a.9 n.17 jul./dez. 2011 - Iftav/Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Nº 17
n. 17 julho/dezembro 2011 a. 9
REDES
Revista Capixaba de Filosofia e Teologia
Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória - ES Diretor: Hugo Scheer Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo Diretor Executivo: Jolmar Luis Hawerroth REDES Revista Capixaba de Filosofia e Teologia Uma publicação do Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória e da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Coordenador Paulo Cesar Delboni pdelboni@salesiano.com.br Vice-coordenador Renato C. Gama Comissão Editorial Antônio Vidal Nunes, Fábio Eulalio dos Santos, Hugo Scheer, Paulo Cesar Delboni e Renato C. Gama. Conselho Editorial Antonio Donizetti Sgarbi (Instituto de Filosofia e Teologia de Vitória - Iftav), Antônio Vidal Nunes (Universidade Federal do Espírito Santo - Ufes), Claudia P. C. Murta (Ufes), Edebrande Cavalieri (Ufes), Franz Helm (Instituto de Teologia das Religiões, St. Gabriel, Viena - Áustria), Geraldo Caliman (Universidade Católica de Brasília - DF), Giovani Marinot Vedoato (Iftav), Guido Gatti (Pontifícia Universidade Salesiana - Itália), Jair Miranda de Paiva (Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo), Joachim G. Piepke (Faculdade de Filosofia e Teologia St. Augustin - Alemanha), Kelder J. B. Figueira (Iftav), Mario Toso (Pontifícia Universidade Salesiana - Itália), Renato C. Gama (Iftav), Tiago Adão Lara (Universidade Federal de Juiz de Fora - MG) e Virgínia A. Carrara (Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo).
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Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória - Iftav Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
REDES
Revista Capixaba de Filosofia e Teologia a. 9 - n. 17 - julho/dezembro 2011 Vitória-ES
FILOSOFIA E RELIGIÃO
ISSN 1679-4265 Redes: Revista Capixaba de Filosofia e Teologia
Vitória
a. 9 n. 17 p. 1-224
jul./dez. 2011
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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Redes: Revista Capixaba de Filosofia e Teologia. Ano Vitória, a. Vitória, a. 9, n. 17 (jul./dez. 2011). - Vitória : Iftav / Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo, 2011. 224 p. ; 21,5 cm. Semestral ISSN 1679-4265 1. Filosofia - Periódicos. 2. Teologia - Periódicos. I. Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória - ES. II. Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo. CDU 1+2 (05) Tiragem: 300 exemplares | Periodicidade: Semestral
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .................................................................................................7 ÉTICA DEL BIEN COMÚN Y DE LA RESPONSABILIDAD SOLIDARIA ............................................................ 9-39 Ethics of the common good and the solidarity responsibility Carlos Molina Velásquez A IDEIA DE FILOSOFIA NO BRASIL COMO SUPERAÇÃO DO ARISTOTELISMO DE MATRIZ IBÉRICA ........40-87 The idea of philosophy in Brazil as overcoming of the iberian matrix aristotelianism Luiz Alberto Cerqueira TOBIAS BARRETO E A RELIGIÃO: CONSIDERAÇÕES INICIAIS ....................................................................88-99 Tobias Barreto and religion: initial considerations Antônio Vidal Nunes O “FUNDO DA ALMA” NOS SERMÕES ALEMÃES DE MESTRE ECKHART ...................................................100-116 The “depths of the soul” in the german sermons of master Eckhart Jorge Augusto da Silva Santos e Renata Aparecida Lucas OS DIREITOS HUMANOS A PARTIR DO PENSAMENTO FILOSÓFICO DE IGNACIO ELLACURÍA .......................................117-136 Human rights from Ignacio Ellacuría’s philosophical thought Rogério Baptistella A POSSIBILIDADE DE UMA FENOMENOLOGIA DO SAGRADO EM RUDOLF OTTO ..................................................137-152 The possibility of a phenomenology of the sacred in Rudolf Otto Edson Kretle dos Santos
PARA ONDE CAMINHA A FORMAÇÃO HUMANA? REFLEXÕES SOBRE A CIDADE E A FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO: UMA ANÁLISE À LUZ DA TEORIA CRÍTICA ....153-168 Where does human formation go? Reflections about the city and the formation of the individual: an analysis in the light of the critical theory Alex Sandro Corrêa A IMAGEM PLATÔNICA DO SOL NA METAFÍSICA DO PSEUDO-DIONÍSIO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A DIFUSÃO DA LUZ DE DEUS NO MUNDO NA OBRA “DOS NOMES DIVINOS” ......................................................................169-182 The platonic image of the Sun in the Metaphysics of the Pseudo-Dionysius: considerations about the diffusion of the light of God in the world in the work Divine Names Weriquison Simer Curbani TRABALHO, EDUCAÇÃO E SOLIDARIEDADE: FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS E ÉTICOS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA .......................................................................183-201 Work, education and solidarity: philosophical and ethical fundaments in the solidarity economy Eliesér Toretta Zen A PÓS-MODERNIDADE E SEUS DESAFIOS À ESPIRITUALIDADE CRISTÃ: É POSSÍVEL A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ HOJE? ..................................................202-217 The post-modernity and its challenges to the christian spirituality: is the christian spirituality possible today? Werbson Beltrame Pereira
REVISTAS EM PERMUTAS ...................................................................219-222 NOTA AOS COLABORADORES .........................................................223-224
APRESENTAÇÃO
A Revista Capixaba de Filosofia e Teologia (Redes), fundada em 2003, de circulação semestral, é fruto de uma parceria dos cursos de Filosofia da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo e Teologia do Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória (Iftav). O periódico foi concebido para estimular e difundir a construção do conhecimento filosófico-teológico produzido pelos professores e alunos dos citados cursos, bem como de pesquisadores de outras instituições de ensino e pesquisa. O nome Redes conserva a universalidade dos temas básicos da revista, que são filosofia e teologia. O conhecimento é aqui pensado como entrelaçamento de significações. “Rede” traz à tona as ideias de acentrismo, metamorfose, heterogeneidade, multiplicidade, transdisciplinaridade. A Redes busca a coerência entre a práxis dos cursos de Filosofia e Teologia, além da integração multidisciplinar com diversas outras áreas do conhecimento, como as ciências da religião, incluindo aí vários recortes que podem ser feitos no estudo do fenômeno religioso, destacando-se a antropologia, a comunicação social, a história, a pedagogia, a psicologia e a sociologia.
Paulo Cesar Delboni
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ÉTICA DEL BIEN COMÚN Y DE LA RESPONSABILIDAD SOLIDARIA Carlos Molina Velásquez*
Resumen Este artículo es una aproximación a los planteamientos teóricos de Franz Hinkelammert, mediante los cuales podríamos fundamentar filosóficamente una ética del bien común y de la responsabilidad solidaria. Partiendo de la necesidad de un humanismo abierto, material e historizado, el autor de este trabajo analiza las propuestas éticas del filósofo alemán, mostrando algunas claves de interpretación que contribuirían a pensar de manera renovada los derechos humanos, los proyectos sociales alternativos, y las apelaciones que hacemos a nuestras obligaciones y a nuestra libertad. Palabras-claves: Ética, solidaridad, responsabilidad.
Se ha vuelto costumbre que al surgir problemas en la sociedad, sean estos económicos, sociales, culturales o políticos, más de alguno proponga que deba procederse según las reglas de la moral o los consejos de la ética. El Salvador no es la excepción, así que vemos que abundan quienes hablan de valores y principios, de códigos y reglas. No obstante, es raro encontrar propuestas suficientemente articuladas y, más aún, adecuadamente justificadas. En este artículo, quiero proponer unas ideas que podrían abonar a una mayor comprensión de nuestras apelaciones a la ética, basándome en los planteamientos del filósofo alemán Franz Josef Hinkelammert (1931). Éste nos exhorta a emprender la tarea de construir un nuevo humanismo que parta del reconocimiento de la conflictividad entre los cálculos instrumentales – individuales, colectivos, pero sobre todo institucionales – y los valores fundamentales para la vida humana, aunque sin dar la espalda a dicha conflictividad ni poniéndola entre paréntesis. Al contrario, se trata de asumirla
* Departamento de Filosofía de la UCA, San Salvador. carlosmolinavelasquez@hotmail.com REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 9-39, jul./dez. 2011
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y superarla creativamente. Pero, esta superación no debería entenderse como si se tratara de “crear nuevos valores” o de “recuperar los perdidos”, como usualmente se señala. Más bien, se trata de que una apuesta por la ética del bien común transforme los valores de la sociedad. Esto lo podemos ver, por ejemplo, en el caso del valor de la solidaridad: “La solidaridad no puede ser el valor central de esta ética. Tiene que ser, más bien, una ética de la vida. Con ella aparecen los valores que únicamente pueden ser realizados por una acción solidaria y que por tanto implican la solidaridad” (HINKELAMMERT, 2001, p. 326). Estos valores que “aparecen” pueden ser comprendidos como valores “de por sí”, en el sentido de que son los que posibilitan la existencia de todos los demás. Nos referimos a ellos usando expresiones como “el valor de la vida” o “la opción insobornable por la protección de la dignidad humana”, pero con ello no hacemos más que poner un referente básico, sobre el cual podemos luego organizar prácticas individuales o colectivas. Y es sólo a partir de ellos que la solidaridad se convierte a su vez en un valor “de por sí”, pero en un sentido “derivado”, nunca como teniendo su base en sí mismo. Si esto último fuera el caso, se trataría de un valor absoluto, lo cual nos expondría a nuevos peligros o abusos. La razón clave de esto se encuentra en que la solidaridad es un valor ligado a su propia imaginación trascendental, es decir, a la construcción ideal que permite pensar y realizar actos solidarios, establecer relaciones construidas sobre la base de la solidaridad, etc. Ya que se tratan de valores solidarios, deben concretarse en objetos preferibles y acciones consecuentes con ellos. Pero nunca podrán “agotar” los diversos modos en que se realiza la vida humana ni convertirse en un estadio de su plenitud en la historia. Por eso, estos valores refieren siempre a la vida humana como criterio que sirve para interpelarlos. Por otra parte, es posible interpretar la solidaridad de muchas maneras distintas (y esto es aplicable a muchos otros valores). Puede hablarse de solidaridad en una banda de gangsters o entre los miembros de un batallón de soldados con la misión de asesinar civiles indefensos. Es muy probable que militares golpistas – como sucedió efectivamente en el Chile de Pinochet – utilicen argumentos acerca de la solidaridad entre grupos de poder y ciertos sectores sociales, a fin de legitimar sus acciones. Pero lo que quiero destacar no es que estos argumentos sean burdas mentiras o pura retórica, sino que efectivamente estarían reflejando un uso plausible del término. 10
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Hay un ejemplo muy concreto de esto. Cuando la ciudadanía salvadoreña reacciona ante los niños quemados por los cohetes y la pólvora navideña, y condena dicha actividad, no se niega que quienes defienden a los fabricantes de artilugios pirotécnicos sean solidarios con ellos y de una manera muy concreta. Sus vidas dependen de dicho negocio. No sirve argumentar que la solidaridad con los quemados es “verdadera solidaridad”, mientras que la preocupación por los fabricantes sólo lo es a medias o fruto de intereses inconfesables. Lo que tenemos que reconocer es que estamos ante un conflicto que no puede resolverse dentro de los límites del mero compromiso con valores. Por ello es que Hinkelammert propone que la interpelación de los valores se efectúe a partir de una perspectiva antropológica abierta, la cual nos ayudaría a dirimir conflictos entre diversos grupos de “preferibles” (valores). Esto significa que deberíamos postular un principio fundamental de cualquier defensa de los valores, pero que no sea a su vez algo que podemos preferir nada más. Propiamente hablando, un “valor de por sí” sólo puede ser algo que es condición para cualquier elección posterior sobre valores. Dicho valor fundamental lo encontramos en la acción que garantiza la reproducción de la vida humana. Por ello, todos los valores deberían ser interpelados desde la constatación de que, en última instancia, deben estar en armonía con la vida humana. Pero, ¿por qué debe ser esto así? Hay por lo menos dos problemas al respecto. En primer lugar, se nos podría decir que las personas ordenan sus actos en función de sus intereses – buscando ciertos valores, mientras rechazan otros – y que esto puede significar no sólo que pongan en peligro la vida de otros sino la suya propia. Por otra parte, ¿no es posible que debamos proteger la vida de unos segando la vida de otros, por ejemplo, cuando se trata de legítima defensa o guerra justa? La respuesta de Hinkelammert a estas cuestiones consiste en apelar a lo que subyace a ellas mismas. Por una parte, al apelar a nuestra condición de “sujetos de intereses” no podemos negar que, en el largo plazo, nuestras acciones no deberían producir nuestra propia desaparición, a menos que lo que efectivamente estemos buscando sea suicidarnos. Además, hay que indicar que al afirmar la vida humana no nos estamos refiriendo únicamente al individuo sino, más bien, a la “unidad corporal” que constituye la humanidad y a la percepción de que “este cuerpo que somos todos habita una misma casa”. La experiencia reciente de la globalidad de los problemas REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 9-39, jul./dez. 2011
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ecológicos y de la necesidad de entender los derechos humanos tomando en cuenta la globalización de los deberes para con la humanidad, son sólo algunas expresiones de la conciencia que se viene adquiriendo acerca de que la humanidad constituye una auténtica unidad.1 Esta conciencia acerca de que los problemas que resultan de nuestras prácticas sociales tienen implicaciones nocivas – incluso para quienes se creen seguros detrás de bardas y muros de seguridad – nos lleva a sostener que la realidad misma nos impulsa a actuar según el parámetro moral que señala que debemos hacer a otros lo que queremos para nosotros mismos. Lo nuevo en esta recuperación de la “Regla de Oro” es que proviene de una constatación de hechos y de un tipo de opción radical: si queremos vivir, debemos garantizar la vida. Hinkelammert lo formula con la expresión “asesinato es suicidio”, que no es una síntesis de acciones ofrecidas a la experiencia de modo desligado o fragmentario, sino, más bien, una postulación de la realidad. En tanto “postulación”, determina el marco necesario para poder reflexionar sobre la misma experiencia. Es este realismo el que realiza la condena del acto que destruye toda posibilidad de convivencia: el asesinato. Así es posible formular un criterio básico de la ética: todos tenemos el deber de reproducir la vida humana y de procurar aquellas acciones que fomenten dicha reproducción. De esta manera, el postulado de la razón práctica (asesinato es suicidio) y el criterio fundamental de la ética transforman el valor de la solidaridad en “solidaridad-para” la vida plena de todos los seres humanos. Esto posibilita introducir consideraciones cualitativas – respeto de los derechos humanos y exigencia de unos deberes correspondientes – y no sólo cuantitativas – cálculo de utilidades y beneficios en el corto plazo. La solidaridad no puede ser una solidaridad sometida a cálculos de costo-beneficio que hacen caso omiso de consideraciones morales legítimas, pero tampoco puede ser “proclamada” como un valor abstracto (Cf. HINKELAMMERT, 1995, p. 34).
En esta línea apuntan las iniciativas prácticas en función de una ética mundial, así como las reflexiones teóricas desarrolladas por diversos filósofos, teólogos, y científicos sociales, entre los que destaca la obra de Hans Küng. De éste pueden consultarse Una ética mundial para la economía y la política, Madrid, Editorial Trotta, 1999; y ¿Por qué una ética mundial? Religión y ética en tiempos de globalización, Barcelona, Editorial Herder, 2002. También es recomendable su compilación de trabajos de diversos autores que apoyan el proyecto, en Küng, Hans (ed.); Reivindicación de una ética mundial, Madrid, Editorial Trotta, 2002. 1
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Por ello es que la solidaridad debe verterse en proyectos solidarios, que tengan como criterio esencial el de la reproducción de la vida plena de todos. Esto es, por supuesto, utopía, pero no entendiéndola como sociedad perfecta sino como utopía de convivencia, de no exclusión, de superación de la lógica de la institucionalización y los automatismos (Cf.HINKELAMMERT, 2002, p. 280-282). Hay que pensar la alternativa en clave utópica, no únicamente porque lo que se pretende realizar señala a lo imposible, sino porque eso imposible – utopía trascendental – surge como un marco general de reflexión y proyección de modos de organización social, pero orientados a la realización de alternativas factibles – utopías necesarias. Estas “utopías” son necesarias porque son indispensables para que podamos seguir viviendo todos. Pero también apuntan a la inevitabilidad de la condición humana, que nos recuerda constantemente nuestra falibilidad y nuestra precariedad. Son necesarias, pues implican un compromiso con acciones y formas de vida que se vuelven indispensables para que existan siquiera normas efectivas de convivencia, aún si estas no son en modo alguno perfectas. Así es que, aunque ya vemos la realización de dichas utopías – en proyectos sociales, económicos, culturales y políticos concretos2 –, éstas no pueden ser concebidas si no es refiriéndolas a su contraparte trascendental, que se sitúa “más allá” de los límites de lo posible, “marcando” precisamente cuál será el horizonte de la realización humana. Un proyecto alternativo será el que logra realizar modos de acción institucional y formas de vida que se oponen a la lógica imperante, la cual es indiferente a la destrucción de la humanidad.3 Lo nuevo lo encontramos en la apuesta por una vida plena para todos, pero dicha apuesta no deberá confundirse con el seguimiento ciego de un automatismo que surja una vez derribado el anterior. No se trata de derribar “la maquinaria mercado” sustituyéndola por “el aparato Estado”. De lo que se trata, más bien, es
2 Para efectos de ilustrar un caso de la realidad salvadoreña, son dignas de mención las diversas experiencias de la economía solidaria, que dan cuerpo a proyectos sociales alternativos y a intuiciones de profundo arraigo humanista. Puede consultarse el trabajo publicado por el Departamento de Economía de la Universidad Centroamericana “José Simeón Cañas” (UCA), Economía solidaria, San Salvador, 2005. 3 Cfr. Fernández Nadal, Estela; “La búsqueda de alternativas a la democracia capitalista. Franz Hinkelammert y la crítica a la racionalidad formal”, escrito inédito (2004), p. 7-8.
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de instituir formas de intervención subjetiva de los mecanismos que sean. Si bien éstos son inevitables, no deben ser dejados a sus anchas ni mucho menos subordinándolos a intereses que no corresponden a los fines legítimos buscados por el conjunto de los involucrados. Ahora bien, será la misma práctica de los sujetos – de la mano de las ciencias sociales – la que determinará los modos concretos de toda ”intervención” de la lógica de los mecanismos institucionales. Los criterios prácticos deben orientarse según la postulación de la subjetividad como condición de realismo y no según el “realismo político” (Realpolitik), mero eufemismo para la reducción de la realidad subjetiva a calculabilidad objetiva.4 Esto supone la tarea de recuperación de la ética, mediante la reformulación del universalismo de los principios orientadores de la acción social. El universalismo ético deberá partir de aquellos principios que ya se nos ofrecen como “universales”, aún si usualmente se los interpreta de manera reducida, invertida o mistificada. Según Hinkelammert, los derechos humanos son esos principios recuperables, pero sólo si se replantea la índole misma de su universalidad, desde una nueva concepción del bien común.
Hacia una reconstrucción subjetiva de los derechos humanos Franz Hinkelammert es un autor conocido por sus incisivas críticas al discurso dominante sobre los derechos humanos. No obstante, él no considera que éstos sean inútiles ni perniciosos en sí mismos. Los derechos 4 En este sentido podemos suscribir las siguientes afirmaciones: “Estoy de acuerdo con Agustín de Hipona, en su Civitate Dei, cuando señala que si de los Estados quitamos la justicia, ‘¿en qué se convierten sino en bandas de ladrones a gran escala?’. Y qué podemos decir, desde nuestra situación histórica, de la justicia como condición cualitativa del poder bien ejercido: la justicia está referida al comportamiento de quienes ejercen el poder respetando los derechos humanos de cualquier persona. Por ello, el respeto de los derechos humanos distingue cualquier banda criminal de un Estado y, a su vez, expresa siempre el límite crítico que un Estado no puede traspasar, a condición de incurrir en comportamientos humanamente reprochables como criminales. Para ello, tenemos que hacer frente al desafío que surge de tres peligros políticos, que debemos superar: primero, el cálculo de vidas; segundo, el maniqueísmo; y tercero, el despotismo como respuesta”. En Senent de Frutos, Juan Antonio; “Guerras, democracia y derechos humanos”, Rábida (Huelva) 23 (2004) 112-113.
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humanos son “conceptos”, mediante los cuales podemos tematizar las responsabilidades que adquirimos para con nosotros mismos y para con los demás. Los conceptos por sí solos nada hacen, pero pueden orientar prácticas y configurar a las mismas instituciones. No sólo eso, sino que los derechos humanos surgen y se desarrollan según se van realizando los cambios históricos, y a medida que los colectivos tienen éxito en imponer una visión de “lo humano” que favorezca a sus intereses. El pensamiento dominante actual ha “invertido” estos derechos, ya que los deriva de una concepción sustancializada de “persona”, la cual es constituida como soporte teórico e ideológico de instituciones e institucionalidades.5 Específicamente, los derechos humanos tienden a interpretarse como derechos de la propiedad capitalista y de las relaciones mercantiles, los cuales se imponen por sobre los seres humanos “de carne y hueso”. Frente a esta situación, Hinkelammert propone “recuperar” los derechos humanos desde un criterio subjetivo que ponga en el centro al sujeto corporal y al imperativo categórico que manda reproducir la vida de éste. Esta corporalidad, como lo hemos señalado antes, debe entenderse en el sentido de unidad corporal de la humanidad. La recuperación de los derechos humanos será, entonces, una respuesta al sujeto que grita desde su corporalidad. Otros autores han señalado esto, aunque sin explicar suficientemente el nexo entre el carácter corporal del sujeto y el hecho de que la reivindicación lo sea de todos. Por ejemplo, el teólogo brasileño Hugo Assmann6 hace una reflexión acerca de la ética solidaria, señalando la conexión entre “una sociedad donde quepan todos” y “la vida corporal de todos”.7 Según Assmann, la fuente de criterios de esta ética solidaria es la “corporeidad”.8 O, más precisamente, La distinción entre instituciones e institucionalidades es aclarada por nuestro autor, en un texto reciente: “Entendemos por ‘institución’, la objetivación, sensorialmente no perceptible, de las relaciones humanas. Podemos distinguir entre instituciones parciales (una empresa, una escuela, una asociación de mujeres, un sindicato, etc.) e ‘institucionalidades’ propiamente dichas. Estas últimas son básicamente dos: el mercado y el Estado. Ninguna de éstas es institución parcial, sino que ambas engloban el conjunto de todas las instituciones parciales; por eso son ‘institucionalidades’ y no simples instituciones parciales: contienen los criterios de ordenamiento de las instituciones parciales” (UPA, p. 9, añadido a la p. 404 de HEV). 6 Cfr. Assmann, Hugo; “Por una sociedad donde quepan todos”, en Duque, José (Ed.); Por una sociedad donde quepan todos, San José, DEI, 1996, p. 379-391. 7 Ibíd., p. 389. 8 En este trabajo, utilizo indistintamente los términos “corporalidad” y “corporeidad”. 5
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“la dignidad inviolable de la corporeidad”.9 Él se apoya en algunas ideas del filósofo italiano Umberto Eco, para quien la nota distintiva de toda ética es la respuesta que damos a los requerimientos de otros sujetos, los cuales, desde la corporeidad que comparten con nosotros, nos interpelan elevando un clamor que exige nuestro apoyo y ayuda.10 Es importante señalar que la concepción de subjetividad sobre la que trabaja Hinkelammert tiene más éxito en situar teóricamente esta idea de corporalidad, ya que tanto en Assmann como en Eco no termina de distinguirse suficientemente al “sujeto” y al “individuo”, ni se razona demasiado por qué deberíamos encontrar evidente que se trata de una respuesta que debería incluir a toda la humanidad. Por el contrario, la propuesta del filósofo alemán nos ayuda a entender mejor a la subjetividad, ya que nos ahorra esa especie de apelación a principios pretendidamente evidentes (Assmann), así como las alusiones a cierta clase de experiencia supuestamente universal (Eco). Lo que nuestro autor propone para apoyar sus ideas es un postulado de la razón práctica, que por consiguiente es trascendental. La universalidad de la acción moral se funda en la postulación de la realidad desde la subjetividad: “asesinato es suicidio”. Es esta “fuerza” del argumento trascendental la que nos permite hablar de un criterio universal. La razón por la cual debemos trabajar por una sociedad en la que quepan todos es porque la consideración inaplazable acerca de los límites de nuestra acción nos refiere necesariamente a la unidad corporal de la humanidad.11 Tenemos suficientes muestras de cómo el universalismo ético occidental – con su pretensión de acabar de una vez por todas con las “crucifixiones” y los “sacrificios” (“¡nunca más la guerra!”; “¡muerte a la barbarie!”) – tiende a generar una ideología de la muerte total. Es la política de las soluciones finales. El colonialismo esclavista, el holocausto judío, el aplastamiento de la Nación Palestina, el bombardeo de la ex Yugoslavia, la invasión de Afganistán e Irak, los bombardeos (recientes) en Somalia, las amenazas a Irán y a Corea
Ibíd., p. 388. Ver también lo planteado en Eco, Umberto; “Cuando entra en escena el otro”, en Cinco escritos morales, Barcelona, Lumen, 1998, p. 99-113. 11 Cfr. Fernández Nadal, Estela; “La búsqueda de alternativas a la democracia capitalista. Franz Hinkelammert y la crítica a la racionalidad formal”, op. cit., p. 10. 9
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del Norte. Son guerras de exterminio realizadas en nombre de la lucha contra los “salvajes”, los “infrahombres” o los “terroristas”. Las guerras van de la mano de la difusión y perpetuación de una peculiar visión de los derechos humanos. Se trata de hacer una “guerra total” para acabar con todas las guerras; una guerra cuyo carácter contradictorio e imposible denunciaría Carl Schmitt. No obstante, la crítica no debería ser dirigida a los derechos humanos sin más, sino al esquematismo que identifica la lucha en favor de los derechos humanos con los intereses económicos de la elite estadounidense y europea, a modo de automatismo institucional que combina a los organismos internacionales (OTAN, ONU) con las estructuras mercantiles globales. El problema no está en el carácter ético de la lucha por los derechos humanos ni en que ésta se haga desde una exigencia universal. Frente a los postmodernos que se oponen a toda señal de universalismo, hay que reivindicar un sujeto universal: corporal y comunitario. No es para nada descabellado encontrar relaciones entre el fascismo y algunas corrientes del pensamiento postmoderno (Cioran, Baudrillard), sin que eso signifique que debamos descalificar a estas últimas de una manera absoluta. Relacionado con esto, las críticas de Carl Schmitt a la ideología del “fin de las guerras” (la cual contribuye a la legitimación de verdaderas guerras de exterminio) pueden ser válidas, pero esto no debería significar que al asumirlas se caiga necesariamente en la negación del universalismo ético. No hay que olvidar que es tenue la línea que separa al “¡nunca más!” utopista (de los creyentes neoliberales en el mercado) del ¡nunca más! antiutópico (como sucede con las políticas fascistas de Bush o como sucedió con el nazismo y con el mismo Schmitt). La muerte del universalismo ético puede contribuir también a la muerte del ser humano de carne y hueso. Ahora bien, Hinkelammert sostendrá que puede haber un “¡nunca más!” que sea, más bien, una reivindicación del universalismo ético desde la recuperación del sujeto humano corporal y viviente, y desde la concepción de la víctima como “criterio de verdad”. Sobre todo, se convierte en un imperativo con características especiales, frente a las condiciones empíricas de un mundo global en el que el asesinato es suicidio (Cf. HINKELAMMERT, 1991,p. 186-195). Esto nos permite asumir las responsabilidades frente a la época que nos ha tocado vivir. La civilización occidental se ha venido constituyendo como sociedad de la destrucción y la deshumanización en nombre de la salvación universal, el progreso y la humanización (Vattimo). REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 9-39, jul./dez. 2011
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Lejos de enterrar la modernidad mediante proclamaciones mediáticas de nuestra “condición postmoderna” (Lyotard), hay que ver a las sociedades de los siglos XX y XXI como “civilización occidental in extremis”. Ser postmoderno es una manera peculiar de asumir nuestra condición de compromiso con los proyectos modernos, sea que los avalemos o que los critiquemos. Pero no podemos renunciar a este horizonte de comprensión y de acción. Las realidades de un mundo globalizado (exclusión a gran escala, crisis ecológica, etc.) sugieren que se trata de un modelo de civilización que está llegando a su fin, por lo que la humanidad debe buscar reinventarse, claro, en el supuesto de que quiera sobrevivir. En cierta manera, esto significa que debe desoccidentalizarse. ¿Qué quiere decir esto realmente? Evidentemente, no se trata de una renuncia a todo lo occidental – por lo demás inútil e imposible –, sino de una superación de las falacias de la modernidad, es decir, una superación de la ciega subordinación de los sujetos a los automatismos, las cuales se encuentran a la base de la “decadencia de occidente” (Cf. FAE, p. 9-12). Hay que fundar los derechos humanos en un universalismo ético que trascienda occidente sin negarlo. Pero, por lo mismo, debe basarse en un criterio que trascienda toda cultura y toda época, y que forme parte de lo constitutivo de la humanidad, “más allá” de las diversas tradiciones, pero sin ponerse tampoco por encima de ellas, abstrayéndose de sus determinaciones y peculiaridades. “Más allá” no debe ser equivalente a tabula rasa sino al descubrimiento de lo común que atraviesa a los diversos pueblos, culturas y formas de vida. Tampoco quiere decir que este descubrimiento no pueda partir de alguna tradición específica. Más bien, sucede que lo que parece ser un a priori es descubierto a posteriori, ya que el universalismo al que se refiere Hinkelammert no es sin más judío, filosófico occidental, marxista o cristiano, sino que, surgiendo desde estas – y otras – tradiciones de pensamiento, descubre su presencia en diversos contextos culturales e históricos, formando la base para un nuevo universalismo ético material e “intersubjetivo” (Cf. HINKELAMMERT, 2005, p. 14). Su base se encuentra en el descubrimiento del sujeto viviente, principalmente en el reclamo que nos hacen las víctimas y los excluidos, los pobres y los marginados. Esto es el grito del sujeto, que clama por justicia. Es ausencia – sujeto negado en su misma subjetividad – que nos interpela. Pero no se trata de una experiencia que podríamos o no tener, sino que es postulado de la razón práctica, es principio trascendental. “Asesinato 18
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es suicidio” no es algo que “debamos” experimentar todos o que, si no nos sucediera, perdería su validez como principio racional de la ética. Muchos podrían afirmar que, si recurren a sus experiencias, hay suficientes pruebas de que “asesinato no es suicidio”. ¿Es que acaso no conocemos a las víctimas que exigen reparación y no son escuchadas? ¿No viven todavía sus victimarios y viven bien, sin que asome en su rostro el arrepentimiento? Sobre esto debemos señalar que la conciencia ética de la que hablamos no sólo resulta “razonable” para los que han tenido experiencias de reparación o reciprocidad. Lo que se pretende al fundar la ética en un postulado es apelar al carácter universal de la condición que hace posible las más diversas clases de experiencias. De esta manera, este postulado nos refiere a las estructuras mismas de la razón: no es conocimiento de algún sector de la experiencia sino que es condición necesaria para que ésta se nos haga presente como realidad. Por eso es que, para Hinkelammert, un mandamiento como “Ama a tu prójimo, tú lo eres” (Lévinas), es realista. El realismo ético parte de esta concepción trascendental de la subjetividad (Cfr. APM, p. 287). Se trata del realismo que se formula como apuesta por la vida: es posible que el asesinato no produzca el suicidio, pero suponer lo contrario arroja un saldo de ganancia más favorable, ya que si efectivamente el asesinato puede producir el suicidio, entonces la pérdida no sólo consiste en que se eliminaría al actor sino que, en el caso de que se trate del suicidio colectivo, se termina por diluir la realidad. Ahora bien, en tanto reflexión trascendental refiere al punto desde el que se crea la universalidad. Tanto el postulado de la razón práctica como el criterio fundamental que manda reproducir la vida humana son universales, ya que suponen la unidad corporal de la humanidad. El sujeto es instancia reflexiva que remite a esta unidad del género humano. Por eso el criterio de esta ética es un universal material, que se descubre a posteriori (Cfr. HINKELAMMERT, 2001, p. 118-119 y 2005, p. 495). Vemos cómo se vuelve imprescindible construir una argumentación que sostenga el carácter de obligatoriedad de esta ética. Los razonamientos anteriores muestran que la ética del bien común es indispensable, porque el suicidio en el que desemboca el asesinato es inevitable. Pero esto sólo es así porque partimos del supuesto de que queremos vivir. La apuesta por la vida es entendida como un deber, dado que el razonamiento que descubre los conceptos trascendentales muestra que se trata de la única acción coherente (aunque el suicida la rechace) (Cf.HIKELAMMERT, 1979, p. 295). Esto es REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 9-39, jul./dez. 2011
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lo que ocurre cuando hablamos del “deber” de reproducir la vida humana: el concepto trascendental “ilumina” las acciones humanas y prescribe cuál es la acción coherente (aunque estemos en libertad de rechazarla). Ahora bien, ambos rechazos sólo podrían convertirse en criterios trascendentales dentro de ideologías antiutópicas, como aquellas que sostienen que hemos llegado al fin de la historia (fundamentalismo del mercado capitalista en Francis Fukuyama) o al inevitable “choque de civilizaciones” (Samuel Huntington y demás corifeos del Departamento de Estado). También encontramos este “utopismo de signo contrario” en los discursos que proclaman la llegada de la redención a partir de la victoria del bien (¿Dios?) sobre el mal (¿Satán?), tal como sucede dentro de las sectas milenaristas del fundamentalismo cristiano o en los grupos terroristas islámicos.12 Todas ellas parten de una dialéctica (tensión) entre el criterio (trascendental) del sujeto necesitado y la pretensión de anular las necesidades, en sentido trascendental, mediante la muerte. Así, el consumismo desenfrenado que amenaza la ecología se combina perfectamente con el estilo de vida “extremo” (extreme lifestyle) que preanuncia al suicida. Por su parte, la acción del fundamentalista parece que le convertiría en “mártir” (testigo), pero aquello que “testimonia” no es sino el desprecio por la vida concreta, por su corporeidad y por la historia, en aras de una “vida verdadera”, “espiritual”, en el cielo. No obstante, aun con estos fines tan peculiares, ni el hedonista irreflexivo ni el creyente fanático han dejado de estar supeditados a las “leyes de su acción”. Siguen siendo “sujetos necesitados” que deben “resolver” su acción, aún si se trata de anular las necesidades mediante la muerte. Nadie deja de estar subordinado a las limitaciones propias de lo humano sólo porque decida morir. Además, la cadena de acciones precisas para tal fin no podrían universalizarse sin que se incurra en una “contradicción performativa” – lo
12 Franz Hinkelammert insiste en que no es el mundo musulmán el lugar de origen de las exhortaciones al suicidio en función de un bien mayor, sino, más bien, el fundamentalismo cristiano de Bernardo de Claraval y su llamado a “la Santa Cruzada”. No obstante, la relación entre el pensamiento antiutópico y las prácticas suicidas de los grupos terroristas de corte islámico nos recuerda lo mucho que tienen en común con los fundamentalismos occidentales. Además, así como no tiene sentido intentar encontrar la base ideológica y prescriptiva de éstos únicamente en la Biblia, es del todo inútil seguir sosteniendo que el origen de los extremistas islámicos se halla fundamentalmente en el Corán.
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que se hace contradice lo que se dice que se hará o genera un resultado que impide toda posibilidad de reflexión –, ya que si la ideología de la autodestrucción total tuviera éxito, la realidad desaparecería y con ello toda posibilidad de evaluación moral. Y esto debería ser significativo para todos aquellos fanáticos de una “moral del exterminio de los malos”. Con todo, es un hecho que con el suicida es inútil discutir. No es a éste a quien tenemos en mente. Más bien, nuestro interlocutor es el que pretende que sus actos y decisiones se justifican a pesar de que los resultados provoquen víctimas, ya que confía en que podrá salir bien librado del asunto. El caso es que muchos de los que razonan de esta manera tienen en su poder los mecanismos mediante los cuales el suicidio podría terminar convirtiéndose en un problema que ponga en peligro la vida de todos. Aunque sea duro siquiera considerarlo, debemos aceptar que el suicidio colectivo de la humanidad es una posibilidad. No sólo es que los seres humanos podríamos querer tal cosa, sino que, en la actualidad, podríamos hacerlo. Con estas amenazas no conviene mirar a otro lado o poner la confianza en promesas que ya han demostrado anteriormente su vacuidad. Pero tampoco podemos cruzarnos de brazos o confiar el problema a los “tecnócratas” o a las manos invisibles. Es frente a esas amenazas reales y concretas que Hinkelammert piensa que debemos trabajar por la recuperación del universalismo ético, en una línea material e historizada.13 La recuperación de unos derechos humanos historizados y la construcción de un criterio ético material universal son recursos válidos frente a un sistema totalizante, el cual, poniendo en riesgo la supervivencia de los más débiles, extiende su amenaza al conjunto de la humanidad, socavando a la vez su misma base de realidad. Por eso es que, para que todos podamos vivir, debemos pensar formas alternativas de acción social y “figuras nuevas” para la vida humana.
Un planteamiento cercano al que venimos exponiendo lo encontramos en la necesidad de la historización de los derechos humanos y su articulación con una idea del bien común, en Ellacuría, Ignacio, “Historización del bien común y de los derechos humanos en una sociedad dividida”, “Hacia una conceptualización de los derechos humanos”, “Historización de los derechos humanos desde los pueblos oprimidos y las mayorías populares”, y “El mal común y los derechos humanos”, todos en sus Escritos filosóficos, San Salvador, UCA Editores, tomo III, p. 207-225, 431-432, 433-445 y 447-450, respectivamente. 13
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Bien común y alternativas centradas en los sujetos El programa que provenga de una ética del bien común debe ser un programa alternativo. Pero las alternativas sólo pueden serlo dentro de un marco de variabilidad general, el cual no puede darle la espalda a los “principios trascendentales de imposibilidad”, es decir, a las limitaciones que son constitutivas de nuestras acciones. Ignorarlas sería darle la espalda a la misma condición humana, la cual, sin importar la época o lugar en que se sitúe, se verá siempre enfrentada con la paradoja de pretender realizar lo que sobrepasa sus límites, a la vez que estará obligada a precisar y acatar con claridad meridiana las barreras a sus aspiraciones. Es por ello que Hinkelammert insiste en que reconozcamos la importancia de las mediaciones. Los actores sociales que pretendan transformar las estructuras sociales, políticas, económicas y culturales no deberían olvidar que la misma complejidad de la vida humana, aunada a nuestro carácter lábil y precario, vuelve imprescindible la constitución de mecanismos, procesos e instrumentos, sin los cuales sería extraordinariamente difícil, si no imposible, alcanzar nuestros fines. Es más, sin las acciones rutinarias que están a la base de la creación de las instituciones – acciones que son adquiridas temprano en nuestro desarrollo social y comunitario –, ni siquiera podríamos pensar en tales fines.14 Se impone entonces la necesidad de tomar una postura clara y renovada frente a lo institucional. Éste es también un elemento constitutivo de la condición humana (Cf. HINKELAMMERT, 2002, p. 355). La vida humana en su plenitud – esto es, la realización de lo que está contenido en ella como “satisfacción potencial”– no sólo no puede ser “alcanzada” por los seres humanos, sino que “la necesidad” en su sentido trascendental no es algo de lo que se puede tener experiencia directa. Más bien, tenemos acceso a ella reflexivamente (indirectamente), aunque a partir de la experiencia de “las necesidades”. Nadie puede tener directamente la experiencia de la plenitud, pongamos, en el comer y el beber, ya que ni siquiera la saciedad tendría sentido “de una vez para siempre” (de manera trascendental). Para que tenga sentido la expresión “estar satisfecho”, debemos querer y poder saciarnos, lo cual
14 Acerca de lo institucional y su relación con diversos e ineludibles procesos de “rutinización”, cfr. Luckmann, Thomas; Teoría de la acción social, Barcelona, Paidós, 1996, p. 117ss.
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implica que la necesidad de comer permanezca en el horizonte de nuestra acción. La realidad se nos presenta dialécticamente, como satisfacción potencial ligada a la insatisfacción que la hace posible. Sólo porque somos seres finitos volcados hacia la infinitud es que esta “polarización” entre satisfacción e insatisfacción puede resolverse en función del primero de sus polos. Pero no hay ninguna verdadera “solución” al anular alguno de ellos. No se puede resolver el problema del hambre en el mundo sólo mediante la producción acelerada de alimentos (crecimiento económico ilimitado), pero tampoco hay un verdadero camino sólo en los intentos de reducir al mínimo el hambre del mundo, mediante programas de control demográfico. Ambas medidas, siendo necesarias, no representan toda la solución. En el primer caso, olvidaríamos que nuestras posibilidades se ven condicionadas por el carácter limitado de nuestro universo (la tierra es un globo, no una planicie infinita); en el segundo, estaríamos suponiendo (erróneamente) que los seres humanos somos alguna especie de “receptáculos” que podrían ser colmados, cuando, más bien, nuestra constitutiva condición es la de que producimos nuestras propias simas de natural insatisfacción. ¿Cómo aplicaremos estas reflexiones al problema concreto de las mediaciones institucionales? Para ello hay que entrever la negatividad de la condición humana dentro de lo institucional, en tanto éste es mecanismo, es decir, rutina, orden y reglamentación, que impide la espontaneidad y la libre realización de nuestros intereses. En este sentido es que la mediación institucional es muerte. Pero se trata de una componente fundamental para realizar nuestros actos: es inevitable e incluso necesaria para la vida. Esto es así porque, a pesar de las ganas que pongamos en la persecución de nuestros fines, la condición humana es lábil y precaria. Dado que el riesgo de fallar nos acompaña de día y de noche, debemos acompañar nuestra acción de variadas formas de control y valoración razonada, mediante normas, vínculos más o menos rígidos y cálculos costo-beneficio. Constantemente, las complejas situaciones en las que nos vemos envueltos nos exigen vías establecidas, caminos trillados. La mediación institucional aparece entonces como la manera humana de enfrentar las limitaciones, estableciendo una solución (o varias). Pero, no obstante todo esto, la plenitud siempre se encontrará más allá de nuestras posibilidades. Cualquier reflexión sobre lo institucional sería incompleta si no incluyera una consideración acerca de los límites de REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 9-39, jul./dez. 2011
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factibilidad. Franz Hinkelammert recurre en este punto a las reflexiones de David Hume acerca de los mundos posibles (concebibles) pero no factibles: [Hume] describe muchos mundos: creación, aniquilación, movimiento, razón, volición. Evidentemente, si exceptuamos el mundo de la aniquilación, todos estos mundos resultan ser mundos de abundancia. Es un mundo, en el cual, en caso de tener alguien hambre, las piedras se convierten en pan. Evidentemente, aunque sea un mundo posible, no es un mundo factible. Como el mundo no es así, resulta ser el mundo sometido al principio de causalidad, en el cual vivimos. Que este mundo sea un mundo de causalidad y no el otro mundo posible, resulta ser otra vez una deficiencia. En este sentido, el principio de causalidad, según Hume, resulta también de la condición humana, que Hume llama la ‘precaria condición de los hombres’ (…) Estas deficiencias del mundo explican por qué es necesaria la ética (HINKELAMMERT, 2003, p. 215).
Las deficiencias (“precaria condición de los hombres”) del mundo en que vivimos son las que vuelven necesaria la institucionalidad. La misma ética debe entenderse a partir de esta situación, ya que aparece debido a la tensión entre lo que queremos y lo que nos vemos obligados a hacer. Los deberes no anulan la decisión, pero tampoco la libre elección es un acto desligado de lo que se nos presenta como debido. Nuestras relaciones con las cosas – y con los demás alrededor de ellas – están lejos de ser sencillas. Ya hemos señalado que no hay caminos expeditos, ya que somos seres limitados: no podemos predecirlo todo ni garantizar mucho menos óptimos resultados para todas nuestras empresas individuales o colectivas. Y aun cuando las instituciones que construimos cargan con esta condición imperfecta, no podemos renunciar a ellas si no es a costa de insoportables sacrificios. La relación entre la condición ineludible de las instituciones y la ética, y de ambas con las consideraciones acerca de la factibilidad, constituyen un rasgo esencial de esta ética del bien común. Y debo destacar que resulta verdaderamente inusual que el tema de las imposibilidades sea incluido en el centro de una propuesta de este tipo. La clave de su inserción es, justamente, que se trata de una ética cuyo rasgo esencial es que se fundamenta en una toma de postura frente a la dialéctica entre la condición humana de finitud – nuestro carácter imperfecto y “precario” – y los conceptos trascendentales. La expresión “conceptos trascendentales” es utilizada por Hinkelammert para referirse a las figuras ideales de la acción humana, 24
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de modo que lo que se presenta como imposible llegue a ser posible. En un sentido amplio, podemos pensarlos como utopías, ya que nos inclinan hacia una meta o resultado de un proceso, el cual, paradójicamente, es inalcanzable efectivamente. Pero se trata de conceptos que juegan un importante papel en nuestras creaciones teóricas, científicas inclusive. Ahora bien, esto no siempre es aceptado tan fácilmente, mucho menos por parte de quienes se dedican a la ciencia. Y la ciencia social no es la excepción. En el “segundo caso” que analiza Hinkelammert, en Hume, se nos muestra esta tendencia a introducir “conceptos trascendentales”, algo que deberíamos tomar en cuenta al reparar en las explicaciones acerca de la sociedad, sobre todo si dichas explicaciones conllevan algún tipo de prescripción: Porque si los hombres poseyeran ya ese fuerte respeto hacia el bien común, nunca se hubieran refrenado a sí mismos mediante esas reglas: así, pues, las leyes de justicia surgen de principios naturales, pero de un modo todavía indirecto y artificial. Su verdadero origen es el egoísmo’15” (HINKELAMMERT, 2003, p. 215).
Lo que Hinkelammert objeta a Hume es que sustituya la constatación de la finitud humana como origen de la necesidad de la ética, por un cierto “egoísmo” que vendría a ser constitutivo de la acción social. Parece un resultado lógico de su visión atomística de la sociedad. Pero la fragmentariedad de la acción humana no deviene necesariamente en una explicación a partir de un “sustrato” de tal género. Tampoco debería ser interpretada como una prescripción del egoísmo – como sucede en el “darwinismo social” de algunos neoliberales, por ejemplo. Primero tendríamos que tratar de entender la misma condición precaria y lábil de lo humano, que se expresa como fragmentariedad. Un primer paso lo podemos dar recurriendo a Karl Marx, para quien, si hemos de pensar el surgimiento de la ética como respuesta a la finitud humana, el punto de vista antropológicamente válido es el de una subjetividad encarnada (material y corporeizada) y que presupone una socialidad constitutiva. Esto se opone a un
15 Hume, David; Tratado de la naturaleza humana, Madrid, Editora Nacional, 1977, p. 764. Nota del autor.
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panorama en el que, “originalmente”, encontramos a unos individuos que se constituyen aisladamente y que “luego” tienen que construir relaciones para conseguir sus fines egoístas. Ni siquiera es que haya problema en afirmar que los actos humanos pudieran tomar cursos a partir de consideraciones egoístas – algo a todas luces cierto y, en algunas ocasiones, deseable. El asunto es, más bien, que no es legítimo afirmar que dichas consideraciones egoístas sean la condición de posibilidad de la ética. Por el contrario, lo que tendríamos que hacer es sustituir este enfoque por el punto de vista de la subjetividad como cuerpo social atravesado por la precariedad, que para el caso asume la forma de la parcialidad (fragmentación). No es que exista un “sustrato” de lo humano que vendría a ser el individuo aislado. Las ciencias antropológicas y la sociología contemporánea nos hablan, por el contrario, de un individuo que surge debiéndose a unas reglas, prácticas sociales y usos comunes. Ahora bien, un vistazo a las acciones de los individuos dentro de sus relaciones sociales nos mostraría que se encuentran muy lejos de ser transparentes o totalmente armoniosas. El carácter problemático de la convivencia, que es otra forma de referirnos a la fragmentariedad de la acción humana, ha llevado a muchos a decir que la humanidad se encuentra “herida”, debido a condiciones históricas muy especiales – léase, modernidad, capitalismo, etc. La “cura” de esta herida parece encontrarse en el campo de la acción social que hace suyos los proyectos de emancipación, gracias a los cuales se pretende la realización de una sociedad de vida plena y armoniosa. Reparando en la manera como realizan sus proyectos algunos integrantes de los movimientos sociales – pero no sólo esto, sino también el modo como articulan sus investigaciones muchos economistas, sociólogos y críticos culturales –, podemos observar que la unidad antecede a la fragmentariedad, y lo hace como concepto trascendental, como utopía. Quien quiera realizar “el cambio social” no lo hará mirando únicamente dónde está parado. E incluso el científico, que busca explicar el comportamiento de los electores o la manera de saber en qué casos podemos hablar de equilibrios económicos, se verá obligado a proyectar figuras trascendentales (valorativas) de lo que debería ser una elección racional (óptima) o un equilibrio (perfecto) de los factores económicos. En un primer acercamiento, los proyectos que surgen de la ética del bien común se encuentran centrados en el sujeto viviente, pues se parte del reconocimiento de su finitud, que se expresa como acción parcial, fragmentaria. Es la experiencia de la convivencia la que muestra cómo el 26
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interés propio padece y hace padecer, pero esto es así no por el “interés” en sí, ni porque sea “propio”, sino porque lo precario atraviesa la realidad humana, la cual es, fundamentalmente, unidad corporal. Es ese cuerpo el que padece y sufre. Pero de esta manera no se estaría afirmando que la condición de fragmentariedad y precariedad pueda ser superada totalmente o que no habría existido in illo tempore. Las maneras concretas como se nos vuelven opacas nuestras transacciones (no sólo las mercantiles), así como las penurias que hemos de padecer a la hora de organizar nuestros intereses junto a los de los demás, no hacen más que situar históricamente la condición humana. Curiosamente, los que han criticado los proyectos políticos y económicos marxistas han hecho ver justamente que estos últimos no logran reconocer el carácter fragmentario de la acción social como conditio humana. Al suponer que la fragmentariedad (del mercado) puede superarse mediante la planificación económica, los marxistas habrían pasado por alto la finitud humana y el carácter utópico de sus propios “proyectos”. Pero esto es igual a decir que la misma crítica burguesa desenmascara el error de uno de sus padres fundadores, el filósofo escocés David Hume, pues termina por reconocer que la condición humana no es ningún egoísmo, sino la condición de finitud y parcialidad de la acción. La ética es necesaria porque somos seres finitos, no porque seamos egoístas o “malos”. No hay cabida entonces para la “ilusión trascendental” de signo contrario que encontramos en los neoliberales, quienes, basándose en los dogmas acerca del “punto de equilibrio” que se obtiene mediante la competencia perfecta, se oponen sistemáticamente a toda intervención de la sociedad en las “operaciones” del mercado-aparato. Aquí nos volvemos a encontrar con las falacias de la modernidad: las creencias ciegas en proyectos trascendentales disfrazados de construcciones empíricas, mediante los cuales se pretendería dejar el rumbo de la política y de la economía en manos de mecanismos automáticos. Estas consideraciones insertan el tema de la utopía dentro de la ética. Ante la pregunta acerca de qué es, en definitiva, lo que podemos proponer desde una ética del bien común, Hinkelammert afirma que “una sociedad en la que quepan todos es un concepto trascendental, si se quiere imposible, sin embargo no es contradictorio” (NSF, p. 24).16 Y, más adelante, agrega:
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Cursivas mías.
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“¿Por qué es imposible? Aquí entra el tema de la complejidad del mundo” (HINKELAMMERT, 2002, p. 24). Se vuelve imperativo construir una nueva idea del realismo, como condición para cualquier proyecto con pretensiones de ser alternativo. Debe ser un realismo moral que se base en la subjetividad trascendental, en el reconocimiento entre sujetos que se reconocen en la convivencia. Pero, como lo veíamos antes, es realismo que surge de una apuesta, de una opción por la vida. La realidad es descubierta si nos negamos a matar y a fomentar la muerte. Pero no es un reconocimiento de la plenitud que ya tenemos o que se nos presenta como algo inminente o realizable, sino de nuestra condición de seres precarios y finitos que hacemos nuestra vida en tensión hacia la plenitud. Esa plenitud imposible es lo que llama Hinkelammert, parafraseando a los militantes zapatistas, la “sociedad en la que quepan todos”. En tanto imposible, es un concepto trascendental. Pero no se trata únicamente de que podamos recurrir a esto imposible sino que debemos pensarlo de esa manera. Sólo de esa manera podrían los proyectos sociales, intervenidos por seres humanos concretos, romper con la lógica de los efectos que surgen de la praxis sometida al mero cálculo (cortoplacista) de costos y beneficios, a las instituciones opresivas y a los mecanicismos excluyentes. Mientras los abanderados de la Realpolitik y de la muerte de las utopías terminan exigiendo sacrificios absolutos en los altares del mercado o del Estado, la praxis realista, de quienes luchan por la dignidad de los sujetos humanos, necesita expresarse desde la lógica de lo nuevo. La referencia a la complejidad del mundo resulta aquí fundamental para profundizar en nuestra reflexión sobre el sujeto, en tanto éste se nos descubre como “presencia que está ausente”, como “tensión hacia la plenitud”. Para nuestro autor, la ética del bien común se funda en el sujeto viviente y se expresa en el lenguaje de la polaridad finitud/ infinitud, interpelándonos desde el peculiar realismo que consiste en reconocerla, pero sin que se pretenda disolverla. Esta es la polaridad que se encuentra en la base de la tensión entre cálculo de utilidad – cálculos de costo-beneficio – y utilidad necesaria – bienes que son buscados independientemente de nuestros cálculos –; entre racionalidad medio-fin y racionalidad reproductiva. La dimensión del sujeto es el centro que permite pensar tanto la utopía como las mediaciones necesarias, sin anular a ninguna de las dos: “Lo que necesitamos es un pensamiento de síntesis y un pensamiento de mediaciones, mediación no en el sentido de “justo medio”, sino en el sentido de interlocución crítica y efectiva: Estado, mercado, ciudadanía” (HINKELAMMERT, 2001, p. 15). 28
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Esa “interlocución” se sostiene sobre el sujeto viviente, que no sólo es referencia última para la racionalidad económica sino para toda racionalidad. Por eso la ética del bien común es una reflexión acerca de los proyectos sociales, tomando como centro al sujeto. El sujeto viviente es el origen y fin de cualquier criterio ético. Esta ética no dice cuáles deberán ser los proyectos ni puede sustituir a las ciencias empíricas, a los grupos sociales o a los organismos institucionales en su tarea de elaborar proyectos realizables. Pero sí proporciona el marco general – trascendental – desde el cual los proyectos pueden ser evaluados, en orden a lo razonable de su justificación y a su factibilidad. La clave para este marco se encuentra en la crítica de la razón utópica – la cual no sólo está presente en la metafísica, la literatura, el arte o la teología, sino también en las ciencias empíricas – y el análisis de las imaginaciones trascendentales – cómo imaginamos resultados óptimos o la vida plena. Pero, sobre todo, es fundamental la argumentación que se sostiene en el postulado de la razón práctica (“asesinato es suicidio”) y en el criterio ético para la acción humana, que se deriva del mismo (“tenemos el deber de reproducir la vida humana, naturaleza incluida”). ¿Cómo debemos entender entonces el “bien común”? Primero hay que señalar lo que no es. El bien común no es una fórmula para los políticos ni un modelo económico ni una reivindicación cultural concreta. Tampoco aparece ligado a algún tipo de “ley natural” que actuaría por encima de las determinaciones históricas o a pesar de ellas. Ya que se habla de “sujetos”, alguno pensará que el bien común es la “coincidencia” de intereses individuales o la convergencia de las acciones de los individuos por medio de algún mecanismo automático (como en Hume o en Adam Smith). No obstante, estas alusiones a la mano invisible, a los utilitarismos o al public choice nos llevan hacia una concepción de bien común que no sólo difiere de la nuestra sino que incluso resulta ser un obstáculo para lo que queremos proponer y realizar. Según esa línea de pensamiento, se sostendría que lo común es posterior a lo individual, subordinándolo a los mecanismos de elección racional o a la providencia del mercado. No sólo eso, sino que el bien es identificado sin más con “intereses”, generalmente en el sentido de “preferencias”. El problema es que semejantes afirmaciones nos dejarían en la oscuridad acerca de muchas aspiraciones humanas legítimas que no encajan dentro de ese lenguaje. Reducir el bien común a una especie de suma de intereses individuales únicamente puede significar que tales intereses son sólo REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 9-39, jul./dez. 2011
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numéricamente distintos – lo cual es falso – o que las diferentes valoraciones (diferencias cualitativas) dentro de los interesados son resueltas por alguna especie de instancia superior de clarificación, optimización y selección – lo que nos lleva de nuevo al mercado óptimo o al Estado máximo. No es que los intereses de los individuos deban ser excluidos de nuestra noción de bien común, sino que es dudoso que éstos sean razón suficiente para definirla. Basta con observar la complejidad que reflejan las investigaciones acerca de la conciencia colectiva o los estudios históricos sobre el surgimiento y desarrollo de las reivindicaciones económicas, sociales y culturales, así como las críticas a las que son sometidas las concepciones individualistas de los bienes sociales.17 Las exigencias de la justicia o de la solidaridad tienden a sobrepasar estos enfoques reduccionistas y se formulan, más bien, en términos de los bienes del común, lo cual nos refiere a una trama articulada de redes sociales y comunitarias, de individuos y sujetos colectivos unidos dentro de relaciones de confianza y reciprocidad – y sin que esto implique, necesariamente, excluir la existencia de grados o jerarquías. Por ello es que tenemos que centrarnos en las formas como estos colectivos formulan lo bueno, lo justo, lo solidario. Siguiendo a Hinkelammert, considero que el bien común es el marco general de figuras de vida que formulamos como colectivo, las cuales deben ser queridas para todos los involucrados, y que se proyectan teniendo como base la obligación de contribuir a la reproducción de la vida humana. Pero no se trata únicamente de quedarnos en la proyección de una figura de vida para nosotros, ya que, si tomamos en serio lo de que “el asesinato es suicidio”, “lo nuestro” habrá de dejar paso a la inclusión de muchos mundos que no son sólo el que queremos crear. Dadas las condiciones del mundo en la actualidad, el bien común no puede ser visto sino desde una perspectiva global, que incluya a toda la humanidad, así como a la naturaleza. Nuestro autor introduce matices importantes en sus planteamientos, al señalar que la utopía no es un mundo donde quepan todos los mundos. Tal cosa sería de por sí imposible, ya que estaríamos hablando de un
17 Algunas ideas que vendrían a reforzar mis afirmaciones se pueden consultar en Taylor, Charles; “La irreductibilidad de los bienes sociales”, en Argumentos filosóficos. Ensayos sobre el conocimiento, el lenguaje y la modernidad, Barcelona, Paidós, 1997, p. 175-197.
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mundo que incluyera al mercado total neoliberal, a los nazis y a las armas atómicas... junto a sus víctimas y detractores. Lo que se afirma, más bien, es la necesidad de proyectar un mundo en el que quepan muchos mundos. Esto es sustancialmente diferente. Significa que el mundo que querríamos no debería incluir determinadas figuras de vida – como las que acabo de mencionar –, ya que el planeta no podría soportarlas por mucho tiempo. Otra aclaración fundamental es que el bien común, como referente trascendental de la reflexión sobre el mundo y la interpelación de las instituciones desde proyectos sociales, no debe confundirse ni con esa reflexión ni con estos proyectos. Como marco general de variabilidad, no debe estar limitado a las condiciones concretas sobre las que se dirigen las observaciones de las ciencias empíricas ni a las apuestas por unos bienes social e históricamente situados (trabajo, salud pública, educación, reparación de las víctimas). Si bien éstas estarían contenidas en una noción trascendental de bien común, tomarlas como su equivalente sólo podría generar nuevas instituciones o mecanismos sordos a la interpelación subjetiva y ciegos ante las víctimas que provocarían. Franz Hinkelammert señala la “idoneidad” de algunos desarrollos alternativos, pero que presuponen la necesidad de pensar la utopía de manera crítica. Las imaginaciones trascendentales, como ya lo hemos señalado antes, deben ser interpeladas por los seres humanos concretos, por lo que se hace necesaria la libertad que proviene del reconocimiento del sujeto (Cf. HINKELAMMERT 2005, p. 395-402). Sólo desde el reconocimiento entre sujetos puede proyectarse una sociedad donde quepan todos. Tiene que ser un proyecto alternativo de sociedad, en el cual se tenga al bien común como criterio de constitución de las relaciones sociales y en el que se produzcan “equilibrios” entre el funcionamiento de las instituciones mercantiles y la interpelación subjetiva del mercado; entre la defensa de instituciones sólidas y la construcción de una estrategia social, política, y cultural que no descuide las “luchas diarias por alternativas” (puntuales, contestatarias…) (Cf. HINKELAMMERT, 2005, p. 402-412). Como ya lo decía Hinkelammert en una cita anterior, es importante apostar por un “pensamiento de síntesis y un pensamiento de mediaciones”, lo cual significa que debemos reconocer que no sería posible ninguna forma de vida si no se aseguran unos mínimos de sustentabilidad. Por eso es importante insistir en la necesidad de garantizar el equilibrio en el orden REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 9-39, jul./dez. 2011
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de la misma economía, mediante un reconocimiento de la necesidad de una coordinación social del trabajo,18 que garantice las condiciones materiales (económicas) para la reproducción de la vida.19 Además, cualquier proyecto alternativo contemporáneo deberá implementar una lucha por la “recuperación del Estado de Derecho”, mediante una reformulación de los derechos humanos que vaya más allá de su reducción efectiva a simples derechos “contractuales” y que los conciba en función de la vida humana (Cf. Idem, p. 413-420). Para la ética del bien común – así como para las ciencias empíricas que no teman alinearse en función de sus objetivos –, será fundamental garantizar la supervivencia de la humanidad, desde el reconocimiento del ser humano como sujeto de derechos concretos a la vida: el derecho a un trabajo digno y seguro; la satisfacción de las necesidades humanas básicas; derecho a una participación democrática en la cosa pública; la conservación y sostenimiento del medio ambiente; posibilidades para una intervención en los mercados; verdadera libertad de opinión. Y algo fundamental, sobre todo de cara a los neoconservadurismos y neofascismos: el derecho a una plena libertad de elecciones (Cf. Idem, 420-422).
18 Franz Hinkelammert y Henry Mora definen el sistema de coordinación social del trabajo como “aquel conjunto de relaciones productivas y reproductivas de especialización, interdependencia e intercambio, que se establece entre los actores/ productores/ consumidores de toda economía social y que, en su máxima generalidad, cumple con la función de coordinación de los medios y los fines de que dispone y persigue una sociedad, cualquiera que esta sea” (CST, p. 22). Los autores aclaran que el término tiene un sentido más amplio que el de “división social del trabajo”, el cual se limitaría a las funciones de “especialización, interdependencia e intercambio de bienes y servicios”. La coordinación social del trabajo abarcaría, además, “las mismas condiciones generales para que tal división social del trabajo pueda operar” (CST, p. 22, nota 1). Por mi parte, quiero señalar que no es este el mejor lugar para abundar en el tema, por lo que remito al texto de los autores, así como a sus trabajos más recientes, en HEV. 19 Una exposición, propia de la ciencia económica, que desarrolla y amplía estas ideas, puede hallarse en Montesino Castro, Mario Salomón; “Desarrollo con racionalidad reproductiva: La reproducción del capital, el problema de la transformación y el intercambio desigual”, en Realidad 98 (2004) 135-183.
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Una opción indispensable por la responsabilidad solidaria Según Franz Hinkelammert, la ética del bien común considera desde el inicio el problema de las posibilidades para su realización, a partir de una recuperación creativa de la categoría filosófica de necesidad, la cual es reflexionada desde la experiencia de las necesidades humanas para la vida. Basándonos en sus escritos, podemos observar cómo se reformula la idea de necesidad mediante las categorías trascendentales de inevitabilidad e indispensabilidad.20 Son categorías antropológicas y éticas que transforman la manera como se entiende a la misma razón práctica y su formulación trascendental. Pero esto incide, también, en la manera como se deberá tipificar filosóficamente lo que entendemos por obligación y por normatividad. El universalismo de la ética del bien común viene acompañado de una manera nueva de entender “lo obligatorio”. Éste hay que concebirlo dentro del mismo criterio universal de la ética que se funda en el sujeto viviente, en el postulado de la razón práctica. Al constatar lo inevitable (“asesinato es suicidio”), entonces surge lo obligatorio (“debemos reproducir la vida humana”) (Cf. HINKELAMMERT, 2001, p. 114). Es necesidad en el sentido de indispensabilidad. En tanto proviene de un criterio universal y de un principio trascendental de la razón práctica, la necesidad que se expresa como obligación ética no es identificable con las necesidades concretas (empíricas) de los individuos o de los colectivos. Siendo más precisos, nos estamos refiriendo al “sujeto necesitado”, que es la expresión que Hinkelammert utiliza para referirse a las condiciones de posibilidad constitutivas de la acción humana, que son incluso las condiciones para poder tener necesidades. Pero tampoco se trata de una necesidad entendida como determinismo o como a priori de la razón. Desde la consideración trascendental de la subjetividad, por el contrario, las normas no son interpretadas como necesarias o indispensables. Hinkelammert insiste mucho en que éstas son prescripciones que se pueden
Sobre esta manera de entender la necesidad —y la trascendentalidad—, utilizando categorías como “indispensable” e “inevitable”, véase Hoyos, Luis Eduardo; “Trascendental”, en A.A.V.V.; Cuestiones metafísicas, Madrid, Trotta, 2003, p. 89-90; 92-94. 20
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aplicar en “situaciones específicas”. Por lo tanto, si alguien sostuviera que una norma es “indispensable”, podríamos preguntarle “indispensable en qué situación o en función de qué fines”, etcétera, y no la consideraremos como indispensable en el sentido trascendental antes apuntado. Así como con los derechos humanos, con las normas hay que proceder hacia su historización, evitando que se conviertan en principios de supuesta derivación apriorística, que son fuente de ilusiones trascendentales. Esto no quiere decir, por supuesto, que las normas sean inútiles o que podríamos prescindir de ellas. De lo que se trata con esta crítica es de tomar distancia frente a la absolutización de las mismas, pero no es que se niegue la validez de la normatividad. Siempre y cuando no se confundan con el criterio del universalismo ético, las normas podrían funcionar incluso como instrumentos de emancipación. Frente al rigorismo irresponsable de las normas absolutas, queremos entender la ética del bien común como “la propuesta de una apuesta”, ya que es un llamado urgente para que, reconociéndonos como responsables de la vida de todos, evitemos el suicidio colectivo. En este sentido, es una formulación solidaria de la ética de la responsabilidad. Hoy día, piensa Hinkelammert, es imperativo que la ética de la responsabilidad sea fundada sobre una apuesta por la vida de todos, posicionándola críticamente frente a cualquier interpretación rigorista de su significado. Sería lo contrario de lo que Max Weber entendía por ésta. En Weber, pero también en la formulación neoclásica de la ética funcional del mercado – y, de modo más leve, en los planteamientos de Karl-Otto Apel –, la ética de la responsabilidad defiende el cumplimiento de las normas, en detrimento del sujeto. Esta ética absoluta se encarga de legitimar el sistema y las normas, mediante la lógica del “cumplimiento por el cumplimiento” (Cf. HILKELAMMERT, 1995, p. 251-254). Este problema de la ética absoluta ya lo encontramos implícito en las apelaciones a un mecanismo automático de los mercados en Hume y en Smith, pero en éstos todavía podían observarse argumentos materiales, de contenido: una sociedad que persigue unos fines, para los cuales necesita superar el egoísmo, o la confluencia de intereses particulares en el fin buscado, es decir, en el interés general. Semejantes argumentos oscurecen sus razonamientos, volviéndolos incongruentes. Y aunque Weber también muestra algunas inconsistencias, por ejemplo, cuando utiliza juicios de valor 34
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para legitimar el sistema mercantil capitalista, no duda en afirmar que su postura obedece a consideraciones eminentemente formales. Sus normas son normas de funcionamiento, referidas a la performatividad del sistema, pero no a los fines de sus integrantes ni del conjunto. En este sentido, Weber es uno de los mejores exponentes de esta ética absoluta21. La ética del bien común que propone Hinkelammert es ética de la responsabilidad en un sentido diferente del que le da Weber. No se propone la eliminación de consideraciones materiales en función de la absolutización de la performatividad del sistema, ni es ética rigorista de principios. Al contrario, la responsabilidad es por la sobrevivencia de la humanidad, lo que quiere decir que lo que importa, en última instancia, son las consecuencias para la vida de los sujetos humanos corporales y necesitados. Es una ética de la responsabilidad solidaria (Cf. HINKELAMMERT, 1995, p. 36-37). La “necesidad” que subyace a esta ética no aparece principalmente porque debamos suponer la inevitabilidad de la debacle, sino porque, más importante aún, se nos impone la indispensabilidad de una respuesta. Y no es cualquier respuesta ni tan simple. Ya hemos señalado que la inclusión de todos en un proyecto común, que se construya en función de las posibilidades de vida para todos los seres humanos, no deberá interpretarse como la necesaria implementación de todo proyecto humano. Es evidente que habrá proyectos individuales y colectivos que no podrán tener cabida en esa “sociedad en la que quepan todos”, pues se trata de proyectos y grupos que son constitutivamente excluyentes. Pero tampoco es posible saber esto a priori, por lo que, en principio, nuestra posición deberá ser lo suficientemente amplia y abierta. Aquí vemos como aparece de nuevo “la complejidad del mundo”. Esta ética de la responsabilidad solidaria surge de la idea de que los proyectos orientados hacia el bien común no se podrán realizar si no son proyectados desde una fundamental apertura, tanto a un criterio ético “universal y necesario” (“debemos reproducir la vida humana”) como a consideraciones consecuencialistas en torno al mismo. El bien común es
21 Hay un desarrollo amplio y pormenorizado de estas ideas en “La ética del discurso y la ética de la responsabilidad: una posición crítica”, conferencia pronunciada por Hinkelammert, en el IV Seminario Internacional. A Ética do Discurso e a Filosofia Latino-americana da Libertação. São Leopoldo, Rio Grande do Sul, 29 de septiembre – 1º de octubre de 1993, la cual se encuentra publicada en CES, p. 225-272.
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un a priori – un concepto trascendental – que es descubierto a posteriori – mediante la interpelación de los sujetos humanos concretos. No se trata de una “derivación” a partir de principios apriorísticos. Pero tampoco es utilitarismo remozado, ya que el consecuencialismo del que hablamos deberá tomar en cuenta los problemas complejos que surgen en el ámbito de la acción social, las instituciones y los fines éticamente aceptables, todo esto como resultado de una consideración realista de los límites de factibilidad de nuestra acción social22. Además, la responsabilidad por los resultados no puede ser reducida al “cálculo” de las consecuencias, pues hay que reconocer la dimensión cualitativa irreductible del sujeto viviente, así como la necesidad de proyectar alternativas, utopías necesarias. No obstante las críticas a Weber, Hinkelammert ve positivo que se utilice su distinción para referirse a “la ética de la responsabilidad (Verantwortungsethik), que tiene que hacerse responsable de los resultados de las acciones y no solamente de sus buenas intenciones, en contraposición a la ética de la convicción (Gesinnungsethik), que se satisface con su buena intención, sin preocuparse de los resultados de la acción” (HINKELAMMERT, 1981, p. 76). El énfasis deberá estar puesto en las consecuencias y no en las intenciones. Aunque no es que éstas no cuenten, sino que se subordinan a aquéllas. Pero esto nos lleva a un asunto esencial: ¿Qué posibilidades hay de que esta alternativa sea realmente algo por lo que “la humanidad grite”? En este punto es que debemos decir que la ética del bien común conserva aún otra paradoja, en esta ocasión, la de que se trata de una ética necesaria y no necesaria, a la vez. Ya hemos insistido bastante acerca de su necesidad: es una ética indispensable. Pero esta afirmación, lo hemos señalado también, estaría incompleta si no agregamos que la ética será indispensable sólo si queremos vivir. En este último sentido es que la ética del bien común no es necesaria.
22 Una definición de “consecuencialismo” la encontramos en Carrasco Barranco, Matilde; Consecuencias, agencia y moralidad, Granada, Editorial COMARES, 2002, p. 1. Sobre las virtudes del consecuencialismo frente a concepciones rigoristas acerca de los valores, cfr. Pettit, Philip; “El consecuencialismo”, en Singer, Peter (ed.); Compendio de ética, Madrid, Alianza, 1995, p. 325. Acerca de los debates en torno a qué tanto toman en cuenta los consecuencialistas los problemas en torno a las instituciones y los principios de factibilidad, pueden consultarse, en el libro de Carrasco, las páginas 137 y 167. También hay matices interesantes a las usuales versiones consecuencialistas —a ciertos utilitarismos, por ejemplo — en Sen, Amartya; Desarrollo y libertad, Barcelona, Editorial Planeta, 2000, p. 45.
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Es cierto que una lectura ligera de los textos de Hinkelammert podría sugerir una cosa diferente. Algo así como que propone una especie de “relación causa-efecto” que estaría ligando de manera rígida la constatación de lo inevitable, los procesos, las previsiones y los resultados. No obstante, su postura es clara. Ciertamente, señala que “se deduce entonces la necesidad ética – es decir, como juicio objetivo con base en los hechos – de que el accionar debe encaminarse con prioridad de contenido a la creación de la condición de posibilidad de la vida de todos los seres humanos y de la tierra” (HINLELAMMERT, 2003, p. 186). Pero es claro que no basta con ese juicio “objetivo”. Siempre antecede una opción por la vida que no se deduce de ninguna manera de la “base en los hechos”, sino que se encuentra a la misma base de ellos. A esto nos referíamos cuando señalábamos que con un suicida no se puede argumentar. Pero, si nuestro interlocutor es alguien que sí quiere vivir, entonces sí podemos argumentar y mostrar contradicciones e inconsistencias, que siempre serán, en última instancia, contradicciones e inconsistencias dentro de una “opción por la vida” y que parten de la observación de los hechos. La necesidad que nos interesa no es efecto, no es resultado. El carácter necesario de esta ética no significa que sea evidente la aceptación de su conveniencia, por parte de todos los afectados, ni que sea imposible darle la espalda, ya que cabe la posibilidad de que se rechace la opción por la vida. No obstante, cabe la esperanza en que la humanidad querrá seguir viviendo y vale la apuesta de que la “visión” de lo inevitablemente destructivo mueva a la acción solidaria. Hinkelammert es consciente de esto. Por eso mismo cree que este indeterminismo en la elección por la vida es también la base de la esperanza en que la humanidad la elija y rechace la muerte.23 Un cierto malestar frente a este indeterminismo es lo que podría estar a la base de la confusión que encontramos en las siguientes palabras de Jordi Corominas, quien, por lo demás, llega a una “conclusión obvia”: “La ciencia social crítica que propone Hinkelammert puede prever un suicidio colectivo, pero de esta previsión no se sigue que es preferible cambiar el sistema y seguir viviendo”. Corominas, Jordi; “La marcha de los Nibelungos y la ética de la responsabilidad de F. Hinkelammert”, 1997, en http://www.uca.edu.sv/deptos/filosofia/depfilosofia.html Claro que, al añadir algunas precisiones, eso “obvio” es relativizado: no se sigue que sea preferible cambiar el sistema y seguir viviendo, a no ser que previamente hayamos hecho una opción por la vida. Es indudable que el comentario de Corominas carece del realismo al que nos venimos refiriendo. Su visión del problema lo deja siempre “de este lado” de una perspectiva subjetiva del mundo y de la realidad, tal como la propone Hinkelammert. 23
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El criterio ético que se deriva de la reflexión trascendental sobre el sujeto viviente no dice todo lo que debemos hacer, aunque sí dice lo que pasaría si no hiciéramos lo necesario. Pero esto es algo que debemos descubrir a posteriori. Por su parte, la ética del bien común y de la responsabilidad solidaria no implica ningún determinismo, sino la apuesta de que la visión de lo inevitable nos hará ver con claridad la indispensabilidad de un humanismo abierto e incluyente. Es un realismo moral que no anula, de ninguna manera, la libre opción del ser humano por la vida.
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HINKELAMMERT, Franz. “Prometeo, el discernimiento de los dioses y la ética del sujeto. Reflexiones a partir de un libro”, Pasos: (DEI) 118 (2005) 7-24. ______. Sacrificios humanos y sociedad occidental: Lucifer y la bestia, San José, DEI, 1991. ______. El sujeto y la ley, Heredia: EUNA, 2003. ______. “Utopía, proyecto alternativo y recuperación del estado de derecho. Mediaciones necesarias para una sociedad en la cual quepan todos” (con Henry Mora Jiménez). Es una versión ampliada del capítulo XIV de Hacia una economía para la vida (HEV), presentada por Henry Mora en el DEI, durante el Seminario de Investigadores y Formadores, en Noviembre de 2005, y en función de la segunda edición de este libro. ______. La vida o el capital. Alternativas a la dictadura global de la propiedad (con Ulrich Duchrow), San José: DEI, 2003.
ETHICS OF THE COMMON GOOD AND THE SOLIDARITY RESPONSIBILITY Abstract This article is an approximation of Franz Hinkelammert’s theoretical approaches, through which we could found philosophically an ethics of the common good and of the solidarity responsibility. Starting from the necessity of an open, material and historical humanism, the author of this article analyzes the ethical proposals of the German philosopher, demonstrating some keys of interpretation that contributed to think in a renovated manner the human rights and the alternative social projects. Key words: Ethics, solidarity, responsibility.
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A IDEIA DE FILOSOFIA NO BRASIL COMO SUPERAÇÃO DO ARISTOTELISMO DE MATRIZ IBÉRICA Luiz Alberto Cerqueira*
Resumo Na presente elaboração o autor pretende mostrar o processo mediante ao qual a filosofia no Brasil vai passando por vários momentos, através de contribuições variadas (Pe. Vieira, Gonçalves Magalhães, Tobias Barretos, Farias Brito) em um caminho de superação da matriz filosófica herdada dos jesuítas e afirmação de uma filosofia brasileira. Nesse sentido a contribuição com a filosofia moderna foi bastante fecunda e oportuna, no delineamento daquilo que o autor denominou ontogênese do pensamento brasileiro. É a partir desse itinerário que podemos falar de uma filosofia em nossa terra. Palavras-chave: Aristotelismo, consciência, pensamento brasileiro.
Introdução O conceito de filosofia como disciplina normativa na educação brasileira remonta à reforma da universidade portuguesa no século XVI, quando, em 1555, o rei D. João III entregou aos jesuítas o Colégio das Artes, por ele fundado, em 1548, junto à Universidade de Coimbra, e destinado ao ensino público de latinidade e filosofia. Esse fato histórico é decisivo para compreendermos por que o ensino oficial de filosofia no Brasil-colônia se deu, ao longo de dois séculos, sob a vigência da Ratio Studiorum, método pedagógico da Companhia de Jesus que estabelecia o que e como ensinar. Sem dúvida, a recomendação da doutrina de Aristóteles na Ratio Studiorum, que já se encontra nas Regras do Prefeito dos Estudos, e principalmente nas Regras do Professor de Filosofia, é a de um suposto caminho universal e seguro, sem o qual não se compreende a missão educativa institucional de promover a ascensão da alma ao conhecimento contemplativo do Criador. * Coordenador do Centro de Filosofia Brasileira do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. http://filosofiabrasileiracefib.blogspot.com / cerqueira@ifcs.ufrj.br 40
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A ideia de filosofia no Brasil como superação do Aristotelismo de matriz ibérica
Não obstante essa condição de uso teórico da razão no Brasil-colônia sob a tutela da instituição religiosa, convém ressaltar que o conceito de filosofia no aristotelismo da Ratio Studiorum não é mais o mesmo da Escolástica. A ideia de filosofia dos jesuítas no Colégio das Artes, e na universidade que eles fundaram em Évora (1559), pressupõe tanto as questões teológicofilosóficas de “direito”, levantadas por Francisco de Vitória (1480-1546) na Universidade de Salamanca, como o combate de Juan Luís Vives (14921540) ao abuso de Aristóteles para o apoio de quaisquer afirmações. Neste sentido, parece evidente que a costumeira designação “Segunda Escolástica” não faz jus ao aristotelismo promovido pelos jesuítas no século XVI, porque ele não se explica fora do contexto do Humanismo. Sua característica principal é a exigência de rigor na fidelidade a Aristóteles, cujo pensamento fora considerado falseado pelas interpretações e interpolações inseridas nas sucessivas transmissões, recepções e adaptações de corpo de texto. Apoiada na invenção da imprensa, tal exigência de rigor originou um empreendimento institucional de caráter revolucionário na história do ensino de filosofia – o Curso Conimbricense –, o qual estabeleceu a exegese de texto como princípio de validade objetiva do estudo filosófico. Para tanto, os jesuítas procederam do seguinte modo no estudo do pensamento de Aristóteles: (i) o estabelecimento do texto original, (ii) a sua tradução para a língua conveniente (na época, o Latim) e, finalmente, (iii) a publicação do texto precedido de um comentário sobre o seu teor. No Curso Conimbricense (ou, simplesmente, “Conimbricenses”) podemos incluir os Commentariorum in Libros Metaphysicorum Aristotelis (1577-1612), de Pedro da Fonseca, além do conjunto de dez Comentários, em oito volumes, publicados de 1592 a 1606, de Manuel de Góis (Libros Physicorum, De Coelo, Libros Meteororum, Parva Naturalia, Libros Ethicorum ad Nicomachum, De Generatione et Corruptione, De Anima), de Baltazar Álvares (Tractatus de Anima Separata), de Cosme de Magalhães (Tractatio ad Quinque Sensus) e de Sebastião do Couto (Dialectica). Considerando-se em contraste os dois modelos de conhecimento, o aristotélico-escolástico e o das “ciências da natureza”, a Ratio Studiorum e os Conimbricenses se situam a uma distância média entre os dois, contribuindo para o aparecimento não só dos “modernos” físicos experimentais, como Galileu, mas também de metafísicos preocupados em definir um método rigoroso para a ciência, como Descartes. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 40-87, jul./dez. 2011
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Dada a formação das culturas latino-americanas, em sua dependência originária da transmissão cultural portuguesa e da espanhola ao longo de séculos, o interesse no estudo do aristotelismo de matriz ibérica se configura nessas culturas, para todo o estudioso da história da filosofia em seu país, como um lugar privilegiado a partir do qual tanto se pode chegar à filosofia medieval e daí à filosofia antiga, como se pode chegar à filosofia moderna e daí à filosofia contemporânea.
1 O aristotelismo em Portugal Por volta de 1150 a manifestação da consciência de si em Portugal era provavelmente nula. Não se verificam textos em que o homem se eleve ao nível de universalidade da razão: nenhum sermão ou homilia, nenhuma carta de caráter doutrinal, nenhuma obra teológica ou filosófica, nenhum tratado moral ou espiritual. Mas, já no final do século, houve um surto de progresso intelectual. Os monges portucalenses cultivavam o conhecimento de latim e de música, ampliavam suas bibliotecas, estudavam direito civil e canônico, promoviam o ensino das primeiras letras, perpetuavam a memória de fatos notáveis, aprendiam a compreender a Bíblia, as obras dos Santos Padres e ensaiavam formas de oração mais pessoais e menos supersticiosas do que a dos agricultores, cavaleiros e senhores da mesma época. Esse surto de progresso intelectual resultou da implantação do trivium, organização pedagógica das escolas episcopais portuguesas baseada em estudos de gramática, retórica e dialética (lógica aristotélica). A adaptação da lógica aristotélica aos objetivos específicos de formação religiosa assinala em Portugal a projeção do aristotelismo como atitude sintonizada com o espírito do tempo, à semelhança do que já ocorrera em outras partes da cristandade europeia, desde Boécio. Após a fundação da universidade portuguesa (1290), Aristóteles continuou a ser objeto de estudo na disciplina Dialética, que no decurso do tempo passou a receber também as denominações de “Lógica” e “Súmulas”, designação esta que provavelmente se universalizou em virtude da extraordinária fortuna escolar das Summulae logicales, nome pelo qual ficou conhecido o Tractatus de Pedro Hispano. A partir das obras de caráter político e moral dos Príncipes de Avis, no século XV, podemos verificar o uso da doutrina aristotélica com vistas à 42
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A ideia de filosofia no Brasil como superação do Aristotelismo de matriz ibérica
fundamentação das próprias ações, caracterizando-se assim os primórdios do aristotelismo em Portugal. O apogeu, de meados do século XVI a meados do século XVII, é marcado pela reforma da universidade e pela participação da Companhia de Jesus nessa reforma, quando sobressaem a elaboração do Curso Conimbricense e a contribuição pessoal de Pedro da Fonseca, celebrado como o “Aristóteles Português”. Ao apogeu sobrevém a decadência, a partir do final do século XVII até a supressão do aristotelismo oficial pela reforma pombalina da instrução pública.
1.1 Primórdios: a valoração moral do saber A introdução dos estudos de filosofia aristotélica na universidade deuse no século XV sob a dinastia de Avis. Seu responsável foi o Infante D. Henrique, que completou o ensino das artes liberais com as disciplinas do quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música) e criou as cátedras de filosofia natural e filosofia moral, sendo esta inspirada na Ética a Nicômaco, e aquela presumivelmente na Metafísica de Aristóteles. Embora estivesse sob o influxo da decisão papal de 1366, que tornou obrigatório o estudo de Aristóteles no ensino oficial de filosofia, a atitude de D. Henrique revela uma novidade importante no cenário cultural português: a necessidade de reforma da universidade portuguesa segundo o novo modelo introduzido pelas universidades de Paris e de Oxford. Além da ênfase sobre os studia humanitatis, esse novo modelo corresponde à substituição do ensino filosófico de caráter geral e contemplativo, destinado a imprimir na alma a ordem total do Universo e de suas causas, pelo ensino de caráter analítico e moral destinado, em última instância, à formação e qualificação de servidores para os diferentes ofícios. Já o rei D. João I chama a atenção para as qualidades desse saber: [...] assim o serviço que o servidor faz ao senhor pelo bem que dele recebe, não é o conhecer, que ele conhece, mas é a demonstração de que conhece aquele bem que recebe: e assim bem parece que o conhecer não está no corpo, nem nos sentidos, mas que está na força da alma, e isso por si se entende sem ajuda de outro nenhum: porque assim o disse Aristóteles no livro terceiro da alma, que o conhecer humano conhecendo e tendo notícia das coisas por ele conhecidas, se voltava sobre si, conhecendo de si mesmo as coisas por si mesmo conhecidas (D. JOÃO I, 1981, p. 57). REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 40-87, jul./dez. 2011
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Coube, porém, ao Infante D. Pedro ressaltar a necessidade política “de se tirar a ignorância por estudos continuados, os quais devem suportar qualquer senhorio que os pode manter, ordenando universidade solene” (D. PEDRO, 1981, p. 614). Refletindo a doutrina política de Aristóteles, segundo o qual (i) “a autoridade e a subordinação são condições não somente necessárias, mas também úteis” (Política I, 5), e (ii) “quanto mais perfeita é a natureza dos subordinados tanto mais perfeita é a autoridade que sobre eles se exerce” (Política I, 5), D. Pedro considera que a condição essencial para o ato de virtuosa benfeitoria, que procede do senhor em proveito do súdito, é a intencionalidade do ato, que envolve o modo do saber analítico: E de tal benefício temos conhecimento da seguinte maneira: nós vemos que a ajuda feita a outro não vem geralmente por natureza [...]. E como esse ato que devem fazer não é natural, nem casual, convém que seja voluntarioso, tendo sua origem no querer da vontade. E porque não se pode a coisa desejar, sem que dela se tenha conhecimento, convém que primeiramente se conheça a necessidade e a coisa com que se pode acorrer, e então queira, e depois tomando intenção determinada para dar com presteza e cuidado, comece sua obra (D. PEDRO, 1981, p. 539-540).
Evidentemente, o benefício é um ato intencional não só porque convém que seja voluntarioso, mas também porque deve estar em conformidade com a razão. Neste sentido, D. Pedro argumenta que “Aristóteles, filósofo muito sutil, querendo ensinar o modo pelo qual vivemos em conhecimento das coisas, diz no posterior livro da lógica [Analítica posterior] que primeiramente devemos de saber das coisas se ela é, e depois perguntar especialmente o que é” (D. PEDRO, 1981, p. 538). O conhecimento a priori torna-se, portanto, não só condição em virtude da qual o senhor se propõe prestar benefícios em vista do bem comum – como a reforma da universidade proposta por D. Pedro –, mas também a medida pela qual “os súditos oferecem ledos e voluntariosos serviços àqueles que por natureza vivem sujeitos, e são obrigados pelo bem que recebem” (D. PEDRO, 1981, p. 533). Por este meio se ligam espiritualmente extremos que têm a sua essência na desigualdade, daí surgindo enfim a harmonia numa sociedade perfeita desejada por todos, indiferentemente da condição social: “E portanto está escrito no primeiro livro da Política que a vontade move 44
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por seu mandado os poderes defensor e desejador, os quais lhe obedecem, não como servos em constrangida sujeição, mas segundo homens livres em obediência desejosa” (D. PEDRO, 1981, p. 567). Nem D. Duarte, que sucedeu ao rei D. João I, nem o Infante D. Henrique, que pelos benefícios prestados recebeu o título de Protetor da Universidade, fizeram a reforma da universidade proposta pelo irmão. Esta só se concretizou um século mais tarde, com a fundação do Colégio das Artes. Coube a D. Duarte, autor de Livro da ensinança de bem cavalgar toda sela e da obra Leal conselheiro, destacar-se mais pela observância do princípio aristotélico-tomista de que nihil est in intellectu quod non prius fuerit in sensu. Isto é o que se verifica claramente no seu texto mais apreciado, o segundo, que consta de 103 capítulos, nos quais D. Duarte trata das paixões, das virtudes e das correções de males e pecados. Neste sentido, Leal conselheiro é um livro de moral “feito principalmente para senhores e gente de suas casas” (D. DUARTE, 1981, p. 238). Suas introspecções sobre a vanglória ou vaidade, a inveja, a sanha ou ira, o ódio, a melancolia, o enfadamento, a tristeza, o nojo, o pesar, o desprazer, o aborrecimento e a saudade o colocariam hoje numa linha de investigação hermenêutico-fenomenológica, uma vez que, para além de sua preocupação conceitual, “tendo mais intenção de bem mostrar a substância do que escrevia que a formosa e guardada maneira de escrever” (D. DUARTE, 1981, p. 238), D. Duarte esclarece: “Sobre isso mais escrevo porque sinto e vejo na maneira de nosso viver que por estudo de livros nem ensino de letrados” (D. DUARTE, 1981, p. 238). É exatamente esta maneira de pensar um problema vivido no âmbito da cultura nacional, associada à percepção da necessidade de pensar em português (D. DUARTE, 1981, p. 434), que nos permite considerar o aristotelismo em Portugal já numa dimensão própria a partir do século XV.
1.2 Apogeu: Pedro da Fonseca O intuito dos professores jesuítas de filosofia era de fato manterem-se fiéis à doutrina de Aristóteles e dos seus comentadores mais qualificados, razão pela qual não podiam prescindir de uma terminologia precisa e já consagrada no decurso de muitos séculos de especulação filosófica. Isso, porém, não impediu que eles, já imbuídos do espírito do Humanismo, soubessem conciliar o propósito de rigor com uma expressão latina escorreita e elegante, fazendo uso REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 40-87, jul./dez. 2011
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da retórica sempre que não estivesse em jogo uma preocupação puramente conceitual. Advertiam, por exemplo: Será acusado o orador que, suprimindo todo o ornamento, quiser tecer o seu discurso de razões matemáticas ou de pura filosofia. De igual vício se arguirão os matemáticos e os filósofos, que tratarem as coisas matemáticas e filosóficas ao modo da oratória, isto é, segundo os enfeites das figuras e do ritmo (FONSECA, 1964, p. 515).
Dentre os autores portugueses dessa época, merece destaque Pedro da Fonseca (1528-1599), cuja obra mais importante, por sua extensão, construção e, sobretudo, pelas novas ideias, é a que traz os Comentários à Metafísica de Aristóteles, realizados segundo o sistema escolástico das quaestiones, mas partindo do texto original estabelecido pelo próprio Fonseca com o recurso ao método histórico-filológico. Todavia, sua obra mais acabada e de maior repercussão na história do ensino de filosofia é Instituições dialéticas. Vale observar que entre as Regras do Professor de Filosofia, na Ratio Studiorum, encontramos a de nº 9, que determina o estudo da lógica “por Toledo ou Fonseca”. Além dessas duas obras, conhecemos ainda, de Fonseca, a Isagoge filosófica, um interessantíssimo texto sobre os universais. O aspecto mais característico de suas Instituições dialéticas é o da adoção da metodologia da lógica tópica. Antes mesmo de Descartes, o problema do método ocupa uma posição significativa em Fonseca. Não temos dúvida de que esta percepção do estudo da lógica encontra-se intimamente associada ao ambiente cultural da época, em que as preocupações referentes aos problemas práticos da vida humana se sobrepunham ao caráter meramente formal das “disputas” escolásticas. Deste modo, o que importava era de fato a constituição de uma lógica que servisse de instrumento útil nos domínios político, jurídico, moral e pedagógico, em que as questões a resolver são controversas e por isso não suscetíveis de soluções categóricas e absolutas. A importância de Fonseca está precisamente em ter mostrado que a dialética não constitui uma forma estéril de estudo filosófico, como de fato aconteceria se se preocupasse exclusivamente com a demonstrabilidade da argumentação. Ao contrário, a dialética se define como “doutrina do discorrer, como arte que ensina todas as fórmulas de discorrer, isto é, de revelar pela oração o desconhecido a partir do conhecido” (FONSECA, 1964, p. 21). Deste modo, 46
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a dialética tem um compromisso com a verdade, sendo inteiramente solidária com a analítica, servindo-lhe de instrumento, contendo a reflexão sobre o discurso em geral, no interior do qual se pode distinguir a reflexão sobre o discurso científico no sentido estrito do termo. Foi assim que Fonseca pôde superar o probabilismo dos “dialéticos” renascentistas e, por assim dizer, salvar o conceito aristotélico de ciência, se considerarmos que Aristóteles concebeu a dialética como útil e necessária à ciência, na medida em que somente a partir de proposições “prováveis” ou “plausíveis” toda a criatura racional pode participar diretamente na descoberta da verdade. No que respeita ao pensamento metafísico, Fonseca procurou conciliar tomismo e escotismo, mas de forma a atender as objeções de Duns Escoto ao tomismo sem prejuízo da síntese de São Tomás. Distinguiu escrupulosamente a metafísica da teologia e deu grande ênfase à unidade de essência do ser, no que influenciou Francisco Suárez. Nos Comentários (L. IV, c. 2, q. 2, s. 3), o conceito formal do ser é unívoco, e não analógico, em sua referência à realidade singular das coisas. Se o objeto da metafísica é o ser enquanto ser (ens ut ens), comum ao Criador e às criaturas, não há lugar para uma abstração que possibilite uma metafísica especial do Criador, distinta da metafísica da criatura (L. IV, c. 1, q. 1, s. 2). Quanto à distinção entre essência e existência, é só de razão ou consideração, correspondendo apenas aos dois modos do ser, sendo a essência o modo necessário, intrínseco à natureza de uma coisa, e a existência, o modo contingente que se acrescenta a esta natureza (L. IV, c. 2, q. 4, s. 2). Tal distinção torna Fonseca parcialmente responsável pela introdução da terminologia dos modos na metafísica moderna. Sua independência de pensamento leva-o a afastar-se do tomismo oficial, ao rejeitar, por exemplo, a matéria assinalada (materia quantitate signata), segundo a definição de São Tomás, como princípio de individuação. Para São Tomás, na perspectiva da igualdade de essência das coisas, o princípio de individuação não seria mais que o princípio de multiplicação da mesma forma. Não podendo uma só e mesma forma por si mesma multiplicar-se, a multiplicação só se explicaria por algo que lhe adviesse e que fosse, ao mesmo tempo, intrínseco ao ser. Este “algo” seria a matéria enquanto se dá a conhecer pela quantidade. E, como somente as coisas materiais têm esta propriedade quantitativa ou dimensiva, somente as coisas materiais poderiam ser diferentes entre si sem prejuízo de sua identidade ontológica. Neste ponto, Fonseca não diverge da tradição tomista. Para ele, a diferença propriamente dita é a REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 40-87, jul./dez. 2011
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“diversidade daquelas coisas que, não obstante isso, são absolutamente de uma mesma natureza” (FONSECA, 1965, p. 107). Entretanto, orientando-se pela tradição escotista, ele entende que a individuação se deve ao acréscimo de uma diferença positiva à essência de uma coisa, sendo o princípio de individuação simplesmente o princípio intrínseco pelo qual o indivíduo excede a própria condição de espécie ínfima, a qual, segundo Fonseca, é aquela que “sendo espécie de superiores, não é gênero de inferiores e abaixo da qual não há outras espécies, como no caso de homem, que de tal modo é espécie de animal, mas não é gênero de cada um dos homens; os homens, com efeito, não diferem entre si especificamente, senão em número” (FONSECA, 1965, p. 97). Constando já formalmente a espécie nos diferentes homens, e não podendo eles individuarem-se nem pela matéria nem pela forma, conclui Fonseca que se individuam por qualquer outra coisa intrínseca que, à maneira da diferença específica, chama de diferença individual, porque, sendo a diferença específica [...] aquilo pelo que a espécie excede o gênero, do mesmo modo pode dizer-se que a diferença individual excede a espécie ínfima. Efetivamente, assim como o homem, na sua essência, tem mais que o animal o fato de ser dotado de razão, assim Sócrates, na sua essência particular, supera a essência do homem comum pelo fato de ser este homem singular e determinado (FONSECA, 1965, p. 111).
Contra o aristotelismo dogmático, Fonseca questionou o número de causas. Sem dizer abertamente que as causas são cinco e não apenas quatro (formal, material, eficiente e final), como desde Aristóteles se vinha repetindo, acrescentou a causa exemplar como sendo outro gênero de causa, com base na imitação. Se, pela forma interna, os seres vivos são determinados para a morte enquanto causa final de sua natureza, pela forma externa procuram superar esse determinismo, reproduzindo outro(s) semelhante(s) a si, o que significaria a imortalidade da alma, senão em número, pelo menos em espécie. Isto parece claro quando Fonseca oferece a seguinte explicação: Da forma externa, que chamamos exemplar, Aristóteles (De anima, II, 4) mostra porque é que todos os seres vivos perfeitos buscam procriar outros semelhantes a si para uma certa continuação: para que, deste modo, diz, existam sempre e se revistam, o quanto possam, de uma condição divina (FONSECA, 1964, p. 517). 48
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Acima, porém, de todas essas análises e sutis considerações, o caráter construtivo e positivo do trabalho filosófico de Fonseca revela-se na célebre doutrina da ciência condicionada ou “ciência média”. Sem querer ocultar o perfil neoescolástico dessa doutrina, conforme sua afirmação de que “não houve até agora quem conciliasse deste modo claro e (como se costuma dizer) em termos próprios a liberdade do nosso arbítrio e a divina presciência ou providência” (Comentários, L. VI, c. II, q. IV, s. VIII), acreditamos que deve destacar-se nessa doutrina não só o intuito de conciliar a presciência divina e a liberdade do agir humano, mas, sobretudo, a ideia de que, mediante o conceito de uma ciência condicionada ou relativa, e não absoluta, se preserva a liberdade humana de escolha entre contrários. No tempo de Fonseca, a tradição escolástica consagrara duas concepções de ciência divina: a de simples inteligência e a de visão. Pela primeira, Deus conhece todas as coisas no seu estado de mera possibilidade; pela segunda, Deus vê as coisas e fatos futuros como futuros absolutos. As coisas passam do estado de pura possibilidade ao de futuro absoluto em função do modo necessário intrínseco à lei ou determinação divina, da qual o homem não participa. Como o modo necessário da lei divina é conveniente ao agir humano, especialmente no caso das leis morais, sob a condição de que “é necessário que assim seja e que assim se faça”, a questão que se impunha era a seguinte: Como é possível justificar a liberdade humana nas ações virtuosas ou morais? Para conciliar a presciência divina e a liberdade humana, Fonseca introduziu entre as duas concepções vigentes de ciência divina – a de simples inteligência e a de visão –, uma outra, a de ciência média (scientia media). “Média” não só no sentido de que medeia as outras duas concepções, mas também porque delas participaria da seguinte forma: se é pela ciência de simples inteligência que Deus obtém o conhecimento a priori de todas as possibilidades de ação, pela ciência média examinaria o futuro contingente da transformação dessas possibilidades em ações necessárias no mundo, isto é, “veria” como um mundo possível se atualiza necessariamente no tempo e no espaço. Como somente um entre os infinitos mundos possíveis ultrapassa os limites da possibilidade e da futurabilidade para se transformar em mundo atual (que Deus contempla na ciência de visão), Fonseca procurou reduzir o problema dos futuros contingentes à questão de uma ciência média ou condicionada. O ato livre seria precisamente a escolha (da parte de Deus, dos anjos ou do homem) que realiza a transformação de um mundo possível REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 40-87, jul./dez. 2011
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em mundo atual com base na ciência média ou condicionada. Aqui entra também, como componente teórico importante, a doutrina do tempo e do espaço imaginários desenvolvida por Fonseca. Segundo essa doutrina, Deus encontra-se no tempo e no espaço imaginários, participando, assim, em toda a transformação possível. Mas, no caso da transformação promovida pela escolha humana, qual o sentido de “participação” se e na medida em que o conceito de ciência média participa das outras duas concepções de ciência divina? Esse sentido corresponde àquele mesmo sentido de participação da lei divina pela criatura racional, conforme a explicação de São Tomás (Summa theologiae, I-II, q. XCI, a. II). Por outro lado, segundo São Tomás, “a ciência depende do modo do cognoscente, pois o objeto conhecido está naquele que conhece segundo o modo deste” (Summa theologiae, I, q. XIV, a. II). Assim sendo, a participação da presciência divina pela criatura racional seria a condição do mundo atual fundado na necessidade, mas sem prejuízo da liberdade. A análise de Fonseca deste complexo de temas vem no 3º volume dos Comentários, publicado postumamente. Independentemente das questões de ordem textual que este fato pode suscitar, e da controvérsia em torno da autoria da conciliação de presciência e liberdade (se é de Fonseca ou de Luís de Molina), interessa sublinhar o alcance teórico da concepção de ciência em Fonseca. O filósofo português visava realizar uma síntese coerente e integradora da tradição clássica e medieval que pudesse responder às exigências de uma modernidade que já despontava naquele último quartel do século XVI, mas cujos contornos ele não podia entrever claramente.
1.3 Decadência O caráter renovador do aristotelismo desenvolvido pelos mestres portugueses da Companhia de Jesus, fundado na retomada dos textos originais de Aristóteles, entra em decadência a partir da segunda metade do século XVII, a despeito do empenho de reformadores como Francisco Soares Lusitano (Cursus philosophicus, em 4 tomos, de 1651), Inácio Carvalho (Compendium logicae conimbricensis, de 1677) e Antônio Cordeiro (Cursus philosophicus conimbricensis, em 2 tomos, de 1714). Nestes autores, contrariamente aos do século XVI, a atenção aos modernos (recentiores) não serve senão para adulterar o aristotelismo. Isto parece claro não obstante a intenção de preservar o espírito originário dos Conimbricenses. A adulteração 50
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do aristotelismo transparece na confusão da causalidade intrínseca formal com a eficiente; na dificuldade em distinguir no ser a unidade per se da unidade per accidens; na sugestão de que a forma material é uma substância completa capaz de existir separada da matéria; e em outras confusões do pensamento português – então sob a influência indireta de Copérnico, Tyho Brahe, Kepler, Galileu e outros –, que apenas perverteram o aristotelismo dos Conimbricenses. O fato é que a decadência da atitude filosófica portuguesa mostra-se evidente nos manuais da época, por exemplo, na literatura lógica. As diferenças mais assinaláveis situam-se na supressão do texto de Aristóteles antes de cada capítulo e do respectivo comentário exegético, na omissão de referência ao autor, ao título, à divisão, ao conteúdo e à ordem dos tratados aristotélicos e sobretudo no desenvolvimento desproporcionado de temas com grande carga metafísica (ens rationis, universais, predicamentos e predicáveis), em detrimento dos aspectos formais da lógica, principalmente da doutrina do De interpretatione e dos Analytica priora. O procedimento desses autores afastou ainda mais a lógica da sua significação original, transformando-a num palco de disputas para esclarecer problemas de caráter metafísico-teológico.
1.3.1 Ecletismo No século XVIII acentuou-se a perversão do aristotelismo conimbricense na medida em que os responsáveis romanos pela Companhia de Jesus, na 16ª Congregação Geral (1730-1731), sancionaram uma abertura às ideias modernas, partindo, entretanto, do princípio de que as explicações dos fenômenos da natureza, segundo o método matemático-experimental, não só não estavam em oposição à filosofia aristotélica, mas com ela concordavam perfeitamente. Essa “abertura” promoveu a presença política do “estrangeirado”, nome pelo qual ficou conhecida a intelectualidade portuguesa que, ciosa de sua formação no estrangeiro, passou a denunciar como causa dos males e da decadência nacionais a educação pública, chamando a atenção para a necessidade de reforma curricular no curso de filosofia. Em resposta a esse jogo de forças políticas, houve a iniciativa da corte, em 1731, de divulgar o Novum organum, de Francis Bacon, de cuja tradução foi incumbido o estrangeirado Jacob de Castro Sarmento (Theorica verdadeira das marés conforme a philosophia do incomparável cavalheiro Isaac Newton, Londres, 1737). A iniciativa malogrou, ficando claro, neste sentido, que prevaleceu REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 40-87, jul./dez. 2011
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a orientação romana, de compromisso com a tradição aristotélica. Na linha desse compromisso configurou-se um ecletismo, a exemplo da Philosophia universa eclectica (1754), de Inácio Soares, que indica o rumo que os jesuítas se propunham seguir no ensino filosófico, aproximando-se das novas concepções de natureza e de lei natural. Outro exemplo é o de Inácio Monteiro, que na sua Philosophia libera seu eclectica rationalis et mechanica sensuum (1775) afirma ter percorrido e superado sucessivamente as divergências entre Aristóteles, Descartes, Gassendi e Newton, para concluir que nenhum sistema pode arrogar-se o direito da verdade absoluta e que só o ecletismo é a garantia de um pensamento livre. Mesmo no estrangeirado Jacob de Castro Sarmento tal ecletismo é evidente: [...] o verdadeiro e imutável modo de filosofar consiste, como nos ensina o nosso autor ilustre [Newton], em observar atentamente os fenômenos da Natureza e deles deduzir tais causas que possam produzir universalmente os mesmos fenômenos por leis mecânicas [acrescentando que] achadas ditas causas se devem admitir como leis ou causas secundárias pelas quais se governa e se conserva a Natureza (p. 10-11).
Ora, ao identificar as leis da natureza com as “causas secundárias” – terminologia de significação escolástica –, ele preserva a legitimidade plena da metafísica tomista e da ação de Deus como Causa Primeira ou Primeiro Princípio. A mesma abertura à filosofia moderna estabeleceu-se entre os oratorianos, padres seculares da Congregação do Oratório (fundada em Roma, 1564), que aparece em Portugal na segunda metade do século XVII. Também aí o aristotelismo a ser superado se identifica com a forma do ensino filosófico, na medida em que as questões versadas no campo da lógica e da metafísica são as mesmas encontradas em autores jesuítas. João Baptista, por exemplo, na sua Philosophia aristotelica restituta et illustrata qua experimentis qua raciociniis nuper inventis (1748), ainda que tenha expressado o propósito de abreviar e suprimir questões inoportunas no domínio da lógica, não deixa de tratar longamente do problema dos universais. Por outro lado, o intuito de “restituir” Aristóteles não visa devolvê-lo ao passado, senão reconduzi-lo à condição de primazia, insinuando que as supostas novidades modernas já se encontram no Estagirita. 52
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Somente a partir de Luís Antônio Verney (1718-1792) esta situação se altera substancialmente entre os oratorianos. Em suas obras Verdadeiro método de estudar e De re logica, Verney acomete com ardor contra a lógica ensinada em Portugal, acusando-a de obscura, de ensinar apenas a disputar sobre coisas sem utilidade, de prescrever regras complicadas sobre as proposições e os silogismos, dedicando-se menos ao ensino do método de julgar e raciocinar do que à preservação do senso comum acerca da verdade. Influenciado pela lógica de Port-Royal, através de Bernard Lamy (1640-1715), do Oratório francês, seu interesse concentra-se nas questões gnosiológicas e metodológicas referentes à origem e à natureza das ideias, aos critérios de verdade e aos processos de expressão e comunicação do pensamento. Revolucionário no domínio pedagógico, é no domínio da metafísica, entretanto, que se revela francamente conservador. Na parte do seu Verdadeiro método de estudar dedicada à física, após a exposição minuciosa dos novos preceitos metodológicos e epistemológicos desta disciplina, e a consequente rejeição da “física peripatética”, Verney argumenta que a indagação sobre o Espírito Eterno e Incriado, “causa e princípio de todas as coisas”, deverá constituir “o principal empenho do filósofo, pois é esse o fundamento de toda a filosofia e religião”. Ora, se é essa a finalidade da filosofia da natureza, então há uma relação de causa e efeito entre o absoluto e o mundo possível, cujo fundamento se encontrará não nas “leis da natureza”, mas na “lei de Deus” e na ideia de criação. De fato, explica Verney, em seu livro De re metaphysica, que nada está no efeito que não esteja na causa, seja de um mesmo modo ou de um modo mais perfeito. De um mesmo modo, mecanicamente; de um modo mais perfeito, pela ação criadora. Defendeu, assim, o princípio escolástico segundo o qual todas as coisas existentes estão contidas de um modo mais perfeito na mente do Criador, pois na criação a causa excede o efeito. Esta concepção está de acordo com Aristóteles (Metafísica, IX), quando prova que o ato é anterior à potência, neste tipo de prioridade, e a denomina prioridade de substância e espécie, isto é: o que é posterior em geração, diz Aristóteles, é anterior em substância e espécie. Eis, portanto, o verdadeiro caráter filosófico do “Iluminismo” que Verney instituiu entre os padres de sua Congregação: sem abdicar do aristotelismo português, condena o aristotelismo como orientação filosófica exclusiva. A metafísica é anunciada como uma teoria geral da ciência, incidindo quer sobre os seus fundamentos subjetivos, ao investigar o modo de conhecer as primeiras verdades ou princípios, quer REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 40-87, jul./dez. 2011
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sobre a estrutura da realidade conhecida, ao expor as verdades fundamentais comuns às diversas ciências. A campanha iniciada por Verney contra o ensino filosófico português, que culminou na reforma pombalina da Universidade (1772), teve como consequência mais imediata e perversa a proscrição do nome de Aristóteles no ensino filosófico oficial e a adoção de uma atitude frouxa, indefinida, entre empirismo e racionalismo, até às primeiras décadas do século XIX, atitude essa denominada “empirismo mitigado”.
Empirismo mitigado No quadro do empirismo mitigado, cabe destacar, após a transferência da corte portuguesa para o Brasil (1808), o magistério do oratoriano Silvestre Pinheiro Ferreira. Em seu curso de filosofia no Rio de Janeiro, publicado sob o título Preleções filosóficas e acompanhado de uma tradução das Categorias de Aristóteles; “para uso das Preleções filosóficas do mesmo tradutor”, o filósofo português, não obstante sua atenção para com o sensualismo de Condillac e o empirismo de Locke, revela preocupação em preservar não só o nome de Aristóteles das acusações decorrentes do antiaristotelismo, como também um sentido de modernização sem prejuízo da doutrina aristotélica. Isto é evidente tanto no prefácio às Categorias como especialmente em sua Nona Preleção: Seria impróprio deste lugar o aplicar-me a demonstrar-vos que Aristóteles, pela vastidão do plano e sublimidade da execução que se fazem admirar nas suas obras, assim como é incomparavelmente superior a todos os filósofos, cujos escritos nos são conhecidos, assim também deve ser o primeiro que figure nesta espécie de Biblioteca Filosófica com que iremos acompanhando o Curso desta Preleção. Só depois de havermos analisado os tratados que nos restam daquele grande filósofo, e de os termos comparado com o que depois dele até agora sobre os mesmos objetos se tem escrito, é que de um rápido golpe de vista poderei convencer-vos da justiça com que acabo de tributar-lhe as homenagens que o nosso século amigo das luzes lhe não teria negado, se a estulta idolatria de absurdos escolásticos dos dois séculos precedentes não tivesse indisposto os ânimos até mesmo contra o nome de Aristóteles, como aquele em cujas obras eles protestavam haverem copiado os delírios das suas desvairadas fantasias (FERREIRA, 1996, §311). 54
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Sua incursão no sensualismo envolve, na mesma medida do empirismo de Verney, uma preocupação de caráter estritamente prático e pedagógico. Sua atenção a Leibniz, entretanto, tem outra medida. Diferentemente de Verney, Silvestre procura na filosofia moderna uma hipótese de preservar a dimensão criacionista das “provas cosmológicas” da existência de Deus, encontrando-a em Leibniz. Inspirado na Monadologia, Silvestre entende que “cada um dos fenômenos que acontecem em qualquer substância é um efeito que tem por causa [...] o estado precedente do mesmo Universo” (FERREIRA, 1996, §187), deduzindo daí não só a necessidade de Deus como Causa Primeira, como também o sentido aristotélico-tomista da natureza como criação: É neste sentido que, falando-se de algum daqueles fenômenos em particular, se diz ser efeito ou obra da Natureza. Expressão mui sensata e filosófica, contanto que se não aplique, como alguns pseudo-filósofos o têm feito, ao fato da Criação [...]. Entende-se por Criação o primeiro de todos os estados do Universo, remontando do atual para o passado (FERREIRA, 1996, §188-189).
Assim sendo, a modernização do ensino filosófico vale menos pela assimilação de questões próprias à filosofia moderna do que pela intenção de harmonizar a tradição viva do aristotelismo português com a inovação e a renovação historicamente condicionadas.
2 Caráter relativo da filosofia no Brasil: a filosofia luso-brasileira “Filosofia luso-brasileira” exprime uma relação de reciprocidade única e exclusiva entre a filosofia portuguesa e a brasileira, em razão do aristotelismo como tradição filosófica comum. Isto quer dizer: o estudo filosófico no Brasil, durante cerca de dois séculos, é relativo ao aristotelismo português no sentido de que (i) a este se converte, assim como este àquele se converte; (ii) porque é simultâneo, na natureza, com o aristotelismo português a que se refere; finalmente, (iii) porque, conhecendo-se o ensino filosófico sob a Ratio Studiorum no Brasil, conhece-se o aristotelismo português, e vice-versa. Neste sentido, a filosofia luso-brasileira é o passado no modo do ser brasileiro, cujos representantes históricos, a exemplo do Padre Antônio Vieira S.J., REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 40-87, jul./dez. 2011
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são aqueles que fizeram seus estudos filosóficos nas instituições brasileiras de ensino sob a Ratio Studiorum, procurando fazer uso da razão de modo a transcender os limites da própria experiência, porém dentro dos limites do aristotelismo português. Esse caráter relativo das primeiras manifestações filosóficas no Brasil não parecerá estranho se considerarmos que a filosofia moderna, num certo sentido, saiu de dentro do aristotelismo.1 Não queremos dizer que a filosofia luso-brasileira e a filosofia moderna tiveram o mesmo princípio. Pelo contrário, enquanto a filosofia moderna instituiu-se com base no cogito cartesiano, a filosofia luso-brasileira apoiou-se no princípio religioso da conversão. Entretanto, mesmo sendo princípios contrários quanto à perspectiva, o cogito e a conversão não se excluem, na medida em que estabelecem a anterioridade da alma com vistas ao conhecimento de si.
2.1 Antônio Vieira, S. J. Antônio Vieira (1608-1697) nasceu em Lisboa, mas aos seis anos de idade veio com os pais para a cidade de Salvador, no estado da Bahia, então sede do governo geral português no Brasil desde 1549. Em Salvador, iniciou seus estudos no colégio dos jesuítas como aluno externo. Aos quinze anos tornou-se seminarista nesse mesmo colégio. Um ano após o noviciado, aos 18 anos, já era incumbido de escrever em latim a Carta Ânua que a província costumava enviar ao Geral da Companhia em Roma. Aos 19 encontravase encarregado de ensinar retórica no colégio de Olinda, em Pernambuco. Após três anos de magistério, regressou ao colégio de Salvador para estudos complementares de filosofia (aristotelismo) e teologia, sendo aí ordenado padre (1634) e encarregado da cadeira de teologia em 1635. Denunciado pela Inquisição seguidas vezes, por causa de sua obra “herética” (Quinto Império; História do futuro; Clavis prophetarum) inspirada no sebastianismo, chegou a ser desterrado para Coimbra e proibido de retornar ao Brasil. Em 1683,
Pesquisas sobre os procedimentos de Galileu para suas descobertas (WALLACE, 1992) levam a crer que o paradigma demonstrativo para a nova ciência da mecânica, que ele ligou à cosmologia, foi decisivamente influenciado pela apropriação que ele fez de teses centrais dos Segundos analíticos, de Aristóteles, através da mediação de um comentário proveniente do Colégio Romano, fundado pelos jesuítas em 1551. 1
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realizou-se na Universidade do México a primeira defesa de tese sobre a obra de Vieira. Morreu na cidade de Salvador, com exéquias em Lisboa. A consideração da obra do orador como um exemplo do mais puro “pensamento barroco”, ou do “barroquismo conceitualista”, pode ser compreendida em função da sua técnica de construir o sermão mediante a interpretação do sentido das palavras, ou de orações, fazendo “distinções conceituais”. Tais distinções não são procedimentos lógicos, senão que pelo artifício de uma simples imagem, recorrendo a um fato ou a uma frase da Bíblia, Vieira se propõe a inculcar um princípio moral. Desse modo, os sermões de Vieira muito devem, em sua estrutura, à parenética de Santo Antônio. “Ecce exiit, qui seminat, seminare”,2 assim abre Vieira o Sermão da Sexagésima, e logo se põe a fazer uma hermenêutica de “saiu” (exiit) para efeito de distinguir o mau pregador, que só pregava ao abrigo da civilização, do verdadeiro pregador, que, visando à conversão das almas rudes e alheias à espiritualidade da vida, chegava ele mesmo a afastar-se da civilização, pois “entre os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há outros que semeiam sem sair” (Sermão da Sexagésima). Neste sentido, os pregadores que semeiam sem sair não são pregadores senão de nome, pois não há que confundir “semeador” e “pregador”, enquanto nomes, com o que semeia e o que prega, enquanto ações, porque são as ações, os exemplos, as obras, enfim, que conferem ao indivíduo o nome próprio do seu ser, e não o contrário. Ter nome de pregador, ou ser pregador de nome não exprime o modo próprio do ser segundo a obrigação moral, pois “se com cada cem Sermões se convertera e emendara um homem, já o mundo fora santo” (Sermão da Sexagésima). Tendo em vista o sermão como instrumento da conversão, há que considerar primeiramente em Vieira a sua dialética, isto é, a sua habilidade em revelar a outrem, através da linguagem, o que está oculto, o desconhecido, a partir do conhecido. Neste sentido, a intenção doutrinária nos sermões de Vieira não se configuraria sem uma teoria acerca do uso da linguagem. Evidentemente, Vieira não concebe o discurso apenas como expressão e comunicação de pensamento, como é próprio do espírito do tempo sob o racionalismo do século XVII. Para ele, assim como para toda a filosofia cristã,
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“Saiu a semear aquele que semeia” (Lc 8, 11).
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desde Sto. Agostinho, o falar revela o “homem interior” no sentido de que ele usa um sistema de sinais para significar a própria vontade (Confessiones I, 8). Partindo desse princípio, Vieira, preocupado com a ineficácia do sermão como instrumento de conversão, interpela os pregadores sobre um dilema crucial quanto ao uso das palavras: se devemos (i) “trazer as palavras [de Deus] a que digam o que nós queremos”, ou (ii) se “havemos de querer o que elas dizem” (Sermão da Sexagésima, IX). Na primeira hipótese, acusa ele, verifica-se a equivocidade e “muitas vezes as tomais pelo que toam e não pelo que significam, e talvez nem pelo que toam” (Sermão da Sexagésima, IX). A finalidade da conversão no âmbito da dialética levou Antônio Vieira a explorar aos limites a língua portuguesa para convencer e persuadir, razão pela qual o seu discurso tem um caráter literário e, por isso mesmo, um valor estético. Atualmente, mesmo que o leitor se recuse a seguir até onde Vieira se esforça por conduzi-lo, o sermão enquanto obra estética pode, por si só, realizar alguma coisa: obrigá-lo a tornar-se atento, obrigá-lo a pensar as palavras, obrigá-lo a julgar. Como autor estético, Vieira se propõe a cativar os piores ouvintes, os de vontade endurecida e os de entendimento agudo, que “vêm só a ouvir sutilezas, a esperar galantarias, a avaliar pensamentos” (Sermão da Sexagésima, III). Constitui-se uma ilusão, nesse sentido, a ideia de que a revelação do “homem interior” vem exclusivamente da razão, por abstração da experiência e dos sentidos, como poderiam supor os racionalistas do século XVII. Porque “somos compostos de carne e sangue, obre de tal maneira o racional, que tenha sempre respeito ao sensitivo” (Sermão de Santo Antônio, 1642, III), recomenda Vieira. Nesta perspectiva de entendimento, seu desempenho como autor estético implica uma perfeição da inteligência através do ato de fala do mesmo modo que, na Ética a Nicômaco, o bem constitui a perfeição da vontade. O homem verdadeiro não corresponde, assim, apenas a um acordo interno do espírito consigo mesmo ou com as representações por ele elaboradas, mas conformidade da consciência com uma experiência da qual o sujeito participa concreta e historicamente segundo a própria vontade. Vieira condena aqueles pregadores que se comportam no púlpito como se comportam os atores no palco, sem qualquer compromisso com a verdade, levando os ouvintes a apartarem-se dos fatos e da experiência: “São fingimentos, porque são sutilezas e pensamentos aéreos sem fundamento de verdade; são comédia, porque os 58
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ouvintes vêm à pregação como à comédia; e há pregadores que vêm ao púlpito como comediantes” (Sermão da Sexagésima, IX). Mais uma vez, a fonte é Aristóteles, onde ele afirma que o fato de existirem homens “que empregam a linguagem que procede da ciência não prova em nada que a possuam” (Ética a Nicômaco I, 3), e que, por isso mesmo, “temos de supor que os incontinentes falam à maneira dos atores de teatro” (Ética a Nicômaco I, 3). Portanto, se havemos de proclamar a relação íntima entre a conversão e a dialética em Vieira, de modo que seu uso da palavra exprima uma unidade de pensamento e ação subjacente à sua personalidade múltipla de escritor, conselheiro real, diplomata e, principalmente, de pregador, havemos de considerar qual o seu conceito de dialética: Há de tomar o Pregador uma só matéria, há de defini-la para que se conheça, há de dividi-la para que se distinga, há de prová-la com a Escritura, há de declará-la com a razão, há de confirmá-la com o exemplo, há de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar, há de responder às dúvidas, há de satisfazer às dificuldades, há de impugnar e refutar com toda a força da eloquência os argumentos contrários, e depois disto há de colher, há de apertar, há de concluir, há de persuadir, há de acabar. Isto é sermão, isto é pregar, e o que não é isto, é falar de mais alto (Sermão da Sexagésima, VI).
Parece evidente também que a estrutura do sermão em Vieira, juntando o rigor demonstrativo da lógica aristotélica à arte da retórica latina, corresponde perfeitamente àquela passagem de Fonseca onde se adverte que, assim como serão interpelados os matemáticos e os filósofos que se valerem da oratória, também será interpelado o orador que, suprimindo todo o ornamento, quiser basear o seu discurso em razões matemáticas ou filosóficas. O que não parece evidente é se é possível a discussão do seu pensamento em termos de doutrina filosófica, não só do ponto de vista da projeção do aristotelismo português no Brasil, mas também na perspectiva de posterior desenvolvimento.
2.1.1 A conversão como conhecimento de si A questão de saber como pode o homem libertar-se do apetite da vontade, isto é, do jugo do corpo e dos sentidos do corpo que limitam o REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 40-87, jul./dez. 2011
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seu poder, transformando-se assim numa inteligência enquanto o poder “vir dentro” todas as coisas, a começar por si próprio, pode ser levantada a partir da conversão em Vieira (Sermão da Sexagésima, III): Para uma alma se converter por meio de um Sermão há de haver três concursos: há de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma senão entrar um homem dentro em si, e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz, e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento (grifos nossos).
Refletindo a doutrina aristotélica, a função do pregador implica a necessidade de doutrina que estabeleça a comparação entre a luz natural, sob a qual o homem se vê como realidade externa, e a “luz interior”, sob a qual ele se “vê” como realidade interna independente do corpo. Neste sentido, não se concebe a formação do pregador sem uma compreensão clara da necessidade da “luz interior”. No âmbito do aristotelismo português, a fonte mais próxima da doutrina da “luz interior” é Pedro da Fonseca. Depois de explicar a concepção do objeto de conhecimento com base na distinção aristotélica entre o intelecto agente e o intelecto passivo, Fonseca assim se exprime: “Efetivamente, o intelecto agente é uma certa luz interior e espiritual, fazendo de coisas universais em potência universais em ato, de algum modo como a luz corporal faz das cores visíveis em potência visíveis em ato, como diz Aristóteles” (FONSECA, 1965, p. 54s).
2.1.2 O dever-ser como o ser do homem Vieira distingue no homem dois modos do ser: o ser natural e o ser moral. Pelo primeiro modo, o ser consiste na união de corpo e alma; pelo segundo, só na alma, como resultado de separar-se a alma do corpo no processo do conhecimento de si inerente à conversão. Mediante o conhecimento de si 60
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como sendo essencialmente alma, dotado de memória, inteligência e vontade, o homem revela-se a si mesmo como sujeito de transformar, pela conversão, em outro; de adquirir uma atitude nova, independente, e novas habilidades; de adquirir, enfim, “mais” ser, ampliando assim o seu ser, para além do mero determinismo natural. Os dois modos do ser do homem não se excluem, ressalte-se. Mas, se pelo primeiro modo a essência do ser é a natureza, cuja determinação de que a alma se una ao corpo é a condição mesma de que o corpo sirva à consciência de si na conversão, pelo segundo, que implica o separar-se a alma do corpo, a essência do ser excede aquela determinação da própria natureza, tornando-se, assim, a independência da alma em relação ao corpo, na essência mesma do ser do homem. Há, portanto, no homem, o modo (i) do ser, segundo a doação da natureza, em virtude da qual a vontade depende da corporeidade, o que, por isso mesmo, reduz a ação humana igualmente à dos outros animais, ao domínio de uma causalidade mecânica; e o modo (ii) do dever-ser, segundo a consciência de si, através da qual o homem reconhece a necessidade de acrescentar ao seu ser o dever como causa e fim de sua ações, configurando uma causalidade final para além da indiferente causalidade mecânica, porque o fim, enquanto querido, move o indivíduo a empenhar sua inteligência e sua vontade nas próprias ações, cujo penhor a resgatar é o direito real à independência da alma. “Vivamos como almas separadas”, proclama Vieira (Sermão da Sexagésima, IV), porque se a morte, que é o fim do homem natural, “há de fazer por força esta separação, por que a não faremos nós por vontade?” (Sermão da Sexagésima), nós que, pela inteligência, e pela imaginação, nos tornamos criadores, e assim nos libertamos das limitações impostas pela corporeidade: “Por que não fará a razão desde logo o que a morte há de fazer depois? Oh que vida! Oh que obras seriam as nossas tão outras do que são!” (Sermão da Sexagésima). Desse modo, é pela razão que uma alma se obriga ela mesma a fins em vista do bem comum, transformando-se a obrigação em essência do homem moral; e é pelo dever (officium) que o hábito se transforma em natureza do homem moral; é desse modo, enfim, conforme a ética aristotélica, que o próprio bem se reveste de um caráter mais belo e divino quando beneficia a vida em sociedade. Cabe aqui uma observação sobre a escravidão como problema. Vieira esclarece que o “direito” à liberdade não exclui a necessidade a que vive sujeito REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 40-87, jul./dez. 2011
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o homem natural por força da corporeidade, e que, além disso, o homem verdadeiramente livre se reconhece na independência espiritual, quando faz o que quer, e não na dependência material, quando padece o que não quer. E é desse ponto de vista contemplativo que ele pensa a liberdade em face da escravidão no Brasil, tanto em relação aos indígenas (Sermão da Primeira Dominga da Quaresma) quanto em relação aos negros africanos (Sermão XIV da Série Maria Rosa Mística).3
2.2 A modernização como problema filosófico Em Portugal, o conflito ideológico entre “antigos” e “modernos” arrastou-se, desde o final do século XVII, para as necessárias reformas pombalinas na segunda metade do século XVIII. Muito contribuiu para essas reformas a participação do oratoriano Luís Antônio Verney. Com o seu Verdadeiro método de estudar, ele pôs a descoberto as deficiências do sistema de ensino português em face de uma cultura ocidental já marcada pelo moderno espírito científico-racional. Caracterizando esse espírito como o interesse nos conhecimentos exatos e na educação pela razão, ele fez a crítica do ensino de filosofia em Portugal à luz do ideário iluminista, mas sem nunca pôr em dúvida a superioridade da Revelação e da Graça divinas sobre o mecanismo da natureza e da razão humana. A presença desse princípio escolástico no bojo do “modernismo” português é uma prova de que não se pode, impunemente, ver no momento das reformas pombalinas da instrução pública uma atitude filosófica absolutamente contrária à tradição espiritualista portuguesa. Qual a novidade desse espírito moderno? A novidade estava no método de elevar a razão concreta e histórica do indivíduo ao nível de universalidade da “lei ontológica” que rege a existência das coisas. Aqueles que colocavam a pessoa do legislador humano acima da lei consideravam a lei ontológica como a expressão de uma vontade criadora, única e livre, imutável e eterna – a “lei de Deus”. Mas aqueles que viam a pessoa do legislador humano também submetida à regularidade uniforme e impessoal da experiência concebiam a lei ontológica como a expressão das “leis da natureza”.
Além desses sermões, ver outros textos selecionados no seguinte endereço: http://filosofiabrasileiracefib.blogspot.com (ver “Links”, nº 10). 3
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No século XVII, o conhecimento da natureza está dentro do alcance da inteligência humana. A partir de Descartes, o sujeito comum já não depende de uma autoridade externa para aceitar a jurisdição universal de leis que determinam a existência das coisas. Eis a novidade do método cartesiano, pelo qual ele é considerado, com justiça, o fundador da filosofia moderna: a única autoridade que o homem reconhece como sendo a sua condição de sujeito e objeto de leis necessárias e universais é a autoridade da razão. Desse modo, a filosofia se liberta da tutela da teologia. Em outras palavras: em lugar da conversão, o cogito cartesiano. Mas à mesma época em que Descartes estabelecia, com suas Meditações, o moderno princípio ontológico de que a própria existência tem o seu fundamento na consciência de si como pensamento, no Brasil se mantinha inalterável, sob o método pedagógico dos jesuítas, o antigo princípio teológico de que a própria existência se funda na universalidade da conversão. Ao final do século XVIII, não obstante o caráter revolucionário das reformas pombalinas na instrução pública, como que abrindo as portas da Universidade à ciência até então proibida em Portugal, por motivos religiosos, como alegou o Marquês, o problema da modernização consistia em reconhecer a necessidade das leis da natureza, sem que para isso fosse preciso renunciar à lei de Deus.
3 O nascimento da filosofia brasileira A filosofia só ganha nacionalidade brasileira no século XIX, mediante a superação do dogmatismo. Mas é um erro crasso imaginar que a superação do dogmatismo decorreu da mera supressão do aristotelismo pelas reformas pombalinas da instrução pública. Se o sistema de ensino só veio a dar sinais de modernização mais de 30 anos após a expulsão dos jesuítas, a assimilação dos princípios da filosofia moderna levou mais tempo ainda. Assim como no século XVII a passagem do aristotelismo para a filosofia moderna foi marcada por uma experiência crítica, a chamada crise epistemológica, que gerou uma mudança de princípio quanto ao fundamento do saber científico, no Brasil oitocentista essa mesma mudança de princípio correspondeu a uma experiência crítica de outra natureza: uma crise estética. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 40-87, jul./dez. 2011
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Dado o caráter humanístico e literário da formação cultural brasileira, não seria de estranhar que no Brasil a mudança de princípio, na passagem do aristotelismo para a filosofia moderna, se desse no âmbito de uma crise estética, e não metodológica. Mas qual o fator dessa crise estética na cultura de língua portuguesa? Não foi uma “revolução científica”, é claro. Mas foi uma consequência dela: o cientificismo. A resistência à moderna concepção de natureza e ao estudo das modernas disciplinas científicas, como a física, a química e as ciências matemáticas, prolongou-se até meados do século XIX. Essa resistência gerou o cientificismo enquanto propaganda e exaltação do novo ideal científico do saber baseado na visão racional e matemática da natureza. A ação do cientificismo no Brasil ganhou força no processo mesmo da modernização cultural após a introdução do romantismo e, sobretudo, durante o influxo do positivismo, quando se concebeu a formação profissional como fator de progresso e unidade nacional. Ora, o sentido da modernização cultural com base nos princípios que fundam a filosofia moderna começa a ser assimilado sob a égide do romantismo de Domingos José Gonçalves de Magalhães, que promoveu não só a reforma da literatura, com a edição de Suspiros poéticos e saudades (1836), como também a necessária “mudança de princípio”, com Fatos do espírito humano (1858). Para Gonçalves de Magalhães, o conhecimento de si no cogito cartesiano e na conversão vieiriana não se excluem, antes se conciliam. Não é fácil aceitar isto, uma vez considerando-se que a diferença entre eles consiste justamente em que (i) na conversão o conhecimento de si é tutelado por uma autoridade externa, a do pregador, enquanto (ii) no cogito cartesiano o conhecimento de si se caracteriza pela independência da razão. O cientificismo no Brasil, na medida em que se opôs ao espírito conservador das reformas promovidas por Gonçalves de Magalhães, e procurou desmitificar o sentido da criação, isentando seu processo de qualquer determinação sobrenatural, promoveu a crise que tornou possível consolidar a mudança de princípio na cultura brasileira. Essa consolidação envolve a crítica de Tobias Barreto ao espiritualismo de Gonçalves de Magalhães bem como a análise e discussão das teses daquele por Farias Brito, aprofundando-se assim a inserção do pensamento brasileiro nos quadros da filosofia moderna e da filosofia contemporânea. 64
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3.1 Gonçalves de Magalhães A transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro (1808), após a invasão de Portugal pelas tropas de Napoleão Bonaparte, mudou completamente a forma da vida brasileira. Além da abertura dos portos brasileiros ao comércio estrangeiro, o Príncipe Regente D. João fundou a Imprensa Régia, a Academia de Marinha, a Academia Real Militar, os cursos de cirurgia, anatomia e medicina, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios etc. Houve também a presença na corte do português Silvestre Pinheiro Ferreira, que ministrou o curso de suas Preleções filosóficas (18131816). Foi nessa ambiência de otimismo nacional, marcado pela abertura à novidade e pelo forte influxo da cultura francesa, que se formou Domingos José Gonçalves de Magalhães. Foi a época dos artistas franceses que mandou vir D. João: Lebreton, Debret, os Taunay, Ferrez, Grandjean de Montigny. E foi sobretudo a época em que se tomou consciência da necessidade de modernização e emancipação cultural, quando brilhava na capital do país Fr. Francisco do Mont’Alverne, OFM (1784-1858), cuja palavra, então considerada sublime, já refletia, do púlpito e da cátedra de filosofia, o influxo do moderno pensamento francês. Gonçalves de Magalhães encontrou nas instituições de cultura do Rio de Janeiro todos os elementos que lhe deram uma formação de caráter humanístico. Antes de graduar-se em medicina, estudou na Academia de Belas Artes e publicou, aos 21 anos, Poesias. Começou seus estudos filosóficos ainda no Rio de Janeiro (1832), sob a orientação de Mont’Alverne, que o apoiou e estimulou a aperfeiçoar-se. Em 1833 partiu para a França na condição de adido à legação brasileira em Paris. Aí estudou ciências e filosofia, tendo acompanhado os cursos de Jouffroy, discípulo de Cousin. Ainda em Paris, em 1836, fundou a Niterói: Revista Brasiliense, e publicou os Suspiros poéticos e saudades, obra a partir da qual introduziu o romantismo na literatura brasileira, reformando-a inteiramente. Obras de caráter teórico mais importantes: Ensaio sobre a história da literatura do Brasil (Paris, 1836), Fatos do espírito humano (Paris, 1858) e A alma e o cérebro (Rio de Janeiro, 1876).
3.1.1 A mudança de princípio: da conversão ao cogito cartesiano O fato que marca o nascimento da filosofia brasileira no século XIX é a introdução da liberdade como princípio de ação. Cabe a Gonçalves REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 40-87, jul./dez. 2011
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de Magalhães esse mérito – de ser o “fundador” da filosofia brasileira – na medida em que a sua defesa da liberdade implica a condenação do espírito contemplativo brasileiro como resultado de dois séculos de estudo filosófico sob a tutela da autoridade religiosa. Vieira procura mostrar que o conhecimento de si pela conversão é a condição da alma de conquistar o seu direito de libertar-se do erro e da dor, numa visão da realidade que não depende da experiência e, de certo modo, se propõe exatamente a transcender os limites da experiência. Em outras palavras: pela conversão todo o sujeito se revela a si mesmo submetido ao determinismo da natureza, descobrindo porém, na mesma revelação, uma via de escape dessa “prisão”. Neste sentido, a fé se constitui no primeiro grau de liberdade, na medida em que, em face da dor e da morte, celebra a vida. A fé, no entanto, pode transformar-se em princípio de alienação, na medida em que se transferem para o domínio do “reino de Deus” todas as aspirações de justiça no mundo da vida humana, implicando isto uma separação real, porquanto vivida, entre os dois domínios. Tal separação, que caracteriza a vida contemplativa, constitui-se numa liberdade negativa, porque o sujeito não exerce, moralmente falando, o seu livre arbítrio como um princípio positivo, de modo a escolher e praticar a verdade universal com base apenas na autoridade da razão. Neste sentido, e somente neste sentido, a fé, para Magalhães, se constitui no mais baixo grau de liberdade: Podia Deus sem dúvida criar uma sociedade de espíritos puros, não obrigados a coisa alguma, não sujeitos à menor dor, seres angélicos que vivessem em uma eterna bem-aventurança, só contemplando as maravilhas do seu criador. Mas qual seria o mérito desses espíritos para tanta ventura? Necessita Deus de admiradores inúteis? [...]. Concebemos que a vida humana e a ordem social podiam ser melhores do que são; que não estivéssemos sujeitos a tantas aflições e enfermidades; que fôssemos todos bons e belos; que não necessitássemos de tão rudes trabalhos para esta vida transitória; que justas fossem todas as nossas inclinações; que não houvesse ódios e guerras; que Deus mesmo nos governasse. Mas o que seria então a liberdade humana [isto é: o livre arbítrio], se estivesse inteiramente subjugada a instintos naturais? Qual seria o nosso mérito, se nenhum obstáculo se nos apresentasse? O que seria a virtude, se a não praticássemos com algum esforço, vencendo as dificuldades e os vícios com que nos opomos uns aos outros? Qual seria a nossa ciência, quais as nossas 66
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artes, a nossa indústria, se as necessidades, as privações e as misérias humanas, a que chamamos males físicos e morais, não nos instigassem a uma contínua atividade livre, a um trabalho incessante? (MAGALHÃES, 2004, p. 355-356).
Atendendo à historicidade da filosofia, Gonçalves de Magalhães propõe um sentido da liberdade como ampliação do significado meramente subjetivo do termo já pensado por Vieira. Portanto, não seria por causa da fé que se colocaria em dúvida a liberdade humana. Pelo contrário, a religiosidade cristã, fundada na ideia do ser infinito e independente, constituiu-se, em Magalhães, no ponto de partida mesmo de toda a argumentação em favor da liberdade humana como expressão de esforço, conquista e civilidade. Cabe ressaltar, portanto, que Gonçalves de Magalhães encontra-se em perfeita sintonia com o pensamento de Descartes, quando este afirma: Para que eu seja livre, não é necessário que eu seja indiferente na escolha de um ou de outro dos dois contrários; mas antes, quanto mais eu pender para um, seja porque eu conheça evidentemente que o bom e o verdadeiro aí se encontrem, seja porque Deus disponha assim o interior do meu pensamento, tanto mais livremente o escolherei e o abraçarei [...]. De maneira que esta indiferença que sinto, quando não sou absolutamente impelido para um lado mais do que para outro pelo peso de alguma razão, é o mais baixo grau da liberdade, e faz parecer mais uma carência no conhecimento do que uma perfeição na vontade (DESCARTES, Meditações, IV).
3.2 Tobias Barreto Assim como Gonçalves de Magalhães foi o responsável pela inserção do pensamento brasileiro nos quadros do racionalismo espiritualista francês (Descartes, Malebranche, Maine de Biran, Cousin), Tobias Barreto (18391889) introduziu o pensamento brasileiro na filosofia do neokantismo alemão (Dilthey, Windelband, Rickert, Eduard von Hartmann), tendo sido ele o primeiro no Brasil a estudar Kant no original. Formado pela Faculdade de Direito do Recife, onde se tornou professor a partir de 1882, Tobias Barreto, preocupado em defender uma concepção do direito como ciência, mas sem prejuízo da especificidade das ciências sociais e humanas, foi levado a pensar o princípio kantiano de relatividade do saber, REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 40-87, jul./dez. 2011
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no que consolidou a modernização do pensamento brasileiro iniciada por Gonçalves de Magalhães. Contrariamente a este, porém, sua atitude ficou marcada pela inconciliabilidade em relação à tradição. Neste sentido, refutou o espiritualismo de Magalhães, classificando-o de tradicionalista. Ao exercer essa função crítica relativamente à própria tradição filosófica, credenciou-se como o fundador da historiografia filosófica brasileira, pois soube reconhecer, em sua análise de Fatos do espírito humano, que o autor “em nome da civilização e do progresso, [tentou] naturalizar entre nós a filosofia, conceder-lhe direito de cidade; porquanto não havia, antes dele, como não há ainda a par dele, obra digna de atenção” (BARRETO, 1990, p. 83). Seja pelo vigor com que procurou incutir o sentido da modernização a partir de uma intuição científica do direito, seja pela originalidade com que pensou a cultura por oposição à natureza, e combateu o determinismo no âmbito de uma distinção entre ciências da natureza e ciências do espírito (ou da cultura), Tobias Barreto exerceu notável influência sobre figuras destacadas da história da cultura brasileira nas últimas décadas do século XIX, cujo centro de referência foi, sem dúvida alguma, a renovação de ideias por ele promovida em seu magistério na Faculdade de Direito do Recife.
3.2.1 O combate ao cientificismo: natureza e cultura Contrariamente a Gonçalves de Magalhães, cuja doutrina da conciliação vai ao encontro da natureza, Tobias Barreto propõe uma doutrina da cultura como antítese da natureza. O que muda em torno da ideia de natureza? Para Magalhães, a natureza é algo que precisa ser alcançado em sua inteligibilidade segundo suas próprias leis, mas sem prejuízo da “lei de Deus”. Para Tobias, a natureza passa a ser considerada na dimensão ontológica de modo originário do ser, correspondendo, no ser humano, à concepção moderna do lupus hobbesiano, cuja essência é a irregularidade, que se contrapõe à regularidade da lei, da regra e da norma; é a ferocidade, que se contrapõe à civilidade; é a falta de limites, que se contrapõe à moralidade: O estado originário das coisas, o estado em que elas se acham depois do seu nascimento, enquanto uma força estranha, a força espiritual do homem, como a sua inteligência e a sua vontade, não influi sobre elas, e não as modifica – esse 68
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estado se designa pelo nome geral de natureza (BARRETO, 1990, p. 247). A moral, como o direito, é um sistema de regras. Toda regra é uma limitação; o que fica de fora, ou sai desses limites, é o irregular, o imoral por conseguinte. Mas os limites da moral, ou sejam traçados pelo indivíduo mesmo, ou pela sociedade a que ele pertence, são sempre posteriores a um estado de ilimitação e irregularidade, que no todo, ou em parte, é o primitivo estado natural. Logo, o seguir a natureza, em vez de ser o fundamento da moral, pelo contrário, é a fonte última de toda imoralidade (BARRETO, 1990, p. 305).
Em Tobias Barreto, portanto, já não se tratava de considerar as condições de singularidade e universalidade da existência humana como “o grande problema da conciliação do livre arbítrio e da presciência divina, tão discutido pelos maiores teólogos e filósofos cristãos”, conforme Magalhães, mas de considerar a liberdade perante uma concepção mecânica da natureza que predominou desde a “Revolução Científica” até ao século XIX. O que houve, de Magalhães a Tobias, foi o desbastamento de um velho problema de seu conteúdo religioso, sem prejuízo das preocupações de caráter moral: Já uma vez declarei [...] que não estava longe de crer serem as leis da liberdade as mesmas leis da natureza; e permaneço nesta opinião. Mas importa não confundir coisas distintas. Dizer que a liberdade tem leis não é negá-la, e bem assim afirmar que essas leis são as mesmas da natureza, não é reduzir o processo da vida moral à pura mecânica dos átomos, a ações e reações químicas (BARRETO, 1990, p. 294).
Em sua versão moderna, o problema filosófico quanto ao desafio de conciliar a necessidade de leis universais e a liberdade humana remonta à aporia cartesiana referente ao fato de que, por um lado, o poder da vontade (i) não se determina pela necessidade inerente à corporeidade, a ponto de sermos capazes de agir de maneira que “não sentimos absolutamente que alguma força exterior nos obrigue a tanto” (Meditação Quarta, 9), e, por outro lado, esse mesmo poder da vontade (ii) se determina pela necessidade de concordância sempre que há “uma grande clareza [...] no meu entendimento” (Meditação Quarta, 11). Eis, portanto, a questão que, de um modo geral, se apresentou – as nossas ações são ou não são determinadas pela necessidade? REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 40-87, jul./dez. 2011
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Preocupado em refutar a aplicação do modelo de explicação das ciências naturais ao comportamento humano, conforme a sociologia proposta por Comte como “física social”, Tobias Barreto procura ir ao âmago da questão e se propõe a falar da questão do determinismo, o qual, na história da filosofia moderna, distinguiu primeiramente o nome de Hume, cuja tese, nesse sentido, não deixa dúvidas: para Hume, a evidência natural e a evidência moral são da mesma natureza e derivam dos mesmos princípios. Ora, sendo essa “mesma natureza” o método indutivo, baseado na observação empírica, é compreensível que Tobias refira-se à “escola de Hume” para incluir todos aqueles que, rejeitando o dogma da explicação causal, passaram a considerar os princípios que regem o comportamento humano, quer psíquico quer social, como sendo os mesmos que regem a mecânica a que se reduzem as explicações dos fenômenos naturais: É digno de nota: os modernos contraditores da liberdade, os que pretendem mecanizá-la e destruí-la, filiam-se em geral à escola de Hume. Ora, este filósofo, como é sabido, contestava que a ideia de causa fosse mais que um resultado do hábito de ver certos fatos sempre juntos, pelo qual chegamos a crer na união necessária desses mesmos fatos; mas essa crença não tem realidade objetiva! Já se vê que, sendo assim, ao menos para os deterministas sectários de Hume, a causalidade e a liberdade duas grandes ilusões metafísicas, não há justiça nem lógica em submeter a liberdade à causalidade, em sacrificar uma ilusão a outra (BARRETO, 1990, p. 298).
Sustentando que a liberdade é um fato de consciência, Tobias opõe-se radicalmente a Hume quando este define a liberdade como fato empírico, a saber: que a liberdade incondicional encontra-se em todo o homem que não esteja prisioneiro ou acorrentado. Mas o que significa, em Tobias, dizer que a liberdade é um fato de consciência? Significa que a dimensão da liberdade não é a mesma da mecânica inerente às ciências da natureza, porque mesmo naquele estado, assinalado por Descartes, em que o poder da vontade se determina pela necessidade de concordância e depende do entendimento, não se pode provar que tal dependência seja mecânica: Os filósofos costumam distinguir no conceito da liberdade dois momentos diversos: o momento empírico e o momento racional, ou a liberdade de poder e a liberdade de querer. A liberdade empírica é um fato de consciência; para 70
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reconhecê-lo não há mister de tomar o partido de um espiritualismo fantástico e impossível. Que o homem pode o que quer é uma verdade experimental [...]. Se, porém, o que ele quer é sempre o resultado necessário da sua organização, é um ponto este que, sendo admitido, como aliás o admito, não traz todavia luz alguma para a solução do problema; porquanto, nem destrói o fato da liberdade empírica, objeto de observação imediata, nem deixa esclarecido que a dependência, em que o homem se acha, da sua organização seja realmente de natureza mecânica (BARRETO, 1990, p. 294-295).
A liberdade, que não se confunde com indiferença, tem, para Tobias, uma dimensão própria e não depende da experiência. Mas é justamente esse poder da vontade de agir independentemente de causas externas que se constitui, para além das necessidades materiais da vida, no fundamento das experiências ética e estética, no fundamento da vida propriamente humana, no fundamento da cultura. Assim considerada, a liberdade tem um caráter transcendental, no mesmo sentido em que os conhecimentos a priori servem de fundamento à verdade experimental: [...] quando o homem inteligente e ativo põe a mão em um objeto do mundo externo, para adaptá-lo a uma ideia superior, muda-se o estado desse objeto, e ele deixa de ser simples natureza [...]. A cultura é, pois, a antítese da natureza, no tanto quanto ela importa uma mudança do natural, no intuito de fazê-lo belo e bom (BARRETO, 1990, p. 247).
Mas acreditar que sejam as “leis” da liberdade as mesmas leis da natureza, como afirma Tobias, não é, de alguma maneira, pôr-se de acordo com Hume? Não, na medida em que, para Tobias, “a liberdade humana é um fato da ordem natural, que tem a sua lei [ou necessidade], porém não se deixa explicar mecanicamente” (BARRETO, 1990, p. 294). Em outras palavras: se e na medida em que a liberdade é um fato de consciência, ela não está submetida à necessidade inerente ao mecanismo que determina os fatos da natureza, mas está submetida à necessidade inerente à causalidade que rege os fatos do espírito humano, como diria Magalhães, ou de consciência, a saber – a causalidade final. Neste sentido, o simples fato de o ser humano civilizado reconhecer a necessidade de leis universais e aprender a comportar-se de acordo com regras e normas não implica a supressão da liberdade, desde que ele seja movido a comportar-se dessa forma pelo fim visado enquanto querido: REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 40-87, jul./dez. 2011
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Quer o homem seja, conforme a velha definição, um animal racional, um animal que pensa, quer se chame um animal que faz trocas, ou um animal que reza, ou [...] um animal que cozinha [...] o certo é que cada uma dessas definições indica alguma coisa de contrário e superior à pura animalidade, marcando assim um momento da evolução cultural do mesmo homem. Mas nenhuma delas envolve o verdadeiro característico do ente humano, que todas aliás pressupõem, com exceção talvez da primeira, por isso mesmo a menos aceitável, isto é, nenhuma delas envolve a capacidade de conceber um fim e dirigir para ele as próprias ações, sujeitando-as destarte a uma norma de proceder (BARRETO, 1990, p. 307).
O que seria, portanto, a liberdade, em vista do fim que se quer alcançar, senão “uma conquista, um hábito ou um jeito, que o homem adquire, de dirigir seus atos para um alvo real ou ideal, por ele prefigurado” (BARRETO, 1990, p. 310), de modo que se possa conceber “graus de aperfeiçoamento” (BARRETO, 1990, p. 310) e, em consequência, concluir que ela pode “melhor definir-se como uma facilidade, disciplinar e artisticamente adquirida” (BARRETO, 1990, p. 310)? Esta definição coincide, no geral, com aquela de Descartes em carta a Mesland (09/02/1645). Entretanto, deve-se destacar na definição de Tobias o caráter transcendental da liberdade como condição de possibilidade da experiência, o que o situa claramente no campo da influência de Kant. Desse ponto de vista, a liberdade é uma facilidade adquirida que está “quase sempre em oposição ao pendor da natureza, da mesma forma que se pode adquirir o hábito de nadar contra as correntes” (BARRETO, 1990, p. 310), o que está em sintonia com a definição kantiana. Observe-se também que o objeto visado na ação livre é um objeto não necessariamente existente, mas intencional, uma vez que se trata de “alvo real ou ideal [...] prefigurado” (BARRETO, 1990, p. 310). Esta última observação é importante para entendermos os posteriores desdobramentos do pensamento de Farias Brito, que segue o mesmo caminho aberto por Tobias na crítica de uma “ciência da alma” segundo o método experimental das “ciências da natureza”: Não basta reconhecer e alegar a existência dos fatos internos [...]. Eles fazem parte da vida: eles são a vida mesma [...]. Eu já o disse: o defeito capital da psicologia, como ciência de observação, é a falta absoluta de dados para se 72
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formarem exatas e profundas previsões [...] Não canso de repeti-lo: a ciência do eu implica contradição. Abstraído da pessoa, e do caráter que a constitui, o eu é coisa nenhuma, nada significa (BARRETO, 1990, p. 138-153).
Foi a necessidade de uma compreensão ontológica quanto à diferença entre os objetos da cultura e os objetos da natureza que levou Tobias a estudar a “revolução copernicana” de Kant. Do ponto de vista da trajetória de seu pensamento, vemos por que o seu estudo sobre a teoria kantiana da relatividade do conhecimento, essencial à compreensão da filosofia moderna, só vai aparecer depois que ele apresenta sua “nova intuição do direito” como objeto cultural por oposição aos objetos naturais (BARRETO, 1990, p. 228-256), quando defende a ideia de que os valores (o verdadeiro, o belo e o bom) são relativos, e não absolutos.
3.3 Farias Brito Raimundo de Farias Brito (1862-1917) constitui-se num caso sui generis de reconhecimento da filosofia brasileira. Por ocasião do IV Congresso Nacional de Filosofia, promovido pelo Instituto Brasileiro de Filosofia, e dedicado ao primeiro centenário do nascimento desse pensador, o norteamericano Fred Gillette Sturm, doutor em filosofia pela Universidade de Columbia, apresentou uma surpreendente tese sobre “os motivos existencialistas no pensamento de Farias Brito”, além de assinalar um desenvolvimento paralelo entre a metodologia do filósofo brasileiro e a fenomenologia de Edmund Husserl. Consciente de que o filósofo brasileiro jamais tivera notícia do pensamento de Husserl, Fred Gillette soube distinguir em Farias Brito, além do vigor e da profundidade de pensamento, uma originalidade que até então nenhum brasileiro soubera reconhecer. Pouco estudado em vida, o pensamento de Farias Brito ficou marcado, logo após a morte deste, pelo interesse despertado no movimento de renovação católica das primeiras décadas do século XX, numa época em que o Brasil se empenhava em desenvolver a consciência crítica da própria formação social. É uma época de refluxo da meditação metafísica. É a época de uma safra de livros que inclui Os sertões (1902), de Euclides da Cunha, Casa-grande & senzala (1933), de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda. É a época do Modernismo (1922-1945), que, REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 40-87, jul./dez. 2011
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enquanto revolução estética e psicológica, remonta ao mesmo cientificismo que se opôs ao romantismo decadente, aos excessos do espiritualismo e ajudou a solapar as bases da monarquia. Influenciado pela atitude crítica de Tobias Barreto, cujo magistério na Faculdade de Direito do Recife foi decisivo em sua formação intelectual, Farias Brito iniciou sua obra filosófica pelo exame crítico das teses do então famoso mestre do Recife. Disto resultou Finalidade do mundo (1895-1905, 3 volumes), o mais completo estudo de filosofia moderna realizado até então, que o levou a defender a necessidade de uma nova “ciência da alma”, capaz de fundamentar o conhecimento científico. Em sua visão crítica da psicologia, ele foi beneficiado, tanto quanto Husserl, pela leitura de The principles of psychology (1890), de William James, quando este assinala o caráter provisório da psicologia oitocentista. Eis aqui um ponto de convergência inicial para o estudo comparativo entre a metodologia de Farias Brito e a de Husserl. Observe-se que, embora jamais tenha feito qualquer referência a Gonçalves de Magalhães, Farias Brito se manteve na mesma perspectiva metodológica do autor de Fatos do espírito humano, isto é, de uma compreensão da realidade das coisas e do mundo e da vida fundada no âmbito da consciência e por meio do método psicológico.
3.3.1 A introspecção como método filosófico A indexação da filosofia de Farias Brito ao existencialismo e à fenomenologia de Husserl, muito apropriada à qualificação de um precursor, por si só seria suficiente para salvar do limbo da cultura ocidental a obra de um filósofo do século XIX cujo pecado foi não ter nascido na Europa. Mas Fred Gillette Sturm não se restringiu à indexação, como se isso pudesse prejudicar a visão do brasileiro em sua originalidade. Ele soube distinguir no autor cearense uma problemática que nenhum brasileiro reconhecera, pois, até então, a historiografia filosófica brasileira praticamente definira Farias Brito como um metafísico alheio à realidade cultural brasileira, atribuindo-lhe, quando muito, o crédito de ter aprofundado o estudo da filosofia moderna a partir das teses de Tobias Barreto. Este crédito é válido, mas torna-se irrelevante se considerarmos que Farias Brito esteve mais ligado à língua francesa e ao espiritualismo francês, enquanto leitor atento de Bergson, do que ao germanismo do mestre 74
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do Recife. Segundo a opinião de Fred Gillette Sturm, a originalidade de Farias Brito consiste no fato de que ele se transformou no intérprete da crise cultural brasileira oitocentista (que culminou com a abolição da escravatura e a proclamação da república), situando-a no âmbito de uma crise da cultura ocidental que remonta ao Renascimento. De acordo com esta opinião, a trajetória de Farias Brito para a universalidade da crise da cultura ocidental tem o seu ponto de partida na singularidade da crise estética brasileira. Desse ponto de vista, encontramolo entusiasta de uma “reação contra o materialismo e a positividade brutal dos últimos tempos” (BRITO, 2003, p. 54), opondo-se ao cientificismo e ao ideal estético de “descrever a realidade nua e crua”, considerando excreção “uma escola de poesia chamada científica, como uma espécie de romance – o romance experimental” (BRITO, 2003, p. 71), e opondo-se também à ideia de uma “filosofia científica, tratando-se aí de uma direção, segundo a qual a filosofia, absorvida pela ciência, perde a sua significação particular e o seu destino próprio” (BRITO, 1912, p. 26). Em consequência de suas opiniões lúcidas, apaixonadas e corajosas, numa época em que o cientificismo carregava a bandeira da modernização, Farias Brito foi saudado ainda em vida como a fonte de inspiração para um movimento nacional de renovação católica, que teve lugar no Rio de Janeiro como reação às reformas republicanas que, sob forte influência de algumas ideias positivistas, não apenas laicizaram o ensino, como também suprimiram do ensino oficial a disciplina Filosofia. Em suma: a originalidade filosófica de Farias Brito vem da realidade cultural brasileira como origem das preocupações e inquietações que fizeram com que ele, em vista da mudança essencial na maneira moderna de pensar, conforme a “revolução copernicana” de Kant, se pusesse a investigar acerca da necessidade de um novo conceito de filosofia que, por um lado, não se reduzisse ao domínio da explicação científico-natural e, por outro, não prescindisse daquela exigência de rigor intrínseca ao método das ciências da natureza. Neste sentido, considerou necessário [...] distinguir duas espécies de filosofias: uma filosofia pré-científica – é a atividade me sma do espírito elaborando o conhecimento, o espírito mesmo investigando o desconhecido e produzindo as ciências; e uma filosofia supercientífica – é o espírito partindo das ciências e procurando dar a interpretação do verdadeiro sentido da existência, ou lançar as bases de uma concepção do REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 40-87, jul./dez. 2011
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Universo. É neste último sentido precisamente que a filosofia se chama metafísica, filosofia primeira, ou simplesmente filosofia (BRITO, 2003, p. 71).
Isto quer dizer: o advento da Revolução Científica não significou desprestígio para a filosofia nem descrédito para qualquer pretensão metafísica. Pelo contrário, se a ciência tornou-se condição da filosofia, isto deve entender-se no sentido de que, para Farias Brito, a filosofia se impõe no limite da explicação científica, a exemplo de sua metáfora da montanha: É como se alguém subisse a uma montanha para daí lançar uma vista sobre o mundo. Ao chegar no ponto culminante, teria de verificar que tudo está por fazer, porque o mistério cresce à proporção que os horizontes se afastam [...] a montanha é a ciência e esta vai sempre tomando maiores proporções. A filosofia é a intuição que se forma do mundo, partindo do alto da montanha da ciência [...]. Compreende-se assim como é que a ciência, que é um produto da filosofia, por sua vez, se faz condição da filosofia, e deste modo se torna fator essencial na obra do pensamento (BRITO, 1912, p. 61, grifos nossos).
O que significa, então, a ideia de que a ciência, enquanto fato histórico do século XVII, é um produto da filosofia como atividade permanente do espírito? Significa que a vontade consciente de ciência estrita dominou já a revolução socrático-platônica em filosofia, tanto quanto dominou a reação científica contra a Escolástica no limiar dos tempos modernos. Significa que essa vontade consciente se reveste de condicionalismos que supõem diferentes formas de autoconsciência nas diferentes épocas da história da filosofia, desde a filosofia antiga à filosofia moderna, passando pela filosofia medieval e, por isso mesmo, passando pela conversão religiosa como forma de autoconsciência, a exemplo de Santo Agostinho, no domínio da cultura ocidental, e do Padre Antônio Veira, no domínio da cultura brasileira. Tal compreensão é evidente em Farias Brito, quando, diferentemente do entendimento daqueles que viam na religiosidade um obstáculo à modernização, julga não haver conflito ou antagonismo entre ciência e religião: A religião não é ciência, mas governo [...] todo o conflito ou antagonismo que se supõe existir entre a ciência e a religião, é simplesmente o resultado de um equívoco, não sendo permitido comparar a religião e a ciência como se fossem duas modalidades ou formas distintas do conhecimento, porque a religião deriva, sim, do conhecimento, mas é forma, não do conhecimento, mas 76
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da ação. Mas esse governo ou ação em que se resolve a religião, supõe como condição essencial uma intuição da vida e uma interpretação da realidade, numa palavra, uma concepção do mundo; o que significa que a religião não é ciência, mas tem por fundamento a ciência; não a ciência da matéria, destinada a [...] estabelecer o domínio do homem sobre a natureza; mas a ciência do espírito ou a filosofia moral, destinada a orientar-nos na vida e a estabelecer o domínio do homem sobre si mesmo [...]. A religião é, pois, a própria filosofia, passando da ordem teórica para a ordem prática, saindo, como doutrina, da consciência do sábio, para dominar como lei ou como fé na consciência das multidões. (BRITO, 2003, p. 130-131, grifos nossos).
Ora, não há dúvida de que o método psicológico, tendo a sua origem no “conhece-te a ti mesmo” socrático, conduz à descoberta do espírito como atividade independente e incessante. Toda a filosofia consiste, pois, historicamente falando, no movimento de autoconsciência do espírito enquanto [...] a energia que sente e conhece, e se manifesta, em nós mesmos, como consciência [...] um princípio vivo de ação, essa força criadora [...] é também fato que resiste a toda a dúvida [...]. O espírito é, pois, o princípio dos princípios e a verdade das verdades, o fundamento de toda a realidade e a base de todo o conhecimento (BRITO, 2003, p. 60-62).
Princípio esse que carece de uma ciência própria, mas uma ciência que não se confunda, observa Farias Brito, com a dos filósofos e dos psicólogos “naturalistas”, que, usuários do método das ciências da natureza, ingenuamente procuravam “localizar o que é independente do espaço e não se pode conceber como corpo, traduzir na linguagem dos fatos objetivos o que só se pode explicar e compreender como modificação puramente interna, como fato subjetivo, numa palavra: objetivar a consciência” (BRITO, 2003, p. 53; grifo nosso). Tal ingenuidade não fora evidente para Tobias Barreto, que afinal de contas tentou conciliar sua concepção teleológica da cultura com a filosofia naturalista de Haeckel; mas foi evidente para Husserl, que, simultaneamente a Farias Brito, denunciou a atitude naturalista, referindo-se à “naturalização da consciência”,4 e o objetivismo dela decorrente.
4 O texto de Husserl A filosofia como ciência estrita, no qual faz a crítica da filosofia naturalista, é de 1911.
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Resumindo: a ingenuidade dos naturalistas implica um sentido pobre da natureza, que, para Farias Brito, remonta à própria origem da filosofia, na medida em que os filósofos da escola jônica eram físicos e como físicos, era por ação das forças mesmas da natureza que procuravam explicar não somente os elementos exteriores, como, ao mesmo tempo, o pensamento e a vida, enquanto os eleatas, para além da realidade externa, concebiam uma realidade interna, eram “psicólogos”, e era assim pelo espírito que explicavam toda a realidade. “E é esta a tradição a que se ligam Sócrates, Platão, Aristóteles, e todo o sistema espiritualista” (BRITO, 2003, p. 72). O problema básico no pensamento britiano é a fundamentação da realidade histórica com base numa compreensão científica do espírito humano. Ele vê como necessário [...] distinguir duas espécies de domínio: o domínio do homem sobre a natureza e o domínio do homem sobre si mesmo. O primeiro alcança-se pelas ciências da matéria; o segundo, pela ciência do espírito ou pela psicologia. Mas se um destes dois domínios deve ter preponderância sobre o outro, decerto é ao domínio do homem sobre si mesmo [ao domínio da moralidade] que cabe este privilégio, pois é daí que dependem a disciplina e a ordem, e tais são as condições essenciais e fundamentais de todo o progresso (BRITO, 2003, p. 64).
Daí a necessidade que ele vê numa ciência do espírito, numa “psicologia” que, neste caso, não se confunde com a “psicologia científica” ou “psicologia experimental”, que se conhece a partir do primeiro laboratório de Wundt (1879). Farias Brito propõe, então, a ideia de uma psicologia transcendente: [...] entende-se por transcendente o que fica em esfera superior à experiência e não pode ser atingido pela experiência. É o termo oposto a imanente, entendendo-se por imanente, em sua significação precisa, exatamente o que fica dentro dos limites da experiência e pode, por conseguinte, ser explicado pela experiência e de conformidade com os métodos da experiência [...]. Neste sentido, transcendente significa alguma coisa de superior, de estranho à ordem natural da existência, de inacessível às vias ordinárias do conhecimento (BRITO, 1912, p. 71-72).
É neste sentido que Farias Brito diz que a filosofia supercientífica também se chama metafísica, porque não depende da razão especulativa e se 78
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estende para além dos limites da experiência empírica. Sendo assim, pode-se acrescentar que, embora ele denominasse a psicologia “transcendente”, essa psicologia é efetivamente transcendental, na medida em que não depende da experiência, mas serve-lhe de fundamento. Isto fica muito claro quando ele, preocupado com a hipótese de ser mal interpretado, esclarece que seu uso de “transcendente” não significa de modo algum que estivesse propondo abstrair a experiência para estudar a consciência, o que, em última instância, consistiria na prática do assim chamado psicologismo: E, cogitando-se aqui da ideia de uma psicologia transcendente, é natural que se venha a imaginar tratar-se de algum trabalho meramente fantástico, feito fora dos processos regulares do raciocínio, sem consultar os critérios da lógica, nem respeitar a experiência [...]. Tratando-se, pois, do que chamo psicologia transcendente, ninguém suponha que eu, por ventura, pretenda ultrapassar a esfera da experiência comum, para entrar, como em visão de profeta ou fantasia de visionário, na região fantástica do sonho e da quimera (BRITO, 1912, p. 72-73).
Farias Brito fala da necessidade de uma ciência do espírito que não se limite ao domínio da explicação científico-natural, mas que nem por isso exclua a natureza. Esta ideia parece clara a Farias Brito, quando ele, referindo-se à morte enquanto expressão mais transparente do determinismo da natureza, observa que o desenlace com a vida do espírito é, do ponto de vista científico-natural, inteiramente certo, mecânico, previsível; mas, do ponto de vista psíquico, [...] o desenlace final desse drama [...] em que se resolve a vida de cada organismo [...] todavia fica sempre envolvido no mistério quanto às condições em que terá de realizar-se [...] o que prova que na própria morte, que por isto mesmo está em ligação imediata com a vida do espírito, existe um certo grau de liberdade (BRITO, 2003, p. 68, grifos nossos).
Há, portanto, o sentido psíquico da morte e da vida, que não se confunde com o sentido fisiológico. Neste sentido, a natureza é criação: “A liberdade – eis realmente o fato decisivo que marca a separação absoluta entre o espírito e a matéria [...]. Bergson deu como símbolo de sua concepção da vida esta fórmula eloquente – Evolução criadora [...] realmente viver é criar. Mas é REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 40-87, jul./dez. 2011
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preciso, além disto, reconhecer que criar é ser livre” (BRITO, 2003, p. 68). O mesmo se verifica em Husserl, que, opondo-se a uma concepção mecânica da vida, se propôs a desenvolver a ideia histórico-filosófica (ou o sentido teleológico) da humanidade europeia. Isto quer dizer: para Farias Brito, a palavra “vida” não tem sentido fisiológico; significa atividades e relações em conformidade a fins que criam formas espirituais; atividades e relações que instauram a cultura no sentido mais amplo de uma unidade histórica. Assim sendo, uma coisa é reconhecer a necessidade de leis puramente racionais que caracterizam o conhecimento científico da natureza; outra, explicar a natureza no seu sentido mais amplo por essas mesmas leis. Farias Brito reconheceu a necessidade de leis invariáveis no homem, mas apenas como “abstrações em nós”, como referências lógicas para a interpretação da realidade, e não como as leis do mundo da vida humana, que são fatos do espírito humano, como diria Gonçalves de Magalhães. Ora, como essas leis têm a sua origem no espírito e nele mesmo se verificam mediante o método introspectivo, a exemplo das leis morais, fica claro que esta seria a via pela qual se explica o uso de “transcendente”, em Farias Brito, para significar um objeto verdadeiro, eventualmente exterior, de uma representação, conforme o uso de Husserl para a mesma palavra. Eis a explicação de Farias Brito: [...] somos consciências e é neste caráter que formamos o mundo ético-psíquico e este tem também suas leis; mas são leis morais, não leis materiais: o que quer dizer que, como consciências, somos nós mesmos que estabelecemos as leis que nos regem. Estas são as leis éticas ou morais, e ligam-se ao espírito mesmo, à existência verdadeira; e são, por isto mesmo, leis reais e concretas, leis que exercem ação como forças. As leis naturais, ao contrário, são simples abstrações em nós, da ordem dos fenômenos. As primeiras são fatos; as segundas são apenas processos lógicos para interpretação da realidade (BRITO, 2003, p. 415-416).
Do reconhecimento do sentido psíquico da vida, para além do fisiológico, resultou o motivo existencialista na visão britiana da atividade de filósofo no mundo moderno, quando ele fala do “esforço pela interpretação do verdadeiro sentido da existência” (BRITO, 1966, p. 404, grifo nosso). Trata-se da consciência do ser-situado, do modo do ser no mundo entre a ideia de Deus 80
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e o nada em sua imperfeição, numa eterna luta contra o erro, caminhando no escuro entre abismos, sem o auxílio de guia, sem contar com o benefício da luz, senão da própria razão vacilante, trabalhando incessantemente para corrigir-se, sem jamais aspirar à posse da verdade: Indagando do sentido e valor do mistério que representamos, sou como um cego que tateia nas trevas: nenhum clarão se acende no alto, nenhuma luz se manifesta exteriormente para guiar-me na escuridão que me cerca. É por isto talvez que apenas proponho questões e nada resolvo, guiado unicamente pela luz sempre vacilante e incerta da razão. Um esforço, um esforço doloroso e triste – eis em verdade o que tem sido em mim o trabalho do espírito. E conquanto já bem longo seja o caminho percorrido, o certo é que ainda não fui, quanto à posse da verdade, além do ponto de partida [...]. E comecei interrogando e é interrogando que termino. E sobre os grandes problemas que são o objetivo próprio do pensamento e têm até aqui constituído o trabalho dos séculos e da história, comecei fazendo conjeturas e continuo ainda simplesmente fazendo conjeturas. Interrogo, interrogo sempre. E nenhuma voz me responde, permanecendo sempre impassível e muda a natureza (BRITO, 1966, p. 402-403).
Conclusão O estudo crítico do aristotelismo da Ratio Studiorum é imprescindível à noção de filosofia brasileira. Sem prejuízo do conceito de aristotelismo, que remonta à filosofia medieval, particularmente à Escolástica, o aristotelismo de origem ibérica constitui-se numa tradição filosófica dentro da qual a filosofia emancipou-se no Brasil. Além do interesse específico na história do aristotelismo, e do interesse genérico na história da filosofia ocidental, por causa de sua posição crucial entre aristotélicos e antiaristotélicos no limiar da filosofia moderna, o aristotelismo ibérico também desperta interesse tanto nos Conimbricenses, como na obra de autores como Francisco de Vitória, Domingo de Soto, Juan Luis Vives, Pedro da Fonseca, Luis de Molina, Domingo Báñez e Francisco Suárez. Enquanto autor religioso, o Pe. Antônio Vieira não questionou o caráter tutelado do ensino filosófico sob a Ratio Studiorum. Entretanto, ele foi levado a pensar a eficácia das próprias ações como problema a partir da conversão. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 40-87, jul./dez. 2011
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Seu conceito de conversão constitui-se numa abertura para a ideia da filosofia como sendo o conhecimento de si desde o “conhece-te a ti mesmo” socrático. Desse ponto de vista, a obra do jesuíta Antônio Vieira adquire, para além do seu sempre renovado interesse literário, uma significação nova para a história da filosofia no Brasil. Mais do que quaisquer outros que o tenham antecedido, incluindo-se Frei Francisco de Mont’Alverne e o português Silvestre Pinheiro Ferreira, que promoveram a inserção da cultura brasileira nos quadros da filosofia moderna, Gonçalves de Magalhães foi o primeiro a pensar a modernização da cultura brasileira como problema filosófico. Tobias Barreto foi o verdadeiro responsável pela definitiva superação do aristotelismo no Brasil. Ele não só assimilou a dimensão metafísica da doutrina de Kant, como chegou a esboçar uma teoria da cultura como fundamento da modernização no Brasil, o que o levou a assumir uma posição filosófica contrária à ideia de uma ciência social (sociologia) baseada no método experimental. A obra filosófica de Farias Brito significa o coroamento dessa experiência de pensar que representa o nascimento da filosofia brasileira. Seu aprofundamento no estudo da filosofia moderna e a sua proposta de uma “ciência do espírito” como princípio de todo o saber não só incorporam e ampliam as teses apresentadas pelos antecessores, como colocam o pensamento brasileiro na perspectiva do pensamento filosófico contemporâneo no que diz respeito a tematizações de caráter existencial e à fenomenologia como método. Para nós, este modo de ver uma relação originária entre Antônio Vieira, Gonçalves de Magalhães, Tobias Barreto e Farias Brito, como referência básica para a compreensão da ontogênese da consciência de si no Brasil, estabelece as condições suficientes e necessárias para uma verdadeira história da filosofia no Brasil.
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THE IDEA OF PHILOSOPHY IN BRAZIL AS OVERCOMING OF THE IBERIAN MATRIX ARISTOTELIANISM Abstract In the current elaboration the author intends to show the process through which the philosophy in Brazil has been undergoing through many moments, by means of varied contributions (Priest Vieira, Gonçalves Magalhães, Tobias Barretos, Farias Brito) in a way of overcoming of the philosophical matrix inherited from the Jesuits and the affirmation of a Brazilian philosophy. In this sense the contribution to the modern philosophy was very productive and opportune, in the delineation of what the author denominated ontogenesis of the Brazilian thought. It is from this itinerary that we can tell about a philosophy in our land. Key words: Aristotelianism, conscience, Brazilian thought.
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TOBIAS BARRETO E A RELIGIÃO: CONSIDERAÇÕES INICIAIS Antônio Vidal Nunes*
Resumo O filósofo brasileiro Tobias Barreto, durante todo o período de sua produção filosófica, manteve a religião como um dos seus temas de interesse. No embate com vários pensadores – José Soriano de Souza, Étienne Vacherot, Jules Simon, Jean Marie Guyau – foi explicitando o seu posicionamento em relação à religião. Este artigo traz de maneira sucinta sua forma de perceber a religião e as críticas que dirigiu a seus opositores assim como sua concepção religiosa. Ao mesmo tempo que defende o sentimento religioso e a religião, advoga a impossibilidade de uma ciência sobre Deus. Palavras-chave: Tobias Barreto, religião, sentimento religioso.
Introdução Tobias Barreto, um dos primeiros filósofos brasileiros, formado na Escola de Recife em 1869, instituição da qual foi professor no período de 1882 a 1889, ano em que faleceu, sempre manteve a religião como um dos temas de seu interesse e reflexão. O referido pensador pôde expressar, com seus artigos polêmicos, publicados entre os anos de 1868 e 1888, seu posicionamento crítico em relação a certas concepções religiosas, tanto teológicas como filosóficas, existentes em seu contexto histórico. Para ele, a filosofia, com sua atividade crítica, teria um papel importante na renovação da sociedade e da cultura. Deveria ser questionadora das ideias esclerosadas e das representações que estivessem em descompasso com seu tempo e com a sociedade e que não levassem em conta as necessidades desta. Mas a filosofia existente no Brasil pouco contribuía para esta realização, não era capaz de estabelecer significações que pudessem orientar a sociedade brasileira. Ressaltara ele em 1887 que, dentre todas as áreas do saber, a * Professor da Ufes. 88
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Tobias Barreto e a religião: considerações iniciais
filosofia era a que menos tinha, até então, contribuído com nossa cultura. Ele a considerava frívola, caduca, imprestável, acanhada e infecunda. Ainda que nas outras áreas se pudesse encontrar alguma contribuição, mesmo despossuída de originalidade e criatividade, na filosofia não se podia perceber nada de digno. Para ele, se “nas outras esferas do pensamento, somos uma espécie de antropoides literários, meio-homem e meio-macaco, sem caráter próprio, sem expressão, sem originalidade, – no distrito filosófico é ainda pior o nosso papel: não ocupamos lugar algum; não temos direito a uma classificação” (BARRETO, 1977, p. 366). Anos antes, em 1884, o pensador brasileiro já havia chamado a atenção para este fato; segundo ele, os sábios existente no Brasil, presos a ideias religiosas ultrapassadas, não eram capazes de interpretar seu tempo nem contribuir para a vida espiritual da nação. É na perspectiva de uma atividade filosófica comprometida com a história que o pensador sergipano arranca a filosofia dos velhos manuais, perdidos em divagações anacrônicas, para colocá-la a serviço de um renascimento social e cultural. É neste horizonte que situamos também a reflexão crítica que ele fará no contexto das representações religiosas, focalizando, sobretudo, concepções escolásticas e metafísicas da religião, às quais se opôs. Neste artigo pretendemos explicitar não apenas a forma como Tobias Barreto dirigiu suas críticas ao pensamento religioso reinante no Brasil, mas também os seus embates com alguns pensadores franceses, especificamente Jules Simon, Étienne Vacherot e Jean-Marie Guyau. Pretende indicar o filósofo brasileiro os limites da contribuição desses filósofos naquilo que eles escreveram sobre religião.
1 O embate com o pensamento escolástico Parte do processo formativo de Tobias Barreto ocorrerá a partir de seu contato com intelectuais religiosos. Assim acontecerá com seus estudos de Latim e o início de sua formação filosófica, quando, em 1961, chegara a estudar filosofia com o Padre Itaparica1, em Salvador. Depois, em Recife, na 1 Frei Itaparica era um conhecido orador e professor de teologia no seminário de Salvador. Chegou a escrever um livro intitulado Compêndio de filosofia. Seu nome verdadeiro era Manuel de Santa Maria, e nasceu na ilha de Itaparica (BA) em 1704 e provavelmente faleceu por volta de 1768.
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faculdade de direito, terá como professores alguns defensores do tomismo. Tobias Barreto pretendeu mesmo estudar teologia e ser religioso (BARRETO, 1969, p. 166). Contudo, sua estadia no seminário foi muito breve. Após o primeiro contato com essa instituição, percebeu que a vida lhe reservava um outro caminho; tornar-se-á um dos maiores intelectuais de seu tempo e um dos opositores audaciosos e ferrenhos que a igreja conhecerá, cujas críticas se iniciarão já no final do seu curso de Direito, em Recife. Ali chegara em 1862 para realizar o seu bacharelado; porém, por problemas de saúde, teve que adiar os seus estudos, que serão concluídos em 1969. Certamente seu contato com o ecletismo, uma das primeiras correntes filosóficas, e posteriormente com o positivismo e o monismo, servir-lhe-á de base para as suas manifestações questionadoras em relação ao pensamento católico. Em seu ponto de partida, o inovador filósofo dirigirá as sua críticas ao pensamento escolástico assumido pela igreja e seus teólogos. A teologia e a teodiceia estarão na mira de seus intrépidos questionamentos. A síntese tomista representava para o pensador sergipano coisa do passado, acusava os ainda existentes defensores dessa doutrina de manterem as costas voltadas para o futuro (BARRETO, 1977, p. 49). A teologia não tinha mais razão de ser. Coisa intolerável para ele era a pretensão dela de querer comprovar a existência de Deus, ou de pretender compreender a natureza divina. Assim se expressava, por exemplo: “A teologia, esse trapo de burel monástico, essa larva dos claustros, que arroga-se o direito de sondar e comentar a natureza divina, embrulhando, cobrindo muitas de nuvens o que está límpido e sereno” (BARRETO, 1977, p. 51). Para o pensador sergipano, Deus não pode ser objeto de conhecimento, não há ciência que lhe possa revelar as entranhas. Acreditava que certas filosofias existentes já haviam evidenciado esta impossibilidade. Comte mostrara a ilusão desta pretensão, Kant revelara os limites da inteligência para tal tarefa. Dessa forma, era inconcebível que ainda houvesse pessoas que julgassem encontrar em tais teologias alguma coisa de pertinente e significativa. Daí o susto do autor em estudo: “O que mais me espanta é a coragem com que neste século se desce aos subterrâneos em que já é feito cinza o cadáver da escolástica e se pretende ressuscitá-la para oferecer ao público” (BARRETO, 1977, p. 54). Para o pensador sergipano, não pode haver ciência divina tampouco conhecimento sobre Deus; o que se pode admitir é a crença em Deus. E crença não é saber, embora possamos passar da crença ao saber, mas isso 90
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Tobias Barreto e a religião: considerações iniciais
implica algumas exigências. Crença e saber não se confundem, coisa que fizeram, segundo ele, o senhor Conselheiro P. Autran de Albuquerque e outros pensadores defensores do pensamento tomista, com os quais entrará em contenda em 1867. Acreditava o citado pensador escolástico que “crer é ter por certo uma coisa que percebemos pelos sentidos, pela razão” (BARRETO, 1978, p. 51). Desta forma, crença e saber se confundem, coisa inadmissível para Barreto. Dirá ele: [...] cremos, temos a crença de que Deus é o criador do céu e da terra, por isso mesmo não sabemos, não temos ciência do que Ele seja. A crença é um suplemento do que falta ao conhecimento. Mas de Deus nós não conhecemos nada, nem pelos sentidos, porque não o vemos, nem o ouvimos, etc; nem pela razão, porque a ideia que dele se forma é variável segundo a inteligência dos indivíduos. Pois uma simples crença, sem base de conhecimento, de percepção, não pode constituir uma ciência. Teodiceia é teomania” (BARRETO, 1978, p. 51).
Uma das discussões mais calorosas de Tobias Barreto foi com o pensador tomista José Soriano. Este, natural da Paraíba, formou-se em medicina no Rio de Janeiro e se doutorou em filosofia em Lovaina, onde chegou a fazer doutorado. Além de lecionar no Ginásio Pernambucano, foi professor na Escola de Recife. Atuou também como deputado entre 1886 e 1889 na província de Pernambuco. Seu trabalho filosófico foi o de reabilitar o pensamento de Tomas de Aquino em um contexto dominado pelo ecletismo. Esta pretensão foi destacada por ele nos seguintes termos no prefácio de seu livro Lições de philosofia elementar: racional e moral (1871): Deixemos os néscios, e tenhamos como assentado, no juízo dos doutos, que a máxima necessidade dos nossos tempos é a restauração da metafísica cristã, fundada por São Tomás no maravilhoso acordo das duas luzes do espírito humano, a razão e a fé. Só dali pode vir a eficaz medicina dos males que deploramos na ordem política, moral, política e intelectual (SOUZA, 1871, p. X).
Em 1872 Tobias Barreto publica vários artigos na imprensa pernambucana buscando desqualificar a referida obra. Segundo o pensador sergipano, essa obra em nada contribuía para com os tempos recentes. Ela justamente buscava resgatar princípios mortos, que nada tinham a oferecer à REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 88-99, jul./dez. 2011
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sociedade existente. Qualificando-a como obra dogmática, afirmava que ela se afastava dos problemas candentes que se deveriam resolver. Era inconcebível, segundo ele, que um homem de ciência pudesse ainda defender as ideias que estavam presentes em tal obra. Dirá ele concluindo: “É um livro sem vida, que não encerra uma só coisa aproveitável” (BARRETO, 1977, p. 178). O quarto capítulo do livro será dedicado à Teologia Natural. Defende José Soriano que, não sendo possível um conhecimento perfeito de Deus, pelo menos poderemos dizer quem ele é, como é, e quais são os seus atributos. É contra esta possibilidade que se levantará Barreto, pois ele entende que sobre Deus não dá para se falar nada, coisa que já vimos anteriormente. Não há uma inteligibilidade de Deus possível, tal como ressaltamos antes.
2 O embate com os pensadores franceses O posicionamento crítico de Tobias Barreto não se restringe às representações religiosas reinante no interior do catolicismo, mas se estende também à tradição eclética, que passa a ser profundamente questionada no final da década de 1860. O ecletismo, que foi filosofia do segundo reinado, com a qual esteve identificado o pensador sergipano, passa a ser questionada em suas pretensões filosóficas e metafísicas. Ele a qualificará de superficial, apressada, acomodada, impaciente, fácil, beirando o senso comum. Para ele, a tentação eclética de conciliar conceitos de várias filosofias de tradições filosóficas diferentes levou a uma elaboração especulativa que pouca contribuição trouxe ao debate filosófico. Para Barreto, os pensadores ecléticos, “[...] meros repetidores de velhas e banais verdades, coloridas pelo talento literário, por outro lado, incapazes até de cometer grandes erros que provocam as grandes reações, cuja resultante é o progresso histórico, os modernos espiritualistas são homens de meio-termo [...]”. Tudo aquilo de certo é belo; mas tudo aquilo infelizmente é leve e superficial; tudo aquilo não pode matar a sede das almas já fatigadas de longas e improfícuas viagens (BARRETO, 1977, p. 76-77).
Censurará o filósofo pátrio a metafísica religiosa que foi construída por muitos desses pensadores. Estes, segundo ele, não conseguiram ir muito além 92
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Tobias Barreto e a religião: considerações iniciais
da sombra da tradição escolástica em seu espiritualismo profano. Buscarão, prescindindo da revelação, mas crentes no poder da razão, explicar a realidade divina. Trata-se de uma filosofia entregue a si mesma, acreditando que com os meios de que dispõe pode visitar a interioridade de Deus e lhe revelar sua natureza e atributos. As justificativas desta iniciativa se encontram, acredita Barreto, nas características da própria razão, que, sendo unitária e centralizadora, procura articular tudo o que percebe sob a ótica do perfeito e do infinito. O mesmo postulado encontra-se na base da reflexão dos teólogos, como alguns filósofos ecléticos: Deus pode ser conhecido, logo se justifica um saber com o objetivo precípuo de revelá-lo em seu ser. Por isso, dirá Barreto (1977, p. 81) que ao [...] lado do teólogo que compõe a ciência de Deus segundo os dados da religião, ergue-se o metafísico facundo que edifica a teosofia, segundo os aparentes princípios da razão. Sombra por sombra, futilidade por futilidade, ambos vultos se compensam, e o espírito humano continua na doce ignorância que equivale a uma santa inocência sobre tudo que toca a Deus e aos supremos destinos da humanidade.
Um dos importantes pensadores espiritualistas da tradição eclética francesa que dedicará parte da reflexão ao estudo do fenômeno religioso é Jules Simon (1814-1896). Sobre o tema ele destina o livro intitulado La religion naturalle, publicado em 1854, que será objeto de análise crítica de Tobias Barreto. Dirá o pensador francês no prefácio da obra citada que tudo fala de Deus: a sociedade, a natureza, a consciência. Certamente muitos seguem em suas práticas e representações os ensinamentos baseados na fé revelada que lhes fornece os caminhos da felicidade. E se sentem respondidos em muitos dos seus anseios e desejos. Mas ressaltará o referido autor que também vamos encontrar muitas pessoas profundamente religiosas que não admitem os princípios da revelação, nem teriam identificação com os ensinamentos da Igreja. Que caminho então elas poderiam percorrer? Para o autor, a religião natural seria a resposta. Para Tobias Barreto (1977, p. 83), falar em religião natural não faz o menor sentido. Dirá ele que a religião enquanto tal antecedeu a filosofia, e isto não pode ser esquecido. E que a pretensa atividade filosófica que busca estabelecer princípios assentados apenas em suas próprias forças nada faz do REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 88-99, jul./dez. 2011
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que racionalizar os dogmas religiosos que lhe são anteriores. Nesse caso, a filosofia se entrega a comentários e especulações de crenças que impregnam o espírito humano. Ele se reportará a uma comparação de Edmond Scherer (1815-1889),2 teólogo, literato e político francês, para reforçar seu argumento, dizendo que o filósofo, perseguindo as pretensões acima assinaladas, se comportaria como homem que tenta saltar fora da própria sombra. Um dos aspectos sobre o qual cairá de forma pungente a crítica tobiniana vincular-se-á à iniciativa de Jules Simon de querer estabelecer as provas da existência de Deus como forma de reforçar a própria fé. É sobre este tema que o pensador francês começa o primeiro capítulo do livro. Aproximando-se de Descarte, falará da existência da ideia de infinito que nós temos, mas que não é nossa, assim sendo, ela deve vincular-se a um ser que não somos nós. A ideia de infinito não pode ter origem no ser finito, e a ideia de perfeito não pode originar-se no imperfeito. Da mesma forma, dirá Barreto: “A ideia de Deus não pode ter origem no homem; é mister que Deus exista, para explicar a existência dela, ou mais simplesmente, o homem tem ideia de Deus, porque Deus existe” (BARRETO, 1977, p. 88). O pensador sergipano rejeitará tal tentativa ridicularizando e evidenciando os seus limites e dos demais pensadores modernos que pretenderam adicionar à teodiceia componentes matemáticos com intuito de potencializar suas explicações e comprovação daquilo que não se poderia provar ou demonstrar, tal como a existência do próprio Deus. Querem que a razão chegue onde ela não pode chegar, que revele o que ela não poder revelar. Desanimadores são, para Barreto (1977, p. 90), os resultados da ciência que “pretende pôr em provas aquilo que não pode provar”. Trata-se de uma pretensão vã dos filósofos e da ciência. Não que o pensador sergipano seja pessimista e descrente quanto aos poderes da razão. Apenas acredita que ela deve ser aplicada naquilo para o qual ela tenha competência, por isso mesmo defenderá que É um erro fecundo em erro querer dar a todas as coisas a forma determinada da verdade, ou querer descobrir o lado verídico de tudo, este lado que toca na inteligência, mas não se entranha, por si só, até às raízes do ser. Por mais que 2 Esta comparação encontra-se no livro Mélanges d´histoire religieuse, editado por PetitParu, em 1864.
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se alongue o diâmetro do pensamento, o belo e o divino, que faz a poesia e a religião, serão sempre tangentes à sua circunferência; não caberão jamais nas estreitezas do raciocínio, ainda, o mais elevado (BARRETO, 1977, p. 90).
Outro pensador que estará na mira de Tobias Barretos será Étienne Vacherot (1809-1897). O filósofo francês, qualificado de apriorista e idealista pelo pensador sergipano (1977, p. 115) em seu livro La religion, acreditava que a religião não seria algo intrínseco ao homem e que ela teria um caráter provisório e passageiro, sendo ela substituída pela filosofia como parte do processo de amadurecimento e ampliação da capacidade reflexiva do homem. Dirá Tobias Barreto que é em nome da reflexão “[...] que Vacherot arranca do coração do homem até a última fibra religiosa, como coisa inútil, ou supérflua, para dar cabimento ao governo único da filosofia” (BARRETO, 1977, p. 122). Segundo o fundador da escola de Recife, em relação ao homem “o que não se pode negar é que ele se mostra religioso, sob todos os aspectos de sua vida, ou ululando nos bosques, ou sorrindo e chorando no seio das cidades” (1977, p. 115). A posição de Vacherot se aproxima da de Augusto Comte. Ambos acreditam no fim inevitável da religião, embora não postule o primeiro a etapa positiva. Certamente encontra-se nele as marca do comtismo. Para o pensador da Escola de Recife, a filosofia não é tudo e não só do pão da verdade vive o homem. Acredita ele que a poesia e a religião são essenciais ao homem. “A poesia é, como foi e será sempre, a expressão do finito idealizado em todos os seus modos e faces diversas. Desde que no seio da alma germinam as inquietudes solenes do desconhecido, as entrevisões de não sabermos que augusta e sublime caridade, tenhamos por certo que a poesia cedeu o passo a religião” (1977, p. 125). Dirá ainda nosso filósofo que há sentimentos em nós que não são destrutíveis nem podem ser rechaçados ou substituídos. “Não compreendemos a vida, sem o cheiro de alguma flor poética, de alguma ilusão mística, e que não são isentos os mais valentes heróis da pura metafísica” (1977, p. 122). Fica evidente que a crítica de Barreto não é à religião, pela qual ele tem um profundo respeito, mas a certas representações que estabeleceram em torno dela. Tobias Barreto, em 1888, antes de ficar enfermo e morrer no ano seguinte, escreverá um dos seus últimos textos crítico em que avaliará o livro L’irréligion de l’ avenir: étude sociologique (1886), escrito pelo filósofo e poeta francês, lido por Nietzsche e Tolstoi, Jean-Marie Guyau (1854-1888). Para o REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 88-99, jul./dez. 2011
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referido pensador, a religião é uma das formas de sociomorfismo universal. O sentimento primordial do homem é o da sociabilidade. De certa forma, a religião contribui para a vivência desse sentimento; contudo, o homem pode continuar esta experiência sem o concurso da religião. Ela representou um momento importante na caminhada humana, possibilitando a realização deste impulso primitivo e natural no homem; contudo, o seu tempo passou, e ela deverá ser vivida de forma consciente e racional de acordo com os meios disponíveis no atual momento da história humana. Para Barreto, não se pode definir a religião a partir desse sociomorfismo universal, pois ele não dá conta de compreender a essência da própria religião.
3 A religião como sentimento humano Como já ressaltamos antes, as críticas dirigidas por Barreto às sínteses filosófico-teológicas existentes em sua época não nos devem levar à conclusão de que ele tenha qualquer tipo de reserva ou repulsa em relação à religião. Acreditamos que sua tentativa crítica objetivou justamente salvar a religião de um racionalismo que lhe encobria o essencial. Assim, postulava o pensador sergipano o retorno à pureza evangélica e bíblica. Defendia a pureza de um sentimento religioso que sempre esteve presente no homem desde a aurora de sua existência. Em sua crítica à religião natural de Jules Simon em 1869, no finalzinho do artigo chamará a atenção do leitor para o endereçamento de suas críticas: Vamos terminar; mas não devemos deixar de fazer uma breve observação. Por mais livre que seja o nosso modo de opinar, temos a convicção de que um olhar mais perspicaz, se bem entender, não descobrirá em nosso escrito um ataque direta ou indiretamente feito às crenças religiosas geralmente recebidas. Se algum existe, e confessamos que há, é somente dirigido às crenças metafísicas e teológicas, abstratas e improcedentes, que nada têm de comum com a religião e com o sentimento religioso (BARRETO, 1977, p. 101).
O sentimento religioso, para nosso filósofo, nasce com o homem. É intrínseco ao homem. Não é resultado de um processo educativo destinado a nele despertar esse sentimento. O que faria parte de sua vida após um 96
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processo de socialização cultural mediante os valores presentes no interior da sociedade. Sendo um fundamento que se apoia na própria natureza humana, ele é anterior às construções culturais que emergem depois e que se apoiam neste impulso profundo da existência humana. Neste sentido, podemos dizer que as representações religiosas não são a causa do sentimento religioso, mas sua consequência. É sob este impulso nascido no coração do homem que as representações ganham lugar na esfera cultural. A crença em Deus persegue o homem desde quando este surge. Dirá Barreto que: A crença em Deus, como fato interno, é evidente, mas esta crença não tem, não pode ter outro fundamento senão a própria natureza humana, assim predisposta em conformada. Esta crença, que é um dos primeiros raios matinais da consciência, só se explica por si mesma, dissemos, porque ela não se firma em fato subjetivo anterior que a determine, assim como não é a educação religiosa que poderá fazê-la nascer, se ela não preexistisse; além do que está hoje demonstrado pela própria ciência natural que a religiosidade é um dos caracteres essenciais do homem (BARRETO, 1977, p. 87).
Talvez seria pertinente esclarecermos um pouco mais, coisa iniciada anteriormente, a respeito da distinção que fará o filósofo entre crença em Deus e ideia de Deus. A crença, como ressaltamos acima, é uma das marcas eternas do próprio homem. Este sempre acreditou em um ser superior, diversificou suas formas de cultos e diversificou as existências divinas. Isto ocorreu porque isso é inato ao homem. A crença é algo que se impõe de maneira absoluta. Ao lado das crenças temos a busca da ideia de Deus. É contra esta pretensão que se levantou o filósofo sergipano, tanto em relação à síntese escolástica quanto em relação à realizada pelos pensadores modernos. Pois a ideia de Deus pressupõe uma ciência que lhe seja capaz de revelar-lhe as entranhas, e para ele esta é impossível. Desta forma, deixa claro o filósofo que “a crença em Deus não se identifica com a ideia de Deus; aquela é um fato certíssimo e incontestável; está é confusa, obscura e mal determinada” (BARRETO, 1977, p. 87). As crenças enquanto tal brotam do nosso coração. Concebendo assim, a origem da religião da forma como é vista por Barreto não se encontra muito distante da formulada pelo filósofo alemão Feuerbach (1804-1872). Aliás, este foi citado várias vezes pelo filósofo sergipano. Acredita mesmo que REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 88-99, jul./dez. 2011
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alguns dos pensadores com os quais debateu não teriam escrito sandices se tivessem lido o autor de a Essência do cristianismo, quando colocam as causas dos sentimentos religiosos fora do próprio coração humano. Jule Simon enquadra-se neste caso. Em relação a ele dirá Barreto: A inexauribilidade dos nossos amores, alegada pelo filósofo francês, é certamente o que se trata de explicar e saber se tem uma razão de ser fora ou dentro de nós. Feuerbach dissera com força e profundeza: “São as lágrimas do coração que, se evaporando no céu da fantasia, formam a imagem nevoenta da divindade”. J. Simon vem dizer-nos mais ou menos a mesma coisa, porém às avessas: “É a divindade que faz a sede insaciável do coração, ela é o centro dos nossos amores, de nossos eternos desejos” (BARRETO, 1977, p. 92).
A teoria feuerbachiana, embora audaciosa e mesmo assustadora para alguns, não era tão nova como poderia parecer. Barreto (1977, p. 93) julga encontrar em Virgílio antecipação de algumas posições que ele próprio possuía. No livro IX da Eneida exporá o diálogo que ocorreu entre Niso e Eurálio3. Certamente aquilo que ali apareceu de forma poética e breve será desenvolvido por Feuerbach de tal forma que ganhará a amplitude de um livro. O livro a que se refere Tobias Barreto é a Essência do cristianismo. Talvez as palavras ditas em 1870, em que define sua doutrina em relação à religião, permaneça verdadeira até o fim de sua vida: “Quem uma vez achou Deus no fundo do seu coração, não o procura mais no seio do universo, nem nos estéreis artifícios da lógica. É a nossa doutrina”.
3 (Serão porventura os deuses, Euriálo, que me inspiram tão caloroso desígnio?.... Ou dar-se-á o caso de que para qualquer o seu ardente desejo se faça Deus?...)
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Referências BARRETO, Tobias. Estudos de filosofia. São Paulo: Grijalbo, 1977. ______. Crítica de religião. Sergipe: Secretaria da Educação e Cultura, 1978. ______. Polêmicas. Obras Completas. v. 2. Edição do Estado de Sergipe, 1923. CAMPOS, Fernando Arruda. Tomismo e neotomismo no Brasil. São Paulo: Grijalbo, 1968. GUYAU, Jean-Marie. La irreligion del povernir. Buenos Aires: Editorial Americalee, 1947. LIMA, Hermes. Tobias Barreto: a época e o homem. São Paulo: Companhia Editoria Nacional, 1957. MONTELLO, Josué. A polêmica de Tobias Barreto com os padres do Maranhão. São Paulo: José Olympio, 1978. PAIM, Antônio. História das ideias filosóficas no Brasil. São Paulo: Grijalbo, 1967. SIMON, Jules. La religion naturelle. Paris: Librairie de L. Hachette, 1856. SOUZA, José Soriano de. Philosophia elementar. racional e moral. Recife: Pernambuco Livraria Acadêmica, 1871. VACHEROT, Étienne. La religion. Paris: Librairie Chamerot et Lauwereyns, 1869.
TOBIAS BARRETO AND RELIGION: INITIAL CONSIDERATIONS Abstract: The Brazilian philosopher Tobias Barreto, during all period of his philosophical production, kept religion as one of his themes of concern. In the confrontation with several thinkers, José Soriano de Souza, Étienne Vacherot, Jules Simon, Jean Marie Guyau, he explained his attitude in relation to religion. In this article I intend to explain in a concise manner to evidence his way of perceiving religion and the criticisms that he headed toward his opponents his religious conceptions. At the same time he defends the religious feeling and religion he advocates the impossibility of a science about God. Key words: Tobias Barreto, religion, religious feeling.
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O “FUNDO DA ALMA” NOS SERMÕES ALEMÃES DE MESTRE ECKHART1 Jorge Augusto da Silva Santos* Renata Aparecida Lucas**
Resumo O objetivo deste artigo é analisar alguns aspectos do pensamento místico de Mestre Eckhart a partir da questão filosófica do “fundo da alma” presente em seus Sermões alemães. No discurso eckhartiano tal expressão indica a verdade e a essência do homem. Como pretendemos mostrar, Mestre Eckhart remete o humano a uma das mais elevadas ousadias filosóficas: olhar o divino com o intelecto que o constitui e que n’Ele se constitui. Palavras-chave: Metafísica, filosofia medieval, Mestre Eckhart, mística. *** Der Verbindung der Drei bringt tiefes Erschrecken, diesen Kreis hat Verstand nie begriffen: hier ist Tiefe ohne Grund. Schach und Matt der Zeit, den Formen, dem Ort! Der Wunder Ring ist Ursprung, ganz unbeweglich steht sein Punkt. O elo dos três suscita profundo espanto, este círculo 1 Comunicação pronunciada no XIII Congresso Internacional de Filosofia Medieval (1 a 4 de agosto de 2011), que teve como tema central “Metafísica, Arte e Religião na Idade Média”. Local: Universidade Federal do Espírito Santo (Programa de Pós-Graduação em Filosofia). * Professor da UFES. ** Mestranda em Filosofia.
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o intelecto nunca o compreendeu: aqui há um abismo sem fundo. Xeque-mate ao tempo, às formas, ao lugar! O circulo maravilhoso é origem, totalmente imóvel está seu ponto. (EDKHART, 2004, p. 20)
1 Deus, o homem, a alma humana Dentre os grandes temas da Idade Média, juntamente com o esforço filosófico de uma referência incansável à questão de Deus, o logos se destaca como um motivo cristão essencial desde os primeiros momentos. O presente artigo concentra-se em investigar alguns aspectos do pensamento místico de Mestre Eckhart a partir da relação que ele estabelece entre o homem e Deus no fundo da alma, que, no discurso eckhartiano, indica, antes de tudo, a realidade mais verdadeira e profunda do ser humano, expondo, assim, as bases do pensamento do filósofo sobre o assunto. A confrontação medieval entre filosofia e teologia é visível. Contudo, através de Eckhart, a linguagem do intelecto saiu da universidade e espalhouse aonde não era esperada, entre monjas, beguinas e leigos, que não eram propriamente nem filósofos, nem clérigos, nem teólogos. Para esses, o mestre se dirigia em alemão (a “língua vulgar”), e, explicando a filosofia – reunida com a teologia numa experiência mística –, o pregador descobriu um meio de realizá-la de uma nova forma, na vida, e colocou o sagrado no mesmo nível que o profano e a teologia a serviço da filosofia.2
2 Sobre as vias que conduziram Eckhart à formulação não convencional da relação teologia/ filosofia, sugerimos a leitura de Alain de Libera, Pensar na Idade Média. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1999, sendo pertinente ressaltar: “Encarregado de falar às mulheres, Eckhart não podia recorrer nem à linguagem dos filósofos – que as teria seduzido ou reforçado em suas convicções – nem à dos teólogos – que as teria desagradado ou revoltado. Não podendo decidir-se a favor nem de uma nem de outra virtude, pelo menos em sua formulação tradicional, ele seria assim inevitavelmente levado a formular uma noção cristã da nobreza que sintetizasse a virtude do filósofo e a do cristão numa espécie de humildade magnânima” (p. 303).
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A fecundidade das relações mantidas entre a filosofia e a teologia na obra eckhartiana originaram uma nova forma de experiência espiritual iniciada ou redescoberta por Eckhart, seus contemporâneos e seguidores, denominada por MacGinn (2005) (MACGINN apud BORGES, 2008, p. 567-579) pela expressão “mística de fundo”, sintetizada na afirmação: “[...] o fundo de Deus e o fundo da alma são um fundo” (ECKHART, 2006, p. 119).3 É justamente onde o fundo de Deus e o fundo da alma humana coincidem, no mundo interior, que tudo opera, sem porquê e sem modo. Para o Meister, a vida vive de seu próprio fundo e daí emana, vivendo para si mesma e, por isso, sem porquê. Além disso, a vida é tão desejável em si mesma que é desejável por si mesma. Diz Eckhart: “Quem pelo espaço de mil anos perguntasse à vida: ‘Por que vives?’ – se ela pudesse responder, não diria outra coisa a não ser: ‘Eu vivo porque4 vivo’” (ECKHART, 2006, p. 67).5 A relação entre o homem e Deus, em Eckhart, é estabelecida na medida em que, onde termina a criatura, ali começa a “ser Deus”; o homem, ao abandonar seu modo de ser criatural, deixa Deus ser Deus em si. Por menores que sejam as imagens de criatura formadas no homem, tais imagens são tão grandes quanto Deus e impedem seu acesso ao “Deus completo”, pois tal imagem retrai Deus e toda sua deidade. Então, se o homem deseja que nele próprio Deus seja Deus, deve sair totalmente de si mesmo. E, a partir deste movimento, Deus também sai totalmente de si próprio por e para o homem. Neste momento, quando ambos saem de si, o que permanece é um simples “Um singular”, onde o Pai gera seu Filho, onde floresce o Espírito Santo, e é onde “jorra em Deus uma vontade, que pertence à alma”, que é justa e livre, se inclina às criaturas e que flui com elas em seu nada (ECKHART, 2006, p. 67-68).6 A alma justa se coloca totalmente igual e junto a Deus e ao seu lado, “nem abaixo nem acima” – por isso igual e junto –, e, sendo a essência divina igual a nada, sem imagens nem forma, de igual modo será a alma justa. Não apenas essa alma é igual e próxima a Deus, mas também Ele é nela, como seu ser e como sua natureza: Homo quidam nobilis abiit in regionem longinquam accipere regnum et reverti. Sermão 15. Giachini, em nota de rodapé de sua tradução, explica que “em alemão temos ich lebe dar umbe daz ich lebe (Ich lebe darum, dass ich lebe). Essa conjunção dass indica a pura facticidade ‘que se vive’. Assim o que do ‘porque’ indica a facticidade do ser simplesmente, na vigência, na força que se vive” (ECKHART, 2006, p. 67). 5 In hoc apparuit caritas dei in nobis. Sermão 5b. 6 In hoc apparuit caritas dei in nobis. Sermão 5b. 3 4
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A respeito disso digo ainda: Ele (Pai) gerou-o (seu Filho) em minha alma. Não somente ela é junto a Ele e Ele junto a ela como iguais, mas Ele é nela. […]. E digo ainda mais: Ele gera a mim não apenas como seu filho; Ele gera a mim como a si mesmo e gera a si mesmo como a mim, como seu ser e como sua natureza (ECKHART, 2006, p. 72-73).7
Assim, Eckhart, depois de afirmar a igualdade que decorre da relação mútua de geração Pai/Filho/Alma, potencializa radicalmente tal igualdade como identidade na Unidade, que, segundo Quint (QUINT, 1958 apud ECKHART, 2006, p. 72), não exclui a igualdade em relação à unidade, mas sim a inclui. Por outro lado, em resposta à pergunta “que é o homem?”, a Idade Média responde que o homem é um certo intermediário entre o nada e Deus: medium quid inter nihilum et Deum. Além disso, ao homem é dada uma situação peculiar: por ser feito à imagem e semelhança de Deus, o modelo exemplar segundo o qual está criado, é Deus ele mesmo (MARÍAS, 2004, p. 147). O Meister esclarece reiteradamente no Sermão 6 (Justi vivent in aeternum) que o homem não deve considerar a Deus como fora dele mesmo, mas como a si próprio e como o que está em cada um. A partir desse entendimento, Eckhart vai dizer que no homem há algo, uma centelha, que é incriada e incriável, e que “se a alma inteira fosse como tal, seria incriada e incriável: e isso é o intelecto”.8 Mas o que é a alma? Em Eckhart, como mencionamos, a ideia do homem está vinculada à imagem de que é Deus ele mesmo; Deus que está além do ser, que é um “puro nada”, e cujo caminho para ser encontrado é a própria alma.9 É a grandeza do vazio da alma, em sua pureza absoluta, que faz dele o lugar natural de
Justi vivent in aeternum. Sermão 6. Esta é uma das proposições atribuídas a Eckhart que foram condenadas na Bula In agro dominico. Esta afirmação se insere no âmbito da doutrina plotiniana sobre a presença do Uno na alma, ou melhor, sobre a permanente presença da alma no Uno, e que recorda o pensamento agostiniano de que “Deus é mais íntimo a nós do que nós mesmos” [SÁNCHEZ, Alfonso Maestre. Maestro Eckhart (1260-1327) o la “secularización” de la experiencia mística cristiana. Anales del Seminario de Historia de la Filosofia, Madrid, v. 24, p. 119-140, 2007. p. 133]. 9 O discurso eckhartiano faz uso de outras expressões, em sentido alegórico, para referirse à alma, como por exemplo, “cidadela” ou “burgozinho” (bürgelîn), encontrada no Sermão Intravit Jesus in quoddam castellum et mulier quaedam, Martha nomine, excepit illum in domum suam. Sermão 2. (ECKHART, 2006, p. 46-51). 7 8
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Deus.10 É no desenvolvimento desse argumento que o Mestre elabora sua doutrina da scintilla animae, da centelha da alma, como já foi dito acima, incriada e incriável. Na antiga questão a respeito da estrutura da alma – questão esta que no curso dos séculos, apesar de obstinadamente repetida, descreveu uma trajetória sempre interrompida, sempre recomeçada11 –, distinguem-se dois modelos de alma de significativa presença na história da espiritualidade cristã, o modelo “aristotélico-tomista” e o modelo “renano”, distintos um do outro não apenas por suas qualidades intrínsecas, mas também por sua própria constituição.12 A obra de Mestre Eckhart é considerada a primeira grande síntese doutrinal do modelo renano, o qual foi elaborado e conservado no âmbito da mística renana e flamenga a partir do século XIV (RASCHIETTI, 2004, p. 49). Eckhart abandona o modelo tomista da alma, distinguindo razão e intelecto, seguindo o princípio aristotélico segundo o qual o semelhante se conhece pelo semelhante,13 e assim fundamenta ontologicamente a possibilidade do conhecimento de Deus na alma, ou seja, a alma pode conhecer a Deus porque se assemelha a Ele: Nossos mestres dizem: A alma se chama um fogo por causa da força, do calor e do brilho que nela existe. Outros dizem que ela é uma centelha de natureza celeste. Outros dizem que ela é uma luz. Há os que dizem que ela é um espírito e outros que é um número. Como não encontramos nada tão límpido e
10 Libera afirma que na proclamação eckhartiana de que o vazio da alma é o lugar natural de Deus “se reconhece o eco da física de Aristóteles e que, escândalo dos escândalos, assimila tacitamente a ‘descida de Deus’ na alma à queda dos corpos que, como todos sabem, caem para baixo” (LIBERA, 1999, p. 308). 11 Interessante a citação de Bergamo, extraída da obra “L’anatomie de l’áme, de François de Sales à Fénelon”, transcrita por Matteo Raschietti, cuja leitura recomendamos. Bergamo situa o problema da estrutura da alma no conjunto das grandes questões discutidas ao longo do século; eis que tal reflexão, por fornecer suporte (sistema de referência) à exploração da vida interior, está intimamente ligada ao destino da espiritualidade que “as duas histórias, semelhantes a dois fios inextricáveis, são irremediavelmente presos um ao outro” (RASCHIETTI, 2004, p. 48). 12 Um detalhamento das características que distinguem os modelos “aristotélico-tomista” e “renano”, pode ser encontrado em Raschietti, 2004, p. 48-51. 13 O conhecimento acontece somente do semelhante com o semelhante” [ARISTÓTELES. Metafísica. Livro B, cap. 4, 1000b, 5. Ruscani: Milano, 1993. G. Reale (Org.)].
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puro como o número, queriam nomear a alma com algo que fosse límpido e puro. Nos anjos há número – fala-se de um anjo, dois anjos. Também na luz há número. Por isso nomeiam a alma com o que há de mais límpido e puro e, no entanto, ainda não tocam a alma até o fundo. Deus, que é sem nome – ele não tem nome –, é indizível e a alma no seu fundo é igualmente indizível como ele é indizível (ECKHART, 2006, p. 126).14
Nesse caminho do conhecimento, o Meister, adotando o modelo da alma de Avicena e afastando-se da tradição escolástica, reduz a tradicional divisão tripartida das capacidades da alma a dois tipos de conhecimento. Um tipo de conhecimento (capacidade inferior) é voltado para as coisas exteriores, subdividido em sensível e compreensivo, que se dá em comparações e em discursos, pelo qual o homem conhece o mundo material sensitiva ou racionalmente, e que, como esclarece Giachini (2006), [...] estão no mesmo nível do ser: voltados para fora, para as coisas exteriores, voltados para as pontas terminais, acabadas e mais apagadas da realidade. Seu grau de eficiência de unificação (aproximação-distanciamento) sempre só atingem resultados, produtos, efeitos, acidentes. É um conhecimento cujo “ser” está sempre remetido a e na constante dependência de seu objeto. Importante nesse tipo de conhecimento é sempre estabelecer uma medição, pois é conhecimento quantitativo […] sua vigência está atrelada à mensuração do mais e do menos, o padrão a partir do qual mede é sempre aproximativo e lhe é dado sempre de empréstimo (ECKHART, 2006, p. 20-21).
Há também um outro tipo de conhecer na alma, o conhecimento interior ou capacidade superior, uma “centelha do intelecto, que jamais se apaga”, que não é o ser da alma, apesar de se fundar “de modo intelectual no ser de nossa alma”, mas que, porém, “lança raízes nela e é algo da vida da alma”, pois o conhecimento é “algo da vida da alma”. Esse conhecimento é “sem tempo e sem espaço, sem aqui e sem agora”, e conhece sempre o todo, porque se descobre pertencente e sendo o todo: “Nessa vida todas as coisas são um, todas as coisas juntas são tudo, e tudo em tudo e totalmente
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Qui odit animam suam in hoc mundo etc. Sermão 17.
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unido” (ECKHART, 2008, p. 91).15 A teoria eckhartiana analisa profunda e reiteradamente esse tipo de capacidade, tendo por objeto o intelecto ou razão superior e o conhecimento de Deus. A partir de tal divisão das faculdades da alma, Eckhart descreve o intelecto humano com as mesmas características do intelecto divino, dotado de cinco propriedades (ECKHART, 2008, p. 56-58),16 quais sejam: deve separar-se do aqui (espaço) e agora (tempo); a nada ser igual, assim como Deus é igual a nada; ser límpido e sem mistura, posto que, semelhante à natureza de Deus, não pode suportar nem ajuntamento nem mescla; operar e procurar em si mesmo, devendo o intelecto, sempre e em toda parte, buscar interiormente, para dentro; e ser uma imagem, eis que imagem e imagem são tão plenamente um e são tão mútuas uma com a outra que ali não se pode conhecer diferença alguma. Além disso, o Meister esclarece que muitas são as forças da alma que operam de formas diversas. Há a força que ajuda o homem a digerir, ganhar peso, crescer; como o olho tem a alma junto de si, há a força que dá a ele (o olho) sutileza e delicadeza; há ainda a força com a qual a alma pensa, que representa as coisas que não são presentes, que permite ao homem conhecer tais coisas tão bem como se as visse com os olhos, e que opera no não-ser, seguindo a Deus (que também opera no não-ser) (ECKHART, 2006, p. 85-86).17 Esta última força (com a qual a alma pensa), penetra até o fundo e continua a procurar, apreendendo as coisas para além delas, apreendendo as coisas em suas circunstâncias e modos de ser, apreendendo a Deus em sua unidade e em sua solidão, em seu deserto e em seu fundo próprio. Tal força (intelectiva, cognitiva) não permite que nada a satisfaça, procurando permanentemente pelo que seja Deus em sua deidade e na propriedade de sua própria natureza, até que ocorra a maior de todas as uniões: a união entre Deus e a alma. “Quando a alma recebe um beijo da deidade, então ela está em total perfeição e bem-aventurança”, e, como incriada e incriável, a alma tocada por Deus torna-se tão nobre como Ele próprio,
Videte qualem caritatem dedit nobis pater, ut filli dei nominemur et simus. Sermão 76. Modicum et jam non videbitis me. Sermão 69. 17 Quasi stella matutina in medio nebulae et quasi luna plena in diebus suis lucet et quasi sol refulgens, sic iste refulsit in templo dei. Sermão 9. 15 16
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“por isso: onde Deus é, ali também é a alma, e onde a alma é, ali é Deus” (ECKHART, 2006, p. 85-86).18 “Podemos até pensar o calor sem o fogo e o brilho sem sol; mas Deus não pode ser pensado sem a alma nem a alma sem Deus; tão assim plenamente são eles um” (ECKHART, 2006, p. 321).19 Logo, dentro da ontologia e considerando o tema do conhecimento, o saber, para Eckhart, só é possível através de uma proximidade absoluta entre Deus e alma, que ocorre no fundo desta, no mais íntimo da alma: “Lá todas as forças da alma são igualmente nobres [...]” (ECKHART, 2006, p. 95).20 É nesse fundo, portanto, que existe a possibilidade de um autêntico conhecimento da verdade, de Deus e de todas as coisas (ECKHART, 2008. p. 200-206).21
2 O fundo da alma O fundo (grunt em alemão medieval) é reconhecido como a mais poderosa metáfora que Eckhart usa para indicar a presença em cada homem do absoluto e infinito, aquilo que transcende e identifica o humano e o divino: “Aqui o fundo de Deus é meu fundo e o meu fundo é o fundo de Deus” (ECKHART, 2008, p. 67, nota 26).22 Em sua obra, o Meister utiliza diversas expressões e imagens na tentativa de expressar esse conceito, chamando esse ponto mais íntimo da alma como “potência no espírito, sozinha e livre”, “proteção do espírito”, “luz do espírito”, “pequena centelha” (vunkelîn), “cidadela” ou “burgozinho” (burgelîn),23 ou então, nem isto nem aquilo, mas “alguma coisa mais elevada acima disto e daquilo como o céu acima da terra”.24 Encontramos ainda em Eckhart a
In diebus suis placuit deo et inventus est iustus. Sermão 10. Sermão 59. 20 In diebus suis placuit deo et inventus est iustus. Sermão 10. 21 Ubi est, qui natus est rex iudeorum? Sermão 102. 22 In hoc apparuit caritas dei in nobis. Sermão 5b. 23 As metáforas “pequena centelha” (vunkelîn) e “cidadela” ou “burgozinho” (burgelîn), segundo Paulo Borges, são utilizadas por Eckhart apenas quando se referem à natureza humana. (BORGES, 2008, p. 567-579). 24 Sermão 57 citado em Raschietti, 2004. p. 57. 18 19
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articulação do termo “fundo” com expressões típicas da mística germânica do século XIV, tais como “abismo” (abgrúnd), “deserto”, “mar”, “silêncio”, “saber sem saber” e “fundo sem fundo” (gruntlôs grunt). O termo grunt assume quatro sentidos em alemão medieval: 1) solo físico ou terra; 2) fundo de um corpo, superfície ou estrutura; 3) origem, causa, início, razão ou prova de algo; e 4) o mais íntimo e oculto de um ser, ou seja, a sua essência. É este último sentido que identificamos no discurso eckhatiano, quer quando se refere ao mais íntimo da alma, quer quando se refere às profundezas ocultas de Deus, para designar a radical unicidade desse seu fundo único. O fundo da alma coincide com o fundo de Deus e é o lugar onde, segundo o filósofo, ocorre o nascimento do logos, o encontro de Deus absolutamente separado de si mesmo e da alma. Mesmo comum a Deus e à alma, o fundo transcende-os enquanto “Deus” e “alma”, que surgem tanto distintos em si mesmos, quanto em uma relação mútua, e escapa ao tempo e ao espaço, onde tudo se faz nada: a aniquilação própria é o fundo sem fundo. Tal fórmula, afirma Esquera (2003), [...] tem por objeto indicar o absurdo de qualquer denominação de Deus. O grunt é o locus non locus onde desaparecem todas as determinações e modos de compreender a Deus segundo um algo, ou em razão de algo; a busca de Deus não tem modo ou o único modo é, segundo a tradição areopagítica, a que se acolhe o Mestre, o nada de Deus e a obscuridade da deidade incompreensível [...]. Ao mesmo tempo, buscar a Deus sem modo é fazer-se uno com o Filho e, com Ele, anular também toda mediação fazendo de Deus o conhecimento do idêntico e sem diferença. O verdadeiro fundo é, pois, sem porquê: dele nasce a vida eterna, vive do que é seu e dá sentido à ação do homem pois o priva de toda intenção (ECKHART, 2003, 191).
E é no fundo da alma que Deus pronuncia sua palavra e onde, como vimos, se dá o nascimento do logos. O intelecto é, para Eckhart, a parte suprema da alma. Embora signifique na obra do Meister um não-saber e um não-conhecer, o fundo da alma recebe mais do que todo saber e conhecer que existe em seu exterior. Em Eckhart, o conhecimento de Deus se destina essencialmente ao reconhecimento da Sua imagem no fundo da alma, onde o homem encontra sua semelhança com Ele na dessemelhança de si mesmo e de todas as criaturas. 108
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Neste ponto descortina-se a nobreza verdadeira, o fundo no qual o ser e o nada convergem como em um abismo insondável; entre o fundo da alma e o fundo de Deus não há mais distinção. Para compreensão desse “fundo”, entendemos que se deve ter em mente o sentido medieval de “espaço”, compreensão esta que clareia a experiência espiritual que fundamenta a essência do lugar como onipresença de Deus. Em especial, para Eckhart, o espaço se define como lugar de um acontecimento e não de coisas, mostrando-se como uma atividade de localizar-se na totalidade inteira e infinita de Deus. Indicando, portanto, um pertencimento dinâmico, onde se está em meio a Deus, um meio de onde surgem e para onde se destinam todas as coisas.25 E mais ainda. Deus pronuncia sua palavra neste lugar na alma, qual seja, nesse fundo sem fim, nesse fundo sem fundo, onde silenciam-se os meios, o mundo das intermediações. Silenciando as intermediações, a alma concentra-se no meio elemento de Deus. Esse trabalho da alma só é possível através de um despojamento radical, quando então a alma assimila as coisas em sua simples existência, desassociando-as de suas circunstâncias, de seus modos e mundos, vendo-as para além delas mesmas, não no sentido de ver uma outra coisa, mas, sim, ver que é e não o que é. Por esse despojamento, o homem passa a nada querer, nada saber e nada ter. Torna-se vazio de sua própria vontade, “da vontade de Deus, de todas as suas obras e até mesmo de Deus”, estando então acima de todas as criaturas, “não sendo nem ‘Deus’ nem criatura”, mas, sim, sendo antes o que era, sem tirar nem pôr, e o que permanecerá sendo, como “causa imóvel que move todas as coisas”. Nesse estado, Deus é partilhado com o homem de modo que ambos são um, “e isso é a extrema pobreza que se pode encontrar” (ECKHART, 2006. p. 291-292).26
25 Na experiência medieval, o sentido de “meio” difere inteiramente de metade, de linha divisória e média. Para o medieval, o termo “meio” é uma das experiências mais próprias e decisivas, qual seja, meio enquanto elemento, de onde surgem e para onde se destinam todas as coisas. “Pois o que faz do meio elemento é que todas as coisas que nele se encontram estão sempre reafirmando, confirmando, indicando o meio” (SCHUBACK, Marcia Sá Cavalcante. Para ler os medievais: ensaio de hermenêutica imaginativa. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 70). Nesta mesma obra, a autora apresenta um profundo estudo a respeito do significado de lugar e espaço para a religiosidade medieval, tendo por referência a obra de Mestre Eckhart (p. 50-78). 26 Beati pauperes spiritu, quoniam ipsorum est regnum caelorum. Sermão 52.
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Uma das questões fundamentais da prédica eckhartiana se refere a um fundo primeiro e incondicionado de toda a experiência possível, que antecede e transcende não só a constituição do homem e do mundo como também do próprio Deus: Quando (ainda) estava na minha causa primeira, não possuía nenhum Deus, sendo assim era a causa de mim mesmo; assim eu nada queria e nada desejava, pois era um ser vazio e um conhecer de mim mesmo no gozo da verdade. Assim eu queria a mim mesmo e nada mais. O que eu queria, isto eu era, e o que eu era, isto eu queria, estando assim vazio de Deus e de todas as coisas. Mas quando, por livre decisão da vontade, eu saí e recebi meu ser criado, tive então um Deus. Antes de as criaturas serem, Deus (ainda) não era “Deus”: Antes, ele era o que ele era. Mas, quando as criaturas se tornaram e receberam seu ser criado, Deus não era assim “Deus” em si mesmo, mas “Deus” nas criaturas (ECKHART, 2006, p. 288-289).27
Para Eckhart, portanto, todas as criaturas – e mais ainda, inclusive o “Deus” que como tal se denomina –, embora aparentem existir em si e por si, efetivamente são relativas umas às outras e ao fundo sem fundo de onde e para onde procedem, na medida em que sua existência jamais pode ser considerada propriamente um ser no mundo, mas sim um ser no e a partir desse fundo absoluto.28 Por essa razão, Eckhart roga até mesmo para que Deus o esvazie de Deus, pois seu ser essencial é acima de Deus, na medida em que Deus é concebido como a origem das criaturas.29
Beati pauperes spiritu, quoniam ipsorum est regnum caelorum. Sermão 52. A influência de Averróis em Eckhart é mostrada por Kurt Flash. Entretanto, o pregador alemão radicaliza e amplifica (ao próprio “Deus”) a “dependência” ou “não-existência do acidente” que o filósofo árabe, seguindo o pensamento de Aristóteles, transpôs para a “relação entre Deus e o mundo” (BORGES, 2008, p. 567-579). 29 Marguerite Porète, de forma semelhante, como demonstra Matteo Raschietti, “[...] ‘dispensa’ a imagem de Deus na experiência do ser Um, sem porquê, retornando à condição anterior à criação, quando não havia nenhuma determinação e a alma era nua, como o próprio Deus: ‘Tudo para ela é uma coisa só, sem porquê, e ela é nada nesse um. Então não sabe mais o que fazer de Deus quanto Deus dela. Por que? Porque Ele é e ela não é. Ela não retém nada para si mesma, pois isso é para ela o bastante, quer dizer, que Ele é e ela não é. Então ela é nua de todas as coisas, porque não tem ser, lá onde era antes do ser’ (Mirouer, cap. CXXXV)” (RASCHIETTI, Matteo. Meister Eckhart e Marguerite Porète: dois caminhos de negação radical sob um mesmo traço distintivo. Revista Internacional Interdisciplinar INTERthesis, Florianópolis, v. 7, n. 1, jan/jul. 2010. p. 300. Disponível em,http://www.periodicos.ufsc.br/ index.php/interthesis/article/view/13121>. Acesso em 05 de jun. 2011. 27 28
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Assim, a ontologia de Mestre Eckhart não trata da questão se a realidade existe ou se Deus existe, mas sim do problema de como a realidade “é” e de como Deus “não é”. A relacionalidade se apresenta como o fundamento – entendido como origem criadora – de constituição da realidade, conduzindo-a à visão de conjuntura ou de conjunturas do ser, conforme a extensão do campo visual. Nada na mística eckhartiana escapa a essa visão, e desse ponto de partida, dessa “ontologia da relacionalidade”, apreende-se todo dinamismo e movimento da realidade, e não uma permanência autônoma do real; tudo, portanto, está em permanente autorrealização, que nada mais é do que um processo constante de transformação interna.30 A partir dessa concepção de realidade, na visão do mestre dominicano, o conhecimento – inclusive o conhecimento de Deus – não deve corresponder a uma relação sujeito–objeto, mas sim é decorrente da ausência de qualquer relação. Mais ainda. O verdadeiro conhecimento de Deus, em Eckhart, é a pobreza de espírito característica do homem pobre ou do homem nobre, que, oposto ao “teólogo” (LIBERA, 1999, p. 296), é o homem dionisiano, que nada sabe de nada e não sabe sequer que vê a Deus. O homem, para Eckhart, é causa de si mesmo, e, segundo o seu ser que é eterno, o homem é não-nascido, jamais pode morrer, sendo eterno e permanecendo eternamente, na bem-aventurança do espírito. Segundo o seu devir, que é temporal, o homem é mortal, torna-se nascido, não tem contemplação nem visão de Deus e o que morre nele é aquilo que ele é segundo sua natividade: […] Por isso, sou a causa de mim mesmo, segundo meu ser que é eterno, mas não, segundo meu devir, que é temporal. E por isso sou não-nascido e, segundo o modo de meu ser não nascido, fui eternamente e sou agora e permanecerei eternamente. O que sou segundo minha natividade há de morrer e será aniquilado, pois é mortal e deve portanto corromper-se com o tempo. [...] (ECKHART, 2006, p. 291).31
30 Sobre a “ontologia da relacionalidade” recomendamos a leitura de Gilberto Gonçalves Garcia. A visão da liberdade e o olhar relacional em Mestre Eckhart: uma fenomenologia da criação segundo o pensar em Mestre Eckhart. 2007. Tese (doutorado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. 31 Beati pauperes spiritu, quoniam ipsorum est regnum caelorum. Sermão 52.
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Assim, o Meister afirma que toda perfeição humana e toda sua bemaventurança depende de o homem atravessar e ultrapassar toda criaturidade, toda temporalidade e todo Ser, vivendo onde vive o Pai, “na simplicidade e na nudez do ser” (ECKHART, 2006, p. 233),32 adentrando o fundo, que é sem fundo.
Conclusão Em Eckhart, o intelectualismo medieval se completa no pensamento do Uno, da unidade, para além e para dentro; o homem, em suas diversas concepções, seja o homem nobre, do intelecto e até mesmo o homem de Aristóteles, se realiza através do puro despojamento, em que experiencia total liberdade, abandona a condição de ser criado, nada toma ou deseja para si, nada espera de Deus e a nada se submete, perfeitamente identificado com a “palavra” e operando uma só obra com Deus. O pensamento eckhartiano é expresso a partir e dentro da dimensão da pessoa e do encontro com Deus no fundo da alma, na união identificadora desse encontro, sem tempo e sem espaço, sem “aqui” e sem “agora”, de onde se depreende o sentido do ser da unidade. Para tal unidade, o mestre dominicano esclarece ser necessário que o homem esvazie a si mesmo através do desprendimento (abgeschiedenheit33), o que, para Eckhart, tem um sentido ontológico, posto que diz respeito à essência, ao ser de Deus. Não se trata de renúncia, desapego e abnegação; nos sermões não se verifica a ideia de privação como falta de algo necessário à vida, lacuna ou vazio. Há, sim, a plenitude do ser da liberdade, a plenitude completa, a plenitude absoluta (istikeit ou isticheit), da plena soltura do ser.
Justus in perpetuum vivet et apud dominum est merces eius etc. Sermão 39. Abgeschiedenheit “pode ser traduzida por desinteresse no sentido de desligamento ou separação. Essa palavra é usada modernamente para designar ‘partida’ como, por exemplo, em relação aos que morrem. Eckhart emprega o termo para designar a mais alta virtude possível. [...]. O uso do termo vem da compreensão medieval do ser divino considerado ens separatissimus” (MARASCHIN, Jaci. O Traço e o Poema. Caminhando, vol. 7, n. 1 [9], 2002. p. 82. Disponível em: <https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/CA/ article/viewFile/1492/1515>. Acesso em: 05 jun. 2011. 32 33
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É do desprendimento que vem a pureza, simplicidade e imutabilidade de Deus, e é através do desprendimento que o homem é conduzido à pureza, da pureza à simplicidade, e da simplicidade à imutabilidade. Pelo desprendimento puro o homem tem acesso à natureza divina, essencial e constitutiva. O puro desprendimento, diferentemente das virtudes, tudo supera, posto que todas as virtudes visam à criatura e às coisas, enquanto o desprendimento está desvinculado de todas as criaturas (ECKHART, 1999 apud RASCHIETTI, 2004, p. 59). Contudo, é uma atividade racional do pensamento, que tem por finalidade principal promover a união com Deus. É assim que o Meister descreve o caminho de ascensão dos místicos e sua meta. A vida bem-aventurada ultrapassa todo pensamento e toda linguagem, pois ultrapassa todo eu. Não é necessário que haja eu, mundo e Deus. O desprendimento de todos atributos pessoais34 e a aniquilação de toda diferença representam a busca do “homem novo” citado por Eckhart em seus sermões. A ideia desse processo de desconstrução da personalidade pode ser encontrada em outras expressões similares utilizadas na linguagem eckhartiana, tais como separação, renúncia, abandono, autoestranhamento. Esse desprendimento possui uma profunda relação com o Nada (Nichts), posto que quer apenas o nada. Toca-o bem próximo, ao ponto de que não há o que se interponha entre um e outro. O desprendimento puro não é outra coisa senão assentar-se num puro nada (ECKHART, 1999 apud RASCHIETTI, 2004, p. 59), incriado e indeterminado, onde vigora a completa e perfeita “limpidez da serenidade”, onde há uma “serenidade do silêncio simples, imóvel em si mesma” (ECKHART, 2006. p. 270),35 mas que, porém, por sua própria imobilidade, todas as vidas que vivem em si mesmas são concebidas e todas as coisas são movidas. Portanto, é à medida que a alma esteja vazia que o logos pode nascer em seu fundo sem fundo. Pelo singelo contato que fizemos com o pensamento do filósofo ao longo deste artigo, não é difícil compreender os motivos pelos quais Mestre Eckhart é reconhecido como uma das personalidades mais geniais da filosofia
A expressão “atributos pessoais” é apontada como tradução do termo eigenschaft, que, segundo Largier (apud ECKHART, 2003, p. 184), deve ser compreendida em três níveis: ontológico, moral e epistemológico. 35 Sermão 48. 34
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medieval, que “nada tem desses espíritos que devem sua originalidade a uma feliz ignorância de seus predecessores” (GILSON, 2007, p. 864). Seu pensamento constitui um elemento essencial para compreensão da filosofia medieval e de sua passagem para a moderna. “Sem Eckhart seria totalmente inexplicável a origem da filosofia moderna” (ZUBIRI apud MARÍAS, 2004. p. 196). Apesar da condenação papal que algumas de suas proposições sofreram, vemos que Eckhart foi julgado pela leitura que fazia da vida – como lesemeister (mestre de leitura) e lebemeister (mestre de vida) – e que os rótulos que lhe foram atribuídos não fazem jus à dimensão religiosa do pensamento deste “místico por excelência”, em quem “Escolástica e Mística coincidem em substância” (SÁNCHEZ, 2007, p. 122). Portanto, não é de se estranhar que Libera (1999) afirme que a Idade Média de Eckhart sobreviveu à própria Idade Média, revelando-se, continuamente, diante de nós. Ela foi (e é!) o sustentáculo de grandes pensadores que o seguiram, como observamos ao constatar que a mística de Eckhart antecipou em 200 anos o poema “Ohne Warum” (“Sem Porquê”) de Angelus Silesius (1624-1677), o Mensageiro da Silésia, quando este pensa a unidade do absoluto e a tranquilidade, exclamando: Die Ros’ ist ohn’ Warum. Sie blühet, weil sie blühet. Sie acht’ nicht ihrer selbst. Fragt nicht, ob man sie siehet! A rosa é sem porquê. Floresce ao florescer. Não olha p’ra seu buquê. Nem pergunta se alguém a vê!36
36 Angelus Silesius (João Scheffer). O peregrino querubínico: descrição sensível dos quatro novíssimos. Poema número 289 (ECKHART, 2008. p. 15).
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OS DIREITOS HUMANOS A PARTIR DO PENSAMENTO FILOSÓFICO DE IGNACIO ELLACURÍA Rogério Baptistella*
Resumo O presente artigo tem como objetivo analisar os principais aspectos do pensamento filosófico de Ignacio Ellacuría no que se refere à temática dos Direitos Humanos. A investigação aqui desenvolvida limitar-se-á a analisar os traços daquela que é considerada a obra principal de Ellacuría, a saber, Filosofia de la realidad histórica. Partindo da análise das noções ellacurianas de objeto da Filosofia e conceito de história, pretende-se elencar os aspectos teóricos que melhor auxiliam na correta compreensão da categoria realidade. Trata-se de encontrar o lugar adequado para melhor indagar a realidade ou qualquer produto humano, o que equivale à adoção de uma perspectiva historicizadora. Tem-se assim as condições necessárias que permitem indagar a problemática dos direitos humanos a partir da proposta utópica ellacuriana de uma civilização da pobreza, em lugar da assim designada civilização da riqueza. Palavras-chave – Direitos humanos, realidade histórica, história, historicização, civilização da pobreza.
1 O objeto da filosofia em Ellacuría Hegel e Marx, cada um de maneira distinta, entenderam que o objeto da filosofia é um só, porque a realidade forma uma única unidade. Para estes dois filósofos, esta unidade não é meramente lógica ou conceitual: é também real. A realidade é um todo sistemático, dinâmico e dialético. Hegel interpretará o todo da realidade unificada idealmente no Absoluto. Marx, por sua vez, fará de toda realidade econômica uma única unidade real, isto é, a realidade natural e histórica forma uma única realidade (Cf. ELLACURÍA e SCANNONE, 1992, p. 66). * Professor e Coordenador do Curso de Filosofia da Faculdade Palotina – FAPAS, em Santa Maria – RS / Brasil, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNISINOS. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 117-136, jul./dez. 2011
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Conforme Ellacuría, é Hegel quem eleva a história à categoria metafísica, ao afirmar que ao ser compete intrinsecamente a historicidade e que a realidade é histórica e não é puramente biológica e natural. A história entra em cheio na Lógica, porque a marcha do logos, do ser, do espírito absoluto, são marchas históricas. A unidade profunda do espírito absoluto, com o espírito subjetivo e o espírito objetivo, situa a história no plano último da realidade e da unidade do todo (ELLACURÍA, 1990, p. 423-424).
Marx, ao contrário de Hegel, vai fazer uma leitura materialista da realidade. O que acontece na realidade e nos processos históricos não é produto do Espírito, mas, sim, produto de condições materiais tanto da natureza como da história (Cf. ELLACURÍA e SCANNONE, 1992, p. 68). Marx vai fundamentar o sujeito da história no materialismo histórico, no caráter empírico: “São os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de vida, tanto aquelas por eles já encontradas, como as produzidas por sua própria ação” (MARX, 1987, p. 26). A história é feita pelos seres humanos vivos: “O primeiro pressuposto de toda história humana é, naturalmente, a existência de indivíduos humanos vivos” – e logo a seguir acrescenta: “Produzindo seus meios de vida, os homens produzem, indiretamente, sua própria vida material” (MARX, 1987, p. 27). O Autor faz da realidade natural, social e histórica uma única unidade absoluta na realidade econômico-material. Em um artigo intitulado “El objeto de la filosofia” (1980), depois de analisar o objeto da filosofia em Hegel, Marx e Zubiri, Ellacuría, a partir deles, porém indo além desses autores, propõe a realidade histórica como objeto da filosofia (Cf. GONZÁLES, 1990 p. 984). Não simplesmente a história, mas a realidade histórica entendida como metafísica intramundana que não somente unifica e engloba toda a realidade como também é a manifestação suprema da realidade. Ellacuría entende por realidade histórica o último estágio da realidade, em que se fazem presentes todos os demais estágios da realidade. [...] o que ocorre é que essa totalidade foi se construindo de modo que há um incremento qualitativo de realidade, mas de tal forma que a realidade superior, [...] não se separa de todos os momentos anteriores do processo real [...]. A 118
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este último estágio da realidade, em que se fazem presentes todos os demais, é que chamamos realidade histórica (ELLACURÍA, 1990, p. 42-43).
É justamente por isso que Ellacuría prefere falar de realidade histórica, e não simplesmente história, porque a realidade histórica abarca todas as demais formas de realidade: material, biológica, pessoal e social. A realidade histórica, para Ellacuría, é o espaço onde não somente ocorrem as mais altas formas de realidade, mas é também o campo aberto das máximas possibilidades do real. Conforme Antonio Gonzáles, refere-se a uma filosofia da realidade histórica enquanto contempla e analisa na história todas as demais formas de realidade e demais dinamismos. É justamente na história que se atualizam as máximas possibilidades do real bem como a possibilidade de uma progressiva libertação integral da humanidade (Cf. GONZÁLES, 1990, p. 985).
2 Conceito de história em Ellacuría Os gregos entenderam a história como “história natural”, isto é, as coisas estão aí e mudam “em si”, em sua “natureza” ou sua forma física. Com o aparecimento do cristianismo começou um processo de “desnaturalização” da história, o “em si” começou dar lugar ao “para si” (Cf. GRACIA. 1979, p. 79). A história como simples prolongação da evolução é um conceito falso para Zubiri, porque a evolução é um fenômeno de mera transmissão de caracteres naturais, enquanto a história é também tradição. A história se dá por invenção, se dá por entrega de formas de vida, modos de estar na realidade (Cf. ZUBIRI, 1998, p. 202). Já a visão de história da modernidade, que surgiu com o pensamento de Herder e Kant e que encontra sua expressão máxima em Hegel e Marx, surge com desenvolvimento de algo que está já dado potencialmente na natureza do ser humano. Conforme Zubiri, a utilização dessas duas categorias aristotélicas (ato e potência) impediu que esses autores entendessem adequadamente a novidade da história ao conceberem-na como desenvolvimento de um princípio que já está dado potencialmente na natureza humana, na matéria ou na lógica da Ideia (Cf. ZUBIRI, 1989, p. 267). Esta forma de a modernidade conceber a história tem consequências sérias na compreensão dos direitos humanos. Estes seriam conteúdos da REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 117-136, jul./dez. 2011
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própria natureza ou da racionalidade que necessitam apenas passar da potência ao ato através da história. Se for assim que se lê a história dos direitos humanos como um processo linear, sem contradições: os direitos sociais não são considerados como a afirmação de um setor que se via explorado por aqueles setores que se haviam empoderado através da afirmação dos direitos liberais, nem os direitos culturais e dos povos a quem o colonialismo lhes havia negado sua dignidade. [...]. O que se acaba afirmando é o sujeito dos direitos humanos, é um ser humano abstrato, trata-se dos direitos liberais, dos direitos sociais ou dos direitos culturais, e se relega a importância da práxis e da criatividade da pessoa e comunidades concretas para compreender o avanço da história (MARTÍNEZ, 2009, p. 193).
Seguindo a esteira zubiariana, Ellacuría não nega o caráter material da história. A história surge e tem seu fundamento na natureza material. Sem natureza não poderia existir história. Mas será a história puramente natural? Segundo Ellacuría, ao reduzir a história ao aspecto puramente natural, não somente se pode cair numa materialização do homem como também numa visão fatalista da história. Por outro lado, uma visão puramente historicista pode levar a uma interpretação idealista. A história não é somente herança nem puramente evolução: é transmissão “tradente” de formas de estar na realidade. Porém, o mais característico da história é que, mais do que transmitir possibilidade, o que se transmite são capacidades para estar na realidade. A evolução acontece por mutação, já as formas de estar na realidade ocorrem por invenção, porque é necessário optar. “[...] o ato formal da história é a opção inventada, uma opção real entre alternativas reais e não uma resposta ‘estimúlica’ entre alternativas estimúlicas” (ELLACURÍA, 1990. p. 139). Para Ellacuría, o dinamismo histórico é um dinamismo de possibilitação, isto é, de atualização de possibilidades. A história assim entendida não é senão a criação sucessiva de novas possibilidades, com consequente a obliteração e marginalização de outras. A história consiste, então, sob esta ótica, em transmissão “tradente” de possibilidades: Tem assim um duplo jogo entre o que as coisas podem oferecer, desde elas mesmas, ao homem e o que o homem pode fazer saltar delas mesmas, como possibilidades. Este jogo é, em definitiva, o jogo da história: nunca se acabará 120
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de descobrir o conjunto sistemático de possibilidades que os homens e coisas são capazes de iluminar, segundo sejam as situações nas quais se relacionam coisas e homens; somente com a história concluída haverão terminado as possibilidades reais e poderá saber-se o que é de verdade a realidade humana (ELLACURÍA, 1990, p. 413-414).
A história, a partir deste ponto de vista, é um processo criativo e sempre aberto, e não predeterminado a um único fim específico. O destino da história é algo que emerge da história mesma, com suas próprias possibilidades e capacidades, sobretudo sua própria figura histórica (Cf. ELLACURÍA, 1999, p. 561). Sendo assim, para Ellacuría, a história se apresenta como um processo que não está concluído. Esta proposta sobre o dinamismo da realidade histórica e atualização da realidade em condição de possibilidade elaborada por Ellacuría questiona todos aqueles autores (Hegel, Marx, Fukuyama) que, de algum modo, formularam a filosofia da história prefixada teleologicamente. A história não pode ser entendida a partir do futuro, pois o sentido da história não está fora dela, mas, sim, nela mesma. Logo, a realidade histórica não é algo que se prediz, senão algo que se produz e se cria a partir da criatividade humana conforme um sistema de possibilidades que se oferece em cada momento da história (Cf. SAMOUR, 2001, p. 1131). Desta perspectiva, a história se apresenta “como o reino da liberdade em um processo de libertação” (ELLACURÍA, 1999, p. 419). Não obstante os condicionamentos e as necessidades naturais, as peculiaridades da história se revelam na libertação progressiva da realidade, por meio da práxis humana, mediante os dinamismos de possibilitação e capacitação. Através da práxis, o homem transcende a si mesmo, cria novas capacidades e apropria-se de forma opcional de certas possibilidades. Se a história não está fechada, mas se constrói em processo de possibilidades humanas, ela é uma tarefa da humanidade toda, sem excluir a participação pessoal. Em outras palavras, a humanidade permanece como sujeito da história. Portanto, se a práxis humana é irredutível, a tarefa de conduzir a história e a humanidade a emancipar-se e humanizar-se não pode ser um projeto de um macrossujeito, seja ele matéria ou Espírito. “Na práxis histórica, é o homem inteiro quem toma sobre seus ombros o ‘hacerse cargo’ da realidade [...]” (ELLACURÍA, 1990, p. 472). REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 117-136, jul./dez. 2011
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Neste sentido, a história não é tanto um “factum”, mas sobretudo, um “faciendum”. A verdade da realidade histórica não é o já feito, isto é, somente uma parte da realidade. É importante perceber o que se está fazendo e tomar consciência – individual e socialmente – do que está por fazer. A tese central sobre a qual se apoia a filosofia da realidade histórica de Ellacuría é justamente a de que a realidade e a verdade têm que fazer-se e descobrir-se na complexidade coletiva e sucessiva da história; portanto, uma tarefa da práxis humana. Com essa forma de conceber a história, Ellacuría rechaça colocar os direitos humanos fora da materialidade da história, evitando, assim, uma concepção idealista e abstrata deles e, ao mesmo tempo, uma compreensão para além do liberalismo.
3 A historização dos direitos humanos Na sequência da pesquisa procurar-se-á evidenciar o elemento teórico que, segundo o autor em questão, é necessário para melhor conhecer a realidade concreta. Na esteira do pensamento filosófico ellacuriano, trata-se de encontrar o lugar adequado para melhor indagar a realidade ou qualquer produto humano. Isto significa que, para conhecer uma determinada realidade, é importante adotar uma perspectiva historizadora, ou seja, situar o que se deseja conhecer em relação à práxis histórica do processo social vigente. Logo, o contexto histórico vigente é o lugar adequado para perguntar-se pela realidade dos direitos humanos. Trata-se de uma práxis de libertação que busca a historização dos direitos humanos na tentativa de evitar uma concepção abstrata e idealista dos direitos humanos bem como a sua ideologização, que nega o caráter universal desses direitos, transformando-os em privilégios de uns poucos ou de uma classe.
3.1 ‘El lugar-que-da-verdad’ dos direitos humanos Quando se aborda o problema dos direitos humanos, é importante destacar que este é um campo ambíguo, que pode ser utilizado ideologicamente por diferentes grupos de interesses (Cf. ELLACURÍA, 122
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2001, p. 433-434). Eles podem embasar tanto o discurso da direita como o da esquerda, pode ser adotado tanto pelos países desenvolvidos do Norte, como pelos países do Terceiro Mundo, podem ser adotados pelo Estado ou púlpito (Cf. DOUZINAS, prefácio à edição brasileira, 2009, p. 16). Os direitos humanos, para Ellacuría, são algo que afeta radicalmente todos os seres humanos (Cf. ELLACURÍA, 2001, p. 430), por isso mesmo esses direitos têm a pretensão de alcançar uma validade universal. Para tanto, é preciso ter claro ‘a partir de onde’, ‘o para quem’ e ‘para quê’ se proclamam os direitos humanos. Ellacuría argumenta: “[...] é a partir dos povos oprimidos e as maiorias populares, para ou em busca de sua libertação” (ELLACURÍA, 2001, p. 433). Ellacuría entende por povos oprimidos e maiorias populares: 1 - Aquelas maiorias que não conseguem satisfazer as necessidades básicas fundamentais; 2 - Aquelas maiorias que não somente levam um nível material de vida que não lhes permite um suficiente desenvolvimento humano e que não gozam de maneira equitativa dos recursos hoje disponíveis na humanidade, senão que se encontram marginalizados frente às maiorias elitistas [...]; 3 - Aquelas maiorias estão desprovidas não por leis naturais ou por dolência pessoal ou grupal, senão que por determinações sociais e históricas (ELLACURÍA, 1999, p. 204).
A pergunta fundamental para Ellacuría é: como podem essas imensas maiorias não serem solapadas de seus direitos humanos fundamentais e possam deles desfrutar? Ele assume uma postura crítica frente à teoria dos direitos humanos. Não basta saber o que são e quais são os direitos humanos à margem da existência humana. Isto requer, na perspectiva ellacuriana, que a indagação dos direitos humanos seja historicizada (Cf. SENENT, 1998, p. 50- 51). A realidade histórica se torna o lugar teórico principal em que as realidades ganham uma nova luz a partir da experiência da “realidade histórica do mal e do erro” (ELLACURÍA, 1990, p. 473). Este método implica revelar que “o devir histórico vai se desvelando e revelando à verdade da realidade” (ELLACURÍA, 1990, p. 473). O lugar epistemológico adequado para encontrar a verdade da realidade, para Ellacuría, “segundo a configuração atual da realidade, são as grandes REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 117-136, jul./dez. 2011
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maiorias populares porque nelas negativa e positivamente está a verdade da realidade” (MARTÍNEZ, 2009, p. 122). Para Ellacuría, a fundamentação teórica pelas maiorias populares e povos oprimidos se “[...] radica em que são eles e sua realidade objetiva o lugar adequado para apreciar a verdade ou a falsidade do sistema” (SAMOUR, 2006, p. 302). Esta opção epistemológica pelas maiorias populares e povos oprimidos não pode ser concebida de forma dogmática. Esta escolha requer dois momentos importantes: a) O discernimento teórico, que significa verificar a história presente de maneira crítica para detectar tanto a práxis libertadora como a dominadora; b) esta opção teórica deve ser valorada por uma opção ética que tenha como referência a negação da justiça e da liberdade. E uma valoração teórica que descobre na injustiça e na negação da liberdade um dos lugares da verdade (Cf. ELLACURÍA, 1993, p. 115. Escritos Políticos I). ‘El lugar-que-da-verdad’ é para Ellacuría o lugar da opressão, é o “povo crucificado”. A cruz, conforme Senent (1998), não tem um significado somente teológico. Primeiramente tem um significado filosófico enquanto simboliza o mal histórico e massivo e estruturalmente configurador da realidade histórica (Cf. SENENT, 1998, p. 135). Diante do “povo crucificado” recorda Jon Sobrino que filosoficamente Ellacuría reivindicava de Heidegger a seguinte formulação: “ao invés de perguntar-se por que existe antes o ente que o nada, deveria ter-se perguntado por que existe o nada – não ser, não realidade, não verdade, etc. ao invés de ente” (ELLACURÍA, apud SOBRINO, 1995, p. 17-18). A opção teórica pela cruz como o lugar a partir do qual se filosofa não comporta uma pura negatividade. “Esta eleição da cruz – argumenta Ellacuría – é paradoxal, mas este paradoxo se apresenta por um lado, como tipicamente cristão e, por outro, como princípio teórico dialético de primeira importância” (ELLACURÍA, 1993, p. 116). Com isso, Ellacuría não está afirmando que a realidade histórica seja univocamente dialética.1 Somente que muitos dos aspectos pessoais e sociais, históricos podem ser mais bem explicados a partir da perspectiva dialética. 1 Para aprofundar esta temática confira: Ellacuría, Scannone, Juan Carlos. Para una Filosofia desde America Latina. Santafé de Bogotá: Colección Universitas Philosophia, 1992, p. 78-80.
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Neste sentido, a opressão, a negação e a cruz podem dar lugar a algo positivo e criador. O autor argumenta nestes termos: O sujeito da libertação é idealmente o que é, em si mesmo, a vítima maior da dominação, o que realmente carrega a cruz da história, porque essa cruz é o escárnio, não de quem a sofre, senão de quem a impõe, e leva em si um processo de morte, que pode e deve dar lugar a uma vida distinta. A cruz é a verificação do reino do nada, do mal, que se definindo negativamente, como não realidade, é ela que aniquila e faz mais todas as coisas, mas que em razão da vítima negada pode dar lugar a uma vida nova, que tem caracteres de criação (ELLACURÍA, 1993, p. 120-121).
As maiorias populares oprimidas, “o povo crucificado”, são o reverso da história e se tornam, para Ellacuría, o lugar da verdade do processo histórico. É fundamentalmente também o lugar da construção da verdade num processo de criação de uma nova realidade histórica. É a partir deste horizonte teórico que Ellacuría “situa o problema teórico e prático dos direitos humanos desde sua historização dialética nos povos oprimidos e as maiorias populares” (Cf. SENENT, 1998, p. 139). A proposta primeira de Ellacuría não é criar uma teoria dos direitos humanos, ou ainda, contar a história do surgimento do conceito dos direitos humanos, ainda que isso seja importante. A historização dialética dos direitos humanos consiste em: a) mostrar que as maiorias oprimidas não são sujeito dos direitos humanos; b) para essas maiorias populares, esses direitos não somente não são realizados como também são negados; c) fazer com que a humanidade se torne sujeito do próprio processo de libertação (Cf. SENENT, 1998, p. 140). A negação dos direitos humanos, segundo Ellacuría, não se torna, no processo dialético de historização, uma pura negatividade. “Que a violação dos direitos humanos se proponha como fundamento e princípio dos direitos humanos e, de modo mais concreto, como motor na luta pelos mesmos” (ELLACURÍA, 2001, p. 438). Não se trata de fazer simplesmente uma denúncia cega da violação dos direitos humanos, mas de relacionar a denúncia com a utopia. A denúncia da negação a partir da utopia dos direitos humanos “anuncia um futuro melhor e fixa os modos de sua realização” (ELLACURÍA, 2001, p. 439). REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 117-136, jul./dez. 2011
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3.2 O método da historização dos conceitos2 Por que a necessidade de historizar os conceitos? Porque a historização compreende que os conceitos têm a ver não com abstrações e, sim, com a realidade concreta. Ter clareza sobre o significado dos conceitos históricos é de suma importância para descobrir o que os conceitos abstratos encobrem e que não tem correlação com a realidade (Cf. SERRANO, 1995, p. 42-43). O que são conceitos históricos? Ellacuría os define do seguinte modo: “[...] conceitos operativos, cuja verdade se pode medir em seus resultados e cujo conteúdo deve ir mudando ainda que mantendo seu conteúdo essencial” (ELLACURÍA, 1976, p. 591). Nas palavras de Serrano, isto não significa que Ellacuría negue a universalidade dos conceitos, somente que um conceito histórico é aquele que em seu conteúdo responde à realidade histórica (Cf. SERRANO, 1995, p. 42-43). Não há dúvida que o pensamento humano está condicionado por muitos fatores: pela estrutura psico-biológica, pela sua biopersonalidade, pelas possibilidades culturais, por toda classe de interesses, e não só pelos interesses de classe. Convém frisar que, apesar de o pensamento humano estar condicionado, não significa dizer que está determinado, mesmo porque todas as possibilidades e intentos de se libertar de aspectos ideologizantes são feitos a partir do pensamento mesmo (Cf. ELLACURÍA, 2001, p. 126). O intento de Ellacuría é demonstrar que a historização dos conceitos desmascara o uso abusivo de conceitos abstratos, ideologizados e a-históricos, com o interesse de grupos privilegiados da sociedade para manter o status quo. [...] as ideologias dominantes vivem de uma falácia fundamental, a de dar como conceitos históricos, como valores efetivos e operantes, como pautas de ação eficazes uns conceitos ou representações, uns valores e umas pautas de ação, que são abstratos e universais. Como abstratos e universais são admitidos por todos; aproveitando-se deles, se subsumem realidades, que, em sua efetividade histórica, são a negação do que dizem ser (ELLACURÍA, 1976, p. 591).
2 Ellacuría aborda o método da historização dos conceitos numa série de artigos nos anos 1970 e 1980. Aqui não temos a pretensão de esgotar toda riqueza deste método, senão apresentar apenas alguns traços.
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Para o autor em questão, o processo de ideologização se caracteriza por dois mecanismos fundamentais: o primeiro é o dogmatismo, cuja principal característica é transformar algo que é histórico em uma coisa natural, ou seja, “[...] fazer de algo que foi fruto de ações humanas, algo fixo e imutável, querido pela natureza, por Deus, pelo contrato social, pela maioria popular” (ELLACURÍA, 1982, p. 47). Este mecanismo dogmático significa, em outras palavras, absolutizar e eternizar aquilo que é temporal e contingente. O segundo mecanismo caracteriza-se por uma espécie de distorção idealista, que consiste em desconectar as ideias e os conceitos da realidade e da prática social. É um idealismo porque crê que são as ideias o motor da história. A razão explicaria tudo, sem necessidade de comprovação histórica. Frente às abstrações e idealizações da realidade histórica, Ellacuría propõe o método da historização como princípio fundamental de verificação histórica para demonstrar a verdade ou o que cada fato, conceito ou princípio esconde. Este método converte-se, então, em um poderoso instrumento de libertação das ideologizações da realidade e abre caminho para um processo de humanização e de libertação em contextos históricos marcados pela opressão. Se conseguirmos, portanto, historizar os conceitos, isto é, dizer o que significam e o que ocultam aqui e agora, estamos ajudando a desideologização de uma superestrutura, que realmente serve de reforço a determinadas estruturas socioeconômicas, que, de fato, causam o contrário do que dizem querer operar. (ELLACURÍA, 1976, p. 428).
Particularmente em relação aos direitos humanos, como Ellacuría aplica o método da historização dos conceitos? Trata-se de verificar na realidade concreta se os direitos humanos se realizam, ou de identificar os aspectos que os inviabilizam. a) Na verificação “práxica” da verdade-falsidade, justiça-injustiça, ajuste-desajuste que se dá do direito proclamado; b) se o direito proclamado serve para a segurança de uns poucos e deixa de ser efetivo para os demais; c) no exame das condições reais, sem as quais não há possibilidade de realidade para os propósitos intencionais; d) na desideologização das formulações idealistas que, ao invés de exercitar as mudanças substanciais, exigíveis para o cumprimento REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 117-136, jul./dez. 2011
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efetivo do direito e não somente para afirmação de sua possibilidade ou desiderabilidade, se converte em obstáculos dos mesmos; e) na introdução da dimensão tempo para poder quantificar e verificar quando as proclamações ideais podem-se converter em realidade ou alcançar, ao menos, certo grau aceitável de realização (ELLACURÍA, 2001, p. 434).
3.3 A historização dos direitos humano Os direitos humanos, para Ellacuría, devem ser analisados para além do ideal que eles anunciam e da criação de normas jurídicas nacionais ou internacionais. Trata-se, como escreve Senent, de “[...] verificá-los não a partir do que dizem senão que a partir das práticas reais dos povos” (SENENT, 1998, p. 165). O ideal anunciado pelos direitos humanos, neste sentido, não pode ser mera abstração universal, como se esses direitos fossem princípios desvinculados da realidade histórica. Ainda, conforme Senent, Ellacuría procura sanar o dualismo metafísico entre “ser e dever ser” a partir da realidade histórica, porque o ideal tem que ser entendido a partir do “dever ser”, ou seja, da práxis humana (Cf. SENENT, 1998, p. 165). A história dos direitos humanos, na busca de universalização, é marcada por contradições e ambiguidades. “É uma história do protesto contra a unilateralidade na positivação de normas referentes aos direitos humanos que, através de novas normas jurídicas, criaram novas injustiças ou fixaram antigas” (BIELEFELDT, 2005, p. 102). A universalidade dos direitos humanos facilmente pode ser instrumentalizada e cair em abstrações ideologizadas. Ellacuría menciona o caso das primeiras declarações dos direitos humanos, que, embora tivessem pretensão de universalidade, na prática se referiam a uma classe de homens. Como exemplos citem-se: Charta Magna 1215, The Bill of Rights 1689, Declaração de direitos de Virginia 1776 e declaração dos direitos do homem e do cidadão 1789, 1793 (Cf. ELLACURÍA, 2001, p. 436). Ainda que idealmente se apresentem como direitos humanos que têm pretensão de universalidade, são limitados, porque se referem a um tipo de homem determinado (homens brancos ingleses e burgueses franceses), “[...] que nem sequer atribuem esses direitos àqueles que convivem com eles (campesinos ingleses ou franceses, negros e escravos norte-americanos etc.) por mais que não se lhe negue seu caráter de humanos” (ELLACURÍA, 2001, p. 437). 128
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A luta pelo reconhecimento dos direitos humanos está marcada por lutas “liberais” que, na realidade, são logros reais e verdadeiros contra a injustiça e a dominação, porém, com o passar do tempo, o liberalismo se tornou “[...] o modelo de liberdade e o caminho para preservar, mais que para conseguir, essa liberdade (ELLACURÍA, 1993, p. 416). O enfoque liberal dos direitos humanos é limitado para o autor em questão não porque não reconhece nele as reivindicações por liberdade e igualdade, mas porque seu discurso e sua prática são insuficientes, pois se refere à liberdade e ao bem-estar de uns poucos. “Não é aceitável a liberdade de uns poucos sustentada na escravidão dos demais, nem a liberdade desses poucos sustentada na não liberdade da maioria” (ELLACURÍA, 1993, p. 418). Os direitos humanos, a partir de uma visão eurocêntrica ou dos países do primeiro mundo, aparecem como privilégios de uns poucos. Na visão ellacuriana, a historização dos direitos humanos é importante para atingir a universalização deles, porque desmascara a ambiguidade da universalidade abstrata da sua proclamação. Denuncia a mentira dos países ricos e das classes poderosas dominantes, que tratam de aparentar que neles se dá o pleno cumprimento dos direitos humanos, quando o que se dá é o desfrute de direitos nacionalistas ou classistas, mediante a negação efetiva dos direitos que competem à humanidade em seu conjunto (ELLACURÍA, 2001, p. 443).
Ellacuría adverte que, para uma reta historização dos direitos humanos, é preciso levar em conta o “para quem” e o “a partir de onde” (Cf. ELLACURÍA, 2001, p. 590). Se os direitos humanos forem historizados a partir da situação dos países do Primeiro Mundo, é preciso reconhecer que os direitos humanos encontram um grau de desfrute da maioria absoluta da população desses países. Ao contrário, se historizarmos os direitos humanos a partir do Terceiro Mundo, essa situação é totalmente oposta (Cf. SENENT, 1998, p. 172). Os países do Primeiro Mundo aparecem, a partir dessa ótica, como portadores de um “modelo histórico” de civilização a ser implantado pelos demais povos. Porém, Ellacuría estava convencido de que o modelo desenvolvimentista baseado na lógica da acumulação, em que impera “a necessidade de dominar para não ser dominado” (ELLACURÍA, 1993, p. 407) precisa ser revertido. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 117-136, jul./dez. 2011
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Rosillo Martínez argumenta que, por meio da civilização da riqueza, somente se pode dar direitos humanos plenos de forma aleatória, isto é, somente para alguns e fragmentados para outros. Isto porque a lógica da civilização da riqueza produz “[...] trabalho informal e desemprego, mãode-obra não qualificada e vulnerável, instável, e, portanto, viola direitos humanos” (MARTÍNEZ, 2009, p. 196). O mais grave, para Ellacuría, é que a oferta de emancipação e humanização que os países ricos propõem aos países do Terceiro Mundo não é universalizável, nem mesmo humana, para aqueles que a propõe. Se o comportamento e ainda o ideal de uns poucos não pode converter-se em comportamento e em realidade da maior parte da humanidade, não pode dizer-se que esse comportamento e esse ideal sejam morais e, nem sequer humanos; quanto mais, se o desfrute de uns poucos se faz à custa da privação dos demais (ELLACURÍA, 1993, p. 406).
O ideal utópico dos direitos humanos universais que o sistema hegemônico propõe como “ideal prático” apresenta elementos de falsidade, injustiça e desajustes. É um modelo que apresenta sinais evidentes de esgotamento e de fracasso. Logo, não pode continuar sendo apresentado como ideal utópico universal de humanização (Cf. SENENT, 1998, p. 184).
4 Civilizações da pobreza e direitos humanos Em um artigo intitulado El desafio de las mayorías populares, Ellacuría começa a esboçar a necessidade de “[...] reverter a história, subvertendo-a e lançando-a em outra direção” (ELLACURÍA, 1989, p. 1078). A essa “nova ordem mundial” chamou de civilização da pobreza. Conforme Ribera, onde melhor Ellacuría desenvolve esta nova proposta é em seu último artigo, escrito antes de ser assassinado, intitulado Utopia e profetismo (Cf. RIBERA, 1995, p. 164). Nesse artigo, o autor, antes de desenvolver esta nova proposta, procura situá-la, isto é, chama atenção para algo que é fundamental: o lugar e o tempo. “Não há possibilidade – afirma Ellacuría – de sair da historicidade de lugar e tempo, tampouco é inevitável permanecer fechado nos limites deste lugar e tempo” (ELLACURÍA, 1993, p. 393). 130
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O lugar de onde parte esta proposta é o hemisfério sul e, mais especificamente, a América Latina. O tempo ou momento histórico em que Ellacuría desenvolve esta proposta compreende os anos 1982 a 1989. Ribera afirma que El Salvador vivia nesse período um tempo de guerra e crise. Em âmbito internacional havia grande insegurança e angústia, tanto por parte dos governos como das populações, frente às ameaças de guerra entre as potências mundiais bem como ameaças ecológicas e aumento vertiginoso da pobreza nos países do Terceiro Mundo, entre outros problemas (Cf. RIBERA, 1995, p. 165). A principal tese que Ellacuría sustenta para optar por uma nova ordem econômica, pela civilização da pobreza, é: [...] rechaçar a acumulação do capital como motor da história e a posse – desfrute da riqueza como princípio de humanização, e fazer da satisfação universal das necessidades básicas o princípio do desenvolvimento e de uma maior solidariedade compartilhada o fundamento da humanização (ELLACURÍA, 1993, p. 426).
É preciso desfazer possíveis equívocos, tarefa que o próprio Ellacuría trata de assumir ao frisar que civilização da pobreza não significa pauperização universal, senão um modelo que se contraponha à civilização do capital– acúmulo. Tampouco significa “[...] aniquilação prévia nem criação de um mundo a partir do nada” (ELLACURÍA, 1993, p. 414). Nas palavras de Senent, Ellacuría não queria fazer terra rasa com o modelo civilizatório ocidental, mas reorientar o atual modelo para que seja verdadeiramente universal (Cf. SENENT, 1998, p. 184). Para Martínez, a civilização da pobreza busca proporcionar maneiras diversificadas de vida para satisfazer as necessidades básicas da humanidade e que, sobretudo, sejam compatíveis com os problemas ecológicos do planeta (Cf. MARTÍNEZ, 2009, p. 197). A proposta ellacuriana também não se confunde com a proposta da Ética do Discurso, de Apel, embora Apel e Ellacuría façam observações semelhantes ao constatar que a forma de vida ocidental não é universalizável. Para o autor da Ética do Discurso, os pobres não deveriam imitar a forma de vida da Europa e dos Estados Unidos, mas buscar um caminho independente de humanização, sem colocar em risco a vida do planeta. Ellacuría, por REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 117-136, jul./dez. 2011
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sua vez, entende que o problema está no modelo de vida ocidental, e não simplesmente no fato de os povos pobres quererem imitar tal modelo. Não se trata tanto de os povos pobres mudar suas pretensões, mas juntos, ricos e pobres, criar uma nova civilização, em que haja vida para todos (Cf. GONZÁLES, 1997, p. 419). Na perspectiva da civilização da pobreza, os direitos humanos não são somente processos normativos, como defendem as correntes liberais, são também elementos de uma práxis humana que buscam reverter os processos econômicos, políticos e culturais a partir das maiorias oprimidas. Após o colapso do comunismo, a história universal da humanidade ruma em uma única direção: a democracia liberal. É o capitalismo liberal o destino da história? Fukuyama responde: “Mal podemos imaginar um mundo radicalmente melhor do que o nosso ou um futuro que não seja essencialmente capitalista e democrático [...] não podemos visualizar um mundo essencialmente diferente do atual e ao mesmo tempo melhor” (FUKUYAMA, 1992, p. 77). Para os pragmáticos liberais, não há mais espaço para utopias, ideologias e críticas. Quando os apologistas do pragmatismo proclamam o fim da ideologia, da história ou da utopia, eles não assinalam o triunfo dos direitos humanos; ao contrário, eles colocam um fim nos direitos humanos. O fim dos direitos humanos chega quando eles perdem o seu fim utópico (DOUZINAS, 2009, p. 384).
A filosofia da realidade histórica entendida como apropriação de possibilidade nos ajuda a entender que a história não chegou ao seu fim, como argumenta Fukuyama. Para Ellacuría, a realidade histórica, dinâmica e concretamente considerada tem um caráter de práxis, portanto é um processo inacabado. Pensar os direitos humanos a partir da realidade histórica significa pensálos a partir de sua realidade utópica. A utopia na qual se ancora o pensamento de Ellacuría não é o modelo clássico de utopia, mas tem os matizes da visão blochiana de ideal utópico. Os direitos humanos [...], eles constituem o elemento utópico por de trás dos direitos legais. Entretanto, ao contrário das utopias clássicas, eles não extraem 132
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sua força de uma perfeição futura prevista e descrita, mas da dor e do desprezo sentido por cidadãos dos Estados que proclamam seu triunfo. Os direitos humanos representam a necessária e impossível reivindicação da lei à justiça. Eles extraem sua força do sofrimento do passado e das injustiças do presente [...] (DOUZINAS, 2009, p. 383).
Situar os direitos humanos em um horizonte utópico no sentido acima mencionado significa rechaçar todo tipo de utopismo que, ao longo da história, se mostraram totalitários, sejam eles estatais ou de mercado. Neste sentido, a proposta de uma civilização da pobreza representa o caráter utópico, “um começar de novo”, a partir das maiorias oprimidas. “Uma utopia que seja universalizável historicamente [...] onde os pobres tenham um lugar determinante (ELLACURÍA, 1993, p. 414). Os direitos humanos a partir da realidade histórica e da civilização da pobreza representam, para Ellacuría, um processo inacabado no qual podem dar-se novos direitos e novas interpretações. “Os direitos humanos são ideais utópicos que apresentam alguns indivíduos, grupos ou povos, como motores de uma permanente humanização do indivíduo e da humanidade” (ELLACURÍA, 2001, p. 432). Os direitos aparecem então como aspirações das maiorias oprimidas que buscam atualizá-los historicamente num processo de reivindicação de dignidade permanente. Martínez esclarece que compreender os direitos humanos, [...] como ideal utópico possibilita, então, que não se convertam em um discurso hegemônico que impeça e anule os processos de libertação, senão que, ao contrário: sejam momentos ideológicos que facilitem a construção de práticas sociais e históricas que permitam ao ser humano viver o máximo de sua dignidade (MARTÍNEZ, 2009, p. 151-152).
Os direitos humanos, na visão filosófica ellacuriana, não são potencialidades dadas desde sempre na natureza do ser humano, são, sim, produtos da práxis humana que possibilitam o ser humano apropriar-se, num determinado momento histórico, de possibilidades para “[...] hacerse cargo de la realidad”. Neste sentido, os direitos humanos são, para Ellacuria, “[...] produto histórico, resultado de uma práxis histórica determinada” (ELLACURÍA, 2001, p. 432). REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 117-136, jul./dez. 2011
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Conceber os direitos humanos como práxis libertadora é de suma importância para Ellacuría, pois a história não está definida, mas aberta ao ideal utópico de civilização e de humanidade. A utopia dos direitos humanos e a civilização da pobreza se tornam o motor que impulsiona as maiorias oprimidas num processo permanente de humanização.
Considerações finais O conceito de história é fundamental para Ellacuría, pois permite repensar os direitos humanos principalmente para compreendê-los como produtos históricos e seu pretendido caráter universal. A fundamentação dos direitos humanos não é meramente abstrata e a-histórica; não visa somente a uma “essência universal” dos direitos. A universalidade ideal dos direitos humanos, para Ellacuría, deve ser seguida por uma universalidade histórica e dinâmica. Ellacuría rechaça colocar os direitos humanos fora da materialidade da história, evitando assim uma concepção idealista e abstrata deles e, ao mesmo tempo, uma compreensão para além do liberalismo da modernidade. Os direitos humanos sob a perspectiva da realidade histórica não estão “enclausurados” numa perspectiva jus-naturalista ou jus-positivista, nem mesmo a um discurso estatal. São elementos ideológicos de uma práxis humana. Logo, é algo que se adquire como possibilidade, através de um processo de realização em que os povos são sujeitos desses direitos através de lutas políticas, sociais e jurídicas. No entanto, não basta, para Ellacuría, uma nova visão de história para que os direitos alcancem a universalidade pretendida. A universalização dos direitos humanos não se realiza a partir do atual modelo histórico da civilização do capital. Frente à civilização da riqueza-acúmulo, Ellacuría propõe uma nova civilização, um novo projeto global que seja universalizável, em virtude do qual possa haver possibilidades de vida e humanização para todos. Os direitos aparecem então como aspirações das maiorias oprimidas, que buscam atualizá-los historicamente num processo de reivindicação de dignidade permanente. Enquanto a “nova civilização” não chega, os direitos humanos seguem sendo o motor, a instância ética maior, o elemento crítico e utópico da humanidade. 134
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HUMAN RIGHTS FROM IGNACIO ELLACURÍA’S PHILOSOPHICAL THOUGHT. Abstarct The present article aims to analyze the main aspects of Ignacio Ellacuría’s philosophical thought, in what concerns the thematic of Human Rights. The investigation here developed will limit itself to analyzing the traits of the one which is considered the main work of Ellacuría, namely, the Philosophy of the historical reality. Starting from the analysis of the ellacurian notions of object of the Philosophy and concept of history, it is intended to list the theoretical aspects that better help in the correct comprehension of the category of reality. It is discussed to find the adequate place to better investigate the reality or any human product, what is equivalent to the adoption of a historicizating perspective. Thus there are the necessary conditions which permit to investigate the problematic of Human Rights from the utopian ellacurian proposal of a civilization of poverty, instead of the so-called civilization of wealth. Key words – Human Rights; historical reality; history; historicization; civilization of poverty.
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A POSSIBILIDADE DE UMA FENOMENOLOGIA DO SAGRADO EM RUDOLF OTTO Edson Kretle dos Santos*
Resumo Este artigo visa encontrar nos escritos do pensador Rudolf Otto certas características para mostrar que existe a possibilidade de uma fenomenologia do sagrado nas obras desse filósofo da religião. No primeiro momento, faremos uma introdução dos principais conceitos de Husserl. Feito isso, prosseguiremos na compreensão do conceito do Lebenswelt husserliano, para, depois, apontarmos sua relação com a questão religiosa. Em seguida, apontaremos a fenomenologia da religião como elemento essencial para o entendimento do fenômeno religioso no mundo contemporâneo. E, por fim, indicaremos os traços implícitos da fenomenologia que se fazem presentes nas investigações de Otto. Portanto, é para analisar a relação de Otto com a fenomenologia de Husserl que se redige as seguintes laudas. Palavras-chave: Sagrado, fenomenologia, irracional, experiência, religião.
Introdução Edmund Husserl nasceu na Morávia no ano de 1859 (região que em seu tempo pertencia ao império austro-húngaro), estudou matemática nas Universidades de Leipzig, Berlim e Viena, e nesta última doutorou-se em matemática. Franz Brentano foi o principal responsável para o início da carreira filosófica de Husserl. Em 1938, Husserl veio a falecer, a tempo de não acabar em um campo de extermínio nazista. Husserl resgata o termo fenomenologia, que, etimologicamente, significa “teoria dos fenômenos”. Porém, aqui ocorre uma modificação no uso desse termo, que agora pretende mostrar a significação de tudo o que está presente
* Licenciado em Filosofia pela Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo. Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professor da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 137-152, jul./dez. 2011
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na consciência. Por isso, “a fenomenologia não se detém, por princípio, num linguajar vago, em generalidades obscuras, ela exige clarificação. Análise e descrição sistemáticas precisas, que penetrem nos nexos eidéticos e até nas particularizações últimas deles: ela exige trabalho concludente” (HUSSERL, 2006, p. 333). O que interessa não é o simples aparecer do fenômeno, mas o sentido de ser desse surgimento, pois o sentido e o ser do fenômeno são inseparáveis, superando-se, assim, a distinção kantiana entre coisa-em-si e fenômeno. Outro conceito elementar para uma compreensão basilar do que é fenomenologia é a intencionalidade. Esse termo, em Husserl, indica que “toda consciência é consciência de algo”. Nesse ponto é estabelecida uma crítica de Husserl a toda a herança do pensamento egocêntrico de cunho cartesiano. Para Descartes, temos apenas o cogito ou “eu penso”. Nessa forma de compreensão, a consciência é vista como algo fechado em si mesmo. Assim, alcançamos o mundo “fora” através de um processo de inferências, pelas quais percebemos que nossas ideias devem ser causadas por alguma coisa “fora de nós”, com isso temos a possibilidade de construir hipóteses ou modelos como as coisas devem ser sem termos contato direto com elas. Husserl faz um aprofundamento na compreensão cartesiana acerca do cogito. Para ele, quem pensa, pensa em algo ou em alguma coisa, portanto, torna-se evidente que a consciência e o objeto são correlatos, pois acontece um caminho de ida em relação ao objeto e de um retorno com sentido. A fenomenologia, rompe, dessa forma, com a maneira egocêntrica de conceber o mundo e nos mostra a consciência em sua publicidade, e não apenas dentro de seus limites internos. Husserl via a atitude fenomenológica não como uma doutrina filosófica, mas como um método rigoroso e com fortes critérios para descrever as relações entre os homens e desses com o mundo que os circunda. Diante do colapso em que se encontrava a ciência positivista, Husserl propôs a “volta às coisas mesmas”, a suspensão ou abstenção de emitir qualquer juízo precipitado, retomando o conceito de “epoché”, colocando-se entre parênteses o mundo, até atingir a dimensão eidética dos fenômenos. Por isso, a “[...] epoché exige a eliminação de suposições, elevando o conhecimento acima de toda possível dúvida” (MOUSTAKAS, 1994, p. 26). Para assegurar ainda mais a apodicidade do conhecimento, Husserl nos indica que é preciso “colocarmos ‘entre parênteses’ as teses efetuadas, e ‘não compartilhamos dessas teses’ para fazer novas investigações [...]” (HUSSERL, 2006, p. 118). 138
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Somente por essa via chega-se ao contato imediato com as coisas que se apresentam de forma evidente e originária na consciência. Assim, o método fenomenológico tornou-se um elemento imprescindível na busca do sentido que é dado aos valores, objetos, relações e costumes dos povos. E é nesse universo da subjetividade, imerso numa pluralidade de experiências do sagrado e nas diversas formas de religiões, que esse método torna-se um grande auxílio de análise do fenômeno religioso, sem preconceitos ideológicos, morais, sociais ou culturais. Sendo assim, [....] A fenomenologia é uma disciplina puramente descritiva, que investiga todo o campo da consciência transcendental pura na intuição pura. Com isso, chegamos ao mesmo tempo ao conhecimento explícito de que uma fenomenologia descritiva é, por princípio, independente de todas essas disciplinas. Tal constatação não é sem importância para aferir filosoficamente o valor da fenomenologia e, por isso, cabe aproveitar esta ocasião para chamar desde já a atenção para ela (HUSSERL, 2006, p. 136).
1 O conceito de Lebenswelt em Husserl Atualmente, nos meios acadêmicos, o conceito de Lebenswelt (mundoda-vida), formulado por Edmund Husserl, é um dos marcos referenciais no estudo da filosofia e igualmente em outras áreas do conhecimento. Tal conceito foi, mais tarde, também utilizado por Martin Heidegger em seu famoso livro Ser e tempo, no qual tematiza o ser-no-mundo (In-der-Welt-sein) do Dasein. Gadamer, na obra Verdade e método, reconhece o valor do mundoda-vida como uma resposta ao mundo da racionalidade técnico-científica. Jürgen Habermas o tomará conceito fundamental de sua proposta do agir comunicativo. Também Alfred Schütz retoma a noção de mundo da vida com o intuito de formular uma compreensão das diferentes formas de ação social de determinado cotidiano. Embora o conceito de Lebenswelt apareça explicitamente na obra Die Krisis, ele já está presente nas reflexões de Husserl desde os trabalhos em que este tece uma crítica ao psicologismo, como também nas Investigações lógicas. A problemática do mundo-da-vida torna-se questão fundamental na reflexão filosófica de Husserl no ano de 1936, em sua obra A crise das ciências REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 137-152, jul./dez. 2011
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europeias e a fenomenologia transcendental (Die Krisis). Husserl percebeu a necessidade de criar um método no qual o mundo-da-vida fosse levado em consideração, pois o que ele presenciava era o “fracasso” ou a crise das ciências e da própria racionalidade moderna, não obstante ter sido justamente a pretensão objetivista das ciências encobrir a ideia do mundo-da-vida centrado na subjetividade concreta. O método fenomenológico, ao rejeitar a pretensão de qualquer verdade absoluta, delineia a investigação à consideração da pluralidade e relatividade do momento existencial. E o faz contrariando as ciências positivistas, que entraram em crise por causa da arrogante pretensão de neutralidade científica e por se afastarem do mundo da vida, momento crucial e universal de todas as experiências (Lebenswelt), anterior a qualquer prática ou hipótese científica. Podemos dizer até “[...] que as ciências matemáticas têm suas origens no mundo do vivido. Elas são fundadas no mundo-da-vida. As ciências exatas são uma transformação da experiência que temos diretamente das coisas no mundo” (SOKOLOWSKI, 2004, p. 158). O acesso ao ego transcendental é alcançado pelo indispensável “retorno às coisas mesmas”, por meio de uma intuição originária, vista por Husserl como origem do verdadeiro conhecimento. Seu método não deseja partir de uma “filosofia elaborada nos gabinetes”, que consideram apenas as opiniões dos pensadores e cientistas, sem levar em consideração os problemas cruciais do dia-a-dia. O que Husserl ambiciona é atingir a essência das coisas, que não pode ser confundida com a antiga noção de essência do período medieval. Sua compreensão é que, diante dos vários fatos, é preciso, e possível, intuir aquele aspecto que os torna semelhantes. Em contraposição ao positivismo científico “formular racional ou cientificamente juízos sobre coisas significa, porém, orientar-se pelas coisas mesmas, isto é, voltar dos discursos e opiniões às coisas mesmas, interrogá-las na doação originária de si e pôr de lado todos os preconceitos estranhos a elas” (HUSSERL, 2006, p. 61). O acesso ao mundo é dado pela experiência, numa compreensão, por sua vez, diferente do que entendemos por experiência científica. O Lebenswelt é um modo de conhecer a realidade. Nesse sentido, Husserl utiliza o termo alemão Erlebnis para distinguir sua noção de experiência. O termo Erlebnis como experiência não se refere ao seu uso do século XVIII, referindo-se às ciências exatas que elaboravam suas leis observando a repetição dos fatos. Quando falamos Erlebnis, demonstramos que um determinado 140
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acontecimento ou evento é experimentado ou vivido por uma subjetividade. Uma vez que, para Husserl, “o vivido efetivamente vivido a cada momento se dá como efetivamente vivido, como sendo ‘agora’; mas não apenas isso, ele se dá também como tendo sido há pouco, e porque não era notado, ele se dá justamente como tal, como tendo sido, mas de maneira irrefletida” (HUSSERL, 2006, p. 61). Muitos críticos positivistas afirmariam que tal experiência não possui valor algum, já que está situada na subjetividade humana e não nos critérios objetivos da ciência experimental. Mas a contemporaneidade é marcada pela crítica ao reducionismo e pela atitude arrogante das ciências, o que motiva as ciências humanas à busca de uma análise do vivido, em que o ser humano constrói o sentido do seu próprio existir.
2 O Lebenswelt e a temática religiosa A questão religiosa, embora não seja algo sistematizado, é também um tema que o próprio Husserl abordou em suas investigações filosóficas por meio de pequenas notas ou alguns comentários encontrados ao longo de suas obras. Podemos encontrar nomes de alguns pensadores que se encarregariam de aprofundar o assunto religioso, tais como: M. Heidegger, M. Scheler, E. Stein e Rudolf Otto. Em todos esses autores, percebemos certo grau de envolvimento nas discussões acerca da religião. A especulação filosófica do religioso é de extrema importância, uma vez que a religião ocupa um lugar basilar na vida de todas as sociedades e etnias e exerce uma grande influência sobre a conduta prática. Rudolf Otto nos mostra que, quando a religião se institucionalizou e formulou conceitos claros sobre o sagrado, ocorreu um esfriamento da experiência religiosa do sujeito, e a religião ficou destinada apenas ao cumprimento de uma obrigação moral. Para ele, “o mito sistematizado, tanto quanto a escolástica elaborada, são achatamentos do processo religioso básico, que, ao mesmo tempo em que o achatam, acabam por expulsá-lo” (OTTO, 2007, p. 59). Da mesma forma que as ciências se afastaram do mundo-da-vida, não poderíamos nos perguntar se o mesmo não teria acontecido na religião cristã ocidental? O cristianismo também não teria se afastado daquele evento REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 137-152, jul./dez. 2011
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originário que nutriu a experiência religiosa das primeiras comunidades? Em sintonia com as críticas ottonianas, podemos averiguar características semelhantes na reforma protestante do século XVI. O mundo-da-vida em conexão com a experiência religiosa nos convida a suspender nossos juízos que dizem respeito ao conteúdo da experiência que as pessoas fazem em suas específicas formas de religião. Nesse âmbito de abordagem fenomenológica não se admite julgar práticas religiosas como supersticiosas ou irracionais. O que interessa é compreender a realidade religiosa do cotidiano como um fato que é vivenciado subjetivamente pelos homens, pois são eles que, inseridos numa determinada coletividade, imprimem sentido a tal experiência, uma vez que esta se insere no mundo que os circunda. É necessário ressaltar que a experiência religiosa situada no mundoda-vida não se baseia na compreensão individualista que a modernidade estabeleceu no quesito experiência religiosa. O mundo-da-vida não é um mundo somente subjetivo. É coletivo. A experiência religiosa situada no contexto do Lebenswelt é sempre uma experiência intersubjetiva. Uma relação recíproca ou um “viver junto com” (Zusammenleben), entre indivíduo e coletividade, tornando tal, vivência uma experiência histórica, uma vez que está ancorada em relações intersubjetivas. Não estamos diante de uma experiência somente individual no interior do sujeito. Muito pelo contrário, estamos diante de um universo social e cultural, dentro do qual vivemos e estamos incluídos, porque [...] Tudo aquilo que vale para mim mesmo, vale também, como sei, para todos os outros seres humanos que encontro no mundo que me circunda. Ao ter experiência deles como seres humanos, eu os entendo e aceito como eus-sujeitos, assim eu mesmo sou um [...] nós nos entendemos com nossos próximos e estabelecemos em conjunto uma realidade espaço-temporal objetiva como mundo que nos circunda, que está para todos aí, e do qual, no entanto, nós mesmos fazemos parte (HUSSERL, 2006, p. 76-77).
A tentativa de buscar explicações plausíveis para essas vivências é uma empreitada difícil, pois elas não se submetem à lógica das elucidações científicas. Portanto, a análise do Lebenswelt nos possibilita entender a experiência religiosa em si mesma, sem pré-conceitos ou pré-juízos. 142
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Em Husserl, a experiência cotidiana e vivencial da religião faz referência aos atos próprios da consciência humana como recordação, imaginação, pensamento e percepção. Eles são atos constitutivos da consciência que formam a experiência religiosa como ações interiores do sujeito. Podemos dizer que essas funções da consciência não se referem somente às práticas externas, como o culto, mas englobam, principalmente, atos imaginativos, recordativos, desejos e sonhos. Como vimos, a experiência vivencial da religião é constituída intersubjetivamente, sendo a linguagem o meio mais apropriado para conectar esta relação. Aqui, os símbolos adquirem caráter fundamental na experiência da realidade transcendente, remetendo essa experiência para o âmbito do mistério. Mas como essa experiência de algo misterioso pode ser comunicada? O que se comunica nesse âmbito são os anseios e a realidade de algo vivido por uma determinada comunidade de crentes. E isso torna a linguagem religiosa portadora de símbolos relacionais e universais. Nesse sentido, temos as hierofanias,1 os sonhos, as profecias e os hinos como manifestações simbólicas nos processos linguísticos que constatamos na experiência religiosa. Assim sendo, situar a religião no mundo-da-vida nos possibilita compreendê-la como experiência vivencial bem diferente das visões apenas institucionais. Se abordamos a temática da religião do mesmo modo que nos apresentam algumas instituições religiosas, permaneceremos distantes do mundo-da-vida. É no campo do Lebenswelt que a religião emerge e se nutre, e, quando dele nos afastamos, corremos o sério risco de tornar tal experiência apenas cumprimento de preceitos morais.
1 Termo de origem grega (hieros) sagrado (faneia) manifestação. Com isso pode-se traduzir por manifestação do sagrado. Segundo Croatto, “[...] na hierofania, pode-se diferenciar três elementos: uma criatura (por exemplo, uma árvore), a Realidade invisível e aquela mesma criatura que, por ser mediadora, reveste-se de sacralidade. [...] na hierofania, haveria, então, um elemento profano (um objeto qualquer deste mundo), um divino (a Realidade transcendente) e outro sagrado, aquele objeto enquanto revelador de uma presença invisível e transcendente” (CROATTO, 2001, p. 59).
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3 A fenomenologia e sua aplicação na questão religiosa Mostramos nas páginas anteriores a fenomenologia como um grande suporte para a investigação filosófica no mundo hodierno. O avanço e o reconhecimento desse método possibilitaram o seu uso nos mais diversos ramos dos saberes. Na investigação acerca das religiões, o procedimento fenomenológico favoreceu uma melhor compreensão da experiência humana do divino. Devido a isso, no século XX, a fenomenologia da religião iniciou sua estruturação como disciplina autônoma. A fenomenologia não pretende abordar a religião como algo em si mesmo, mas visa compreender a essência ou, na linguagem fenomenológica, o eidos2 do fato religioso. Segundo Richard Schaeffler, podemos dizer que a fenomenologia surge mostrando que [...] na abordagem da fenomenologia filosófica, os representantes das ciências empíricas da religião puderam reconhecer o seu próprio problema metodológico. O que ficava fora do alcance do procedimento da abstração, isto é, da extração de características singulares, a partir de um complexo, deveria tornar-se possível para o olhar educado na fenomenologia; nos fenômenos religiosos individuais, por exemplo, nas orações, sacrifícios, formas de comunidade religiosa, etc., apreender a lei estrutural que torna possível reconhecer, também nas outras religiões, expressões linguísticas comparáveis como orações, ações rituais equiparáveis como sacrifício, formas de organização análogas como fundação de comunidades, etc.” (SCHAEFFLER, 1983, p. 78).
Com isso, poderíamos então dizer que “[...] a fenomenologia da religião pretende ser uma tal fenomenologia religiosa. Daí, indagar o ato religioso sob o ponto de vista da sua intencionalidade particularmente estruturada” (SCHAEFFLER, 1983, p. 101). Diante das diversas manifestações religiosas, sempre existe a possibilidade de detectarmos a presença de estruturas que, embora possam sofrer certas variações, no fundo se assemelham a quase todas as experiências religiosas,
Conceito esse que “[...] é usado na filosofia contemporânea especialmente por Husserl para indicar a essência que se torna evidente mediante a redução fenomenológica” (ABBGNANO, 1962, p. 290). 2
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uma vez que, comparadas as numerosas formas de religiões, constata-se que, todos esses eventos supõem arcabouços mais ou menos idênticos e também frequentes, que encontramos no decorrer da história. Portanto, “uma fenomenologia da religião não pode, deste modo, contentar-se com investigar a dialética da manifestação no universal, mas tem de realçar a estrutura específica da dialética das hierofanias” (SCHAEFFLER, 2006, p. 92). Isso faz com que a fenomenologia passe a existir como um modo mediante o qual chegamos às supracitadas estruturas e pelo qual podemos nos desvencilhar das coisas que nos impedem de captarmos a essência do fenômeno religioso. Somente após a consideração dessas inúmeras manifestações é que devemos iniciar a tentativa de compreensão do elemento religioso. Foi esse modo peculiar de abordagem que levou e leva a fenomenologia a realizar uma reviravolta nas tradicionais perspectivas de apreciação do sagrado e que a torna um dos fundamentos necessários de compreensão do humano.3 A fenomenologia da religião, portanto, é esse estudo sistemático do acontecimento religioso em suas manifestações e expressões sensíveis, ou seja, uma descrição do comportamento humano frente ao sagrado, com o intuito de apreender o significado profundo do acontecer religioso. Podemos sintetizar a fenomenologia da religião como: “[...] 1) o sentido das expressões religiosas no seu contexto específico; 2) sua estrutura e coerência (sua morfologia); 3) sua dinâmica (desenvolvimento, afirmação, divisões etc.)” (CROATTO, 2001, p. 27). Entre os grandes colaboradores do progresso desse método na esfera religiosa destacaram-se Gerardus Van der Leew, como sistematizador, Schleirmacher e Rudolf Otto com suas contribuições. É a relação deste último pensador com a fenomenologia e sua análise do sagrado que iremos abordar.
Com isso não pretendemos afirmar a supremacia da fenomenologia da religião. As ciências humanas e sociais contribuem com seu modo de acesso ao religioso com a aplicação de suas metodologias específicas. Por isso, a história da religião, a sociologia da religião, a psicologia da religião, a filosofia da religião, a teologia das religiões também fornecem conhecimentos indispensáveis para a ampliação do saber acerca da religião. Apenas visamos mostrar que a fenomenologia da religião enriquece e amplia essas outras áreas de conhecimento em se tratando do evento religioso. 3
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4 A possibilidade de uma fenomenologia do Sagrado em Rudolf Otto4 Quando docente da Universidade de Göttingen, entre os anos de 1901 e 1907, Otto foi colega do fundador da fenomenologia, Edmund Husserl, na época em que este publicou as Investigações lógicas. “[...] Este dado biográfico é importante, pois queremos mostrar que Otto utiliza veladamente a fenomenologia, embora em sua obra não faça nenhuma referência ao método”(BIRCK, 1993, p. 9). Mesmo sendo fato a convivência entre Otto e Husserl, isso não nos permite afirmar com exatidão que Otto tenha tido contato com a então nascente fenomenologia. Todavia, ao nos depararmos com seus escritos, detectamos claros indícios da aplicação do método fenomenológico. São explícitas as influências que Kant exerce sobre Otto. Este, no desenvolver de seus escritos, utiliza muitos conceitos próprios daquele filósofo. Termos como categorias, entendimento a priori, esquemas aparecem várias vezes, mas, mesmo assim, é possível perceber nos escritos de Otto traços de uma aplicação fenomenológica na investigação acerca das religiões. Assim, temos a evidência de que “o livro de Rudolph Otto, O sagrado, só contém asserções teóricas muito escassas sobre o conceito ‘fenomenologia da religião’, mas vigora até hoje como exemplo característico de uma abordagem fenomenológica da consciência religiosa e dos seus objetos” (SCHAEFFLER, 1983, p. 76). A tese central da mais célebre obra de Otto, O sagrado, já se encontra em seu subtítulo: “os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional”. Vemos que a intenção de Otto é mostrar que o conteúdo originário da experiência religiosa não pode ser jamais abarcado pelas elucidações totalizantes da razão. A religião surge de um sentimento que está para além do âmbito meramente racional. O autor busca compreender o sentido procedente do sagrado e para isso remonta às experiências vivenciais que estão na base de uma determinada cosmovisão religiosa. A experiência do sagrado rompe com as realidades ordinárias, ocorrendo uma cisão com a homogeneidade do real. Isso leva o ser humano a experimentar algo novo em seu existir, emergindo, desse modo, algo totalmente estranho 4 Titulo originariamente utilizado por, Bruno Odélio Birck. A possibilidade de uma fenomenologia hermenêutica do sagrado a partir de Paul Ricoeur e Rudolf Otto. Tese de doutorado. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2003.
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em relação àquilo que habitualmente nos acostumamos a presenciar. Desse modo, somos remetidos a um estado existencial que difere muito de nossos simples hábitos. Isso nos possibilita afirmar que a experiência numinosa é, por excelência, portadora de uma grande peculiaridade, pois proporciona um sentimento que nos desconcerta, que nos deixa “sem chão” e, por tal motivo, é tão diferente das demais coisas que experimentamos no nosso dia-a-dia. Para Otto, quando o ser humano faz uma experiência de algo que considera sagrado, nessa situação aparecem o racional e o não racional. Por racional, nessa experiência, entende-se aquilo que pode ser conhecido, ou conceituado pela razão humana, ou seja, podem ser identificadas as características predicativas do sagrado. Já por não racional entende-se o que não se pode conceituar, é o elemento que foge à racionalidade, pois o numinoso5 é, por excelência, indefinível. E isso está “[...] provando que Deus é incompreensível em suas obras, e muito mais, portanto, em sua própria essência” (OTTO, 2009. p. 18). Para Otto, a ortodoxia não conseguiu o que a princípio pretendia, e com o mesmo objetivo de salvar o corpo canônico dos ataques dos hereges e inimigos religiosos, fez, pelo contrário, que a experiência religiosa do sujeito se tornasse mais fria. As ideias ou noções racionais que temos de Deus são os pontos iniciais para o conhecimento da religião e são utilizados para a transmissão catequética, mas esses elementos racionais jamais esgotam a essência do numinoso. O fator que os racionalistas geralmente esquecem é que esses elementos racionais constituem a parte periférica da experiência religiosa. Logo, a tarefa da religião não consiste em proporcionar uma conceituação de Deus, pois Kant em sua obra Crítica da razão pura já deixou claro que as ideias regulativas da razão, como alma, mundo e Deus, estão situadas fora do tempo e do espaço; consequentemente, não podemos conhecê-las.6 Por isso também, em parte, vemos, sob certo aspecto, uma forma de agnosticismo em Otto. Mas, se o acesso somente racional ao divino é impossível, como falar dessa experiência? Para isso, Otto resgata a experiência vivida, ou a descrição dela, para termos um acesso próprio à relação homem–sagrado.
5 Por nume ou numinoso entende-se “[...] um ente sobrenatural, do qual ainda não existe noção mais precisa” (OTTO, 2007, p. 28). 6 Kant retoma essas ideias de alma, mundo e Deus com outro sentido na sua obra crítica da razão prática. Tais noções não podem ser conhecidas no plano gnosiológico, mas podem ser postuladas para o suporte do agir moral.
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A essência da religião assenta-se no elemento não racional, pois, quando conceituada, perde sua característica capital, já que não pode ser conceituada; o sagrado pode apenas ser descrito a partir da vivência relacional que dele tem o homem. Dessa forma, Otto se aproxima de Husserl, ao pensar a emergência do sagrado intrinsecamente relacionada à vivência original do sujeito. O principal objetivo de Otto é mostrar que o sagrado não poderá ser elucidado de forma plena pelos atributos que lhe são dados racionalmente. O numinoso indica sua natureza supraracional, uma vez que “a ideia de Deus é inconcebível, inexpressável e desconcertante, que rechaça todo conceito” (0TTO, 2007, p. 18). No elemento não racional é justamente onde se pode discursar sobre a religião, pois é nesse âmbito que a religião aflora para o sujeito que a vivencia. O não racional é notado pelo sentimento, por aquilo que vive o crente. Isso remete a uma semelhança com aquilo que explicitamos sobre o Lebenswelt husserliano. Assim sendo, “a expressão de uma experiência religiosa não é a simples descrição de um divino exterior ao homem, mas o testemunho de uma relação vivida entre o homem e este Outro além dele próprio, pela mediação de um sagrado que informa e modifica as condutas do crente” (MESLIN,1992, p. 15). O próprio Otto afirma que: “[...] esse sentimento específico precisamos tentar sugerir pela descrição de sentimentos afins correspondentes ou contrastantes, bem como mediante expressões simbólicas” (OTTO, 2007, p. 44). Aqui o sagrado é abordado em seus aspectos peculiares: o tremendum e fascinans. O mysterium tremendum não deve ser confundido com o medo natural, mas um pavor decorrente de um estado no qual o homem se encontra diante de alguma coisa totalmente diferente e estranha ao seu cotidiano. Isso nos causaria um espanto, pois nos deparamos com alguma coisa nunca anteriormente presenciada, que, consequentemente, desencadeia um sentimento de pequenez perante algo, cujas características não são as mesmas que estamos habituados a averiguar nas experiências ordinárias. Entretanto, a experiência do numinoso não é apenas algo que me apavora. Essa experiência também possui uma qualidade de fascinação. Se o aspecto tremendum é repulsivo, a característica fascinans é o que atrai, o que é magnífico e surpreendente nesse evento. Portanto, “o que o demoníacodivino tem de assombroso e terrível para nossa psique, ele tem de sedutor e encantador” (OTTO, 2007, p. 68). Estamos diante de um estado afetivo humano frente ao objeto sagrado, que faz emergir em nós um sentimento de aniquilamento perante a realidade sagrada. 148
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Sem um comentário da análise que Otto faz do sagrado, ficaria difícil chegarmos à nossa hipótese inicial, “[...] pois queremos mostrar que Otto utiliza veladamente a fenomenologia, embora em sua obra não faça nenhuma referência ao método” (BIRCK, 1993, p. 9). Com base nessa análise fenomenológica, que não deve ser confundida com uma abordagem psicológica, como o próprio Otto postula, reafirmamos o que nosso autor faz é uma descrição fenomenológica do sagrado. Com isso, está explícito que o numinoso em seu elemento não racional é um valor sui generis, ou seja, é algo que não é derivado de outros tipos de categorias. O numem é, portanto, valor originário, fundamental, que vale por si. Assim sendo, o valor religioso é portador de uma peculiaridade irredutível. Aqui notamos certa semelhança com a teoria axiológica de Marx Scheler, que, por sinal, também adota a fenomenologia em sua reflexão sobre os valores. O sentimento numinoso é um estado no qual a alma se encontra diante do numem, o que enfatiza que a origem de todas as religiões está alicerçada em elemento não racional, dado que “o objeto numinoso provoca em nós uma reação emocional. Portanto, os sentimentos numinosos correspondem a um objeto numinoso” (BIRCK, 2007, p. 31). Esse ponto é interessante, pois o fator não racional é muito próximo daquilo que Husserl denominou de vivido (pré-refletido). O sentimento de estar diante do numinoso é aquilo que é presenciado em minha consciência. Com esse vivido é que poderemos intuir a essência daquilo que o homem vivenciou e vivencia em sua consciência intencional. A experiência religiosa jamais poderá ser analisada somente pela “frieza da razão”. Perceber a vivência religiosa torna possível chegar à essência originária da religião. Nesse sentido, intuímos que existe um distanciamento de Otto em relação às teses kantianas e, por outro lado, uma aproximação com as principais características da fenomenologia. Para Husserl, é na vivência que podemos compreender o eidos, ou aquilo que é significado por aqueles que vivem esse momento existencial. Tal noção de experiência do sagrado enquanto vivência é claramente próxima do que Husserl denominou de vivência. Birck, a respeito disso, afirma que [...] a experiência religiosa tem sua raiz (essência) no sentimento numinoso. A essência da religião está num elemento não racional, que não pode ser conceituado, apenas descrito, indicado, evocado, avaliado. Aplicando uma terminologia husserliana, este estado de alma, que é o sentimento numinoso, é vivido em minha consciência. Deste vivido, que ainda é particular, devo realizar um ato de ideação e intuir a essência de minha vivência (BIRCK, 2007, p. 23). REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 137-152, jul./dez. 2011
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Desse modo, vemos que a experiência religiosa poderá ser descrita, pois está ancorada na vivência, e somente pela percepção delas é que chegamos à essência de todas as religiões: o sagrado. E atualmente, sob as luzes da metodologia fenomenológica, esse conceito de vivência é imprescindível, e seu uso traz grandes benefícios para a reflexão e para as pesquisas filosóficas sobre a religião. O numinoso, como algo de posse exclusiva da experiência religiosa, somente poderá ser descrito nessas vivências subjetivas. Com isso não se pretende insinuar um solipsismo religioso, mas dizer que tal encontro, homem e sagrado, é peculiar de cada sujeito, algo único e singular e de acesso negado aos demais indivíduos. Ninguém experimenta o sagrado via outrem, é cada sujeito que, a seu modo, sente algo diante desse ser que a pessoa religiosa busca como sendo algo divino. Apenas pela experiência vivida é que podemos falar de religiosidade. Nesse sentido, vale a indicação de Otto aos leitores de sua obra, O sagrado: “Convidamos o leitor a evocar um momento de forte excitação religiosa, caracterizada o menos possível por elementos não religiosos. Solicita-se que quem não possa fazê-lo ou não experimente tais momentos não continue lendo [...] com tal pessoa é difícil fazer ciência da religião” (OTTO, 2007, p. 40). Por ser algo que desperta a alma do ser humano, essa experiência é melhor elucidada utilizando a descrição dos fenômenos como suporte investigativo, pois é somente desta maneira que “[...] podemos falar de Deus, a partir de uma descrição e análise dos sentimentos correspondentes por ele provocados, nas profundezas de nossa alma” (BIRCK, 1993, p. 31). Sendo assim, a compreensão do sagrado não deve ser buscada nas especulações racionalizantes, mas em algo que desperta um estado da alma. Como nos diz Otto, “[...] como ele é irracional, ou seja, não pode ser explicitado em conceitos, somente poderá ser indicado pela reação especial de sentimento desencadeado na psique” (OTTO, 2007, p. 44).
Conclusão Para Husserl, buscamos a essência dos fenômenos puros em nossa consciência. Na investigação filosófica dos fenômenos e através da descrição deles é que teremos pleno acesso à verdade, ou melhor, ao ser da coisa. Isso foi algo que Otto também fez quando descreveu as características do numinoso em seu aspecto não racional. Seguindo em suas observações, nosso pensador 150
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almejou detectar em todas essas vivências experiências religiosas, percebendo algo de invariável, ou essência (eidos), em todas essas manifestações. Sob o pressuposto da descrição fenomenológica, não conseguimos captar o sagrado como algo em si mesmo. Este não pode ser entendido somente como aquilo que é conceituado, definido e por isso plenamente elucidado. Husserl propôs em suas pesquisas encontrar um sujeito puro. Já Otto busca encontrar um sentimento puro, possuidor de uma essência que é própria do fenômeno religioso. Nesse sentido, vemos a aplicação do método de Husserl, que consiste numa análise e descrição da consciência religiosa enquanto consciência pura. Deste modo, iluminados por esse método é que podemos encontrar uma estrutura, a priori, para encaixar os sentimentos que eclodem da religião. O que pretendemos mostrar é que a descrição fenomenológica é um dos melhores meios para estudar o fenômeno religioso, uma vez que “a compreensão do significado das relações concretas implícitas na descrição original da experiência no contexto de uma situação particular é o principal alvo do conhecimento fenomenológico” (MOUSTAKAS, 1994, p. 14). O foco, nesse método, é direcionado para a descrição do sentido, ou melhor, do vivido pelo sujeito, evitando estabelecer comparações, pré-conceitos, pré-juízos e avaliações morais. Com isso, vemos que Otto usou, mesmo que disfarçadamente, uma descrição fenomenológica em sua pesquisa sobre o sagrado.
Referências ABBGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1962. BIRCK, Bruno Odélio. A possibilidade de uma fenomenologia hermenêutica do sagrado a partir de Paul Ricoeur e Rudolf Otto. Tese de doutorado. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2003. ______. O Sagrado em Rudolf Otto. Porto Alegre: Edipucrs, 1993. CAVALIERI, Edebrande. O Lebenswelt husserliano e a problemática religiosa do cotidiano. Disponível em: hptt:// www.metodista.br/ppc/correlatio05: acesso em 15 de mar.2011. CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião. Tradução: Carlos Maria Vásquez Gutiérrez. São Paulo: Paulinas, 2001. (Coleção Religião e Cultura). REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 137-152, jul./dez. 2011
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HUSSERL, Edmund. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica: introdução geral à fenomenologia pura. Tradução: Márcio Suzuki. Aparecida, São Paulo: Ideias & Letras, 2006. (Coleção Subjetividade Contemporânea). MESLIN, Michel. A experiência humana do divino: fundamentos de uma antropologia religiosa.Petrópolis: Vozes, 1992. MOUSTAKAS, Clark. Phenomenological Research Methods. California.Sage Publications, 1994. OTTO, Rudolf. O sagrado.Tradução: Walter O. Schulupp. São Leopoldo: Sinodal/ EST; Petrópolis: Vozes, 2007. ______. Das Heilige: Über das Irrationale in der Idee des Göttlichen und sein Verhältnis zum Rationalen. Breslau: Trewendt & Granier, 1917. ______. Ensayos sobre lo numinoso. Madrid: Editorial Trota. S.A., 2009. SOKOLOWSKI, Robert. Introdução à fenomenologia. São Paulo: Loyola, 2004. SCHAEFFLER, Richard. Filosofia da religião. Tradução: Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1983.
THE POSSIBILITY OF A PHENOMENOLOGY OF THE SACRED IN RUDOLF OTTO. Abstract This article aim to find in the writings of the thinker Rudolf Otto certain characteristics to show that there is the possibility of a phenomenology of the sacred in the works of this philosopher of religion. At first, we will make an introduction of Husserl’s main concepts. Done so, we will continue in the comprehension of the concept of the husserlian Lebenswelt, to, then, point out its relation with the religious issue. Then, we will point out the phenomenology of religion as essential element to the understanding of the religious phenomenon in the contemporary world. And lastly, we will indicate the implicit traits of the phenomenology which are present in Otto’s investigations. Therefore, it is to analyze Otto’s relation with Husserl’s phenomenology, that we write the following pages. Key words: Sacred. Phenomenology. Irrational. Experience. Religion.
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PARA ONDE CAMINHA A FORMAÇÃO HUMANA? REFLEXÕES SOBRE A CIDADE E A FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO: UMA ANÁLISE À LUZ DA TEORIA CRÍTICA Alex Sandro Corrêa*
Resumo O objetivo deste ensaio é refletir acerca do atual modo de vida urbano, destacando alguns aspectos da vida cotidiana na perspectiva da metrópole contemporânea. Procuramos ressaltar o sentido que tende a assumir a formação humana no contexto da sociedade de massa, cujas noções de sociabilidade, solidariedade e experiência tendem, cada vez mais, ao desaparecimento. Nesse sentido, procuramos estabelecer um diálogo com os autores da Escola de Frankfurt, particularmente com as reflexões do filósofo Walter Benjamin, empreendidas acerca da metrópole que lhe era contemporânea, sobretudo, da cidade de Paris. Assim, com este ensaio procuramos desvendar, tomando como referência o cenário da grande cidade, alguns aspectos que contribuem para a deformação do indivíduo, exilando suas esperanças por meio do conformismo, do isolamento, da indiferença, da solidão e do desconforto, criando formas anômalas de convívio social. Refletimos ainda sobre as possibilidades de resistência que cabem ao indivíduo, bem como sobre a importância de se ressignificar a utopia para a construção de uma sociedade verdadeiramente humana. Palavras-chave: Teoria crítica, formação, cidade, espaço urbano, sociedade.
Refletir acerca do atual modo de vida urbano, compreendendo os aspectos que permeiam as relações entre indivíduo e cultura na perspectiva da sociedade contemporânea, particularmente da metrópole, encontra respaldo em ideias que discutem a formação humana. Nessa perspectiva, tomamos como referência as ideias dos autores da Escola de Frankfurt, especialmente alguns conceitos por eles desenvolvidos, principalmente por Walter Benjamin. Desse modo, analisamos aspectos da vida cotidiana, tendo * Mestre em educação pelo Programa de Estudos em Pós-graduação da PUC-SP e Professor Titular de Ensino Básico Técnico e Tecnológico no Campus de Bragança Paulista. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 153-168, jul./dez. 2011
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como pano de fundo a cidade convertida em metrópole bem como seu característico “modo de vida”. Queremos destacar que a cidade à qual nos referimos é a moderna cidade capitalista que começou a ganhar a forma e o conteúdo que hoje apresenta a partir do desenvolvimento do capitalismo industrial. Podemos afirmar que tal cidade foi planejada e construída para permitir, com maior eficiência, a reprodução ampliada do capital, servindo-lhe de base material para a acumulação bem como para a sustentação dos mecanismos de circulação e troca de mercadorias, cuja finalidade é a perpetuação do sistema lucrativo. Longe de pretendermos abarcar todos os conceitos que tentam explicar os termos “cidade” e “urbano” e estabelecer distinção entre eles, mesmo porque este não seria o nosso objetivo, vale a pena destacar que cidade não se confunde com urbano. Ou seja, quando falamos em cidade, estamos nos referindo ao conjunto de edificações que se materializam num determinado espaço. Cidade, portanto, diz respeito à materialidade agregada ao solo com diferentes usos. Já o urbano diz respeito ao “modo de vida”, à maneira tal como os citadinos fazem uso dessa materialidade, incluindo o conjunto de relações que estabelecem com o lugar onde estão inseridos. Enfim, urbano diz respeito, ainda, “às associações vinculadas a sentimentos e emoções que permeiam as relações humanas” (CARLOS, 1992, p. 12). Conscientes da complexidade que envolve tais conceitos, queremos ressaltar que cidade e urbano são dois fenômenos articulados, produzidos por uma totalidade maior, cujo determinante é o modo de produção, entendido como a maneira conforme a qual determinada sociedade se organiza para produzir, consumir, circular, viver e pensar. Nesse sentido, definimos alguns aspectos relacionados ao modo de vida urbano, a fim de que possamos fixar melhor as questões em torno das quais nos dedicaremos. Privilegiaremos, para efeito de análise, o fenômeno das multidões, as formas anômalas de crescimento da cidade, que produzem o “estranhamento” e o isolamento de seus habitantes, o individualismo exacerbado, a indiferença; e, ainda, o fenômeno da indústria cultural, cujos mecanismos impedem cada vez mais o pensamento e a imaginação. Um dos primeiros aspectos que destacamos é, justamente, o fenômeno das multidões. A esse evento, já presente no século XIX, o filósofo W. Benjamin, em seu escrito Paris do Segundo Império, faz uma proposta de reflexão acerca dos acontecimentos que a cidade passa a viver sob a égide do progresso material. 154
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Para onde caminha a formação humana? Reflexões sobre a cidade e a formação do indivíduo: uma análise à luz da Teoria Crítica
Refletir sobre o fenômeno das multidões nos remete imediatamente ao ensaio que Benjamin (1989) escreveu sobre a cidade de Paris, cujo tema foi “Paris, capital do século XIX”. Nesse ensaio, bem como em outros em que o autor desenvolve no mesmo período, encontram-se presentes as principais características da moderna cidade capitalista, com todos os signos incipientes do que viria a se radicalizar nos séculos posteriores. É importante esclarecer que em Paris, capital do século XIX, Benjamin (1991) se refere à capital da França num duplo sentido, pois, segundo analisa Matos (1998, p. 13), ao mesmo tempo em que o autor se refere à cidade como a capital política da Europa, “dos Tratados de Paz e dos êxtases revolucionários: 1789, 1830, 1848, 1871, 1891, 1936, 1968”, Paris também é considerada por Benjamin (apud MATOS, 1998), “a capital do capital”, ou seja, a forma por excelência de “circulação do capital” e de “fetichismo da mercadoria”. Com efeito, para que tal projeto de acumulação do capital e circulação das mercadorias se viabilizasse, Benjamin (1989) descreveu a maneira como a cidade de Paris ingressou no século XIX, sob a forma como lhe foi dada por Haussmann1, pois Ele realizou sua transformação da imagem da cidade com os meios mais modestos que se possa pensar: pás, enxadas, alavancas, e coisas semelhantes. Que grau de destruição já não provocaram esses instrumentos limitados! E como cresceram, desde então, como as grandes cidades, os meios de arrasá-las! Que imagens do porvir já não evocam! [...]. Os trabalhos de Haussmann haviam chegado ao ponto culminante; bairros inteiros eram destruídos (BENJAMIN, 1989, p. 84).
Nesse sentido, a cidade de Paris vai perdendo, pouco a pouco, suas características singulares, particularmente pela deformação da fisionomia provinciana, pois seus pontos de referência são descaracterizados pela implosão de ruas e mutilação de bairros inteiros. Ruas são destruídas, impondo-se largas avenidas “a tiros de canhão contra as barricadas” 2. E a vida “Baron Haussmann, cuja atividade incorpora-se ao imperialismo napoleônico que favorece o capitalismo financeiro” (BENJAMIN, 2006). 2 A expressão é frequentemente utilizada pela professora e filósofa Olgária Matos em seus comentários sobre a cidade. 1
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cotidiana? Esta vai sendo capturada por novos signos de alienação, impostos por uma nova forma de habitar e viver, cujo destino só conhece uma lei – a lei da troca. Dessa forma, Haussmann, na análise benjaminiana, empreende a transformação da cidade em metrópole, onde o caráter “fetichista da mercadoria” se realiza plenamente. Para Matos (1997), A metrópole Paris em contraposição à cidade, é um momento ulterior da dominação do capital enquanto estrutura da sociedade: trata-se de um momento de abstração do individual, de formalização, onde a razão reguladora da vida social aparece como cálculo e interesse. Quando o espírito (no sentido de que o trabalho é uma atividade espiritual do homem, atividade consciente) sai das relações simples e diretas, cria a metrópole e não mais a cidade – o que comanda é o interesse de classe que aniquila toda a síntese, toda interação entre o indivíduo e seus fins: a cidade não é mais o espaço em que o homem encontra sua medida, onde se reconhece; a razão calculadora (que regula a vida social) tem sua constituição histórica na economia monetária de mercado. Como diz Adorno, “a formalização da razão é apenas a expressão intelectual do modo de produção mecanizado” – a economia monetária e a dominação da razão estão na mais estreita conexão (MATOS, 1997a, p. 101).
Não foi por acaso que Haussmann se autodefiniu “artista demolidor”, pois, segundo Benjamin (2006, p. 49), “sentia-se predestinado à sua obra, fato que enfatiza em suas memórias”, já que sua tarefa tratou, justamente, de promover um empreendimento de destruição produtiva da cidade, tendo em vista os meios mais eficazes de acumulação do capital. Para Benjamin (apud MATOS, 1997, p. 102), “Haussmann exprime a vontade de poder da metrópole: ele a realiza destruindo o ideal de sociedade que se realizaria como comunidade”. Dessa forma, estavam dadas as condições para que a cidade de Paris se adaptasse às novas exigências do capital produtivo e financeiro, sacrificando a melhor parte de sua humanidade, seus habitantes, a fim de que estes respondessem de forma eficiente aos imperativos do sistema capitalista que estavam se consolidando. Matos (1997a), em suas reflexões sobre o processo acima referido, atesta que tal sistema utilizou “[...] a cidade diretamente como mercadoria, abrindo Paris à especulação do capital financeiro, alienando seus antigos moradores e empurrando-os para fora dela” (MATOS, 1997a, p. 102). Esse processo encontrava-se na origem do que viria a se radicalizar nos tempos atuais, 156
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qual seja, o embelezamento e a higienização da cidade, com as construções arrojadas de avenidas e bulevares, provocando a alta dos aluguéis e tornando a moradia um “bem proibitivo” para a imensa maioria da população. É justamente nesse momento, em que a metrópole se consolida como forma nova de habitar, viver e morrer, regida pelo domínio do capital e do “fetichismo da mercadoria” e da técnica, que o fenômeno das multidões se impõe à análise sociológica, exigindo de seus observadores novos instrumentos para compreendê-la em sua complexidade. Nesse contexto, Benjamin (1989) se refere à construção das passagens, primeira exposição industrial, após a reforma estratégica do embelezamento de Paris por Haussmann. Essas passagens foram as primeiras construções em ferro e vidro a compor a paisagem urbana parisiense. Ao considerar essa análise, pode-se afirmar que os nossos shoppings centers representam os legítimos sucedâneos dessas passagens, pois substituem o lazer, ou melhor, transformam-se em lazer. Benjamim (1991) se referiu às passagens parisienses, às famosas construções em ferro e vidro, como verdadeiros “aquários humanos”, onde tudo se concentrava e se acumulava, num jogo frenético de fantasia e alienação, no qual “o sujeito se entrega às suas manipulações, desfrutando a sua própria alienação e a dos outros” (BENJAMIN, 1991, p. 36). Jogos de azar, flânerie, prostituição, mercadorias expostas e adoradas, passeios familiares e “centros de peregrinação”. Todas as formas de vida se concentram e se condensam nesse novo universo totalmente fechado de ferro e vidro, que são as passagens de Paris. Por longo período continuaram a ser um local de distração para o forasteiro, pois, analisando um guia ilustrado de Paris, afirma: Estas galerias são uma nova invenção do luxo industrial, são vias cobertas de vidro e com piso de mármore, passando por blocos de prédios, cujos proprietários se reuniam para tais especulações. Dos dois lados dessas ruas, cuja iluminação vem do alto, exibem-se as lojas mais elegantes, de modo tal que uma dessas passagens é uma cidade em miniatura, é até mesmo um mundo em miniatura (BENJAMIN, 1991, p. 31).
Benjamin (2006) toma esse momento, em que tudo está se convertendo em mercadoria, como pano de fundo para sua análise, pois, na metrópole, tudo se exerce de maneira indiferenciada, constituindo-se em lugar da produção REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 153-168, jul./dez. 2011
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de mercadorias em geral, em lugar de entretenimento, de passeio. Enfim, lugar onde acontece, de forma exemplar, o triunfo das relações impessoais e anônimas entre os indivíduos. Com efeito, essa modalidade “inovadora” de habitar o mundo encontra-se, segundo esse filósofo, inteiramente presente na poesia de Baudelaire. Nas famosas descrições das passagens de Paris, Benjamin (1989) se refere, em particular, a um poema de Baudelaire no qual o poeta fala das transformações abruptas de Paris de um minuto a outro, da mudança veloz e incessante da cidade, sendo, um dos resultados, a perda de si na multidão, impossibilitando ao indivíduo “viver grandes amores, que as rugas e marcas em nosso rosto são as assinaturas das grandes paixões que nos estavam destinadas” (BENJAMIN apud MATOS, 2006, p. 1.133). É, portanto, nesse contexto que o advento de um novo fenômeno aparece, qual seja, o da multidão. A multidão se caracteriza por quê? Segundo Benjamin (1989), pela sua homogeneidade e uniformidade. Trata-se de uma massa anônima, amorfa, que se desloca pelas galerias, pelas passagens e pelas ruas de Paris. A multidão é, na perspectiva benjaminiana e baudelairiana, “[...] o véu através do qual a cidade familiar acena para o flâneur como fantasmagoria. Nela, a cidade é ora paisagem, ora sala acolhedora” (BENJAMIN, 2006, p. 47). Em outro ensaio sobre Baudelaire, Benjamin (1989) observa que Não se pode pensar em nenhuma classe, em nenhuma forma de coletivo estruturado. Não se trata de outra coisa senão de uma multidão amorfa de passantes, de simples pessoas nas ruas. Esta multidão cuja existência Baudelaire jamais esquece, não foi tomada como modelo para nenhuma de suas obras, mas está impressa em seu modelo de criação, como uma imagem oculta [...]. Nela, a imagem do esgrimista pode ser decifrada: os golpes que desfere destinam-se a abrir-lhe o caminho através da multidão (BENJAMIN, 1989, p. 113).
Nesse sentido, as descrições benjaminianas sobre a cidade, particularmente as de Paris do século XIX, apontam-nos as novas condições de vida impostas ao homem moderno, que viriam a se perpetuar nos séculos posteriores. O filósofo acrescenta ainda que esse conjunto de transformações pelas quais a cidade passou contribuiu para reforçar o sentimento de exílio e “estranhamento” provocado pela modernidade. Para Benjamin (2006, p. 49), 158
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os indivíduos, na metrópole, “[...] não se sentem mais em casa. Começam a tomar consciência do caráter desumano da grande cidade”. Ao tomar como referência as análises empreendidas por Benjamin sobre a cidade de Paris, particularmente “Alguns Temas em Baudelaire”, a filósofa Olgária Matos (1993) apresenta-nos uma reflexão acerca do “desaparecimento dos rastros”, da “aura”, bem como do olhar e dos significados que a imagem assume na modernidade. Trata-se do ensaio Imagens sem objeto, no qual a autora ilumina sua reflexão valendo-se da canção de Chico Buarque, “Vitrine”, segundo Matos (1993, p. 114), “de sabor Baudelairiano-Benjaminiano”. Nessa perspectiva, Matos (1993) permitiu-nos deduzir, pela letra dessa canção, que, entre outros aspectos, na grande metrópole a perda do olhar tornou-se um fato irredutível, uma vez que as novas formas de adestramento dos sentidos e multiplicação de imagens impossibilitam ao indivíduo conquistar a sua autonomia. A canção coloca, ainda, o estranhamento do habitante da cidade com relação a ela, tornando-se: “[...] um signo ameaçador: é um vão, não vá lá não” (MATOS, p. 116), porque não há mais pontos de referência espaciais, visuais e temporais seguros e permanentes que possam oferecer a ideia de acolhimento, hospitalidade e segurança. E mais, o perigo está sempre presente e se faz sentir por toda a parte, pois, quanto maiores os “dispositivos de segurança” presentes em uma dada sociedade, tanto maiores os sentimentos de medo, insegurança, desconforto e pânico também presentes. Para a autora, Na grande cidade, os olhos, pela experiência do choque e dos riscos de vida, se convertem em “dispositivos de segurança”, “perdem a capacidade do olhar”, perda que se manifesta exemplarmente em Baudelaire: “Baudelaire descreve olhos dos quais se poderia dizer que perderam a capacidade de olhar [...]. Poder-se-ia dizer que tanto mais subjugante é um olhar quanto mais profunda é ausência de quem olha” (MATOS, 1989, p. 73).
Nesse aspecto, Matos (1993) aponta que, na grande metrópole, o homem não se reconhece na multidão, bem como não se reconhece mais na própria cidade, pois esta torna-se “estranha” aos seus moradores e seus moradores “estranhos” a ela. Nesse sentido, podemos concluir que não há mais uma interlocução, ou melhor, uma troca simbólica entre a cidade e seus moradores. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 153-168, jul./dez. 2011
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A autora ressalta, ainda, outra expressão contida na canção de Chico que alude à questão da “sombra” – “Vemos tua sombra a se multiplicar”. Ao tomar como analogia o mito platônico da caverna, a autora observa que, na grande metrópole, fomos condenados a uma espécie de “caverna a céu aberto”, ou seja, a um “mito da caverna ao revés” (MATOS: p. 115-116), pois as sombras se multiplicam de forma alucinante, e, mais ainda, sem a presença de um “fogo central” que garanta estabilidade e indício de boa direção. Assim, a ideia desse olhar cativo que olha sem realmente ver, ou de uma visão que é pura sombra, como diz a canção de Chico analisada por Matos (1993), também aparece em um outro poema de Baudelaire (apud BENJAMIN, 1999), denominado “A Uma Passante”. Trata-se de um soneto em que o poeta exprime o amor que sentiu por uma mulher no instante em que esta aparece e, simultaneamente, é arrebatada ou mergulhada na multidão. Por meio desse soneto, Benjamin (1999) nos faz compreender que O soneto não apresenta a multidão como o asilo do criminoso, mas sim como o refúgio do amor que foge ao poeta. Pode-se dizer que não trata da função da massa na existência do burguês, mas na do ser erótico. À primeira vista, essa função parece negativa, mas não o é. A aparição que fascina o poeta, longe de ser subtraída da multidão, só através desta lhe será entregue. [...] o nunca da última estrofe é o ápice do encontro, momento em que a paixão, aparentemente frustrada, só então, na verdade, brota do poeta como uma chama. O poeta arde nessa chama; dela, contudo, não emerge nenhum fênix (BENJAMIN, 1999, p. 42).
A cena descrita pelo soneto nos faria compreender, nas palavras de Benjamin (1989, p. 118), que “o encanto desse habitante da metrópole é um amor não tanto à primeira vista quanto à última vista. É uma despedida para sempre, que coincide, no poema, com o momento do fascínio”. Nessa perspectiva, Benjamin (1989) aponta que a temporalidade da lógica industrial, que cronometriza, instrumentaliza, normatiza e reduz o tempo a um elemento vazio, abstrato e sem sentido, destrói o tempo livre e “qualitativo” do poeta. Por outro lado, o tempo do flâneur permitia a ele passear olhando a multidão e estranhando a multidão, pois sua tarefa era, segundo Benjamin (1989), “declarar guerra ao taylorismo”, declarar guerra à temporalidade industrial produtivista, que destrói a memória individual e coletiva, investe 160
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contra o espírito e automatiza o corpo. Nesse sentido, é sugestiva a descrição benjaminiana da Paris de Baudelaire, sobretudo a cena na qual Ainda se apreciavam as galerias, onde o flâneur se subtraía da vista dos veículos que não admitem o pedestre como concorrente. Havia o transeunte, que se enfia na multidão, mas havia também o flâneur, que precisa de espaço livre e não quer perder sua privacidade. Ocioso, caminha como uma personalidade, protestando assim contra a divisão do trabalho que transforma as pessoas em especialistas. Protesta igualmente contra a sua industriosidade. Por algum tempo, em torno de 1840, foi de bom-tom levar tartarugas para passear pelas galerias. De bom grado o flâneur deixava que elas lhe prescrevessem o ritmo de caminhar. Se o tivesse seguido, o progresso deveria ter aprendido esse passo. Não foi ele, contudo, a dar a última palavra, mas Taylor, ao transformar em lema o “Abaixo a flâneur!” (BENJAMIN, 1989, p. 50-51).
Desse modo, o progresso passou a exercer, efetivamente, pleno domínio na vida social. Regido por uma “razão instrumental”, sua finalidade foi promover as condições práticas para o acúmulo do capital, multiplicando todos os meios, a fim de tornar vitoriosa a economia do dinheiro. Poderíamos concluir, por meio das análises benjaminianas até aqui desenvolvidas, que o indivíduo, na grande metrópole, é despojado de sua própria vida. E, ainda, pelos choques aos quais este indivíduo é permanentemente submetido, em função das mudanças quase sempre traumáticas da vida cotidiana, seus sentidos são constantemente adestrados por mecanismos de controle e segurança nem sempre explícitos, tal como acontece com os olhos, pois, na grande metrópole, “os olhos perdem sua capacidade de olhar porque se convertem em dispositivos de segurança” (BENJAMIN, 1989, p. 141). Afinal, tudo nos causa medo, atravessar uma avenida nos causa medo, assalto nos aterroriza, portanto, os olhos perdem a capacidade para ver. Um outro aspecto, que chama a nossa atenção sobre as funções que o olhar assume na grande metrópole, diz respeito à enorme “inflação de imagens” que, permanentemente, nos atingem, exigindo do nosso sistema nervoso a constante disponibilidade para captar o maior número possível de mensagens. Obviamente, a totalidade dessas imagens tende a veicular mensagens cuja função primordial é adestrar os nossos sentidos para a propaganda, cuja única função é multiplicar o consumo. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 153-168, jul./dez. 2011
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Dessa forma, teríamos, por meio da variedade de comerciais e propagandas veiculadas pela indústria cultural, bem como pela multiplicidade de cartazes e outdoors estampados em ruas e avenidas, a maneira exemplar que a indústria do consumo criou para “educar” o homem da cidade ao consumismo, confiscando seus sonhos e desejos aos interesses do universo “colorido das mercadorias”. Outro aspecto que chama atenção na metrópole diz respeito ao desaparecimento ou à descaracterização de bairros por uma apropriação privada do espaço público, ou, se preferir, por um encolhimento deste. Esse fenômeno pode ser observado, de modo evidente, na maneira como as largas avenidas vão sendo construídas, expulsando os pedestres e abrigando, em suas margens, como pode ser visto em qualquer grande centro, as monumentais letras da IBM ou do Mc Donald´s, ou seja, das grandes empresas representantes do capital. E o cidadão? Reduzido à condição de mero consumidor, acaba sendo despojado de seus direitos numa sociedade agora totalmente presa ao universo da compra e da venda. Por consequência, notamos que, quando os indivíduos só se encontram no ato da troca, eles perdem o hábito de se entreolharem, perdem a capacidade de criarem laços de afetividade, de reciprocidade, ou mesmo de identificação. Talvez por isso Adorno (2000) tenha evidenciado, em seus escritos, algo como o “adoecimento do contato”. Tal evidência pode ser constatada no tipo de coletivo que nós temos, na maneira como as pessoas se comportam no trânsito ou em locais públicos, expressando um profundo sentimento de indiferença com relação ao semelhante. Para o autor, Se as pessoas não fossem profundamente indiferentes em relação ao que acontece com todas as outras, excetuando o punhado com quem mantêm vínculos estreitos e possivelmente por intermédio de alguns interesses concretos, então Auschwitz não teria sido possível, as pessoas não o teriam aceito (ADORNO, 2000, p. 134).
Com efeito, observa-se que a competição e o individualismo tendem a predominar na sociedade contemporânea, conquistando espaços cada vez mais seguros. Nessa perspectiva, para Matos (1997), a noção de amizade e fraternidade, que sempre tivera como meta, desde o “estoicismo grego”, a ideia de um “mundo sem fronteiras”, parece ter sido definitivamente 162
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abolida do imaginário coletivo e proscrita como anacrônica ou filantropia social. Horkheimer e Adorno (apud MATOS, 1997) apresentam o seguinte comentário: A amizade (philia) perpassa a dimensão da sabedoria contemplativa e a ultrapassa, a caridade na fraternidade, na amizade – agora politicamente concebidas, a amizade é compaixão é co-padecimento, é sentimento moral: “[este] tem algo que ver com o amor [...] não se refere à pessoa como sujeito econômico ou como um encargo na situação financeira de quem ama, mas como o possível membro de uma humanidade feliz”. A compaixão é uma tristeza mimética que leva a desejar o fim da tristeza do outro. Horkheimer, em seu ensaio Schopenhauer e a sociedade, comenta a fuga dos estudantes da Alemanha do Leste antes da queda do Muro (1989): ao chegarem à Alemanha ocidental, sentiam-se cheios de alegria, porque mais livres, mas logo se tornaram melancólicos, por não haver entre os homens, no liberalismo econômico, amizade alguma. Amizade é PHARMAKON (MATOS, 1997b, p. 162).
A denúncia desse individualismo exacerbado, fruto, em parte, da maneira como o planejamento urbano é pensado, encontra-se delineada em Dialética do esclarecimento. Nesta obra, Horkheimer e Adorno (1985) nos advertem que Os edifícios monumentais e luminosos que se elevam por toda a parte são os sinais exteriores do engenhoso planejamento das corporações internacionais, para o qual já se precipitava a livre iniciativa dos empresários, cujos monumentos são os sombrios prédios residenciais e comerciais de nossas desoladoras cidades [...]. Mas os projetos de urbanização que, em pequenos apartamentos higiênicos, destinam-se a perpetuar o indivíduo como se ele fosse independente, submetem-no ainda mais profundamente a seu adversário o poder absoluto do capital. Do mesmo modo que os moradores são enviados para os centros, como produtores e consumidores, em busca de trabalho e diversão, assim também as células habitacionais cristalizam-se em complexos densos e bem organizados (HORKHEIMER e ADORNO, 1985, p. 113).
Pelo que destacamos, podemos concluir que todas as esferas da vida passam a ser dominadas pela lei do mercado. Por consequência, observase que o modo de vida urbano não nos garante nenhuma possibilidade de exercermos nosso direito à cidade, pois, como já observou Benjamim (1989), REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 153-168, jul./dez. 2011
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o capital é um poder avassalador que promove a destruição produtiva da cidade sem se importar com suas vítimas. No Brasil, a cidade de São Paulo pode ser considerada como o emblema de muitos aspectos do que temos desenvolvido ao longo desta exposição. Com suas largas avenidas, seu trânsito rápido, que não dá lugar ao pedestre e expulsa as crianças das ruas, confinado-as em apartamentos ou em locais de lazer e entretenimento fechados e higiênicos, seu ritmo de trabalho alucinante e a implosão dos bairros populares, para ceder lugar ao progresso, acabam produzindo o estranhamento dos indivíduos e perpetuando as formas de indiferença já apontadas. Outro exemplo que elucida essa questão diz respeito à forma como se dá a ocupação da cidade pela especulação imobiliária, pelo capital financeiro, industrial, ou mesmo pelo poder público. Este último, para atender, obviamente, a interesses particulares, tem contribuído, sobretudo por meio de obras ligadas ao setor de transportes, para eliminar formas de sociabilidade ou de ocupação da cidade que não se ajustam aos imperativos do capital produtivo. Foi o que aconteceu, em São Paulo com os campos de várzeas. Sobre esse aspecto, Carlos (2001) chama nossa atenção para o fato de que, se observarmos um mapa antigo da capital, notaremos que, antes do domínio exclusivo da indústria automobilística, São Paulo abrigava muitos campos de várzeas. Tínhamos a várzea do Tietê, da baixada do Glicério; enfim, a cidade era pontuada por várzeas. Ora, o que significam os campos de várzeas, além de simples elementos da paisagem geográfica? Significam o futebol no fim de semana e o encontro após o jogo, ou seja, significam locais de entretenimento e lazer não normatizados pela indústria cultural, tampouco capturados pela voracidade da mercadoria. O campo de várzea significava um “ponto de encontro”, um local onde era possível o exercício da solidariedade, do fortalecimento dos laços de vizinhança, de sociabilidade e de amizade. Para a autora, O novo engole incessantemente as formas onde se inscreve o passado. A constituição da metrópole revela o fato de que à medida que cresce vai incorporando novas áreas, descaracterizando-as, pois transforma-as completamente, seja pelo processo de adensamento de antigas áreas, incorporação de novas, ou pelas modificações nos usos. O processo de reprodução do espaço urbano vai se constituindo eliminando 164
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os pontos de encontro, o lugar da festa, tragando os rituais e seus mistérios, eliminando referências, destruindo a memória social e fragmentando o espaço e as relações entre os indivíduos através da descaracterização de bairros inteiros (CARLOS, 1994, p. 430).
Com isso, nota-se que as transformações pelas quais a cidade passa encontram-se longe de serem consideradas do ponto de vista do cidadão, pois a cidade capitalista, com seus espaços segregados e sua paisagem “desoladora e funcional”, elimina, apesar das resistências, todas as formas de uso que não se coloquem na dimensão do lucro. Nesse sentido, observamos que o ritmo de transformação ao qual a metrópole é submetida lembra-nos a metáfora baudelairiana segundo a qual a cidade, sob a égide do capital, “muda mais depressa do que o coração de um mortal” (BENJAMIN apud CARLOS, 1992, p. 91). Dessa forma, o habitante da grande metrópole vai perdendo, junto com a sua identidade, a possibilidade de identificar-se com os lugares por onde passa ou onde vive. Com efeito, os lugares que antes assinalavam o registro de seus habitantes, a dimensão humana do habitar, suas impressões e seus vestígios, agora se tornam inacessíveis a qualquer registro. Benjamin (1995) soube captar muito bem este tema, ao comparar as características do aposento burguês, cuja funcionalidade presta-se à preservação da personalidade ou da individualidade do homem burguês, com a nova arquitetura de aço e vidro. Quanto ao primeiro, “habitar esses aposentos forrados de pelúcia não era mais que seguir um vestígio estabelecido pelos hábitos” (BENJAMIN, 1995, p. 266). Já com a nova arquitetura de aço e vidro, esse pensador observa que tais invenções criaram espaços onde não é fácil deixar registros. “Depois do que foi dito – escreveu Scheerbart já há vinte anos – ‘pode-se muito bem falar de uma cultura do vidro’. O novo ambiente de vidro transformará completamente o ser humano” (BENJAMIN, 1995, p. 267). Talvez o personagem que melhor exprima essa “nova” forma de habitar, instituído nas grandes metrópoles, tenha sido o turista. Benjamin (1989), já nas primeiras décadas do século XX, explicitava, ao analisar o “flâneur baudelaireano”, que as novas formas de progresso e desenvolvimento técnico, levadas a cabo por Taylor, significavam a derrota da flânerie, o que fazia com que, inconformado, Baudelaire se indagasse contra o que viria depois. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 153-168, jul./dez. 2011
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Adaptado por um “novo passo”, o turista pode ser considerado o sucessor do flâneur, isto é, a nova personalidade que desfila, conduzido por outro ritmo: passos rápidos e controlados, regrados e vigiados, olhares reduzidos apenas a pontos de vistas que nada observam, pois olha sem realmente ver. Matos (1988), em seu artigo “Tardes de Maio”, no qual comenta o movimento estudantil que ficou conhecido como “Maio de 68”, que paralisou a França e, posteriormente, o mundo inteiro, ajuda a refletir sobre muitos aspectos do que tratamos neste trabalho. Com relação à cidade, a autora aponta que, “quando os muros da cidade tomaram a palavra, sua inscrição recusava a sociedade da opulência e a pobreza espiritual das modernas democracias – cujo descompasso é preenchido pela tecnocracia e seus correlatos – de eficiência para fins de lucro e de capital” (MATOS, 1988, p. 18). Nesse aspecto, a cidade de Paris, sob a ação do “Maio de 68”, foi investida por uma outra lógica – a lógica da resistência. Em suas palavras de ordem, passeatas e ocupações, seus membros tinham como interesse comum ressignificar os direitos bem como o “direito a ter direitos” e também reelaborar as utopias. Vale, para terminar, uma reflexão de Matos (1999) acerca do sentido que o espaço público da cidade tem para o exercício do direito e da democracia, considerados, aqui, como a quintessência da cidadania, sinais que indicam, para voltarmos ao nosso ponto de origem, os caminhos da formação humana. Para a autora, O direito afirma-se a céu aberto à distância das luzes mortiças dos corredores dos parlamentos. Nas ruas as barricadas: “la barricade ferme la rue et ouvre la voie”. A rua vem a ser um agente social coletivo, lugar do exercício de uma democracia direta que faz vacilar a legitimidade do sufrágio universal, expressão da política oficial. As passeatas interpelam diretamente a opinião pública, mesmo que seja uma ocupação transitória do espaço público. Rompe com os códigos e usos da chamada “livre circulação”, o direito de ir e vir. Ocupação subversiva, perturba a ordem instituída, pois traz à cena a totalidade do corpo social. Nas ruas a festa é a contrapartida dos desfiles cívicos nacionais e das votações periódicas do calendário estatal: “as moções matam as emoções”. E ainda: “as mil e uma noites estão nas ruas da cidade” (MATOS, 1999, p. 15).
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WHERE DOES HUMAN FORMATION GO? REFLECTIONS ABOUT THE CITY AND THE FORMATION OF THE INDIVIDUAL: AN ANALYSIS IN THE LIGHT OF THE CRITICAL THEORY Abstract: The objective of this essay is to reflect about the current urban way of living, making some aspects of the everyday life stand out in the perspective of the contemporaneous metropolis. We intend to emphasize the meaning that the human formation tends to take in the context of the mass society, whose notions of sociability, solidarity and experience tend, more and more, to the disappearance. In this sense, we intend to establish a dialogue with the authors of the School of Frankfurt, particularly with the reflections of the philosopher Walter Benjamin, undertaken about the metropolis that was contemporaneous to him, especially, about the city of Paris. Thus, with this essay we intend to reveal, taking as reference the scenery of the big city, some aspects that contribute to the deformation of the individual, banishing his/her hope by means of the conformism, of the isolation, of the indifference, of the loneliness and of the discomfort, creating anomalous ways of social conviviality. We also reflect about the possibilities of resistance that are appropriate to the individual, as well as about the importance of reframing the utopia for the construction of a truly human society. Key words: Critical theory, Formation, city, urban space and society.
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A IMAGEM PLATÔNICA DO SOL NA METAFÍSICA DO PSEUDO-DIONÍSIO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A DIFUSÃO DA LUZ DE DEUS NO MUNDO NA OBRA “DOS NOMES DIVINOS” Weriquison Simer Curbani*
Resumo Na obra Dos nomes divinos do Pseudo-Dionísio Areopagita a imagem do sol surge no contexto da metafísica da luz. Esta imagem platônica é utilizada pelo PseudoDionísio como arquétipo incomparável para ilustrar como o divino lança os raios de sua infinita bondade e sabedoria a todos os seres. O sol é o grande astro responsável pela origem e sustentação de tudo o que há no mundo físico e, por isso, para Dionísio, uma imagem perfeita do poder de Deus sobre a totalidade do mundo. Assim como Platão se dirige às alturas do inteligível e estrutura a realidade a partir da Ideia (eidos ou idea) do Bem, Dionísio desenvolve essa imagem platônica como a realidade se configura a partir de Deus, e o sol é um instrumento fundamental para a composição do real. Nosso estudo, portanto, analisará a forma como a metafísica da luz do Pseudo-Dionísio reinterpreta a imagem platônica do sol, imagem esta, presente no Livro VI da República. Palavras-chave: Dionísio Areopagita, Dos nomes divinos, bem, sol, Platão, República.
1 Introdução: a imagem platônica do sol como herança histórica Que imagem (eikón) seria a mais adequada para ilustrar, num tempo ulterior a Platão (ca. 427-347 a.C.), a irradiação dos raios do Supremo à sua geração? A metafísica da luz do Pseudo-Dionísio Areopagita (séc. V) surge em sua obra De divinis nominibus para demonstrar, por via do recurso simbólico-imagético, como o divino se estende a todos os seres através dos raios de sua infinita bondade. Apresentar a forma como o divino se estende a todos os seres, assim como em Platão a Ideia do Bem ilumina todas as coisas, não é uma novidade do * Mestrando em Filosofia – UFES. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 169-182, jul./dez. 2011
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Pseudo-Dionísio Areopagita; Plotino (ca. 205-270 d.C.), na tentativa de unir o “Bem” da República ao “Uno” do Parmênides (PLOTINO, 1999-9),1 teria herdado de Platão essa concepção metafísica de fonte inesgotável de luz, da qual todos os seres participam, o Uno-Bem. O que quer dizer que, depois de Platão e no contexto do neoplatonismo, o Bem continua a ser o princípio absoluto, a fonte de luz que reluz em todas as direções, i.e, ele é responsável pela estrutura e sustentação de toda a realidade. A luz se fixara no divino de tal modo que a história jamais a separou; tornara-se a imagem perfeita. Do mesmo modo que Plotino, o também neoplatônico Proclo (ca. 410485 d.C.), discípulo de Siriano (ca. 400-457 d.C.), teria conservado esta imagem platônica do sol em sua obra (PROCLUS, 1987, p. 228). A partir de comentários de Plutarco (ca. 45-120 d.C) a Aristóteles (ca. 384-322 a.C) e a Platão no princípio do séc. V, Siriano cultiva as especulações metafísicas desses comentários e as transmite a Proclo (ABBAGNANO, 1991, p. 90-91). Dos estudos sobre Platão, Proclo comenta o “Timeu, Parmênides, Alcebíades, Filebo, Fédon, Fedro, Teeteto, Górgias, Banquete e Sofista, além de algumas análises sobre A República” (BEZERRA, 2006, p. 99). O esforço de Proclo consiste em relacionar a filosofia de Platão ao ideário metafísico-religioso de sua época – uma característica muito comum à maioria dos pensadores desse período. Segundo dados históricos, a morte de Proclo ocorreu cerca de 485 d.C., e os escritos do Pseudo-Dionísio Areopagita, denominados corpus Dionysiacum, receberam a primeira menção em 533 d.C., num encontro de ortodoxos e monofisistas em Constantinopla (DIONÍSIO, 2004, p. 16-17). Tudo indica que o Pseudo-Dionísio Areopagita teria recebido de Proclo esta herança metafísica platônica, pois no capítulo IV da obra Dos nomes divinos Dionísio cita (indiretamente) Proclo – o que é um indício da influência de textos neoplatônicos e não diretamente do próprio Platão.2 1 Sobre o Bem e o Uno, ver Eneadas I e V; a primeira trata “Do Bem primário e dos outros bens”, e a segunda, do “Uno”. 2 Sobre essa influência de Proclo no pensamento de Dionísio, Santos (UFES), remetendo ao capítulo IV da obra Dos nomes divinos, diz que: “Na questão do mal, o influxo de Proclo sobre Dionísio Pseudo-Areopagita é inequívoco, de modo que podemos estabelecer um paralelo entre as duas obras, Dos nomes divinos e De subsistentia malorum, sob a forma das seguintes questões: O mal existe? (DSM 1-10; DN IV, 18-20); onde se encontra o mal? (DSM 11-39; DN IV, 21-29); de onde vem o mal? (DSM 40-49; DN IV, 30-31); qual é a sua natureza? (DSM 5-57; DN IV, 31); como a existência do mal é compatível com a Providência? (DSM 58-61; DN IV, 32-34). Cf. Bento Silva Santos. A questão do mal na obra Dos nomes divinos (IV, §§ 1835) de Dionísio Pseudo-Areopagita. 2006. p. 1 e 6.
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Tanto em Plotino como em Proclo e Dionísio a forma de explicar como o divino se lança em direção ao mundo é a mesma: recorre-se à imagem platônica do sol e utiliza-se o poder metafórico da luz. Mesmo que haja diferenciações teóricas bem particulares do pensamento entre esses três pensadores, no que diz respeito às especulações metafísicas sobre o Uno, o Bem ou Deus – e sempre há –, o modo como eles explicam o processo de expansão do absoluto à diversidade do mundo permanece fiel a Platão. A imagem do sol da República é, sem dúvida, perfeitamente assumida e atualizada por esses pensadores, e atualizada no sentido de que, a cada época, permanecendo sempre a mesma, ao mesmo tempo é moldada ao pensamento dos metafísicos que dela se utilizam. Se em Platão esta imagem surgiu para mostrar a Ideia do Bem como fonte de luz e sua relação com o todo da realidade (PLATÃO, 2006, p. 508c), em Plotino ela é atualizada a partir da concepção de Uno-Bem: o supremo indescritível que lança seus raios a tudo o que dele participa (BEZERRA, 2006. p. 69). Proclo a contextualiza, mais fortemente, a partir da sabedoria dos mistérios, dos oráculos caldeus, e o Uno já quer dizer, aí, expressamente, o Pai supremo e visa explicar como, em sua luz, Ele se relaciona com os seres e dirige o mundo, sendo princípio (archké), meio (méson) e fim (télos) de todas as coisas (BEZERRA. 2006. p. 112, 116, 120); já em Dionísio – que muitos elementos herda de Proclo – a metafísica da luz aparece dentre aqueles nomes divinos que mostram a causalidade de Deus no mundo, a imagem do sol é o arquétipo incomparável para ilustrar a relação entre Deus e Sua criação e mostra como esta luz divina é distribuída, perpassando toda a hierarquia celeste até os mais longínquos seres (DIONÍSIO, 2004. p. 94). De qualquer forma, em todos os casos, o que vigora e não muda é a força da metáfora – os raios do sol (do Supremo) a iluminar e vivificar tudo o que há abaixo dele.
2 A imagem solar e seu contexto na República de Platão Mas onde, quando e como surge esta imagem? Sabe-se que é uma imagem platônica. Mas em que contexto? E o que ela quer dizer? A imagem platônica do sol surge no Livro VI da República no contexto em que Gláucon pede a Sócrates para explicar o que é, de fato, o bem: REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 169-182, jul./dez. 2011
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– Por Zeus! Sócrates, disse Gláucon, não te vás como se tivesses chegado ao fim! Para nós será suficiente que faças uma exposição sobre o bem como já fizeste sobre a justiça, a temperança e outras virtudes. – Também para mim, companheiro, será bem suficiente. Temo, porém, que não seja capaz [...]. Por agora deixemos de lado o que vem a ser o próprio bem... É que sinto que é muito para o meu ânimo conseguir expressar minha opinião neste momento. Quero enunciar o que me parece ser um filho do bem que é muito semelhante a ele, se isto for de vosso agrado, ou, caso contrário, desistir disso (PLATÃO, 2006, p. 506b).
Aqui, neste instante, Sócrates apenas enuncia a imagem (filho) do Bem, mas não a expõe. Todos estão convictos de que o Bem, em Platão, é a Ideia Suprema, causa de todas as causas, fundamento e razão de toda a realidade, ou seja, o Bem é o princípio (arkhé) de tudo. E neste momento da República, já que Sócrates não se acha capaz de falar sobre o Bem, para explicá-lo como uma instância absoluta responsável por todas as coisas – e antes de revelar o que para ele é o filho do Bem –, Sócrates começa por falar da luz: – Ainda que haja visão nos olhos e haja quem possa fazer uso dela, ainda que haja cores nos objetos, se não estiver presente um terceiro elemento que seja naturalmente apropriado para isso, sabes que a visão não verá e as cores se manterão invisíveis. – Do que estás falando? – Daquilo, disse eu, que chamas de luz. – Dizes a verdade, disse. – Ah! Não é frágil o liame com que se unem o sentido da visão e a capacidade de ser visto... Ele é mais valioso que os outros vínculos, se admitirmos que a luz não é sem valor. – Ela está longe, disse, de ser de pouco valor. – Então, entre os deuses do céu, qual deles indicas como o que tem poder para fazer isso? De quem é a luz que faz com que vejamos com a maior nitidez possível e sejam vistas as coisas visíveis? – Do mesmo deus que tu e os outros indicaríeis... disse. O sol! É evidente que é essa a resposta à tua pergunta. [...]. – Pois bem! Disse eu. Deves pensar que eu afirmo que o sol é o filho do bem, aquele que o bem engendrou como análogo a si, cuja relação no mundo inteligível com a inteligência e as coisas inteligíveis é a mesma que o sol tem, no mundo visível, com a vista e as coisas visíveis (PLATÃO, 2006, p. 507a-508c). 172
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Eis aqui o nascimento da imagem solar reluzente entre os neoplatônicos; o grande astro que Platão considera como um dos “deuses do céu” é, agora, o filho gerado e a imagem análoga do pai. Mas o que é o Bem? Talvez não nos seja possível corresponder a esta exigência, menos ainda se for formalmente. Mas Heidegger se esforça para isso, ao dizer que: A ideia suprema é o bem. άγαθός diz e significa, para um grego, o que se impõe, o que se mantém e resiste. Ser bom significa: impor-se, resistir e, assim, manter e dar consistência. É o que corresponde à essência da ideia: o que possibilita ser e abrir-se ao que está sendo e se abrindo. Enquanto o que possibilita, enquanto possibilitadora, a ideia há de ser o que, propriamente, se impõe, o que dá solidez e consistência. Daí ser o bem a ideia suprema (HEIDEGGER, 2007, p. 202). O bem, então, é a base sobre a qual se funda toda a realidade, é a origem e sustentação de tudo o que se apresenta como sendo na realidade; portanto, é a fonte possibilitadora de tudo o que é e venha a ser. O que o sol é no sensível, o bem é no inteligível. Tudo o que se descreve no mundo físico será, por metonímia, o que se passa no mundo inteligível. E a luz é o elemento e o alimento solar-divino que ilumina e nutre todas as coisas em tudo. É neste sentido que a luz aparece entre aqueles nomes divinos do PseudoDionísio Areopagita, ela é a “imagem da bondade” divina justamente porque nutre e mantém todos os seres. O nome Luz está intimamente ligado ao nome Bem, e, ao tratar dos vários nomes que revelam o divino em sua manifestação, Dionísio destaca o Bem como o mais apropriado para descrever a relação de Deus com o mundo. Esta relação se dá mediante a luz que emana dessa instância, que é o Sumo Bem; neste sentido, o nome Bem é pensado como um atributo de Deus: o altíssimo, que é Bom, quer o bem de tudo. Deus é puro Bem, Ele é Bom. E por causa de Sua suprema bondade Ele ilumina, vivifica e conserva toda Sua criação. Esse iluminar tem como fonte o Bem, porém, Deus é algo que se encontra para além de todos os nomes que dizem de Si. Deus é o Ser Supremo e se encontra para além do Ser; neste sentido, Ele é uma espécie de meta-Ser. Portanto, Deus é o insondável, o indescritível, o inabarcável, enfim, o inalcançável. Em que pesem todas estas considerações sobre o absoluto, Deus se estende ao mundo através dos raios de Sua infinita bondade. O Bem supremo REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 169-182, jul./dez. 2011
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é supremamente Bom e se lança à Sua criação pelos raios de Sua divina luz. Por isso, Dionísio, também, O chama de Luz (phôs) (DIONÍSIO, 2004. p. 51). É marcante, aqui, a herança platônica da relação Bem e luz que Dionísio recebera dos neoplatônicos e que, agora, se esforça para harmonizá-la com o cristianismo; é visível o empenho para adaptar o formato platônico da relação Bem e luz – na sua irradiação superabarcante – à difusão dos raios de Deus – em face da sua processão com relação ao mundo. E nisto, pode-se dizer, Dionísio se aproxima muito de Platão.3 Mas entre o Bem platônico e o Deus de Dionísio há uma diferença que deve ser considerada; em Dionísio Deus é Bem e está além do Bem, enquanto em Platão o Bem é a instância última da realidade.4 Esta concepção dionisiana de situar Deus além do Bem, ou melhor, de colocar Deus acima de todos os nomes e de tudo o mais – como sendo o inabarcável – recebe sua raiz dos neoplatônicos, pois Plotino já dissera sobre a impossibilidade de descrever de forma absoluta o Uno-Bem, dizendo que o Uno “[...] é todas as coisa e nenhuma” (BEZERRA, 2006, p. 68); assim, não se pode afirmar que o Uno é isto ou aquilo; segundo Plotino, o “Uno é inefável” (BEZERRA, 2006, p. 69). Do mesmo modo, Proclo, também, comunga dessa concepção de Supremo absoluto impossível de ser alcançado e descrito, pois o “Uno transcende toda determinação” (BEZERRA, 2006, p. 126). Portanto, para este pensamento que coloca o absoluto num lugar inalcançável, pode-se dizer que o Bem de Platão é tomado apenas como um atributo que remete para o Uno-Bem (Plotino), o Uno-Pai (Proclo), e Deus (Dionísio), o Supra-Ser insondável.
3 Dionísio e a manifestação-relação do Divino Para falar desse caráter insondável de Deus, Dionísio recorre ao termo moné. “A moné concerne a ‘morada’ de Deus, o ‘lugar’ de sua permanência, a sua transcendência” (DIONÍSIO, 2004, p. 28); moné é a instância que ultrapassa qualquer forma de compreensão. Assim, de Sua
Aproximação que diz respeito apenas à difusão dos raios, como metáfora. Vale ressaltar, aqui, que jamais Platão diz o que Bem é, ele não o descreve; para falar do Bem Platão utiliza a imagem do sol. 3 4
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absoluta transcendência, Deus se manifesta ao mundo e revela algo de Si. “Este manifestar-se de Deus é expresso com o termo próodos (transmissão, emanação)” (DIONÍSIO, 2004, p. 29). É deste modo que, separado de tudo, Deus se faz presente entre à diversidade do mundo; noutras palavras, de Sua morada (moné) distante, Ele se aproxima das coisas do mundo. Essa aproximação se dá mediante os raios de Sua gloriosa luz, que é lançada em direção de todos os seres. Aquele que é Bem, em Sua bondade, lança Sua luz à multiplicidade existente e nutre, conserva e quer o bem de tudo, pois Ele é infinita bondade. Em face desta luz sustentadora, todos os seres se voltam para Ele, o Bem absoluto. A este movimento de retorno em direção ao divino dá-se o nome de epistrophé. Deste modo, “a epistrophé representa o pressuposto do retorno dos seres ao princípio originário” (DIONÍSIO, 2004, p. 30). É uma conversão natural de todos os seres diante da luz. O Bem, sendo fonte originária de todo ser, fonte de luz que alimenta a tudo, por causa de sua natureza reluzente se lança em todas as direções. E pela força de Sua luz, todos os seres, igualmente, tendem a Ele. Portanto, assim como ocorre com o sol no ambiente sensível – onde todos os seres buscamno para ganhar sua vida –, da mesma forma se passa com o Bem num nível suprassensível – tudo se curva diante de Sua luz, buscando-a. Essa é a chave para Dionísio explicar a processão do divino em relação ao mundo e o comportamento das coisas do mundo em relação a Deus. Efetivamente, Dionísio utiliza a linguagem imagética platônica correlacionando Bem e sol para explicar essa interação Deus–mundo. Assim como é próprio da natureza do sol reluzir e afetar, também é próprio da natureza do Bem constituir-se como um ser Bom que quer o bem de todos, atingindo-os. Por essa razão a imagem platônica do sol é fundamental para explicar a relação Deus–mundo. Pois o sol é este grande astro que a tudo ilumina e alcança no mundo físico, fazendo com que tudo se volte para ele. A luz, que tem como fonte o Bem, na medida em que se lança em direção à diversidade dos seres, é pensada como a imagem da bondade. Dionísio diz textualmente: “A luz deriva do bem e é a imagem da bondade; por essa razão, celebra-se o bem chamando-o luz [697 C] como o arquétipo que se manifesta na imagem” (DIONÍSIO, 2004, p. 94). Utilizando elementos da teologia simbólica (2004, p. 96), que se vale de imagens sensíveis para falar do suprassensível, Dionísio arquiteta filosoficamente a realidade diante do Deus supersubstancial. E num misto de materialidade simbólica e imaterialidade REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 169-182, jul./dez. 2011
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concreta, é desenhada a estrutura do real mediante a relação Deus–mundo. Em suma, Deus se relaciona e se revela ao mundo mediante Sua luz, e para bem compreender este processo não há imagem mais adequada que a metáfora solar platônica: Assim como, de fato, a bondade divina superior a todas as coisas penetra toda substância, desde as mais altas e mais antigas até as últimas, ainda que permaneça acima de todas, sem que as mais elevadas possam atingir a sua excelência e sem que as mais baixas escapem ao seu influxo, [115] mas ilumina, produz, vivifica, contém e aperfeiçoa todas as coisas aptas a recebê-la [116] e é a medida, a duração, o número, a ordem, a custódia, a causa e o fim dos seres, [117] assim também a imagem onde se manifesta a bondade divina, isto é, este grande sol todo luminoso e sempre reluzente segundo a tênue ressonância do bem, ilumina todas aquelas coisas que são capazes de participar dele e tem uma luz [657 D] que se difunde sobre todas as coisas e estende sobre a totalidade do mundo visível, [...] (DIONÍSIO, 2004, p. 94).
Neste momento, as palavras de Dionísio dizem expressamente que não há nada que escape da luz divina na totalidade do mundo, e, traçando um paralelo com o sol em sua relação com o mundo visível, busca-se enaltecer a bondade de Deus em relação a todas as criaturas. Portanto, “não há nenhuma das coisas visíveis [700 A] que o sol não atinja, graças à grandeza excelente de seu próprio esplendor” (DIONÍSIO, 2004, p. 94). De acordo com essa forma de ver o grande astro, podemos pensar que o sol, para o mundo sensível, é uma espécie de deus, pois sem ele não haveria plantas, animais, o homem, enfim, nem mesmo a Terra e todos os outros planetas existiriam; tudo só existe porque gira em torno do sol; tudo só se faz visto porque orbita em volta dele e é atingido por sua luz. É esta mesma luz que dá existência a todos os seres animados e inanimados e os sustenta; por isso, o sol é um deus para tudo o que é sensível, e é assim que Platão o considerava, o sol é um deus “entre os deuses do céu” (PLATÃO, 2006, p. 508b). O sol é a imagem mais semelhante ao divino Supremo; sem o sol o mundo sensível dos homens pensantes e de todas as outras coisas não existiria, porém, é preciso observar que o sol não é a causa final de todas as coisas; a causa absoluta de tudo é sempre o Bem, tanto em Platão quanto em Dionísio. O sol, para Dionísio, “contribui para a geração dos corpos sensíveis 176
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e os move para a vida, os nutre, os faz crescer, os aperfeiçoa, os purifica e os renova” (DIONÍSIO, 2004, p. 94). Assim, ao mesmo tempo em que tudo depende do sol para ter sua existência no mundo sensível, deve-se admitir que ele apenas contribui para a existência das coisas, pois, em Dionísio, a razão última como causa é sempre Deus. Do mesmo modo, como já dissemos, em Platão a razão última de todas as coisas é o Bem; porém, Platão nomeia o sol como sendo um deus. Isso não acontece em Dionísio. Obviamente, dentro da lógica do pensamento cristão não caberia dar lugar para outro deus, pois há apenas um único Deus, o Supremo criador; empecilho que não existe no pensamento politeísta dos gregos, pois, admitida uma multidão de deuses, o sol seria apenas mais um na imensidão do cosmos, que “sempre foi, é e será, fogo sempre vivo, acendendo segundo a medida e segundo a medida apagando”, como diz Heráclito (LEÃO, 2005, p. 67). Mas talvez as semelhanças entre o pensamento cristão e o grego estejam mais próximas do que imaginamos; a tradição filosófica engessou uma diferença entre esses dois universos, que, de repente, podem não ser tão distantes assim. Isso não quer dizer que devamos tomar o pensamento grego como sendo idêntico ao pensamento cristão; todos sabem que, de início, já encontramos uma diferença radical: o mundo cristão é criado por um Deus, e o cosmos dos gregos sempre existiu. Essa é uma diferença inegável, e talvez a pergunta fosse: quem tem que se adequar a quem? Mas, polêmicas a parte, vemos também semelhanças; por exemplo, no caso de Platão, o Bem é a instância absoluta, assim como Dionísio e os demais cristãos consideram Deus; vemos também que a imagem do sol foi aproveitada pelos cristãos; isso não é à toa; há, aí, uma forte proximidade de sentido entre gregos e cristãos com relação à mensagem que se quer passar em torno de uma metafísica que se quer estabelecer. Outro ponto é a hierarquia celeste. Nota-se que há sempre uma instância primeira e fundamental que é a base para todas as outras coisas e em seguida há outras ordens; por exemplo, no caso de Platão temos o Bem, o Demiurgo, os deuses, as almas compondo o cosmos; já no caso do cristianismo temos, em primeiro lugar, Deus (em alguns casos o Cristo), depois, os arcanjos, os anjos, as almas, e assim por diante. Quando Platão toma o sol como um deus, talvez esteja tratando dessa hierarquia celeste; afinal de contas, Platão é um pensador metafísico e esotérico, herdeiro dos conhecimentos da sabedoria antiga, dos oráculos, REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 169-182, jul./dez. 2011
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do orfismo, do pitagorismo, enfim, e é provável que tenha conhecido os mistérios egípcios, já que viajou para lá em visitas aos profetas, como menciona Diogenes Laértios (séc. III) (LAÊRTIOS, p. 1988, p. 86). Ora, de onde Platão retirara esta imagem? Será criação sua ou ele apenas deu sentido e destaque a ela? Pois Platão é um pensador que não descarta os mitos; ele dá roupagem a eles, modela-os de modo a imputar-lhes sentido (ROGUE, 2005, p. 64). O sol, com esta denotação divina, provavelmente não nasceu em Platão, pois os egípcios já consideravam Osíris como o deus sol, assim como alguns indígenas e povos do oriente, também, o considerava deus. Enfim, o grande astro solar já estava na pauta das indagações metafísicas da sabedoria antiga. No contexto do platonismo, ele surge como um deus que é como filho do Bem, ou seja, que é a imagem e semelhança Dele; assim, da mesma forma, Dionísio Areopagita o aproveita como a imagem perfeita, tendo a intenção de nos possibilitar um vislumbre do que seja o divino criador, pois é o sol o instrumento mais próximo para esta compreensão do divino, já que o divino, em Dionísio, jamais pode ser conhecido em seu absoluto mistério. De fato, esta é a luz que, ainda que fosse informe, como diz o divino Moisés, tinha já definido os nossos primeiros três dias e, [120] como a bondade converte (epistréphei) tudo para si e é o princípio que reúne as coisas dispersas, como divindade que é ao mesmo tempo princípio do uno e princípio unificador, e todos os seres a desejam como princípio, sustento e fim, e o bem, como dizem as Escrituras, é aquele a partir do qual todas as coisas são e vêm à existência, como que deduzidas de uma causa perfeita, e no qual [700 B] todas as coisas subsistem, como que protegidas e contidas em um recesso onipotente, para o qual todas as coisas convergem, assim como para o limite próprio a cada uma, [122] e o qual todas as coisas desejam: as inteligíveis e as racionais, por modo de conhecimento, e as sensíveis, por modo de sensação, e as privadas de sensibilidade, por um movimento inato de instinto vital, e as privadas de vida e que somente existem, pela simples participação na substância (DIONÍSIO, 2004, p. 95).
Aqui, Dionísio recorre às Sagradas Escrituras para falar desse caráter essencial da luz como fonte de criação; segundo o Areopagita, o divino Moisés coloca a luz como sendo o elemento primordial de criação, ou seja, sem a luz não há possibilidade de aparecimento de coisa alguma. É curiosa 178
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essa afirmação, pois, de acordo com a cronologia dos dias da criação no Livro de Gêneses, o sol e a lua passaram a existir no quarto dia, e Moisés, segundo Dionísio, fala que a luz “ainda que fosse informe”, já tinha definido os primeiros três dias.5 A filosofia de Dionísio se vale das Sagradas Escrituras para dar base e sustento à sua arquitetura. Aqui não vemos complicação alguma em harmonizar o pensamento cristão com o pensamento filosófico da tradição; pelo contrário, parece ser a intenção do Areopagita tornar evidente o diálogo entre estes dois universos. Em momento algum nota-se constrangimento ao mencionar as Escrituras, pois são elas que revelam para todos o que podemos conhecer do divino. Sobre este ponto o historiador Etienne Gilson, ao falar de Dionísio, assim se pronuncia: Como só Deus se conhece, só ele, portanto, pode dar-se a conhecer àqueles que o procuram com modéstia. As próprias Escrituras só falam dele em termos tomados de empréstimos às Escrituras, e todas estas são participações no Bem supremo, que cada uma representa em seu grau e seu nível hierárquico. Decifrar a criação à luz das Escrituras é abrir-se à graça da iluminação divina, conhecer Deus como causa, ser e vida de todos os seres, restaurar em si a semelhança divina apagada, dominar as paixões da carne e retornar à sua origem. Porque Deus é a luz dos que vêem, a santidade dos santos, a divindade, a simplicidade e a unidade dos que se divinizam nele e que encontram nele, recolhendo-se, de sua dispersão no múltiplo, a perfeição da unidade. É para nos ajudar nesse ponto que as Escrituras dão a Deus os nomes que elas usam: unidade, beleza, soberania e outros mais (GILSON, 1995, p. 84).
O que se quer frisar no trecho em que citamos Moisés, é que “luz” e “criação” estão intimamente relacionadas, pois não pode haver um Deus sem a luz, e criando o mundo, só o faz por meio de Sua luz; assim, a luz é a imagem da bondade divina, a luz é a grande metáfora para se falar desse Deus criador a quem Dionísio se reporta. Esse Deus, sendo puro bem e bondade infinita, dá existência a todas as coisas e quer o bem de tudo quanto Ele criou.
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Cf. Gênesis, capítulo sobre “A criação”.
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Através de Sua luz, Ele dá existência a tudo, conserva tudo e faz com que tudo se converta para Ele, pois toda a Sua criação quer ser banhada pela luz que tem como fonte Ele, e assim a luz dá vida, conserva e nutre todas as coisas. Deste modo, “todos os seres o desejam como princípio, sustento e fim”, nas palavras de Dionísio, “como dizem as Escrituras” (DIONÍSIO, 2004, p. 95). Por isso, a imagem do sol é o exemplo sublime a ser utilizado pela filosofia do Areopagita, pois, assim como ocorre com o sol no sensível, ocorre, também, numa escala superior e suprassensível, com o Deus criador. No ambiente sensível, todos os seres precisam do sol e o buscam para terem sua existência. Vemos essa tendência de buscar o sol em todos os seres; por exemplo, planta-se uma semente, tão logo surge uma arvorezinha, ela já começa a buscar a luz solar, crescendo e envergando-se em direção ao sol, ela o procura, o deseja, deseja sua luz, pois é a luz que lhe dá o sustento e, consequentemente, a vida. Tudo o que existe no planeta Terra foi delineado com base na (e a partir da) natureza do sol, que, através de sua luz, deu ordem a tudo e fez com que tudo dependesse dele para sobreviver; o animal só é animal, com esse corpo de animal e aparência de animal, com seu sistema sanguíneo, com sua pelagem e todas as outras características, porque o sol permitiu que ele assim fosse; o sol definiu e define tudo no mundo terrestre, ele é a instância última que tudo no sensível tem que desejar, à qual tudo tem que se dobrar. Portanto, tudo o que há aqui no sensível deve sua existência ao sol, e podemos dizer que são filhos do sol, porque participam do sol, e estão ligados ao sol por intermédio dos raios. Devemos lembrar que somos afetados constantemente por seus raios e ganhamos nosso sangue do próprio sol; o sol organizou um cosmos particular ao qual demos o nome de sistema solar, e ele, o sol, é o centro desse cosmos, é o deus desse cosmos, é o nosso deus sensível. Por isso, a perfeição da imagem sensível, o divino sol material, anuncia para os metafísicos o grande sol imaterial que é Deus, o Bem, o Uno etc. O sol material organiza um cosmos sensível e contribui para a geração da vida sensível, mas o grande sol imaterial, que é o Supremo Bem ou Deus, cria todas as coisas na totalidade do universo e as nutre, as organiza, as conserva e as converte para Si. Todas as coisas aspiram-No, pois devem a Ele sua existência, por isso voltam-se para a suprema e eterna fonte de luz, que é Deus. A imagem platônica do sol serve a Dionísio Areopagita neste sentido, pois ilustra de forma incomparável a relação entre Criador e criatura na 180
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A imagem Platônica do Sol na Metafísica do Pseudo-Dionísio: considerações sobre a difusão da Luz de Deus no mundo na obra “Dos Nomes Divinos”
constituição de um Cosmos único, que aos olhos humanos é infinito. Tudo tende para esse Deus, fonte inesgotável da luz da bondade, que cria e quer o bem de todas as criaturas. É o pensamento metafísico que “des-cobre” esse cosmos solar-divino e imaterial, e “ex-põe” sua natureza reluzente para que possamos contemplála – sem jamais decifrá-la. Num nível físico, contemplamo-no com os olhos físicos, mas num nível suprafísico contemplamo-no com olhos da alma, o intelecto, como propõe o metafísico dos metafísicos, Platão. Platão dá vida a esta imagem solar, e sua lógica imagética é tentar estabelecer um paralelo decrescente e proporcional com o supremo Bem, um paralelo que seja capaz de apresentar o Bem pelo vigor da analogia; o sol é a imagem perfeita para isso, pois, em Platão, o Bem é esse grande sol imaterial, assim como, em Dionísio, o grande sol imaterial é Deus.
Referências a) Bibliografia primária DIONÍSIO, Pseudo-Areopagita. Dos nomes divinos. Introd., trad. e notas de Bento Silva Santos. São Paulo: Attar, 2004. PLATÃO. A República [ou sobre a justiça, diálogo político]. Trad. Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ________. The Republic. Translated by Paul Shorey. Cambridge and London: Harvard University Press, 1994. b) Bibliografia secundária ABBAGNANO, Nicola. História da filosofia. 4. ed. Lisboa: Presença, 1991. BEZERRA, Cícero Cunha. Compreender Plotino e Proclo. Petrópolis: Vozes, 2006. GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Média. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995. HEIDEGGER, Martin. Ser e verdade. Trad. de Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007. LAÊRTIOS, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Brasília: EdUnB, 1988. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 169-182, jul./dez. 2011
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Weriquison Simer Curbani
LEÃO, Emmanuel Carneiro; WRUBLEWSKI, Sérgio. Os pensadores originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2005. MADALHAS, Daisi; DEZOTTI, Maria Celeste Consolin; NEVES, Maria Helena de Moura. Dicionário grego-português. v. 1-5. Cotia (SP): Ateliê, 2006. PLOTINO. Eneádas. Trad. Jésus Igal. Madrid: Gredos, 1998-9. PROCLUS. Commentary on Plato’s Parmenides. G. Morrow e J. Dillon, Princenton: University Press, Princenton, 1987. ROGUE, Christophe. Compreender Platão. Trad. Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 2005. SANTOS, Bento Silva. A questão do mal na obra “Dos nomes divinos” (IV, §§ 1835) de Dionísio Pseudo-Areopagita. 2006. http://www.bentosilvasantos. com/v2/index.php?Publica%E7%F5es:Artigos_online.
THE PLATONIC IMAGE OF THE SUN IN THE METAPHYSICS OF THE PSEUDO-DIONYSIUS: CONSIDERATIONS ABOUT THE DIFFUSION OF THE LIGHT OF GOD IN THE WORLD IN THE WORK DIVINE NAMES Abstract: In the work Divine Names of the Areopagite Pseudo-Dionysius the image of the sun arises in the context of the metaphysics of the light. This platonic image is used by the Pseudo-Dionysius as incomparable archetype to illustrate how the divine casts the rays of its infinite kindness and wisdom on all beings. The sun is the great star in charge of the origin and support of all that exists in the physical world and, for that reason, according to Dionysius, a perfect image of the power of God on the totality of the world. Just like Plato addresses himself to the elevations of the intelligible and organizes the reality from the Idea (eidos or idea) of Good, Dionysius develops this platonic image like the reality configures itself from God, and the sun is a fundamental instrument to the composition of the real. Our study, therefore, will analyze how the metaphysics of the light of the Pseudo-Dionysius reinterprets the platonic image of the sun, such image, present in Book VI of the Republic. Key words: Areopagite Dionysius – Divine names – Good – sun – Plato – Republic
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TRABALHO, EDUCAÇÃO E SOLIDARIEDADE: FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS E ÉTICOS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA Eliesér Toretta Zen*
Que para todos haja sempre pão para saciar a fome Educação para aliviar a ignorância Saúde para espantar a morte Terra para colher o futuro Teto para abrigar a esperança E trabalho para fazer dignas as mãos. (EZLN)
Resumo O artigo busca articular trabalho e educação, tendo como horizonte a reflexão sobre os fundamentos filosóficos e éticos da economia solidária. Nesse sentido, assume o trabalho como dimensão ontológica na constituição e formação do humano. O trabalho tem uma potencialidade ontologicamente formadora dos seres humanos na medida em que é pelo trabalho que o ser humano transforma a natureza, criando cultura, humanizando a natureza e a si próprio, reconhecendo-se a si mesmo como criador e sujeito de sua história. O trabalho em sua concepção ontológica supera a alienação e desumanização imposta pelo modo de produção capitalista ao trabalhador. A economia solidária, ao colocar no centro do processo produtivo e educativo o ser humano e não o capital reforça a concepção de trabalho na perspectiva ontológica e com ela comunga. Nesse sentido, a economia solidária articula a unidade entre produção e reprodução, trabalho intelectual e manual, teoria e
* Licenciado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/ MG, Especialista em Filosofia e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professor de Filosofia e de Filosofia da Educação no curso superior de Licenciatura em Matemática e Licenciatura em Letras do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES). Leciona a disciplina: Economia Solidária e Cooperativismo na Especialização do Proeja. e-mail.elieserzen@ hotmail.com REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 183-201, jul./dez. 2011
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prática, concepção e execução, evitando a contradição fundamental do sistema capitalista, que desenvolve a produtividade tendo como meta o lucro, excluindo crescentes setores de trabalhadores do acesso aos bens fundamentais, necessários a uma vida digna. Palavras-chave: Trabalho, educação, solidariedade, economia solidária, humanização.
Introdução Refletir sobre o trabalho como princípio educativo e humanizador dos seres humanos faz-se necessário se quisermos construir novas relações sociais tendo como horizonte utópico a emancipação do gênero humano. Nesse sentido, a economia solidária surge como resistência da classe trabalhadora às formas perversas de exclusão do modo de produção capitalista. As pessoas que foram excluídas não têm alternativa para conseguir viver, para garantir a reprodução da vida ampliada, a não ser organizando-se de forma solidária. O atual contexto do capitalismo tem originado uma grande produção do desemprego. São muitos sujeitos. Entre eles, jovens e adultos fora do mercado formal de trabalho assalariado, que não conseguem vender a sua força de trabalho. Esta é a realidade de um sistema de produção que se configura pela busca incessante do lucro, em uma sociedade que se define pelo poder do dinheiro; sistema este que declarou homens e mulheres como figuras fundamentais para a transformação de matérias em mercadorias, explorando a função do trabalho de forma alienante e desvinculada do processo educacional de pensar, para não correr o risco de transgredir a ordem do determinismo neoliberal, em virtude do qual a sociedade deve sujeitar-se às exigências do mercado sem questionar os seus métodos (MÉSZÁROS, 2005).
1 As metamorfoses do mundo do trabalho e a precarização/desumanização da classe trabalhadora O mundo do trabalho tem sido marcado por um processo de reestruturação produtiva e de acumulação financeira, observado a partir de meados da década de 1990, o que tem ocasionado efeitos na reconfiguração 184
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tecnológica e organizacional dos processos produtivos. Esses fatos acabam comprometendo os vínculos de emprego/trabalho e acentuando a lógica destrutiva na relação entre os seres humanos e a natureza. Antunes (1998) afirma que o capitalismo, com a configuração que vem assumindo nas últimas décadas, acentuou sua lógica destrutiva: O padrão produtivo taylorista e fordista vem sendo crescentemente substituído ou alterado pelas formas produtivas flexibilizadas e desregulamentadas, das quais a chamada acumulação flexível e o modelo japonês ou toyotismo são exemplos; o modelo de regulação social-democrático, que deu sustentação ao chamado estado de bem estar social, em vários países centrais, vem também sendo solapado pela (des)regulação neoliberal, privatizante e antissocial (ANTUNES, 1998, p. 40).
De acordo com o eminente autor, algumas características podem ser enumeradas para qualificar as modificações no sistema de produção capitalista, que vêm fragmentando e reduzindo a classe trabalhadora: a incorporação da ciência e inovação tecnológica nos processos produtivos, a produção global e flexível, a nova forma organizacional (toyotismo), a qualidade total e a globalização do capital financeiro. A partir de todas essas mudanças, o que se percebe é que o desemprego aumenta e diversifica a sua forma, além de atingir desigualmente os indivíduos segundo as suas características de sexo, escolarização, idade, raça. O caráter destrutivo do sistema capitalista manifesta-se de forma mais contundente e grave na precarização da força humana que trabalha e na degradação da natureza pelo homem. Segundo Mance (2003), o conceito de economia solidária surge como um projeto contra-hegemônico à economia capitalista. Nesse sentido, a economia solidária está associada a práticas de consumo, à comercialização, à produção e serviços, em que se defende em graus variados, entre outros aspectos, a participação coletiva, a autogestão, a democracia, o igualitarismo, a cooperação, a autossustentação, a promoção do desenvolvimento humano, a responsabilidade social e a preservação ambiental. A economia solidária, na medida em que estabelece novas relações com a natureza e com os seres humanos e ao estar profundamente vinculada à realidade local e regional, tende a fundamentar nova concepção de trabalho e desenvolvimento, uma vez que contém indicativos de superação dos problemas fundamentais gerados REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 183-201, jul./dez. 2011
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pelo modo de produção capitalista (e que este não consegue resolver), como o crescimento progressivo da miséria humana e da destruição ambiental. O que dizer dos sujeitos da educação de jovens e adultos, homens e mulheres, trabalhadores(as) empregados(as) e desempregados(as), em busca do primeiro emprego ou de sua reintegração aos postos de trabalhos? Dos filhos, pais e mães? Dos sujeitos da cidade e do campo? São sujeitos sociais e culturais, marginalizados e excluídos das esferas socioeconômicas e educacionais, privados do acesso à cultura letrada e aos bens culturais e sociais, comprometendo uma participação mais efetiva no mundo do trabalho, da política e da cultura. Trazem em sua identidade existencial a marca do sofrimento. De acordo com Paiva (2004), os sujeitos jovens e os adultos, quando voltam à escola, mesmo pensando que é ela que lhes pode permitir a ascensão social ou econômica, quase sempre trazem uma autoestima afetada pela internalização dos fracassos anteriores em experiências com a própria escola. Mas é a ela que confiam a realização de seus sonhos, pela esperança que depositam no projeto de vida pessoal e coletivo. Desta forma, consideram-se fundamentais as motivações e as experiências dos alunos, as quais dão sentido aos processos de aprendizagem. Segundo Soares (2005): Os jovens e adultos populares não são acidentados ocasionais que, ou gratuitamente, abandonaram a escola. Esses jovens e adultos repetem histórias longas de negação de direitos, histórias coletivas. As mesmas de seus pais, avós, de sua raça, gênero, etnia e classe social. Quando se perde essa identidade coletiva racial, social, popular dessas trajetórias humanas e escolares, perde-se a identidade da Educação de Jovens e Adultos e passa a ser encarada como mera oferta individual de oportunidades pessoais perdidas (p. 30).
Nessas experiências, produzem novos saberes e novos conhecimentos, levando-os novamente à escola. Saberes da vida, das práticas sociais em casa, na rua, na igreja, no mundo do trabalho, nas lutas pela sobrevivência. Saberes que nem sempre revelam seus direitos de trabalhadores tampouco sua condição de cidadãos. Segundo Freire (2007), respeitar e valorizar esses saberes no processo educativo é uma das tarefas fundamentais do educadorprofessor comprometido com a libertação: Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o dever de não só respeitar os saberes com que os educandos, 186
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sobretudo os das classes populares, chegam a ela saberes socialmente construídos na prática comunitária – mas também, como há mais de trinta anos venho sugerindo, discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos. Por que não discutir com os alunos a realidade concreta a que deva associar a disciplina cujo conteúdo se ensina, a realidade agressiva em que a violência é a constante e a convivência das pessoas é muito maior com a morte do que com a vida? Por que não estabelecer uma “intimidade” entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos? Por que não discutir as implicações políticas e ideológicas de um tal descaso dos dominantes pelas áreas pobres da cidade? A ética de classe embutida neste descaso? Porque, dirá um educador reacionariamente pragmático, a escola não tem nada que ver com isso. A escola não é partido. Ela tem que ensinar os conteúdos, transferi-los aos alunos. Aprendidos, estes operam por si mesmos (FREIRE, 2007, p. 30).
Ao estabelecer a relação entre os conhecimentos vividos pelos alunos, oriundos da prática social global, incluindo o mundo do trabalho, e os saberes escolares, o diálogo torna-se uma necessidade fundamental na problematização da realidade. A educação problematizadora e, portanto, humanizadora funda-se numa relação dialógico-dialética entre educador e educando em que ambos aprendem juntos. O diálogo é, assim, uma exigência existencial que possibilita a comunicação e permite ultrapassar o imediatamente vivido. É no reconhecimento mútuo entre educador e educando, entre um saber de experiência, feito e vivido, que ambos, educador e educando, tornam-se sujeitos e protagonistas de sua educação e humanização. De acordo com Arruda (2004), tomando como ponto de partida as condições de vida e trabalho dos educandos, o educador abre um diálogo com eles sobre a questão “para quê desejam educar-se?” Como afirmamos anteriormente, os jovens e os adultos buscam a escola motivados por uma necessidade muito concreta: conseguir um trabalho menos degradante e alienante, através do qual possam ganhar o suficiente para sustentar, com dignidade, a si e sua família. Nesse sentido, fica explícito, que o vínculo entre trabalho e educação faz-se naturalmente, pelas suas próprias condições.
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2 O trabalho como princípio educativo e humanizador na economia solidária Conforme Paiva (2004) é na escola que os sujeitos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) apropriam-se dos conhecimentos científicos e do instrumental necessário ao exercício de uma cidadania crítica. São esses conhecimentos que permitirão aos alunos, jovens e adultos pensar de forma crítica as formas de trabalho que lhes são oferecidas e o papel subalternizado dos trabalhadores no modo de produção e reprodução do capital. Nesse contexto, o trabalho emerge como uma categoria fundamental do currículo da Educação de Jovens e Adultos. Quando afirmamos o trabalho como categoria fundamental na Educação de Jovens e Adultos e na economia solidária, de que concepção de trabalho estamos falando? Qual concepção de trabalho emerge das práticas e experiências da economia solidária? Pensar o trabalho na perspectiva da economia solidária nos remete a pensá-lo como princípio educativo e como dimensão ontológica capaz de formar/deformar os seres humanos. É por meio do trabalho que homens e mulheres transformam a natureza e cria sua existência material e cultural, constituindo-se como seres humanos. Essa afirmação nos leva a entender o ser humano em sua dimensão de historicidade. Nós nos fazemos por meio do trabalho. Não há um ser humano pronto, acabado. Estamos sempre a nos fazer humanos ou desumanos. É pelo trabalho que o homem cria o mundo e a si mesmo. Os seres humanos se humanizam/desumanizam por meio do trabalho. Pelo trabalho o homem produz os bens necessários à existência, e, ao produzir sua existência, ele se põe em relação com a natureza, transformando-a e também em relação com os outros homens, criando a si e a sociedade. Arruda (2004), quando se refere ao cultivo dos cinco sentidos materiais da espécie humana, como o trabalho de toda a história anterior à existência da natureza humanizada, afirma o caráter social do trabalho humano como fundamental no processo de hominização. Para ele, Marx concebe o trabalho como “[...] objetivação da essência humana necessária para fazer os sentidos humanos do Homem e também para criar um sentido humano apropriado para toda a riqueza da humanidade e da natureza”. A concepção de trabalho de Marx vai além daquela que prevalece nas sociedades de classes, onde o ócio e os trabalhos de gestão e reprodução 188
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do capital e das mercadorias estão separados dos trabalhos manuais. Frigotto (2005), citando Marx (1983), afirma que, diferentemente dos animais, que vêm regulados, programados por sua natureza e por isso não têm consciência de sua existência, não a modificam, mas se adaptam e respondem instintivamente ao meio, os seres humanos criam e recriam, pela ação consciente do trabalho, a sua própria vida. Antes, o trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporeidade, braços, pernas, cabeça e mãos, a fim de se apropriar da matéria natural numa forma útil à própria vida. Ao atuar por meio desse movimento, sobre a natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza (MARX, 1983, p. 149).
Ensinar o trabalho como direito e dever é desconstruir a ideia e a prática capitalista de privilégio de uma classe, por meio da exploração do trabalho, sobre a outra e alcançar a compreensão de que essa concepção burguesa é um fenômeno que pode e deve ser transformado. Assim, podemos afirmar que o trabalho, como uma atividade humana fundamental, ao ser introduzido no processo educativo e no currículo, permite ao educando da EJA compreender como se dá o processo de construção da realidade social e ao mesmo tempo refletir sobre sua atuação como cidadão no sentido de participar como sujeito na transformação da sociedade. Segundo Ramos (2003), do ponto de vista do capital, a dimensão ontológica do trabalho é subsumida à dimensão produtiva, pois nas relações capitalistas o sujeito é o capital e o homem é o objeto. Nesse sentido, para assumir o trabalho como princípio educativo é preciso considerar e superar a lógica da reprodutibilidade do capital: Chegamos ao fim do século XX com a seguinte contradição: a ciência e a técnica, que têm a virtualidade de produzir uma melhor qualidade de vida, ocupar os seres humanos por menos tempo nas tarefas de produzir para a sobrevivência e liberá-los para o tempo livre, tempo de escolha, de fruição, de lazer, sob as relações do capitalismo tardio produzem o desemprego estrutural ou o trabalho precarizado (FRIGOTTO, 2005, p. 70). REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 183-201, jul./dez. 2011
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É neste ponto que reside o sentido de articulação entre o mundo do trabalho e a educação: a constatação da identidade entre as capacidades demandadas pelo exercício da cidadania e pela atividade produtiva, o que permitiria construir um currículo da EJA em que se pudesse superar a dicotomia entre a racionalidade técnica e o caráter abstrato dos ideais de formação humana. Concordamos com Ramos (2003) quando ele nos afirma que esta seria uma das principais características de um currículo que integrasse trabalho, ciência e cultura. A concepção de currículo que defendemos para a Educação de Jovens e Adultos tem como foco a formação humana. Isso implica formar (não treinar, adestrar, de forma aligeirada e restrita ao mercado de trabalho) os sujeitos (cidadãos-trabalhadores) para compreenderem a realidade para além de sua aparência fenomênica. Por realidade compreendemos, conforme Ramos (2003), tanto as relações sociais em sua totalidade quanto os processos de trabalhos que envolvem o trabalhador e dele requerem uma ação no sentido de transformação, e não da simples adaptação. Os conhecimentos desenvolvidos pela escola e que estão presentes no currículo constituem-se como apropriação da realidade objetiva (social e produtiva), de modo que os conteúdos de ensino convertam-se em “categorias de análise” da realidade. O trabalhador não seria somente “competente”, mas cognoscente da realidade social e produtiva em que está inserido, na qual e sobre a qual opera política e profissionalmente, podendo transformá-la porque a compreende. Isso modifica radicalmente o sentido dos conteúdos curriculares. Eles não são “conteúdos em si para si” nem são “insumos para o desenvolvimento de competências”. Eles são conhecimentos objetivos construídos sócio-historicamente e constituem-se, para o trabalhador, categorias para a compreensão da realidade em que vive, podendo ser esta realidade, até mesmo, o trabalho que deve realizar. (RAMOS, 2003)
3 Fundamentos filosóficos e éticos da economia solidária Tiriba (2001) nos informa que a economia solidária é um conjunto de atividades econômicas e práticas sociais desenvolvidas pelos setores populares com a finalidade de garantir, por meio da utilização de sua própria força de trabalho e de recursos disponíveis, a satisfação das necessidades básicas, tanto materiais como imateriais. Com base nisso, a concepção de economia solidária nos remete a duas questões fundamentais: refere-se a uma dimensão da economia que transcende a lógica capitalista de obtenção e acúmulo de bens 190
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materiais; e se refere a um conjunto de práticas que se desenvolvem entre os setores populares, manifestando-se no cotidiano, na produção e reprodução da existência, na perspectiva do bem-viver. A economia popular solidária busca superar as relações sociais de produção pautadas pela lógica do ter, inerente ao sistema capitalista. Ensina Fromm (1977) que a sociedade industrial, capitalista, busca desenvolver nas pessoas o modo ter de existência1. Esse modo caracteriza-se pela ganância, pelo acúmulo de riquezas, pelo consumismo, pela competição e pela supremacia do poder do dinheiro em escala planetária sobre a vida humana e a natureza. A sociedade aquisitiva tem como direitos intransferíveis do indivíduo adquirir, possuir e obter lucro. Desta forma pode-se caracterizar o modo ter de existência: Adquirir, possuir e obter lucro são os direitos sagrados e inalienáveis do indivíduo na sociedade industrial. O que sejam as fontes da propriedade não importa. A orientação no sentido do ter é característica da sociedade industrial ocidental, na qual a avidez por dinheiro, fama e poder tornou-se o tema dominante da vida. O homem moderno é incapaz de compreender o espírito de uma sociedade que não esteja centrada na propriedade e na avidez (FROMM, 1977, p. 39).
A sociedade industrial capitalista é fundamentalmente orientada para o modo ter de existência. A totalidade da vida social se encontra reificada e alienada pela lógica do ter. De acordo com Arruda (2004), o sistema global do capital está configurado da seguinte forma: o capital é o sujeito, os trabalhadores são os objetos; a competição, a dominação e a submissão são as formas dominantes de relação; a apropriação privada é a finalidade e a matriz da ação. Os resultados estruturais são a subordinação, a desigualdade, o desemprego e a exclusão; o Estado tem o papel de garantir a “liberdade” do mercado e o capital privado como sujeito legítimo, seja por manipulação ideológica, seja por coerção. Em síntese, a matriz cultural dominante se fundamenta na concepção consumista, individualista e hedonista, subordinando o ser ao ter e reduzindo o ser humano e a natureza a mercadorias. Ainda, para o referido autor, a economia solidária contrapõe-se à economia no modo de produção Segundo Fromm (1977), ter e ser são dois modos fundamentais de experiência, cujas respectivas forças determinam as diferenças entre os caracteres dos indivíduos e vários tipos de caráter social. 1
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capitalista na medida em que promove o trabalho humano como ser, saber, criar e fazer, ou como toda ação transformadora do mundo da natureza em mundo humano, ou ainda como toda ação em que, ao transformar o mundo, o ser humano constrói a si mesmo. Na economia solidária, o parâmetro do crescimento econômico ilimitado como razão de ser da atividade econômica cede lugar ao conceito complexo de riqueza como um conjunto de bens materiais e imateriais que servem de base para o desenvolvimento humano e social. Já afirmamos, em outros momentos, que a economia solidária nos remete ao sentido etimológico da palavra “economia”, que se origina do grego oikos (casa) e nemo (eu distribuo, eu administro). (ZEN, 2009) As normas são modificadas sempre que a casa não consegue mais servir para o cuidado de todos os seus habitantes. O bemviver de todos os que habitam a casa depende da co-responsabilidade de cada um. Quanto mais cada um cuidar do bem-estar dos outros, mais aumenta o bem-estar de todos. Nesse sentido, a economia solidária tem como finalidade a gestão do bem-viver e a satisfação das necessidades dos habitantes da casa.
4 A ressignificação do trabalho na perspectiva da economia solidária Ainda, parafraseando Arruda (2004), a alienação maciça em escala planetária, o desemprego estrutural, a profunda desigualdade e opressão provocados pelo capitalismo têm sido confrontados por um movimento social sempre mais vigoroso, que começou como antiglobalização e desdobrou-se num movimento alterglobalização, cuja palavra de ordem é a mesma do Fórum Social Mundial2: outro mundo é possível, outra globalização é possível! Nesse O FSM é um espaço de debate democrático de ideias, aprofundamento da reflexão, formulação de propostas, troca de experiências e articulação de movimentos sociais, redes, ONGs e outras organizações da sociedade civil que se opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e por qualquer forma de imperialismo. Após o primeiro encontro mundial, realizado em 2001, configurou-se como um processo mundial permanente de busca e construção de alternativas às políticas neoliberais. Esta definição está na Carta de Princípios, principal documento do FSM. O Fórum Social Mundial caracteriza-se também pela pluralidade e pela diversidade, tendo um caráter não confessional, não governamental e não partidário. Ele se propõe a facilitar a articulação, de forma descentralizada e em rede, de entidades e movimentos engajados em ações concretas, do âmbito local ao internacional, pela construção de outro mundo, mas não pretende ser uma instância representativa da sociedade civil mundial. 2
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contexto adverso é que podemos situar a economia solidária como uma nova proposta de organizar a economia e a sociedade em torno da convicção de que outra socioeconomia global é possível, outro ser humano é possível. O processo de reestruturação produtiva, observado a partir dos anos 1980, e a reconfiguração tecnológica e organizacional dos processos produtivos têm provocado efeitos na vida dos trabalhadores, contribuindo para a precarização e degradação do trabalho humano. Nesse sentido afirma Mészáros: A consciência dos limites do capital tem estado ausente em todas as formas de racionalização de suas necessidades reificadas, e não apenas nas versões mais recentes da ideologia capitalista. Paradoxalmente, contudo, o capital é agora compelido a tomar conhecimento de alguns desses limites, ainda que, evidentemente, de uma forma necessariamente alienada. Pelo menos agora os limites absolutos da existência humana – tanto no plano militar como no ecológico – têm de ser avaliados, não importa quão distorcidos e mistificadores sejam os dispositivos de aferição da contabilidade socioeconômica capitalista. Diante dos riscos de uma aniquilação nuclear, por um lado e, por outro, de uma destruição irreversível do meio ambiente, tornou-se imperativo criar alternativas práticas e soluções cujo fracasso acaba inevitável em virtude dos próprios limites do capital, os quais agora colidem com os limites da própria existência humana (2009, p. 57).
Concordamos com Arruda (2004) quando afirma que na economia capitalista as atividades econômicas são orientadas para gerar riquezas, que são acumuladas ou apropriadas por aqueles que possuem bens, capital, recursos e conhecimentos. O capitalismo tem por base a propriedade privada dos bens, dos recursos e dos meios de produção: os equipamentos, as empresas e a propriedade da terra. Nas sociedades capitalistas, quem não possui esses recursos não consegue satisfazer suas necessidades básicas (alimentação, moradia, proteção, saúde, educação, lazer) e continua na pobreza. A atual crise econômica é o resultado do atual modelo de domínio do capital financeiro especulativo, ou seja, da “jogatina” das bolsas de valores. Quem paga a conta dessa crise são os trabalhadores e trabalhadoras: aumenta o número de desempregados; há redução de salários; aumenta o trabalho precarizado, entre outras consequências. Esse é o “desenvolvimento” que o capitalismo deixou para a humanidade, ou seja, uma humanidade desumanizada e um planeta insustentável: REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 183-201, jul./dez. 2011
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O estilo de vida criado pelo capitalismo industrial sempre será o privilégio de uma minoria. O custo em termos de depredação do mundo físico, desse estilo de vida é de tal forma elevado que toda tentativa de generalizá-lo levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização, pondo em risco a sobrevivência da espécie humana (FURTADO, 1974, p. 38).
A partir de todas essas mudanças, o que se percebe é que o mercado de trabalho atual assume novos traços. O vínculo empregatício, então, encontra-se fragilizado. Conforme Guimarães (2002), o aparecimento desta nova categoria – desempregados de longa duração – revela uma ruptura da relação entre emprego e desemprego e aponta para a crise estrutural do sistema capitalista. Tiriba (2001) afirma que as estatísticas não consideram como desempregados aqueles sujeitos que não estão à procura de emprego, ou que trabalham informalmente. Por isso, afirma que é preciso questionar essas estatísticas sobre a questão do emprego e desemprego, pois [...] ao totalizar a realidade humano-social desconsideram a complexidade das relações econômicas, ofuscando outros mundos nos quais a força de trabalho não se configura como uma mercadoria. Sinalizamos que a economia global não se resume à economia capitalista e que, tampouco a economia popular (solidária) se configura como “refúgio dos desempregados” (TIRIBA, 2001, p.76).
Conforme Tiriba (2001), ainda que a economia solidária esteja submetida ao sistema capitalista, apresenta características que se contrapõem à racionalidade desse sistema. Na economia solidária os trabalhadores não intercambiam sua força de trabalho por um salário; seu trabalho não consiste em trabalho pago e trabalho excedente não pago, ou seja, trabalho alienado.3 Como os trabalhadores detêm a posse coletiva dos meios de produção, em vez do emprego da força de trabalho alheio, o princípio é a utilização da própria 3 O conceito de alienação é histórico, tendo uma aplicação analítica numa ligação recíproca entre sujeito, objeto e o modo de produção capitalista. Karl Marx (1818-1883), filósofo alemão, analisa esse conceito em duas de suas obras “Os “Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844” e “Elementos para a Crítica da Economia Política” (1857-58)”. Marx, ao analisar a alienação, tem como horizonte refletir sobre o processo de expropriação da “mais-valia”, ou seja, do lucro, que se dá nas relações de trabalho sob o modo de produção capitalista. O processo de alienação do trabalhador no modo de produção capitalista impede a sua emancipação, pois retira dele o caráter de sujeito, transformando-o em objeto.
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força de trabalho para garantir não somente a subsistência imediata senão também produzir um excedente que possa ser trocado e comercializado, no mercado de pequena produção mercantil, por outros valores de uso. Para Singer (2005), a economia solidária apresenta-se como alternativa capaz de superar o capitalismo e retomar a questão do trabalho como dimensão ontológica inerente ao ser humano. Desse modo, a economia solidária é uma alternativa à precarização do emprego ou à exclusão deste no quadro que se configura a partir da reestruturação do capitalismo. Com propriedade, Arruda (2004) afirma que a economia solidária é uma atividade econômica organizada para servir ao seu objetivo maior, que é o desenvolvimento pessoal (autodesenvolvimento) e coletivo seguro e sustentável. Isto implica a partilha da satisfação das necessidades e a cogestão das casas em que o povo habita em comum – lar, bairro, município, ecossistemas, país e planeta. Em suma, a economia solidária é uma forma ética, recíproca e cooperativa de consumir, produzir, intercambiar, financiar, comunicar, educar, desenvolver-se, que promove um novo modo de pensar e viver. A economia solidária se configura da seguinte maneira: a sociedade civil, especialmente o mundo do trabalho, se empoderam para serem os sujeitos da sua vida e do seu desenvolvimento. O Estado, o capital, a economia e a tecnologia são concebidos como meios para viabilizar o desenvolvimento humano e social. A luta pela democratização da escola e do Estado é um projeto comum da classe trabalhadora, cujo papel é promover um sistema de convivialidade baseado na cooperação, no respeito mútuo, na solidariedade e que possibilite o pleno desenvolvimento de todas as pessoas. Barbosa (2007) afirma que, ao atingir recentemente o estatuto de política pública,4 a economia solidária passou a ser definida como “[...] conjunto de atividades econômicas – de produção, distribuição, consumo, poupança e crédito – organizadas sob a forma de autogestão. Os elementos ideo-políticos que compõem esse paradigma afirmam-se como de: difusão de valores culturais que centralizam o ser humano como sujeito e finalidade da atividade econômica; desenvolvimento de práticas de reciprocidade e espírito cooperativista; assunção do feminino como essencial nesse processo 4 A Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes) foi criada em 2003 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e reflete o movimento de luta da sociedade civil pela consolidação de novas relações de produção, consumo e distribuição dos bens necessários à vida.
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de constituição de uma economia sustentada na solidariedade; associação entre produção, distribuição e consumo, mediante investimento no desenvolvimento local, com redes de consumidores orientados por princípios éticos, solidários e sustentáveis nas suas escolhas de consumo, e redes de comércio e ecossistema (terra, água, reservas florestais, animais); política autogestionária5 de financiamento responsável por meio de descentralização de moedas; comércio justo associado ao uso de moedas comunitárias, controle dos fluxos financeiros e limitação das taxas de juros; associação a movimentos e lutas sociais por um Estado democraticamente forte a partir da sociedade e voltado diretamente para ela; por outro modelo de globalização que a torne contra-hegemônica ao socialmente excludente em vigor; agenciamento de novos sujeitos políticos na prática econômica através da democratização do poder, da riqueza e do saber, e sustentada na gestão participativa sem a tutela do Estado e distanciada das práticas cooperativas burocratizadas.
5 A organização política da economia solidária no Brasil De acordo com os participantes do Fórum Brasileiro de Economia solidária (FBES), a economia solidária no Brasil está avançando na sua organização política, constituindo fóruns e redes. Desde o início dos anos 1980 surgiram iniciativas de apoio às iniciativas de economia solidária e de sua organização, tais como os Projetos Alternativos Comunitários, incentivados pela Cáritas Brasileira e a cooperação agrícola nos assentamentos de reforma agrária, organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), entre outras. Esse processo ganhou impulso durante a década de 1990, com as seguintes iniciativas: a) criação da Associação Nacional de Trabalhadores de Empresas de Autogestão (Anteag), articulando as iniciativas de empresas recuperadas por trabalhadores e outros empreendimentos autogestionários;
5 A autogestão é concebida como repartição de poder e esforços para ação produtiva cooperativa, com o objetivo de humanizar o trabalho e ampliar a democratização na sociedade. Não é um conceito novo, na medida em que acompanha a história do movimento operário, dos falanstérios à comuna de Paris.
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b) ações de incentivo à socieconomia solidária do Projeto Alternativas do Cone Sul (PACS), que, junto com outras organizações, resultou na criação da Rede Brasileira de socieconomia solidária; c) iniciativas promovidas pela Ação da Cidadania Contra a Fome e a Miséria e Pela Vida, animada pelo sociólogo José Herbert de Souza, o Betinho, juntamente com centenas de organizações não governamentais e entidades públicas; d) surgimento das Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares organizadas nas Redes (ITCPs) e com a Rede Unitrabalho, que ampliaram os horizontes da extensão universitária com caráter emancipatório, comprometendo as universidades e institutos federais com o fomento às iniciativas econômicas solidárias; e) experiências de ações governamentais em apoio à economia solidária. Um marco importante na trajetória da economia solidária ocorreu em 2001, com a criação do Grupo de Trabalho Brasileiro de Economia solidária nos Fóruns Sociais Mundiais, articulando essas diversas iniciativas organizativas. O trabalho do GT brasileiro trouxe visibilidade e propiciou o intercâmbio de experiências e integração entre as diferentes práticas de economia solidária no Brasil e em diversas partes do mundo. A conjugação de esforços resultou na realização da I Plenária Nacional de Economia solidária, em 2002, em São Paulo, que iniciou a elaboração de uma Plataforma Nacional de Economia Solidária e decidiu reivindicar do governo recémeleito a criação de políticas públicas de economia solidária. Em 2003 foi criada a Secretaria Nacional de Economia Solidária no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego, fruto do esforço político conjunto de uma série de organizações que atuam com economia solidária no Brasil. No mesmo ano foi realizada a Terceira Plenária Nacional de Economia Solidária, criando o Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES). O FBES é um instrumento do movimento da economia solidária, um espaço de articulação e diálogo entre diversos atores e movimentos sociais pela construção da economia solidária como base fundamental de outro modelo de desenvolvimento socioeconômico do país, a partir da realidade local, de modo economicamente solidário e ambientalmente sustentável. Em 2006 foi realizada a I Conferência Nacional de Economia Solidária, mobilizando mais de 15 mil pessoas em suas etapas preparatórias (estaduais e microrregionais) e 1.200 pessoas na etapa nacional. A conferência estabeleceu diretrizes, objetivos e prioridades para as políticas públicas de economia solidária, como direito de cidadania e obrigação do Estado. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 183-201, jul./dez. 2011
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6 Experiências de economia solidária no estado do Espírito Santo No estado do Espírito Santo algumas experiências de economia solidária vêm sendo construídas em parceria com os movimentos sociais, via campesina, prefeituras, MST, escolas e outras instituições. Nesse sentido, merece destaque a realização da II Conferência Estadual de Economia Solidária, realizada no município de Serra-ES, promovida pela parceria entre a Secretaria de Estado do Trabalho, Assistência e Desenvolvimento Social (Setades) e o Conselho Estadual de Economia Solidária (CEES). A II Conferência Estadual teve como tema central o seguinte ideal: “Pelo direito de produzir e viver em cooperação de maneira sustentável”. A organização do evento contou com painéis, debates, grupos de trabalho e palestras sobre o tema economia solidária. Dentre os objetivos da conferência destacaram-se: a realização de um balanço sobre os avanços, limites e desafios das políticas públicas de economia solidária no atual contexto socioeconômico, político, cultural, ambiental nacional e internacional; avanço no reconhecimento do direito a formas de organização econômica baseadas no trabalho associado; proposição de prioridades, estratégias e instrumentos efetivos de políticas públicas e programas de economia solidária; e promoção do conhecimento mútuo e a articulação dos poderes públicos e das organizações que constroem a economia solidária. Como preparação para a conferência estadual foram realizadas oito conferências regionais, que possibilitaram o intercâmbio de conhecimento e experiências em torno da economia solidária no Espírito Santo. Nos encontros regionais foram discutidos três eixos temáticos: “Avanços, limites e desafios da Economia solidária no atual contexto socioeconômico, político, cultural e ambiental nacional e internacional”; “Direito a formas de organização econômica baseadas no trabalho associado, na propriedade coletiva, na cooperação, na autogestão, na sustentabilidade e na solidariedade, como modelo de desenvolvimento”; e “Prioridades, estratégias e instrumentos efetivos de atuação e de organização de Políticas e Programas da Economia Solidária”. As conferências regionais de economia solidária tiveram como referência os Territórios de Cidadania, Região Metropolitana, Região Sul e Territórios de Identidade da Política Territorial do Ministério de Desenvolvimento Agrário, através da Secretaria de Estado do Trabalho, Assistência e Desenvolvimento 198
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Social, em articulação com o Conselho Estadual de Economia Solidária e convocada pela Comissão Organizadora Estadual. A Conferência Estadual de Economia Solidária, realizada no período de 27 a 29 de abril, contou com a participação de 267 delegados, entre gestores públicos, sociedade civil e empreendimentos econômicos solidários. Na ocasião foram eleitos oito delegados do poder público, oito da sociedade civil e 16 dos empreendimentos econômicos solidários, para representar o Estado na II Conferência Nacional de Economia Solidária, que foi realizada de 16 a 18 de junho de 2010, em Brasília. A economia solidária no Estado do Espírito Santo vem se constituindo como uma nova prática coletiva, construída a partir dos valores de cooperação, solidariedade, autogestão, respeito à natureza e valorização do trabalho humano, tendo em vista um projeto de desenvolvimento sustentável e solidário. É um modo diferente de organizar a produção, a distribuição e o consumo, tendo por base a igualdade de direitos e de responsabilidades. Esta nova economia representa um resgate histórico dos valores do trabalho, tornando-se para os trabalhadores a possibilidade de construção de uma nova cultura do trabalho, voltada para a valorização e dignidade do ser humano, com respeito à vida. É uma alternativa para geração de trabalho e renda, que visa à eliminação das desigualdades socioeconômicas e difunde os valores da solidariedade e do exercício da cidadania. As questões que desafiam a nós educadores(as) são: como elaborar uma proposta curricular que seja perpassada pela concepção de trabalho na perspectiva da economia solidária e que integre as diferentes demandas e diversidades dos sujeitos da EJA e da educação básica e superior e as diferentes disciplinas do currículo, tendo como eixo articulador a categoria trabalho como princípio educativo e humanizador dos sujeitos jovens e adultos? Quais as alternativas metodológicas que nos ajudam a trazer essas temáticas para a sala de aula? Como repensar a educação profissional de jovens e adultos na perspectiva da formação humana no atual contexto de desumanização provocada pela lógica de acumulação/reprodução ilimitada do capital?
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WORK, EDUCATION AND SOLIDARITY: PHILOSOPHICAL AND ETHICAL FUNDAMENTS IN THE SOLIDARITY ECONOMY Abstract The article searches to articulate work and education having as horizon the reflection about the philosophical and ethical fundaments of the Solidarity Economy. In this sense, it takes the work as ontological dimension in the constitution and formation of the human. The work has a potentiality ontologically formative of human beings as it is through work that human beings transform nature, creating culture, humanizing nature and themselves, recognizing themselves as creator and subject of their history. The work in its ontological conception overcomes the alienation and dehumanization imposed by the way of capitalist production to the worker. The solidarity economy, when placing in the center of the productive and educative process the human being and not the capital, reinforces and communes of the conception of work in the ontological perspective. In this sense, the solidarity economy articulates the unity between production and reproduction, intellectual and manual work, theory and practice, conception and execution, avoiding the fundamental contradiction of the capitalist system which develops the productivity aiming the profit, excluding increasing sectors of workers from the access to the fundamental goods for a worthy living. Key words: Work, Education, Solidarity, Solidarity Economy, Humanization.
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A PÓS-MODERNIDADE E SEUS DESAFIOS À ESPIRITUALIDADE CRISTÃ: É POSSÍVEL A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ HOJE? Werbson Beltrame Pereira*
Resumo Quais são os desafios que o mundo e a cultura pós-moderna apresentam para a espiritualidade cristã hoje? É possível a espiritualidade cristã ainda hoje? Diante da análise da pós-modernidade é perceptível que o homem vai se entregando aos prazeres e aos redutos solitários, almejando riquezas sempre crescentes em busca de uma satisfação que parece não ter fim. Naturalmente, hoje em dia muita coisa se tornou possível; por isso mesmo, impossível se tornaram outras. Em busca da resposta à pergunta aqui apresentada, neste artigo se fará uma contextualização da pós-modernidade e seus principais desafios à espiritualidade cristã; analisar-se-á a secularização, o ateísmo, o narcisismo e a perca do mistério e suas implicações sociais, culturais, religiosas e antropológicas na vida do ser humano, enxergando em seu horizonte o declinar da razão e o retorno ao sagrado. Palavras-chave: Pós-modernidade, espiritualidade, secularismo, ateísmo, narcisismo.
Introdução Os cristãos vivem hoje uma realidade marcada por grandes mudanças, que afetam profundamente suas vidas. Sentindo-se constantemente desafiados a discernir os sinais dos tempos, têm profunda necessidade de, à luz da espiritualidade, aprofundar uma pergunta fundamental: quais são os desafios que o mundo e a cultura pós-moderna apresentam à espiritualidade cristã hoje? Diante da profundidade e amplitude da pergunta, torna-se necessário fazer uma análise da sociedade atual, dado que a pós-modernidade * Graduado em filosofia pela Faculdade Católica Salesiana de Vitória. Aluno do Curso de Teologia do Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória (ES) e Especialista em Aconselhamento Pastoral e Orientação Espiritual pelo Instituto São Tomás de Aquino – Belo Horizonte. 202
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não é fruto apenas de uma época, sendo mais o amadurecimento dos esforços medievais em sua busca de libertação através principalmente da re-visitação da cultura clássica grego-romana e dos esforços e anseios pela novidade, ao mesmo tempo em que colhe os frutos ainda imaturos da modernidade. É basilar para a espiritualidade cristã saber como esses desafios afetam a vida, o sentido religioso e ético de todos os que buscam sua dimensão mais profunda para encontrar-se com Deus. Em presença de tantos méritos e avanços, a pós-modernidade, descortinando a grandiosidade do homem em suas diversas formas de produção, faz emergir, de outro vértice, a constatação de que a precariedade humana nunca foi tão exposta como em tempos hodiernos. O ser humano se experimenta como nunca, “[...] quer em sua atividade exercida sobre o mundo, quer em sua reflexão teórica objetivante, como alguém a quem está de antemão designado um lugar na história do mundo que o cerca e do mundo das relações humanas” (RAHNER, 1989, p. 58). O homem, assumindo sua finitude histórica, vislumbra no horizonte a característica fundamental de sua essência: fazer experiência do seu condicionamento histórico, sobre as dimensões de seu espaço e tempo. Denunciam-se de certo modo, aos olhos da história, as falências que o projeto burguês, já no início da modernidade, prometeu aos sonhos e desejos da racionalidade. Conhecer tais pensamentos, desejos e construções lançará à espiritualidade cristã a possibilidade de compreender o interior imensurável da subjetividade humana e a proposta pós-moderna aos homens e às mulheres de hoje.
1 Um olhar sobre a pós-modernidade As grandes crises da Idade Média pontuaram o fim do feudalismo e forjaram um período novo, em que a criatividade suplantou a ordem estabelecida e a ciência impulsionou descobertas vertiginosas. Eis o advento da modernidade. Este período inovador e com ares de liberdade foi fruto de uma convergência de eventos, ideias e personalidades que movimentaram toda a Europa numa complexa relação social, cultural, religiosa, científica e econômica expressa nas grandes “revoluções” nestes campos. Diante dos olhos do ser humano moderno surge, neste complexo contexto, uma atitude nova diante do mundo e das ordens estabelecidas, REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 202-217, jul./dez. 2011
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um ser humano novo e uma sociedade transformada pela razão humana. “Nenhum domínio do conhecimento, da criatividade ou da exploração parecia estar fora do alcance do homem” (TARNAS, 2002, p. 246). Este afã criativo é o genitor da pós-modernidade e o que arremessa os homens e as mulheres de hoje, os quais deixam, em grande parte, ocultar o sentido espiritual de suas vidas, sem uma clara percepção do mistério de Deus e seu desígnio amoroso. A realidade traz inseparavelmente uma crise do sentido do ser cristão em pleno século XXI. A “[...] apatia e a insensibilidade emocional, o desleixo interior e a indiferença” (FRANKL, 1985, p. 38) são heranças estruturantes do pensamento e vivência do ser humano pós-moderno. Quando o homem pós-moderno se defronta com sua dimensão espiritual, em típica desconfiança herdada da modernidade, surge, expressa ou ocultamente, aquele horrível preconceito segundo o qual somente os objetos das ciências que trabalham funcionalmente, são as verdadeiras e seguras realidades sobre as quais é possível construir alguma coisa com seriedade, na medida em que tudo o mais sobre o qual não se pode falar tão exatamente e com tanta clareza “pertence ao âmbito dos sonhos e das opiniões gratuitas, que fazemos bem deixando-as como são ou reprimindo-as, até que estourem em um irracionalismo selvagem de emoções e agressões sociais” (RANHER, 1978, p. 61). Esse novo espírito afoito e aventureiro manifestou fortemente o relativismo pós-moderno, que rapidamente assumiu características céticas, produzindo fendas profundas no construto humano, abrindo espaço para as elaborações provindas do pensamento moderno, que gradativamente alçava vôos mais altos rumo à máxima liberdade (adágio individualista), apatia e indiferença, traços que caracterizam o indivíduo pós-moderno.
2 Os principais desafios à espiritualidade O ser humano, em seu mundo não apenas o exterior, mas também o interior, tornou-se desmesurado e multiforme pelas modernas ciências naturais, históricas e sociais e por todo o atual modo de pensar e viver pósmoderno. Nenhum homem hoje consegue harmonizar “[...] todas as suas múltiplas experiências e os resultados de todas as ciências e encaixá-los em um sistema perfeito” (RAHNER, 1978, p. 35). A falta de equilíbrio diante de uma 204
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sociedade líquida,1 que traz consigo não pequenas dificuldades, faz com que o ser humano, “[...] ao procurar penetrar mais fundo no interior de si mesmo, aparece frequentemente mais incerto a seu próprio respeito” (GS, n. 4). Diante dos imensuráveis desafios gestados pela pós-modernidade, a espiritualidade contemporânea sente-se atraída a sondar, dentro de uma perspectiva antropológica espiritual, os principais desafios, em busca de perceber suas linhas predominantes por trás das solicitações da cultura atual. Dentre os vários desafios à espiritualidade cristã que caracterizam a pós-modernidade, destacam-se: o secularismo, o ateísmo, o narcisismo e a perda do mistério.
2.1 Secularização Houve, e ainda há, uma tendência forte entre os sociólogos de sustentar que a nova cultura estaria secularizando a vida e seria incompatível com a religião. A nova cultura seria a causadora da decadência da fé, decadência das Igrejas cristãs e de sua espiritualidade. Entretanto, é válido afirmar que “os sociólogos oferecem explicações teóricas e fazem muitas pesquisas que geralmente confirmam as suas instituições – já que as perguntas são feitas de tal modo que incluem a resposta desejada” (COMBLIN, 2003, p. 13). Diferentemente do que pensam muitos sociólogos, José Lisboa Oliveira afirma que a “pós-modernidade não se opõe à religião. O que ela não aceita e contesta é toda forma ou tentativa de interferência dessa última na coisa pública. A religião passa a ser questão pessoal, reduzida a dimensão do âmbito privado, intimista”(OLIVEIRA, 2001, p. 28). Valendo-se da secularização, a pós-modernidade, reproduzindo a mentalidade técnico-científica e extremando-a, passa a explicar os fatos humanos e cósmicos sem nenhuma referência ao sagrado “[...] querendo ver as realidades humanas e terrestres sem nenhuma relação com Deus, a pós-modernidade termina fazendo que elas se voltem contra o próprio ser humano” (OLIVEIRA, 2001, p. 29). Esta ideia foi expressa recentemente por Zygmunt Bauman em seu livro Modernidade líquida para caracterizar a fluidez ou não solidificação da sociedade pós-moderna diante das forças tangenciais deformantes. No pensamento de Bauman, os fluidos não fixam o espaço nem prendem o tempo, “os fluidos não atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos) a mudá-las” (BAUMAN, 2001, p. 12). 1
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No mundo pós-moderno, “[...] na medida em que alarga o horizonte intelectual do homem, verifica-se progressivamente a perda da função da religião” (RUBIO, 2006, p. 34). A supremacia da razão, anunciada valentemente já nas bases da modernidade, proporciona ao homem a capacidade de compreender seu mundo onde céu e inferno não são mais localizações físicas e geométricas. Devido à exaltação da secularização com base no iluminismo, “neste período a espiritualidade se fez cada vez mais ciência: impôs-se uma nova metodologia, correspondente à nova mentalidade científica do tempo” (MONDONI, 2000, p. 68). Em passos longos, em um veloz caminhar, o homem foi deixando de lado a imagem de um Deus irreal; nesse sentido, Nietzsche2 tinha razão ao anunciar a morte de deus. A espiritualidade cristã tornou-se, diante do secularismo, uma base menos segura sobre a qual se deve construir uma vida, com seus projetos, desejos e realizações. Para qualquer pessoa ponderada, anuncia o secularismo: deixar-se conduzir por princípios espirituais torna-se uma obscura noção primitiva. A metafísica e, praticamente, tudo que seja implausível, não pode ser uma crença convincente para qualquer pessoa ponderada. O ser humano pós-moderno, por simples miopia, não enxergando a realidade conjuntural, insiste acreditar que: [...] apenas os cosmos, as correlações empíricas e as causas tangíveis, é que poderiam ser confirmados através de experimentos. Planos teleológicos e causas espirituais não poderiam sujeitar-se a teses, não poderiam ser sistematicamente isolados e, portanto, não se poderia saber se existiam ou não. Era melhor tratar apenas de categorias empiricamente comprováveis do que permitir que princípios transcendentais, por mais nobre que fosse a sua abstração, entrassem na discussão científica (TARNAS, 2002, p. 330).
Andando por caminhos escuros e incertos, cada vez mais distantes da espiritualidade, o homem atual se convenceu de que os princípios transcendentais não poderiam ser mais corroborados do que um conto de fadas, uma fantasia, uma obra mal elaborada da infantilidade do ser humano. 2 Para Nietzsche, as noções de ateísmo, culpabilidade e ressentimento estão intimamente ligadas. Essa trilogia se torna uma associação que jamais deve ser esquecida, quando se trata de compreender uma das constantes essências da negação de Deus. Já na modernidade “[...] este tema da morte de Deus, vulgarizado ao extremo, já não ocupa mais posição de destaque no pensamente ateu” (LACROIX, 1965, p. 10).
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A Pós-Modernidade e seus desafios à Espiritualidade Cristã: é possível a Espiritualidade Cristã hoje?
A indiferença metafísica e o descaso com o sagrado, levados ao extremo, têm seu ponto de convergência em um segundo desafio à espiritualidade contemporânea: o ateísmo; afinal, este “[...] surge especificamente da secularização do mundo contemporâneo” (RAHNER et al., 1970, p. 67).
2.2 Ateísmo O homem pós-moderno tem consciência muito viva de estar inserido numa história que é edificada solidamente sobre bases inabaláveis alicerçadas pelo próprio homem, enquanto em épocas anteriores “[...] a história não parecia estar propriamente nas mãos do homem: era dada pelo destino ou pela providência” (RUBIO, 2006, p. 35). O homem torna-se consciente de que a ele, e somente a ele, compete dirigir o curso de sua vida e o consolidar da própria história. O ateísmo surge como cristalização dos desejos humanos por liberdade, desejo gritante do homem de se afirmar como soberano e senhor de sua própria vida, a tal ponto que tudo o que vem da religiosidade, da espiritualidade, é por ele rechaçado como atrasado e como sinônimo de aprisionamento. “[...] a ideia de Deus é então encarada como inútil e perigosa [...]” (RAHNER et al., 1970, p. 17). Esta visão é algo que se deve evitar a todo custo em vista de uma libertação intelectual racionalista e cientificista, tendo como meta a ser alcançada o antropocentrismo perpétuo e duradouro. Na consolidação de sua centralidade, identidade e imponência diante da história, o ser humano avista em sua mitologia atual o não espaço e o não lugar para Deus, que passa a ser considerado mera projeção da natureza interna e fruto dos desequilíbrios psíquicos do ser humano. Ecoa nas profundezas abismais dos corações humanos a ideia de que Deus “[...] é um assunto que absolutamente não me interessa. Deus a mim não importa, a não ser na medida em que os homens o inventaram, o que provocou belas obras de arte, belas poesias” (LACROIX, 1965, p. 11). A dimensão da revelação divina na história, a Palavra de Deus, o plano da salvação e o agir de Deus perderam sua força e credibilidade. Este pulsar secular do ser humano pós-moderno faz correr em suas veias “[...] o desejo de autonomia do homem a tal grau que constitui um obstáculo a qualquer dependência de Deus” (GS, n. 20). A liberdade, a vontade de poder que a técnica hodierna deu ao ser humano, é anunciadora do homem que tem o fim em si mesmo, autor de sua própria história. Cada vez mais parece óbvio, diante do ateísmo, que Jesus é um simples homem, embora bastante convincente. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 202-217, jul./dez. 2011
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De posse desse novo complexo de considerações, é necessário examinar cautelosamente as entrelinhas do ateísmo para perceber que o grito latente afirmativo do homem pós-moderno, que se diz centro de todas as coisas, não é nada mais do que um profundo narcisismo, negligenciado por tantos séculos. A própria civilização atual não por si mesma, mas pelo fato de estar muito ligada com as realidades terrestres, torna muitas vezes mais difícil o acesso a Deus. Sem dúvida, não estão imunes de culpa todos aqueles que procuram voluntariamente expulsar Deus do seu coração e evitar os problemas religiosos, não seguindo o ditame da própria consciência; mas os próprios crentes, muitas vezes, têm responsabilidade neste ponto. Com efeito, o ateísmo, considerado no seu conjunto, não é um fenômeno originário, antes decorre de várias causas, entre as quais se conta também a reação crítica contra as religiões e, nalguns países, principalmente contra a religião cristã. Pelo que, os crentes poder ter tido parte não pequena na gênese do ateísmo, à medida que, pela negligência na educação da sua fé, ou por exposições falaciosas da doutrina, ou ainda pelas deficiências da sua vida religiosa, moral e social, se pode dizer que antes esconderam do que revelaram o autêntico rosto de Deus e da religião (GS, n. 9).
2.3 Narcisismo Foi chegado o momento em que não se podia mais privar o homem de se olhar diante de um espelho guardado por vários séculos. Diante de polarização tão extremada, surge um profundo encantamento com sua própria imagem. No profundo pensar, o ateu se desencanta com a imagem de Deus para encantar-se com sua própria imagem. A espiritualidade contemporânea acompanhou a gestação de mais um de seus grandes desafios: o narcisismo. Projeta-se o narcísico3 pós-moderno na sociedade em busca de respostas imagéticas, questionando a religião, os valores pregados por ela, as tradições, entre outras coisas mais. Certos valores não são mais preservados como importância, pois o que se busca é a felicidade a todo custo, uma vez que 3 Quando falamos em narcisismo, estamos nos referindo ao mito grego segundo o qual Narciso, depois de rejeitar tantos quantos tentassem aproximar-se sensualmente dele, acaba por apaixonar-se pela própria imagem refletida em um lago cristalino. Até mesmo Freud, em suas pesquisas sobre o narcisista, “[...] ficou muito insatisfeito com o resultado e escreveu a Abraham: ‘O narcísico teve um parto difícil e traz todas as marcas de uma deformação correspondente’” (FREUD, 2006, p. 78).
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O desejo de felicidade é o primeiro elemento desse referencial. Entenda-se tal desejo como busca do prazer pessoal, sem nenhuma relação com a solidariedade e a partilha. É o querer ter momentos de autossatisfação, momentos prazerosos, mas sem nenhum compromisso, especialmente com os outros e as outras (OLIVEIRA, 2001, p. 23).
Para o narcisista, moral é aquilo que me faz feliz, me dá prazer, mesmo que isso signifique morte ou miséria para as outras pessoas. É característico no comportamento narcisista o “maquiar” o relacionamento, os sentimentos e a realidade. Raramente o narcisista consegue ter contato com a realidade. Diante da sociedade o outro é visto como mero objeto manipulável ao seu prazer. Agindo de forma superficial, raramente o narcísico consegue ter contato com seu interior, dimensão tão cara para a espiritualidade cristã. A existência do ser humano pós-moderno está pautada na aparência, na imagem de si, na representação elogiada de si. Prática similar à dos fariseus, na época de Jesus, e que hoje se revigora como um grande desafio à espiritualidade cristã pós-moderna. Neste caso, a pessoa mantém “[...] aparência de piedade, mas nega a sua força interior” (cf. 2Tm 3,5). O que se revela aos olhos do desejo pós-moderno é a inversão daquilo que a modernidade desejava: se os homens modernos desejavam ser independentes, racionais e aparecer como adultos (mesmo que para isso fosse preciso negar a figura do pai repressor – Deus), por outro lado, os contemporâneos querem ser jovens que nunca chegaram a ser adultos, rejeitando a realidade e as próprias condições físicas, biológicas e psíquicas. Olhando-se no espelho, o narcísico pós-moderno se sente atraído pelas práticas surgidas nas expressões religiosas atuais, nas quais as atividades corporais atingem a sua maior perfeição, relacionadas com práticas de autoajuda, exercícios físicos ou mentais, recurso às receitas das antigas meditações orientais, fascinando-se pela magia,4 entre outras coisas. 4 No pensamento contemporâneo, a magia desperta muito interesse, a linguagem mitológica tem muito mais força do que a ciência (contrariamente ao pensamento moderno). Não é de se assustar a grande aceitação pelos escritos de Paulo Coelho e Herry Potter. O homem pós-moderno, nestas literaturas, é representado em um mundo sobrenatural e que sempre diante de um sofrimento e dificuldade tem a certeza da felicidade sem muito esforço e sem nenhuma prática ascética. Tudo é muito fácil, pois sempre contam com uma intervenção externa, sempre são assistidos por forças sobrenaturais.
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[...] mais interessada em viver da melhor forma possível o momento presente do que em projetar e preparar o futuro: é uma now generation (geração do agora). Após dezenove séculos, assistimos agora a uma redescoberta do carpe diem horaciano. Como consequência natural desse fenômeno, temos o aumento do consumismo e uma substancial ignorância do sentido do mistério que pervade a vida (CENCINI, 1999b, p. 8).
O narcísico, mesmo inconsciente, lança-se em um precipício imensurável de dor e angústia, perdendo o sentido mais estrito da palavra mistério em seus desdobramentos, significados e relações. Nunca se tentou firmar as bases de uma sociedade tão superficial e sem sentido de vida. O ser humano pós-moderno encontra grande dificuldade para descobrir o comprimento e a largura, a profundidade e a altura (cf. Ef 3,18) da própria vida; ela sequer terá “[...] coragem para conhecer a si mesma em seus aspectos positivos e negativos, de descer aos infernos do próprio eu e, ao mesmo tempo, tender para aquilo que a transcende” (CENCINI, 1999b, p. 8).
2.4 A perda do mistério Analisando o ser humano atual, é palpável uma sensação muito nítida: o homem, diante do secularismo, ateísmo, narcisismo, infelizmente perdeu, ou está progressivamente perdendo, o senso do mistério. Não é espontâneo ao homem pós-moderno admitir o encantamento com a natureza, com as pessoas e com Deus. Tudo passou a ser considerado um simples e mero objeto, friamente relacionado, manipulado e calculado, sujeito ao método analítico sistemático. Consequente à perda do mistério, na pós-modernidade se estrutura a incapacidade de estabelecer relações com a totalidade do objeto, isto é, com o eu, com o tu, com a vida, “[...] com todas as realidades enfim que estão embebidas de mistério” (CENCINI, 1999b, p. 11). O ser humano, ao negar a dimensão do mistério, tão cara a sua espiritualidade, conscientemente ou não, contenta-se com o mero prazer do superficial, do imediato e da liquidez, onde o que “está acontecendo hoje é, por assim dizer, uma redistribuição e realocação dos poderes de derretimento da modernidade” (BAUMAN, 2001, p. 13). O homem hodierno, infelizmente, contenta-se com aquilo que é fácil e imediatamente decifrável, por simplesmente ser evidente. 210
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A apatia diante do mistério gera no ser humano pós-moderno uma enclaustração em si mesmo, em virtude da qual este não reconhece sua identidade refletida no espelho criado por ele mesmo. Distante da compreensão do homem pós-moderno está o reconhecimento da possibilidade de amar e deixar ser amado pelos outros. “É difícil reconhecer, em tantos atos de bondade de que fomos objeto, a mediação humana e providencial do amor de Deus! Essa ingratidão é um componente daquele narcisismo que hoje impera [...]” (CENCINI, 1999a, p. 76). O não se abrir para o mistério revela com certa constância “[...] um medíocre, que não conhece os grandes entusiasmos e as grandes paixões, pois fica alheio aos conflitos e às oposições dilacerantes” (CENCINI, 1999b, p. 11). Revela um homem fragilizado por sua própria ousadia de querer ter controle de tudo a seu próprio tempo. Vive-se em uma sociedade padecente de grandes projetos, uma vez que estes demandam empenho, tempo e entusiasmo. O vazio gestado pelo secularismo em suas cores obscuras e cinzentas deixou cansada a vista do ser humano hodierno, ao ponto de este perder o encantamento e a paixão por sim mesmo. O não encantar-se consigo mesmo gesta coletivamente na sociedade contemporânea um projetar de desânimo em massa, que a todo o momento anuncia que não vale mais a pena confiar no próprio humano. “Agitados entre a esperança e a angústia, sentem-se oprimidos pela inquietação [...]” (GS, n. 4). O extremo suspeitar do homem pós-moderno diante de todas as coisas o impediu de suspeitar de si mesmo, não se encontrando com o essencial de toda pergunta, o mistério. O contrário do mistério e da abertura ao mistério é, por um lado, a presunção de saber, presunção que é, em parte, suficiência, e em parte, inconsciência; por outro lado, é a sensação, um tanto fatalista e nihilista, de não poder conhecer o mistério do próprio eu, e muito menos, o mistério que nos cerca e nos envolve (CENCINI, 1999c, p. 10).
O homem pós-moderno, “[...] ao procurar penetrar mais fundo no interior de si mesmo, aparece frequentemente mais incerto a seu próprio respeito” (GS 4). Em outras palavras, o mistério perdido parcializa e empobrece a relação que o sujeito estabelece consigo mesmo, com o outro e com Deus, instaurando e legitimando ainda mais o individualismo crescente em uma sociedade tão padecente de proximidade e afetos. REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 202-217, jul./dez. 2011
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3 O declinar da razão e o retorno ao sagrado Torna-se evidente o desafio de se questionar: “[...] já que a Igreja perdeu espaço na nova cultura, como pode reconquistar este espaço, recuperar o prestígio perdido e a audiência que teve durante tantos séculos?” (COMBLIN, 2003, p. 36). Quaisquer que sejam as respostas a estas perguntas (um tanto sutis), pode, em todo o caso, o “[...] homem na graça, como em habitat próprio da oração, onde quer que esteja, falar com Deus, dirigir-se a ele, chegar a ele com a sua interpelação se é que verdadeiramente reza e não tenta esconjuros mágicos, que pretendam subordinar Deus a nós” (RAHNER, 1978, p. 64). É justamente diante da “[...] plasticidade e da mudança constante da realidade e do conhecimento” (TARNAS, 2002, p. 422) que o homem pósmoderno reclama por uma dimensão profunda de sua existência, negada e rejeitada por longos tempos. As promessas iluministas e calculistas das ciências, em vez de oferecer ao ser humano um mundo, um ambiente, em que este pudesse morar e conviver procurando o bem comum, trouxeram-lhe, entre outras coisas, o critério da disputa, da competição, da massificação e da manipulação e coisificação das pessoas; uma angustiante incomunicabilidade, um futuro incerto e ameaçador. A constante e incisiva negação esconde, em seu silêncio, o desejo do negligenciado. É preciso observar que esta ruptura nunca é completa, justamente porque toda experiência é sempre culturalmente definida, inclusive a religiosa. A experiência corresponde e, com isto, se ajusta a uma situação global. Os próprios sinais de protesto, de ruptura ou de retorno às fontes apresentam uma forma necessariamente relacionada com uma problemática de conjunto. Em seu “desprezo” ou em seu isolamento, o fiel continua dependendo do que combate [...] (FIORES, DE, 1989, p. 343).
Grande parte da sociedade atual, diante da aridez pós-moderna, encontra-se “[...] cansada, por assim dizer, da racionalidade” (RATZINGER, 2006, p. 66, tradução nossa). No fundo, o próprio homem, em sua busca de autonomia e liberdade, descobriu que sua própria lógica racional calculista é, de fato, redutiva, negando a liberdade humana, tornando a vida sem sentido e obscura. A insegurança instaurada e a constatação de tamanha incapacidade 212
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e limitação despertam o ser humano pós-moderno para o mais sublime de sua existência: a dimensão espiritual. Floresce no limite da racionalidade do homem atual o sentimento de não poder fazer tudo, e assim, “[...] no percurso do reconhecimento da validade de quaisquer afirmações ou hipótese de verdade, um salto de fé é um ingrediente inevitável” (HAUGHT, 2009, p. 83). Mesmo diante das circunstâncias não favoráveis, seja por cegueira, seja por determinabilidade ou por culpa própria, o homem é convidado a olhar sobre o seu rosto verdadeiro e único, real e divino, mesmo que esteja distorcido pelas marcas profundas da racionalidade moderna. A face humana de Jesus revela a face divina em contornos muito marcantes, apontando a partir de si o caminho ao Pai invisível, inefável e inominável. Os cristãos encontram Deus sobretudo em Jesus Cristo. O retornar ao sagrado aqui expresso diz respeito à [...] possibilidade da salvação de uma vida que parece desesperante. Refiro-me especialmente às formas de expressão e às sensibilidades suficientemente diferenciadas frente à vida fracassada, frente a patologias da sociedade, frente ao fracasso de uma concepção de vida individual e frente a uma vida deformada em seu conjunto (RATZINGER, 2006, p. 41).
Em tempos pós-modernos, depois de certas decepções, aprendendo da história e através de um verdadeiro processo de maturidade, deve-se reconhecer que a espiritualidade já não é uma palavra infeliz. “Hoje é um horizonte pedido, um clamor que vem de dentro, água viva da caminhada. Há uma autêntica e profunda sede de espiritualidade [...]” (CASALDÁLIGA, 1998, p. 7). Caminhando em meio aos cálculos e mensurações, de repente, até os mais otimistas viram-se no meio de uma densa escuridão. Serenamente é anunciado que “a sociedade ocidental do futuro não continuará pensando tal como os que a precederam, assim como o adulto não fala nem pensa como o fazia quando era criança” (LENAERS, 2010, p. 12). A razão já não consegue iluminar a vida e história do homem pós-moderno. Consequentemente os mesmos perceberam que as [...] inúmeras descobertas científicas ajudaram a melhorar a qualidade de vida da humanidade, se bem que não igualitariamente, mas pouco contribuíram para aprofundar o sentido de sua existência. A euforia e a crença exageradas REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 202-217, jul./dez. 2011
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no poder do homem, paulatinamente, deram lugar à frustração. Esse descontentamento, fruto de um vazio interior, tem gerado, nos últimos tempos, a busca de respostas num Ser Superior, no Absoluto, enfim, numa Luz que venha a iluminar e vivificar os caminhos da história pessoal e coletiva. Hoje, mais que ouvir falar de Deus, cresce o número de pessoas que desejam senti-lo (CASTRO, 1998, p. 12).
Deus, que por muito tempo foi colocado na esfera da razão, transformado em átomos e fórmulas a serem memorizadas, passou a ser objeto de desejo. Em todo o caso, “compete a cada tempo apostar em seu ensaio de dar resposta minimamente significativa a suas interrogações precisas: só assim suscitará atitudes e promoverá práxis que lhe ajudem nas urgências de seu respectivo momento” (QUEIRUGA, 2006, p. 5). Hoje como nunca, o ser humano busca a Deus em um sentido profundo para sua vida, a fim de dar horizonte e alívio a sua própria existência, desertificada por longos anos. Diante do declinar da humanidade sobre questões fundamentais de sua existência, o retorno ao sagrado,5 o retorno à dimensão espiritual, é fundamental ao cristianismo repensar profundamente a sua forma de dialogar com as novas circunstâncias apresentadas pela pós-modernidade, sendo capaz de encontrar-se diante dos desafios, não escudando-se em regras e moralismos; por outro lado, a espiritualidade é convidada a se revitalizar, deixando-se iluminar pela força revigoradora encarnada e manifesta a toda criatura: Jesus Cristo, plenitude de toda espiritualidade. Em Jesus Cristo o ser humano pósmoderno vislumbra o horizonte de seu desenvolvimento a uma aprendizagem que lhe possibilita hoje a redescoberta do Caminho que o conduz a uma vida realizada e com sentido.
5 Autores como Frei Antônio Moser insistem em afirmar que não se deve criar ilusão a respeito do retorno ao sagrado. Para ele, “o que mais cresce no momento atual é o indiferentismo religioso, o qual já não conhece fronteiras nem sociais, nem econômicas. Um sempre maior número de pessoas se torna religiosamente indiferente” (MOSER, 1996, p. 26).
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Conclusão Este artigo visou revelar que no interior da pós-modernidade adormecem riquezas que, sendo bem exploradas, possibilitam à espiritualidade cristã um novo dinamismo, um novo impulso. Diante dos desafios pós-modernos, a espiritualidade deve dialogar, tendo clareza de sua identidade, sabendo de sua responsabilidade diante dos homens e mulheres que buscam em Deus o sentido último de suas vidas. Por estas e outras razões, é fundamental à espiritualidade cristã o permanente aggiornamento, essencialmente fundamentada no amor, a exemplo de Jesus Cristo. É necessária à espiritualidade a abertura para um autoconhecimento, a fim de contribuir com seu verdadeiro serviço aos homens e às mulheres de hoje que desejam “[...] redescobrir a beleza e alegria de ser cristãos” (CELAM, Dap, n. 14, p. 15).
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THE POST-MODERNITY AND ITS CHALLENGES TO THE CHRISTIAN SPIRITUALITY: IS THE CHRISTIAN SPIRITUALITY POSSIBLE TODAY? Abstract What are the challenges that the world and the post-modern culture present to the Christian spirituality, today? Is the Christian spirituality possible just today? Faced with the analysis of the post-modernity it is perceivable that man has been dedicating himself/herself to the delights and to the solitary redoubts aiming an always increasing wealth in search of some satisfaction that seems to have no end. Certainly, nowadays many things are possible and, for that very reason, others have become impossible. In search of the answer to the question here presented, in this article a contextualization of the post-modernity and its main challenges to the Christian spirituality will be done; it will be analyzed the secularization, the atheism, the narcissism and the privation of the mystery and its social, cultural, religious and anthropological involvements in the human being’s life, realizing in their horizon the decay of the reason and the return to the sacred. Key words: Post-modernity; Spirituality; Secularism; Atheism; Narcissism.
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REVISTAS EM PERMUTAS NACIONAIS Título – Local – Periodicidade 1. Analytica: Revista de Filosofia da UFRJ – Semestral 2. Atualidade Teológica: Revista do Departamento de Teologia da PUC-Rio – Bimestral 3. Caminhando: Revista da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista – Semestral 4. Revista de Catequese: UNISAL – Trimestral 5. Cognitio: Revista de Filosofia da PUCSP – Semestral 6. Coletânea: Revista de Filosofia e Teologia Faculd. de S. Bento – RJ. – Semestral 7. Direito: Revista da Faculdade de Direito de Cachoeiro do Itapemerim- ES – Semestral 8. Espaços: Revista de Teologia do Instituto S. Paulo de Estudo Superior – Semestral 9. Estudos Teológicos: Inst. Ecumênico em Teologia Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – Semestral 10. Horizonte Teológico: Inst. Santo Tomás de Aquino – ISTA – Semestral 11. Hypnos: Revista de Filosofia da PUCSP – Semestral 12. Kriterion: Revista de Filosofia da UFMG – Semestral 13. Razão e fé: Revista Inter e Transdisciplinar de Teologia. Filosofia e Bioética – Semestral 14. Rhema: Revista de Filosofia e Teologia do ITASA – MG – Quadrimestral 15. Religião & Cultura: Revista do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUCSP -Semestral 16. Repensar: Revista de Filosofia e Teologia do Inst. Paulo VI – RJ – Semestral 17. Revista de Ciências da Educação: UNISAL – Semestral 18. Revista Dominicana de Teologia: EDT – Semestral REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 219-222, jul./dez. 2011
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19. Revista Filosofia da PUCPR – Semestral 20. Revista Litterarius: FAPAS RS – Semestral 21. Sapientía Crucís: Revista Filosófico-Teológica – Anápolis – GO – Anualmente 22. Scientia: Revista Interdisciplinar do Centro Univ. Vila Velha ES – Semestral 23. Theós: Revista de Reflexão Teológica da Faculdade Teológica Batista de Campinas – Semestral 24. TQ: Teologia em Questãoda Faculdade Dehoniana SP – Semestral 25. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da UNESP – Semestral 26. Veritas: Revista de Filosofia da PUCRS – Trimestral 27. Via Teológica: Faculdade Teológica Batista do Paraná – Semestral
REVISTA EM PERMUTA INTERNACIONAL Título – Local – Periodicidade 1. Stromata: Revista Filosofia y Teologia Universidad Del Salvador – Argentina – Semestral
REVISTAS NACIONAIS – ASSINATURA Título – Periodicidade 1. Caros Amigos – Mensal 2. Concilium – Bimestral 3. Estudos Bíblicos – Trimestral 4. Família Cristã – Mensal 5. Grande Sinal – Bimestral 6. Mundo e missão – Mensal 7. Perspectiva Teológica – Quadrimestral 8. REB – Revista Eclesiástica Brasileira – Trimestral 220
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Revistas em Permutas
9. Revista de Liturgia – Bimestral 10. Revista de Cultura Teológica – Trimestral 11. Revista Vitória – Bimestral 12. RIBLA – Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana – Trimestral 13. SEDOC – Bimestral 14. Tempo e presença – Bimestral 15. Revista de Koinoina – Bimestral 16. Síntese – Quadrimestral
CADERNOS Título – Periodicidade 1. Cadernos Adenauer – Bimestral
REVISTAS INTERNACIONAIS – ASSINATURAS Título – Local – Periodicidade 1. Bíblica: Editrice Pontifício Instituto Bíblico – Roma – Bimestral 2. Christus: Revista de Teología y Ciências Humanas – México – Bimestral 3. Diakonia: Internationale Zeitschrift für die Práxis der Kirche – Bimestral 4. Diakonia: Província Centroamericana de la Companía de Jesús Centro Ignaciano de Centroamérica – El Salvador – Trimestral 5. Família et Vita: Pontificium Consilium pro Família Stato Città Del Vaticano – Quadrimestral 6. Il Regno: Bologna – Quinzenal 7. Journal for the Study of the Old Testament – Trimestral 8. Journal for the Study of The New Testament – Trimestral REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 219-222, jul./dez. 2011
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Revistas em Permutas
9. Medellín: Teologia y pastoral para américa latina – Colombia – Trimestral 10. Misiones extranjeras – Madrid – Bimestral 11. Moralia: Revista de ciências Morales Instituto Superior de Ciências Morales – Madrid – Trimestral 12. Recherches de Science Religiuse – França – Trimestral 13. Revista de Espiritualidad – Madrid – Trimestral 14. Revista Mensaje – Santiago – Trimestral 15. Revue Biblique – L’école Biblique et Archéologique Française – França – Trimestral 16. Revue d’Histoire Ecclésiatique – França – Trimestral 17. Reseña Bíblica – Asociación Bíblica Española – Trimestral 18. Spiritus: Revue d’ expériences et recherches missionnaires – França – Trimestral
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REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 9, n. 17, p. 223-224, jul./dez. 2011
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Nota aos Colaboradores
5. Preferentemente o texto deve ser editado no formato Word, obedecendo às seguintes recomendações:
– Utilização da fonte Times New Romam, corpo 12 para o título, corpo 11 para o texto corrido e corpo 10 para as citações bibliográficas destacadas e notas de rodapé; – Deve ter alinhamento justificado e os parágrafos formatados com recuo especial na primeira linha, valendo também para as notas de rodapé; 6. Os artigos submetidos ao Conselho Editorial devem conter resumo em português e abstract em inglês, com no máximo 150 palavras cada; até 5 palavras-chave, também em português e em inglês. 7. Citações devem ser abreviadas no corpo do texto (sobrenome do autor, ano da publicação e, quando for o caso, página) e completas as referencias ao final do texto, segundo as NBR 6022:2003 e NBR 6023:2002 da ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas. As notas de rodapé devem restringir-se a notas explicativas. 8. Os trabalhos devem ser remetidos para:
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