integração tem garantido o maior período de paz e estabilidade social e política da Europa em toda a sua história milenar, e poderá se consolidar na medida em que a União Europeia consiga elaborar uma verdadeira política exterior unificada e criar uma força militar unificada, que se somem à política econômica e monetária: a recente aprovação por unanimidade (2009) do Tratado de Lisboa vai nesta direção. A criação de blocos regionais inaugura um processo de progressiva delegação de poderes por parte dos Estados a organismos “inter” e “supra” nacionais, através do princípio da subsidiariedade. O pressuposto teórico desse processo pode encontrar-se, uma vez mais, na intuição kantiana, ao concordar que as consequências desastrosas das
Ver: AA.VV. Kant e l’idea di Europa: atti del Convegno Internazionale di Studi. Genova 6-8 maggio 2004, Genova: Il Melangolo, 2005. 2
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guerras e o aumento dos riscos em âmbito planetário (que podem por em perigo a própria sobrevivência da espécie humana) constituem um poderoso argumento a favor da cooperação entre as nações, uma vez que, como afirmou o filósofo alemão, “a terra é redonda”, e os homens têm que conviver necessariamente uns com os outros (KANT, 1993). Se a integração não for movida pelo desejo da paz, pelo menos o seja pelo temor da guerra e da catástrofe global.
4 Globalização e integração latino-americana É com esse olhar que queremos terminar este ensaio, investigando a situação atual da América Latina, especificamente da América do Sul, no processo de globalização, à luz da perspectiva cosmopolita. Neste sentido, parece-nos importante ressaltar que estamos vivendo um momento positivo para o subcontinente do ponto de vista econômico, social, político e cultural. Um primeiro aspecto a ser considerado é a superação da época sombria das ditaduras militares. A América Latina pagou um preço muito alto pela guerra fria durante o trágico período das ditaduras militares, que, entre outros efeitos funestos, bloquearam o processo “fisiológico” de desenvolvimento democrático das sociedades latino-americanas do ponto de vista econômico, social e político. Afortunadamente, os regimes autoritários e ditatoriais constituem uma página virada na história recente do subcontinente, e a influência dos militares na vida política desses países é cada vez menor – com algumas lamentáveis exceções, como o caso da Colômbia e, mais recentemente, de Honduras.3 Paradoxalmente, podemos afirmar hoje que são os Estados Unidos o país do continente americano onde o complexo industrial-militar e a ideologia militarista condicionam a política, mais do que nas sociedades latino-americanas. 3
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Esse fenômeno deve ser visto num contexto mais amplo, de progressiva diminuição da violência política no subcontinente. Hoje na América Latina estão ausentes as quatro principais formas de violência política explícita: a guerra entre os Estados, a guerra civil interna aos Estados, o terrorismo e a guerrilha revolucionária. Não se registram casos de guerra entre nações ou de guerra civil propriamente dita; tampouco existem focos de guerrilha como resposta “de esquerda” às ditaduras nem grupos terroristas atuantes, com exceção dos que atuam na Colômbia, onde é muito difícil distinguir guerrilha de narcotráfico e de terrorismo. Devemos também considerar que, apesar das fragilidades, nos últimos 20/25 anos os países da América do Sul continuaram vivendo sob regimes democráticos. Neste sentido, após o declínio da onda neoliberal, algo de realmente novo e promissor está acontecendo no panorama político latino-americano, com a constituição de governos democráticos, na sua maioria expressiva, de esquerda e de centro-esquerda, que constituem uma tendência hegemônica do atual cenário político latino-americano: algo inédito na história do subcontintente. É evidente que ainda persistem problemas estruturais crônicos e seculares: as graves e profundas desigualdades sociais não desaparecem de um dia para outro; os grupos criminais organizados se fortalecem cada dia mais com a expansão do tráfico de drogas; à diminuição das formas de violência política se contrapõe o aumento espantoso da violência do crime organizado, que se torna um fenômeno capilar, cotidiano e difuso em forte crescimento; a violação dos direitos humanos por parte dos agentes do Estado continua através da prática da tortura, herança dos períodos autoritários; persistem elementos de fragilidade nos planos econômicos provocados pela enorme dívida interna e internacional. Todos esses fenômenos indicam uma permanente e preocupante fragilidade do Estado de Direito na América Latina; e a tentação de soluções autoritárias e antidemocráticas, tanto de direita como de esquerda, é sempre uma possibilidade e uma ameaça real ao processo de consolidação da democracia. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 167-189, jan./jun. 2011
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Diante da violência sempre crescente, a população pode optar por menos liberdade em troca de mais segurança; diante das desigualdades sociais, o “povo”, guiado por líderes populistas, pode achar que a democracia representativa é um obstáculo para a realização da democracia substancial, e deve ser superada por formas radicais de democracia participativa, direta ou plebiscitária. Neste contexto, assiste-se ao retorno de uma experiência política que parecia superada historicamente na América Latina: o populismo. Fenômeno de difícil definição e polimorfo, o populismo faz parte da tradição política latino-americana, pelo menos a partir dos anos 1930. Ele pode ser definido, de modo muito grosseiro, como uma forma política em que a figura do líder carismático se impõe na sua relação direta com as massas populares, dispensando a mediação (ou tendo uma fraca mediação) das instituições típicas da democracia representativa. Para utilizar os termos da distinção clássica de Weber, é o prevalecer do poder carismático sobre o poder burocrático, típico das modernas sociedades desenvolvidas (LACLAU, 2005). O populismo pode ter, e geralmente tem, aspectos autoritários, mas não é necessariamente a antítese da democracia, como afirmam os seus detratores, nem a forma mais alta de democracia, como afirmam os seus defensores. Pode ser visto como uma maneira de incluir social e politicamente as massas populares no regime democrático quando as instituições da democracia representativa não conseguem realizar esta integração e tendem a ser exclusivistas e elitistas, como aconteceu na história passada e recente da América Latina. O populismo, segundo uma feliz definição, é o “espelho em que a democracia pode contemplar a si mesma, mostrando todas as suas imperfeições”, mas que é parte do processo de democratização, mesmo quando reflete “a cara feia do povo” que as elites sempre quiseram esconder e excluir (PANIZZA, 2009, p. 49). Mas isso não vale somente para a América Latina. Desde a antiga Grécia, sempre foi difícil distinguir claramente e demarcar os limites 180
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entre democracia e demagogia. Ao final, o princípio moderno de todo poder democrático (representativo, direto, participativo ou da competição entre elites) encontra o seu fundamento na “soberania popular” e na vontade da maioria, e seus limites, nos direitos das minorias. Achar um equilíbrio entre esses dois pilares do Estado de Direito, de tal forma que a democracia não se torne uma ditadura da maioria, é algo que sempre foi difícil na história das democracias, não somente latino-americanas (BOBBIO, 1988). Não é por acaso que o populismo está reaparecendo como categoria analítica para interpretar não somente as experiências latino-americanas, mas também europeias e norte-americanas, sobretudo a partir dos trabalhos de Ernesto Laclau e Chantal Mouffle (PANIZZA, 2009).4 Ao final, apesar das diferentes formas e declinações da democracia na América Latina e das suas fragilidades, o fato importante é que começa a ser enfrentado o grande desafio histórico das sociedades latino-americanas: conjugar a democracia política “formal” com a democracia social “substancial”, permitindo a inclusão econômica, política e social de grandes massas da população secularmente excluídas da riqueza e do poder. O momento é oportuno para conciliar o que sempre foi separado na história do subcontinente: os direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais (CARVALHO, 2001). As ditaduras e os regimes autoritários “outorgaram” alguns direitos sociais, mas à custa da repressão dos direitos civis, e os regimes “liberais” garantiram algumas liberdades civis e políticas em detrimento dos direitos sociais, sobretudo no período da onda neoliberal.
4 Além dos numerosos exemplos de políticas populistas nos países ocidentais apresentados e analisados, presentes no livro organizado por Francisco Panizza (2009), podemos citar Umberto Eco, que, no seu livro A passo de caranguejo, definiu o governo do primeiro ministro italiano Silvio Berlusconi como “populismo mediático”, alertando para o fato de que não se trataria somente de um fenômeno limitado à política italiana, mas de um modelo que pode encontrar seguidores em outros países e circunstâncias (ECO, 2006).
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Este processo de conciliação histórica entre liberdade e igualdade passa necessariamente pelo fortalecimento do Estado, que tradicionalmente na América Latina foi “ocupado e privatizado” pela classe dominante, que o utilizava para seus fins particulares. Fortalecer o Estado significa, portanto, “desprivatizá-lo”, tornando-o um agente público a serviço do interesse coletivo; mas não somente isso. É preciso também uma presença do Estado na esfera econômica em sentido amplo como fator de redistribuirão da renda, da terra e da riqueza produzida em geral, que sempre esteve nas mãos das classes dominantes. Os direitos econômicos e sociais constituem a grande dívida de nossas sociedades, que devem ser resgatadas através dos mecanismos de redistribuição, desde um mais justo sistema fiscal até a garantia de uma renda mínima de cidadania para os mais necessitados. De certa forma, esses direitos possuem uma prioridade ontológica, uma vez que sem eles os cidadãos não podem exercer plenamente os seus direitos civis e políticos. Porém, não podemos olvidar a necessidade de uma forte intervenção do Estado para a garantia dos direitos civis e políticos, o que passa necessariamente pela retomada do monopólio da força legítima por parte do Estado para garantir o direito fundamental ao mesmo tempo individual e social, que é o direito à vida em todas as suas dimensões. Outra característica tradicional das nossas sociedades é a ausência de una sociedade civil forte e organizada para se contrapor dialeticamente ao Estado. Neste sentido, devemos reconhecer que a sociedade latino-americana fez grandes passos nesta direção, sobretudo a partir da luta contra as ditaduras militares, período em que se forjaram, através da luta pela redemocratização, as organizações não governamentais de defesa dos direitos humanos. Hoje podemos dizer que existe uma sociedade civil sempre mais forte e presente de maneira capilar, articulada em âmbito nacional e internacional, que vincula movimentos sociais de resistência e que constitui um elemento indispensável para o estabelecimento de um efetivo – e não somente retórico – Estado de direito na região. 182
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Um outro grande desafio se coloca no plano internacional. A América Latina sempre teve um déficit de instituições internacionais fortes e significativas. Isto se deve a vários fatores, entre eles, talvez, um certo nacionalismo exasperado dos países latino-americanos e a interferência da potência dominante, os Estados Unidos, que aplicaram com competência a política do divide et impera. Mas, nas última década, está aparecendo algo novo na cena política latino-americana, ou seja, o processo de integração regional, que é, ao mesmo tempo, físico, geográfico, econômico, político, social e cultural. Do ponto de vista econômico, está em movimento a ampliação do Mercosul, com a entrada da Venezuela, e, do ponto de vista político, a constituição da União das Nações Sul-americanas (Unasul).5 É um processo que pode oferecer uma saída para os grandes problemas regionais. Depois do fim da guerra fria, esta é a grande novidade geopolítica sul-americana: estão se dando, de maneira real, as condições objetivas e a vontade política para a realização do sonho bolivariano da “Pátria Grande”, que durante séculos havia ficado no plano meramente retórico. É um processo longo e cheio de dificuldades, que depende ainda de algumas contingências históricas e que não é irreversível; mas é um projeto que assume um valor estratégico crucial para a inserção da América do Sul no processo de globalização. O fracasso das políticas
Presidentes e representantes dos 12 países da América do Sul assinaram em Brasília, no dia 23 de maio de 2008, o tratado de criação da União das Nações Sul-americanas, a Unasul. A Unasul reúne os 12 países da América do Sul e visa aprofundar a integração da região. Por suas riquezas naturais, a América do Sul é importante internacionalmente como um dos principais centros produtores de energia e de alimentos do planeta. A iniciativa da criação de um órgão nos moldes da Unasul foi apresentada, oficialmente, numa reunião regional em 2004, em Cuzco, no Peru. O projeto recebeu o nome de Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa), mas o nome foi modificado para Unasul durante a Primeira Reunião Energética da América do Sul, realizada no ano de 2007 na Venezuela. 5
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neoliberais e o surgimento de governos de centro-esquerda em países como Argentina, Venezuela, Brasil, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Equador e Peru constitui hoje um eixo político que pode dar sustentação real a este processo. Ao final, os países da América Latina possuem entre si mais semelhanças históricas, econômicas, sociais e culturais que os da União Europeia, o que não deixa de ser um fator facilitador para a integração regional. O processo é e continuará sendo complexo e longo, com avanços e recuos, como acontece também com a União Europeia, mas está aberto o caminho a ser seguido para as próximas décadas. De alguma forma estaria assim sendo realizado o sonho bolivariano, mas também kantiano, de uma Federação de Estados Republicanos governada por um direito cosmopolita que garanta uma paz estável duradoura. O roteiro a ser seguido está claramente definido pelos três artigos de À paz perpétua: a constituição de regimes democráticos (por isso a importância da “cláusula democrática” para a admissão dos países no bloco); adesão livre à Federação de Estados, com a criação de instituições econômicas e políticas comuns, e adoção do direito cosmopolita, ou seja, de uma carta de princípios comuns, que garanta os fundamentos jurídicos e políticos da União. Para o sucesso deste projeto é fundamental – como dizia Kant referindo-se ao povo francês de sua época – que exista um povo “forte e ilustrado” capaz de se tornar o centro dessa Federação; posição que cabe, por óbvios motivos, ao Brasil, como líder natural e aglutinador desse projeto. Mas para isso é preciso também que o Brasil deixe de virar as costas ao resto da América Latina e inicie uma aproximação cultural e uma integração social, e não somente econômica e política, com os outros países do continente.
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Concluindo O processo de globalização das relações internacionais é algo irreversível e pode ser enfrentado de várias maneiras. Uma delas é confiar a tarefa de sua regulamentação à mão invisível do mercado e, quando esta se mostrar insuficiente, entregá-las à luva de ferro da intervenção armada dos exércitos das nações mais ricas e poderosas para defender seus “interesses vitais” em qualquer parte do mundo, numa lógica de potência e de choque de interesses, portadora de conflitos e guerras consideradas, em última instância, como inevitáveis e até benéficas para “o progresso” da humanidade. Este processo pode levar a humanidade à paz perpétua que aparecia ironicamente na insígnia da taberna descrita por Kant e que inspirou o título de seu tratado: a paz dos cemitérios. A saída é promover um rede alternativa de instituições internacionais e supranacionais – tanto da esfera estatal como da sociedade civil – com força suficiente para enfrentar os problemas que o mercado cria e que os Estados não podem resolver, permitindo assim melhor distribuição da riqueza em âmbito internacional e retirando as raízes mais profundas da violência e da guerra. Nesta perspectiva, os Estados nacionais não desapareceriam, continuariam tendo um papel próprio na garantia dos direitos e das identidades locais de seus cidadãos, mas delegariam a organismos supranacionais, com base no princípio de subsidiariedade, a busca de soluções dos conflitos e dos problemas que superem suas fronteiras, sobre a base do reconhecimento de uma cidadania não somente nacional, mas cosmopolita. Se o Estado de Direito, apesar de todas as suas limitações, conseguiu garantir internamente a ordem e os direitos fundamentais sem recorrer à violência, ou recorrendo à violência do uso legítimo da força, a grande tarefa do século XXI será a de realização de um Estado de Direito Mundial que supere a anarquia e o estado de natureza entre os Estados e promova uma governance política dos processos de globalização. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 167-189, jan./jun. 2011
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Sob o ponto de vista da filosofia, esta parece ser a única proposta racional, quase uma “exigência” da razão numa época de globalização, um verdadeiro “imperativo categórico” de um pensamento que queira estar à altura de sua época e de seus problemas, sem renunciar a uma justificação universalista de seus fundamentos. Não sabemos, porém, se a razão prevalecerá na história, não temos mais a crença religiosa na Providência nem a confiança iluminista de um fim “recôndito da natureza”, ou a certeza historicista de que “a Razão governa a história”. Talvez seja necessário uma catástrofe: uma grave crise do sistema financeiro global, um colapso ecológico, um atentado terrorista “atômico”, ou algo parecido, para que a humanidade possa tomar o caminho que a razão lhe indica. Enquanto isso, nossa tarefa é continuar lutando com todas as nossas forças para que os princípios de uma “razoável” (senão próprio racional) convivência humana possam prevalecer. Neste sentido, a verdadeira distinção não está entre os realistas e os cosmopolitistas, mas entre aqueles que defendem o status quo, as injustiças e desigualdades criadas pelo processo de globalização, e os que propõem uma sociedade internacional mais equânime e justa para o maior número de pessoas e povos.
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COSMOPOLITISM AND SOUTH AMERICAN INTEGRATION Abstract The author will postulate in his article the importance and the limits of the Universal Declaration of Human Rights. Its fragility is found, especially, in the ambit of the international affairs. Based on this fragility, the author will search to show two possible answers to the problem of the relations among nations: the one of the political realism (which Maquiavel and other thinkers took part of) and the one of the cosmopolitism (linked to the illuminists and Kant). The cosmopolitan perspective, with its universalist pretentions, despite the limits that it presents, is the most promising alternative for the present and the future of the international affairs. However, it defends the importance of respect to the national and regional singularities, the end of the domination among nations, and the necessity to build in Latin America, strong civil societies, organized to participate of a fairer and human international society. Key words: Realism, cosmopolitism, globalization, Latin America REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 167-189, jan./jun. 2011
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A CONTRIBUIÇÃO DA FILOSOFIA DA RELIGIÃO E DO PENSAMENTO FRACO DE GIANNI VATTIMO NA EPISTEMOLOGIA DO ENSINO RELIGIOSO Jorge Luis Vargas dos Santos*
Resumo A Filosofia da Religião, enquanto disciplina, contribui significativamente com a epistemologia do Ensino Religioso (ER). Ao romper com o exclusivismo e com o inclusivismo, assegura o pluralismo religioso, salvaguarda o estudo dos fenômenos religiosos presentes nas diversas culturas da humanidade e colabora com a emancipação do ER na perspectiva das Ciências das Religiões. Já o pensamento fraco, tal como é entendido por Vattimo, ao recusar a concepção metafísica objetivista, estável e estrutural do ser e da religião, fundamenta que o mundo pós-metafísico pluralista e democrático no qual vivemos não mais se deixa interpretar por um pensamento que deseja unificá-lo a qualquer custo em nome de uma verdade definitiva. Sua reflexão sugere à filosofia e ao ER a não mais buscar encontrar a ordem objetiva do mundo, uma verdade absoluta, mas harmonizar a via hermenêutica com a realidade. Pretendemos neste trabalho pensar a contribuição da Filosofia da Religião e do pensamento fraco na epistemologia do ER. Palavras-chave: Filosofia da Religião, epistemologia, ensino religioso, pensamento fraco.
Introdução O que se pretende com este estudo é demonstrar como a Filosofia da Religião e o pensamento fraco1 podem contribuir na epistemologia do * Graduado em Filosofia pela Faculdade Salesiana de Vitória, mestrando em Ciência da Religião pela Faculdade Unida de Vitória – FUV. 1 Por pensamento fraco Vattimo entende o discurso sobre a realidade, de uma fala unívoca, que, fundada sobre a metafísica, pode reclamar extensão e profundidade universais a uma forma fraca de “experimentar” a realidade, na qual história e cultura situam todo discurso, impedindo-o de qualquer pretensão de falar para além do próprio horizonte.
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A contribuição da Filosofia da Religião e do pensamento fraco de Gianni Vattimo na epistemologia do ensino religioso
Ensino Religioso. Ou seja, na elaboração de um conhecimento que em si e por si salvaguarde o Ensino Religioso nas escolas públicas e nas escolas privadas na perspectiva das Ciências das Religiões, em busca de uma disciplina autônoma e ético-crítica. A relevância deste estudo deve-se ao próprio horizonte histórico que nos situamos. O ER na história da educação está contemplado em pelo menos três tendências predominantes: o catequético, o teológico e o das Ciências das Religiões. Pensar no estudo das religiões na perspectiva das Ciências das Religiões implica erigir fundamentos claros e objetivos que sustentem o ER enquanto um estudo do fenômeno religioso em pé de igualdade com as demais áreas de conhecimento. Outrora vivemos num tempo de mudanças. A pós-modernidade, caracterizada pelo fim da metafísica, pela desaparição de dogmas, pela fragmentação das cosmovisões e pela pluralidade ideológica, cultural e religiosa, entre outros fenômenos, exige de nós um pensamento sistêmico que leve em consideração a pluralidade. A filosofia grega nos deixou alguns legados cardeais no processo de conhecimento: a busca insaciável da sabedoria, que a priori se dá através da admiração, do assombro e do espanto; a dúvida; as indagações básicas e dialéticas da atitude filosófica: o que é? por que é? como é? etc. Enquanto disciplina, a Filosofia da Religião, fundamentada em tais legados, estuda as religiões de um ponto de vista abrangente. Sua epistemologia nos ajuda na superação do exclusivismo e do inclusivismo religioso em busca do pluralismo religioso. O “pensamento fraco” do filósofo contemporâneo Gianni Vattimo, que ratifica não ser mais possível sustentar uma filosofia absoluta acerca do homem sobre Deus, sobre a religião etc. e a própria Filosofia da Religião nos ajudarão a sistematizar uma epistemologia do ER fundamentada nas Ciências das Religiões, visando fundamentalmente à formação integral dos educandos. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 190-205, jan./jun. 2011
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1 Filosofia da religião A busca do sentido do Universo é objeto de indagações desde os filósofos pré-socráticos. Tais pensadores, também denominados de fisiólogos, se ocuparam em investigar a origem da physis, ou seja, do Universo. Insatisfeitos com as respostas míticas, os primeiros filósofos inauguram uma vontade insaciável do ser pensante: compreender a totalidade das coisas. Com o advento da Filosofia, a sabedoria torna-se o valor mais precioso na polis. Questões antes indiscutíveis, como política, ética, religião etc., tornam-se o centro dos debates filosóficos. A Filosofia da Religião nasce nesta ambiência, caracterizada pela supra-assunção da razão em detrimento do mito. Naquela época já eram levantadas questões até hoje debatidas nos diversos campos do conhecimento: Qual a origem do Universo? De onde vêm os seres? Para onde vamos após a morte? Por que tudo muda? Diretamente ligado à Filosofia da Religião era possível levantar questões como: um ser supremo (Deus) existe? O que é a religião? Como se explica o mal? etc. A religião é tão antiga como a humanidade. Ela está presente nas culturas desde o surgimento dos primeiros grupos de homens. Em seu sentido geral e sociocultural, a religião é um conjunto cultural suscetível de articular todo um sistema de crenças em Deus ou num sobrenatural e um código de gestos, de práticas e de celebrações rituais. Toda religião acredita possuir a verdade sobre as questões fundamentais do homem, mas apoiando-se sempre numa fé ou crença (JAPIASSUÉ; MARCONDES, 2006, p. 239).
A grande contribuição que a Filosofia da Religião oferece ao ER é a busca dialética de uma totalidade, no seu caso específico, das questões intrínsecas no campo da religião. Alias, é a totalidade que move o pensamento filosófico em todas as suas vertentes. Segundo 192
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Ives Gandra Martins Filho, para o estudo filosófico da religião vários são os métodos utilizados: Método histórico-crítico comparativo – comparar as várias religiões no tempo e no espaço, buscando seus traços comuns e suas diferenças específicas, para verificar o que constitui a essência do fenômeno religioso; Método Filológico – mediante o estudo comparado das línguas, busca encontrar nas línguas parentes o que pensavam e acreditavam os povos antes de se dividirem em línguas distintas (quais as palavras utilizadas para descrever e expressar o sagrado e suas raízes comuns); Método Antropológico – reconstruir o passado religioso com base na etnologia, estudando os povos primitivos atuais (suas instituições, crenças, rituais e tradições). A filosofia da religião deve conjugá-los, para obter a melhor soma de elementos para chegar às suas conclusões sobre a essência das manifestações religiosas e suas características universais. Método metafísico – busca o fundamento do fenômeno religioso (MARTINS, 2006, p. 7).
Tal metodologia é cardeal para a epistemologia do ER, pois rompe com todo o exclusivismo e com todo o inclusivismo religioso em prol do pluralismo religioso. Além do mais, capacita o docente de ER a dinamizar suas aulas, focalizando a dimensão plurirreligiosa e o fenômeno religioso em toda a sua complexidade. A disciplina Filosofia da Religião, ao pesquisar o fenômeno religioso em sua complexidade, colabora com a sistematização da epistemologia do ER enquanto área de conhecimento. Rosa Gitana e João Décio ratificam tal afirmação ao dizer: “Um segmento de abordagens busca os fundamentos do fenômeno religioso na sua constituição nuclear, bem como sua estrutura e função, através de disciplinas como a História Comparada, a Fenomenologia e a Filosofia da Religião” (SENA, 2006, p. 127). Enfim, a estruturação epistemológica das Ciências das Religiões fundamentada no estudo da Filosofia da Religião e das demais disciplinas garantirá ao ER um conhecimento totalizante da religião: REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 190-205, jan./jun. 2011
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Com esse conjunto multidisciplinar, as Ciências das Religião constroem um saber sobre o fenômeno religioso, vivido e representado em suas múltiplas faces e dimensões, e sempre presente e atuante no conjunto de existência humana. Configura-se, assim, um campo epistêmico próprio que tem como objeto de estudo o fenômeno religioso, caracterizado pela pluralidade metodológica utilizada e fundamentada numa nova arquitetura para a construção do conhecimento. Rompem com a investigação monolítica, separada, verticalmente estabelecida, e horizontalizam-se, na parceria com diversos ângulos de focalização de seu objeto de estudo – a religião –, transdisciplinarizando-se de forma radical e, com isso, buscando negar a fragmentação e a linearidade do conhecimento sobre o fenômeno religioso (SENA, 2006, p. 128).
As investigações filosóficas acerca do fenômeno religioso presente na diversidade cultural rompem com pelo menos dois modelos de ER: o catequético e o teológico. O primeiro é herança do catolicentrismo e do protestancentrismo. Pois seu maior objetivo é a doutrinação dos educandos em vista da expansão das Igrejas. Já o segundo modelo, apesar da cosmovisão plurirreligiosa, esconde em si uma catequese disfarçada, visto que a teologia é apologética e teoriza em nome de uma determinada religião. Outros dois autores, Costella e Oliveira, escrevem sobre a contribuição filosófica para a epistemologia do ER: A Epistemologia do Ensino Religioso abre a religião à investigação filosófica num diálogo esclarecedor, que não pretende dissolvê-la, mas reconhecer seu sentido. Assumindo-se a religião não tanto como um fato objetivo – como faz o cientista que pretende descrevê-la e explicá-la –, mas como uma forma eminente da experiência humana, pode-se reconhecer nela sua originária congenialidade à filosofia, que assume a forma de uma relação dialógica – integração na diferença –, com mútuo reconhecimento das respectivas instâncias de verdade. Esse caráter dialógico da relação entre filosofia e religião pode ser caracterizado em 194
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dois níveis conexos. Um nível mais geral, como duas dimensões da experiência; outro mais existencial, como duas modalidades da pessoa, ao mesmo tempo crente e pensante (COSTELLA; OLIVEIRA, 2007, p. 54).
Já na concepção de Segundo, a Filosofia da Religião tem a finalidade de mediar o círculo hermenêutico entre a fé e a ciência/tecnologia: Difícil saber qual dos dois tem mais razão. Mas a linguagem filosófica terá encontrado sua razão de ser enquanto puder mediar o círculo hermenêutico que se desenvolve entre sistemas de significação (fé) e sistemas de eficácia (ciência/tecnologia). Para aceder a tal lugar, ela conta com duas prerrogativas essenciais: (a) trabalha um rico conteúdo de dados transcendentes, distinguindo-se, portanto, das ciências propriamente ditas; (b) não obstante isso, ela não quer assumir tais dados como uma tradição, e esforça-se para submeter cada um deles ao controle da razão; e por isso se diferencia das religiões (SEGUNDO, 1997, p. 414).
O ER “aprende” com a Filosofia da Religião, que, ao suscitar reflexões acerca da história das religiões, dos seus ritos e orações, das suas revelações e doutrinas, deve levar os estudantes a peceber que não precisamos de uma religião una. “Certamente a sociedade não necessita de uma religião unitária, nem de uma ideologia única. Necessita, porém, de normas, ideais e objetivos que interliguem todas as pessoas e que todos sejam válidos” (HANS HUNG, 1993, p. 9). O filósofo e teólogo Leonardo Boff, ao desenvolver o conceito de resiliência na ecopedagogia, nos ajuda a ver no ER uma luz para a paz entre as religiões e a humanidade. Boff nos apresenta a resiliência como caminho de transformação do negativo para o positivo, do deformado para o estado original. Resiliência comporta dois componentes: resistência face às adversidades, capacidade de manter-se inteiro quando submetido a grandes exigências e pressões e em seguida é a capacidade de dar volta por cima, aprender REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 190-205, jan./jun. 2011
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da derrota e reconstruir-se, criativamente, ao transformar os aspectos negativos em novas oportunidades e em vantagens (BOFF, 2007).
Enfim, a contribuição da Filosofia da Religião com a epistemologia do ER, para além da pesquisa dos fenômenos da religião no campo da razão e do conhecimento, deve ser instrumento eficaz na formação ético-crítica dos discentes, sendo corresponsável na construção de uma sociedade mais dialógica, respeitosa e sustentável.
2 Pensamento fraco Por pensamento fraco Vattimo pretende discursar sobre a realidade, passando de uma fala unívoca, que, fundada sobre a metafísica, pode reclamar extensão e profundidade universais, para uma forma fraca de “experimentar” a realidade, na qual história e cultura situam todo discurso, impedindo-o de qualquer pretensão de falar para além do próprio horizonte. Pensamento débil [...] significa não tanto, ou não essencialmente, uma ideia do pensamento mais consciente dos seus limites, que abandona as pretensões das grandes visões metafísicas globalizantes, etc.; mas sobretudo uma teoria do debilitamento como traço constitutivo do ser na época do fim da metafísica (RORTY; VATTIMO, 2006, p. 25).
Ao compreender o pensamento fraco, a filosofia direciona o pensamento a uma forma “fraca” de experimentar a realidade, evitando qualquer pretensão de responder aos anseios da realidade atual fora do próprio horizonte, na qual história e cultura estão situadas em todo o discurso. Nesta concepção, afirma-se, pois, a necessidade de renunciar a todas as categorias fortes na tradição filosófica, para erigir um fundamento sólido que reconheça o ser e a religião independentemente 196
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de suas contradições, sem impor verdades que o limite de expressar sua singularidade. Ora, se a verdade não é um dado objetivo, mas um puro ato interpretativo, o sujeito, em Vattimo, assim como a religião, descobre-se finito e histórico e não se considera mais como estável, provido de uma estrutura eterna, indissolúvel, mas se reconhece como um ser de possibilidades, aberto ao horizonte histórico no qual é mais um intérprete. Vattimo percebe que o enfraquecimento do pensamento tem suas raízes no próprio cristianismo, sendo mesmo o cerne da mensagem cristã. Se reconhecer que o sentimento redentor da mensagem cristã desdobra-se precisamente da dissolução das pretensões da objetividade, a Igreja poderia finalmente sanar até mesmo o confronto entre verdade e caridade que a tem como assediada no curso da história [...]. A verdade, que, segundo Jesus, nos tornará livres não é a verdade objetiva das ciências e nem a verdade da teologia: assim como não é um livro de cosmologia, a Bíblia também não é um manual de antropologia e ou de teologia. A revelação escritural não é feita para nos fazer saber sobre o cosmo, como Deus é, quais são a “naturezas” das coisas ou da geometria – e, para salvar-nos, assim, por meio do “conhecimento” da verdade. A única verdade que as Escrituras nos revelam, aquela que não pode, no curso do tempo, sofrer nenhuma desmistificação – visto que não é um anúncio experimental, lógico, metafísico, mas sim um apelo prático – é a verdade do amor, da caritas (RORTY; VATTIMO, 2006, p. 71).
O “pensamento fraco”, que está situado numa época hermenêutica, pode oferecer à teologia, à espiritualidade e ao ER, o retorno do fenômeno religioso e a possibilidade de resgatar sua historicidade num contexto pós-moderno, que, segundo Vattimo, abre caminho à tolerância e à diversidade. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 190-205, jan./jun. 2011
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Vattimo insiste que o pensamento fraco pode acelerar o retorno da religião na pós-modernidade. Em outras palavras, a filosofia de Vattimo almeja superar o pensamento forte a partir do pensamento fraco, que, por sua vez, se funda na reconstrução dos conceitos fundamentais da Filosofia da Religião. Pensamento fraco este que ainda está escondido nas fortes estruturas da religião. Para apresentarmos o pensamento fraco (que se dá através da ruptura entre o mundo metafísico e o pensamento forte), teremos que percorrer o caminho de reconstrução, realizado por Vattimo, do conceito de morte de Deus e fim da metafísica e do conceito de secularização. 2.1 Morte de Deus e fim da metafísica Com referência ao conceito de morte de Deus e fim da metafísica, Vattimo entende que o anúncio de Nietzsche de que “Deus morreu” inaugura um novo período da história da filosofia, pressupõe a morte de uma estrutura epistemológica linguístico-religiosa sobre a qual foram erigidos os cânones da teologia cristã, sobretudo dogmática, ao longo de quase toda a história do cristianismo, e o “retorno” do fenômeno religioso. Quando anunciou que “Deus morreu”, Nietzsche não estava interessado em categorizar que Deus não existe. A morte de Deus significou para Nietzsche que não há, a respeito de sua existência, um fundamento definitivo. Nada mais. Como disse Heidegger: “Assim, a expressão ‘Deus morreu’ significa: o mundo suprassensível não tem poder eficiente. Não desperdiça nenhuma vida. A Metafísica, ou seja, para Nietzsche, a filosofia ocidental entendida como platonismo chegou ao fim” (TRTIGNON, 1990, p. 83). Na era pós-metafísica a filosofia só pode admitir que “tudo é interpretação”, o “real” é sempre relativo, e a “verdade” não pode ser definitiva e una. A desmistificação da “verdade absoluta” e o advento de uma nova etapa na história da filosofia, chamada era da interpretação, inclui inúmeras possibilidades para romper com os preconceitos 198
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culturais, e, por conseguinte, abandonar a construção e estruturação do consenso no diálogo, que, de forma dialética, estrutura-se a partir do reconhecimento de tudo aquilo que temos em comum como patrimônio religioso, cultural, histórico e, até mesmo, das aquisições técnico-científicas. Para o cristianismo a constatação da morte de Deus, e, posteriormente, a morte da metafísica, pode significar a libertação da dimensão metafórica da linguagem, possibilitando um resgate da experiência originária. Vattimo entende o pensamento nietzschiano da morte de Deus como uma abertura à possibilidade de crer em Deus, sobretudo, a partir do enfraquecimento ou “kenotização”. E, pois bem, hoje parece que um dos principais efeitos filosóficos da morte do Deus metafísico e do descrédito geral, ou quase, em que caiu todo tipo de fundamento filosófico, foi justamente o de ter criado um terreno fértil para a possibilidade renovada da experiência religiosa. Tal possibilidade retorna [...] por meio da libertação da metáfora. É um pouco como se, no final, Nietzsche tivesse razão ao preconizar a criação de muitos novos deuses: na Babel do pluralismo de fins da modernidade e do fim das metanarrativas, se multiplicaram as narrativas sem um centro ou uma hierarquia (TROTIGNON, 1990 p. 25).
Com o fim das metanarrativas e o surgimento de novas narrativas, o pensamento forte, de cunho metafísico e essencialista, das verdades absolutas, que incansavelmente enquadrava o ser num sistema fechado, impedindo-o de transcender, dificilmente será evocado numa realidade complexa, em que se reconhece em todos os seus matizes a diversidade e o respeito incondicional pela a religião, pelo outro sexo, pelo homossexual, pelo indivíduo de outra cor, de outro credo, de outras regiões, de outra facção política, de outra religião, de outra etnia etc. A modernidade e a pós-modernidade salvaguardam a morte de Deus e o fim da metafísica. Na nova ambiência, a pluralidade REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 190-205, jan./jun. 2011
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ideológica, cultural e religiosa não mais se deixa interpretar por um pensamento totalitário compreendido como uma verdade única, que padroniza o ser. Com isso, cabe à filosofia pensar o ser como evento. Com base na experiência do pluralismo pós-moderno, podemos somente pensar o ser como evento, enquanto a verdade não mais pode ser o reflexo de uma estrutura eterna do real e sim uma mensagem histórica que devemos ouvir e à qual somos chamados a dar uma resposta. Tal concepção da verdade não é válida apenas para a teologia e para a religião, mas, igualmente, para grande parte das ciências hoje (VATTIMO, 2004, p. 13).
Enfim, supra-assumir a ideia do absoluto em busca do diálogo entre as diferentes religiões não só superou as hipóteses pessimistas do fim da religião como ratificou a necessidade do ER na educação básica do Brasil. 2.2 Secularização Outro aspecto do pensamento fraco é o conceito de secularização. O descobrimento das leis da natureza foi uma das causas do fenômeno da secularização, que repercutiu profundamente no campo religioso. A secularização consiste em reconhecer a “justa autonomia das realidades terrenas”, que têm suas leis próprias, seu valor próprio, independentemente da religião. A secularização foi um processo de “dês-secularização” do mundo, declínio da religião, maior conformidades das pessoas a “este mundo”, desacoplamento entre sociedade e religião, transposição de crenças e instituições religiosas para formas não religiosas e abandono do compromisso com valores e práticas tradicionais. No campo religioso encontramos inúmeros discursos radicalistas e fundamentalistas condenando o secularismo como o grande culpado pelo abandono da religião. Já a filosofia de Vattimo identifica na secula200
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rização o retorno da religião, sobretudo do cristianismo, pois, ao romper com o pensamento forte e desvincular o homem da hierarquia fechada e de qualquer limite, aproxima a religião da essência do Evangelho anunciado por Jesus Cristo, a caridade. Nunca na história da humanidade tanto se falou em respeito ao outro. A secularização contribui com o retorno da religião quando acolhe o outro independentemente de suas contradições, reconhecendo não haver mais um estereótipo uno que enquadre o ser humano. Ela é expressão clara e objetiva do reconhecimento de direitos iguais para as culturas e as religiões. É verdade que no ápice da secularização muitas instituições religiosas perderam poder e influência em muitas sociedades, pois, em crise, abriram mão de sua identidade para se adaptarem às supostas exigências do mundo secularizado. Na visão de Vattimo, a secularização quebra o dogmatismo imperante nas instituições religiosas e abre um leque de possibilidades que vai para além das normas e leis que imperam nas instituições. A secularização encarnada na imanência da realidade intramundana contradiz a crença que busca a “salvação” meramente em termos transcendentais, extramundanos. Enfim, no caso do Ocidente, a dessacralização ajudou a purificar a imagem de um Deus que manipula os fenômenos como marionetes e convidou o homem a ser mais responsável. Ajudou o religioso a cultivar uma espiritualidade encarnada no já e no ainda não, supra-assumindo a espiritualidade tradicional legalista e desumanizadora.
Considerações finais A filosofia da religião, com suas inquietações e o conceito de pensamento fraco em Vattimo, compreendida como parte de um todo do pensamento sistêmico, possibilitará ao ER uma epistemologia clara e objetiva do estudo do fenômeno religioso. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 190-205, jan./jun. 2011
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O ER pode “aprender” com a filosofia da religião uma forma específica de sistematizar o saber, supra-assumindo qualquer postura absoluta que inviabiliza o diálogo, garantindo no espaço-tempo da pós-modernidade a pluralidade. O saber filosófico não se contenta apenas com aquilo que aparece no fenômeno religioso; a investigação ultrapassa a imanência em busca da transcendência. Sua tarefa não é reduzir a religião a mera ilusão ou delírio da humanidade, mas investigar o fenômeno religioso presente na vida social da contemporaneidade. Temos um grande desafio, pensar e sistematizar uma formação continuada dos professores habilitados em ER, a fim de evitar um retrocesso nessa área de conhecimento, que por muitos anos permaneceu situada na periferia do saber. Precisamos de docentes preparados para refletir com os estudantes o ER, disciplina autônoma. A Filosofia da Religião é uma das disciplinas que irá salvaguardar a emancipação do ER. Movidos pela criticidade, podemos superar o discurso fechado, radical e fundamentalista da religião, em troca de um discurso aberto, flexível e respeitoso. Tal movimento nos permitirá buscar equilíbrio entre fé e razão, mergulhando no mistério que nos envolve, o transcendente. Oxalá a epistemologia do ER nos ajude a enxergar a religião com os olhos de Dalai Lama. Uma vez, ao encontrar-se com Dalai Lama, Boff perguntou-lhe qual seria a melhor religião. Ele respondeu: “A melhor religião é aquela que nos faz melhores, mais amorosos, mais abertos aos outros”.
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THE CONTRIBUTION OF PHYLOSOPHY OF RELIGION AND OF WEAK THOUGHT OF GIANNI VATTIMO IN THE EPISTEMOLOGY OF RELIGIOUS TEACHING Abstract The Philosophy of Religion, as a subject, contributes significantly to the epistemology of Religious Teaching (RT). Breaking off the exclusiveness and the inclusiveness ensures the religious pluralism, safeguards the study of religious phenomena found in several cultures of humanity and contributes to the emancipation of the RT in the perspective of the Sciences of Religions. But the weak thought, just as it is understood by Vattimo, by refusing the objectivist metaphysic, stable and structural conception of being and of religion, justifies that the post-metaphysical pluralist and democratic world in which we live does not allow itself to be interpreted anymore by a thought that wishes to unify it, at any cost, in the name of a final truth. Its reflection suggests to the philosophy and to the RT not anymore to search to find the objective order of the world, an absolute truth, but to harmonize the hermeneutic way to reality. We intend in this work to think the contribution of the Philosophy of Religion and of the weak thought in the epistemology of RT. Keywords: Philosophy of Religion, epistemology, religious teaching, weak thought.
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TEÓRICOS DO SAGRADO: ALGUMAS CONCEPÇÕES E PERCEPÇÕES Alessandro Vescovi*
Resumo Esta pesquisa tem por objetivo discutir as concepções acerca do sagrado e de sua manifestação, em vista de ter elementos diagnósticos sobre religiosidade. Por fim, foi proposta uma construção simbólica a respeito do sagrado e suas manifestações, que não expressam uma construção fiel de uma imagem, mas uma possível compreensão de pessoas e grupos. Palavras-chave: Sagrado, religiosidade, Dukheim, profano.
Introdução O tema proposto traz consigo a intenção de fazer uma análise acerca do sagrado, suas concepções e manifestações bem como sobre a religião pós-moderna, sobre as religiões e a dialética do sagrado a partir de teóricos contemporâneos. Tal análise possibilita-nos uma construção simbólica a respeito do sagrado e suas manifestações, excluindo qualquer intenção acerca de uma possível construção fiel de uma imagem, mas uma possível compreensão teórica.
O sagrado A discussão sobre o sagrado é pertinente, principalmente quando percebemos na história que diversos intelectuais estão sendo instigados por uma espécie de ressacralização do mundo, a retomar tal * Professor da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo. Mestre em História Social das Relações Políticas pela UFES.
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Teóricos do Sagrado: algumas concepções e percepções
discussão, a fim de superar algumas respostas clássicas e trazer para os nossos dias novas discussões e possibilidades de compreensão do sagrado. Sendo assim, tomaremos nessa discussão alguns teóricos como referencial, dentre eles, Durkheim, Otto, Elíade, Marques, Caillois, Bastide e Girard. Se lermos Durkheim discutindo se a religião é um produto de causas sociais ou não, poderemos perceber que a reflexão acerca do sagrado e das religiões não passa pela perspectiva da falsidade, mas da verdade ao modo de cada uma. As representações religiosas são representações coletivas que exprimem realidades coletivas; os ritos são maneiras de agir que só surgem no interior dos grupos coordenados e se destinam a suscitar, manter ou refazer alguns estados mentais desses grupos. Mas, então, se as categorias são de origem religiosa, elas devem participar da natureza comum a todos os fatos religiosos: também elas devem ser coisas sociais, produtos do pensamento coletivo. Como, no estado atual de nossos conhecimentos desses assuntos, devemos evitar toda tese radical e exclusiva, pelo menos é legítimo supor que sejam ricas em elementos sociais (DURKHEIM, 1996, p. XVI).
É nesta perspectiva das representações religiosas que Durkheim expressa sua compreensão do sagrado como um gênero oposto ao profano. Para ele: Todas as crenças religiosas conhecidas, sejam simples ou complexas, apresentam um mesmo caráter comum: supõem uma classificação das coisas, reais ou ideais, que os homens concebem, em duas classes, em dois gêneros opostos, designados geralmente por dois termos distintos que as palavras profano e sagrado traduzem bastante bem. A divisão do mundo em dois domínios compreendem, um, tudo o que é sagrado, outro, tudo o que é profano, tal é o traço distintivo do pensamento religioso: as crenças, os mitos, os gnomos, as lendas, são representações ou REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 206-217, jan./jun. 2011
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sistemas de representações que exprimem a natureza das coisas sagradas, as virtudes e os poderes que lhes são atribuídos, sua história, suas relações mútuas e com as coisas profanas (DURKHEIM, 1996, p. 20).
É a partir dessa compreensão bipolar de mundo, que distingue o sagrado do profano, que Durkheim discorre sobre o sagrado, afirmando que: Por coisas sagradas, convém não entender simplesmente esses seres pessoais que chamamos deuses ou espíritos: um rochedo, uma árvore, uma fonte, um seixo, um pedaço de madeira, uma casa, em uma palavra, uma coisa qualquer pode ser sagrada. Um rito pode ter esse caráter; inclusive, não existe rito que não o tenha em algum grau. Há palavras, frases, fórmulas que só podem ser pronunciadas pela boca de personagens consagrados, há gestos e movimentos que não podem ser executados por todo o mundo... O círculo de objetos sagrados não pode, portanto, ser determinado de uma vez por todas; sua extensão é infinitamente variável conforme as religiões (DURKHEIM, 1996, p. 20).
Durkheim (1996, p. 32) conclui que uma religião é um sistema solidário de crenças e de práticas relativas a coisas sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e práticas que reúnem numa mesma comunidade moral, chamada Igreja, todos aqueles que a elas aderem. Possivelmente a leitura de Durkheim nos levará também a compreender que não são os estados individuais que explicam os fatos sociais, mas são estes que facilitam a compreensão dos primeiros. A fim de ampliar essa discussão, busquemos dialogar agora com Otto. De acordo com ele: O sagrado, no sentido completo da palavra, é, portanto, para nós uma categoria composta. As partes que a compõem são, por um lado, os seus sentimentos racionais e, por outro, os seus elementos irracionais. Consi208
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Teóricos do Sagrado: algumas concepções e percepções
derada em cada uma destas duas partes, ela é uma categoria puramente a priori (OTTO, 2005, p. 149).
O pensamento de Otto aponta para a compreensão da categoria do sagrado no seu aparecimento histórico, ou seja, contextualizado, a ponto de afirmar que é no princípio da evolução que se constitui a história das religiões, e a partir daí podemos perceber noções como puro e impuro, a crença e o culto dos mortos, a crença e o culto aos espíritos, a magia, as lendas, os mitos e muito mais. Otto, em suas percepções, chega a afirmar que: Uma coisa é acreditar na existência do suprassensível, outra é fazer dele uma experiência vivida; uma coisa é ter a ideia do sagrado, outra é percepcioná-lo e descobri-lo como um fator ativo e operante que se manifesta pela sua ação. Todas as religiões, e a própria religião, estão intimamente convencidas de que a segunda hipótese se pode produzir: afirmam que não somente a voz interior, a consciência religiosa, o leve ao murmúrio do espírito no coração, o sentimento, a intuição e a aspiração da nossa alma são testemunhos do suprassensível, mas que este pode aparecer em certos fatos, em certos acontecimentos, em certas pessoas, as quais, por sua vez, são provas efetivas da sua manifestação; afirmam que, juntamente com a revelação interna por meio do espírito, existe uma revelação externa do divino. Estes fatos convincentes, estas manifestações da revelação sensível do sagrado, chamam-se, na linguagem da religião, sinais (OTTO, 2005, p. 149).
Por tudo isso, Otto afirma que a religião realiza-se primeiramente na evolução histórica do espírito humano; em segundo momento, em virtude da própria disposição, em terceiro lugar, sobre o estabelecimento da comunhão com o sagrado no conhecimento, na alma e na vontade. Para ele, a religião é um produto da história. Se, por um lado, ela desenvolve a disposição para o conhecimento do sagrado, REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 206-217, jan./jun. 2011
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por outro, ela própria é, em algumas das partes, a manifestação do sagrado; sendo assim, não há religião “natural” em oposição às religiões históricas e, menos ainda, uma religião inata. Tais afirmações nos levam a crer que, para Otto, o sagrado é uma realidade que aparece fora do eu. Segundo Elíade (2005, p. 15), o sagrado se manifesta sempre como uma realidade inteiramente diferente das realidades naturais, e a primeira definição que se pode dar ao sagrado é que ele se opõe ao profano, e que o homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano. Elíade (1998, p. 37), ao escrever Tratado de história das religiões, afirma que até a existência mais dessacralizada conserva ainda traços de uma valorização religiosa do mundo. Para ele, que é historiador das religiões, é na experiência do sagrado que o homem descobre a realidade do mundo dos significados e a ambiguidade de todo o resto. A leitura de Elíade, em sua obra O sagrado e o profano, facilita a percepção de que as sociedades tradicionais vivem uma espécie de oposição entre o caos e o cosmos, entre o território habitado e um mundo desconhecido, e que, diante de tal oposição, o sagrado revela a realidade absoluta e, ao mesmo tempo, torna possível a orientação, fixando limites e estabelecendo a ordem. É nessa realidade que o homem se divide, ou ao menos perpassa o sagrado e o profano, e também percebe um tempo sagrado e um tempo profano. O homem religioso vive assim em duas espécies de tempo, das quais a mais importante, o tempo sagrado, se apresenta sob o aspecto paradoxal de um tempo circular, reversível e recuperável, espécie de eterno presente mítico que o homem reintegra periodicamente pela linguagem dos ritos. Esse comportamento em relação ao tempo basta para distinguir o homem religioso do homem não-religioso. O primeiro recusa-se a viver unicamente no que, em termos modernos, chamamos de “presente 210
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histórico”; esforça-se por voltar a unir-se a um tempo sagrado que, de certo pondo de vista, pode ser equiparado à eternidade... Ora, o que se pode constatar relativamente a um homem não-religioso é que também ele conhece uma certa descontinuidade e heterogeneidade do tempo. Também para ele existe o tempo predominantemente monótono do trabalho e o tempo do lazer e dos espetáculos, numa palavra, o “tempo festivo”. Também ele vive em ritmos temporais variados e conhece tempos diferentemente intensos: quando escuta sua música preferida ou, apaixonado, espera ou encontra a pessoa amada, ele experimenta, evidentemente, um ritmo temporal diferente de quando trabalha ou se entedia (ELÍADE, 1998, p. 64).
Diante das contradições em que o ser humano se encontra, é possível observar com mais clareza algumas posturas diante do sagrado e da própria vida humana. Por tudo isso, parece que Elíade acaba por entender o sagrado como uma experiência e, por isso, algo que está no próprio ser humano. Conforme Marques, podemos dizer que a religião é a revalorização do sagrado. Em todas as religiões, cristãs ou não, a revalorização do sagrado é fundamental para a perpetuação, manutenção e a subsistência. Ela se dá por meio da iniciação que na maioria das vezes pode ser feita com batismo, código, dança, unções, festas, comemorações, rituais, cantos, visões, orações, etc. Mesmo nas religiões mais “antigas” encontramos esse tipo de revalorização como forma de perpetuar o culto (MARQUES, 2005, p. 21).
Tal afirmação de Marques nos possibilita observar a presença de um espaço mágico-simbólico em todas as religiões, mesmo naquelas ditas mais racionais. Dessa forma podemos entender que as religiões revelam uma modalidade do sagrado e ao mesmo tempo uma situação do homem em relação ao sagrado. E que esta realidade nos leva REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 206-217, jan./jun. 2011
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a crer que todas as religiosidades estão imersas no sagrado ou em sua dialética, que nos possibilita novos sagrados, novos profanos e outras milhares de sacralidades sem o absurdo de maltratá-las e querer o uso exclusivo da verdade. De acordo com Gil Filho, ao tratar do sagrado como coração da experiência religiosa: O fenômeno religioso pode ser percebido pela sua materialidade através dos sentidos enquanto paisagem religiosa, porém, quando concebemos uma realidade, também destinamos a ela uma existência puramente intelectual. Sendo assim, os adjetivos de um fenômeno fazem parte desse âmbito: o mundo dos atributos e da nomeação. Do mesmo modo, as realidades do mundo da existência não são intrinsecamente não-sagradas. Em muitas culturas, vários elementos da paisagem natural são tidos como sagrados, na medida em que fazem parte do mundo da criação. Por exemplo, na cultura religiosa zoroastriana, desde o século V a.C. até sua expressão tardia na Pérsia e na Índia, os elementos da natureza, a terra, a água e o fogo são considerados sagrados, nas culturas religiosas africanas, como a cultura Ioruba, a natureza possui uma sacralidade essencial. No budismo Theravada, o sagrado se apresenta de forma mais impessoal presente no Dhamma. Já nas tradições judaico-cristã e islâmica, o sagrado se distingue como a realidade de um Deus pessoal que revela sua vontade ao homem através da história (GIL FILHO, 2006, p. 21).
Para Caillois (1988, p. 181), o sagrado é visto como uma categoria, uma qualidade do ser. Não uma qualidade inata. É um acréscimo que sobrevém e transforma, dando novo significado ao objeto. Não é um valor moral, mas tem função própria: manter o ser, conservar a realidade. Seguramente, ultrapassa os limites da religião, embora possa coexistir e tenha coexistido com ela. Manifesta-se, sobretudo, como interdito e festa. 212
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Teóricos do Sagrado: algumas concepções e percepções
A leitura de Caillois, em O homem e o sagrado, possibilita-nos a recuperação de uma postura mais dialógica e da ideia de que na verdade a superação da dialética entre o puro e o impuro se constrói quando estabelecemos a oposição entre o sagrado e o profano. Nessa linha de raciocínio ele nos provoca a questionar e quem sabe superar a ideia clássica de um simbolismo religioso como algo puro, ou melhor, purificado. Tais autores buscaram o significado do sagrado, e essa iniciativa nos permite chegar a uma conclusão parcial a respeito do tema, sinalizando que a vivência do sagrado possivelmente contribui para que o ser humano aprofunde e enriqueça seu próprio desenvolvimento. Tal compreensão pode ser percebida também se examinarmos algumas religiões e suas respectivas dinâmicas na história da humanidade, e consequentemente as posturas humanas no desenvolvimento dessas religiões. De acordo com Passos, podemos organizar uma tipologia religiosa a partir da relação estabelecida entre a dimensão do sagrado e a do profano da seguinte forma: Tabela 1 – Tipologia Religiosa DINÂMICA / Naturalistas RELIGIÕES
Transcendentais
Históricas
Esferas
Mistura
Distinção rígida
Reciprocidade
Contato
Imediato
Mediato
Mediato
Delimitação
Panteísmo
Tempo, espaço e pessoas sagradas
Sagrado antropológico
Ação ritual
Envolvimento Hierofania e ordem Memória e ética e eficácia
Cosmovisão religiosa
Totalidade sagrada
Retorno ao princípio sagrado
Criação e redenção
Fonte: Passos (2006, p. 75)
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A apresentação do quadro acima, elaborado por João Décio Passos na obra Como a religião se organiza, da coleção Temas do Ensino Religioso, ao tratar da relação entre o sagrado e profano, traz contribuições à medida que nos leva a observar que as tipologias religiosas apresentam também a função de resumir a pluralidade e facilitar a compreensão. Para Passos: As tipologias religiosas escondem sempre, em sua generalidade, a realidade singular. No caso, muitas religiões ficam de fora, assim como as misturas entre os modelos descritos. Os três tipos apresentados são somente um exercício de verificação dos modos de relacionamento entre o sagrado e o profano; captam três tipos de sistemas religiosos a partir de alguns aspectos relacionados a suas estruturas internas, à relação com o mundo e à ação ritual. As religiões naturalistas são aquelas que têm a natureza como a realidade sagrada imediata e com a qual se pode estabelecer relações imediatas por meio de rituais... As religiões transcendentais organizam seus sistemas a partir da distinção rígida entre as esferas sagrada e profana, como realidades distintas em suas naturezas, e postulam regras e métodos de volta a uma ordem primordial perdida... As aqui denominadas “religiões históricas” caracterizam as religiões semitas de um modo geral, ao menos em suas matrizes primordiais (PASSOS, 2006, p. 76).
Se a discussão a respeito do sagrado envolve uma questão que parte de uma iniciativa individual para o social, ou o contrário, ou a indagar até que ponto a história e a cultura influenciam nas diversas práticas diante do sagrado, parece-nos que um possível diálogo entre os autores acima nos remeteria a inúmeras contradições. À medida que tratamos do sagrado, por diversas vezes nos remetemos ao profano; ao discutirmos o puro, nós nos deparamos com o impuro; ao pensarmos o interior, somos lançados ao exterior; ao abordarmos a morte, somos abordados pela vida; ao refletirmos sobre a natureza, 214
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Teóricos do Sagrado: algumas concepções e percepções
observamos a cultura; ao visualizarmos o caos, imaginamos a ordem; ao questionarmos a violência, clamamos pela paz; enfim, um possível diálogo nos apresentaria uma ambivalência que perpassa por vezes a teoria e por vezes a prática. São as percepções anteriores que nos levam a ratificar a contribuição dos teóricos. Toda a contribuição de Durkheim, ao estudar os fatos sociais, pode ser reconhecida quando compreendemos que, para ele, a religião é coisa eminentemente social e as representações religiosas, dentre elas os ritos e as diversas práticas tidas como sagradas, são representações coletivas. A contribuição de Otto acerca do sagrado deu-se à medida que o autor percebeu a existência do sagrado enquanto uma forma simples, no entanto, numa experiência de tensão e oposição entre o racional e o não racional. As reflexões de Elíade sinalizam para a experiência do sagrado como algo relacionado à compreensão de ser, sentido e verdade. Tal referencial teórico se confirma também quando o autor nos leva a crer que nem toda experiência religiosa deve ser compreendida como uma experiência do sagrado, e que nem toda experiência do sagrado é uma experiência religiosa. Já as reflexões de Marques se justificam quando ele afirma que todos os tipos de religiosidade estão imersos no sagrado ou em sua dialética. Tais reflexões estão presentes nas diversas sociedades e também entre os jovens. Já a leitura de Caillois nesta pesquisa nos remeterá à atração existente entre o sagrado e o profano, quando afirma que tanto um quanto o outro são necessários para o desenvolvimento da vida. Enfim, tais autores contribuirão para facilitar nossas leituras e considerações, buscando alertar-nos para essa dialética que envolve o sagrado, e, ao mesmo tempo, iluminarão nossas observações acerca de fatores como a individualidade, a coletividade, a história, o racional e o não racional, o ser e o sentido.
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Considerações finais Parece-nos que os pressupostos teóricos de Durkheim e Elíade perpassam diversas práticas e compreensões que são encontradas nas sociedades. Se, por um lado, entendem o sagrado como algo distante do profano, através de experiências individualizadas e contemplativas, por outro, é mister que tal relação seja analisada e entendida de maneira contextualizada. A concepção durkheimiana sobre o religioso é social, e, apesar das experiências individualizadas e expressas em diversas respostas, é no grupo ou numa instituição social que tais experiências são compartilhadas, e, neste caso, a família, a escola e a igreja são algumas das instituições que exprimem realidades coletivas. Da mesma forma, a concepção de Elíade acerca de uma possível união entre o sagrado e o profano pode ser observada nas festas, nos ritos e iniciações, nos símbolos e no homem que experimenta sua existência na criação.
Referências CAILLOIS, Roger. O homem e o sagrado. Lisboa: Edições 70, 1988. DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996. ELÍADE, Mircea. O sagrado e o profano: essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ______. Tratado de história das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1998. GIL FILHO, Sylvio Fausto. O sagrado: essência do fenômeno religioso. Revista Diálogo. São Paulo: Paulinas, 2006. MARQUES, Leonardo Arantes. História das religiões e a dialética do sagrado. São Paulo: Madras, 2005. 216
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Teóricos do Sagrado: algumas concepções e percepções
OTTO, Rudolf. O sagrado: perspectivas do homem. Lisboa: Edições 70, 2005. PASSOS, João Décio. Como a religião se organiza – tipos e processos – temas do ensino religioso. São Paulo: Paulinas, 2006.
THEORISTS OF THE SACRED: SOME CONCEPTIONS AND PERCEPTIONS Abstract This research aims to discuss the conceptions about the sacred and its manifestations, considering that there are diagnostic elements about religiosity. At last, it was proposed a symbolic construction concerning the sacred and its manifestations, which do not express an exact construction of an image, but a possible comprehension of people and groups. Key words: Sacred, religiosity, Durkheim, profane.
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OTTO, Rudolf. O sagrado: perspectivas do homem. Lisboa: Edições 70, 2005. PASSOS, João Décio. Como a religião se organiza – tipos e processos – temas do ensino religioso. São Paulo: Paulinas, 2006.
THEORISTS OF THE SACRED: SOME CONCEPTIONS AND PERCEPTIONS Abstract This research aims to discuss the conceptions about the sacred and its manifestations, considering that there are diagnostic elements about religiosity. At last, it was proposed a symbolic construction concerning the sacred and its manifestations, which do not express an exact construction of an image, but a possible comprehension of people and groups. Key words: Sacred, religiosity, Durkheim, profane.
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CAMPO E CIDADE: UMA ABORDAGEM SOCIOLÓGICA NO PRIMEIRO TESTAMENTO Adriano de Souza Viana*
Resumo: Este artigo apresenta uma abordagem sociológica do Primeiro Testamento. Ele descreve sucintamente a interpretação sociológica da Bíblia e elucida variadas citações, em que são percebidos conflitos entre grupos urbanos e grupos rurais. É observado no desenvolver do texto que a Bíblia narra de maneira mais acentuada posturas contrárias à cidade, defendendo os interesses do grupo do campo. Palavras-chave: Campo, cidade, abordagem sociológica, luta de classes.
Introdução Na pesquisa bíblica temos uma diversidade de métodos interpretativos que nos possibilitam olhar de maneiras diferenciadas para os textos das Sagradas Escrituras. Dentro dos variados métodos, ainda temos uma riqueza plural de abordagens de que podemos nos valer para melhor fazer uma aproximação hermenêutica.1
Graduado em Filosofia pela Faculdade Salesiana de Vitória; Pós-graduado em Teologia Bíblica pela Escola Superior de Teologia (EST), São Leopoldo – RS, em parceria com o Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), graduando em Teologia pelo Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória (IFTAV). 1 Aqui é importante fazer referência ao documento da PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, A interpretação da Bíblia na Igreja, n. 134, em que é explanado de forma sintética e densa o que a Igreja Católica pressupõe sobre os limites e as qualidades dos métodos exegéticos e interpretativos nos últimos anos. *
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Campo e cidade: uma abordagem sociológica no Primeiro Testamento
Este artigo propõe-se a um corte interpretativo que permita verificar no Primeiro Testamento a organização social mais elementar da humanidade ao longo da história, que distribui as populações entre o setor rural e o urbano. Essa organização aparece em vários textos bíblicos. Com uma abordagem sociológica da Bíblia podemos ver com mais clareza a realidade vivida pelo povo de Israel e pelos povos vizinhos no que se refere à tensão entre os grupos sociais rurais e os urbanos. A abordagem sociológica, que será a base deste ensaio, terá um prisma marxista. Sendo assim, apresentar-se-á a luta de classes como chave de leitura para adentrar nas salas antigas desse casarão que é a bíblia. Alguns leitores poderiam se perguntar se é possível fazer esse tipo de interpretação. Com tranquilidade a resposta positiva é dada. Sim, pode-se olhar para esse tema e se valer de recursos hermenêuticos da sociologia para descrever o contexto que subjaz ao texto. No que se refere ao tema da oposição entre as classes rurais e as urbanas nos textos bíblicos, alguns autores nos ajudam a dar os primeiros passos. Na Bíblia, especialmente no Primeiro Testamento, essa tensão entre cidade e campo está muito presente. Nos seus traços fundamentais, o relato da caminhada do povo de Israel nas Escrituras é uma história anticitadina, escrito na perspectiva da roça. Na cidade morava especialmente a classe dirigente. Diferentemente de nossas cidades, onde mora também a maioria da população pobre (GASS, 2005, p. 26).
Aqui, nota-se que a perspectiva que se defende é a do grupo rural. Pode-se afirmar que a origem dos autores dos textos sagrados era o ambiente social do campesinato, ligado à agricultura e à pecuária como modos de produção e subsistência. Devido a isso, a maioria dos textos de tradições mais antigas apresenta uma visão negativa da cidade, e de tudo o que dela deriva. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 218-234, jan./jun. 2011
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Serão apresentados dois tópicos neste artigo para o desenvolvimento das ideias propostas. Num primeiro momento será exposta a interpretação sociológica da Bíblia, com algumas opiniões relevantes para sua compreensão. Num segundo momento serão descritos variados exemplos de conflitos entre as classes urbanas e as rurais nos textos do Primeiro Testamento.
1 A interpretação sociológica da Bíblia Diante do desafio de apresentar uma abordagem sociológica no Primeiro Testamento, dando destaque à relação entre campo e cidade, é fundamental que se descreva o método que foi escolhido para tal ensaio bíblico-teológico. A interpretação sociológica da Bíblia não é propriamente um método, mas sim uma abordagem dentro de um método mais amplo, que é o método histórico-crítico (Cf. PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, 2006. p. 37).2 No entanto, alguns especialistas afirmam que se pode falar diretamente de um “método sociológico”, como é o caso de Valter Luiz Lara, que explica sucintamente as características desse método: O método sociológico é complementar da análise histórico-crítica, pois quer perceber a sociedade como um todo que está por trás do texto e que se deixa captar no próprio texto. É um método que visa reconstruir o comportamento coletivo típico das relações humanas em suas estruturas, conflitos e funções (LARA, 2010, p. 57).
Lara desenvolve sua apresentação do método sociológico com base nos estudos de John Elliot, que demonstra com clareza “o caráter
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Cf. também LARA, 2010, p. 44-49.
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Campo e cidade: uma abordagem sociológica no Primeiro Testamento
exegético e os elementos crítico e científico do método sociológico” (LARA, 2010, p. 57). Elliot considera a análise sociológica como uma “fase da tarefa exegética”. Portanto, a análise crítica da Bíblia tende a também usar essa abordagem como complemento de outros elementos críticos, como a crítica literária, a textual e a redacional. No uso da interpretação sociológica da Bíblia, há diversificadas tendências entre estudiosos.3 Alguns desenvolveram uma sociologia funcionalista a partir de Émile Durkheim. Outros basearam suas interpretações numa sociologia compreensiva de Max Weber. E outros, ainda, fizeram a opção por uma concepção dialética a partir do pensamento de Karl Marx. Desenvolveremos melhor, neste ensaio, a terceira tendência. Todavia, é importante que se disserte sobre os pontos positivos e os negativos da abordagem sociológica para o estudo das Sagradas Escrituras. Para isso, o documento 134 da Pontifícia Comissão Bíblica, do ano de 1993, intitulado “A interpretação da Bíblia na Igreja” é um instrumento sóbrio e eficaz. O referido documento admite que Os textos religiosos estão unidos por uma conexão de relação recíproca com as sociedades nas quais eles nascem. Esta constatação vale evidentemente para os textos bíblicos. Consequentemente, o estudo crítico da Bíblia necessita um conhecimento tão exato quanto possível dos comportamentos sociais que caracterizam os diversos ambientes nos quais as tradições bíblicas se formaram. Esse gênero de informação sócio-histórica deve ser completado por uma explicação sociológica correta, que interprete cientificamente, em cada caso, o alcance das condições sociais de existência (PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, 2006, p. 66-67).
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Cf. O Capítulo 5 de LARA, 2010.
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Portanto, a abordagem sociológica é reconhecida como necessária para o enriquecimento do estudo crítico e sério da Bíblia. No primeiro terço do século XX a Escola de Chicago estudou a situação sócio-histórica da cristandade primitiva, dando assim à crítica histórica um impulso apreciável nesta direção. No decorrer dos vinte últimos anos (1970-1990), a abordagem sociológica dos textos bíblicos tornou-se parte integrante da exegese (PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, 2006, p. 67).
A ciência sociológica dá modelos que permitem aos historiadores das épocas bíblicas uma significativa capacidade de renovação, embora esses modelos acabem sendo alterados para serem aplicados à realidade estudada. O texto do documento também avalia os riscos e limites da abordagem sociológica para a exegese bíblica. Efetivamente, se o trabalho da sociologia consiste em estudar as sociedades vivas, é previsível encontrar algumas dificuldades logo que se quer aplicar seus métodos a ambientes históricos que pertençam a um passado longínquo. Os textos bíblicos e os extra-bíblicos não fornecem forçosamente uma documentação suficiente para dar uma visão de conjunto da sociedade da época. Aliás, o método sociológico tende a dar mais atenção aos aspectos econômicos e aos institucionais da existência humana do que às suas dimensões pessoais e religiosas (PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, 2006, p. 69).
Dessa forma, podemos assumir uma postura interpretativa com maior consciência do enfoque que se escolhe para elucidar uma interpretação. No presente artigo propomos uma abordagem sobre o tema. Porém, ela pode se apresentar com limites e lacunas. Não é absoluta. Talvez se enfatizem demasiadamente as estruturas econômicas 222
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e societárias em detrimento dos aspectos propriamente teológicos e religiosos que o texto bíblico se propõe a narrar. Faz-se, aqui, a opção por correr o risco em propor uma interpretação com limites. No entanto, são apresentadas as razões do método que se escolheu e se prossegue na exposição do tema do ensaio. 1.1 A perspectiva sociológica de Karl Marx – luta de classes Expostas as características definidoras da interpretação sociológica da Bíblia, desenvolver-se-á agora, de forma mais densa, a perspectiva sociológica de Karl Marx, que é uma das tendências das abordagens sociológicas que se usa para o estudo de textos bíblicos no método histórico-crítico. Para a apresentação dessa tendência de pesquisa nas ciências bíblicas é fundamental a referência a um autor clássico do estudo sociológico da Bíblia hebraica. No âmbito do Antigo Testamento, ficou famoso o equilibrado estudo de N. K. Gottwald sobre as origens de Israel (The Tribes of YHWH, Nova York, Orbis Books, 1979), que procura explicar o surgimento do povo de Israel mediante o modelo das oposições cidade/campo, agricultores/ classes urbanas cananéias (sic), isso é, por meio do sistema de luta de classes (BÍBLIA, 2005, p. 215).
Fica claro que Gottwald foi o que melhor estudou e apresentou uma abordagem marxista da história de Israel numa releitura dos textos bíblicos a partir de um método específico. Ele foi o que melhor desenvolveu uma perspectiva sociológica com base no pensamento de Karl Marx. Marx propõe “uma concepção dialética, conflitiva e fundamentalmente econômica das relações sociais (LARA, 1010, p 61)”. Para ele, REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 218-234, jan./jun. 2011
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As classes sociais não são meros agrupamentos sociais, mas grupos com interesses e posições objetivamente definidas na relação direta que estabelecem entre si, mediante o lugar que ocupam na apropriação dos meios de produção e na esfera da divisão social do trabalho. Os conflitos de ordem cultural, intelectual e religiosa são vistos como produtos dos conflitos sociais básicos na esfera da ordem econômica e social (LARA, 2010, p. 62).
Com base nessa postura sociológica de Marx, que enfatiza a luta ideológica entre as classes de uma sociedade, é que Gottwald interpreta a relação entre campo e cidade. Ele propõe olhar para essas realidades como dois grupos em conflito, que apresentam interesses diferentes, e em alguns casos, teologias diferentes, pois apresentam maneiras antagônicas de se relacionar com seu “Deus”. Neste modo de examinar a situação política no antigo Oriente Próximo, é a cidade que permanece em posição oposta à região rural; as classes monárquicas e aristocráticas centralizadoras e estratificadas discordam das populações de camponeses e pastores. Quer a população rural se ocupasse em primeiro lugar na lavoura, quer na pecuária, quer em alguma associação das duas, todas elas partilhavam muito mais em comum do que faziam com as elites urbanas. Sem dúvida, a população rural poderia admitir, relutantemente, que as obrigações para com a autoridade central eram inevitáveis – ou até, às vezes, que valia a pena pelo lucro em segurança que proporcionava, caso as extorsões se mantivessem até um limite tolerável ou caso alternativa de sujeição a uma potência ainda mais onerosa de fora fosse com isso impedida. De qualquer forma, a região rural não admitia, inquestionavelmente, este domínio por parte da cidade (GOTTWALD, 1986, p. 455-456).
Sendo assim, vê-se que podemos nos aproximar de alguns textos bíblicos do Primeiro Testamento e ver neles um conflito implícito de um contexto social. Gottwald nos ajuda a ler com um olhar crítico, que tem como base a matriz sociológica marxista, para interpretarmos 224
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as Sagradas Escrituras. Ao buscarmos resgatar a relação entre campo e cidade na Bíblia hebraica, podemos observar com mais clareza a disputa ideológica entre o grupo urbano e o grupo rural, que numa leitura sem um método específico pode passar despercebida. Para finalizar este tópico do presente artigo, é importante destacar que também outros estudiosos se propõem a descrever essa relação entre grupos sociais. Com isso tentam reconstruir o contexto social que os textos bíblicos apresentam explícita ou implicitamente. José Airton da Silva, escrevendo sobre a temática da leitura socioantropológica das Sagradas Escrituras, faz a seguinte observação (que vai ao encontro da ideia que aqui se desenvolve): Já o sociólogo alemão Ferdinad Tönnies (1855-1936) formulou a distinção, torna clássica, entre dois tipos básicos de organização social: a comunidade (Gemeinschaft) e a sociedade (Gesellschaft). As relações de comunidade, típicas de grupos de caçadores/coletores e hordas – portanto, grupos relativamente pequenos e pré-industriais – baseiam-se na coesão nascida do parentesco, das práticas herdades dos antepassados e dos fortes sentimentos religiosos que unem o grupo. Já as relações de sociedade são típicas de grupos que vivem vida urbana desenvolvida, organizam-se em Estados e possuem uma complexa divisão do trabalho (SILVA, 2009, p. 393).
Portanto, a relação entre campo e cidade pode em outros estudos ser apresentada como uma relação entre “comunidade” e “sociedade”. Isso fica evidente na distinção proposta por Ferdinard Tönneies. Aqui, faz-se a opção de manter os conceitos campo e cidade.
2 Campo e cidade no Primeiro Testamento Percorramos agora as variadas citações bíblicas que nos apresentam o conflito entre campo e cidade. As perícopes citadas seguirão REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 218-234, jan./jun. 2011
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a tradução e notas da Bíblia de Jerusalém. A apresentação seguirá uma ordem canônica. Todavia, é importante deixar claro que esse ensaio não esgota o assunto nas Sagradas Escrituras; foram escolhidos os textos mais relevantes para esta pesquisa. 2.1 Gn 4, 1-17 – Caim e Abel A primeira narrativa bíblica que nos mostra o conflito estabelecido entre grupos sociais distintos está logo nas páginas iniciais do livro de Gênesis. A famosa disputa entre os dois filhos de Adão e Eva, do capítulo quatro, é o texto que introduz toda nossa reflexão de uma abordagem sociológica do Primeiro Testamento. Numa leitura desatenta e sem um método mais específico, quando lemos Gn 4, 1-17 percebemos apenas uma briga entre dois irmãos, que termina num fratricídio, ou seja, um irmão mata outro irmão. Porém, o texto vai muito além. Com ajuda da abordagem sociológica podem-se destacar alguns detalhes do texto que às vazes nos passam despercebidos. Em primeiro lugar, é de notar a apresentação que o texto faz dos dois irmãos. O versículo 2 é fundamental: “Abel tornou-se pastor de ovelhas e Caim cultivava o solo”. Com isso fica claro que estamos falando de dois grupos sociais distintos, os pastores e os agricultores. Um grupo nômade, que vivia da domesticação de pequenos rebanhos, que celebrava suas festas familiares com a carne de cordeiro. E outro grupo sedentário, que praticava a agricultura, que celebrava suas festas com o fruto do solo, o pão, o vinho. Pode-se afirmar que os autores dessa narrativa bíblica tendem claramente a defender o grupo dos pastores. Provavelmente os autores dessa história, que teve uma longa transmissão na cultura oral antes de se tornar texto escrito, eram descendentes de pastores. Devido a isso, o texto exalta teologicamente o pastor Abel, que agrada a Deus, e diminui o camponês Caim, que não agrada a Deus e torna-se um assassino. 226
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No entanto, o texto afirma em sua teologia que Deus faz uma aliança de proteção a Caim, ou seja, Deus ama e protege também os camponeses e seus descendentes. Em segundo lugar, ao olhar para o versículo 17, vemos algo que nos interessa mais substancialmente. Caim é apresentado como aquele que “tornou-se um construtor de cidade”. Esse detalhe é importante. O conflito anteriormente estabelecido entre dois grupos rurais (pastores e camponeses) agora é transferido para uma rixa diferenciada. O assassino invejoso é o grande pai da “cidade”. Para o autor do texto, os ambientes urbanos não se originam de algo que agrada a Deus, mas sim das limitações humanas, dos defeitos mais repugnados numa sociedade. Dessa maneira, nota-se no texto de Gn 4 conflito entre grupos sociais diferentes, em que marcadamente se exalta o grupo do interior rural ligado à pecuária e à vida pastoril. 2.2 Gn 11, 1-9 – Babel Outro texto paradigmático para entendermos a relação entre campo e cidade na Bíblia está também nas narrativas míticas de suas primeiras páginas. Gn 11, 1-9 narra a pretensão ambiciosa e fracassada dos grupos urbanos. Segundo esse texto, o povo da cidade pretendia chegar ao céu pelas suas próprias forças. Com essa ideia, mostra-se também a pretensão de suplantar o próprio Deus: “Vinde! Construamos uma cidade e uma torre cujo ápice penetre os céus! Façamos um nome e não sejamos dispersos sobre a terra!” A narrativa é também um contra-mito, pois quer ser uma resposta irônica à exaltada Babilônia (LÓPES, 1998, p. 27). O texto joga com a assonância do nome da capital (Bab-ilim = “Porta de Deus”) e o verbo balal (= “confundir”). Babel é a porta da confusão. O texto mostra que Deus decide descer e fomentar confusão entre os construtores da cidade e os da torre. O desentendimento das línguas é um mito etiológico para explicar as origens dos variados idiomas dos povos, REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 218-234, jan./jun. 2011
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mas também pode ser visto como uma crítica campesina à cidade, pois é nela que moram as pessoas que querem ser “deuses” e “deusas”, e que na verdade só disseminam a confusão entre todos. 2.3 Gn 12, 10ss – mulheres objetos sexuais; Gn 20; Gn 26 Uma narrativa que se repete no livro do Gênesis é fundamental para expor o desafeto entre campo e cidade. Essa narrativa se encontra em Gn 12, 10ss; Gn 20 e Gn 26. Os três textos citados falam de pastores que vão à cidade em tempos de fome e temem que o povo da cidade, com o intuito de lhes roubar as mulheres, os mate. Não nos deteremos na historicidade factual dos textos, apenas apontaremos o que nos interessa para olharmos o contexto social dos povos ligados a Israel e sua construção étnica. Lendo os textos referidos, notamos que a avaliação que se faz do povo da cidade não é a melhor. As narrativas apontam que os grupos urbanos são violentos, pouco hospitaleiros, e que matam as pessoas do interior para explorar sexualmente suas mulheres. Essa interpretação pode parecer, num primeiro momento, exagerada. No entanto, se levarmos em conta que a mesma narrativa se repete três vezes em Gênesis, é de supor com grande segurança que isso fazia parte do contexto de vida (Sitz in leben) daqueles povos. Mais uma vez vemos a postura anticitadina do texto da Bíblia. A perspectiva que mostra Deus ficando do lado do povo da roça é clara. Principalmente nesse caso, Deus defende as mulheres. Numa cultura patriarcal, androcêntrica, as mulheres sofriam de maneira mais acentuada a discriminação e a dor dos conflitos sociais. 2.4 Gn 13 – Ló nas cidades, Abraão no campo Continuando nossa apresentação dos variados conflitos entre a classe urbana e a rural, nas Sagradas Escrituras vemos uma referência também no capítulo 13 de Gênesis. 228
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Campo e cidade: uma abordagem sociológica no Primeiro Testamento
Temos uma riqueza a ser vasculhada nessa perícope, porém, tem-se que ser sucinto. O texto quer ser também um mito etiológico que fala da origem do conflito entre israelitas, descendentes de Abraão, e moabitas e amonitas, descendentes de Ló. Abraão está ligado ao grupo que fica no campo, na criação de ovelhas; Ló, seu sobrinho, vai em direção às cidades e se estabelece nelas. O texto fala que tudo foi resolvido com a separação do tio e do sobrinho. “Assim eles se separam um do outro. Abrão estabeleceu-se na terra de Canaã e Ló estabeleceu-se nas cidades da Planície; ele armou suas tendas até Sodoma. Ora, os habitantes de Sodoma eram grandes criminosos e pecavam contra Iahweh.” Depois do conflito, Deus faz aliança com Abraão, que ainda é apresentado como Abrão, e ele vai se estabelecer em um lugar sagrado, um lugar de culto. Aqui, faz-se a seguinte observação: “O lugar sagrado da árvore grande de Mambre é marcado pelo conflito de Abraão com Ló. Conflito entre cidade e campo (Gn13,18)” (GALLAZZI, 2007, p. 187). Com isso, já introduzimos o tópico seguinte, que fala da avaliação bíblica da cidade de Sodoma e Gomorra, cidades onde foi morar Ló. 2.5 Gn 19 – Sodoma e Gomorra Como citamos acima, Gn 13,13 afirma que “os habitantes de Sodoma eram grandes criminosos e pecavam contra Iahweh”. Nota-se que o texto diz que os habitantes da cidade são criminosos e desagradam a Deus, na mesma lógica que se apresentou Caim. É uma crítica camponesa aos grupos urbanos. Gn 19 apresenta as cidades de Sodoma e Gomorra como os centros da perdição e dos males que podem existir sobre a face da terra. Por isso, o texto afirma que Deus decide destruir definitivamente essas duas cidades. Não há como fazer grandes conjeturas históricas sobre essas cidades. Aqui importa apenas demonstrar que com uma abordagem REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 16, p. 218-234, jan./jun. 2011
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sociológica vê-se o conflito entre campo e cidade. E que os textos são críticos aos grupos urbanos e exaltam os grupos camponeses. 2.6 Js 12 – vitória sobre os reis das cidades-Estado Outra referência clara ao conflito entre o campo e a cidade está nas narrativas míticas do Livro de Josué. De maneira generalizada podemos falar que o texto narra a conquista da Terra Prometida após a vitória sobre as cidades-Estado cananeias. Percebe-se que o texto tem a intenção de afirmar que, para que a promessa de Deus se realize, é preciso que as estruturas urbanas que causam opressão e escravidão sejam destruídas. Pois, do contrário, a experiência do Êxodo e da Aliança não será realizada como promessa na terra. A nova organização da vida do povo passa também pela superação e destruição de tudo o que vem da cidade, dos grupos urbanos vassalos do Egito. Partindo disso, Js 12 apresenta a lista de todos os reis das cidades-Estado que foram vencidos. Não há historicidade nessas narrativas, há apenas uma intenção teológica de afirmar que Deus apoia o conflito dos camponeses oprimidos contra os opressores do mundo urbano cananeu. Provavelmente, muitas das cidades cananeias não foram destruídas pelos hebreus, como a arqueologia ajuda compreender hoje. 2.7 Os profetas e a cidade – Is 1,21ss; Mq 1,6; 3,12; Ez 16, 23 De maneira bem breve, é importante destacar as críticas de alguns profetas feitas às cidade, sobretudo às capitais. Em Is 1,21ss nota-se que a capital Jerusalém é apresentada como infiel a Deus, prostituta e povoada de assassinos. Toda a corrupção e o mal são descritos pelo profeta nas suas críticas à cidade. No Segundo Testamento temos um pouco da herança dessa profecia agressiva a Jerusalém; em Lc 13, 31-35 encontramos a crítica de Jesus à capital. 230
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Miqueias, contemporâneo de Isaías, também esperava a ruína das capitais. Em Mq 1,6 temos o desejo de que Samaria, a capital do reino do norte, se transforme em uma plantação de vinhas, ou seja, seja dominada pelos camponeses. E em Mq 3,12 temos a mesma profecia, o mesmo desejo descrito para Sião, onde está a capital de Jerusalém. Na mesma avaliação negativa da capital e da cidade, o profeta Ezequiel narra a história simbólica de Jerusalém em tempo de exílio e a apresenta como uma prostituta, uma infiel, onde há o “acúmulo de toda maldade” (Ez 16, 23). Portanto, os textos proféticos também são críticos das sociedades urbanas, embora não se tenham limitado somente a elas. Eles também fizeram suas críticas aos grupos rurais que espalharam o mal sobre a terra de Israel. 2.8 Campo e cidade no Cântico dos cânticos Finalizando essa exposição de textos do Primeiro Testamento que nos ajudam a remontar o conflito social entre campo cidade, destaca-se uma chave de leitura para interpretação do Cântico dos cânticos. Nesse texto onde o eu lírico principal é uma mulher, Sulamita, vemos algumas perícopes e detalhes que nos ajudam a reconstruir um contexto conflitivo e mostrar a luta entre a classe rural e a urbana. Em Ct 1, 5-7 temos a apresentação de Sulamita como uma camponesa ligada à agricultura e ao pastoreio. Elementos sociais de divisão do trabalho que já apareciam em Gn 4, aqui são condensados. Ct 3, 2-3 dá a entender que na cidade ela não encontra o amado. Ou seja, essa camponesa que busca seu amado, buscando a paz, tentando dar-lhe paz4 e receber paz com ele, não consegue fazer isso na
Cf. RIZZANTE, 1995, n. 21. O referido artigo também pode se lido em GALLAZZI, 2008, p. 53-60. 4
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cidade. O amor não pode ser encontrado na cidade. A paz não pode ser experimentada na cidade. Por fim, quando ela insiste em buscar o amor e a paz na cidade, é agredida pelos guardas. Ct 5, 7 fala da agressão que a camponesa sofre pela estrutura militar dos grupos urbanos. Com uma abordagem sociológica podemos destacar desses versículos em Cântico dos cânticos elementos que nos fazem refletir sobre os conflitos que existiam entre e os grupos rurais e os grupos urbanos. E, como afirmamos no tópico 2.3, é de considerar que as mulheres sofriam de maneira mais acentuada a discriminação e a dor dos conflitos sociais.
Conclusão Em suma, ao chegar ao fim deste ensaio, conclui-se que o conflito entre cidade e campo está marcado nas páginas do Primeiro Testamento e que os textos se apresentam numa lógica bastante avessa à cidade. No entanto, não se pretende absolutizar essa visão. Não se quer criar uma imagem negativista da vida urbana ou dos grupos citadinos. Sabe-se que a vida urbana é a que predomina na organização social hodierna. Mas, também, é de notar que, quando essa estrutura se torna opressora e causa o mal, tanto aos grupos do interior como às minorias urbanas, é de se esperar que faça críticas eficazes e sérias, para que reavaliemos nossa organização em sociedade. Portanto, a abordagem sociológica das Sagradas Escrituras tem muito a contribuir com os estudos teológicos. Este ensaio apenas propôs-se a um corte epistêmico para um primeiro contato com essa abordagem.
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COUNTRY AND CITY: A SOCIOLOGIC APPROACH IN THE OLD TESTAMENT Abstract: This article presents a sociologic approach of the Old Testament. It describes concisely the sociologic interpretation of the Bible and elucidates several quotations, in which conflicts between urban groups and rural groups are perceived. It is observed in the development of the text that the Bible narrates, in a more highlighted manner, postures against the city, defending the interests of the group from the country. Keywords: Country, city, sociologic approach, class struggle.
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19. Revista Filosofia da PUCPR – Semestral 20. Revista Litterarius: FAPAS RS – Semestral 21. Sapientía Crucís: Revista Filosófico-Teológica – Anápolis – GO – Anualmente 22. Scientia: Revista Interdisciplinar do Centro Univ. Vila Velha ES – Semestral 23. Theós: Revista de Reflexão Teológica da Faculdade Teológica Batista de Campinas – Semestral 24. TQ: Teologia em Questãoda Faculdade Dehoniana SP – Semestral 25. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da UNESP – Semestral 26. Veritas: Revista de Filosofia da PUCRS – Trimestral 27. Via Teológica: Faculdade Teológica Batista do Paraná – Semestral
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