a.10 n.18 jan./jun. 2012 - Iftav/Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Nº 18
n. 18 janeiro/junho 2012 a. 10
REDES
Revista Capixaba de Filosofia e Teologia
Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória - ES Diretor: Hugo Scheer Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo Diretor Executivo: Jolmar Luis Hawerroth REDES Revista Capixaba de Filosofia e Teologia Uma publicação do Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória e da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Coordenador Paulo Cesar Delboni pdelboni@salesiano.com.br Vice-coordenador Renato C. Gama Comissão Editorial Antônio Vidal Nunes, Fábio Eulalio dos Santos, Hugo Scheer, Paulo Cesar Delboni e Renato C. Gama. Conselho Editorial Antonio Donizetti Sgarbi (Instituto de Filosofia e Teologia de Vitória - Iftav), Antônio Vidal Nunes (Universidade Federal do Espírito Santo - Ufes), Claudia P. C. Murta (Ufes), Edebrande Cavalieri (Ufes), Franz Helm (Instituto de Teologia das Religiões, St. Gabriel, Viena - Áustria), Geraldo Caliman (Universidade Católica de Brasília - DF), Giovani Marinot Vedoato (Iftav), Guido Gatti (Pontifícia Universidade Salesiana - Itália), Jair Miranda de Paiva (Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo), Joachim G. Piepke (Faculdade de Filosofia e Teologia St. Augustin - Alemanha), Kelder J. B. Figueira (Iftav), Mario Toso (Pontifícia Universidade Salesiana - Itália), Renato C. Gama (Iftav), Tiago Adão Lara (Universidade Federal de Juiz de Fora - MG) e Virgínia A. Carrara (Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo).
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Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória - Iftav Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
REDES
Revista Capixaba de Filosofia e Teologia a. 10 - n. 18 - janeiro/junho 2012 Vitória-ES
FILOSOFIA e RELIGIÃO
ISSN 1679-4265 Redes: Revista Capixaba de Filosofia e Teologia
Vitória a. 10 n. 18 p. 1-188 jan./jun. 2012
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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Redes: Revista Capixaba de Filosofia e Teologia. Ano Vitória, a. Vitória, a. 10, n. 18 (jan./jun. 2012). - Vitória : Iftav / Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo, 2012. 188 p. ; 21,5 cm. Semestral ISSN 1679-4265 1. Filosofia - Periódicos. 2. Teologia - Periódicos. I. Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória - ES. II. Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo. CDU 1+2 (05) Tiragem: 300 exemplares | Periodicidade: Semestral
Sumário APRESENTAÇÃO .................................................................................................7
Conocimientos y valores: componentes del humanismo en el pensamiento marxista cubano de la primera mitad del siglo XX ................................................ 9-48 Knowledge and values: humanism trainers within the cuban marxist thought in the first half of the twentieth century Freddy Varona Domínguez As provas da existência de Deus na Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant ......................49-65 The proofs of God’s existence in the critique of pure reason of Immanuel Kant Filicio Mulinari Do A-Limitado ao Ente: A Sentença de Anaximandro de Mileto ..........................66-86 From the a-limited to the being: the sentence of Anaximander of Miletus Thiago Sobreira Marques Interfaces e tensões históricas entre cristianismo e marxismo: um recorte latino-americano ...............................................87-104 Interfaces and historical tensions between Christianity and Marxism: some Latin-American news. Allan da Silva Coelho Egberto Pereira dos Reis A transcendência e a imanência como lugar da instauração de valores niilistas ..............105-117 The transcendence and the Immanence as place of establishment of nihilistic values Celso Luís Welter
Consciência e Corpo em Gabriel Marcel .....................118-126 Conscience and body in gabriel marcel Geovane de Assis Batista
Inteligência organizativa: uma discussão entre a parte e o todo .....................127-134 Organizational intelligence: a discussion about the part and the whole Rubi Rodrigues Jônatas Rodrigues Os critérios de avaliação da ação moral: dever e responsabilidade .................................135-153 The criteria of evaluation of the moral action: duty and responsibility Patric da Silva Wanderley A escolarização da infância e da juventude na perspectiva das pedagogias não-diretivas: uma reflexão à luz das da obra de Georges Snyders .....................154-164 The schooling of the childhood and of the youth in the perspective of the non-directive pedagogies: a reflection in the light of Georges Snyders’ work. Alex Sandro Corrêa Ecoteologia: do grito dos pobres ao grito da terra na perspectiva da teologia da libertação em Leonardo Boff. .......164-182 Ecotheology: from the cry of the poor to the cry of the earth in the perspective of the liberation theology in Leonardo Boff. Emerson Sbardelotti Tavares REVISTAS EM PERMUTAS ....................................................................183-186 NOTA AOS COLABORADORES .........................................................187-188
APRESENTAÇÃO
A Revista Capixaba de Filosofia e Teologia (Redes), fundada em 2003, de circulação semestral, é fruto de uma parceria dos cursos de Filosofia da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo e Teologia do Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória (Iftav). O periódico foi concebido para estimular e difundir a construção do conhecimento filosófico-teológico produzido pelos professores e alunos dos citados cursos, bem como de pesquisadores de outras instituições de ensino e pesquisa. O nome Redes conserva a universalidade dos temas básicos da revista, que são filosofia e teologia. O conhecimento é aqui pensado como entrelaçamento de significações. “Rede” traz à tona as ideias de acentrismo, metamorfose, heterogeneidade, multiplicidade, transdisciplinaridade. A Redes busca a coerência entre a práxis dos cursos de Filosofia e Teologia, além da integração multidisciplinar com diversas outras áreas do conhecimento, como as ciências da religião, incluindo aí vários recortes que podem ser feitos no estudo do fenômeno religioso, destacando-se a antropologia, a comunicação social, a história, a pedagogia, a psicologia e a sociologia.
Paulo Cesar Delboni
Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 7, jan./jun. 2012
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CONOCIMIENTOS Y VALORES: COMPONENTES DEL HUMANISMO EN EL PENSAMIENTO MARXISTA CUBANO DE LA PRIMERA MITAD DEL SIGLO XX Freddy Varona Domínguez
Resumo A partir das ideias de sete dos mais importantes pensadores marxistas cubanos da primeira metade do século XX, o autor deste artigo demonstra que o humanismo no pensamento marxista cubano desse período se manifesta, dentre outros modos, mediante os conhecimentos e valores, em estreitas relações com a história, a sociedade e a cultura cubanas. De modo equivalente, revela o significado humanista desse aumento de conhecimentos e a influência que sobre ele exercem a universidade e as publicações de jornais. Da mesma maneira, refere-se à força desalienadora e de melhoria humana que os mencionados pensadores encontram na dignidade, na honra, na bondade, no latino-americanismo e no patriotismo, juntamente com outros valores, os quais aparecem em grande parte de seus textos de forma implícita. Palavras-chave: Humanismo, conhecimento, valores, ser humano, alienação.
Antes de desarrollar el contenido de este texto, es necesario puntualizar dos aspectos. El primero es que el hecho de hablar de pensamiento marxista no significa limitación a la obra de Carlos Marx y Federico Engels; todo lo contrario, al mismo tiempo que la abarca, incluye el desarrollo posterior de la teoría de ambos. El segundo es que en este estudio se tiene en cuenta a los siguientes pensadores marxistas cubanos: Carlos Baliño López (1848-1926), Julio Antonio Mella (1903-1929), Rubén Martínez Villena (1899-1934), Juan Marinello Vidaurreta (1898-1977), Blas Roca Calderío (1908-1987), Raúl Roa García (1907-1982) y Carlos Rafael Rodríguez (1913-1997); en todos los casos su elección se debe al alcance y riqueza teórica marxista de su obra.
1 Los conocimientos y la educación: componentes de la esencia del humanismo Es difícil hallar en la historia de la humanidad pensadores que nieguen o empequeñezcan la valía del conocimiento o limiten sus horizontes. Sin Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 9-48, jan./jun. 2012
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embargo, no abundan quienes lo ven mediante el prisma del humanismo y distinguen de manera especial su poderío desalienador y de mejoramiento humano. Por eso, ahí está en una medida considerable una parte de la grandeza de esos hombres y mujeres de pensamiento quienes con esa óptica son capaces de realzar la esencia humanista del saber. Junto a la gran y esmerada atención que los pensadores marxistas cubanos le dan a los problemas de su patria, relacionados con la tierra, el trabajo en las ciudades y la injerencia norteamericana con todos los matices de su existencia, está lo relacionado con la adquisición de conocimientos, la educación, la moral, el modo de comunicarse, entre otros que constituyen vías para que los hombres y mujeres individualmente, así como la sociedad en pleno desplieguen su lucha contra todo tipo de alienación y por su mejoramiento en todos los sentidos, a partir del principio elemental de que el ser humano nunca debe ser un medio, sino el fin en sí mismo. Afirmar que el humanismo en este pensamiento cubano se despliega en la actividad cognoscitiva significa no sólo que el ser humano es aprehendido en su proceso cognitivo, lo cual ya es un hecho relevante en cuanto a que es un modo dinámico y siempre progresivo de comprenderlo. Mas la anterior afirmación rebasa esa valía, porque de lo que se trata, y que tiene mayor alcance por su trascendencia práctica, es del crecimiento que se opera en los hombres y mujeres, sobre todo espiritualmente, mediante los conocimientos. De tal modo, los pensadores marxistas cubanos ven en él una fuerza desalienadora y de mejoramiento humano que merece especial atención y se la brindan. El pensamiento marxista cubano durante la primera mitad del siglo XX está irrigado por la importancia que se le brinda a la sabiduría humana, por su poder para hacer que el ser humano crezca como tal al aumentar su capacidad para entender y actuar conscientemente, pero además porque lo emancipa de la ignorancia: una de las peores fuerzas alienantes, y a su vez contribuye a liberarlo de muchas otras opresiones que continuamente aparecen en su camino. De ese modo se le brinda esmerada atención a la escuela (sobre todo la universidad), por ser el lugar que por excelencia se vincula a la actividad cognoscitiva. Tanto el saber en sí, como los lugares y modos de adquirirlo, ampliarlo y profundizarlo, constituyen puntos medulares hacia donde los pensadores marxistas cubanos dirigen su atención siempre en correspondencia con las 10
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condiciones objetivas y las necesidades de cada momento histórico; pero aún más, porque forman parte básica y esencial de su ideal patrio. Es de destacar que cuando refieren la fuerza desalienadora del saber, éste no se limita al académico o científico, pues también le dan importancia al conocimiento cotidiano y sobre todo al que llega a los hombres y mujeres en aras de que comprendan su situación social y la necesidad de revertirla. En este sentido sobresale una reflexión que Carlos Baliño escribe en 1905, donde apunta que las masas populares esclavizadas pueden vivir siglos bajo la explotación, creyendo de modo fatalista que nada tiene remedio y sin pensar en su condición de seres humanos, hasta que con el conocimiento llegan a ver la fuerza que tienen como tales y las posibilidades a su alcance para transformar todo cuanto está a su alrededor y también a sí mismos (BALIÑO, 1976, p. 124). En las anteriores reflexiones de Baliño son evidentes las relaciones que establece entre la adquisición de conocimientos y el desarrollo de la conciencia, específicamente encaminada a entender el porqué de las condiciones en las cuales se vive y la urgencia de transformarlas. Esas palabras suyas contienen la valía de ser aplicables a cualquier lugar y tiempo donde haya algún tipo de opresión. De un modo similar piensa Blas Roca unos cuantos años después, en 1938, cuando al referirse a Lázaro Peña destaca en él que siempre está “estudiando porque, sólo haciéndolo se puede ser más útil a la causa de la hermandad de los hombres” (ROCA, 1938, p. 6). La atención a las relaciones conocimientos-escuela-lucha revolucionaria es uno de los rasgos más característicos de este pensamiento cubano. Pero es preciso destacar que en este caso la referencia a la lucha revolucionaria no se limita a lo estrictamente político, sino a todos los cambios radicales acelerados, tanto los demoledores como los constructores, aún cuando se realizan en el margen de la conservación, como ocurre en lo concerniente al cuidado de la identidad cultural. Un ejemplo contundente es la batalla que los pensadores marxistas cubanos libran entre 1941 y 1945 en el Gobierno de la República contra el clero reaccionario y sus pretensiones de convertir la escuela en un sitio anticubano, con la consigna Por una escuela cubana en Cuba libre (MARINELLO, 1941, p. 2). Como derivación de ello, en 1945 proponen instituir la Ley sobre reglamento e inspección de la enseñanza privada, cuya existencia parte de la necesidad de evitar una docencia dañina a la esencia cubana. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 9-48, jan./jun. 2012
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En correspondencia con el carácter desalienador que los pensadores marxistas cubanos aprehenden en el conocimiento, valoran la universidad en sus amplias dimensiones, con toda su significación socio-cultural, como escuela superior, productora y difusora de los más altos conocimientos. A tono con esto, Mella asevera en 1924, cuando ya tiene un pensamiento marxista maduro: “La Universidad Popular José Martí, como cualquier otro centro docente similar, no es el arma definitiva y única con que el pueblo cuenta para su emancipación. [...] pero creemos que cada organismo nuevo que se dedique a laborar por la emancipación de los hombres ha de ser muy útil. Así las universidades populares. Ellas destruyen una parte de las tiranías de la actual sociedad: el monopolio de la cultura [...]. No hay ideal más alto que la emancipación por la cultura y por la acción revolucionaria” (MELLA, 1975, p. 127). Es importante subrayar que este joven pensador ve en la Alta Casa de Estudios una institución capaz de generar cultura y desarrollarla, todo lo cual repercute en la desalienación y mejoramiento de los hombres y mujeres. Sobre esta base se levanta la aspiración de Mella en cuanto a que Cuba cuente con obreros instruidos, capaces de entender plenamente el porqué de la lucha, cómo llevarla a niveles superiores y cómo avanzar indetenidamente en pos del ideal de lograr una sociedad y una cultura verdaderamente humanista, es decir, que se caracterice básicamente por en el continuo mejoramiento humano y la interminable desalienación, tareas estas dirigidas por un proletariado que debe estar preparado para ser en efecto la vanguardia de las masas populares. A tono con ello insiste en la unidad de los intelectuales con los obreros y los campesinos, así como en el desarrollo mental y emocional de hombres y mujeres. En todo lo cual la cultura y específicamente uno de sus componentes más importantes: los conocimientos, tienen alta estima. “Nuestra cultura y nuestros esfuerzos tienen como fin revolucionar las conciencias de los hombres de Cuba para formar una nueva sociedad, libre de parásitos y de los malhechores que cuenta la actual” (MELLA, 1975, p. 100). En el pensamiento marxista cubano durante la primera mitad del siglo XX la universidad no es ajena a la política y no puede serlo porque en más de una ocasión llega a ser víctima de ella, como cuando fue ocupada en tiempos del tirano Gerardo Machado o invadida por gánsteres protegidos por el gobierno de Carlos Prío. Al respecto Raúl Roa, pensador quien se destaca 12
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por el seguimiento que le da a la Alta Casa de Estudios, sobre todo durante las décadas del 30 y 40, afirma en 1949: “La universidad, como institución, está por encima de esta tumefacción circunstancial. Su gloriosa tradición, sus valiosos aportes a la cultura, su señero papel en instantes decisivos de la vida republicana constituyen su genuino e intangible patrimonio. Por acrecentar este patrimonio, muere Rafael Trejo. Por conservarlo incólume muere Ramiro Valdés Daussá” (ROA, 1949, p. 43). La acción desalienadora del conocimiento la enlazan estos pensadores cubanos a los debates científicos y a los diversos espacios donde hombres y mujeres en medio de polémicas y confrontaciones aumentan su sapiencia general, profundizan en sus rasgos como seres humanos, en su historia y cultura, en los rumbos hacia el porvenir. A tono con este presupuesto está la aseveración de Juan Marinello en 1937, cuando al caracterizar el II congreso internacional de escritores para la defensa de la cultura, enfatiza la importancia de ese evento congresual como mundo de superación, “porque en su seno puede darse el hombre por entero a la búsqueda de sí mismo y a la proyección libérrima de sus potencias” (MARINELLO, 1937, p. 10). Una de las aristas más importantes de la comprensión del conocimiento como fuerza superadora, anti-alienante, es la insistencia en la realización de una amplia labor difusora. En 1938, cuando se funda la Editorial Páginas, casa editora de los marxistas cubanos, queda claro el objetivo de promover conocimientos y con ello de familiarizar al pueblo con la lectura; pero no se debe solamente a la intención de elevar sus conocimientos para lucirlos como hermosa prenda, sino para que lo encaminen a resolver sus problemas. De ese modo, en el pensamiento marxista cubano se ve la lectura como un soporte del humanismo, en tanto fuerza desalienadora, al conducir al aumento del conocimiento. Junto a ello se subraya la ignorancia y el escaso saber como vías alienantes, pues favorecen el engaño y la sumisión y son un freno y un peso que aplasta al ser humano. De igual manera, la ignorancia política es tratada como uno de los más graves problemas. En el período de vida legal de los comunistas cubanos, a partir de 1938, y en vista de las elecciones presidenciales, publican textos seriados para instruir al pueblo y demostrarle quiénes son sus amigos, quiénes sus enemigos y por qué cada caso. En toda esa faena especial énfasis cobra la difusión de los horrores de la opresión yanqui en Cuba (MARINELLO, 1934, p. 5). Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 9-48, jan./jun. 2012
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Sobre esa base se establece una estrecha relación entre el conocimiento y la política, que funge como cimiento de un principio: la política debe apoyarse en un saber profundo, ha de ser científica (MARINELLO, 1940, p. 1). En este sentido la exigencia es aún mayor porque se considera que la política ha de portar cuanto adelanto de la ciencia sirva para enaltecer al ser humano, ampliar sus posibilidades y realizaciones, que han de repercutir en su felicidad. En consecuencia con estos postulados, la capacitación (no sólo política) para los dirigentes del partido comunista se tiene como una tarea importante, aunque se le atribuye el estatus de priorizada sobre todo durante la década del cuarenta. Al respecto, en 1946 Blas Roca señala: “Estudiar es para los cuadros de nuestro partido una tarea importante como cualquier otra tarea práctica de la lucha diaria de nuestro partido” (ROCA, 1946, p. 42). La idea anterior puede encontrarse en muchos textos de los pensadores marxistas cubanos, expresada de diversos modos, pero siempre para destacar la adquisición de conocimientos como una faena de gran envergadura para lograr la eliminación de la tendencia al practicismo e incentivar el estudio teórico, lo cual muestra que reconocen que si la teoría es vacía sin la práctica, esta última es ciega sin la primera, pero además, que los conocimientos son una condición insustituible no sólo para el crecimiento de hombres y mujeres como seres humanos, sino para la formación y mejoramiento de los dirigentes políticos. La marcada atención que se le da a la superación de los cuadros se hace evidente en las exigencias continuas para que estudien cuidadosa y sistemáticamente los informes, resoluciones y artículos; para facilitarlo, insisten en la publicación reiterada de los mismos y en el empleo de todos los medios disponibles. Inaplazable es la tarea de estudiar la teoría de Marx, Engels y Lenin y luego mediante ella adentrarse más profundamente el acontecer cubano. En todo esto brilla la insistencia de Blas Roca de concentrarse en la lectura, porque no basta con leer, hay que entender lo que se lee (ROCA, 1940, p. 3). Para que la fuerza desalienadora del conocimiento deje de ser una aspiración y se materialice, entre finales de la década del 30 y principios de la del 50, los pensadores marxistas cubanos, junto a la Editorial Páginas llegan a tener sus propias publicaciones, entre ellas: Mediodía (en ella junto a los pensadores marxistas cubanos publican sus textos autores de otras ideologías, pero patriotas, como Fernando Ortiz); El Comunista (con textos de un marcado corte político); Dialéctica (en esta se difunden obras de Marx, Engels 14
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y Lenin y de estudiosos marxistas de otros países); Fundamentos (comenzó a editarse en 1941 con trabajos de pensadores marxistas cubanos y de otros países, como Stalin, E. Browder y William Foster). Mención especial, por su trascendencia y gran circulación, tiene el periódico Noticias de Hoy. A este listado hay que agregarles los periódicos Bandera Roja (1933-1935) y La Palabra (1935), así como las revista Masas (1934-1935, editada por La Liga Antimperialista de Cuba). Convencidos de la importancia de los conocimientos y de su difusión, los pensadores marxistas cubanos no se limitan a sus publicaciones, también utilizan la radiodifusión y llegan a tener su emisora radial, la conocida popularmente como Mil Diez (1010). Al mismo tiempo, varios de estos pensadores propagan sus artículos y ensayos en diversos periódicos y revistas de otro corte ideológico, dentro de ellos Bohemia, Bimestre Cubana y el suplemento literario Pueblo. Toda esta labor no sólo tiene una finalidad difusora de ideas, sino contribuir al aumento del saber de cada hombre y mujer, en particular de la gente sencilla, para favorecer la formación en ellos de criterios fundamentados en profundos argumentos. El universo cognitivo sirve también de espacio para la condena. En este caso la reprobación se enfila a una serie de problemas relacionados con la adquisición de conocimientos, entre los que sobresalen la falta de recursos para el ejercicio escolar y la limitación de la enseñanza a determinados sectores sociales. La deshumanización de la sociedad neocolonial cubana pone ante los pensadores marxistas cubanos un fuerte desafío que asumen e incorporan en sus ideas: la creación de un sistema educacional sin exclusiones de ningún tipo y que persiguiera el desarrollo integral de los cubanos. De ahí la reprobación de las intenciones lucrativas de los estudiantes procedentes de familias pudientes, pues, como dice Mella en 1924, asisten a la universidad “no a formar su organismo espiritual, ni a nutrirse de savia fecunda, sino a cometer el acto material de conquistar un título” (MELLA, 1975, p. 134). En correspondencia con el propósito de enriquecer el espíritu con el saber más variado, los pensadores marxistas cubanos insisten que conocer no es copiar, sino aprender a ser creativos, que la adquisición de conocimientos debe convertirse en un proceso activo, transformador, indetenible, defensor de la patria, de su soberanía e historia, tanto como de su cultura, no para osificarla, sino para acrecentar su esencia humanista. No ha de extrañar la opinión de Juan Marinello en 1950 acerca de Rubén Martínez Villena, cuanRedes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 9-48, jan./jun. 2012
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do sentencia que “hombres como él, que llegaron por el camino del análisis marxista a desentrañar la naturaleza del proceso cultural y que poseyeron, gente del oficio, conciencia muy clara de las limitaciones y degeneraciones de la ciencia y el arte en una sociedad asentada en el mando de una clase, son los más obligados a asumir una posición militante que empuje, con el gran cambio inevitable, el florecimiento de una cultura al servicio del hombre” (MARINELLO, 1989, p. 502). Algo marcadamente característico del pensamiento marxista cubano durante la primera mitad del siglo XX es que lo vibrantemente humanista de la visión acerca del conocimiento radica en el empleo del saber y la cognoscibilidad en beneficio humano como incentivación y aprovechamiento de su poder para exterminar fuerzas alienantes y echar a andar a los hombres y mujeres hacia un mañana que represente su mejoramiento como seres humanos y los dote de un poder cada vez más grande, no para dañarse, sino para mejorar su vida.
2 Presencia de los valores en un humanismo de raigambre cubana El humanismo en el pensamiento marxista cubano durante la primera mitad del siglo XX, al tomar cuerpo y energía en el entramado que forman la cultura, la sociedad y la historia cubanas, se yergue en estrechos vínculos con los valores, los cuales, mediante un proceso dialéctico, se incorporan como componentes suyos, en tanto se asumen como fuerzas desalienantes y de mejoramiento humano, a partir de las condiciones objetivas cubanas y con el reconocimiento de la independencia intelectual, la fuerza espiritual y la capacidad valorativa humana, en sus nexos con la actividad práctico-transformadora y la cognoscitiva. De ese modo, en el pensamiento que nos ocupa el humanismo se manifiesta asimismo mediante la actividad valorativa, la cual se refiere a la significación que tiene la satisfacción de necesidades, intereses y gustos de los hombres y mujeres, donde tiene un papel y lugar determinante la valoración, en tanto enjuiciamiento de fenómenos, hechos, procesos, etc. para fijar su significación positiva. En este caso, los deseos, pareceres, sufrimientos y disfrutes tienen un importante lugar. El objetivo esencial y derrotero del andar de este pensamiento cubano es la transformación radical de la sociedad y la cultura para dotarlas de una 16
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esencia verdaderamente humanista, con sistemas desalienadores siempre activos, sin discriminaciones de ningún tipo y con el afianzamiento de características que propicien la continua realización del ser humano como conjugación dialéctica de posibilidades y realizaciones. Con estos derroteros, los pensadores marxistas cubanos enfatizan la acción, apoyados en la sociedad, la cultura y la historia y aprecian sobremanera el poder de las reglas de conducta y convivencia, de las costumbres, así como del universo interno de los seres humanos, quienes en dependencia de las circunstancias histórico-concretas delimitan las obligaciones, sanciones y homenajes, a partir de su consideración histórico-concreta del bien, como sentido axiológico básico, en relación con su antítesis: el mal. En este entramado tiene una ostensible valía la conjugación dialéctica entre el ser y el deber ser. De tal suerte, el humanismo en el pensamiento marxista cubano tiene en los valores morales un instrumento clave para su realización, en cuanto desalienación y mejoramiento humano, que a su vez se combinan con valores de otra índole, en dependencia de las circunstancias y exigencias del momento, entre los cuales resaltan los políticos y los estéticos. Entre los valores morales que los pensadores marxistas cubanos refieren con marcada insistencia sobresalen la justicia social, la dignidad, la libertad, la responsabilidad, la honradez y el patriotismo. Mencionan también, pero no con tanta reiteración: la abnegación, la bondad, la sencillez, el coraje y el decoro. Junto a ellos aluden asimismo dos valores que poseen una consistente composición política: el antimperialismo y el latinoamericanismo, pero que en las ideas y aspiraciones de los marxistas cubanos cobran carga moral al buscarse y hallarse en la conducta humana.
2.1 Valores morales: presente y futuro Un lugar fundamental en el pensamiento marxista cubano lo ocupa la justicia social, valor de gran carga moral que no pocas veces se conjuga con la política. Los pensadores marxistas cubanos lo asumen con empuje convencidos de que su logro es totalmente imposible en el capitalismo (régimen que continuamente engendra explotación del hombre por el hombre, desigualdad extrema, perversiones, entre otros males) y que únicamente es la sociedad socialista donde puede lograrse con creces, debido, en gran medida, a que es consustancial a ella el continuo y ascendente mejoramiento de las Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 9-48, jan./jun. 2012
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condiciones de vida y trabajo de las amplias masas populares y la eliminación de la pobreza: fuente de vicios. En los mismos albores del pensamiento marxista cubano, en 1905 Carlos Baliño afirma lo que será una convicción que recorre este pensamiento cubano y es que “en el mundo no volverá a haber paz, ni tranquilidad, ni sosiego hasta que no se establezca la justicia social y haya trabajo para todos” (BALIÑO, 1976, p. 24). En la justicia social se concentra la aspiración de equidad y cordialidad apoyada en una paz fecunda. Con ella los pensadores marxistas cubanos refieren las relaciones de igualdad entre los hombres en todas las manifestaciones de la vida humana, sustentada en la propiedad social sobre los medios de producción y subrayan que la lucha por un mundo justo fortalece el espíritu y el cuerpo. Esta afirmación, en tiempos posteriores a la muerte de Rubén Martínez Villena la ilustran con el ejemplo de este poeta y pensador, porque siempre sacó fuerzas de lo más profundo de sí. Por otro lado, se puede ver que en este pensamiento cubano los valores suelen presentarse en relación con su antítesis, ya sea para dar pie a una condena o para evaluar y comparar la conducta de alguien en específico. La justicia social, como valor a instituir en la futura sociedad, aparece entrelazada con el reproche a la injusticia, como cuando reprimen el proceso judicial contra los comunistas norteamericanos desarrollado a principio de la década del 40, que consideran totalmente injusto o como cuando se refieren a la realidad social latinoamericana, donde el hombre está “estremecido por la insondable injusticia que ha de quebrantar” (MARINELLO, 1977, p. 99). Dentro de las más grandes y condenables injusticias reprobadas enfáticamente en este pensamiento cubano está la desigualdad racial, entendida como una gran alienación. Acorde con la pretensión de justicia social, los pensadores marxistas cubanos tienen como finalidad el logro de la igualdad racial, una aspiración que exigen constantemente y con respecto a la cual se enfatiza que para que exista verdadera igualdad social no puede existir ninguna manifestación de irrespeto a los hombres y mujeres de piel negra y dejan bien claro que la solución no está, ni puede estar, en el hecho de subrayar sus particularidades, porque con ello se acentuarían las diferencias, a tono con ello, lo que piden es la unidad entre todos los hombres. En 1905 Baliño destaca que “que el socialismo es universal y no reconoce razas ni colores – ni para deprimir ni para halagar [...]” (BALIÑO, 1976, p. 89). Por su parte, unos cuantos años después, en 1936, Juan Marinello 18
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señala: “A medida que el cruel prejuicio del color vaya debilitándose, más mulatas serán nuestras islas (...) todo esto es abominable y desconsolador para los adoradores de la pureza racial. Para los hombres de realidad y de justicia no es más que una modalidad histórica en la que hay el deber de excitar y orientar las dotes socialmente útiles y reducir y sitiar las contrarias a una real superación colectiva” (MARINELLO, 1989, p. 348). En este pensamiento cubano existe convicción acerca de la posibilidad real de la construcción de una sociedad de justicia social. En 1951 Juan Marinello enfatiza que en esa sociedad, la cultura ha de fortalecerse, porque si durante siglos ha florecido a pesar de las guerras, penurias y diversos males, cuando la humanidad pueda actuar en paz, sin explotación, con el predominio de las capacidades racionales humanas y en medio de la justicia social, la cultura podrá rebasar los límites imaginados y los hombres y mujeres tendrán nuevas y superiores posibilidades para su desarrollo (MARINELLO, 1977, p. 158). Estos pensadores tienen la justicia social como fundamento de la unidad de una América Latina libre y como medio para eliminar las tristezas, dificultades y pesares humanos. J. A. Mella sostiene un criterio que también comparten Carlos Baliño y Rubén Martínez Villena, con diferentes palabras. El joven pensador enfatiza que “queremos y amamos la fraternidad entre todas las razas y entre todos los pueblos, pero a condición de estar en pie de igualdad [...]. La justicia se conquista, o se merece la esclavitud” (MELLA, p. 167, 1975). Desde muy temprano queda sentado como un mandato no olvidar nunca la justicia social e inspirar a los hombres y mujeres a conquistarla. Un valor de gran significación, que con marcada frecuencia enfatizan los pensadores marxistas cubanos y que constituye uno de sus objetivos a lograr en la futura sociedad, también en la cultura que aspiran crear, es la dignidad humana. Ya en 1905 es un propósito muy bien definido y que será realizado en una sociedad carente de explotadores y explotados como prerrequisito para “que no haya un hombre que se humille delante de otro” (BALIÑO, 1976, p. 125). Este es un valor básico, fundamental que rebasa los límites de la vergüenza, la excelencia, el decoro, aunque los incluye a todos de manera integrada. De las reflexiones de estos pensadores emerge que, tanto como vergüenza y decoro, la dignidad es sobre todas las cosas el respeto que cada hombre y mujer merece por la elemental condición de ser un ser humano. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 9-48, jan./jun. 2012
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A partir de este presupuesto toma sustento el derecho de cada cual a la conservación de su integridad individual y sus características. La dignidad humana es un gran baluarte del humanismo y un consistente broquel para llevar adelante la lucha defensiva contra con toda discriminación humana. Por eso los pensadores marxistas cubanos llaman a los jóvenes a conquistarla y luchar por su salvaguarda. No ha de parecer peregrino el reclamo enérgico de Raúl Roa en 1950, que transmite mediante una sentencia: “Juventud que permanece insensible ante los que pisotean la dignidad humana, es vejez prematura” (ROA, 1977, p. 298). Todo hecho inhumano se concibe en este pensamiento cubano como un atentado a la dignidad y se enfatiza para levantar el repudio de todo aquel que posea sensibilidad y cualidades positivas. El anhelo de lograr la dignidad humana está muchas veces aparejado al de conquistar la justicia social, porque ésta al realizarse plenamente la hace posible en su integridad como garantía de la ausencia absoluta de cualquier tipo de injusticia. Por eso, señalan como objetivo de todo revolucionario de esa época el establecimiento “como ‘Ley primera y fundamental de la república el culto a la dignidad plena del hombre’” (ROA, 1943, p. 327), tal y como había sentenciado José Martí. La consideración martiana acerca de la dignidad se articula con el marxismo y se levanta frente a quienes sostienen que en el socialismo se menosprecia o aplasta a los individuos. Una muestra de ello la da Carlos Rafael Rodríguez al apoyarse en el Manifiesto del Partido Comunista para afirmar que en esta obra sus autores hablaron “de la necesidad de preservar la dignidad de la persona humana” (RODRÍGUEZ, 1987, t. l. 114) y seguidamente afirma que con esa opinión están emparentados con José Martí. Aparejado a todo lo anterior, no pocas veces la dignidad es entendida como el respeto a sí mismo. Así ocurre cuando en 1925 Julio A. Mella convoca a todo hombre digno a no participar en la manifestación de agradecimiento a los Estados Unidos por la devolución a Cuba de la Isla de Pinos, ya que ese país sólo había hecho lo que tenía que hacer (MELLA, 1975, p. 171). También sucede de un modo similar cuando Juan Marinello destaca la obra del músico mexicano Silvestre Revueltas y su búsqueda constante de la calidad, pues entendió siempre “la tarea artística con la más exigente dignidad” (MARINELLO, 1977, p. 144). 20
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A la obra humana se le concede y reconoce mayor calidad y méritos cuando ella lleva en sí la dignidad y limpieza moral de su creador, como también se señala su ausencia o espuria presencia en los falsos revolucionarios, a quienes se condena por su falsedad. Esos hombres reciben la calificación de mercaderes de la reacción, como Gastón Baquero, quien se destacó por su defensa a la tiranía de Gerardo Machado, por lo cual los pensadores de referencia hallan que empañó su obra intelectual (ROA, 1977, p. 172). En estrechos nexos con la justicia social y la dignidad, en el pensamiento marxista cubano toma grandes dimensiones la libertad, a partir de la relación necesidad-intereses-fines en la conjugación dialéctica de dos dimensiones, que sólo en la abstracción teórica es posible fragmentar: una de ellas, la de la patria, oprimida por las fuerzas imperialistas-neocoloniales norteamericanas y sus acólitos cubanos; la otra, la de las masas populares humildes, particularmente de los obreros, sumidos en una doble explotación: la capitalista y la neocolonial. A tono con ese fundamento, en 1924 Mella afirma: “La causa del proletariado es la causa nacional. El es la única fuerza capaz de luchar con probabilidades de triunfo por los ideales de libertad en la época actual. Cuando él se levanta airado como nuevo Espartaco en los campos y las ciudades, él se levanta a luchar por los ideales todos del pueblo” (MELLA, 1975 p. 124). Como complemento a su afirmación señala que está convencido de lo que acaba de decir, porque: 1- los obreros son los que quieren destruir el capital extranjero que es el enemigo de la nación; 2- ellos son quienes anhelan establecer un régimen de hombres del pueblo, con un ejército del pueblo, porque comprenden que es la única garantía para la sustentación de la justicia social; 3- no pretende cambiar al rico extranjero por el rico nacional, pues la riqueza en manos de unos cuantos es causa de abusos y miserias; 4- los proletarios representan el porvenir de la patria sin explotación de unos hombres por otros. Fatalmente la causa que engendra la lucha, la cual refiere Mella en 1924 se mantiene presente durante años. Aunque pueden ser muchos los ejemplos que ilustren esta afirmación, expresados de diversas índoles, una muestra concentrada son las siguientes palabras que en 1935 Blas Roca escribe: “El ideal de la libertad de Cuba, de su independencia económica, de su conquista para el pueblo cubano, alienta hoy como ayer y con más fuerza en cada pecho. El gran deseo de la conquista de la democracia, de las Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 9-48, jan./jun. 2012
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amplias libertades [...] no ha muerto en la conciencia de las amplias masas” (ROCA, 1935). A partir de la condición neocolonial de la patria, los pensadores marxistas cubanos subrayan el carácter limitado de la libertad en Cuba, donde es relativamente efectiva (y es importante subrayar esto de relativamente efectiva) sólo para los sectores poderosos, pues ellos estaban atados a los intereses de los imperialistas norteamericanos. Mella asegura: “Nada hay libre en la sociedad actual, cual pretenden los liberales utopistas. ¿La prensa? Sirve a quien la paga con sus anuncios y con sus dádivas secretas, pero nunca es una entidad libre para defender todas las ideas y la justicia. [...]. ¿El arte? Tampoco es libre. Todas las últimas degeneraciones que ha habido en este terreno demuestran, de una manera clara, que es necesario hacer arte para quien lo puede pagar, para la burguesía capitalista y para todos aquellos que se han asimilado su gusto” (MELLA, 1975, p. 343). Esa condena que Mella manifiesta en 1927 se reitera con frecuencia sin que, desgraciadamente, cambie su esencia. En 1943 Blas Roca señala: “Tomemos por ejemplo la libertad de prensa. Los patronos y los ricos tienen el derecho de expresar libremente su pensamiento a través de la prensa, pero además tienen el capital suficiente para montar grandes rotativas, para comprar grandes cantidades de papel. Es decir, tienen además del derecho, los medios materiales indispensables para hacer uso del derecho” (ROCA, 1945, p. 92). La esencia humanista que posee la libertad en el pensamiento marxista cubano se evidencia asimismo al verse como un derecho humano. Los hombres y mujeres son libres cuando tienen derechos: al trabajo, a la educación, la recreación, a tener o no credo religioso, a reunirse y pensar sin ataduras, entre otros. Pero gozan de tal status, sobre todo, cuando pueden realizarlos plenamente. Ejercitarlos representa la consolidación de la libertad, en la que incide la posibilidad de elegir y de actuar conscientemente, circunstancias que son en sí posibilidades para crecer como seres humanos. En 1937 Blas Roca apunta: “No puede tener una actitud sincera de lucha por la libertad completa en todos sus aspectos de nuestro país, quien no está en estos momentos resueltamente por la civilidad y la democracia [...]” (ROCA, 1937, p. 8). Tal y como los pensadores marxistas cubanos entienden la obtención de la libertad como un proceso, como una consecución gradual, durante la primera mitad del siglo XX entienden que una 22
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condición obligatoria para ello, como una primera etapa, es la ampliación de la democracia posible en el marco del capitalismo, para seguir hacia niveles superiores a realizarse en el socialismo, que coinciden con la libertad más grande: la total independencia de Cuba. Decisiva es la responsabilidad que cada quien establezca consigo mismo. Un valor que recorre el pensamiento marxista cubano durante la primera mitad del siglo XX, no pocas veces de modo implícito, es la responsabilidad. En tanto capacidad humana de pensar antes de actuar y de responder con el cumplimiento consciente de las tareas, metas y exigencias del momento, constituye una obligación moral que refiere la suficiencia de cada cual de valorar su conducta desde el punto de vista del beneficio o perjuicio para la sociedad, de la correspondencia o no con las normas y necesidades sociales. De lo anterior se desprende que incluye la concienciación del deber y su realización; de ahí su vinculación con la necesidad histórica de la patria. En cuanto a la solución de la necesidad histórica de transformar la sociedad cubana, los pensadores marxistas cubanos ven la responsabilidad en estrecha unidad con el cumplimiento del deber, que funge en ellos como impulso axiológico y los encamina a la solución de los problemas de la patria, pero a través del lente clasista, donde destacan a los obreros junto a las masas populares humildes y los hombres y mujeres que consideran de primer orden, es decir, los comunistas, de quienes, como señala Blas Roca en 1948, su responsabilidad “como hombres de vanguardia de la clase obrera y del pueblo es mantener y desarrollar un Partido que [...] sea capaz de conducir la lucha a través de todas las etapas y dificultades, hasta hacer nuestra patria completamente libre de toda opresión imperialista extranjera y hasta librar a los trabajadores de todas las formas de explotación” (ROCA, 1948, 5). En correspondencia con ese propósito, los pensadores marxistas cubanos entienden que es responsabilidad de cada comunista mejorarse como ser humano, es decir, adquirir cualidades morales más humanas, desarrollarse intelectualmente y aumentar su horizonte espiritual, lo cual ha de ser un sustento para que aumente la conciencia de la necesidad de luchar por Cuba a fin de beneficiarla en todos los sentidos, como la eliminación de trabas, tabúes y rasgos negativos. Así, cumplir con la responsabilidad es un acto de desalienación porque incluye el quehacer en pos de rasgos de la personalidad que representen mejoramiento humano. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 9-48, jan./jun. 2012
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Como aspecto significativo y en correspondencia con el humanismo en el pensamiento marxista cubano, la responsabilidad se despliega en la actividad humana y se concibe no solamente como una acción racional, sino que también conjuga sentimientos. Acorde con ello se sustenta la idea de que alguien, si es revolucionario, ha de acatar responsablemente la exigencia del momento, como considera Juan Marinello en 1940 cuando afirma: “Han llegado días de recio combate. Vendrán otros de mayor agresividad. El revolucionario que se amilane ante ellos no entiende su responsabilidad ni sabe el sentido de su acción” (MARINELLO, 1940, p. 1). De esas palabras se desprende que no bastaba con conocerla, muy necesario era llegar a comprenderla y actuar en correspondencia con ella. Frecuentemente se relaciona la responsabilidad con los intelectuales por sus mayores posibilidades para captar las exigencias del momento y por su preparación para conducir la transformación social. Ello no presupone abandono de la obra creadora, antes bien, su empleo en función de los cambios de la sociedad, mediante el enriquecimiento espiritual de los hombres y mujeres trabajadores y la maduración de su conciencia en cuanto a la necesidad de luchar por una sociedad y una cultura verdaderamente humanistas. En ese lado hallan espacio los intelectuales que entregan una obra de altos quilates, escoltada por la limpieza moral de su autor y concebida de un modo humanista. Algunas de las figuras que estos pensadores mencionan con vehemencia por poseer esas características son Manuel Navarro Luna, Cesar Vallejo y Fernando de los Ríos (ROA, 1978, 35) (MARINELLO, 1938, p. 7). En pos de una sociedad, una cultura y una patria verdaderamente humanistas, especial llamado reciben los poetas, porque tienen la libertad de poner su palabra en función del logro de esos objetivos. En este caso, un aparte merece Juan Marinello, cuando en 1937 les recuerda a los poetas que “la responsabilidad, como siempre, se acrece con la libertad” (MARINELLO, 1977, 81) por lo cual han de asumir el mandato de su tiempo de crear una poesía cada vez de mayor calidad y capaz de impulsar a los hombres y mujeres a acciones revolucionarias y humanistas. Asimismo, de la universidad, como institución generadora de nuevos profesionales, se subraya la responsabilidad que tiene en cuanto al futuro de la patria. Esta misión suya propicia amplias reflexiones de los pensadores marxistas cubanos, quienes desde inicios de los años 20 comienzan a exigir su transformación a fin de propiciar la graduación de intelectuales defenso24
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res de la patria, la justicia social y los derechos de los obreros. Señalan que los futuros egresados tienen la responsabilidad de difundir los problemas de su país y de que las masas populares conciencien las exigencias sociales. El pedido de formar estudiantes responsables es constante entre estos pensadores cubanos. El medio que consideran idóneo es el activismo clasista, porque mediante él pueden desarrollar sus posibilidades y despertar su sensibilidad. Establecen una correlación entre la participación, el compromiso y la responsabilidad. En todo este proceso ven como decisiva la concienciación del porqué de la acción realizada (ROA, 1950, p. 339). En el pensamiento marxista cubano en la responsabilidad se funden la cultura y la política. En 1936 Juan Marinello afirma: “Cuando el joven cubano cumpla su deber cultural adquiriendo y transmitiendo enseñanzas muy proyectadas sobre los problemas cubanos, estará ya tratando de realizar obra política para resolver esos problemas. Cultura y política serán nombres de una misma cosa: superación del hombre y de los hombres” (MARINELLO, 1989, p. 220). Significativo es que no se trata de una simple mezcla, sino de una integración con una enjundiosa carga desalienadora. Así se ve que los hombres y mujeres que lleguen a ser capaces de poner sus fuerzas intelectuales al servicio de la patria, de la sociedad y la cultura cualitativamente superior por su esencia humanista, habrán llegado a despojarse de tabúes y habrán avanzado por el camino de la desalienación. No puede pasarse por alto, que los pensadores cubanos atienden la responsabilidad que los hombres y mujeres tienen en la realización de cada tarea diaria, cuyo cumplimiento deviene parámetro cualificador y potencia que conduce al mejoramiento humano. Una ilustración elocuente son las siguientes palabras que en 1949 escribe Raúl Roa: “Estudiante lo es el que estudia afanosamente, el que pugna sin tregua por un ensueño, el que dona su vida al mejoramiento humano, el que exalta y legitima su juventud mediante un proceso perenne de perfeccionamiento intelectual y ético” (ROA, 34, p. 34). La esencia humanista es evidente. El estudio de la situación social del país es marco para el pedido de depurar la responsabilidad y sancionar a los culpables de los males que sufre el pueblo cubano, como ocurre cuando el asesinato de Jesús Menéndez. Este hecho enardece a las masas populares y motiva a que Blas Roca, en el discurso que pronunció ante la tumba de este mártir, destacara la valía que les concede a los hombres y mujeres que como Jesús Menéndez poseen la Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 9-48, jan./jun. 2012
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responsabilidad como uno de sus méritos. Evidencia son las siguientes palabras: “Te lo juramos, compañero querido, que lucharemos en ese camino, que nos esforzaremos por ser cada día mejores, parecernos más cada día a ti, más responsables, más unidos” (ROCA, 1978, 188). Es el propio pueblo encargado de depurar la responsabilidad de quienes lo explotan. Para ello se le pide a los cubanos una definición política asumida responsablemente: O se está a favor de las masas populares o en su contra. En época tan violenta como la segunda mitad de la década del veinte, Rubén Martínez Villena le asigna a la historia el papel de tribunal para juzgar el cumplimiento de la responsabilidad o su incumplimiento. En el afán por atraer a los soldados a la lucha obrera les hacen saber que luego la historia les reprobará por ser responsables de “haber servido de dóciles lacayos al enemigo común, al capitalista imperialista” (VILLENA, 1978 p. 183), que inhumanamente flagela a todo aquel que se opone a las decisiones tiránicas. La responsabilidad y el cumplimiento del deber también toman cuerpo en relación con los hombres y mujeres latinoamericanos, a quienes les recalcan que la realización de estos valores morales depende en gran medida del logro de la unidad en un bloque antimperialista y la intensificación de la colaboración continental en contra de la II Guerra Mundial. En vísperas de este suceso y durante su desarrollo, consideran la lucha contra el fascismo como la máxima responsabilidad de los humanos honrados de entonces (ROCA, 1944, p. 37). La honradez constituye otro de los valores con mayor presencia en este pensamiento cubano. En este marco por ella se entiende la rectitud, diafanidad y pulcritud en el modo de pensar y en el comportamiento. Es uno de los rasgos que se estima como de obligatoria presencia en toda organización marxista y en cada uno de sus militantes, para quienes ser honrado es ante todo vivir de su esfuerzo, de su trabajo, sin la mínima explotación ni engaño a ningún otro ser humano, sin afán de lucro y mucho menos de enriquecimiento a base de embustes y acciones fraudulentas, ilegales o que atenten contra la igualdad humana. Los pensadores cubanos de referencia consideran que el lucro no puede ser rasgo de un comunista y lo condenan mucho más si se efectúa con el dinero del Partido. A lo largo de este pensamiento cubano durante la primera mitad del siglo XX se considera inconcebible que un revolucionario no tenga entre sus rasgos la honradez (ROCA, 1939, p. 6) y junto con ella 26
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la sinceridad y la resistencia frente a los vicios, la corrupción y los sobornos. Los pensadores marxistas cubanos ven la honradez en estrecha relación con la lucha revolucionaria y las acciones justas. Consideran que en una sociedad corrupta todos los hombres y mujeres honrados devienen revolucionarios, tal y como todo revolucionario ha de tener la honradez entre sus valores. De ella la referencia más frecuente se debe al hecho de destacar su presencia en algún hombre o mujer concreto, quien ha devenido prototipo por ese mérito. Con los nombres que ponen como ejemplo puede escribirse un largo listado. Una muestra de tales figuras son Rafael Trejo y Lázaro Peña. Del primero en 1931 Raúl Roa subraya “sus sentimientos generosos, su honradez insobornable y su fe apasionada en un mundo más justo y bello” (ROA, 1977, p. 9). Mientras que del segundo, Blas Roca recalca en 1938 que es “apreciado entre todos por [...] la fidelidad a los principios que sustenta, por la honradez en la defensa de los intereses de su clase” (ROCA, 1938, p. 6). Vale acotar que no pocas veces se destaca a algún hombre o mujer por su entrega al beneficio de la humanidad. Así ocurre con María Zambrano, Francisco Giral, entre otros, de quienes Raúl Roa en 1943, en la velada que la Federación de Estudiantes Universitarios ofrece en homenaje a los profesores universitarios españoles antifascistas, señala que: “Maestros también verdaderos han sido y siguen siendo estos hombres que jamás olvidaron su oficio de tales. Maestros no sólo porque enseñaron, alumbraron y guiaron en su ciencia y en la ciencia. Maestros asimismo y sobre todo, porque supieron guiar, alumbrar y enseñar con el ejemplo” (ROA, 1943, p. 33). El hecho de enarbolar la honradez como un valor-meta posee una extraordinaria significación superadora en una sociedad donde pululaban la corrupción y la inmoralidad en la mayoría de las dependencias oficiales, donde el robo y el contrabando estaban organizados y era algo común el despilfarro del dinero del pueblo. Importante es destacar el carácter condenatorio que tiene la palabra honradez en la voz de los pensadores marxistas cubanos en la Cuba de entonces cuando este vocablo no abundaba en los hombres dedicados a los asuntos gubernamentales, en quienes la referencia a ella era la mayoría de las veces una grosera hipocresía o una burla del peor gusto (ROA, 1977, p. 251). En correspondencia con tal situación, en el pensamiento de marras es severa la condena a los hombres no honrados y el repudio a los falsos moralistas. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 9-48, jan./jun. 2012
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Muy ligado a las anteriores reflexiones está el patriotismo, que en el pensamiento marxista cubano refiere todo cuanto es Cuba, si bien, como para José Martí, su peso recae principalmente en el bienestar, desalienación y mejoramiento de los cubanos y cubanas. Entre las ideas explícitas de los pensadores de marras, sobresalen las consideraciones de Rubén Martínez Villena y Blas Roca Calderío. El primero expresa de modo poético una amplia concepción según la cual es para él “amor a las bellezas naturales del país de nacimiento, interés por sus habitantes y costumbres, veneración por sus grandes hombres, gusto por su música, recuerdo amable de la niñez, afectos de familia” (VILLENA, 1978 t. 2, p. 83). El patriotismo, como amor a la conservación de la patria, a su defensa, como orgullo y vergüenza por ella, como ansia de indetenible andar en pos de un futuro humanista está enclavado en el poema de Rubén Martínez Villena titulado Mensaje lírico civil. La siguiente estrofa es una muestra elocuente de la carga patriótica que posee esta obra: “Hace falta una carga para matar bribones, / para acabar la obra de las revoluciones; / [...] para guardar la tierra, gloriosa de despojos, / para salvar el templo del Amor y la Fe, / para que nuestros hijos no mendiguen de hinojos / la patria que los padres no ganaron de pie” (VILLENA, 1978 t. 1, p. 143). La concepción de Martínez Villena, con toda la carga martiana que lleva en sí, está presente de modo general en el pensamiento marxista cubano durante la primera mitad del siglo XX. No obstante, en 1935 Blas Roca ofrece una comprensión, igualmente sustanciosa, pero más concisa y sin la sobresaliente belleza poética, que tiene en cuenta ante todo las tareas a realizar en pos del beneficio de la patria. Según su decir, el patriotismo está en la “firme e inquebrantable decisión de sacar a Cuba de la opresión económica y política en que vive, para que sea libre y soberana, gobernada por los cubanos, reparando hasta la última injusticia” (ROCA, 1935b). Vale apuntar que las ideas y aspiraciones de Martínez Villena y Blas Roca están presentes asimismo en Carlos Baliño, Julio Antonio Mella, Juan Marinello, Carlos Rafael Rodríguez y Raúl Roa, expresadas de diferentes maneras, unas veces como componente de otras ideas, otras veces como substrato, pero siempre presentes. En cuanto a las expresiones explícitas del patriotismo, sobresale la intención que Blas Roca expresa en 1946. Este pensador quiere que el amor raigal hacia la patria se convierta en un sentimiento consciente y así se eleve a niveles superiores, desde donde se 28
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revierta en un gran orgullo sano por ella, sobre todo por la obra creadora de sus hombres y mujeres. El medio eficaz para tal empeño lo halla en el estudio de la historia y la cultura cubanas (ROCA, 1946, p. 50). Es el patriotismo en el pensamiento marxista cubano durante la primera mitad del siglo XX el valor cimental y espacio donde convergen muchos otros valores, rango que alcanza porque no es una idolatría a Cuba de inmensas proporciones, sino porque es un manojo de sentimientos y razonamientos, que centrados en la patria se torna en una dinámica unidad contendiente de la dialéctica conservación-ruptura superadora, conjugación que le proporciona su esencia revolucionaria. A propósito del patriotismo, es oportuno comentar que en la década de los cuarenta y desde sus posiciones patrióticas, Blas Roca y Carlos Rafael Rodríguez condenan la incorrecta interpretación que los apologistas del capitalismo dieron a las palabras que Marx y Engels exponen en el Manifiesto del Partido Comunista: “[...] los trabajadores no tienen patria.” La explicación que ofrecen estos pensadores cubanos es que los trabajadores en el capitalismo no tienen patria porque ésta ha sido acaparada por la burguesía, al apoderarse de la tierra, el poder político, los medios de producción, la cultura. Tanto Blas Roca como Carlos Rafael Rodríguez insiste que contrario al carácter excluyente y elitista de la burguesía, para ellos la patria tiene primacía, tal y como la tiene el deseo de ponerla en manos de sus verdaderos dueños: los cubanos y cubanas que la edifican día a día, que forman el pueblo y son la mayoría de su población (RODRÍGUEZ, 1942, p. 326). El patriotismo en el pensamiento marxista cubano no es una variante de nacionalismo ni de chovinismo y mucho menos de xenofobia, porque lleva en sí la compatibilidad entre el querer a lo propio y la fraternidad con los pueblos del mundo. De ese modo, tiene una connotación especial al conjugar la dimensión moral con la política (entre otras más) y sostener amplios y muy variados nexos con otros dos valores cuya significación trasciende la político y se adentra en la moral con el peso de la simbiosis de lo racional y lo afectivo, sin evadir campos de tamaña amplitud como la economía, la jurisprudencia, la estética, entre otros. Esos dos valores son el antimperialismo y el latinoamericanismo. La carga axiológica del antimperialismo radica en que condensa en sí la repulsión a la injerencia y hegemonía imperialistas, sobre todo norteamericanas, las cuales son causa de muchos de los graves problemas de la humanidad Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 9-48, jan./jun. 2012
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y no sólo de los cubanos. Los pensadores que nos ocupan admiran notoriamente a todo aquel que ostente como característica ser antimperialista, y lo destacan. En este caso son notables las consideraciones de Raúl Roa. Una muestra de ellas son sus apreciaciones sobre Enrique José Varona y Pablo de la Torriente-Brau. Del primero subraya su opinión contraria a todo aquello que afectara a Cuba y su continua y militante oposición al entreguismo de los gobernantes. Del segundo enfatiza que como muchos estudiantes de la Universidad de La Habana a inicios de los años 30, se enfrentó frontalmente a la tiranía machadista y al imperialismo norteamericano. Con la misma intención de subrayar la oposición al imperialismo, Raúl Roa muestra su estima por hombres de otras latitudes, como Mahatma K. Gandhi, cuya lucha contra los imperialistas británicos la enfatiza por ser ejemplo de resistencia (ROA, 1977, p. 665) (ROA, 1977, p. 678). En cuanto al arraigo del antimperialismo en Cuba, específicamente en la Generación del 30, un espacio singular ocupan las consideraciones de Raúl Roa. Estas ideas suyas se pueden concentrar epistemológicamente en dos grandes bloque. Uno dado por las condiciones objetivas: La realidad social cubana caracterizada por la Enmienda Platt; la penetración económica y financiera de Estados Unidos; las intervenciones yanquis en Cuba y otros países latinoamericanos. Como parte del otro de esos dos grandes bloques en que se pueden concentrar sus ideas, está su conclusión de que el crecimiento del antimperialismo en Cuba durante esos años también se debe en una medida considerable al énfasis dado por Julio Antonio Mella a los razonamientos de José Martí acerca del imperialismo estadounidense, así como la lectura de otros autores antimperialistas: Manuel Sanguily, Enrique José Varona, José Carlos Mariátegui, Carlos Marx, Lenin, entre otros no menos importantes y el conocimiento que el pueblo cubano llega a tener acerca de acciones norteamericanas dañinas a América Latina como las relacionadas con la revolución de México y la epopeya de Sandino en Nicaragua (ROA, 1977, p. 793). En el pensamiento marxista cubano el antimperialismo se manifiesta en diferentes tendencias internamente relacionadas y mutuamente condicionadas. Entre ellas: 1. La condena al imperialismo en todos los sentidos, sobre todo al norteamericano, donde sobresale Julio Antonio Mella (que no es el 30
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único) con sus incesantes repulsas, como la de 1923 cuando habla de lo que llama la “política rapiñesca de absorción de las nacionalidades débiles” (MELLA, 1975, p. 50) con la cual los imperialistas de los Estados Unidos pretendían apoderarse de la Isla de Pinos, así como con sus reprobaciones al imperialismo norteamericano publicadas en el periódico El Machete en México D. F. en 1929, año cuando es asesinado. En este caso también cabe mencionar, entre otros ejemplos posibles, a Raúl Roa, quien repudia los actos de los imperialistas norteamericanos en Cuba, como la afrenta inferida a un monumento a José Martí por dos marineros de Estados Unidos y la posibilidad que tenían los militares estadounidenses de desembarcar en Cuba como en una colonia, con desprecio por su cultura y soberanía (MELLA, 1975, p. 503). No resulta superfluo subrayar que la injerencia norteamericana y la monoproducción son dos grandes problemas que afectan a Cuba durante la etapa neocolonial. Sobre la base de la comprensión de la anterior situación, los pensadores marxistas cubanos establecen una relación de dependencia entre la creciente penetración imperialista yanqui y el aumento de la explotación a la cual están sometidos los obreros y campesinos, cuya lucha dichos pensadores subrayan como coincidente con la necesidad histórica del país, coincidencia dada en la aspiración de lograr la total independencia de la patria, crear una sociedad sin explotación y una cultura humanista sin ataduras a ningún otro país. No ha de extrañar que el desarrollo de la conciencia antimperialista la consideren una tarea decisiva. Una manifestación de antimperialismo altamente reconocida en este pensamiento cubano es la condena al creciente traspaso a manos extranjeras de la industria azucarera, principal renglón económico cubano, así como el rechazo a las presiones norteamericanas sobre el gobierno cubano mediante el incremento o disminución de las cuotas azucareras. Los pensadores marxistas cubanos repudian que en el sector azucarero los profesionales eran exclusivamente norteamericanos o, en el mejor de los casos, formados en Estados Unidos. En ese mismo contexto rechazan el comercio desigual y el carácter antipopular del imperialismo, por cuanto “el turbio interés económico y político de aplastar la personalidad distinta de
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un grupo cercano no puede nacer de los pueblos, que nada ganan con la actitud tiránica y con la postura imperialista” (ROCA, 1939, p. 15). El rechazo a la posición pronorteamericana (entreguista, como también se le conoce, porque significaba entregar a Cuba o a cualquier país de América Latina al poderoso país del norte), sea de gobernantes o de individuos por separado. En este caso se destaca nuevamente Julio Antonio Mella cuando repulsa a Víctor Raúl Haya de la Torre, a quien en 1928 denomina panegirista del imperialismo inglés y subordinado a los intereses norteamericanos (MELLA, 1975, p. 367). También vale mencionar el rechazo de Juan Marinello (MARINELLO, p. 21, 1989) a todos aquellos que en la Cuba de los años 30 se mostraron simpatizantes y seguidores del gobierno estadounidense y su política abiertamente anticubana y antilatinoamericana. El gran reconocimiento a quienes se manifiestan contra la política o posiciones pro-imperialistas, así como contra los hombres y mujeres que simpatizan con ellas. En este caso se puede destacar a Raúl Roa con sus elogios a las masas populares en la lucha contra el imperialismo (ROA, 1977, p. 4). La condena a la pretensión de los hombres entreguistas de formar una imagen desfigurada de los objetivos del Gobierno de los Estados Unidos con Cuba y América Latina y de hacer creer que los gobernantes del poderoso vecino querían la estabilidad política y el establecimiento de gobiernos legítimos, capaces de preservar el orden interno y propiciar el beneficio del pueblo cubano, cuando siempre han demostrado desprecio por la cultura y la soberanía cubanas y latinoamericanas. Con insistente reiteración se reprocha el carácter antihumano de la penetración norteamericana. Su antihumanismo se recalca en el apoyo a los gobiernos reaccionarios que empeoran las condiciones de vida y trabajo de las masas populares y someten a pueblos enteros a una brutal explotación, en la cual intervienen las propias fuerzas imperialistas (VILLENA, 1978, t. 2, p. 107). La esencia emancipadora y desarrolladora del antimperialismo se extiende a la solidaridad con el propio pueblo norteamericano, Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 9-48, jan./jun. 2012
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como cuando a principios de siglo XX Carlos Baliño condena el trabajo antihumano de 11 a 15 horas en las plantaciones de remolacha, donde participaban niñas y niños de 6 a 10 años de edad y madres con niños pequeños. La denuncia recoge el hacinamiento en que vivían familias enteras en los albergues miserables cercanos a esas plantaciones (BALIÑO, 1976, p. 179). Los vínculos entre el antimperialismo y el patriotismo son notorios en el pensamiento marxista cubano y están estructurados sobre la base de la preocupación ante la tendencia llevada por las fuerzas entreguistas de convertir a Cuba en colonia de los Estados Unidos, con lo cual serían destruidos todos los rasgos de su cultura, que es preciso defender, tanto como salvaguardar la patria, con sus especificidades. De este modo, el antimperialismo es una perpetua fuerza desalienadora. No se puede olvidar que la patria y la cultura están formadas por hombres y mujeres, a quienes la penetración extranjera llega a desvirtuar al atacar su ser esencial, que es su cultura. Luchar por no dejar de ser quien se es, es un enfrentamiento contra la alienación y de hecho, una muestra de humanismo. El antimperialismo está presente en la exigencia de los pensadores marxistas cubanos de disminuir la egresión de profesionales cubanos en universidades norteamericanas y de reducir la circulación en Cuba de periódicos de los Estados Unidos editados en español, porque mostraban deformadamente la vida de los pueblos latinoamericanos y porque pretendían ablandar a esos mismos pueblos hasta lograr de ellos una aceptación mansa del poder yanqui (RODRÍGUEZ, 1987, t. 3, p. 465). Como valor movilizador de amplia connotación, el antimperialismo está relacionado con la defensa de América Latina. En el pensamiento marxista cubano se destaca que el imperialismo yanqui nunca ha respondido a los intereses latinoamericanos. La ilustración de dicha aseveración se sostiene en la política de los gobernantes de los Estados Unidos y se recalca con la ratificación de la constante amenaza que ese poderoso país representa para América Latina, tal y como asegura Mella en 1924, pues “con guantes de seda o de hierro, la garra imperialista oprimiría igualmente” (MELLA, 1975, p. 107). La defensa de América Latina y de cuanto ella es y representa se concentra en el latinoamericanismo, valor impregnado profundamente por el Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 9-48, jan./jun. 2012
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espíritu martiano y donde se conjugan la moral y la política en tanto amor, respeto y dedicación a América Latina. Todo ello en su conjunto constituye un cualificador de los hombres y mujeres mediante sus aspiraciones con respecto a los pueblos hermanados por la historia y la cultura. A todo hombre y mujer que desee el progreso y la independencia de su patria y de toda la América Nuestra se respeta y estima con creces. Por su esencia desalienadora y de mejoramiento humano el latinoamericanismo es esencialmente humanista, pero lo es, además, por otorgarle al hombre latinoamericano el lugar central en las reflexiones y propósitos a realizar. Cuando a alguien se considera latinoamericanista significa que se le reconoce defensor de América Latina, de su independencia, historia, cultura, progreso, por lo cual, este valor en el pensamiento marxista cubano se complementa con el antimperialismo y el patriotismo. Acorde con ello, recorre el ideario marxista cubano la convicción de que sólo de la victoria frente al imperialismo pueden salir gobiernos legítimos y populares, que han de eliminar los vestigios feudales, lograr una verdadera democracia popular y consolidar la solidaridad latinoamericana (MELLA, 1975, p. 330) (RODRÍGUEZ, 1987, t. 1, p. 39). El latinoamericanismo es un llamado constante a la unidad latinoamericana para defender su integridad y edificar, consolidar y conservar una sociedad y una cultura verdaderamente humanistas. En este empeño de amor a Latinoamérica es común a los pensadores marxistas cubanos que durante toda la primera mitad del siglo XX vean a los obreros como el elemento rector y polea que puede alcanzar la unión de las fuerzas revolucionarias de la región, de todo el continente e incluso de todo el mundo para acabar con el imperialismo. Es fuerte la confianza en su logro y el hombre (o la mujer) que posea como ideal alcanzar esta unidad llega a ser ubicado en un alto sitial. Con esos nombres se puede escribir un extenso listado (MELLA, 1975, p. 435) (VILLENA, 1978, t. 2, p. 188). La unidad latinoamericana se concibe como posible a partir de la comunidad de rasgos socio-económicos sustentados en la constante transformación capitalista. Está presente la certeza de que esos cambios exigen hombres y mujeres latinoamericanistas, capaces de interpretar dichos rasgos y dar un grito “agonal, porque la agonía es el combate para no morir [...]. Ya no peleamos como cubanos, como venezolanos, como chilenos, para empezar a vivir, sino como hombres enfrentados a una gran encrucijada 34
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de la historia que quieren salvarse” (MARINELLO, 1977, p. 57), como sentencia Juan Marinello en 1932. El espíritu creador y fiel a sí mismo del hombre latinoamericano en todas sus manifestaciones está ligado al latinoamericanismo, como Nicolás Guillén, de quien Juan Marinello dice en 1937, que su poesía si ciertamente porta la herencia española, está “enriquecida por su americanidad, por su tiempo y por su mulatismo” (MARINELLO, 1977, p. 76). De ese modo se enfatiza que las características propias de cada pueblo le imprimen autenticidad a la obra. Junto a ello, del hombre dedicado al arte, o sea, del artista latinoamericano, se estima altamente la capacidad de calar en las intimidades humanas y traducir sus lamentos y esperanzas, sobre todo de los humildes. Ello le da a la obra acento propio e inconfundible. No ha de olvidarse que la autenticidad en América Latina surge de todo lo común a los latinoamericanos y que mientras el hombre latinoamericanista recalca lo común, el extranjerista sólo mira las diferencias. Todos estos valores, con su connotación moral y política no pocas veces incluyen lo estético, donde brilla de un modo muy singular uno de los tres mayores derroteros de la filosofía durante la Antigüedad: la belleza (fuente de alegría y placer espiritual), que se reconoce en la naturaleza, la sociedad y la cultura. No obstante, no pocos pensadores marxistas cubanos la destacan como producto de la actividad humana y centran su atención en ella cuando resalta en las obras nobles y ennoblecedoras, como la lucha revolucionaria y todo quehacer en pos de la desalienación y el mejoramiento humano. No faltan las ocasiones cuando las ideas en torno a la belleza, en el pensamiento marxista cubano, se deben al hecho de considerar hermosa la conducta de alguien, específicamente de un hombre o una mujer quien entrega todo de sí en aras del beneficio y mejoramiento humanos. Así se piensa y habla de Pablo de la Torriente-Brau, cuya actitud y obra en la defensa del pueblo español contra el fascismo la calificada en 1938 Juan Marinello como que “jamás de modo tan bello y tan perfecto fue servida una fe” (MARINELLO, 1989, p. 535). Sobre esta base estético-moral, el ideal humanista que recorre el pensamiento de marras radica en el logro de una sociedad y una cultura donde prevalezca y brille la justicia social, la dignidad humana y la belleza. En fecha temprana como 1905 Carlos Baliño establece una aspiración que es en sí un principio: la sociedad del futuro cuando “no tenga el hombre que dedicar Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 9-48, jan./jun. 2012
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casi todas sus energías a la sórdida lucha por el mendrugo, [...] podrá vivir intensamente para lo bueno, lo bello y lo verdadero; podrá su individualidad con una libertad y una amplitud desconocidas en la sociedad actual; podrá cultivar el arte, no para satisfacer el mercado, sino para dar expresión a su ideal” (BALIÑO, 1976, p. 123). La atención a la belleza sobresale más de una vez en el pensamiento marxista cubano, como cuando en 1924 Julio Antonio Mella ve en las transformaciones de la universidad en pos de hacer avanzar las ciencias, un “fin justo y alto de ennoblecedora belleza (MELLA, 1975, p. 134) y cuando en 1931 Raúl Roa, al hablar del patriota antimachadista Rafael Trejo, subraya “sus sentimiento generosos, su honradez insobornable y su fe apasionada en un mundo más justo y bello” (ROA, 1977, p. 9). La patria es el terreno donde se fragua la unidad entre la moral, la estética y la política en el pensamiento marxista cubano. Al coraje, la valentía, la bondad, la abnegación, los pensadores de marra les hallan la más esplendorosa belleza y la mayor importancia moral cuando están al servicio de la patria. Esos valores revelan su esencia con la mediación del amor, así como de los sueños y anhelos que sobre él se tejen patrióticamente, todo lo cual aparece implícitamente diseminado en el pensamiento marxista cubano durante la primera mitad del siglo XX. Aunque muchos pueden ser los ejemplos al respecto, sobresale entre los diversos textos Una semilla en un surco de fuego, escrita en 1936 por Raúl Roa (ROA, 1977, p. 91), donde enlaza todas estas características a la figura del pensador Rubén Martínez Villena, ya en esa época muerto. De hecho, el patriotismo con su esencia revolucionaria (característica ésta que impide que sea simplemente un amor estático o retardatario) es el suelo donde germinan, maduran y florecen los otros valores, ya que todos, en una u otra medida, ligan su existencia a la patria, su libertad, y a los cubanos y cubanas que la aman, honran y quieren para ella el bienestar.
2.2 Los valores morales y los hombres precedentes El humanismo en el pensamiento marxista cubano desde su surgimiento y hasta mediados del siglo XX se manifiesta, además, en la atención que los pensadores le dan a la historia cubana y a los valores, sobre todo morales, que tenían hombres insignes de la patria. En ello es fundamental una convicción: el presente se conoce mejor cuanto más se estudia el pasado. 36
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La esencia humanista de la mirada atenta y escudriñadora a la historia de Cuba se expresa en la intencionalidad de conocerla con una profundidad cada vez mayor y emplear esos conocimientos en bien de los mismos cubanos, tanto con miras al presente como al futuro. Esta conjugación dialéctica pasado-presente-futuro tiene el propósito de aprovechar la herencia de hombres cuyas ideas y acciones constituyen un tesoro de la cultura cubana. En este proceso de estudio de la historia, sobre todo de la cubana, y de realce de los valores de los hombres de gran tamaño histórico, hay una característica de los pensadores marxistas cubanos que reviste una notoria importancia y es que al ubicar a dichos hombres y sucesos en las particularidades del momento cuando tienen lugar, ven en ellos tanto los méritos como las limitaciones y las estudian para rebasarlas y continuar la marcha hacia niveles superiores. Vale subrayar a Julio A. Mella, quien sostiene que el espíritu creador del hombre lo empuja constantemente al porvenir y sólo queda atrapado en el pasado el que se detiene en un presente eterno, como, según afirma en 1925, les había ocurrido a muchos profesores universitarios de principios del siglo XX: “Por regla general, las ideas de los profesores tienen para nosotros el característico olor a moho de las cosas sepultadas en el fondo de los escaparates o de las bodegas” (MELLA, 1975, p. 206) (MIRANDA, 1995, p. 48). No obstante, Mella no desdeña el ayer. En cuanto a la relación del ser humano con el pasado es necesario destacar las consideraciones de Mella. Señala en 1926 en sus Glosas al pensamiento de José Martí que esta relación ha de ser vista “no con el fetichismo de quien gusta adorar el pasado estérilmente, sino de quien sabe apreciar los hechos históricos y su importancia para el porvenir, es decir, para hoy” (MELLA, 1975, p. 268) (MIRANDA, 1995, p. 48). Apunta el joven pensador en ese mismo texto, que en aquel momento hay dos enfoques erróneos en cuanto al pasado: el que lo idolatraba y el que lo negaba y agrega un tercer enfoque que es el que ve como correcto y asume: estudiar la figura histórica en su escenario y extraer conclusiones que puedan ser utilizadas, sobre todo si son provechosas para Cuba y América Latina. El procedimiento de Mella en cuanto al pasado lo continúan otros pensadores marxistas cubanos, quienes dan muestra de un método genealógico al buscar y hallar al hombre en sus antepasados, en los orígenes de su pueblo, en la historia. A su vez, llegan a entender que las tareas y circunstancias cambian al pasar el tiempo. Un ejemplo ilustrador de esta posición son las Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 9-48, jan./jun. 2012
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siguientes palabras de Blas Roca correspondientes a 1948, con las cuales condena la tendencia superficial de “utilizar las proposiciones del pasado como fórmulas enteramente aplicables a los problemas y necesidades del presente [...] no negamos que muchas proposiciones [...] mantengan su vigencia en el presente, no ya como fórmulas terminantes, sino como líneas generales de la acción necesaria” (ROCA, 1978b, p. 40). Blas recomienda realizar la búsqueda en las raíces con el discernimiento de lo positivo y lo negativo y considera, al igual que los demás representantes del pensamiento marxista cubano, que la aceptación en bloque y la negación nihilista son un extremismo infantil. La recomendación martiana y marxista de distinguir los elementos progresistas y los reaccionarios está presente de modo reiterado en el pensamiento marxista cubano y en consonancia con ella se recomienda notoriamente a los trabajadores aprovechar los antecedentes históricos de su lucha e impedir que sean adulterados, negados o utilizados por sus enemigos. Las palabras de Carlos Rafael Rodríguez que siguen, escritas en 1947, ilustran claramente estas posiciones raigales, comunes a todos los pensadores marxistas cubanos: “La clase obrera y su partido miran hacia el ayer histórico para ver las actitudes, enfoques y acciones de los hombres, grupos sociales y clases, con relación a su propia época. Los enjuician por lo que hicieron o por lo que no hicieron. Atendiendo para ello al objetivo principal de una etapa dada” (RODRÍGUEZ, 1987, t. 3, p. 39). Los pensadores marxistas cubanos sostienen que es imprescindible la profundización en la historia y la literatura nacionales. Esta recomendación a inicios del siglo XXI es algo común, pero es ineludible apuntar que cien años atrás, a principios del siglo XX, ninguna de las dos se estudiaban en Cuba. Con el espíritu revolucionario que les es consustancial, los pensadores que nos ocupan no solo le dan importancia a la historia y la literatura nacionales, sino que consideran que el estudio de la vida y obra de las grandes personalidades debe hacerse sin apartarse de las características y circunstancias en las cuales vivieron. Ese es su método, que les permite interpretarlos sin exigirles mucho más de lo que su época les permitía y, por consiguiente, llegar a entender el porqué de muchas de sus ideas, actitudes y acciones, de su posiciones filosóficas y sociales, de sus criterios con respecto a la ciencia, la religión, entre otras, lo que no significa que haya que llegar a coincidir, en parte o totalmente, con su criterio. Se puede entender el porqué de los valores que defendían con la pretensión de seguir adelante. 38
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Con ese método, los pensadores de referencia aprehenden a hombres y mujeres de tiempos pasados, como hizo Carlos Rafael Rodríguez con respecto a algunos alemanes antifascistas durante la segunda guerra mundial, de quienes apunta su incesante mirada a Schiller y Goethe y a otros hombres del ayer para encontrar argumentos y fuerzas alentadoras en su lucha (RODRÍGUEZ, 1987, t. 3, p. 294). En el continuo enriquecimiento del humanismo con el retorno creador y crítico al pasado están presentes muchas figuras paradigmáticas. El más apelado es José Martí. Desde muy temprano, cuando su obra escrita aún no era suficientemente conocida, la escasa diferencia entre la colonia y la república neocolonial cubana motiva a no pocos pensadores a reflexionar en torno a la frustración de los objetivos martianos. Es cuando los intelectuales de mayor visión comienzan a subrayar la necesidad de estudiar profundamente el pensamiento del Héroe Nacional Cubano y extraer de él todo lo valioso, dentro de lo cual vale recalcar su patriotismo y latinoamericanismo. Como ya se ha dicho anteriormente, brilla Julio Antonio Mella en 1926 por el alcance de sus ideas, sobre todo con respecto a la necesidad de liberar a Martí de los mediocres y fraudulentos (MELLA, 1975, p. 268). José Martí es para los pensadores marxistas cubanos un modelo e iniciador de ideas y actitudes. De él acapara seguimiento todo el anhelo de instituir como primera ley de la futura república el culto a la dignidad plena de hombres y mujeres; es inspiración, tal como lo es el ideal mambí aún por cumplirse en los años de la república burguesa. Los pensadores marxistas cubanos ven en la no realización de estas ideas la causa de un sentimiento de frustración y de inferioridad del pueblo cubano que lo daña hasta finales de los años veinte, cuando despierta nuevamente y arremete contra el neocoloniaje. A partir de la lucha revolucionaria, los pensadores marxistas cubanos comprenden la amplia visión martiana de la responsabilidad que contrajeron los patriotas cubanos desde el mismo momento cuando se inicia la guerra independentista, la cual tenía que extenderse más allá de la conquista de la independencia y encaminarse firmemente hacia el inicio de la construcción de una sociedad y una cultura verdaderamente humanistas. En 1948 Blas Roca apunta: “Martí cumplió esa tarea lógica y comprensible a todo revolucionario: desenmascarar con toda la fuerza al enemigo principal, agotar la crítica del régimen que combate, mostrar que su continuación es incompatible con Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 9-48, jan./jun. 2012
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los intereses generales de la nación, con el progreso y con el bienestar de la mayoría” (ROCA, 1978 b, p. 48). Pero por si esa afirmación no pareciera diáfana e impulsora hacia la lucha sobre la base del reconocimiento de sus virtudes, de sus valores volcados totalmente hacia la patria, el mismo Blas Roca más adelante en ese escrito señala: “No cierra Martí el camino a ninguna reivindicación. Antes, al contrario, afirma que ‘somos hombres, además de cubanos, y peleamos por el decoro y la felicidad de los hombres’” (ROCA, 1978b, p. 48). En más de una oportunidad los pensadores marxistas cubanos refieren el cumplimiento responsable por parte de Martí de conocer y criticar profundamente al enemigo, cualidad ésta que consideran como de imprescindible presencia en todo revolucionario. “De ahí que leer un artículo o un poema de Martí, y a veces un solo verso y una sola línea, sea una responsabilidad de meditación en el hombre y en su mensaje” (MARINELLO, 1977, p. 103), apunta Juan Marinello en 1942. El Apóstol cubano es, de tal modo, orientador de los revolucionarios cubanos en sus afanes humanistas. Enfáticamente los pensadores marxistas cubanos reseñan la concepción martiana de la independencia no como fin último, sino como etapa necesaria para continuar la lucha, en la cual agrupó a los hombres experimentados de la guerra anterior y apeló a la ayuda y el patriotismo sin límite de las mujeres. La mirada puesta en Martí hace destacar la tradición de lucha de los obreros torcedores y su participación en la guerra de independencia (ROA, 1977, p. 643). Por la capacidad de José Martí de entender las características y exigencias de su tiempo, sobre todo a partir de los años treinta, lo califican como revolucionario orgánico, calificativo que está vinculado a su condición de escritor. Los pensadores en cuestión destacan las virtudes artísticas martianas y el cumplimiento de la misión de expresar del mejor modo los anhelos de su pueblo, sus desgracias e insatisfacciones. Junto a ello constantemente enfatizan su dedicación a la patria. Se afirma y reafirma con frecuencia el cumplimiento, por el Héroe Nacional de Cuba, de su deber de escritor; subrayan su alto vuelo poético en estrecha unidad con su carácter revolucionario y su riqueza espiritual. La grandeza que encuentran en él les permite a los pensadores marxistas cubanos afirmar, sin ninguna duda ni encubrimiento, la plena vigencia de su pensamiento y de sus cualidades humanas como paradigma movilizador 40
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(ROA, 1966, p. 273). El Héroe Nacional de Cuba es el hombre quien posee cualidades positivas que le permiten erguirse como ejemplo de latinoamericanista y antimperialista. Los pensadores marxistas cubanos lo ubican en el mayor sitial de honor junto a Simón Bolívar, Sarmiento, Juárez, entre otros latinoamericanos que dedicaron su vida a la independencia de América Latina (MARINELLO, 1977, p. 146). El humanismo en el pensamiento marxista cubano aumenta su solidez con el latinoamericanismo de José Martí, que se subraya reiteradamente, sobre todo con sus palabras “impedir, a tiempo, con la independencia de Cuba y de Puerto Rico que se extiendan por las Antillas Estados Unidos”. El empleo de ellas persigue acentuar la necesidad de la unidad latinoamericana ante la peligrosidad del poderoso y común enemigo del norte, aspecto que tiene una continua presencia en el ideario martiano. A los hombres de ayer se les ve total presencia por la continuidad de su obra. Si las tareas a las cuales dedicaron todas sus energías aún exigen realización, si los problemas planteados por ellos permanecen irresueltos, están aún más presentes, porque, como asegura en 1942 Raúl Roa, “los hombres que en su día ejemplarizaron con sus hechos y sus dichos no tiene derecho al reposo mientras su mensaje y su ideario tengan que hacer en el mundo” (ROA, 1966, p. 270), fundamentalmente sus ideaciones y labor para desarrollar el país natal y dotar de bienestar a todos sus hombres y mujeres. La búsqueda de las raíces conduce a los pensadores de marras a subrayar el patriotismo consustancial al ideal de independencia y a la lucha por hacerlo realidad y reconocen el papel de los elementos nacionalistas (en cierta medida progresistas) de la burguesía cubana, con sus enlaces al desarrollo de la economía del país. Sobre esa base, una cantidad nada despreciable de hombres que lucharon por la independencia ocupa su atención, de quienes destacan su influencia en generaciones posteriores, como es el caso de Félix Varela y su noción de obligatoriedad con la patria. Enfatiza C. R. Rodríguez en 1949 que “el pensamiento cubano no ha sido jamás ‘neutral’ ni ha estado nunca ‘por encima de la batalla’. Varela, Luz, Poey, Varona, Martí fueron siempre mílites del progreso” (RODÍGUEZ, 1987, t. 3, p. 466). El seguimiento a esos hombres que se destacaron en las guerras de independencia es una muestra de que el humanismo en el pensamiento marxista cubano está vinculado a las raíces nacionales. Muchos son los ejemplos, entre ellos está la atención de Raúl Roa García a su abuelo, el Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 9-48, jan./jun. 2012
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incansable mambí Ramón Roa y sus recuerdos de la guerra, llenos de orgullo, que plasmó en conversaciones diarias y en su obra escrita. Entre esos hombres heroicos del pasado también está Ignacio Agramonte, con respecto a quien sobresale el empeño de que todos los cubanos conozcan su heroicidad y amor por la patria y, por ende, le profesen el mayor respeto (ROA, 1966, p. 286). Para los pensadores marxistas cubanos los patriotas son de estirpe inolvidable y los veneran. Por lo general, en el espacio que les dedican en sus reflexiones no sólo refieren aquello que los hace héroes, antes bien, su visión es compleja, multifocal, pues en ella están la historia individual, la pertenencia clasista, los valores que defienden, entre otros rasgos. Así habla Raúl Roa en 1951 acerca de José Joaquín Palma, de quien hace notar su férreo temperamento de revolucionario unido a su delicado espíritu de poeta que ligaba a su amor a la independencia de la patria y su decisión de morir antes de vivir de rodilla (ROA, 1977, p. 501). La firme posición antimperialista de los héroes acapara la atención en más de una oportunidad. Un ejemplo elocuente es Máximo Gómez. Su obra militar está presente de un modo sorprendente y se debe ante todo a su patriotismo y antimperialismo. Estos rasgos se ilustra con palabras suyas, que cita Carlos Rafael Rodríguez en un escrito de 1947: “Los americanos están cobrando demasiado caro, con la ocupación militar del país, su espontánea intervención en la guerra que con España hemos sostenido por la Libertad y la Independencia” (RODÍGUEZ, 1987, t. 3, p. 109). Por esos años Raúl Roa subraya la valentía y vergüenza de los ocho estudiantes cubanos de medicina que fueron injustamente asesinados por los colonialistas españoles y del joven luchador Gabriel Barceló, víctima de la tiranía de Gerardo Machado, sentencia que “quien sembró luces, anunció rutas nuevas y se dio a los demás, no muere nunca” (ROA, 1946). No ha de asombrar que en el pensamiento marxista cubano se considere que todo ser humano ha de escudriñar en sus raíces, no sólo nacionales, sino también universales. Así, el obrero, hombre o mujer, ha de tenerlas presente. Con ese criterio, los pensadores de referencia se remontan al decurso clasista a partir de los proletarios de Inglaterra y, sin perder de vista los lazos que desde ellas se tienden hasta Cuba, enfatizan las más tempranas luchas de los asalariados cubanos, sobre todo de los azucareros, levantan y sostienen con solidez la afirmación de que los obreros cubanos han de sentirse herederos 42
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y continuadores de la tradición de lucha independentista de los burgueses cubanos y subrayan que éstos llegaron a ver en los franceses de la revolución de 1789 sus antecesores (RODÍGUEZ, 1987, t. 3, p. 47). El pasado es para los pensadores marxistas cubanos una fuente para enriquecer los valores en aras del presente y el futuro, no sólo para andar en pos del mejoramiento humano en el sentido más estricto de la palabra, sino que sin abandonar este propósito, la búsqueda en el ayer en su conjugación con el hoy y el mañana se centra en la patria, que es decir en los cubanos y cubanas con todo cuanto son y poseen. Evidente es que el objetivo de la investigación cuidadosa que estos pensadores llevan en torno a estas ideas no es para emplearlas mecánicamente, ni para aplicarlas de modo acrítico en otro tiempo y en diferentes condiciones; por el contrario, con todo ello persiguen la defensa del patriotismo y el espíritu revolucionario de la herencia para emplearlos en la pelea contra quienes desean adulterar la historia y sustraerle esos atributos cimentales, con los que se entreteje el humanismo que le es consustancial al pensamiento marxista cubano. Importante es asimismo impedir la tergiversación y mutilación de las ideas de los hombres que en el pasado se destacaron por su fervoroso amor a la patria. La medida para ello es el análisis profundo e íntegro de su pensamiento. Con esa intención los pensadores marxistas cubanos estudian el ideario de varios de esos hombres, como José Agustín Caballero, de quien señalan su separación de la rigidez ortodoxa y su condición de germen de la labor racionalista de Félix Varela, y acentúan su valía patriótica y su contribución al desarrollo del pensamiento cubano. Por su parte, José de la Luz y Caballero acapara la atención por sus méritos patrióticos, como también por sus otras labores, como la filosófica y la educativa. En la línea de continua superación filosófica, los pensadores marxistas cubanos en el año 1949 le dedican especial atención al estudio de Enrique J. Varona y lo aprehenden con su sesgo empírico, su rechazo a la religión, con su atención por lo ético y lo educacional, así como con su crítica a J. A. Caballero, F. Varela y J. Luz y Caballero, a quienes supera en madurez de pensamiento, visión histórica e intención política (RODÍGUEZ, 1987, t. 3, p. 123). En ese estudio observan la historia de Cuba con esmero por su importancia práctica e inmediata, al impulsar a quienes la estudien hacia la realización total de los objetivos emancipadores de las guerras del 68 y el 95 e insisten que los trabajadores han de entender esa significación y actuar en correspondencia con ella. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 9-48, jan./jun. 2012
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El estudio de la historia de Cuba y la difusión de sus tradiciones revolucionarias es importante no sólo para venerar a todos los que han muerto por su emancipación, sino para cumplir el deber de seguirlos e imitarlos en el camino de mejoramiento humano. El pasado es atentamente seguido y conjugado con el presente y el futuro, porque, como asegura Juan Marinello en 1933, “todo mañana será un presente negador del instante desde el que lo vislumbramos. Apresamos el futuro con ojos pintados de lo actual. De lo actual, residuo de pasados” (MARINELLO, 1977, p. 67). Aprehender a los hombres y mujeres con un sentido histórico-cultural propicia la continuación del legado patriótico-emancipador cubano, su superación y la unidad entre generaciones, cuya esencia humanista se despliega en continua sucesión, siempre enfilada a la soberanía nacional. Esta conjugación es prisma para captar la inhumana sociedad neocolonial cubana y la exigencia de realizar transformaciones revolucionarias sin perder el espíritu humanista. Con ello ha de lograrse extirpar de raíz los problemas sociales existentes en Cuba desde la colonia, engrosados en la época neocolonial. Los pensadores de referencia andan por las raíces de la patria y recorren la cultura cubana, con la mirada atenta y crítica dirigida a los patriotas, para hacer de sus valores un gonfalón en la lucha para que Cuba sea un perpetuo escenario de batallas contra lo retrógrado, antipatriótico e inhumano y que de tal modo sea tan soberana como humanista. De ese modo, con la savia patriótica que brota de la historia nacional, amplían el humanismo que irriga sus ideas. El objetivo final: la realización en Cuba de una sociedad y una cultura indeteniblemente desalienadoras y de mejoramiento humano. Antes de finalizar, cabe señalar algunas ideas a modo de conclusiones en torno al pensamiento marxista cubano de la primera mitad del siglo XX: a) el aumento de los conocimientos tiene como primera y básica finalidad el mejoramiento humano a la manera socrática de que solo si se sabe se puede divisar el bien; b) los conocimientos, la educación y los valores forman una red de relaciones con tal grado de profundidad que solo en la abstracción se puede separar; c) la red de relaciones conocimientos-educación-valores se interrelaciona con la historia, la sociedad y la cultura en estrecha conjugación con el pasado, el presente y el futuro; d) los anteriores aspectos tienen como núcleo la aspiración, aún implícita, de formar hombres y mujeres de nuevo tipo, capaces de construir una sociedad y una cultura verdaderamente humanistas. 44
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KNOWLEDGE AND VALUES: HUMANISM TRAINERS WITHIN THE CUBAN MARXIST THOUGHT IN THE FIRST HALF OF THE TWENTIETH CENTURY Abstract Starting from the most important Marxist thinkers’s ideas of seven Cubans of the first half of the XX century, the author of this article demonstrates than humanism in the Marxist thought Cuban of this period manifests, among another manners, by means of knowledge and moral values, in narrow relations with the Cubans history, the society and the culture. Thus, the humanist of the increase of knowledge and of the paper reveals the significance than in it the university and periodicals have. Likewise, the disalienation refers the force and of human improvement that mentioned thinkers find in dignity, honesty, beauty, the latinoamericanism and patriotism, next to another moral values, all which most of the time appears implicitly in his texts. Keywords: Humanism; knowledge; moral values; human being; alienation.
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AS PROVAS DA EXISTÊNCIA DE DEUS NA CRÍTICA DA RAZÃO PURA DE IMMANUEL KANT Filicio Mulinari*
Resumo O objetivo deste artigo é analisar a refutação proposta por Immanuel Kant em sua obra Crítica da razão pura aos argumentos clássicos presentes na história da filosofia que almejavam provar a existência de Deus. De acordo com a ordem de refutação feita na Crítica da razão pura, será analisada primeiramente a refutação kantiana ao argumento ontológico, que é fundamentado na definição do Ente perfeito (ens perfectissimum). Após isso, será analisada a contestação de Kant aos argumentos tidos como “cosmológicos”, argumentos estes fundamentados no princípio de causalidade. Por fim, será analisada a refutação kantiana aos argumentos físico-teológicos. Palavras-chave: Metafísica moderna; ontologia; ser; existência; argumento ontológico.
Introdução Questões sobre a possível existência de um Ser Supremo (Deus) sempre estiveram presentes na história da filosofia ocidental, seja no campo da metafísica, seja – mais modernamente – no campo da filosofia da religião. Tal fato, presente desde Platão (Leis, Livro X, caps. 2-9) e Aristóteles (Metafísica, livro XII, caps. 6-7), mostra a tentativa e o esforço de vários pensadores de, racionalmente, elucidar o que seria este Ente e analisar sua possível e/ou provável existência. Embora a meditação sobre Deus seja tão antiga quanto a própria filosofia, os avanços da ciência moderna, principalmente por meio dos estudos sobre teoria da evolução e sobre a origem do Universo, alçaram novos desafios a esta área tradicional da reflexão filosófica.
* Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo. Integrante do Grupo de Pesquisa “Pensamento e Linguagem” (UFES). Email: filicio@gmail.com Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 49-65, jan./jun. 2012
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Em meio ao debate filosófico em torno da possibilidade da existência de Deus, o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) figura como personagem de grande importância, sobretudo devido a sua obra Crítica da razão pura ([1781] 2001). Na obra, Kant define a noção de existência (ser) como não sendo predicado determinante de alguma coisa e, fundamentado-se nisso, arquiteta sua refutação dos clássicos argumentos que tencionam provar a existência de Deus. Nesse sentido, o objetivo deste artigo é analisar a refutação kantiana presente na obra Crítica da razão pura ([1781] 2001) aos argumentos clássicos presentes na história da filosofia que almejavam provar a existência de Deus. De acordo com a ordem de refutação feita na Crítica da razão pura, será analisada primeiramente a refutação kantiana ao argumento ontológico, que é fundamentado na definição do Ente Perfeito (ens perfectissimum)1. Após isso, será analisada a contestação de Kant aos argumentos tidos como “cosmológicos”, argumentos esses fundamentados no princípio de causalidade. Por fim, será analisada a refutação kantiana aos argumentos físico-teológicos, último tipo de argumento analisado e refutado por Kant na Crítica da razão pura.
1 A crítica kantiana ao argumento ontológico Na Crítica da razão pura, no capítulo sobre “O Ideal da Razão Pura” da Dialética Transcendental, Kant analisa substancialmente a problemática das provas da existência de Deus, principalmente o argumento ontológico de Descartes, e propõe crítica a tal argumento. Na quarta seção do capítulo “O Ideal da Razão Pura”, intitulado “Da impossibilidade de uma prova ontológica da existência de Deus” (KANT, 2001, A592/B620), Kant profere as seguintes palavras: Em todos os tempos se falou do ser absolutamente necessário, mas envidaram-se mais esforços para provar a sua existência do que para compreender como
1 O argumento ontológico é chamado assim porque pretende tirar a existência da essência: não posso pensar um ser absolutamente necessário sem pensá-lo ao mesmo tempo como existente, posto que um ser necessário é, por definição, um ser cuja não-existência é impossível (PASCAL, 1983, p. 100-101).
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se poderá e até mesmo se se poderá pensar uma coisa desta espécie. Ora, é muito fácil dar uma definição nominal do que seja este conceito, dizendo que é algo cuja não-existência é impossível; mas nem por isso ficamos mais cientes das condições que tornam impossível considerar a não-existência de uma coisa como absolutamente impensável e que são, na verdade, aquilo que se pretende saber, isto é, se através desse conceito pensamos ou não em geral qualquer coisa (KANT, 2001, A592-593/B620-621).
Desse modo, percebe-se a pretensão de Kant de avaliar se as provas da existência de Deus são, de fato, provas devidamente fundamentadas. Para isso, Kant inicialmente analisa o argumento ontológico, sobretudo o proposto por Descartes, que toma Deus como ente perfeito e necessário e, a partir disso, fundamenta a possibilidade de uma possível existência do ente divino. Em Descartes, a ideia de Deus como ser perfeito é expressa juntamente com a ideia de infinito. Descartes afirmava que, para que exista uma causa da ideia de Deus no homem, é necessário que tal causa seja maior do que o próprio efeito. O pressuposto de Descartes é que, para que algo seja causado, a sua causa deve ser maior do que o efeito, ou então não poderia causá-lo. De acordo com Tomatis (2003, p. 46), Descartes retira este pressuposto teórico da tradição especulativa precedente a ele, que afirma que na causa deve-se encontrar pelo menos a mesma realidade que se encontra no efeito causado. Esse pressuposto é nítido na seguinte passagem: Pois, como já disse anteriormente, é uma coisa evidente que deve haver ao menos tanta realidade na causa quanto em seus efeito. E portanto, já que sou uma coisa pensante, e tenho em mim alguma ideia de Deus, qualquer que seja, enfim, a causa que se atribua à minha natureza, cumpre necessariamente confessar que ela deve ser de igual modo uma coisa pensante e possuir em si a ideia de todas as perfeições que atribuo à natureza divina (DESCARTES, 1983, p. 119).
Logo, para Descartes, a partir da ideia de Deus presente na mente do homem, necessariamente deve-se deduzir a existência de Deus, uma vez que “Deus é aquele ser perfeitíssimo que causa a nossa ideia, que temos em mente e, portanto, deve ser necessariamente existente”. A prova ontológica reside então em afirmar a existência de Deus a partir de seu mero conceito, Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 49-65, jan./jun. 2012
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juntamente com o conceito de infinito e, a partir disso, assumir a necessidade de sua existência por meio de uma análise lógica dos conceitos, sem nenhuma inferência ou evidência empírica. Apesar de apresentar essa tese um nexo lógico, Kant se posiciona de maneira contrária à argumentação cartesiana na qual o conceito de existência faria parte da perfeição de Deus. Sobre isso, Kant destaca que a existência nada acrescenta ao conceito de Deus, mesmo que tal conceito seja tomado como ente perfeito: Ser não é, evidentemente, um predicado real, isto é, um conceito de algo que possa acrescentar-se ao conceito de uma coisa; é apenas a posição de uma coisa ou de certas determinações em si mesmas. No uso lógico é simplesmente a cópula de um juízo. A proposição Deus é omnipotente contém dois conceitos que têm os seus objetos: Deus e onipotência; a minúscula palavra é não é um predicado mais, mas tão-somente o que põe o predicado em relação com o sujeito. Se tomar pois o sujeito (Deus) juntamente com todos os seus predicados (entre os quais se conta também a onipotência) e disser Deus é, ou existe um Deus, não acrescento um novo predicado ao conceito de Deus, mas apenas ponho o sujeito em si mesmo, com todos os seus predicados e, ao mesmo tempo, objeto que corresponde ao meu conceito. Ambos têm de conter, exatamente, o mesmo; e, em virtude de eu pensar o objeto desse conceito como dado em absoluto (mediante a expressão: ele é), nada se pode acrescentar ao conceito, que apenas exprime a sua possibilidade. E assim o real nada mais contém que o simplesmente possível (KANT, 2001, p. 626).
Como salienta Tomatis (2003, p. 79), em uma proposição que expressa um juízo, composta por sujeito, verbo e predicado, e na qual o verbo ser seja uma cópula, percebe-se que através do próprio verbo ser não podemos concluir a existência do sujeito: a existência nada acrescenta ao sujeito da proposição. Como fica claro na citação acima, a existência, para Kant, seria apenas o posicionamento absoluto de uma coisa. Se para Descartes seria possível inferir a existência de Deus por meio de uma análise lógica dos predicados pertencentes ao próprio termo ‘Deus’, para Kant isto não seria cabível, visto que, para ele, a existência não poderia ser deduzida dos predicados e/ou qualidades que pertencem ao conceito Deus: 52
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A existência não pode ser predicada. Dizendo “Deus é uma coisa existente” pensa-se expressar a relação de um predicado com um sujeito; na realidade existe uma inexatidão nesta expressão. Seria melhor dizer: “Alguma coisa de existente é Deus”. O sujeito é “alguma coisa de existente”, “Deus” é o predicado. A uma coisa existente dizem respeito predicados que tomados em conjunto são contrapostos com a expressão “Deus” (TOMATIS, 2003, p. 80).
Segundo Kant, a existência seria algo posterior ao predicado e não modifica em nada a definição do predicado, da substância, do sujeito do qual se afirma a existência. Sobre esta tese, Kant proporcionou o clássico exemplo dos “cem táleres”2 como referência: E assim o real nada mais contém que o simplesmente possível. Cem talheres reais não contêm mais do que cem talheres possíveis. Pois que se os talheres possíveis significam o conceito e os talheres reais o objeto e a sua posição em si mesma, se este contivesse mais do que aquele, o meu conceito não exprimiria o objeto inteiro e não seria, portanto, o seu conceito adequado. Mas, para o estado das minhas posses, há mais em cem talheres reais do que no seu simples conceito (isto é na sua possibilidade). Porque, na realidade, o objeto não está meramente contido, analiticamente, no meu conceito, mas é sinteticamente acrescentado ao meu conceito (que é uma determinação do meu estado), sem que por essa existência exterior ao meu conceito os cem talheres pensados sofram o mínimo aumento (KANT, 2001, A599/B627).
Percebe-se que a existência não acrescenta nada à definição das cem moedas: as moedas que estavam no pensamento são as mesmas que estão no agora no bolso. Certamente, a possível existência das moedas deve ser algo posterior à ideia; no entanto, isto não afeta em nada a definição lógica (definição ideal) que se tem dessas moedas: as moedas seriam as mesmas tanto na representação mental, quanto na realidade. Dessa forma, tem-se que o argumento ontológico é rejeitado de dois modos distintos, embora associados: um diz respeito à lógica, e outro à relação entre pensamento e mundo (ontologia) (VAZ, 2006, p. 69). Primeira-
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Táler é o nome da antiga moeda alemã.
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mente, o argumento ontológico é refutado porque a afirmação da existência de algo não pode ser derivada da simples análise de outros conceitos. Em segundo lugar, a rejeição do argumento ontológico é feita devido à confusão entre o aspecto material e o aspecto formal da possibilidade presente no argumento, uma vez que da mera não-contradição conceitual de Deus (aspecto formal) não se deduz a existência dele. Por fim, deve-se salientar ainda que a base da refutação kantiana aos argumentos ontológicos já estava presente em um escrito anterior intitulado Beweisgrund, de 17633. A diferença entre o texto pré-crítico e a Crítica da razão pura fica por conta da análise dos argumentos da existência de Deus classificados como cosmológicos e físico-teológicos. A refutação a esses argumentos aparece de modo mais distinto no período crítico, como será visto agora.
2 A refutação do argumento cosmológico Decerto, o método de argumentação usado no argumento ontológico não é o único existente na história da filosofia que pretende provar a existência de Deus. Há outros modos argumentativos e lógicos que possuem essa mesma pretensão, mas que usam de outro tipo de relação lógica para provar a existência de Deus. Por esse motivo, após criticar o argumento ontológico cartesiano, Kant propõe uma análise desses outros tipos de argumentos, classificando-os em dois tipos, a saber, os cosmológicos e os físico-teológicos. Em sua análise, Kant mostra a falta de fundamento desses argumentos e, em última instância, que tanto o cosmológico quanto o físico-teológico são provas que possuem o argumento ontológico como fundamento lógico-argumentativo. Na quinta seção do capítulo “O Ideal da Razão Pura”, Kant iniciou sua argumentação contra os argumentos classificados como cosmológicos: A prova cosmológica, que vamos agora examinar, mantém a ligação da necessidade absoluta com a realidade suprema; mas, em vez de partir, como a precedente, da realidade suprema, para deduzir a necessidade na existência, conclui da necessidade incondicionada e previamente dada, de qualquer ser, a sua
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Título original: Der einzig mögliche Beweisgrund zu einer Demostration des Daseins Gottes. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 49-65, jan./jun. 2012
As provas da existência de Deus na Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant
realidade ilimitada e, deste modo, tudo encaminha por um raciocínio, não sei se racional se sofístico, mas que é, pelo menos, natural e que possui a maior força persuasiva, não só para o entendimento comum, mas também para o entendimento especulativo; e desta maneira traça visivelmente as primeiras linhas diretrizes de todos os argumentos da teologia natural, linhas que sempre foram seguidas e hão de sê-lo sempre, por muito que se adornem e disfarcem sob floreados e arrebiques (KANT, 2001, A604/B632).
Entende-se como prova cosmológica da existência de Deus o argumento que parte de uma existência qualquer e, ao usar o princípio de causalidade, afirma que, se tudo tem uma causa, deve haver uma causa primeira motora de tudo e que, por sua vez, não pode ser causada: tal causa primeira seria Deus. Um exemplo desse tipo de argumentação é proposto por Aristóteles para deduzir a existência de um “primeiro motor imóvel”.4 Porém, conforme salienta Reichenbach (2008), é importante frisar que o argumento cosmológico é um tipo de argumentação, e não um argumento particular: O argumento cosmológico é um tipo de argumentação (logos) que infere de determinados fatos do mundo (cosmos) à existência de um único ser, geralmente identificado ou referido como Deus. Dentre estes fatos iniciais, estão que o mundo veio a ser, que o mundo é contingente e que poderia ter sido outra que isto e que certos seres ou eventos no mundo são causadamente dependentes ou contingentes. Desses fatos, filósofos inferiam também, dedutivamente ou indutivamente, que uma causa primeira, um ser necessário, um motor imóvel ou Deus deve existir (REINCHENBACH, 2008, p. 1).5 4 Para provar a existência de Deus, Aristóteles supõe, em sua obra Metafísica (livro XII, caps. 6-7), que tempo e movimento tenham um começo. Para explicar a existência do tempo e do movimento, é preciso postular uma causa primeira que, em si mesma, não se move. Esta causa é denominada de primeiro motor, uma espécie de mente que está sempre pensando e que age sobre as esferas celestes (SMITH, 2006, p. 10). 5 “It uses a general pattern of argumentation (logos) that makes an inference from certain alleged facts about the world (cosmos) to the existence of a unique being, generally identified with or referred to as God. Among these initial facts are that the world came into being, that the world is contingent in that it could have been other than it is, or that certain beings or events in the world are causally dependent or contingent. From these facts philosophers infer either deductively or inductively that a first cause, a necessary being, an unmoved mover, or a personal being (God) exists” (REINCHENBACH, 2008, p. 1).
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Observa-se que o argumento central da prova cosmológica repousa na aceitação de que, se algo existe, um ser absolutamente necessário (Deus) deve existir. Por ser essa tese muito conhecida, Kant não aprofundou demasiadamente as implicações e argumentações internas existentes nas provas cosmológicas. No entanto, vê-se em uma nota de rodapé a concepção kantiana do princípio desta prova: Esta argumentação [argumentação da prova cosmológica] é demasiado conhecida para ser necessário expô-la neste lugar, pormenorizadamente. Repousa na lei natural, suposta transcendental, da causalidade, a saber, que todo o contingente possui uma causa, que, se por sua vez é contingente, deve também ter uma causa, até que a série das causas subordinadas pare numa causa absolutamente necessária, sem a qual não seria jamais completa (KANT, 2001, A605/B633). Conforme a argumentação da prova cosmológica, tudo o que existe de modo contingente deve necessariamente ter uma causa. Essas causas, uma vez levadas ad infinitum, cessariam em uma causa absolutamente necessária, ‘não-causada’. Conforme salienta Höffe (2005, p. 170-171), sem uma causa absolutamente necessária, não teríamos uma explicação completa nem poderíamos fundamentar suficientemente a causalidade presente nos entes em sua existência efetiva. Desse modo, há na argumentação cosmológica, baseada no princípio da causalidade, a afirmação da existência de algo necessário que se apresenta como ente perfeito, a fim de que esse ser suste a possibilidade de uma regressio ad infititum. Contudo, apesar de aparentar conter um fundamento pautado em algo material, empírico, está, na prova cosmológica, “oculto todo um ninho de pretensões dialéticas” (KANT, 2001, A609/B637): 1. O princípio transcendental que do contingente nos faz inferir uma causa, princípio que só tem significado no mundo sensível, mas que já não tem sentido fora desse mundo. Com efeito, o conceito puramente intelectual do contingente não pode produzir nenhuma proposição sintética como a da causalidade, e o princípio desta só no mundo sensível encontra significação e critério para a sua aplicação; aqui, porém, deveria precisamente servir para sair do mundo sensível. 2. O raciocínio que consiste em concluir, da impossibilidade de uma série infinita de causas sobrepostas dadas no mundo sensível, uma 56
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causa primeira; o que nem os princípios do uso da razão autorizam na própria experiência, quanto mais tornar extensivo este princípio para além dela (até onde esta cadeia não pode prolongar-se) (KANT, 2001, A610/B638). Conforme salientado na passagem citada acima, percebe-se que o princípio de causalidade – princípio transcendental que permite inferir do contingente uma causa necessária – só possui validade de aplicação no mundo sensível, mas não fora ou para além dele. Segundo Kant, o princípio da causalidade só encontra sentido no mundo sensível, pois nele há critérios para sua aplicação e verificação. Dessa forma, um dos erros fundamentais da prova cosmológica é o de querer aplicar a categoria da causalidade fora do mundo da experiência e, com isso, inferir a existência de algo, o que não seria possível para Kant. “O princípio, pelo qual, do que acontece (do que é empiricamente contingente) como efeito se conclui uma causa, é um princípio do conhecimento da natureza, mas não do conhecimento especulativo” (KANT, 2001, A635/B663). Há ainda outra questão salientada por Kant: por que parar o questionamento da causa quando se chega ao conceito de Deus? Por que não se pode perguntar pela causa de Deus? Não podemos afastar nem tampouco suportar o pensamento de que um ser, que representamos como o mais alto entre todos os possíveis, diga de certo modo para consigo: Eu sou desde a eternidade para a eternidade; fora de mim nada existe a não ser pela minha vontade; mas de onde sou então? Eis que tudo aqui se afunda sob os nossos pés, e tanto a maior como a mais pequena perfeição pairam desamparadas perante a nossa razão especulativa, à qual nada custa fazer desaparecer uma e outra sem o menor entrave (KANT, 2001, A613/B641).
Percebe-se que a certeza sobre o ens necessarium advindo da prova cosmológica tem suas bases enfraquecidas se essas ponderações são levadas em consideração. Em outras palavras, com o questionamento a respeito da causa que originou Deus abre-se novamente a possibilidade da pergunta sobre a causa ad infinitum. Consequentemente, a representação cosmológica Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 49-65, jan./jun. 2012
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da existência de Deus não cumpre o seu objetivo, que é “[...] encontrar uma resposta definitiva a toda interrogação da causalidade, isto é, um suporte último de todo o ser. A razão impele para a conclusão do perguntar, mas não pode encontrar um fim definitivo” (HÖFFE, 2005, 171). Entretanto, Kant viu em outra objeção o contra-argumento mais importante relativo à prova cosmológica (HÖFFE, 2005, p. 171). Segundo a argumentação cosmológica, só há demonstração ou “prova” de Deus quando se infere do conceito do ser absolutamente necessário a existência de Deus. Aqui, assim como no argumento ontológico de Descartes, não se usa a experiência para inferir a existência de Deus: a mera análise de conceitos lógicos nos leva a presumir a existência do ens realissimum. O fundamento empírico da prova nada nos pode ensinar acerca dos atributos deste ser; então a razão afasta-se dele inteiramente e, por detrás de simples conceitos, investiga os atributos que um ser absolutamente necessário em geral deve possuir; ou seja, um ser que, entre todas as coisas possíveis, encerra as condições requeridas (requisita) para uma necessidade absoluta. [...]. Eis uma proposição, sustentada pelo argumento ontológico, que assim se admite e se dá por fundamento ao argumento cosmológico, o que afinal se pretendera evitar (KANT, 2001 A607 B635).
O argumento cosmológico necessita em seu fundamento do argumento ontológico, na medida em que o último infere a existência a partir de meros conceitos lógicos. Em outras palavras, uma vez que se chegue à necessidade de cessar o princípio de causalidade em prol de uma ‘causa não-causada’, apenas um raciocínio do tipo ontológico permitiria concluir a existência de Deus: a existência seria fundamentada por meio da mera relação lógica dos termos. Entretanto, como foi anteriormente visto, não é possível inferir a existência de algo a partir da mera análise de conceitos, sem nenhum apoio na experiência sensível. A necessidade da prova ontológica invalidaria a conclusão da argumentação da prova cosmológica. Logo, conclui-se que, mesmo sendo iniciado com premissas provindas da experiência (princípio da causalidade), o argumento cosmológico possui, em seu fundamento, o argumento ontológico, que foi anteriormente criticado e refutado por Kant e que impossibilitaria a conclusão de que Deus é in re. 58
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3 A crítica ao argumento físico-teológico Após analisar as provas ontológicas e as cosmológicas da existência de Deus, ainda resta uma a ser avaliada por Kant, a saber, a prova físico-teológica. Tal análise é feita na sexta seção do capítulo “O Ideal da Razão Pura”: Se, portanto, nem o conceito das coisas em geral nem a experiência de qualquer existência em geral podem conceder o que é requerido, só resta um meio: procurar se uma experiência determinada, por conseguinte a das coisas do mundo presente, se a sua natureza e ordenação, não fornecem um fundamento de prova que nos possa fazer chegar, com segurança, à convicção da existência de um Ser supremo. A uma tal prova daríamos o nome de físico-teológica. Se também esta prova for impossível, não haverá, extraída da razão simplesmente especulativa, nenhuma prova suficiente da existência de um ser que corresponda à nossa ideia transcendental (KANT, 2001, A620/B648).
Como se nota, a prova físico-teológica caracteriza-se por se iniciar da consideração da ordem universal da natureza física, para chegar a uma causa inteligente organizadora, considerada como extrínseca ao mundo e divina (TOMATIS, 2003, p. 87). Para Höffe (2005, p. 172), há três momentos de argumentação na prova físico-teológica: primeiro infere-se um autor da ordem e da finalidade da natureza; após isso, infere-se uma plenitude absoluta da ordem e da finalidade da natureza, que corresponde a um autor absolutamente necessário, e, por fim, do autor absolutamente necessário conclui-se a existência de Deus (como autor necessário). Por toda a parte vemos uma cadeia de efeitos e de causas, de fins e de meios, uma regularidade na aparição e desaparição das coisas e, visto que nada chega, por si mesmo, ao estado em que se encontra, este estado aponta sempre para mais além, para uma outra coisa como sua causa, a qual, por sua vez, exige que se prossiga a interrogação; de tal sorte que tudo acabaria por afundar-se no nada se não se admitisse alguma coisa que, existindo por si, originariamente e de uma maneira independente, fora desta contingência infinita, servisse de suporte a esse todo e que, sendo a sua origem, lhe garantisse ao mesmo tempo a duração. Esta causa suprema (em relação a todas as coisas do mundo), com que grandeza a devemos conceber? (KANT, 2001, A622/B650). Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 49-65, jan./jun. 2012
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Dessa forma, a prova físico-teológica parte da constituição particular do mundo, especificamente a sua beleza, ordem e intencionalidade, e afirma a necessária existência de uma causa inteligente (Deus) para o mesmo. Tal argumento vai além da prova cosmológica, pois inicia-se não a partir da existência em geral, mas a partir de uma experiência determinada, pontual (GRIER, 2007, p. 19). Contudo, embora esta escolha por uma experiência determinada pareça tornar a argumentação mais sólida, tal estratégia está, segundo Kant, fadada ao fracasso, pois nenhuma experiência poderia ser adequada a fim de se provar a existência de um ser necessário: A ideia transcendental de um ser originário necessário e absolutamente suficiente é tão hiperbolicamente grande, tão elevada acima do que é empírico e sempre condicionado, que, por um lado, não só não poderá nunca encontrar na experiência matéria suficiente para preencher tal conceito, mas também, por outro lado, sempre se anda às apalpadelas entre o condicionado e sempre se procura em vão o incondicionado, do qual nenhuma lei de síntese empírica nos dará jamais um exemplo, nem o menor indício (KANT, 2001, A621/B649).
Percebe-se, ainda, que na argumentação da prova físico-teológica há uma pretensa suposição de igualdade entre relações naturais com os objetos feitos pelos homens (provindos da arte humana): Sem entrarmos aqui em disputa com a razão natural acerca do raciocínio pelo qual, a partir da analogia entre algumas produções da natureza e aquilo que a arte humana produz quando faz violência à natureza e a obriga a curvar-se aos nossos fins em vez de proceder segundo os seus (da semelhança dessas produções com casas, barcos, relógios), a razão conclui que a natureza deve ter precisamente por princípio uma causalidade do mesmo gênero, a saber, uma inteligência e uma vontade, fazendo derivar ainda de uma outra arte, embora de uma arte sobre-humana, a possibilidade interna da natureza livremente operante (KANT, 2001, A626/B653).
Kant salientou que é ilegítima a comparação entre relações naturais com os produtos provindos da arte humana (barcos, relógios...): quando alguém vê um barco atracado na praia, ele claramente deduz que o barco não foi criado sozinho, ou seja, alguém criou o barco e o deixou atracado 60
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ali (houve um criador). Porém, segundo Kant, é um erro utilizar esse tipo de argumentação para inferir que há um criador da natureza, visto sua perfeição e beleza. Como salienta Höffe (2005, p. 173), nesta pressuposição se conclui ilegitimamente do conhecido o desconhecido. Não obstante, a arte humana, quando opera, o faz com um material já dado: não há a possibilidade de criação de um material originário. Assim, se há um ‘organizador’ do kosmos, tal organizador trabalha com os materiais que lhe são disponíveis. Kant conclui: “Esta prova poderia, quando muito, demonstrar um arquiteto do mundo, sempre muito limitado pela aptidão da matéria com que trabalha, mas não um criador do mundo” (KANT, 2001, A627/B655). O segundo momento da prova físico-teológica, que consiste em inferir um autor necessário da ordem e finalidade da natureza, para Kant corresponde diretamente à prova cosmológica anteriormente refutada. Depois de se ter chegado a admirar a grandeza, a sabedoria, a potência, etc. do autor do mundo, não se podendo ir mais além, abandona-se uma vez por todas este argumento, assente em provas empíricas, e passa-se para a contingência do mundo que, desde o início, igualmente se inferira a partir da sua ordem e finalidade. Unicamente se transita então desta contingência, graças apenas a conceitos transcendentais, para a existência de um ser absolutamente necessário, e do conceito de necessidade absoluta da causa primeira para o conceito universalmente determinado ou determinante da mesma existência, ou seja, o de uma realidade que tudo compreende. Assim, travada na sua empresa, a prova físico-teológica, neste embaraço, saltou subitamente para a prova cosmológica; e, como esta é tão-só uma prova ontológica disfarçada, o seu propósito realizou-se unicamente mediante a razão pura, embora de início tivesse renegado todo o parentesco com ela e submetido tudo a provas evidentes extraídas da experiência (KANT, 2001, A629/B657).
Kant advertiu que toda a experiência, até mesmo a experiência da beleza e da ordem da natureza, é limitada ao finito e ao condicionado. Não se pode, a partir de uma experiência condicionada (limitada) sobre a natureza, inferir a existência de algo incondicionado por meio de um raciocínio apenas logicamente exposto e não observável, empírico: devem ser buscadas causas naturais e observáveis para as experiências empíricas. Desse modo, o erro da prova físico-teológica reside na tentativa de compensar a insuficiência Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 49-65, jan./jun. 2012
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empírica do argumento com razões não-empíricas, ou seja: se há a natureza ordenada (experiência condicionada), deve haver um criador e ordenador dessa ordenação (experiência incondicionada). Percebe-se, então, que a dedução do argumento de que há um ens realissimum, só é obtida por se mover longe de qualquer consideração do mundo empírico. Em outras palavras, Kant relata que aqui também o argumento é confiado a um argumento transcendental (a priori) (GRIER, 2007, p. 19). De fato, de acordo com Kant, a prova físico-teológica nunca poderia, dado o seu ponto de partida empírico, estabelecer a existência de Deus por ela mesma; por este motivo, deve contar com o argumento ontológico em fases cruciais da argumentação. Afirmo, por conseguinte, que esta prova físico-teológica nunca pode, por si só, demonstrar a existência de um Ser supremo, mas que terá sempre que deixar ao argumento ontológico (ao qual serve somente de introdução) a tarefa de preencher esta lacuna, contendo, portanto, este último argumento o único fundamento de prova possível (na medida em que pode haver uma prova especulativa) que nenhuma razão humana poderia evitar (KANT, 2001, A625/B653).
Dado que a prova ontológica é, segundo Kant, um argumento falho, então o argumento físico-teológico, que o necessita fundamentalmente em sua argumentação, acaba por se tornar falho, incoerente. Desse modo, Kant termina sua refutação das provas da existência de Deus, propostas essas proferidas tanto pela teologia racional, quanto pela metafísica tradicional. No entanto, as conclusões de Kant sobre a teologia e o pensamento sobre Deus não possuem apenas um aspecto negativo. Kant não rejeita somente a teologia especulativa, mas também o ateísmo especulativo, que afirma a não-existência de Deus. Kant rejeita, por exemplo, aquele tipo de positivismo que considera impensável e indigna da razão a noção de Deus (HÖFFE, 2005, p. 174). Uma vez que Deus pode ser pensado sem contradição, mas não pode ser conhecido teoricamente, Kant afirmou que a única teologia racional possível, independente de todo e qualquer tipo de revelação, seria a teologia que se fundamenta em leis morais, no âmbito da Ética: Afirmo, pois, que todas as tentativas de um uso apenas especulativo da razão com respeito à teologia são totalmente infrutíferas e, pela sua índole intrínseca, 62
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nulas e vãs; mas que os princípios do seu uso natural não conduzem, de modo algum, a qualquer teologia e que, por conseguinte, se não tomarmos como base as leis morais ou não nos servirmos delas como fio condutor, não poderá haver, em absoluto, uma teologia da razão (KANT, 2001, A637/B664).
Nesse sentido, Kant manteve-se fiel ao seu idealismo transcendental, pois limitou o conhecimento em geral à experiência possível e deixou espaço para a discussão sobre Deus para o âmbito prático da moral, temática que foi discutida por ele posteriormente em sua obra Crítica da razão prática (1788).
Considerações finais Um dos resultados mais significantes obtidos pela tese kantiana sobre o ser na Crítica da razão pura é a refutação dos argumentos da teologia racional, que tentavam, pela metafísica tradicional, provar a existência de Deus. Neste artigo foram tomados todos os argumentos classificados e analisados por Kant (o ontológico, o cosmológico e o físico-teológico) e ponderada a argumentação que fundamenta a refutação do filósofo. Concluiu-se que, para Kant, o erro do argumento ontológico era a pretensão de extrair a existência de Deus a partir da relação lógica entre conceitos, fazendo, assim, um uso errôneo do juízo existencial. Como foi visto, para se afirmar a existência de algo, deve-se ter como fundamento algo provindo da experiência, o que não acontece com os argumentos ontológicos. Em relação ao argumento cosmológico e ao físico-teológico, percebeu-se que ambos possuem o argumento ontológico como fundamento de sua argumentação e, por este motivo, recairiam no mesmo erro: o uso incorreto do conceito de ser para afirmação de existência. Assim, com a análise dos argumentos que fundamentam a refutação kantiana das provas da existência de Deus, torna-se nítido o caráter epistemológico empreendido por Kant na Crítica da razão pura, principalmente na importância dada ao objeto real (experiência) para a afirmação da existência de algo. Contudo, apesar de todo o impulso da Dialética transcendental paracer ser dirigida a uma redução da razão pura, deve ser salientado o papel positivo que a razão especulativa desempenha para a atividade científica. Nesse sentido, Kant sugere que a razão que nos levou ao erro metafísico (como a formulação Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 49-65, jan./jun. 2012
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das provas da existência de Deus) é também a origem de ideias e princípios necessários para o conhecimento, como o princípio da unidade e o da completude, que possibilitam o contínuo progresso da ciência em suas teses.
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As provas da existência de Deus na Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant
THE PROOFS OF GOD’S EXISTENCE IN THE CRITIQUE OF PURE REASON OF IMMANUEL KANT Abstract The aim of this paper is to analyze the refutation proposed for Immanuel Kant (1724-1804) in his work Critique of pure reason ([1781] 2001) to the classical arguments presents in history of philosophy for the existence of God. According to the order of Kant’s refutation made in Critique of pure reason, will be examined firstly the Kantian refutation of ontological argument, which is based on the definition of ens perfectissimum. After this, will be examined the Kant’s contestation to the ‘cosmological arguments’, these arguments based on the principle of causality. Finally, will be analyzed the Kantian refutation of the physico-theological arguments. Keywords: Modern metaphysic; ontology; being; existence; ontological argument.
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DO A-LIMITADO AO ENTE: A SENTENÇA DE ANAXIMANDRO DE MILETO Thiago Sobreira Marques*
Entretanto, a metafísica, a verdade do Ser, segue dissimulada em sua História, desde Anaximandro até Nietzsche1 (Martin Heidegger).
Resumo O marco que inicia o pensamento ocidental como Filosofia, segundo Martin Heidegger, é a “sentença de Anaximandro”, um fragmento de texto desse filósofo grego da Escola de Mileto. A frase data da época primeira em que os pensadores denominados pré-socráticos (século VI a.C.) se detiveram em pensar a questão da Origem da Realidade a partir do conceito grego da “Arché”. Anaximandro estabelece um princípio universal diverso dos elementos da natureza física, inaugurando no mundo helênico o modo de pensar que até hoje conhecemos como Metafísica. Palavras-chave: Filosofia antiga; pré-socráticos; Anaximandro; origem; Martin Heidegger.
Introdução A ideia principal deste artigo surgiu ao nutrirmos um primeiro contato com a fase histórica da Filosofia que a Tradição Ocidental costumou nomear de período pré-socrático. Estudamos, naquele momento, uma frase lapidar que, segundo Martin Heidegger (1979), inicia o pensamento filosófico como o conhecemos até hoje – a metafísica. Esta frase trata da famosa “sentença de Anaximandro”, que o filólogo alemão Herman Diels recolheu na obra A física, de Simplício, e relatou em seu livro Fragmentos dos pré-socráticos (DIELS e KRANZ, 1979). Bacharel e Mestrando em Filosofia. E-mail: cantodothiago@hotmail.com Introducción a “Qué es metafísica? El regreso al fundamento de la metafísica [Einleitung zu “Was ist Metaphysik?”. Der Rückgang in den Grund der metaphysik] (1949) In <http:// www.heideggeriana.com.ar/>, tradução nossa. * 1
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A sentença de Anaximandro passou a ser objeto de nossos estudos por longo tempo, sobretudo no significado de seus termos cunhados em um idioma grego antigo, distante de nós mais de 26 séculos. Um termo fundamental desta sentença – a palavra traduzida por “Origem” ou “Princípio das coisas” (do grego Arché) – chamou-nos a atenção mais especificamente. Procuramos então conhecer as diversas traduções da sentença de Anaximandro para a língua portuguesa, e nortearmos um estudo sobre a Origem e Princípio das coisas segundo nos apresenta Anaximandro de Mileto em seu fragmento. Nosso instrumental teórico de aproximação dos estudos pré-socráticos foi, decisivamente, o escrito “A sentença de Anaximandro”, do filósofo alemão Martin Heidegger, inserido em sua coletânea de textos Caminhos da floresta (HEIDEGGER, 2001) (Holzwege), publicada em 1946.
1 A busca do princípio originário da realidade Alcançamos formular a seguinte questão que direciona este texto: o que significa a palavra Arché (Origem) na sentença de Anaximandro? E assim pretendemos descobrir, por meio do estudo da “Origem” e “Princípio das coisas” para Anaximandro, o porquê de tal indagação originária tornar o fragmento de Anaximandro marco do princípio da investigação filosófica ocidental. Esses primeiros filósofos buscavam essa Arché, esse princípio absoluto (primeiro e último) de tudo o que existe. A Arché é o que vem e está antes de tudo, no começo e no fim de tudo. É o fundamento, é a sede atemporal e imutável, incorruptível de todas as coisas, que as faz surgir e as direciona para sua consumação. É a Origem, mas não como algo que ficou no passado, e sim como aquilo que, aqui e agora, dá origem a tudo, perene e permanentemente direcionando o ente, isto é, a coisa realizada, para a sua realização na realidade do mundo. Os pré-socráticos2 ocuparam-se em explicar o Universo e examinavam a procedência, a corrupção e a transformação das coisas. Os primeiros filósofos gregos tentaram responder à pergunta: Como é possível que todas
2 As considerações históricas e geográficas sobre os pré-socráticos Tales e Anaximandro foram retiradas da obra que cito: KIRK, G.; RAVEN, J. e SCHOENFIELD, M. Os filósofos présocráticos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.
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as coisas mudem e desapareçam e a sua natureza, apesar disto, continue sempre a mesma? Para tanto, procuraram um princípio a partir do qual se pudessem extrair explicações para os fenômenos da natureza. Um princípio único e fundamental que permanecesse estável junto ao sucessivo vir-a-ser, o escoar do tempo. Tales vai dizer que este princípio é a água; Anaximandro, o infinito indeterminado – o ápeiron, o A-limitado; Anaxímenes, o ar; Heráclito, o fogo; Pitágoras, o número; Empédocles, os quatro elementos: terra, água, ar, fogo, em vez de uma substância única. Tales de Mileto (625-558 a.C.) foi um dos filósofos que acreditava que as coisas provêm de um princípio físico, material, sua Arché. Tales observou que o calor necessita de água, que o morto resseca, que a natureza é úmida, que os germens são úmidos, que os alimentos contêm seiva, e concluiu que o princípio de tudo era a Água. A existência singular é passageira, modificase. Tales, com essa afirmação, queria descobrir uma substância que fosse constante em todas as coisas, pensando a água como o princípio unificador de todos os seres. Anaximandro de Mileto (610-546 a.C.) foi discípulo e sucessor de Tales. Anaximandro recusa-se a ver a origem do real em um elemento particular. Todas as coisas são limitadas, e algo também limitado não pode ser, sem absurdo, a origem das coisas. Do ilimitado surgem inúmeros entes, e estabelece-se a multiplicidade. A gênese das coisas a partir do ilimitado é explicada através da contradição dos contrários em consequência do movimento eterno. Para Anaximandro, o princípio das coisas – a Arché – não era algo visível, e sim uma substância etérea, infinita. Chamou a essa substância de ápeiron (indeterminado, a-limitado). O ápeiron é uma “origem geradora” dos entes, um princípio originário provendo de si todo elemento. Anaximandro tinha um argumento contra Tales: o ar é frio, a água é úmida, e o fogo é quente, e essas coisas são antagônicas entre si, portanto um elemento primordial não poderia ser um dos elementos visíveis, teria que ser um elemento neutro, que estivesse presente em tudo, mas invisível. Esse filósofo foi o primeiro a formular o conceito de uma lei universal presidindo o processo cósmico totalmente. De acordo com ele, para que o vir-a-ser não cesse, o Ser originário tem de ser indeterminado, a-limitado. Assim, o princípio originário de todos os entes estaria para além do vir-a-ser e garantiria, por isso, a eternidade e o curso do vir-a-ser. 68
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Do A-Limitado ao Ente: A Sentença de Anaximandro de Mileto
O seu fragmento principal, a “Sentença de Anaximandro”, refere-se a uma unidade primordial da qual nascem todas as coisas e à qual retornam todas as coisas. Anaximandro recusa-se a ver a origem do real em um elemento particular. Do ilimitado surgem inúmeros mundos, e estabelece-se a multiplicidade das coisas, dos entes. A gênese das coisas a partir do ilimitado é explicada através da separação dos contrários em consequência do mover-se eterno do escoar do tempo. Segundo as fontes procedentes de Teofrasto, Anaximandro afirma que o princípio de todas as coisas existentes não é nenhum dos elementos (SIMPLÍCIO, Física, 24, 13-25), mas sim uma outra qualidade originária denominada ápeiron (que denominaremos ora em diante como a-limitado). Etimologicamente, a-peiron, em grego arcaico, significa literalmente “sem limites”. O a-limitado aparece como uma alternativa ao monismo de uma única substância como princípio de realidade, e contrapõe-se aos elementos naturais (água, ar, terra, fogo) racionalizados por Tales, Anaxímenes e Heráclito. Três são as características do a-limitado de Anaximandro: a infinitude, a indeterminação e a atemporalidade. Não há limites materiais nem temporais para o princípio originário do ápeiron. Enquanto infinitude, o a-limitado é fonte do escoar do tempo, fonte do dinamismo para que no mundo não cesse a geração e corrupção de todas as coisas da realidade. Contudo, devemos observar que o a-limitado não pode ser compreendido como nenhum elemento delimitado, mas justamente a des-limitação que origina todas as coisas. Para Anaximandro, é justamente esta indeterminação de que se origina a realidade (o mundo, o cosmos, a cidade, o homem, a natureza), a partir da delimitação, a partir do se delimitar provindo deste princípio a-limitado. O princípio originário que Anaximandro estabelece no lugar da água de Tales, o a-limitado ilimitado, mostra toda sua audácia racional em ultrapassar as fronteiras da aparência sensível. Todos os filósofos da natureza (os pensadores da physis) estavam dominados pelo prodigioso espetáculo da geração e corrupção das coisas, sobre cuja imagem os olhos e sentidos humanos podem fazer experiência sensível. Anaximandro se pergunta qual será o fundo inesgotável do qual tudo procede e ao qual tudo regressa. Tales julga que é a água, que se evapora e se transforma em ar ou se congela e, por assim dizer, se petrifica em sólido. Impressiona-o a sua enorme capacidade de transformação. Toda a vida proveria da umidade. Anaximandro fala então de um inédito ápeiron, que não é nenhum elemento determinado, Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 66-86, jan./jun. 2012
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mas tudo inclui e tudo direciona. Parece ter sido esta a sua maior e mais apropriada expressão. Enfim, agora apresentaremos então uma coletânea introdutória de traduções portuguesas da “Sentença de Anaximandro”, a partir do texto de Herman Diels (DIELS e KRANZ, 1979).
2 A sentença de Anaximandro Princípio dos seres... ele disse (que era) o ilimitado... Pois donde a geração é para os seres, é para onde também a corrupção se gera segundo o necessário; pois concedem eles mesmos justiça e deferência uns aos outros pela injustiça, segundo a ordenação do tempo (SIMPLÍCIO, 1973). Origem do que é, é o ilimitado. Onde estiver a origem do que é, aí também deve estar o seu fim, segundo o decreto do destino. Porque as coisas têm de pagar umas às outras castigo e pena, conforme a sentença do tempo (SIMPLÍCIO, 1979). De onde provêm as realizações, retornam também as des-realizações: pois, de acordo com o vigor da consignação, elas concedem umas às outras articulação e, com isto, também consideração pela des-articulação, de acordo com o estatuto do tempo (ANAXIMANDRO DE MILETO, 2005).
Iniciamos trazendo as três traduções portuguesas da Sentença de Anaximandro, as que são mais correntes em nossas bibliografias e estudos acadêmicos. Desde já advogamos em favor da última tradução anotada acima, realizada pelo professor Dr. Emmanuel Carneiro Leão, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Será a partir dessa tradução que realizaremos nossas investigações. Contemplamos a tradução escolhida pelo motivo de aproximar-se melhor e estreitamente de nossa fonte bibliográfica mais privilegiada para o estudo do fragmento, a saber, o texto já citado “A Sentença de Anaximandro”, de Heidegger. Primeiramente analisemos o fragmento na sentença que diz “Princípio dos seres... ele disse (que era) o ilimitado...”. Analisemos esse fragmento em sua totalidade. Ele nos indica que todas as coisas que são, que existem, que permanecem de alguma forma, que se manifestam expressamente na realidade, ou seja, todos os entes, têm sua origem, sua aparição, sua manifestação, 70
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seu existir, sua permanência, provinda do não-ter-limite, do ilimitado, do a-limitado que ainda não se delimitou, o ápeiron. Origem é, portanto, o movimento de vir-a-ser, de tornar-se, e não somente o iniciar, o começar, o criar de alguma realização, mas todo o movimento, desde o seu iniciar, até sua constante completude, que delimita algo como aquilo que é. Desde o tornar ser até o perene “sendo”, Origem permeia o ente porque ela é movimento de realização. Partindo de uma possibilidade aberta, até se realizar numa coisa presentificada, manifesta, realizada, existente, ente; ocorre este movimento de limitar, de dar limite, de delimitar, para que o ente possa existir. O Ente passa a existir em oposição a tudo o que não é ele, seu des-limite. O presentificado só existe em permanente delimitação para com todos os outros presentificados que não são ele. Esse movimento de partir do aberto possibilitador, chegando até o ente realizado possibilitado, não se esgota. Isso porque, se o movimento de delimitação se esgotasse, dissolveria o limite do ente, retornando-o ao não-ente: ao não ser nada. A sentença vem então revelar: a origem do ente é o não-limitado. A origem de tudo o que se origina é o ilimitado, o ápeiron a-limitado. O limitar dos delimitados é provindo da ilimitação. Pensar o contrário, a que chegaríamos apelando apenas para nosso senso comum, é em si mesmo pensar não-pensando. Se parece confuso afirmarmos que o ente se origina no ilimitado, a palavra “confuso” tem um sinônimo corrente em língua portuguesa que muito nos explicará sobre esse ilimitado em questão. Quando algo é confuso, o dizemos “caótico”. Mas o que é o Caos?
3 O Caos como Origem da Realidade e sinônimo do ápeiron (a-limitado) Pois é exatamente ao Caos que nos remete o ilimitado desse primordial fragmento de Anaximandro, sua sentença. Caos, como bem lembramos, é a abertura de possibilidade, a plenitude de possibilidade, vir-do-a-limitado, como lemos em Anaximandro, do qual tudo pode vir, pode se realizar, pode se tornar, ou mesmo pode não-vir, não se realizar, não se tornar. Mais uma vez, caracteriza-se como movimento – “poder vir”, “vir-a-ser”, “poder se realizar”. Percebe-se que Arché já se produz no a-limitado, de onde inicia seu movimento de originação, de dar limite, de provir. O Caos é como Ser Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 66-86, jan./jun. 2012
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logo possibilitador de toda coisa, abismo possibilitador de toda existência e concretização, como bico que se abre para toda realização que se dá. Caos então tem de ser necessariamente não-limitado, em oposição ao ente, que é limitado. Caos é uma instância do Movimento de Origem, esse que irá se dar plenamente na delimitação, na presentificação, na permanência do ente realizado. Além de a-limitado, o Caos é a-limitador, negador de limite, pois Nele (para o ente que Dele se concretiza, e a Ele retorna) todo limite é dissolvido, não há limite, nega-se toda limitação e delimitação no Caos. É, portanto, daí que se gera toda possibilidade: justamente de, antes da concretização, vir a des-limitação, a caótica ausência de limite. Mas o que vem antes do ente, dando-lhe possibilidade de vir-a-ser? De onde provêm as realizações e os entes? Qual sua anterioridade? Qual o movimento de Origem e como se dá esse movimento do concretizar-se dos entes? Para melhor apreender o que vem antes de toda e qualquer coisa, devemos antes olhar, contemplar, justamente, uma característica de toda e qualquer coisa. E toda coisa, todo algo, tem como característica concretizarse somente num recorte temporal do constante movimento de vir-a-ser em que se escoa o tempo. Toda coisa vem-a-ser somente num recorte temporal. Toda coisa se dá para nós num Instante. Tomemos qualquer concretização, qualquer realização, qualquer coisa que se dê, se apresente para nós na realidade. Para que essa coisa existisse, antes teve de ocorrer algo. Permanecendo em cada instante, no escoar do tempo, a coisa continua se concretizando. Para que essa coisa existisse foi preciso haver algo que possibilitasse essa realidade, concretização, ou mesmo a corrupção futura dessa coisa percebida apenas num Instante do escoar do tempo. Abrindo espaço para seu existir, do Abismo do Nada se abrindo, está aquilo que possibilita a coisa – o provir. Caos é essa plenitude de possibilidade. Mas o que vem a ser “plenitude de possibilidade”? O que vem a ser toda a possibilidade de afirmação, negação, existência e não existência? Pois bem, explicar o significado de uma palavra que remete ao Nada, ao vazio, ao “Abismo”, é absolutamente insensato e mesmo desnecessário, pois o silêncio de palavras muito melhor explicaria o Caos. Qualquer palavra poderia advir desse silêncio. Contudo, sejamos perseverantes, crendo até o fim que as palavras tudo podem alcançar, usando o rigor e a lógica no pensamento. Quando se abre uma porta há muito tempo fechada, para a qual se 72
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estava olhando por muito tempo, no infinitésimo de segundo, enquanto a imagem revelada pela porta aberta ainda não tocou nossa retina, temos por muitas vezes a impressão de que a porta abrindo-se, tudo poderia revelar. Muitas vezes nossa imaginação antecede à visão, e pensamos ter visto uma pessoa quando de fato outra está à porta (que se abriu). Pois eis o Caos. Uma vez que nossa mente e nossa linguagem representam “coisas” e representam através de “coisas”; um mundo sem nada, ou seja, nem mundo sequer, o nada completo, é impensável e inexprimível por nós. O Caos se dá justamente quando a boca do “Nada” se abre, podendo dela tudo sair (ou entrar). É o Caos que possibilita qualquer coisa que há ou é. Porque ele existe em si mesmo (Caos também é força geradora de Caos – plenitude de possibilidade, é a única força capaz de gerar plenitude de possibilidade), para então gerar a possibilidade de concretização das coisas. Na verdade, o que ocorre é que em todo gerado ou criado, em tudo o que está ou se dá, temos de admitir que necessariamente é, está ou se dá porque houve essa possibilidade (esse antes ilimitado). A esta possibilidade que vence a estática do Nada (e é em si o próprio Nada, também possibilitador do mesmo Nada), chamamos Caos. É o bico que se abre para que, depois dele, algo exista. Da negação do limite, melhor expressaríamos em língua portuguesa, é que o Caos é a-Limitado, e a-Limitador, des-Limitado e des-Limitador.
4 Refletir sobre a Origem a partir da expressão “desde onde provêm os entes” O refletir sobre a Origem, nessa primeira afirmação da Sentença de Anaximandro exposta acima, é dado de várias formas e modos, que sabiamente não se contradizem. “De onde”, “provêm”, “realizações”, “retornam” e “des-realizações” são cinco modos de falar de um mesmo conteúdo, que é o Movimento de Origem. “De onde”, “desde onde provêm”, haja visto, remonta ao vazio aberto de possibilidades, ao Caos, ao que não tem limite, ao a-limitado. “Desde onde” não é somente lugar-estado de proveniência das possibilidades, mas também agora se reflete como lugar-estado ao qual se retornam as coisas, as realizações, para então tornarem a se realizar. Ao se re-realizarem, re-possibilitadas, as realizações dão escoamento à Realidade, fundando o acordo do tempo e o escoar dos instantes. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 66-86, jan./jun. 2012
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Uma tradução capciosa do grego nos seria muito reveladora semanticamente se nos dispuséssemos a ler: “Da Origem que origina os originados, para lá se des-originam os des-originados”. Ou ainda então: “De e para a Origem que origina os Originados, se des-originam os des-originados”. Assim torna-se bem clara a noção de Anaximandro, e desse fundamental pensamento originário grego, de que a origem como “Movimento de Origem” parte do a-limitado (Caos ilimitado) e depois de sua delimitação retorna ao a-limitado. Esse movimento que perfaz o ente em seu existir é constante. Por que constante? E por que movimento no escoar do tempo?
5 Movimento de Origem como concretização constante dos entes no tempo Todo ente, diante de sua concretização, de seu movimento de originarse, de limitar-se, de delimitar-se, diante de sua presentificação, torna a se des-concretizar, des-limitar, des-presentificar, para que possa permanecer existindo. Caso contrário, como vimos, ele negaria o tempo ou o espaço (de sua limitação). Dá-se que o ente, em seu movimento de vir-a-ser na realidade, gera o permanente fluxo de escoar-se do tempo. O ente se presentifica, se delimita na realidade, provindo da ilimitação. Então o ente se des-limita, retorna ao a-limitado, para que possa tornar a se presentificar, se delimitar no instante seguinte. Assim é gerado o constante escoamento dos instantes da realidade, como enxergou Anaximandro ao observar em sua sentença que, de onde provêm os entes, para lá também retornam. Desta forma, em constante fluxo os entes vêm-a-ser, se originam, des-originam e re-originam provindos do a-limitado e se presentificando, vindo a ser na realidade pela delimitação. Retomando, refletimos então que todo ente, ao se presentificar, tudo aquilo que é, tudo aquilo que se manifesta na realidade, encontra forçosamente estas duas possibilidades: indiferenciar-se, negar seus limites, ou negar o tempo. As duas possibilidades encontram o mesmo fim – o retorno ao ilimitado. Uma vez retornado ao seu lugar-estado de nãodelimitação, de “a-limite”, o Movimento de Origem torna mais uma vez a limitar, dar limite, permanecer o ente provindo daquilo que é Ser, que é o Nada, que é não se limitar para a tudo possibilitar. O Ente é re-originado constantemente. Arché gera o ente, porque nessa origem do movimento, uma vez deixado o vazio, ilimitado possibilitador, a delimitação concretiza o existir 74
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do Ente. Para logo des-concretizar-se, des-limitar-se, e assim, retornando ao ilimitado, voltar a concretizar-se, delimitar-se. Eis o movimento forçoso do existir, que forma realização. Movimento forçoso de delimitar e des-limitar, gerando permanência, é então a terra firme sobre a qual todas as coisas estão fundadas, sobre a qual tudo permanece. Lembremo-nos que já foi escrito por Hesíodo (2001), em sua imemorial obra “Teogonia”: todas as coisas possuem sua sede irresvalável, sempre no movimento de permanecer se presentificando. É a Origem em sua permanência. A Sentença de Anaximandro, que aqui continuamos averiguando, em si, é aquela que inaugura uma visão do limite como constituinte e mantenedor da realidade em suas dimensões espaço, tempo, existência. No limite Anaximandro de Mileto vislumbrou as forças de realização, des-realização, permanência e manutenção dos entes, continuidade e constância do Instante e, enfim, formação do constante fluxo de escoar do tempo – o “acordo do tempo”, conforme está traduzido na Sentença. Tudo isso se dá, ou seja, a realidade se dá, quando em consignação entre as coisas existentes. É deste modo como tudo se realiza para então se des-realizar, e, gerados no Tempo, possibilitar também transformação, fluxo e consignação. Portanto, para os seres, para os entes, limite é necessário e forçoso também como movimento de originar-se, posto que originar-se é também, necessariamente, limitar-se, delimitar-se e dar limite aos demais originados conjuntamente.
6 Delimitação, limite, proporção, conjunção e composição entre os entes A tradução do professor José Cavalcante de Souza, acerca do fragmento recolhido por Hermann Diels, sobre a sentença de Anaximandro, traz “limite”, “limitar” e “limitação” como ‘administração’, ‘penitência e julgo’, ‘acordo’, ‘avaliação’, ‘ser para o outro’, ‘deferência’, ‘justiça’. A noção instaurada, desde o original grego, é a primordial do Direito – “dar a cada um o que é seu e obrigar a cada um que dê ao outro o que é dele” – segundo a definição de Platão em A República. A Justiça e a Penitência, nesse caso, só assumem valoração e juízo de valor para os seres humanos: bom e mau, justo e injusto; todas as forças em conflito somente são valoradas pelos sistemas simbólicos humanos. Para os entes, o conflito é o delimitar. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 66-86, jan./jun. 2012
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Como o limite se coloca entre dois entes, toda diferenciação vem do delimitar-se entre esses dois entes (caso contrário seria Uno, indiferenciado, eterno, caótico). Entes diferenciados, seja quantos forem, necessitam do limite e são limite uns para os outros. Dão-se um ao outro a delimitação do que o outro é, tanto quanto o outro para si mesmo. O ente é no diferenciar-se do outro e pelo outro, através do limite que se impõe, e que o outro lhe impõe na justa proporção. Todo desequilíbrio leva à dissolução daquele limite e estabelecimento de um novo limite – ou senão dissolve-se o próprio ente, formando outro ente por corrupção ou conjunção. Acordo e desacordo dessa forma se manifestam e, no que se manifestam, originam o Ente, no mesmo Movimento de Origem, que é Arché. Dá-se limite, permanência e também renovação. Há justeza ao se proporcionarem os entes e se darem mútua proporção. A Sentença de Anaximandro nos possibilita o revelar da composição do limite como única possibilidade de encontro dos entes em seu provir, em seu vir-a-ser. É participando do provir, é sendo, que o Ente existe. E isso só se dá definitivamente no momento do acordo dos entes, dos que são consignadamente delimitados. Anteriormente (mas não no antes cronológico), anterior à limitação, trata-se o Ente de somente uma possibilidade; e posteriormente (mas não no posterior cronológico) retorna o Ente a somente possibilidade, ainda que volte a reconfigurar seu reaparecimento, sua re-concretização. O Instante manifestado, real, o tapete de realidade que Arché tece, é o articular dos limites, composto, recomposto, composição, recomposição, num sem fim de Instantes e Re-Instantes que não se limitam porque há o a-limitado “entre” eles. É a plenitude de possibilidade entre um Instante composto e outro, que na limitação e na dês-limitação geram o escoamento dos Instantes. O fluir do tempo é dado pelo gerar do limite articulado, um limite de consignação entre os entes. Assim como na contiguidade entre dois seres está o limite que é abismo, possibilitador e compositor, na contiguidade entre dois Instantes há um limite de recomposição, re-concretização, reabertura, que gera fluir do tempo. O fluir do tempo e do espaço estão ligados intimamente, intrinsecamente, pois tem como Origem o mesmo movimento Arché. O Instante é tão ínfimo quanto o infinito o pode ser, e se renovará tão infinitas vezes quanto o mesmo escoamento do Tempo e composição do Espaço. É no 76
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fluir dos instantes que os entes se continuam e podem se consignar, articular, acordar e desacordar, segundo o dar-se do limite. A primeira impressão de um pensamento ordinário é entrever entre dois instantes não o limite como a-limitado, e sim um limite como ente. Se assim fosse, Tempo não teria fluxo, não se escoaria. Não seria tudo segundo o acordo do Tempo. Ainda que fossem estáticas, todas as coisas existentes, ao menos da forma como as conhecemos, existiriam unidas. Não há espaço, a não ser de possibilidade, entre as coisas que se dão na realidade. Entre todos os instantes há o a-limitado.
7 Eros como composição, consignação e articulação entre os entes Tudo se dá através de possibilidade que se concretiza, permanência limitada no instante, limitada por outra coisa existente, que, por sua vez, se limita com as outras coisas existentes; e, mesmo que estejam diferenciadas por distâncias físicas, instâncias metafísicas, ordens cronológicas ou modos de ser, tudo se dá, ainda da mesma forma, sediado na Realidade, e antes havia Caos, que possibilitou essa real sedimentação. Existe essa coesão entre tudo o que houve, há e há de vir, que se compõe firmemente, nos sendo desconhecidas as forças e algo que escape dessa premissa. Essa força, esse poder de coesão, composição, conjunção, chama-se Eros, segundo o idioma grego antigo. É a certeza da contiguidade, do compor-se. Refletimos sobre o Caos mesmo que ele nunca apareça (ora, se aparecesse já não seria Caos, mas algo definido e limitado que se concretizou). Conhecemos a Realidade porque estamos (tudo e todos) sediados conjuntamente, e essa força de composição entre tudo o que há é o Eros: a conjugação que a tudo compõe. Eros se desdobra conjugando todos os entes, coisas e seres das mais diversas formas. Eros pode ser aquele que dissolve um limite (solta-membros3) criando uma terceira “coisa” do que antes eram duas coisas. Eros pode ser
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HESÍODO, A teogonia. Várias traduções. http://www.consciencia.org/
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igualmente aquele que finca um limite entre duas coisas, ou ao redor delas, criando duas novas coisas, na realidade três – sendo a terceira a composição que se dá no aparecimento das duas novas coisas. Eros é a composição do que se delimita. Mas por que uma força de conjunção? Reflitamos sobre a Realidade. A sede de todas as coisas não poderia ser gerada em um único e só elemento, e se diferenciar do Abismo Caos como sendo uma única coisa completa e totalmente. Mesmo diante do Nada, uma única existência primordial, em tudo única, plena, poderosa e completa, em tudo “Una”, seria não algo realmente diferenciado, mas “Tudo e Nada”, dando-se como realidade ao mesmo tempo. De fato, não haveria um ente, um algo, uma coisa, mas sim “Um”. E esse “Um Uno” necessariamente seria tudo (pois é completude) e Nada (pois há em si mesmo, e somente em si, sem se limitar com nada que o distinga, que o concretize diante de outras coisas). Quando a Realidade nasce, força de permanência e limite, ela é, portanto, necessariamente, limite entre dois, entre no mínimo duas coisas, dois “algos”, dois entes. E, na existência desse “Dois” contíguo, ele se torna também uma terceira coisa (a composição, existência no mesmo plano – enquanto duas coisas que existem na mesma sede irresvalável, enquanto concretização dos dois). O “Dois” como que Realidade nasce; essas duas coisas que foram possibilitadas, são já geradas como a terceira coisa, que é a composição das duas coisas, do “Dois” que Realidade é. A composição revela então que Eros há, já age, já agiu, já é força de conjunção necessária para que Realidade se dê, assim como a sede que foi necessária para que Caos possibilitador tivesse antes dela tudo provindo enfim. O Eros se representa na união entre dois – como, por exemplo, masculino e feminino –, pois nessa representação fortemente apreendemos isso que Eros é: a tensão ente duas coisas limitadas, duas coisas que, contíguas, se diferenciam, mas, porque contíguas e delimitadas, se compõem. Masculino e Feminino se procuram, existem somente na diferenciação um do outro. Masculino e Feminino, unidos, geram nova vida, ou ainda, PODEM gerar nova vida. Masculino e Feminino, se indiferenciados, talvez através da completa união entre eles, da dissolução do limite que os distingue, também geram nova vida, nova coisa, que é formada do que antes eram dois, e agora é um. Eis Eros: composição que se dá pela existência contígua e limitada de toda coisa. Eis Eros: composição que se dá advinda da tensão, da delimitação 78
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entre duas coisas que se compõem articuladamente. E composição que se dá através da dissolução desse limite que configurava, concretizava duas coisas. Arché é como movimento constante da erótica articulação do delimitar-se e do des-limitar-se dos entes no espaço e no Instante; e geradora do escoar do tempo. Os termos da tradução de Emmanuel Carneiro Leão para movimento de delimitação e configuração são “consignação” e “articulação”. Consignação é, em língua portuguesa, afirmação, declaração, estabelecimento, vindo do latim “con-signare”. Con-Signar é unir dois signos, dar contiguidade a dois signos, relacionar dois sinais, duas marcas. Dividindo, por exemplo, dois territórios, faz-se a “marca” de uma fronteira. A região fronteiriça é sempre virtual, uma linha adimensional, cujos pontos não pertencem a nenhum dos dois territórios, mas antes são até onde um território pode ir, e dali não passar sem que invada o outro. Entre dois signos consignados não há nada, a não ser esse limite adimensional, gerado por compreensão e não existente materialmente. O que propicia, proporciona, possibilita que cada território seja um território em si é justamente a consignação, as marcas entre ele e o outro. O relacionamento entre dois signos, a consignação, se dá sempre em afirmação (da existência de um para o outro, um contra o outro, um no outro), pois existir é marcar sua presença como sendo o que é e não sendo tudo o mais que seja. É marcar todos os outros como não sendo o que você é, e marcar a si como não sendo o outro. Mais uma vez, é o limite que gera a configuração. Consignação é também declaração, no sentido que declara o que o ente é quando se configura, e declara o que todo outro é e não é em relação ao mesmo ente. Por fim, consignação é estabelecimento desse ente que se configurou: presentificação, concretização; estabelecimento é o exercício do status, é instaurar-se, erigir-se como status e em seu status. Na prática comercial, consignar é deixar para o outro algo que é seu, para que o outro venda e lhe dê o pagamento justo por aquilo, retirando desse pagamento a taxa pelo trabalho de vender. A ação de limite e articulação, nesse conceito comercial, faz-se plena, uma vez que expressa não somente o estabelecido do limite, como a sua proposição de movimento. Na consignação está expresso o sentido de ceder (limite) e receber em troca (quando o limite é transpassado). Volta a noção grega de justiça: dar e receber o que é devido. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 66-86, jan./jun. 2012
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8 Sentido ontológico da Origem Origem não quer dizer, aqui, o começo no sentido daquilo que tem início e depois é abandonado, ficando para trás como aquilo que, uma vez passado, já foi e não é mais, assim como o sentido factual de tempo em que o minuto presente é superado sempre pelo minuto seguinte, resguardando o seu lugar de passado não vigente. Isso é o que Origem não significa, já que ela não pode ser entendida nesse sentido linear, porquanto é o que não tem começo nem fim, ou melhor, ela é princípio e fim dela mesma, uma vez que o começo e o fim estão reunidos pelo movimento disso que Origem é. De tal sorte que ela é um movimento que se dá sempre todo e uno, que transpassa tudo, sem, entretanto, confundir-se com algo específico; não se confunde com nada em particular, com nenhum ente. Origem é o próprio movimento de realização do real, movimento de vir-a-ser, realizar-se, e Origem se dá em cada acontecimento de realidade. De modo que pensar Origem é pensar o dar-se da Realidade na medida em que se pensa o próprio pensamento. Origem só é entendida enquanto se já está na dinâmica própria disso que é pensar. É pensando que Origem se desvela nisso que ela é, ou seja, como o movimento de realidade que só é compreendido por quem já o está atravessando, enfim, por quem já está na dinâmica do pensamento. Então se pensa originariamente enquanto se está pensando Origem sob a própria dinâmica de Origem, isto é, pensa-se originariamente quando já se está desde o movimento em que realidade se dá, se desvela. Isto é, quando se está pensando o vir-a-ser da realidade em pensamento. Origem é, por conseguinte, o movimento do pensamento que, desvelando realidade, pensa o próprio pensamento. Qual seria, pois, esse assunto da Filosofia; qual seria o seu modo de ser? O movimento disso que se denomina Filosofia diz respeito a investigação acerca da Origem (Arché), do Princípio e Fundamento de realidade na distinção com tudo o que é, com todos os entes que são sempre já delimitados e configurados nos limites de todas as coisas que são. Portanto, a Origem não é um ente, e não deve ser tratada ou pensada como tal. Para que tal equívoco não ocorra é necessário ressaltar que o caráter da Origem é o de provir do Nada e ir ao Nada. Origem não é tampouco a ausência de todas as coisas, mas, antes, a possibilidade de tudo e qualquer coisa, que enquanto possibilidade se retrai e se resguarda como possibilidade, como 80
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Nada. Disso se segue que, ao se falar de Origem, tratando-a na medida dela mesma, de seu caráter, deve-se necessariamente fracassar ao dizê-lo; pois as palavras não podem jamais abraçar e esgotar a sua imensidão, não no sentido de extensa, mas no sentido de sua própria importância ontológica. E é isso que as palavras dos “pré-socráticos”, como se habituou denominar os pensadores originários, deixam transparecer – elas apontam toda a grandiosidade do pensamento que pensa a Origem, e não somente pensa os entes que provêm do movimento de Origem. Para se falar de Origem deve-se deixar transparecer a dinâmica daquilo que põe as palavras, daquilo que perpassa as palavras, para que, assim, estas digam da maneira como deve ser dito, ou seja, ocultando, velando a própria Origem em oposição ao Ente, ao que já aparece. Origem é movimento do vir-a-ser daquilo que vem a ser – Origem é movimento de originar daquilo que se realiza na realidade: pensar a Realidade em sua natureza mais radical é pensar a Origem de tudo o que vem a ser. Deve-se deixar ser tomado, perpassado por uma experiência, algo posto desde a experiência de pensar originariamente. Nessa experiência, o que se dá, o que é posto não é contingente, é necessário. Necessário porque só há um modo de dizer; o modo de um deixar ser no qual o que acontece não é uma vontade, um querer do sujeito, e sim uma necessidade – e sim o pensamento sendo uma dádiva. Por isso, aqueles que acusam injustamente os pensadores de dificultarem o entendimento, de torná-lo mais complexo, saibam que isso não é um arbítrio; pensar a Arché, dizer o que se recusa a ser dito, é necessariamente difícil. É obrigatório que seja assim pela própria dificuldade daquilo que está sendo pensado. E a cada vez esse pensado acontece num movimento, numa passagem, num salto que não tem começo nem fim, mas apenas travessia. O ser humano é aquele que está sempre atravessando, e compreende essa travessia. É através dessa relação com a Arché, com sua Origem, origem de pensamento, que o homem compreende mundo e se compreende sendo. Ora, se o ser de um ente se dá, aparece, vem a ser quando o ente atinge e consuma a sua destinação, nós então descobrimos sobre o ente que ele é sempre o finalizar de uma ação, isto é, o perfazer de uma configuração, o realizar de um movimento. Realização de um ente é a sua formação, é movimento para atingir a sua forma, o seu fim, a sua configuração, na qual ele aparece, resplandece como aquilo que é, sempre num todo composto, articulado, consignado entre os entes. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 66-86, jan./jun. 2012
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Contemplemos no texto abaixo, de W. H. Auden, uma expressão poética da distinção e a clara delimitação de um ente – o “novo poema” – no escoar do tempo. Aos olhos dos outros, um homem é poeta se escreve um bom poema. Aos seus próprios olhos, só é poeta no momento em que faz a última revisão de um novo poema. Um momento antes, era apenas um poeta em potencial. Um momento depois, é um homem que parou de escrever poesia talvez para sempre.4
9 Princípio de Realidade: o legado da Origem Não há vazio palpável entre os instantes, não há vazio entre os seres, os entes. Na Realidade, não há vazio mesmo entre a Origem e os entes que dela provêm, instâncias absolutamente opostas. Eis o movimento do provir originário. Decerto Tales, Anaximandro e Anaxímenes, da Escola Jônica de Mileto, e tantos outros pensadores originários, nos alcançam até hoje por conta do vigor de suas reflexões e pelos temas excelsos em que se detiveram. Apenas uma sentença inicia todo um pensamento ocidental agora milenar. A certeza de que tão somente palavras em uma sentença serão capazes de expressar essas respostas buscadas não esmorece diante do fato de que, muito mais que respostas, no estudo filosófico encontramos miríades de outras perguntas. Aqui, nos perguntamos sobre a Origem. Origem é, enfim, a possibilidade concretizada de algo se dar, e, porque já concretizada no ente, podemos dizer, Origem é a possibilidade concretizada de algo que se deu. Delimitada então essa compreensão de Origem, tomemos
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uma coisa qualquer para observar. Digamos, esse texto acima. Todo ele, de fato, nasceu com uma finalidade objetiva de ser como tal, de convencer como texto. Toda sua confecção, configuração material como aquilo que ele é, tomado pelo que ele é agora, estendeu-se por vários instantes do tempo. Mas a cada instante, agora que texto se deu, e mesmo enquanto ele estava sendo constituído, ele é (e foi) novamente gerado – possibilitado, limitado, composto. O texto permaneceu a cada instante, porque foi novamente aberto do Nada pela plenitude da possibilidade, configurado pela força de limitação e permanência, e concretizado entre todas as coisas pelo poder de composição. Esse texto é a consignação de um pensamento. Origem ocorre sempre, para cada coisa que tomarmos, em cada instante em que a tomarmos. A Origem se dá quando o Ente já é finalizado, concretizado, mas da mesma forma não poderia ter se dado essa concretização senão já anteriormente direcionada e destinada para sua consumação delimitada pela Origem. Ora, esse processo contínuo, irresvalável, nada tem de cronológico, e é sede também da própria cronologia, antecessão e sucessão. O que diferencia antecessão de anterioridade é que a sucessão e a antecessão das coisas se dão num contexto de vários instantes ligados pela memória, percebidos pelo humano no escoar do tempo. A anterioridade, entretanto, está ontologicamente para além do tempo, é também ela geradora do tempo, do escoar dos instantes no realizar-se dos entes na Realidade. Origem, como Acaso ou Força de formação originária, terá de ser percebida em suas características manifestas no Ente. Seja plenitude de possibilidade, seja força de permanência, seja poder de composição. A trajetória do movimento do a-limitado para o limitado, sempre repetido em ciclo e fluxo, nunca deixará de ser visto na misteriosa vivacidade, no vigor do relacionar. Relacionar como articulação, relacionar como consignação de limites, relacionar como significação de linguagem, relacionar como experiência erótica – experiência do Eros consignante. O relacionar parece ser a ordem primordial da constituição da realidade em suas dimensões de espaço e tempo. Diante de tais constatações, podemos iniciar uma busca pelo sentido da Origem como suprema força de conjunção, seja na criação, no revelar, no desvelar, no velar ou na decadência. Conjunção é tudo o que sempre acontece e parece sempre acontecer na estrutura de nossa realidade e nossas concretizações. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 66-86, jan./jun. 2012
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No crítico texto “A Sentença de Anaximandro” (Holzwege, G. A., 5, p. 337) de Martin Heidegger, este filósofo relaciona o iniciar do pensamento filosófico sobre a Origem com as épocas históricas pré-socráticas mediante a adoção da palavra arché. Isto se dá pelo fato de Anaximandro utilizar tal termo em lugar de um princípio elemental, isto é, pelo fato de a sentença de Anaximandro trazer, no ápeiron a-limitado, um princípio originário Arché que não se encontra na natureza material. Buscando Origem para além da matéria, o pensamento de Anaximandro inicia a Metafísica. Desta maneira, a História da Metafísica se origina com a História da Filosofia e o esquecimento da diferença entre o ente e sua Origem. Porque mesmo o ápeiron, mesmo o a-limitado, foi e é pensado como um ente originador, e não propriamente como Origem que não se presentifica nem é entidade. Em consequência, a História da Metafísica tornar-se-á a História do esquecimento e da entificação da Origem. Martin Heidegger conclui que “a essência epocal da Origem pertence ao oculto caráter temporal desta mesma e designa a essência do tempo” (HEIDEGGER, 2001). Princípio das coisas, na Origem está o Movimento que se diferencia do Ente – a Origem mesma que é Arché, nomeada no início da sentença de Anaximandro. Do A-limitado, Movimento de Origem, provém a realização dos entes sem jamais se confundir com um Ente – é movimento de provir os Entes sem jamais ser um deles. Descobrimos o delimitar-se provindo do a-limitado como essencial movimento de originar-se, delimitar-se e dar-se limite mutuamente aos demais originados, conjuntamente e consignadamente. Este foi o legado de Anaximandro que nos foi deixado por sua Sentença, e ousadamente desafia milênios e retorna até nós. Existência e Realidade, completamente inimigas do vazio, e amantes perenes da composição, é o que sempre nos é dado gratuitamente experimentar. Delimitada assim Realidade, delimita-se também a Filosofia – Philía pela Sofia –, que é procurar ansiosamente pelo amigo que não está: a busca incessante da Sabedoria.
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From the a-limited to the being: the sentence of Anaximander of Miletus Abstract The milestone that starts Western thought as Philosophy, according to Martin Heidegger, is the “sentence of Anaximander”, a text fragment of this Greek philosopher from Miletus School. The phrase dates from the time when the first thinkers called Pre-Socratics (sixth century BC) started to realize the question about the Origin of Reality through the Greek concept of “Arché”. Anaximander establishes an universal principle that was not an element of physical nature, ushering in the Hellenistic world the way of thinking that we know until today as Metaphysics. Keywords: Ancient philosophy; pre-socratics; Anaximander; origin; Martin Heidegger.
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INTERFACES E TENSÕES HISTÓRICAS ENTRE CRISTIANISMO E MARXISMO: UM RECORTE LATINO-AMERICANO Allan da Silva Coelho* Egberto Pereira dos Reis**
Resumo Este trabalho tem como objetivo apresentar um possível diálogo e encontro entre o cristianismo, refletido na elaboração e sistematização teológica, e o marxismo, em seus aspectos teóricos e, sobretudo, práticos. Primeiro se elabora um percurso histórico dos fundamentos da Teologia da Libertação, em especial na América Latina. Dentro dessa análise histórica veremos que se estabelece uma ruptura entre formas de interpretação da realidade na perspectiva da defesa da dignidade humana. Procuramos identificar o cenário que permite o surgimento de um pensamento teológico radicalmente comprometido com a libertação dos pobres e em diálogo com a elaboração marxista. Por fim, procuramos demonstrar que existem polêmicas e mútuas acusações entre setores cristãos e marxistas que precisam ser enfrentadas e compreendidas à luz da elaboração teórica de ambos os grupos, em especial iluminadas por suas convergências na práxis. Palavras-chave: Teologia latino-americana; marxismo; cristianismo de libertação; práxis.
Introdução Este trabalho tem como objetivo situar o contexto do diálogo e encontro entre o cristianismo, refletido na elaboração e sistematização teológica, e o marxismo, em seus aspectos teóricos e, sobretudo, práticos. Primeiro
* Licenciado em Filosofia com habilitação em História pela UNIFAI-SP. Mestre em Ciências da Religião e doutorando em Ciências da Religião (UMESP). É docente do curso de Filosofia no UNIFEG. E-mail: allancre@yahoo.com.br. ** Licenciado em Filosofia (UNIFRAN) e Teologia (Faculdade Dehoniana). Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma) e doutorando em Educação (UFSCar). É coordenador e docente no curso de Filosofia no UNIFEG. E-mail: egberto@libero.it.
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se elabora um percurso histórico da Teologia da Libertação, dando conta de como esta corrente teológica amplia sua influência na contrapartida da prática engajada de amplos setores sociais de influência de movimentos eclesiais, em especial na América Latina. Esta análise histórica procura fundamentar as dinâmicas que permitem sinalizar uma ruptura na hegemonia de um pensar teológico e de uma ação eclesial diversa daquela habituada à cristandade, associada ao poder dominante. Acontecimentos como a Revolução Cubana (1959), que aparece como uma nova possibilidade histórica, o Concílio Vaticano II (1963-1965), que abriu a experiência eclesial católica ao mundo moderno e ao diálogo com as ciências, a presença do pensamento humanista e socialista de Mounier e Maritain e a própria flexibilização do stalinismo na União Soviética, perdendo o caráter dogmático que permeou esta corrente marxista, a presença de religiosos estrangeiros na América Latina, que encontram elementos de convergência prática entre cristianismo e marxismo, também as Conferências Episcopais de Medelín e Puebla formaram o quadro histórico que permitiu o realce de afinidades entre cristianismo e marxismo. Nesse período fecundaram-se várias obras de teólogos de grande expressão, como Gustavo Gutiérrez, Hugo Assmann, Juan Luis Segundo, José Comblin, Leonardo Boff e outros. Por fim, versaremos sobre aspectos divergentes de um encontro entre o cristianismo e o marxismo. Primeiro trataremos de acusações e dogmatismos mútuos, depois do diálogo nos planos teorético e prático. Será discutida também a utilização por parte da teologia (cristianismo) de instrumentos de análise marxista, apontando a contribuição dessa análise para a compreensão da realidade da vida e as formas como podemos atuar sobre esta mediante uma práxis libertadora. Delinearemos a metodologia marxista, a sua importância e seu alcance para a compreensão do real e outros desdobramentos importantes.
1 Um pouco de história: o cristianismo de libertação A Teologia da Libertação não é fruto do acaso nem a obra de talentos individuais que resolveram transformar a teologia latino-americana. Ela é resultado de um processo histórico, numa complexa combinação entre tradição e novas formas de relações sociais. Em geral, os autores estão de 88
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acordo que a Teologia da Libertação é uma teologia nascida da práxis de libertação desenvolvida pelos cristãos na América Latina. Segundo Michael Löwy, a Teologia da Libertação é o corpo teórico que expressa um vasto movimento social dos cristãos que ganha força na virada da década de 1950. O movimento social que originou esta nova teologia foi constituído por uma minoria de militantes cristãos, que acabaram por influenciar todo um importante setor eclesial e político. A este movimento Löwy propõe chamar de cristianismo de libertação, [...] por ser esse um conceito mais amplo que “teologia” ou que “igreja” e incluir tanto a cultura religiosa e a rede social, quanto a fé e a prática. Dizer que se trata de um movimento social não significa necessariamente dizer que ele é um órgão “integrado” e “bem coordenado”, mas apenas que tem, como outros movimentos [...] uma certa capacidade de mobilizar as pessoas ao redor de objetivos comuns (LOWY, 2000, p. 57).
Esse movimento foi possível historicamente pela autonomização de setores do cristianismo que assumiram as lutas populares a partir de uma nova leitura do Evangelho. Ele parte da periferia para o centro da Igreja. São movimentos laicos, e são seus assessores religiosos que trabalham nas periferias da sociedade os iniciadores desse movimento social que vai influenciar também alguns setores episcopais e organismos da Igreja. As condições históricas que permitiram tal autonomização estão na “combinação ou convergência de mudanças internas e externas à Igreja que ocorreram na década de 50” (LOWY, 2000, p. 69). Porém, este movimento recorda também a tradição da Igreja, que é permeada por momentos de maior compromisso com os pobres e por momentos de alianças plenas com as classes dominantes. Na América Latina, sem considerarmos a teologia ameríndia pré-Colombo, desde o início do processo de conquista pelos portugueses e espanhóis, a política e a teologia tiveram forte afinidade. As bulas pontifícias desde 1493 conferem justificação sagrada à conquista da América (DUSSEL, 1999, p. 25). A teologia cristã da missão coincidia com o projeto de colonização para exploração do capitalismo mercantil europeu, e esta será a apresentação do cristianismo à América. Um cristianismo universalista, que, oferecendo a salvação a todos os povos através da Igreja, exigiu a conversão ao modelo de vida Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 87-104, jan./jun. 2012
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burguês em formação, sempre associado a um projeto civilizacional segundo o qual é civilizado e cristão quem adere ao modo de vida burguês capitalista. O encontro entre os povos ameríndios, o branco cristão europeu e o negro escravizado africano, que dará origem aos povos latino-americanos, foi uma catástrofe. Foi Antônio Montesinos, dominicano, quem, por ordem de seu superior Pedro de Córdoba, lançou em 30 de novembro de 1511 o primeiro brado crítico profético de que se tem registro na América. Bartolomeu de Las Casas ouve o grito a favor dos índios, mas somente em 1514 se converte à causa da luta por justiça como prática de caridade cristã e dá início à primeira teologia da libertação na América Latina (DUSSEL, 1999). Para Carlos Josaphat, Juan Ginés de Sepúlveda (o teólogo que justifica a escravidão natural do índio) e Bartolomeu de Las Casas representam dois paradigmas da teologia que chega à América. A pergunta fundamental que a teologia lascasiana faz à teologia da cristandade é: “O outro/ o bárbaro tem dignidade?” (JOSAPHAT, 2000, p. 157). Esta teologia crítica nascente vai além do progressista europeu Vitória, justificando a partir de um pensamento teológico cristão “a guerra de libertação de todos os índios contra os europeus, em sua época e até a nossa” (DUSSEL, 1999, p. 27). Um pequeno panorama histórico nos permite perceber o desenvolvimento então, na América, de uma teologia da cristandade colonial, realizada nas universidades financiadas pelos governos, que é imitadora da segunda escolástica europeia, e por isso duplamente ideológica, justificando tanto as contradições da metrópole como da colônia. Ao nos contrapormos a esta teologia, veremos surgir uma segunda teologia da libertação na América Latina; desta vez, realizada pelos agentes da libertação emancipatória contra Espanha e Portugal, desde meados do século XVIII. Segundo Dussel, torna-se explícita uma nova teologia da libertação, elaborada agora pelos indígenas e pelos criollos “contra seus antigos mestres de cristianismo” (DUSSEL, 1999, p. 34). Da práxis de libertação “[...] nasce, assim, [...], uma reflexão que se expressa fora das cátedras (volta a ser não acadêmica, como nos primeiros tempos da conquista), nos púlpitos, no brado que convoca exércitos, nas assembleias constituintes” (DUSSEL, 1999, p. 36). No mesmo período em que a segunda escolástica perde sua força na Europa, a classe dominante europeia vê-se questionada pelas oligarquias coloniais, que se juntam aos criollos no processo de emancipação. Porém, esta nova teologia crítica “perde sua força rapidamente por esvaziar-se de 90
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criticidade em prol de justificar a nova ordem das coisas” (DUSSEL, 1999, p. 38): a dominação pela oligarquia local. Segundo Enrique Dussel, “a época da primeira emancipação (de 1810 e decênios seguintes) é um canteiro quase inexplorado de teologia da libertação crítica, política, contrária a outra teologia que justificava o prosseguimento da dominação hispano-lusitana” (DUSSEL, 1999, p. 40). No Brasil, este período é marcado por diversos movimentos revolucionários, quase todos com participação ativa dos cristãos e muitas vezes de lideranças do clero local. A teologia que se seguiu coincide com o período histórico de romanização da Igreja Latino-americana. Ainda, com o fim dos regimes de padroado, a Igreja em geral dedicou-se exclusivamente a sua estruturação institucional e “pouco a pouco pela restauração do seu poder na sociedade numa nova cristandade” (COMBLIN, 2002, p. 18). Elabora-se uma teologia neocolonial, que permanece na defensiva. A partir da crise mundial de 1929, acontece relativa transição de uma teologia tradicional para a teologia desenvolvimentista, que incorporou de certo modo o ethos burguês. Depois da crise, o liberalismo burguês local buscará o apoio conservador da Igreja para fundar um consenso social burguês. É tentativa de instaurar uma nova cristandade (DUSSEL, 1999). Conforme Dussel, a fundação da Ação Católica neste período representou uma “‘instituição’ eclesial, com base fundamentalmente na pequena burguesia (que nos ‘populismos’ é clientela essencial da burocracia política do Estado), que ‘recuperou’ a presença política da Igreja na ‘sociedade política’ (o Estado) e na ‘sociedade civil’ (o ‘ambiente’)” (DUSSEL, p. 1999, p. 46). Essa “teologia da Nova Cristandade” representa o novo pacto1 da Igreja com as classes hegemônicas. A Ação Católica2, no entanto, mesmo que pertencesse a um projeto de nova cristandade, representou uma aproximação
1 Neste novo pacto, que privilegia um novo modelo de capitalismo, não deixa de ser anacrônico o modelo pastoral que aplica um discurso urbano num catolicismo implantado num país extremamente rural. 2 A Ação Católica (AC) foi fundada em 1886, chegando em 1931 na Argentina e no Chile; em 1934 no Uruguai; em 1935 na Costa Rica e no Peru, em 1938 na Bolívia e pouco a pouco em todos os países da América Latina. A Juventude Operária Católica (JOC) e a Juventude Universitária Católica (JUC). A AC especializada surgiu na Europa em 1925 (no Brasil em 1947), com o apoio do Papa Pio XI, chamado papa da Ação Católica.
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com os problemas reais do povo cristão. Isto se deu de modo especial com a fundação da Ação Católica especializada, que se aproximou dos movimentos populares e proporcionou uma experiência classista na pastoral da Igreja. Este modelo entrou em crise junto com a crise dos projetos populistas nos países subdesenvolvidos, “que é a tentativa de alcançar um capitalismo nacional autônomo” (DUSSEL, 1999, p. 157). Este é o período em que os Estados Unidos (EUA) impõem sua hegemonia incontestável sobre a América Latina. O tema do desenvolvimento substitui a fracassada teologia da nova cristandade. Os cristãos progressistas que atuavam na democracia cristã começaram a se radicalizar em uma opção revolucionária.
2 A teologia e o cristianismo de libertação Para Michael Löwy (2000), esta radicalização poderia ser simbolicamente situada no contexto de janeiro de 1959, quando Fidel e Che entraram marchando em Havana e João XXIII publicava a primeira convocação para o Concílio Vaticano II. A década de 1950 foi marcada pela industrialização do continente sob hegemonia do capital multinacional, que ampliou as dependências, aprofundou a diferença social, estimulou o êxodo rural e o crescimento urbano (LOWY, 2000). A partir da vitória da revolução cubana abriu-se caminho na América Latina para diversas lutas sociais revolucionárias e sua consequente repressão, que culminou com o processo de militarização sob comando dos EUA. Ainda, entre as mudanças desse período devemos lembrar que o pósguerra produziu diversas novas teologias na Europa3, além de novas formas de cristianismo social, como a dos padres operários (condenados em 1954 por Pio XII). Porém, é o Concílio Vaticano II (1962-1965) que vai tornar a cultura católica muito mais permeável às ciências sociais modernas. De fato, desde a fundação do movimento “Economia e Humanismo” pelo padre Louis Joseph Lebret, já estava presente na América Latina uma
3 Por exemplo, na Alemanha: Bultmann, Moltmann, Metz, Rahner; na França: Calvez, Congar, Lubac, Chenu, Duquoc.
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linha desenvolvimentista que chega a questionar a lógica do capitalismo4. Esta tendência influencia religiosos como Helder Câmara, intelectuais como Alceu Amoroso Lima e Cândido Mendes e os principais quadros da JUC, como Plínio de Arruda Sampaio e Francisco Whictaker. Pe. Lebret colaborou para libertar os católicos do medo do marxismo. Outro passo decisivo para a aproximação dos cristãos com o marxismo foram as obras do socialista personalista Mounier, que chegaram ao Brasil entre 1950 e 1960. Em geral, os discípulos de Maritain se tornaram democratas cristãos, e os discípulos de Mounier se tornaram socialistas (LOWY, 2000, p. 239). Por outro lado, não se pode esquecer que o próprio marxismo mudou após o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em 1956, com a “ruptura do monolitismo stalinista” (LOWY, 2000). Desde então o marxismo tornou-se um “pensamento em movimento” (LOWY, 2000, p. 93), livre da autoridade ideológica de Moscou, e portanto aberto a releituras e livre apropriação de sua metodologia. Ainda, houve a influência de religiosos e padres estrangeiros. O dominicano Thomas Cardonnel, que permaneceu no Brasil entre 1959 e 1961, agitou o meio universitário católico com ideias revolucionárias. Segundo Löwy (2000), os religiosos participaram ativamente do processo de radicalização da cultura cristã por alguns motivos em especial: as ordens religiosas apresentam em seu caráter fundante uma forte dimensão utópica e em geral possuem uma cultura acadêmica superior e maior autonomia em relação à hierarquia eclesial. Nas ordens religiosas, quase sempre, os estrangeiros realizam autorrecrutamento para trabalhar nas realidades pobres da América Latina, e estas contrastam com o desenvolvimento experimentado nos países centrais. Este contraste vai influenciar definitivamente os assessores dos movimentos laicais cristãos. Em 1961, por causa de conflitos com a hierarquia da Igreja, os jucistas decidem fundar a Ação Popular (AP), de inspiração socialista, que em 1964 iria se fusionar com o Partido Comunista do Brasil (PC do B). 4 Em 1948 foi fundada em São Paulo uma filial do movimento Economia e Humanismo – a Sociedade para a Análise Gráfica e Mecanográfica Aplicada aos Complexos Sociais (SAGMACS) (LOWY, 2000, p. 234).
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O primeiro texto que indica o aparecimento de uma reflexão teológica latino-americana surge em 1962, quando Juan Luis Segundo publicou o texto “Función de la Iglesia en la realidade Rioplatense”. Esse texto tem inspiração funcionalista, mas já utiliza as ciências sociais como instrumento analítico da realidade. Para Dussel, “não seria difícil mostrar, pelo método, pelo espírito, a consciência clara de uma teologia latino-americana nascente, [...] que usa as ciências sociais como instrumento” (DUSSEL, 1999, p. 56). Em março de 1964, em Petrópolis, realizou-se a primeira reunião de teólogos latino-americanos, convocada pelo Conselho Episcopal Latinoamericano (Celam), seguida de outros importantes encontros, que prepararam o terreno para a Segunda Conferência Geral do Episcopado Latinoamericano, realizada em Medellín. Esses diversos encontros e seus textos são experimentos das ideias de uma nova teologia da libertação bem como, em especial, de um novo método, que a diferencia das outras teologias de libertação já proclamadas na América Latina. Segundo Joseph Comblin (2000, p. 158), a fase de fundação da Teologia da Libertação desenvolveu-se em três polos: um em torno de Gustavo Gutiérrez, tendo como referência o povo pobre e cristão em busca de sua libertação; outro (2) em torno da obra de Hugo Assmann, com a crítica ao capitalismo, dialogando com o marxismo; por fim (3), em Juan Luis Segundo, trabalhando a libertação da teologia. Na Conferência Episcopal de Medellín (agosto de 1968), a nova Teologia da Libertação de certo modo coincide com o Magistério. É momento único da história e marca a fundação de uma nova Igreja. Ainda em 1968 Rubem Alves publica a obra Towards a Teology of Liberation, escrita em 1967. Em 1969 surge um folheto de Gutiérrez chamado “Hacia una teología de la liberación”, a partir de apontamentos da chamada Conferência de Chimbote5.
5 DUSSEL, Teologia da Libertação, p. 65. É período em que se fala muito do assunto libertação. Fals Borda publica Sociología de la liberación (1968) em Bogotá e Augusto Salazar Bondy publica Cultura de dominação (1968) em Lima, que afirma que uma autêntica filosofia latinoamericana deve ser libertadora. Ainda não podemos deixar de registrar a influência da Escola de Frankfurt na terminologia, seja em Habermas (Teoria e Práxis) ou Marcuse (A dialética da libertação), além de latino-americanos como Paulo Freire e Vieira Pinto (DUSSEL, 1999).
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Ainda em 1969 temos duas publicações importantes na elaboração da nova teologia: Hugo Assmann publica Teologia de la Liberación: una evaluación prospectiva, em que, segundo Dussel, podemos identificar a primeira demarcação terminológica, delimitando as novas categorias: libertação–opressão, dependência, graça-libertadora, práxis de libertação, entre outras. E Porfírio Miranda publica Marx y la Biblia, principal divulgador da nova inspiração no meio protestante (DUSSEL, 1999, p. 65-67). A obra de Gustavo Gutiérrez Teologia de la Liberación, lançada em 1971 (escrita em 1970), marca o fim da fase constitutiva da nova teologia, como se fosse uma obra coletiva de diversos autores em inúmeros encontros continentais. Após 1972 cristaliza-se um período de ataques e mobilização contra a Teologia da Libertação. Há uma grande pressão externa da sociedade política, que se militariza ao extremo, e da sociedade civil, cujos grupos dominantes partem para a ofensiva violenta. Há ainda uma reorganizada pressão interna, em virtude da qual grupos que haviam se desorganizado desde o Concílio, se reorganizam e reorientam o Celam com a eleição em Sucre do grande combatente da Teologia da Libertação Alfonso López Trujillo. Com os regimes militares muitos dos principais teólogos e leigos foram perseguidos e exilados. Milhares de militantes do cristianismo de libertação foram mortos ou desapareceram. Em 1973 Pinochet comanda um sangrento golpe militar no Chile, demonstrando a fragilidade das alternativas socialistas. Comblin afirma que: “Para muitos, o golpe de 11 de setembro de 1973, no Chile, foi o fim das utopias” (2000, p. 181). Mesmo assim, esse é o período de movimentos como “Cristãos para o Socialismo”, que em 1972 foi fundado com representações de quase todos os países. É também o momento em que se estabelece um diálogo mundial com teólogos do terceiro mundo, com importantes encontros entre 1974 e 1979. Também surge uma segunda geração de grandes teólogos e militantes. Porém, a teologia sob os regimes militares e a perseguição passava para a defensiva. “Em lugar de conquista da sociedade socialista, falava-se em resistência...” (COMBLIN, 2000, p. 182). Em 1976 inicia-se a “batalha de Puebla”. Todos os teólogos da libertação são excluídos do processo da nova Conferência Episcopal. Porém, a resistência foi forte, e a linha da Teologia da Libertação venceu em Puebla. “Esta foi uma época de luta, pois ainda se podia lutar” (COMBLIN, 2000, p. 184). Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 87-104, jan./jun. 2012
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Ainda em 1979, dois eventos marcam as expectativas da Teologia da Libertação: a revolução sandinista na Nicarágua e o pontificado de João Paulo II. Enquanto o primeiro suscitava um fecundo debate, o segundo logo demonstrou a que viria. Foram diversas tentativas de condenar a Teologia da Libertação em âmbito continental. Porém acabou por ser instrução romana (em 1984) e lançou mundialmente o debate. A partir de 1991 impõe-se o pensamento único no Vaticano. Exterminam-se todas as forças que lembrem Medellín. Impõe-se um novo episcopado. Sobem os movimentos integristas, como Opus Dei, Legionários de Cristo, Sodalitium. É um tempo da chamada restauração, que deseja eliminar qualquer resquício do Concílio Vaticano II. Não é coincidência que seja esta mesma a fase do neoliberalismo, uma “dominação econômica e cultural muito mais profunda e durável” (COMBLIN, 2000, p. 182) que a militar. O neoliberalismo ganha força histórica com a eleição de Thatcher na Inglaterra (1979) e de Reagan nos EUA (1980), mas o sistema se consolidou a partir de 1990, com a segunda geração de governos neoliberais no mundo, que espalharam o neoliberalismo na América Latina. A primeira geração de teólogos da libertação conheceu um mundo fragmentado, numa complexa geopolítica fortemente marcada por blocos de influência política e econômica e relativa autonomia cultural dos países periféricos em relação aos centrais. A periferia sempre esteve vinculada ao centro de influência política a que estava associada. Porém, a década de 1990 foi o período de maior defensiva da crítica ao sistema capitalista nos últimos duzentos anos. Para a teologia latinoamericana, tornou-se época de revisões, buscando destacar seus aspectos essenciais, como a opção pelos pobres (COMBLIN, 2000).
3 Linhas de tensão entre marxismo e cristianismo Como delineamos acima, uma série de condições históricas facultaram um deslocamento da prática de militantes eclesiais cristãos para uma convergência com militantes políticos marxistas. Essa prática social permitiu, incentivou e fomentou uma teologia crítica, na linha profética, não totalmente nova, na medida em que é possível descrevermos momentos diversos de convergência entre o pensar teológico cristão e as lutas de libertação do povo na América Latina. 96
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Claro que estas possibilidades são sempre marcadas por tensão. A aproximação entre o cristianismo e o marxismo foi marcada por dificuldades de aceitação tanto por parte dos cristãos como dos marxistas. Primeiramente em virtude do dogmatismo que permeia a tradição teológica e do que perpassa a tradição marxista, em especial a linha autodenominada marxismoleninista, estabelecido na antiga União Soviética, que constitui o chamado marxismo stalinista. De um lado, o cristianismo é conhecido tradicionalmente por seu atrelamento ao poder, legitimando a classe dominante e elaborando uma filosofia e teologia de caráter escolástico, totalmente enrijecida, dogmatizada, pelos séculos (CASTILLO, 1984), que os marxistas entendem como uma forma de idealismo, distante da vida real do povo. Por outro lado, o marxismo stalinista seguiu passos semelhantes ao cristianismo, com rigorismo e dogmatismo, tornando-se totalizante e reducionista. Outro fator de dificuldade corresponde às acusações e condenações recíprocas, proclamadas tanto pelo lado do cristianismo como do marxismo, que perdurou com ênfase até meados do século XX. Por parte do cristianismo, sobretudo na voz da hierarquia da Igreja, a condenação proposta pelo Papa Pio XI, de que “o comunismo é intrinsecamente mal” (CASTILLO apud Pio XI). Através do simbolismo da figura do Papa, a hierarquia católica majoritária rejeita o marxismo, afirmando que no seu cerne ele é ateu, contrário a qualquer forma de religião e que, portanto, exclui a instituição da Igreja. Ainda, destaca-se outro fator não menos importante, a crítica geral do marxismo à propriedade privada, entendida como princípio central de defesa da doutrina social elaborada pelo magistério pontifício durante o final do século XIX. O marxismo vulgar, por sua vez, vê o cristianismo como doutrina alienante, “uma forma de consciência ilusória e paralisante” (CASTILLO, 1984, p. 782). O cristianismo manifestaria no seu bojo o idealismo latente, levando as pessoas ao conformismo com a própria miséria, na mais deplorável forma de submissão às classes dominantes. Na prática, todavia, surgiu aproximação entre cristãos e marxistas. A relativização das divergências se forja nas ações concretas de libertação do povo, em virtude das quais cristãos abertos e marxistas heterodoxos superam ou ao menos amenizam seus aspectos dogmáticos, possibilitando a muitos cristãos adotar uma concepção socialista de cunho marxista, conciliando-a com a fé cristã. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 87-104, jan./jun. 2012
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A presença do cristianismo enraizado nas estruturas sociais demonstrava “uma grandeza social e cultural importante, nas classes populares, o que constituía um desafio para a prática dos revolucionários marxistas” (CASTILLO, 1984, p. 782). A busca do diálogo e aproximação entre cristãos e marxistas torna-se uma necessidade concreta de ambas as perspectivas. O Concílio Vaticano II abriu uma nova possibilidade com relação às ciências sociais, o que tornou viável a aproximação e o diálogo dos cristãos com a metodologia marxista bem como a aceitação dos conceitos gerais da filosofia marxista. Esta aproximação não se deu de forma ingênua. Ela levou em conta a oportunidade de sugerir à sociedade que busca a libertação, um nível de sistematização e práxis capazes de realizar tal tarefa. É de grande valia apresentar uma questão intrigante: como é que o instrumento de análise marxista foi apropriado pela teologia cristã? Podemos afirmar que se pode assumir a análise marxista como compreensão da realidade social, numa busca de libertação (CAVAZZUTI, 1984 p. 760). Algumas correntes procuraram identificar na concepção social de mundo marxista elementos que possam proporcionar uma compreensão mais acurada na interpretação da realidade, sem, porém, cair numa visão ingênua de que este seja o último e único sistema de análise da sociedade. Uma contribuição da teologia que se está fazendo na América Latina consiste em apelar para a mediação das ciências sociais, a fim de tentar responder aos grandes desafios teológicos que se colocam para as nossas igrejas. Servir-se de conceitos marxistas, desenvolver, inclusive, um pensamento dialético, não desvirtua a teologia de seu caráter cristão. Essa postura teológica parte dos fatos tais como se produzem. Não tenta submetê-los a um “dever ser” abstrato, irreal, ideal. [...]. Para refletir sobre ela, temos que partir do que ela é, através de suas múltiplas manifestações (SANTA ANA, 1984, p. 741-742).
Desta forma, deve-se olhar o marxismo de maneira séria, fazer sua análise com critérios epistemológicos contundentes e buscar nessa ciência critérios para a análise social. Não se trata de separar a metodologia marxista de sua ideologia, mas realizar um sério diálogo com toda a visão social de mundo na perspectiva dos marxistas (SUNG). É bom recordar que fazer ciência, elaborar teorias não é dogmatismo; as conquistas científicas fluem, aperfeiçoam-se; por isso não podem ser fechadas para novas possibilidades de análise. 98
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Este diálogo leva a enfrentar alguns temas controversos, que não podem ser ignorados. Uma questão a ser ressaltada é o materialismo marxista. O princípio de sua acepção da realidade ou o fio condutor das elaborações de Marx se fundamenta no materialismo histórico, como se pode ver em sua obra A ideologia alemã: A produção das ideias, das representações da consciência está, a princípio, direta e intimamente ligada à atividade material e ao comércio material dos homens; ela é a linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o comércio intelectual dos homens aparecem aqui ainda como a emanação direta de seu comportamento moral. O mesmo acontece com a produção intelectual tal como se apresenta na linguagem da política, na das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de todo o povo. [...]. A consciência nunca pode ser mais que o ser consciente; e o ser dos homens é o seu processo de vida real. [...]. Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência. Na primeira forma de considerar as coisas, partimos da consciência como sendo o indivíduo vivo; na segunda, que corresponde à vida real, partimos dos próprios indivíduos reais e vivos, e consideramos a consciência unicamente como a sua consciência. [...]. É aí que termina a especulação, é na vida real que começa portanto a ciência real, positiva, a análise da atividade prática, do processo, do desenvolvimento prático dos homens (MARX, 2001, p. 18-20).
A vida concreta é o fator que gera a análise das formas de consciência. O pensador Leonardo Boff defende que o materialismo histórico deve ser visto como uma prática científica, desta forma pode-se ter uma visão bem mais positiva, pois se trata de “um método de análise sócio-histórica” (BOFF, 1998, p. 283). Enquanto teoria, ela se propõe a explicitar a realidade, mostrar como diversas formas de pensamento cristão, desde os seus primórdios, se apropriaram de elementos filosóficos para embasar aquilo que acreditavam e acreditam ser a verdade, seja no Agostinho de Hipona, que utiliza categorias da filosofia grega, ou Tomás de Aquino, que introduz elementos de Aristóteles, assumindo a base de sua tradição filosófica. Neste sentido, para Boff, quando o cristianismo procura apropriar-se das análises marxistas, afirma sua tradição de compromisso profético e continua o diálogo com a filosofia secular em seu instrumental teórico de análise. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 87-104, jan./jun. 2012
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Nos meios cristãos muitos afirmam que Marx era um ateu convicto. Ora, Platão e Aristóteles eram pagãos, nem por isso a teologia e o pensamento cristão em geral perderam suas características no exercício deste diálogo. No fragmento acima da obra A ideologia alemã, Marx parte do pressuposto do real, isto é, a matéria, o realismo é que determina toda e qualquer forma de relações. A análise marxista origina-se da práxis, do cotidiano; no entanto, não é uma idealização da própria vida. Isto para entendermos que a vida humana é real; são pessoas reais que transformam a sua realidade material, a natureza e criam as suas condições materiais de vida, as existentes e as que serão transformadas. Justamente no aspecto da práxis é que o marxismo inova e Marx aproxima-se estruturalmente do cristianismo enquanto forma de pensar que se propõe a modificar as estruturas sociais e a forma de viver do ser humano concreto. Também a práxis dos primeiros cristãos ultrapassa a mera idealização. Diz Castillo: Nos documentos do Magistério se fala de cooperação em torno de objetos concretos (luta pela paz, luta contra as estruturas injustas etc.) e em movimentos sociais (nos quais os marxistas tomam parte). [...]. Os documentos do Magistério, ao mesmo tempo em que abrem espaço para a cooperação, mostram certa cautela e indicam os “perigos” para os cristãos, perigos procedentes do caráter ateísta e materialista das doutrinas marxistas. A realidade na AL foi menos cautelosa e ao mesmo tempo mais complexa do que os documentos da Igreja. [...]. Além da cooperação em torno de objetivos concretos, o que talvez tenha mais caracterizado a situação latino-americana foi o engajamento de cristãos em movimentos e partidos com matriz ideológica marxista. (CASTILLO, 1984, p. 786).
É o desejo mútuo de transformação da realidade política e social, embasada por um potencial utópico radical, que alimenta as possibilidades de cooperação entre marxistas e cristãos tanto no plano das formulações teóricas, como no da práxis. Isto não significa uma tentativa tranquila e “romântica”, mas sim, por vezes, conflituosa. A superação de uma compreensão limitada e reducionista do materialismo, como foi o entendimento do marxismo-leninismo soviético, permite que este tema seja tratado numa perspectiva ampla de mútua fecundação 100
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Interfaces e tensões históricas entre cristianismo e marxismo: um recorte latino-americano.
entre as diversas formas de ideologias sociais e as relações econômicas de produção da vida material, muito próximas da tradição cristã. Outra questão bastante discutida é o tema da luta de classes, que desperta controvérsias com o cristianismo. Alguns setores deste afirmam que a teoria marxista pode gerar violência contrária a concepção cristã. De acordo com Cavazzuti (1984), a classe social é entendida como função social, em que cada classe desempenha o seu papel social, para que a sociedade funcione de uma maneira organizada. Porém, Marx entende “a classe social a partir das relações sociais de produção, que, por sua vez, são determinadas pela propriedade ou não propriedade dos meios de produção” (CAVAZZUTI, 1984, p. 761). As diferenças das classes sociais se dão, historicamente, pelos meios de produção, devido à propriedade, isto é, em possuí-la ou não, como os meios de produção. A propriedade dos meios de produção sob o domínio de uma única classe social significa subentender a compra do trabalho de outrem, que estabelece a riqueza de uns e a pobreza de outros, que são a maioria da população. Aqui podemos compreender o antagonismo existente nas classes sociais. Isto vale dizer que as classes se contrapõem em seus interesses. Assim, a classe dominante tende a defender seus interesses na manutenção do poder. Por sua vez, a classe dominada busca seus interesses em ter uma vida digna. Neste sentido, Cavazzuti conclui que o “antagonismo tem um caráter estrutural e não pode ser confundido com uma inimizade pessoal. Esta última, se existir, será uma consequência (1984, p. 761). Neste sentido, a teoria marxista constata a existência de um conflito estrutural e conceitual como “luta de classes”. Na mesma lógica, Cavazzuti busca fundamentação nos escritos oficias da Igreja, onde os papas Paulo VI e João Paulo II admitem a existência das classes sociais. Aliás, utilizando análises marxistas, afirmam que existe o mundo do capital, dos que detém meios de produção, e os que são privados desses meios, os trabalhadores, que tem que vender a sua força de trabalho. Neste sentido é possível afirmarmos que as classes sociais são uma realidade; portanto, seus conflitos são inevitáveis, dentro deste modo de organização social, tanto para o marxismo como para o cristianismo. Como as diferenças ferem também o cristianismo, nas suas origens e essência, é papel dos cristãos buscarem meios para sanar essas diferenças. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 87-104, jan./jun. 2012
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A superação do conflito estrutural que estabelece a luta de classes supõe a busca de meios legítimos e éticos para colocar-se contra as injustiças. As imposições das classes dominantes, que são as beneficiadas pelas diferenças de classes, são muitas vezes aparadas por um sistema político que não defende de modo democrático os interesses da maioria. Assim, se os cristãos colocam-se realmente contra a luta de classes, devem manifestar-se contra um sistema político que a legitima e institucionaliza. Desse modo, a questão da luta de classes não se reduz pura e simplesmente à promoção de violência. Está associada à lógica de funcionamento social em vigor. Se é verdade, como afirmam setores cristãos, que algumas linhas do marxismo defendem o aprofundamento da violência social como estratégia de superação do capitalismo, há outras que as rejeitam. Também é verdadeiro que, se houve práticas de violência dentro do cristianismo, como “nos tempos da Inquisição, Contra-Reforma, Reconquista, conquista da América, o fascismo italiano ou a guerra do Vietnã...[,] sempre houve pessoas que se opuseram como nós, a que tamanhas monstruosidades históricas fossem achacadas à essência do Cristianismo” (MADURO,1984, p. 772). Portanto, podemos perceber que diversas acusações mútuas entre setores cristãos e marxistas não estão condicionadas às estruturas fundamentais das duas formas de compreensão da realidade. Do mesmo modo em que historicamente cada uma afastou-se de sua intuição original e que, ainda nas dinâmicas da história, estiveram convergentes em momentos importantes na defesa da dignidade humana.
Considerações finais Nestas páginas não se teve a pretensão de esgotar o assunto a respeito do encontro entre marxismo e cristianismo, mesmo porque a amplitude de toda elaboração marxista, devemos admitir, é profunda e complexa; por sua vez, o cristianismo, com sua elaboração teológica, tem um longo percurso, seja histórico, seja o inserido em cada época em sua realidade. De uma forma um tanto quanto velada no texto acima admite-se que o marxismo desperta no pensamento cristão a percepção das contradições deste no que tange a sua vinculação ao poder dominante, recordando as suas origens e compromisso fundante com a dignidade de todos os seres humanos, em especial dos pobres. Esta fecundação por um marxismo que 102
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Interfaces e tensões históricas entre cristianismo e marxismo: um recorte latino-americano.
abandonou o dogmatismo foi possível no diálogo que se concretizou de modo particular na América Latina. Nunca foi fácil nem simples este encontro. Sabemos que toda e qualquer convivência tem seus desencontros, mas as diversas experiências latino-americanas (não estudadas aqui) demonstram a riqueza e o potencial deste diálogo. Entendemos a fragilidade da ligação entre o pensamento cristão e setores do marxismo, mas, ao mesmo tempo, pode-se vislumbrar uma afinidade profunda não apenas na análise teórica, mas principalmente, na práxis.
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Interfaces and historical tensions between Christianity and Marxism: some Latin-American news. Abstract This work aims to demonstrate a possible dialogue and encounter between Christianity, reflected in the development and theological systematization and Marxism in their theoretical aspects and, above all practical. First draw a historical foundation of liberation theology, especially in Latin America. Within this historical analysis it sets up split between ways of interpreting reality from the perspective of the defense of human dignity. We identify the scenario that allows the emergence of a radically theological thought committed to the liberation of the poor and in dialogue with the Marxist. Finally, we show that there are polemics and mutual accusations between Christian and Marxist sectors that must be faced and understood in light of his theoretical elaborations, but especially illuminated by their convergence in praxis. Keywords: Latin America Theology; marxism; christianity liberation; praxis.
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A TRANSCENDÊNCIA E A IMANÊNCIA COMO LUGAR DA INSTAURAÇÃO DE VALORES NIILISTAS Celso Luís Welter*
Resumo Para Nietzsche, a metafísica teria engendrado valores absolutos a partir do suprassensível e os teria posto sobre o sensível, tentando dar uma meta e um sentido à existência humana. A desvalorização desses valores ideais, que continham as orientações e as metas para a vida, fundados em um transcendente, tendo como referência o termo Deus, teria sua origem na impossibilidade de serem realizados no mundo sensível justamente por serem ideais. Desvalorizado o mundo suprassensível, sobra o mundo sensível, e é nele que Nietzsche constitui a sua metafísica da vontade de poder. Para Heidegger, a história da metafísica ocidental como história do esquecimento do ser tem sua origem na instauração de valores absolutos a partir de um mundo suprassensível, na desvalorização desses valores e na transvaloração como instauração dos valores em um princípio sensível, isto é, na imanência do sujeito moderno, tendo como consequência o niilismo. Palavras-chave: Heidegger; Nietzsche; metafísica; valores; niilismo.
Introdução O artigo tem por escopo apresentar, em primeiro lugar, a interpretação feita por Heidegger da crítica de Nietzsche à metafísica clássica como instauradora de valores absolutos em um mundo suprassensível e, em segundo lugar, mostrar que Nietzsche, interpretando a história da metafísica como instituidora de valores, cai no influxo da metafísica moderna da subjetividade ao propor a transvaloração dos valores em um princípio sensível. Para Nietzsche, a metafísica clássica teria engendrado valores absolutos a partir do suprassensível e os teria posto sobre o sensível, tentando dar uma meta e um sentido à existência humana. A desvalorização desses valores ideais, que continham * Doutorando em filosofia política pela Universidade Católica de Santa Fé (UCSF); Professor do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix. E-mail Celso.welter@ izabelahendrix.edu.br.
Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 105-117, jan./jun. 2012
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as orientações e as metas para a vida, fundados em um transcendente, tendo como referência o termo Deus, teria sua origem na impossibilidade de serem realizados no mundo sensível justamente por serem ideais. Desvalorizado o mundo suprassensível, sobra o mundo sensível, e é nele que Nietzsche constitui a sua metafísica da vontade de poder. A transvaloração dos valores não significa constituir valores novos e os colocar no lugar dos antigos, mas instaurar valores através da inversão da metafísica a partir de um novo princípio, o sensível. Os valores não mais serão gestados em um transcendente, mas na própria imanência da subjetividade, que tem por essência a vontade de poder. Para Heidegger, a história da metafísica ocidental como história do esquecimento do ser tem sua origem na instauração de valores absolutos a partir de um mundo suprassensível, na desvalorização desses valores e na transvaloração como instauração dos valores em um princípio sensível, isto é, na imanência do sujeito moderno, tendo como consequência o niilismo. Para ele, a única saída seria voltar ao que é originário e recolocar a questão do ser, que é o único que pode ser fundamento.
1 A crítica à tradição metafísica como instauradora de valores no suprassensível Segundo Heidegger, Nietzsche teria pensado a história da filosofia clássica sob o signo do niilismo, resumindo-a, no célebre parágrafo 125 de A gaia ciência, a uma frase lapidar: “Deus morreu!” (HEIDEGGER, 2002). O termo Deus designa o mundo suprassensível, é o nome para o âmbito das ideias e ideais e, também, dos valores absolutos que deles derivam. É, em outras palavras, o mundo verdadeiro em oposição ao mundo sensível, que é o mundo das aparências1. Nessa perspectiva, a metafísica teria fundado a verdade e, principalmente, as metas que definem e orientam o ser humano em suas operações e ações no mundo, a partir de critérios externos a ele. Dessa forma, a vida estaria sendo determinada por valores que são postos a partir 1 Essa separação entre o mundo das ideias e o mundo das aparências, presente desde os primórdios da reflexão filosófica entendida como metafísica, continua ativa no pensamento moderno em Kant, por exemplo. Para ele, o mundo sensível designa o mundo físico, que pode ser conhecido através de categorias a priori presentes na sensibilidade e no entendimento, e o mundo suprassensível, que designa, por seu lado, o metafísico que somente pode ser pensado, mas que contém as diretrizes da vida humana.
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A transcendência e a imanência como lugar da instauração de valores niilistas
de valorações exteriores com base na constatação da existência de um mundo transcendente e verdadeiro oposto ao mundo da vida e de suas vicissitudes. Nas palavras de Heidegger: “O nome Deus, pensado essencialmente, designa o mundo suprassensível dos ideais, que contêm as metas para essa vida, existentes acima da vida terrena, e deste modo a determinam de cima para baixo e, assim, de certo modo, de fora para dentro” (HEIDEGGER, 2002, p. 254). O anúncio da morte de Deus2 significaria que os valores oriundos do mundo suprassensível, que orientavam a vida, perderam seu poder de atuação e se tornaram nulos. Essa consequência nefasta da história da filosofia surge com vigor em uma nota de 1887 (A Vontade de Poder. A. 2), nos seguintes termos: “O que significa niilismo? Que os valores supremos se desvalorizam. Falta a meta; falta a resposta ao porquê?” (Citado por HEIDEGGER, 2002, p. 247). Nessa perspectiva o niilismo é tratado como um processo histórico que sobrevém à cultura e diz respeito à instituição de valores absolutos e à sua desvalorização. Esses valores fundados no mundo suprassensível que sustentavam e orientavam o ente em sua totalidade, em particular, a vida humana, perderam seu poder de atuação e de sustentação. Surge a pergunta: para que a existência dos valores supremos se não podem ser realizados facticamente? Se Deus, o fundamento suprassensível da existência, morreu, então vagamos no vazio, sem ponto de referência. Perdemos o sentido, a bússola que conduzia a nossa vida. Os valores absolutos que nos plasmavam e mantinham na existência, agora não mais existem. O anúncio da morte de Deus significa que “o mundo suprassensível está sem força atuante. Ele não irradia nenhuma vida” (HEIDEGGER, 2002, p. 251). Essa desvalorização dos valores apoiados no suprassensível é, segundo Heidegger, o destino da metafísica tradicional como instituidora de valores. Ela, na tentativa de dar um sentido e uma meta à existência humana, colocou-os para além da própria vida para mantê-la em certos limites e condições, impedindo que ficasse vagando no nada, no perene vir-a-ser do movimento do mundo. “A metafísica é o espaço histórico no qual se torna
2 Como vimos, não é uma negação de um Deus, ou, como se poderia imaginar, e, de fato, se imagina ao ouvir o anúncio da morte de Deus, que se trataria do fim do cristianismo, para júbilo de muitos e desespero de outros. Não, trata-se do que aconteceu e do que ainda está por acontecer com o mundo suprassensível e a sua relação com a essência do homem, e isso, para desespero geral.
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destino que o mundo suprassensível, as ideias, Deus, a lei ética, a autoridade da razão, o progresso, a felicidade da maioria, a cultura, a civilização percam a sua força edificadora e se tornem nulos” (HEIDEGGER, 2002, p. 255). Portanto, a metafísica, ao tentar dar um sentido e uma orientação à existência humana e um porto seguro ao movimento do mundo, lançou mão de um mundo suprassensível, enredando-se, segundo Heidegger, já no princípio, em um nada. Dessa forma, a metafísica, por princípio, já é niilista. Aliás, toda e qualquer tentativa de valoração, tanto negativa como positiva, repousa em um sem sentido, pois, do contrário, não teria que valorar, mas, somente, mostrar o valor. A imposição de valores, quaisquer que sejam eles, mostra fenomenologicamente a inexistência desses valores. Valorar, nesse sentido, não significa encontrar valores que estão dados, mas sim obriga a aceitar valores postos de fora.
2 Recolocação nietzscheana dos valores na imanência da subjetividade Segundo Heidegger, ao se inscrever na continuação da história da metafísica ocidental, Nietzsche a interpreta como instituidora de valores. Ela, desde o seu início até o seu ocaso, põe valores. A primeira valoração da história da metafísica parte de um princípio além-mundo, isto é, seus fundamentos estão fixados em um mundo diferente do sensível: no suprassensível. A desvalorização desses valores parte, essencialmente, da impossibilidade de sua efetivação no mundo da vida. Tais valores são, para Nietzsche, gestados a partir de um princípio estranho a ela e, devido a isso, não praticáveis e aplicáveis ao mundo da vida.3 3 Nietzsche avalia o niilismo como um evento tanto negativo bem como positivo. A valorização negativa trata da simples desvalorização dos valores supremos fundados no alémmundo e que até o momento sustentavam o ente em sua totalidade. A positiva parte desse primeiro momento negativo e aponta para uma nova valoração, nas palavras de Nietzsche, uma transvaloração de todos os valores válidos até o momento. Dentro do niilismo positivo, Nietzsche aponta ainda duas posições, ou melhor, duas formas de niilismo positivo, uma que nomeia de niilismo incompleto e a outra de niilismo completo ou clássico. O niilismo incompleto substitui os valores antigos, sem nenhum poder de atuação sobre a vida humana, por outros, porém os põe no velho lugar, isto é, estando vazio o lugar ocupado pelos antigos valores, este é mantido e preenchido por novos valores: música de Wagner, socialismo etc. O niilismo completo ou clássico busca um novo lugar a partir do qual elabora novos valores. No caso de Nietzsche, os novos valores devem brotar da própria afirmação da vida.
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Nietzsche dá o diagnóstico da crise dos valores. Ele não cria a crise. Ela é própria do modo de operar valorativo da metafísica. Também, aponta uma saída, inscrevendo-se, por sua vez, na história da metafísica como história da instituição, da desvalorização e da nova instauração de valores, ao propor uma transvaloração (Umweltung) de todos eles. Propõe a inversão dos polos metafísicos. Não mais instaurar os valores a partir do mundo suprassensível, mas a partir da imanência da própria vida. Portanto, valora deixando de lado a transcendência e se embrenha na imanência da subjetividade moderna.4 A metafísica de Nietzsche, segundo Heidegger, compreende cinco etapas centrais: niilismo, transvaloração de todos os valores, vontade de poder, eterno retorno do mesmo e o super-homem. Para melhor compreensão, é possível agrupá-los em dois momentos centrais: um que trata da constatação de que a filosofia entendida como metafísica engendrou historicamente valores a partir de um mundo suprassensível e que agora estão caducando por toda parte, nomeado, simplesmente, de niilismo, e o outro que, a partir dessa primeira constatação, engendra outros valores a partir de novas bases e princípios, que denominaremos de niilismo clássico ou niilismo acabado. Ao constatar o niilismo como movimento histórico, Nietzsche o resume no anúncio da morte de Deus. É ele, Deus, que agrega todos os valores engendrados pela metafísica a si. O termo Deus representa a principal forma de referência ao mundo suprassensível. É ele que agrega a si todos os valores fundados em algo diverso da própria vida, mas que a ordena e a ela dá um sentido. O significado da morte de Deus é o anúncio de que os valores suprassensíveis perderam seu poder de atuação e não mais orientam as pessoas em seu pensar e agir. O ‘Deus cristão’ é ao mesmo tempo a representação principal para se referir ao ‘suprassensível’ em geral e a suas diferentes interpretações, aos ‘ideais’ e ‘normas’, aos ‘princípios’ e ‘regras’, aos ‘fins’ e ‘valores’ que foram erigidos ‘sobre’
4 “Uma história na qual se trata de valores, da fixação de valores, da desvalorização de valores, da transmutação de valores, da nova instauração de valores e, finalmente, de um sentido próprio, de colocar o princípio de toda a instauração de valores que avaliem de outro modo” (HEIDEGGER, 2002, p. 262).
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o ente para dar a ele em sua totalidade uma finalidade, uma ordem e – como se disse de forma breve – ‘um sentido’. O niilismo é esse processo histórico pelo qual o domínio do ‘suprassensível’ caduca e se torna nulo, de forma que o ente mesmo perde seu valor e seu sentido5 (HEIDEGGER, 1961, p. 32).
O niilismo entendido nestes termos é a verdade segundo a qual os valores suprassensíveis que sustentavam o homem através de metas e orientações que davam sentido à sua vida, estão se corrompendo e em breve acabarão. A descoberta, segundo Nietzsche, de que todos os valores postos em um transcendente estão fundados no nada faz com que todos os valores se desvaneçam e para sempre desapareçam. Para ele, com o fim do mundo suprassensível permanece, simplesmente, o mundo, e este impulsiona uma nova colocação de valores, o que caracteriza o segundo momento – o niilismo clássico.6 Na perspectiva nietzschiana, a transvaloração não significa, simplesmente, instauração de novos valores no lugar dos antigos, que não têm mais poder de orientar e dar sentido ao homem, mas instauração de valores a partir de um novo princípio. Portanto, não só os valores fundados no suprassensível caducaram, mas o próprio lugar a partir do qual esses valores eram gestados. Insistir nesse lugar supramundano para recolocar valores é insistir em um erro já há muito explícito e conhecido por todos. A nova posição de valores, não partindo mais do suprassensível, deve encontrar um novo princípio que seja radicalmente diverso do anterior, isto é, que não seja mais determinado a partir do supramundano e posto sobre o ente. O novo princípio deve ser extraído do próprio ente. “Mas se esta interpretação do ente em sua totalidade não tem que ter lugar a partir de um suprassensível posto de antemão ‘sobre’ ele, os novos valores e a
5 “Der ‘Christliche Gott’ ist zugleich die Leitforstellung für das ‘Übersinnliche’überhaupt und seine verschidenen Deutungen, für die ‘Ideale’und ‘Normen’, für die ‘Prinzipien’und ‘Regeln’, für die ‘Ziele’ und ‘Werte’, die ‘über’ dem Seienden aufgerichtet sin, um dem Seienden im Ganzen einen Zweck, eine Ordnung und – wie man kurz sagt – einen ‘Sinn zu geben.’ Nihilismus ist jener geschichtliche Vorgang, durch den das ‘Übersinnliche’ in seiner Herrschaft hinfällig und nichtig wird, so dass das Seiende sebst seinen Wert und Sinn verliert.” 6 Hannah Arendt discorda dessa posição. Para ela, o fim da transcendência significa, também, o fim da imanência. Dessa forma, a filosofia de Nietzsche visaria unicamente decretar o fim de uma forma de pensar (ARENT, 2002).
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norma que corresponde a eles só podem ser extraídos do ente mesmo”7 (HEIDEGGER, 1961, p. 36). O caráter fundamental do ente em sua totalidade é denominado por Nietzsche de Vontade de Poder. Agora, é sobre a essência do ente, tomado em sua totalidade e compreendida como vontade de poder, que recai a laboriosa tarefa de transvalorar todos os valores. É a vontade de poder que valora em vista de mais poder, o que significa, em primeiro lugar, sustentar a vida e, em segundo, ampliá-la, amplificá-la, aumentá-la no sentido de ter mais plenitude e força. O sentido desse novo princípio aponta, generalizando, para o aumento e a manutenção da existência não mais compreendida a partir do supramundano, mas imersa no perene devir da existência factual8 (HEIDEGGER, 2002, p. 263). Portanto, os novos valores e sua transformação estão relacionados diretamente com o crescimento de poder daquele que instaura os valores – da vontade de poder. Esse caráter, há pouco nomeado, próprio da vida inserida no mundo ou ser-mundo, inscrita na metafísica como vir-a-ser, como eterna elaboração e reelaboração de tudo o que é vida, recebe, em Nietzsche, o título de Eterno Retorno do Mesmo. Esse conceito se entrelaça com o de vontade de poder e com todo o desenvolvimento precedente, visto que a manutenção e o aumento de forças em um mundo em pleno devir faz com que a vontade de poder se volte sempre sobre si mesma na tentativa de manutençãoaumento de forças. Essa tarefa de instaurar novos valores sobre outras bases não pode ser levada a cabo por qualquer um. Dessa constatação surge o último termo que é essencial na demonstração e compreensão da metafísica dos valores de Nietzsche, o super-homem. Posto que Deus morreu! o que deve ser agora a medida e o centro de tudo senão o próprio homem? Mas não qualquer homem! Deve ser um homem capaz de avocar a si a tarefa de transvalorar todos os valores e assim estender seus domínios e seu poder sobre todo o globo terrestre. Essa espécie muito rara é descrita por Nietzsche, em seu
7 “Soll diese Auslegung des Seienden im Ganzen aber nicht von einem Zuvor ‘über’ ihm angesetzten Übersinnlichen aus erfolgen, dann Können di neuen Werte und ihre Massgabe nuar aus dem Seienden selbst geschöpft werden.” 8 A manutenção e o aumento da vida pode significar, em Nietzsche, perdê-la.
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Zaratustra, como o homem superior – Deus teve o seu ocaso e agora todos querem que o super-homem surja e instaure os novos valores. “Por isso se falou em Assim falou Zaratustra, IV, ‘O homem superior’, 2: ‘Para frente! Para cima! Vocês homens superiores! Só agora a montanha parirá o futuro do homem. Deus morreu: agora queremos que viva o super-homem”9 (HEIDEGGER, 1961, p. 39).
3 Necessidade de recolocação da questão fundamental da filosofia Para Heidegger, o erro de Nietzsche se constrói ao não ver e não tematizar o modelo proposto pela ontologia tradicional para conceber o ser do ente, recaindo ele próprio na história do esquecimento do ser, lançando mão, ele próprio, do modelo metafísico em seu pensar filosófico. Ele concebe o ser do ente de forma metafísica ao partir do ente intramundano. Influxionado pela filosofia moderna do sujeito, não concebe o ser como um ente transcendente ou suprassensível, mas como um ente imanente – a vontade de poder –, que é a generalização da característica básica do ente intramundano. No entanto, essa imanentização substitutiva da transcendência continua tendo como modelo o ente simplesmente dado, que, ao invés de resolver a questão niilista, aprofunda-a mais ainda. O bom dessa perspectiva de Nietzsche é que ele explicita categoricamente o modelo funcional a partir do qual a metafísica opera. Na perspectiva de Heidegger, a metafísica, ao conceber o ser, movese, desde as suas origens até os dias atuais, a partir do modelo do ente intramundano ou natural, isto é, constitui a ideia de ser a partir do modelo do ente presente no mundo, do ente simplesmente dado (Vorhandensein)10
9 “Daher heisst es in ‘ Also Sprach Zaratusta’ IV. Teil, ‘Vom höheren Menschen’, Abs. 2 ‘Wohlan! Wohlauf! Ihr höheren Menschen! Nun erst Kreisst der berg der Menschen-Zukunft. Gott Starb: nun wollen wir, – dass der übermensch lebe’.” 10 „Die griechische Ontologie und ihre Geschichte, die durch mannigfache Filiationen und Verbiegungen hindurch noch heute die Begrifflichkeit der Philosophie bestimmt, ist der Beweis dafür, dass das Dasein sich selbst und das Sein überhaupt aus der ‘Welt’ her versteht und dass die so erwachsene Ontologie der Tradition verfällt, die sie zur Selbstverständlichkeit und zum bloss neu zu bearbeitenden Material (so für Hegel) herabsinken lässt.“ (HEIDEGGER, 1977, p. 29-30, GA 2)
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(HEIDEGGER, 1977, p. 29-30, GA 2). Ao determinar o ser do ente com base nesse modelo da coisa dada, a metafísica entifica o ser no sentido de explicitar ou determinar o ente em seu ser a partir de um outro ente.11 O ser é concebido a partir desse modelo fundado no ente intramundano como simples presença, como um substrato que dá suporte a todo e qualquer conhecimento sobre o ente, mas que, ao deixar o ente suficientemente claro, jamais foi tematizado, permanecendo inquestionado.12 Essa concepção de ser é a garantia da existência ôntica, mas não é investigada, visto que o objetivo da metafísica é o ente, e enquanto ele estiver iluminado não há motivo para investigar e desvelar a luz que o esclarece, ficando esquecida por detrás do ente (FREIRE, 2002, p. 80-81; ALMEIDA, 1998, p. 479, 493, 497). Essa forma de operar da metafísica, que em suas investigações, desde os
11 A interpretação do Pe. Mac Dowell da posição de Heidegger referente à concepção do ser proveniente da metafísica grega dirige-se à compreensão do ser como um estar-aí (Vorhandensein) constituído a partir do modelo dado pela natureza. O ser compreendido como um estar-aí tem por característica central a realidade, a atualidade (wirklichkeit) ou a potência dirigida à atualização, em suma, a plena realização de uma coisa. Nesse sentido, ele é o que está e permanece sempre aí presente e atualizado como um substrato, uma quididade, que define e circunscreve o ente (MAC DOWELL, 1993, p. 159-160). Essa posição não contradiz a nossa leitura da entificação do ser, que é concebido como se fosse um outro ente pela metafísica tradicional. A nosso ver, o caminho que parte do ente natural não é um caminho simplesmente possível na direção da determinação do ser do ente tendo outros caminhos melhores, mas um caminho equivocado, que perde o ser em entificações e objetivações. É necessário, pois, procurar outro modelo para dirigir e orientar a questão em direção ao ser, não que seja melhor ou único, mas capaz de chegar a ele. 12 A acusação de Heidegger à tradição metafísica se dirige à confusão por ela propiciada a partir da concepção de ser como presença constante entre ser e ente, não dando conta de abordar a diferença entre eles. Heidegger afirma que desde o início até a sua plenitude a metafísica teria se desenvolvido trocando o ente pelo ser de forma perigosa, vedando o caminho do homem em direção ao ser: “Até parece que a metafísica, sem seu conhecimento, está condenada a ser, pela maneira como pensa o ente, a barreira que impede que o homem atinja a originária relação do ser com o ser humano” (HEIDEGGER, 1969, p. 67). Nessa perspectiva, a metafísica, ao pensar o ente, mesmo tendo a visão prévia que o ser lança sobre ele, permaneceu no ente, visto que o ser permanece suficientemente claro, por garantir a transparência a cada ponto de vista sobre o ente. Assim, para Heidegger, “Pelo fato de a metafísica interrogar o ente enquanto ente permanece ela junto ao ente e não se volta para o Ser enquanto Ser” (HEIDEGGER, 1969, p. 62). Nesse sentido, o Ser não é levado a falar, pois a metafísica não o considera em sua verdade e a verdade como desvelamento e ela em sua essência. A essência da verdade do Ser somente aparece na metafísica em sua forma derivada de verdade do conhecimento e da enunciação, o que, para Heidegger, vedaria o caminho da metafísica em direção ao Ser mesmo, perdendo-se em entificações (HEIDEGGER, 1969, p. 65-66).
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primórdios até Nietzsche, e que posteriormente desencadeia o pensamento técnico contemporâneo, esqueceu o ser e se lançou, ou melhor, sempre esteve mergulhada no nada. Nesse sentido, para Heidegger, a metafísica historicamente construiu o seu edifício sobre o nada. Em Nietzsche, as bases do edifício se mostraram enraizadas no vazio (no espaço). Ele, na tentativa de solucionar a problemática pessimista que se lançou sobre a cultura com a morte de Deus, aprofundou-se ainda mais na metafísica, fazendo um retorno a seu objeto primeiro – a natureza –, levando até o limite o niilismo. Parece uma ironia; porém, na metafísica o fim e o início coincidem. Vaz, criticando a postura heideggeriana frente à questão do ser e do niilismo contemporâneo, considera o modelo genético-sintomático herdado de Nietzsche insuficiente e restritivo na abordagem que aponta a metafísica como história do esquecimento do ser e a causa do niilismo. Para Vaz, o niilismo é consequência dos caminhos que a metafísica foi tomando a partir do século XIII (VAZ, 2002), possibilitando o surgimento de diversas racionalidades que se espalharam por vários campos do conhecimento moderno e que em Nietzsche e Heidegger, ao invés de se colocarem como barreiras frente ao apoderamento da cultura pelo niilismo, o estimularam. A saída, para ele, seria um retorno aos clássicos a partir de sua interpretação pelo pensamento cristão medieval de cunho tomista. Vaz confirma que a intuição de Heidegger sobre o esquecimento do ser é uma avaliação justa do fenômeno do niilismo; no entanto, argumenta que não há continuidade entre o pensamento metafísico clássico e a filosofia moderna, que migra dos objetos naturais (ente intramundano) dados naturalmente no mundo para objetos técnicos constituídos artificialmente pela subjetividade como polo constitutivo da realidade. Nesse sentido, a modernidade teria substituído os seres dados pela natureza por objetos produzidos pela técnica, o que seria, para Vaz, a causa do niilismo (VAZ, 2002, p. 282). O erro de Heidegger, na perspectiva de Vaz, foi tomar a história da metafísica como um movimento único e uniforme, nomeando-a de ontoteologia, desconhecendo a filosofia medieval em sua especificidade, que, segundo Vaz, teria elaborado uma filosofia teológica que na modernidade passou a ser chamada de filosofia da religião (VAZ, 2002; VAZ, 2000, p. 149-163; VAZ, 1995, p.68, 53-85; VAZ, 1994, p. 395-406). A crítica de Vaz a Heidegger, a partir do que nomeia de modelo genéticosintomático, que, segundo ele, vai do sintoma niilismo em direção à sua 114
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gênese – o esquecimento do ser pela ontologia tradicional –, acusando-o de ver uma continuidade entre a metafísica tradicional e a moderna, a nosso ver não é correta, visto que Heidegger faz a distinção entre a filosofia tradicional, que nomeia de ontoteologia, e a filosofia moderna, chamada de metafísica da subjetividade. Vaz não viu, de fato, a questão central que Heidegger aponta com a problemática por ele aventada do esquecimento do ser e que caracteriza a filosofia entendida como metafísica, perpassando todos os seus momentos constitutivos. A crítica de Heidegger é dirigida ao modelo adotado pela metafísica para determinar o ser do ente, que, ao invés de permitir um acesso ao ser, entifica-o em diversas objetivações. Acreditamos que Vaz não percebeu o sentido próprio da filosofia de Heidegger, que é encontrar um novo paradigma, capaz de fazer frente à tradição ontológica da metafísica ancorada no modelo do ente natural. Para abordar de forma adequada o modelo existencial, proposto por Heidegger como primeiro passo para refundar a ontologia em Ser e tempo, é necessário ir até as origens da constituição do modelo existencial, que, a nosso ver, não é elaborado em Ser e tempo, mas gestado a partir da experiência da existência cristã, de forma particular, nas cartas de Paulo aos gálatas e aos tessalonicenses.13
13 Segundo Mac Dowell, criticar a filosofia de Heidegger de forma autêntica significa questionar o seu ponto de partida, ou, admitindo-se o seu ponto de partida e os pressupostos que o fundamentam, mostrar que o caminho por ele proposto e trilhado não visitou regiões que deveria, necessariamente, ter visitado. O projeto de Heidegger na elaboração do primeiro passo da constituição da ontologia fundamental na determinação das estruturas do Dasein parte não da noção tradicional de ser, mas da perspectiva “existencial”. A crítica a Heidegger deve partir desse pressuposto básico, que, a nosso ver, é a sua grande contribuição para a história do pensamento filosófico constituído a partir da ontologia. Heidegger tem por objetivo, em Ser e tempo, deixar de lado o modelo da metafísica tradicional, que parte da determinação do ser do homem do ente intramundano e abordar o homem existencialmente como aquele ente especial que, sendo, compreende o ser (MAC DOWELL, 1999, p. 417-422).
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The transcendence and the Immanence as place of establishment of nihilistic values Abstract According to Nietzsche, metaphysics would have engendered absolute values from the supersensible and would put on the sensible a goal in trying to give meaning to human existence. The devaluation of these ideal values, which contained the guidelines and goals for life, grounded in a transcendent one, with reference to the term God, would have its origin in the impossibility of being realized in the sensible world precisely because they are ideal. Having been devalued the supersensible world, remains the sensible world and it is at this one that Nietzsche constitutes his metaphysics of will to power. According to Heidegger, the history of Western metaphysics as a history of forgetfulness of being has its origin in the establishment of absolute values from a supra-sensible world, in the devaluation of these values , and in the revaluation as establishment of a principle of values-sensitive, i.e., in the immanence of the modern subject, and the consequence is the nihilism. Keywords: Heidegger; Nietzsche; metaphysics; value; nihilism.
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CONSCIÊNCIA E CORPO EM GABRIEL MARCEL Geovane de Assis Batista*
Resumo Trata-se de artigo que tem por objetivo investigar o sentido que o filósofo e dramaturgo francês Gabriel-Honoré Marcel1 atribuiu à existência humana ao sustentar o primado da existência consubstanciado na consciência de si enquanto existente e, bem assim, da consciência de si como ligado a um corpo, como encarnado. Imperioso o presente estudo, na medida em que, na trilha da historiografia das filosofias da existência, a ideia visada pela consciência desse filósofo contemporâneo revelou toda uma tonalidade de humor em torno da condição humana, que, inexoravelmente, não pode perder de vista o status de um para-si enquanto corpo encarnado. De fato, sua importância avulta na medida em que, logo na aurora do existencialismo, contribuiu com o continuar da investigação filosófica acerca da ontologia do homem, mas, dessa vez, a partir de uma realidade ôntica, a saber: a primazia do corpo entre a existência e a consciência. Palavras-chave: Existência; consciência; corpo; encarnado; Gabriel Marcel.
Introdução O presente texto tem como objetivo descrever e explicar o sentido que o filósofo e dramaturgo francês Gabriel-Honoré Marcel2 – mesmo sem conhecer as diretrizes metodológicas do fenomenólogo Edmund Husserl, e bem antes das contribuições dos existencialistas Sören Kierkegaard, de Jean-
Doutorando em Filosofia – Universidad Católica de Santa Fe (UCSF). O título deste artigo (“Consciência e Corpo em Gabriel Marcel”) se conforma com a inferência sobre as notas “[...] para uma comunicación a la Sociedade de Filosofía” (sin hecha, escritas em 1927 o 1928), contidas na obra intitulada Diário metafísico (p. 13-16), do filósofo Gabriel Marcel, publicado pelas Ediciones Guadarrama, Madrid, com tradução do articulista. 2 Filósofo e dramaturgo francês de renome internacional, (1889-1973). Foi o autor de muitas obras filosóficas e era um conferencista requisitado por muitos auditórios em todo o mundo. A datação dos trabalhos de Gabriel Marcel indica que desenvolveu por si mesmo os aspectos intuitivos da fenomenologia, depois apresentados por Edmund Husserl, e seu desenvolvimento de temas existenciais ocorreu antes que pudesse ler Kierkegaard e bem antes do florescimento da filosofia existencial na Europa, ocorrido em meados do século XX. Por isso tem sido considerado o primeiro fenomenologista e o primeiro filósofo existencial da França, em que pese a popularidade de que gozou. Dados obtidos em www.cobra.pages.nom.br. * 1
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-Paul Sartre, de Maurice Merleau-Ponty, ou de Martin Heidegger – atribuiu à existência humana ao pugnar a primazia da existência humana condicionada e consubstanciada na consciência de si enquanto existente e, bem assim, da consciência de si como ligado a um corpo: um existir para-si encarnado. Justifica-se o estudo na medida em que, na trilha da historiografia das filosofias da existência, a ideia plasmada pela consciência desse filósofo contemporâneo revelou toda uma tonalidade de humor da condição humana, que, inexoravelmente, não pode e nem poderia perder de vista o caráter encarnado do ser humano. De fato, a importância do pensamento de Gabriel avulta na medida em que, logo na aurora do existencialismo, contribui significativa e magnificamente para a investigação filosófica acerca do homem; para uma investigação que não se circunscreve à dimensão metafísico-ontológica da tradição filosófica, mas que, para além dessa tradição, joga toda luz no caráter ôntico do ser, o que, na linha oblíqua, também valoriza a complementaridade inequívoca da existência e da essência. Assim é que, na busca da significância que Gabriel Marcel visou dar à existência humana, a presente análise repousará no próprio campo por ele deixado ao mundo filosófico, a saber: as notas “[...] para una comunicación a la Sociedade de Filosofía”, escritas no seu Diário metafísico, donde exsurge a metodologia aqui aplicada. Com esse recurso, espera o articulista fazer compreender o alcance da comunicação pretendida por Gabriel à comunidade filosófica de sua época enquanto contributo capaz de tornar rarefeita a “complexidade do mundo” e de fomentar o curvar sobre o efetivo sentido da condição humana.
1 Consciência de-si como ligado a um corpo “Eu não tenho meu corpo, eu sou meu corpo.” 3
Para Gabriel Marcel, o corpo constitui a sentinela avançada de sua própria existência. Existência essa significada pela consciência de si como existente 3 Fragmento imputado a Gabriel Marcel por Luciano Costa Santos, em sua obra O sujeito encarnado: a sensibilidade como paradigma ético em Emmanuel Levinas (p. 24). Ijuí: Unijuí, 2009, 288p. (Col. Filosofia, 30). Dr. Luciano foi Orientador do articulista no Curso de Especialização de Filosofia Contemporânea (Filosofia da Existência) na Faculdade São Bento da Bahia (FSBB).
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e pela consciência de si como ligado a um corpo – de uma consciência encarnada num corpo. A propósito, diz Merleau-Ponty, secundado por Abbagnano (2003, p. 214): “Quer se trate do corpo de outrem, quer se trate do meu, não tenho outro modo de conhecer o corpo humano senão vivendo-o, isto é, assumindo por minha conta o drama que me atravessa e confundindo-me com ele” (grifo nosso). É por isso que, nas quatro páginas que apresentam suas “notas” de introdução ao seu Diário metafísico (p. 13-16), Gabriel Marcel cuida de advertir à comunidade filosófica que, se dada coisa existe, ela, necessariamente, tem que estar atrelada ao meu corpo (conquanto não concebido como um dado objetivo4); aberto a recebê-lo, ainda que obliquamente. Na vinculação dos dois “eus” (consciência e corpo), Gabriel Marcel diz haver, muita vez, um caráter misterioso e íntimo, que marca, na realidade, todo juízo existencial. Quer com isso comunicar haver uma imbricação inextricável da “existência”, da “consciência de si como existente” e da “consciência de si como ligado a um corpo, como encarnado”. Dessa constatação fenomenológica, Gabriel Marcel aponta cinco consequências. A primeira consiste na impossibilidade de o “[...] entendimento existencial da realidade” subsistir sem que haja “[...] uma personalidade encarnada”. Donde se deduz não poder haver realidade se ela prescinde da en-carna-ção, porque o movimento impulsionado pela alma não se justificaria sem um corpo. De acordo com a segunda consequência, não seria possível admitir a perda e/ou mudança de significância da “[...] existência do mundo exterior [...]”. Com efeito, teoriza Gabriel Marcel (1927/28, p. 14): [...] não posso, com efeito, sem contradição, imaginar meu corpo como não existente, posto que todo ser existente se define e se situa com relação a ele (enquanto que é meu corpo); mas, ao mesmo tempo, deve um perguntar-se
4 Segundo Giovanni Reale e Dario Antiseri (In: História da filosofia: do romantismo até nossos dias. São Paulo: Paulus, 1991, p. 618 – Coleção Filosofia), Gabriel Marcel é “[...] atravessado por três motivos fundamentais que continuamente se sobrepõem e se integram [...]: 2) o reconhecimento da inobjetividade fundamental do sentimento corpóreo: com efeito, como escreve Marcel em seu Jornal Metafísico ‘se não posso exercer a minha atenção, a não ser por intermédio do meu corpo, disso deriva que ele é, de certa forma, impensável para mim, porque a atenção que se concentra sobre ele, em última análise, o pressupõe [...]’”.
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se há razões suficientes para outorgar a meu corpo um estatuto metafísico privilegiado a respeito das outras coisas.
Um terceiro efeito residiria em saber se, ante toda existência, já não se encontra implícita certa “[...] experiência de si, como vinculado ao universo”. Ou seja, se a união da alma e do corpo é de uma essência realmente diferente da que existe entre a alma e as outras coisas existentes. Na esteira da quarta consequência, o filósofo aponta para a necessidade de “[...] examinar se tal interpretação do existencial conduz ao subjetivismo”. Finalmente, mostra-se que o idealismo tende a se opor à metafísica, que, no seu pensar, tem como eixo o problema da imortalidade da alma. Nota-se, pois, no Diário de Marcel, a necessidade de visar o corpo de modo intencional, e, ao mesmo tempo, afastar-se do “[...] meu corpo, que se me apresenta como um corpo”. Dizer que uma coisa existe não significa somente que pertence ao mesmo sistema que meu corpo (que está vinculada a ele por certas ralações reacionalmente determináveis), senão que, além disso, se encontre, em certa maneira, unida a meu corpo como meu corpo (MARCEL, 1927/28, p. 15).
É que, para Gabriel Marcel, a encarnação constitui o dado central da metafísica, uma vez que todo ser se apresenta ligado a um corpo. “Deste corpo – diz Gabriel – não posso dizer nem que sou eu, nem que não seja eu, nem que é para mim (objeto)”. Isso porque, acrescenta nosso autor (p. 15): De início, a oposição entre o sujeito e o objeto se encontra transcendida. Inversamente, se parto desta oposição tratada como fundamental, não haverá artifício lógico algum que me permita lograr esta experiência; esta será, inevitavelmente, aludida ou – o que é o mesmo – rechaçada. Em vão se objetará que esta experiência apresenta um caráter contingente; na realidade, toda investigação metafísica exige um ponto de partida deste gênero. Só pode arrancar de uma situação que se abre à reflexão sem que a possa chegar a compreender.
Segue-se, daí, que a encarnação não pode constituir um fato, senão um dado a partir do qual um fato resulta possível. É dizer: “[...] não posso tratar-me exatamente como um fim distinto de meu corpo, como algo que ostentara a respeito dele uma relação determinável”. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 118-126, jan./jun. 2012
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Tal é a razão pela qual não posso pensar minha morte, senão somente a cessação do movimento desta máquina (illam, no hanc). Quem sabe seria mais exato dizer que não posso antecipar minha morte, ou seja, perguntar-me que será de mim quando a máquina pare de funcionar (MARCEL, 1927/28, p. 16).
Repousando a vista, mais uma vez, sobre as entrelinhas de o Diário metafísico, sem muito esforço, não há como não perceber a insurgência de Gabriel Marcel contra o racionalismo, cuja finalidade é exatamente a de desconsiderar a existência e o proselitismo lógico-científico, tonalizando o homem como simples objeto ou coisa, deixando “[...] escapar o essencial da vida religiosa e do pensamento metafísico mais profundo”.5 Mostrar como o idealismo tende, inevitavelmente, a eliminar toda consideração existencial, por razão da inteligibilidade radical da existência. O idealismo se opõe à metafísica. Os valores separados da existência: bastante real para existir. Cada vez que afirmo que uma coisa existe dou por superentendido que considero dita coisa como vinculada a meu corpo, como suscetível de entrar em contato com ele, embora seja do modo mais indireto. Porém, há que ter muito em conta que esta prioridade que atribuo assim a meu corpo se deve a que este me tem sido dado de modo não exclusivamente objetivo, ou seja, ao fato de que é meu corpo. O caráter misterioso e íntimo, às vezes, desta vinculação entre meu corpo e eu (evito expressamente o termo relação) marca, na realidade, todo juízo existencial (1927/28, p. 14).
É como se Gabriel Marcel imputasse um deslocamento do eixo paradigmático do cogito cartesiano (“Penso: logo, existo!”) para outra dimensão filosófica, em que o meta e o físico revelam uma unidade, a saber: tenho consciência dessa existência atrelada ao meu corpo; logo, existo. Assim, enquanto em Descartes corpo e espírito se divorciam, em Marcel, encontram-se conscientemente atomizados: corpóreo e incorpóreo, sensível e suprassensível, físico e metafísico, fenomênico e metafenomênico, sensível e inteligível...
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Conferir Giovanni Reale. Obra citada (p. 619). Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 118-126, jan./jun. 2012
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Ainda que, platonicamente falando, “El verdadero ser se encuentra en el plano inteligible de lo real”6, na intencionalidade marceliana, deste plano aquele não pode desatrelar-se, sob pena de não-ser, existencialmente; pois o existir, em Marcel, é como um estuário comum do ser e do ente, que nele deságuam como numa imbricação irredutivelmente ontológica e existencialista. Nessa quadratura, a racionalidade marceliana é emblematicamente obscena, exatamente porque o desvelamento já se dá antecedido por uma empiria consubstanciada no próprio corpo encarnado. Em Marcel não existem duas “res” distintas; o espírito não se divorcia do corpóreo. Ao contrário, a existência se revela pela unicidade ou totalidade do ser. Pugna Marcel, então, por um caráter constitutivo do corpo – enquanto entremeio da existência e da consciência –, pois, na tríade que advoga, a tese que vem à luz não é outra senão a da imprescindibilidade de um corpo encarnado, entranhado e amalgamado à existência e à consciência de si.
2 O viés religioso no existencialismo marceliano A escolha do vocábulo encarnado para representar o modo como a existência deve ser significada7 parece ter decorrido do fato de Marcel estar mais ligado à vertente católica do existencialismo. Com efeito, partindo do sentido revelado pelo dicionário Houaiss, a palavra encarnado conota também “aquilo que encarnou” ou, querendo, a “imagem que foi objeto de encarnação”. Ora, a partir desta definição, intuitiva a força do dogma cristão, sedimentado na doutrina trinitária (Santíssima Trindade), segundo a qual Deus é UNO e concebido por três entes transcendentais (Pai, Filho e Espírito Santo), conformemente se faz inferir a seguinte passagem do testamento de João: “No princípio era o verbo e o verbo era Deus e o verbo estava com Deus e o verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1:1, 1:14).
6 Eis a proposição que se toma de empréstimo de Juan Carlos Alby, em seu texto Platón, p. 81, publicado na Introducción a la filosofía; 1. ed. Santa Fe: Universidad Católica de Santa Fe, 2007, dirigida por Pablo Juan Carlos Ballesteros. 7 Sem prejuízo das refutações de Marcel ao cogito cartesiano.
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Nesse horizonte, parece que o mistério da Santíssima Trindade influenciou significativamente a filosofia existencial de Marcel, especialmente no tocante às pessoas do “Pai” e do “Filho” – quedando afastado a do “Espírito Santo”, como nas inquietações de Santo Agostinho e Wittgenstein – o primeiro, por conta de suas limitações sobre mistério da fé,8 e o segundo, no da linguagem, ao defender que o silêncio é a cortesia do pensador sobre o que não se pode falar. A certeza de que “o verbo se fez carne” e, portanto, de que “Deus se fez Jesus Cristo”, deve ter autorizado nosso Filósofo a voltar as lentes da reta razão para a condição existencial do homem, que não pode perder de vista que também é corpo e que, por isso, deve ter não só consciência de si, mas, também, de que se encontra ligado às coisas corpóreas, como encarnado, isto é, numa unidade da natureza espiritual com a natureza humana; alma racional e corpo; essência e existência.
Considerações finais Se possível fosse agregar mais uma palavra à filosofia da existência de Gabriel Marcel, decerto caberia dizer que constitui, desde os primeiros passos, uma espécie de alter ego da filosofia do dinamarquês Kierkegaard, de Sartre, de Merlau-Ponty e de Heidegger, ao advertir que não se pode olvidar que o existir do homem – enquanto “[...] sujeito de todas as suas ações, construtor de seu devir, artífice solitário de sua liberdade”, e que “existe para si” e se encontra “fadado a ser livre”9 –, deve ser subsumido à dupla consciência, ou seja: à consciência de si ligado a um corpo. Não é difícil desvelar nas “notas” de Gabriel Marcel certo despertar de uma intencionalidade ôntica, em que existência e consciência devem andar pari passu, primando, sempre, pela consciência de si como existente e pela consciência de si como ligado a um corpo.
8 Com o que fortalece o argumento da Teologia Sobrenatural acerca da impenetrabilidade da Filosofia e da Teologia Natural sobre o conhecimento da totalidade de Deus sob o viés da fé e da revelação. 9 Conferir, respectivamente, em A História da filosofia, 2004, p. 444-449.
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Logo, a relação do eu sensível com o eu inteligível não pode ser implicada como um corpo simplesmente dado, como separado por uma vírgula (corpo vírgula corpo), mas, sim, como um corpo dado e intrinsecamente ligado, atrelado, relacionado, amalgamado, agrilhoado à consciência da existência desse mesmo corpo (existência hífen consciência hífen existência;ou corpo hífen consciência hífen corpo), como uma unidade encarnada. É nesse sentido que, no existencialismo religioso de Gabriel Marcel, a existência se comunica com a essência, consubstanciando o corpo e o espírito, o ôntico e o ontológico, o imanente e o transcendente – como numa complementaridade consciente do ente e do ser; como numa inexorável pertença transitiva do continente transcendental (consciência) com o conteúdo imanente (corpo).
Referências ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ABRÃO, Bernadette Siqueira. A história da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 2004 (Col. Os Pensadores). ALBY, Juan Carlos. Platón. In: BALLESTEROS, Pablo Juan Carlos. (Director). Introducción a la filosofía. 1. ed. Santa Fe: Universidad Católica de Santa Fe, 2007. (p. 81), 350p. HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de janeiro: Objetiva, p. 1133, 2001. MARCEL, Gabriel. Diário metafísico. Tradução de Felix del Hoyo. Madri: Guadarrama (1928 -1969). REALE, Giovanni & ANTISERI, Dario. História da filosofia: do romantismo até nossos dias. São Paulo: Paulus, 1991 (Col. Filosofia). SANTOS, Luciano Costa. O sujeito encarnado: a sensibilidade como paradigma ético em Emmanuel Levinas (p. 24). Ijuí: Unijuí, 2009, v. 3. 288p. (Col. Filosofia, 30).
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CONSCIENCE AND BODY IN GABRIEL MARCEL Abstract This is article aims to investigate the sense that the French playwright and philosopher, Gabriel Marcel Honore, attributed to human existence, in upholding the primacy of existence embodied in the consciousness of itself as existing, as well as awareness of connected to each other as one body, as embodied. Doing this study is imperative, in that on the trail of the historiography of the philosophies of existence, the idea pursued by the contemporary philosopher of consciousness revealed a whole tone of humor about the human condition, which, inexorably, can not lose sight of the status a for-itself as a body incarnate. In fact, its importance looms large in that, just at the dawn of existentialism, contributed to the continuing research on the philosophical ontology of man, but this time from an ontic reality, namely the primacy of the body between the existence and consciousness. Keywords: Existence; consciousness; body; incarnate; Gabriel Marcel.
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INTELIGÊNCIA ORGANIZATIVA: UMA DISCUSSÃO SOBRE A PARTE E O TODO Rubi Rodrigues* Jônatas Rodrigues**
Se existissem os muitos, estes deveriam ser tais como eu digo que é o Uno (MELISSO apud REALE, 2009). Vê-se com clareza que do caos atômico e do movimento caótico não era estruturalmente possível nascer um cosmos, se não se admitia também o inteligível e a inteligência (REALE, 2009).
Resumo Procura-se, neste artigo, defender a tese de que o processo de complexificação da natureza não ocorreu juntando-se partes, mas articulando-se totalidades. Para tanto, impõe-se reparar alguns equívocos conceituais nos quais se incorre ao se considerar confiável apenas o modo científico e analítico de pensar – amparados na convicção de ser esse o procedimento inferencial que, alinhado aos ditames da lógica clássica, possui escopo para fornecer certezas. Apesar de sua inegável eficiência, denunciam-se aqui limites da ciência analítica moderna não por ser analítica, mas por induzir à crença de que, analisando detalhadamente as partes, logra-se compreender o todo, quando, na verdade, o todo transcende a soma das partes. Denuncia-se também a metodologia científica por decompor totalidades em partes e sugerir que existam no mundo partes autônomas e independentes que possam ser reunidas para construir totalidades, quando inexiste no Universo um fenômeno de segunda categoria chamado parte: o mundo somente admite a existência de totalidades. Denunciam-se, finalmente, limites do modo analítico
* Filósofo e escritor, pesquisador em Teoria do Conhecimento. MM G.33. Presidente da Academia Maçônica de Letras do Distrito Federal – AMLDF. Idealizador e coordenador do projeto Segundas Filosóficas (segundasfilosoficas.org). ** Bacharel em filosofia e doutorando em Filosofia na Universidade Católica de Santa Fé, na Argentina. Também idealizador do projeto Segundas Filosóficas.
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de fazer ciência, porque induz a pensar que complexidade crescente e totalidades são obtidas reunindo e justapondo partes, quando, na verdade, a complexidade crescente somente pode ser obtida pela inteligente articulação de totalidades bem constituídas. Considera-se o tema relevante não pelo que textualmente afirma, mas pelas inferências que pode despertar no leitor atento. Palavras-chave: Parte; todo; forma; átomo; inteligência organizativa.
Introdução A questão da parte e do todo – das diferenças, semelhanças e relações entre parte e todo – constitui um dos problemas mais antigos inscritos nos anais da Filosofia. Essa problemática, como será visto, encontra-se diretamente relacionada com a capacidade (ou não) da consciência humana (por isso, uma parte do Universo) de pensar a totalidade universal. Foram os gregos clássicos que inauguraram a questão, tendo Platão externado sua perplexidade diante da unidade indivisível do Ser e da também unitária compleição da totalidade dos fenômenos, reconhecidamente composta de partes. No Parmênides, focaliza e discute o assunto elaborando um modo promissor de contemplar o problema, ao indicar que na natureza estão presentes essas duas “unidades”. Os gregos, ao que tudo indica, não perceberam tudo o que estava em jogo, virtualmente porque não colocavam a questão da criação, uma vez que entendiam o Universo como eterno. Já os homens modernos, conscientes das lições da Astrofísica, são sabedores que o Universo – tal como as estrelas – um dia surgiu e um dia perecerá. Ou seja, para os gregos, a complexidade universal já estava posta, enquanto para os modernos houve um lento processo de complexificação. Dessa forma, entre a unidade da indivisível simplicidade e a unidade da extrema complexidade, situa-se todo o Universo realizado. Justifica-se, assim, a importância da questão: o devido esclarecimento das diferenças que permeiam a parte e o todo equivale a desvendar parte considerável dos mistérios que emolduram a compreensão do mundo.
Evolução criativa Conjugando o saber científico e o saber metafísico hoje disponíveis, fica facultado um panorama bastante consistente sobre o desdobramento 128
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Inteligência organizativa: uma discussão entre a parte e o todo
do Universo, entre a menor singularidade quântica detectada e a totalidade universal constituída. A Metafísica, denunciando como absurda a inexistência ou o nada absoluto, defende a existência do Ser como necessária e alicerça o Universo em princípio transcendental, justificando, assim, o advento das energias caóticas inaugurais do Universo. A ciência moderna, operando causa e efeito, parte do Big Bang e explica a formação das gigantescas fornalhas cósmicas onde os átomos pesados são produzidos bem como o processo segundo o qual essas “impurezas” são expelidas das estrelas e se aglutinam orbitantes na forma de planetas. Uma vez criado o mundo mineral, a ciência segue explicando como o hidrogênio e o oxigênio combinaram-se para formar água, oceanos, aminoácidos e finalmente a vida unicelular. Instalada a vida e precisando ela de energia para preservar-se, é ainda a ciência que logra revelar as duas estratégias adotadas por ela para alcançar êxito em sua preservação: o desenvolvimento da capacidade de processar diretamente a energia solar ou o investimento em mobilidade para obtê-la de outras fontes, ficando, assim, configuradas as duas alternativas – vegetal e animal – adotadas pela vida como vias de melhor capacitação para sobreviver. Esse processo desenha nitidamente uma senda de crescente complexidade, que vai de energias quânticas a partículas atômicas, de átomos a moléculas, de células a organismos. Em cada etapa do processo de crescente complexificação, as posições de estabilidade encontradas recebem o nome, desde a Grécia clássica, de forma. Obviamente, o termo forma não é denotado no sentido ordinário de aparência conferida pelo contorno de objetos, mas no sentido grego de inteligência organizativa ou de organização inteligente, que tipifica e caracteriza partículas, átomos, moléculas e organismos, e lhes confere propriedades singulares e privativas: aqui constata-se pacífico acordo entre a ciência moderna e a Teoria das ideias de Platão. Assim como no mundo inanimado – nos átomos de hidrogênio e oxigênio, por exemplo, essas inteligências organizativas são codificadas em valências elétricas que virtualmente determinam compulsoriamente sua combinação na proporção de 2 para 1 na contingente formação da molécula de água –, também nos organismos vivos a inteligência organizativa fisicamente impressa determina os comportamentos instintivos, por vezes extremamente complexos, cumpridos por seres vivos de todas as espécies, inclusive por insetos, tanto na busca da energia vital à sua sobrevivência quanto nos processos de acasalamento e reprodução, para citar os aspectos mais estudados. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 127-134, jan./jun. 2012
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A ciência nos mostra, ainda, que o reino animal poderia, virtualmente, ter estagnado no plano dos registros físicos e orgânicos da inteligência organizativa que caracteriza o comportamento animal instintivo, dado que este possui a vantagem de ensejar grande precisão. A natureza, no entanto, não parou por aí, seguindo seu caminho de complexificação até o desenvolvimento do homem. Dois fatores foram determinantes para isso. De um lado, o próprio registro físico da inteligência que torna a ação compulsória, confere certa flexibilidade, claramente manifesta no processo de adaptação dos animais ao meio ambiente. Por outro lado, a disputa de espaços de sobrevivência entre as espécies, cada qual constituindo depósito de energia virtualmente expropriável e cada qual imbuída de justo instinto de sobrevivência, requereu flexibilidade e alternativas de ação capazes de diminuir sua previsibilidade comportamental e ampliar suas chances de sobrevivência. Nesse contexto, a espécie humana logrou superar as determinações compulsórias dos instintos, desenvolvendo um organismo capaz de interpretar e operar essa inteligência organizativa ou forma que define as propriedades e determina os comportamentos nos reinos mineral, animal e vegetal. Com o sistema nervoso central e o despertar da consciência, abriu-se um espaço racional, viabilizando o entendimento e a compreensão que capacita o homem com um novo patamar de inteligência, o qual, sobrepondo-se ao registro físico instintivo inescapável, potencializa alternativas de ação. Com isso, caso o indivíduo consiga desenvolver a razão e seja capaz de criar alternativas de ação melhores que as instintivas, conquista liberdade de escolha e pode adotar em cada caso e para cada circunstância a opção mais conveniente. Esse percurso do Universo e da vida até o despertar da consciência segue, em linhas gerais, o arrazoado de Bergson em A evolução criativa (BERGSON, 1907) e evidencia que a razão humana é somente parte de toda esta complexidade: uma das infinitas partes que compõem o Universo. As ideias de Bergson parecem corresponder bem à Teoria das ideias de Platão. As formas não existem a priori, mas são geradas gradativamente à medida que o Universo se complexifica, de modo a proporcionar, em seus próprios termos, uma evolução criativa. À luz desse panorama que caracteriza a vida e o Universo como processos evolutivos gerais, cumpre destacar que cada posição intermediária de estabilidade evolutiva constitui 130
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Inteligência organizativa: uma discussão entre a parte e o todo
parte integrante da complexidade que poderá integrar, justificando, assim, um Universo composto por infinitas partes. Nestes termos, certamente a totalidade universal está contemplada, mas estaria em questão também alguma outra totalidade? Sim. O Universo em toda sua magnitude e totalidade contempla atualmente um estado de estabilidade e assim pode ser reconhecido. Porém, na hipótese de um observador histórico, também haveria de ser reconhecido como totalidade no passado, mesmo que sujeito a uma complexidade menor e com outro estado de estabilidade. Isso implica afirmar que totalidade não encontra-se diretamente relacionada com o nível de complexidade, mas com o estado de estabilidade. Ser totalidade é então ser uma unidade indivisível (sob pena de perda de suas características), e aqui os dois conceitos se fundem. A totalidade afigura-se como sendo o estado de equilíbrio atingido por um fenômeno em seu curso de evolução, um estado que o torna uma unidade. É justamente a isto que Platão se refere ao discorrer sobre duas “unidades”. Observe-se que a inteligência organizativa se manifesta presente desde o começo do Universo, e não surge apenas em presença da vida. Como evidenciam os átomos e as moléculas inorgânicas, a forma também está presente no mundo inanimado. Portanto, a forma encontra-se já no primeiro fenômeno quântico que se estabilizou no plano da existência e inaugurou o mundo relativo e está também presente em todas as etapas de complexidade crescente que se sucederam até que o Universo desenvolvesse e adquirisse a compleição atual. Há, sim, diferença entre a forma do átomo de hidrogênio, a forma da molécula de água e a forma da consciência humana ou a forma do Universo, não somente em complexidade, mas também em organização e potencialidades. Ainda assim, em todas as instâncias, os momentos de estabilidade continuam sendo formas organizativas inteligentes, e isso indica que há algo comum a todas elas, em particular pelo fato de todas possuírem potencial para servir de base para formas ainda mais complexas e comungarem da condição de existirem objetivamente. Ora, se, além disso, considerar-se que o processo evolutivo tal como entendido por Bergson é contínuo e homogêneo – de onde se infere um padrão de evolução –, faz-se necessária uma forma básica originária presente em todas as totalidades, em cuja estrutura estejam contidas as potencialidades capazes de se combinar e gerar formas mais complexas, cuja existência a ciência já comprovou serem constitutivas da complexidade universal. Essa Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 127-134, jan./jun. 2012
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forma básica originária pode ser identificada de três maneiras: por um processo de redução ontológica que elimine as características que surgem à medida que o processo evolutivo vai se acentuando, mediante a contemplação do Logos Normativo (RODRIGUES, 1999), ou ainda diretamente pelo resgate do conceito grego de átomo em sua acepção original: Aos ouvintes modernos a palavra “átomo” evoca inevitavelmente os significados que o termo adquiriu na moderna ciência, de Galileu à física contemporânea. Pois bem, é preciso despojar a palavra átomo desses significados, se quisermos descobrir o sentido ontológico originário segundo o qual a entenderam os filósofos de Abdera. O átomo dos abderianos traz em si o selo típico do pensar helênico: é átomo-forma, posição, é átomo eideticamente pensado e representado (REALE, 2009).
O átomo ou forma básica originária é então aquilo que torna as combinações do quebra-cabeça evolutivo consistentes e possibilita, em cada nivel de complexificação, serem novamente combinadas para a criação de novas estruturas. Para tanto é indispensável que essa estrutura originária contenha em potência, no mínimo, capacidade de desdobrar os caminhos alternativos que o Universo efetivamente concretizou. Sem entrar em considerações quanto aos espaços alternativos que essa estrutura virtualmente faculta para a manifestação existencial – dado que isso implicaria considerar não apenas a estrutura constitutiva dessa forma originária e os axiomas que a suportam, mas também os compromissos estruturais contidos na Geometria, na Lógica e na Matemática –, tenha-se presente ao menos que esta complexidade crescente resulta também em determinação crescente, o que, em um Universo metafisicamente concebido, implica restrições crescentes à absoluta indeterminação e à liberdade absoluta da origem necessária.
Conclusão Quando são examinadas as formas puras de Platão e a inteligência organizativa contemplada por Bergson – ou ao se considerar a teoria do Logos normativo –, chega-se à conclusão de que átomo, forma, inteligência organizativa, unidade e totalidade são exata e rigorosamente a mesma coisa e fica claro que não existe parte isolada manifesta no mundo: o Universo admite apenas a 132
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Inteligência organizativa: uma discussão entre a parte e o todo
presença de totalidades. Totalidades que se distribuem por toda a escala de complexidade que constitui o Universo, tipificando e identificando os fenômenos que podem ser apreendidos pela mente humana, dado que todos os fenômenos do Universo obedecem ao mesmo plano existencial e possuem a mesma estrutura existencial (RODRIGUES, 2011). Diante disso, não há como deixar de concluir que a consciência humana está capacitada a pensar e entender as totalidades do Universo, tanto porque ela também constitui uma totalidade, quanto por ter sido gerada pela natureza justamente para operar subjetivamente essa inteligência organizativa, produzindo, assim, consciência da inteligência com a qual as totalidades foram e são feitas. A complexidade universal não se faz, portanto, juntando partes, mas articulando totalidades.
Referências BERGSON, Henri. A evolução criativa. Tradução Adolfo Casais Monteiro. São Paulo: UNESP, 2009. Titulo original: L`évolution créatrice, 1907. REALE, Giovanni. Pré-socráticos e Orfismo. História da filosofia grega e romana, v. 1. São Paulo: LOYOLA, 2009. RODRIGUES, Rubi Germano. Filosofia: a arte de pensar. São Paulo: Madras, 2011. ______. A razão holística: método para o exercício da razão. Brasília: Thesaurus, 1999.
ORGANIZATIONAL INTELLIGENCE: A DISCUSSION ABOUT THE PART AND THE WHOLE Abstract This paper supports the thesis that nature’s complexation process did not take place by joining parts but by articulating wholes. In order to do so, it is imperative to repair some conceptual errors which are made when only scientific and analytical ways of thinking are considered reliable – based in the belief that these are the only inferential procedures that have the scope to provide certanties, for being aligned with the dictates of classical logic. Despite its undeniable effectiveness, this paper denounces the limits of modern analytical science, not for being analytical, Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 127-134, jan./jun. 2012
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but for inducing the belief that by carefully analyzing its parts, one can manage to understand the whole, when in truth, the whole transcends the sum of its parts. It also denounces the scientific methodology that decompose wholes into parts and therefore suggest that there are in the world independent and autonomous parts that can be gathered to construct wholes, when there is not a second category phenomenon called part: in fact, the world only admits the existence of wholes. Finally, it denounces the limits of the analytical way of doing science, because it induces the conclusion that increasing complexity and wholes are obtained by combining and juxtaposing parts, when in fact, increasing complexity can only be obtained by clever articulation of well-formed wholes. In conclusion, this paper is relevant not because its literal statements, but for the inferences that can be extracted from it by the attentive reader. Keywords: Part; whole; form; atom; organizational intelligence.
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Os critérios de avaliação da ação moral: dever e responsabilidade Patric da Silva Wanderley*
Resumo Em meio às várias discussões sobre os critérios de avaliação das normas morais, emergem duas personalidades que marcaram a história da ética e da filosofia: Kant e Weber. Para o primeiro, a razão, incapaz de conhecer sem a sensibilidade, deve renunciar aos conteúdos da sensibilidade no tocante à orientação de sua vida prática. A ação dos sujeitos deve levar em conta apenas o dever, e não as consequências. Kant pretende encontrar um fundamento, um princípio de julgamento aplicável a toda e qualquer ação humana. Contrária à ideia de Kant está a ética da responsabilidade de Max Weber. Para Weber, o critério da avaliação da norma moral deve ser a consequência da ação. Com esta ideia, Weber lança as bases de uma ética da responsabilidade, em que o sujeito, consciente das consequências de sua ação, assume a responsabilidade por seus atos. Palavras-chave: Dever; moralidade; responsabilidade.
Introdução Para obter êxito numa discussão sobre avaliação da ação moral, é necessário um questionamento sobre o papel da moral no desenvolvimento das relações humanas. O termo moral ganhou expressão na modernidade. Mas os gregos antigos já haviam tentado responder a tal questionamento, referindo-se ao ethos. Henrique Lima Vaz (1921-2002), filósofo e humanista brasileiro, em seu livro Escritos de filosofia II: ética e cultura, problematiza a discussão sobre a ação moral e tenta desconstruir o que o ceticismo axiológico contemporâneo afirma: que não há valores éticos; toda a ação é interesseira, relativa. O autor traz para tal discussão a concepção aristotélica do ethos. Aristóteles (filósofo da Grécia antiga do século IV a. C) afirmava que o ethos não necessita demonstração de sua existência, pois é evidente, assim como a física (VAZ, 1993, p. 11). *
Graduado em filosofia pela Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo.
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A ciência do ethos (ética) seria a compreensão racional da ação, da prática. Se no campo da física a natureza já está dada, no campo da ética pressupõe-se liberdade, pois este é construído. A ética de hoje de fato não é igual à do passado, contudo, algumas estruturas permanecem orientadas pela ideia de bem, de justiça, que já eram discutidas pelos gregos antigos. Para Aristóteles, uma vida ética autêntica se realiza numa prática, que, por sua vez, está intrinsecamente ligada aos costumes. Por costumes entenda-se as ações transmitidas pela tradição. Ethos poderia ser assim um estilo de vida. É na ética que o homem se realiza. Sem uma vida ética, sem valores compartilhados não haveria forma de vida coletiva (VAZ, 1993, p. 13). Há duas acepções da concepção de ethos. Num primeiro momento o ethos designa a morada do homem. A partir do ethos, o espaço do mundo torna-se habitável para o homem. É no ethos que o logos se torna expressão do ser do homem enquanto este caminha rumo ao Bem. Num segundo momento, o mundo físico se abre ao mundo construído, e o ethos se apresenta como costumes que orientam a vida. Lima Vaz traz a compreensão de ethos como constante disposição de caráter para fazer escolhas que não são meros hábitos arbitrários, impulsionados pelos desejos, mas hábitos que foram submetidos ao crivo da racionalidade. Hábitos que a tradição salvaguardou, porque, orientados pela reflexão, contribuem para o presente. Desse modo, uma reflexão sobre a ética emerge em toda tentativa de conservar valores de uma determinada tradição sem perder de vista elementos de culturas emergentes. Não se pode abster de tal discussão aquele que deseja uma vida organizada sobre valores legitimamente válidos. Então, o que é ética? “É a ciência da conduta humana” (ABBAGNANO, 1992, p. 360). Seria o estudo sistematizado das diversas ações humanas. É a disciplina teórica sobre a prática que se traduz na ação moral. A ética surge da necessidade de racionalizar, de buscar fundamentos para a prática humana. Os costumes de uma comunidade não podem ser edificados sobre a arbitrariedade das escolhas de um indivíduo baseadas nos impulsos, desejos. Essa escolha deve ser orientada pela racionalidade. Contudo, em Aristóteles, o papel da ética não é de fundamentação, mas de análise de ações executadas na pólis. A ação do indivíduo não pode estar acima do bem comunitário, não deve causar transtornos à comunidade. O bem individual não pode estar acima do bem comum. A virtude humana consiste em adequar a ação individual ao bem da pólis. 136
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Os critérios de avaliação da ação moral: dever e responsabilidade
Por que, então, pensar na ética kantiana do dever e na ética weberiana da responsabilidade? Se o mérito da ética aristotélica está na sugestão do meio-termo, da “mediania”, como solução do problema do excesso e da falta na conduta humana (ARISTÓTELES, 1979, p. 72-3), o mérito da ética kantiana está em fornecer ao sujeito a possibilidade de agir acima da influência do desejo de honra e glória. A ética ou, como diria o próprio Kant, a “filosofia moral” deve erguer-se na pretensão de legitimidade da lei universal. Para Kant, a estrutura cognoscente do sujeito permite-lhe fazer escolhas desatreladas dos sentimentos. A avaliação da ação moral se dá na observância da reta intenção, da “boa vontade”. A boa vontade na ética não faz a ação ser boa por aquilo que promove, e sim pela intenção do sujeito da ação. O sujeito deve agir não conforme o dever, influenciado pelas circunstâncias. O sujeito deve agir por dever, obedecendo ao mandamento racional da lei moral. Contudo, o final do século XIX e início do século XX trouxe questionamentos que não mais se satisfaziam com a fundamentação da moral universal kantiana. É nesse cenário que surge a figura de Max Weber e a ética da responsabilidade. A avaliação da ação moral não pode se basear apenas na intenção do sujeito agente, pois nem sempre os efeitos de determinada ação correspondem à intenção originária do sujeito. É preciso levar em conta as consequências e os efeitos de determinada ação. Para Weber, com o avanço das ciências, o sujeito não pode vestir o véu da ignorância e se justificar tomando como base o acaso. As ciências trouxeram a possibilidade de prever os efeitos colaterais e consequências da ação. Portanto, o indivíduo pode e deve ser responsabilizado pelas consequências e efeitos de seus atos.
1 Kant e o dever Na modernidade surge um novo olhar sobre a ciência da conduta humana, que em Immanuel Kant (1724-1804), filósofo alemão, ganhará o nome de filosofia moral. Kant nasceu em 1724 em Konigsberg na Prússia Oriental e morreu na mesma cidade no ano de 1804. Era de família modesta e de profunda religiosidade pietista. Estudou na universidade de sua cidade natal, foi professor particular e em 1770 foi nomeado professor ordinário de Lógica e Metafísica (MARÍAS, 1942, p. 280-1). No campo da moral suas principais obras são: Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 135-153, jan./jun. 2012
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Fundamentação da metafísica dos costumes (1785) e Crítica da razão prática (1788). Mas a grandeza do pensamento kantiano já se revelara na obra Crítica da razão pura (1771). Nessa obra Kant inaugura na filosofia o que ele mesmo chamou de Revolução copernicana kantiana (REALE, ANTÍSERI, 2007, p. 871). Nicolau Copérnico (1473-1543), físico, astrólogo e matemático, propõe a organização do Universo não mais sob o olhar da teoria geocêntrica (teoria que afirmava ser a terra o centro do Universo), mas na perspectiva heliocêntrica (com o sol no centro do Universo). Baseando-se nesta teoria, Kant vai deslocar a gnosiologia clássico-metafísica da adequação do intelecto à coisa para uma nova teoria gnosiológica, da adequação da coisa ao intelecto humano. Para Kant, o sujeito possui a priori uma estrutura racional cognitiva, e essa mesma estrutura permite ao ser humano conhecer o objeto, que lhe é dado pela experiência. Partindo dessa constatação, Kant vai revolucionar a ciência moral. Na obra Crítica da razão prática, ele tentará apresentar uma fundamentação da moral universalista. Para Kant, a ação do ser humano não pode estar atrelada aos sentidos. O sujeito, para uma ação moral, não pode agir levando em conta os efeitos, as circunstâncias e as consequências de sua ação. O agir humano deve se distanciar de toda e qualquer influência dos desejos, dos impulsos, das inclinações, como a honra e o sucesso. No prefácio da obra Fundamentação da metafísica dos costumes, Kant deixa claro que sua pretensão não é criar uma nova filosofia e acolhe a divisão filosófica feita pelos gregos, qual seja: lógica, física e ética. A lógica se ocupa do conhecimento racional formal sem fazer distinção dos objetos. Sua preocupação é com as regras do raciocínio, e não com o conteúdo. A física se ocupa das leis da natureza, e a ética se preocupa com as leis da liberdade e com os costumes em geral, por isso a ética também é chamada teoria dos costumes. Mas para quê sistematizar uma teoria sobre os costumes? Uma teoria dos costumes [...] é, pois, indispensavelmente necessária, não só por motivos de ordem especulativa para investigar a fonte dos princípios práticos que residem a priori na nossa razão, mas também porque os próprios costumes ficam sujeitos a toda a sorte de perversão enquanto lhes faltar aquele fio condutor moralmente bom, não basta que seja conforme à lei moral, mas tem também que cumprir-se por amor dessa mesma lei (KANT, 2008, p. 199). 138
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A pretensão da ética kantiana é encontrar um fundamento, um princípio de julgamento aplicável a toda e qualquer ação humana. Esse princípio carrega em si uma necessidade, uma objetividade, pois deve ser incondicionado, desatrelado das circunstâncias e efeitos da ação do ser humano. Sem esse princípio a ação do sujeito é arbitrária e prisioneira dos impulsos e desejos. Se para os gregos o critério de avaliação das normas morais se pautava na felicidade, no bem-estar promovido por esta ou aquela ação, para Kant, o critério de avaliação das normas morais deve se fundamentar nos motivos dessa ação. Não basta que a ação promova bem-estar e felicidade, essa ação deve ser impulsionada por uma vontade boa sem limites. Não basta ser feliz, é preciso ser digno de alcançar a felicidade. E é aqui que se encontra o problema a ser estudado na teoria dos costumes ou filosofia moral kantiana. Se o critério de avaliação da ação moral é a boa vontade do sujeito e se nem sempre esse sujeito age movido por uma boa vontade, como se pode alcançar a lei moral incondicionada, desatrelada das experiências? Para responder a esse questionamento é preciso entender o que é boa vontade. Diz Kant: A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão somente pelo querer, isto é, em si mesma, e considerada em si mesma, deve ser avaliada em grau muito mais alto do que tudo o que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito de qualquer inclinação, ou mesmo, se se quiser, da soma de todas as inclinações (KANT, 2008, p. 204).
Na modernidade surgiram éticas que usavam o critério da “utilidade” como requisito básico da ação moral. Com o conceito de boa vontade, Kant quer mostrar que a ação não é boa por aquilo que promove, pelo bem-estar proporcionado, pela utilidade social da ação. Ora, se um sujeito, ao se propor dividir todos os seus bens com os pobres, o fizer pelo desejo da honra, da glória, do reconhecimento, ainda que sua ação promova um bem social ou até mesmo a felicidade de tais pobres, por ter sido pautada numa motivação instintiva, qual seja, honra, reconhecimento, essa ação não será boa em si mesma. A ação desse sujeito “caridoso” não foi um fim em si mesma, pautou-se num outro fim, tornando-se apenas o meio, o instrumento para alcançar tal fim: ser reconhecido. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 135-153, jan./jun. 2012
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Na Crítica da razão prática (1788) Kant mostrou que a razão não é apenas instrumento para conhecer a natureza, estudar as leis físicas. A razão é uma faculdade prática que pode se dar nas leis. O sujeito pode, portanto, agir sem a influência dos sentidos, das inclinações, dos impulsos. A ação do caridoso descrita acima se pautou no efeito, nas consequências. A ação moral não se fundamenta nas consequências, não leva em consideração os interesses do sujeito, nem os efeitos de sua ação. A ação moralmente válida se pauta apenas no dever. Mas o que vem a ser o dever? “Dever é a necessidade de uma ação por respeito a lei” (KANT, 2008, p. 208). No dicionário da língua portuguesa, dever é “obrigação moral determinada, expressa numa regra de ação” (AURÉLIO, 1999, p. 672). Já no dicionário de filosofia o dever se apresenta como “[...] a ação conforme a uma ordem racional ou a uma norma. Dever é a ação cumprida unicamente em vista da lei e por respeito à lei. E por isso, a única ação racional autêntica, isto é, determinada exclusivamente pela forma universal da razão” (ABBAGNANO, 1982, p. 248-9). Tanto na definição geral da língua portuguesa quanto na definição filosófica, o conceito do dever traz em si a obrigatoriedade. O que Kant faz é atribuir essa obrigatoriedade à lei moral. Ora, se não houver uma norma, um princípio julgador da ação humana, os sujeitos agiriam apenas por impulsos, por inclinações sensíveis. É preciso deixar claro que Kant não é ingênuo a ponto de achar que todos os homens agem por dever. A verdade é que ele tem consciência de que, na maioria das vezes, os sujeitos agem por instinto, por inclinações. Porém, é necessário fazer uma distinção entre a ação individual do sujeito, o que Kant chama de máxima, e aquela ação que pretende ser válida para todos. Para possibilitar a compreensão do dever, Kant apresenta uma fórmula que o traduz: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 2008, p. 223). O dever se apresenta ao sujeito como uma ordem racional. Essa ordem não é dada pelos critérios sensíveis. Se assim fosse, não poderia ser universal e necessária. Essa ordem, esse imperativo é dado pela lei moral racional. Kant está convicto da existência de um princípio a priori localizado na estrutura racional do sujeito que determina sua ação. Logo, se todos os homens são portadores dessa estrutura, essa lei moral é acessível a todos. 140
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A ação do sujeito pode ou não obedecer a esse princípio racional e formal, mas o fato de não ser colocado em prática não invalida esse princípio. Sua validade está na forma, não no conteúdo. O conteúdo da ação do sujeito pode variar, e isso sempre acontece. Contudo, o princípio de avaliação dessa ação não varia, é puramente formal. Portanto, a ação moral não se caracteriza pelo conteúdo da ação dos sujeitos A ou B, mas pelo princípio fundamental racional que orienta essa ação. Com isso, Kant está mostrando a possibilidade de uma ética universal. A partir dessas formulações, Kant sugere um novo conceito de liberdade. A emergência do Renascimento e da Modernidade trouxe consigo o rompimento com as explicações míticas dos fenômenos. Essa ruptura com a metafísica clássico-medieval possibilitou o surgimento das ciências modernas. Estas explicaram com clareza e distinção as causas dos fenômenos. Com isso, o ser humano se apartou da concepção religiosa que orientava as ações humanas. Surge, então, um conceito de liberdade que é diferente do conceito de livre-arbítrio apresentado por Santo Agostinho. Liberdade passou a ser: fazer aquilo que se quer. Essa definição da liberdade é superada por Kant. Liberdade é buscar a autonomia da vontade. Autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer). O princípio da autonomia é portanto: não escolher senão de modo a que máximas da escolha estejam incluídas simultaneamente, no querer mesmo como lei universal (KANT, 2008, p. 238).
Desse modo, ter liberdade não é fazer o que se quer. Liberdade é ação do sujeito totalmente desatrelada da influência dos seus desejos, dos seus impulsos. Por trás de todo projeto kantiano está a busca pela emancipação do sujeito. Ora, aquele que age atrelado aos impulsos é escravo dos impulsos. Assim também acontece com o que age motivado pela honra, pelo sucesso. O sujeito é portador de uma consciência do dever, e essa consciência do dever o conduz à liberdade. A liberdade é, portanto, a ação independente do sujeito. É uma ação que não está ligada ao conteúdo, aos sentidos, às consequências, e sim à pura lei moral. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 135-153, jan./jun. 2012
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A lei moral kantiana é contrária aos diversos tipos de ética conteudista. A lei moral não é um conjunto de normas, tampouco uma cartilha com ações sugeridas ao sujeito. Não se deve levar em conta o conteúdo da ação como critério de avaliação da ação moral. Ex: quando um sujeito diz a outro “não deves mentir”, o sujeito não está dizendo “não deves mentir a um amigo”. Está dizendo que não se deve mentir em circunstância alguma. Por isso, pode-se afirmar que “dizer sempre a verdade” é uma norma moral, porque todos podem dizer a verdade. Esse exemplo mostra características fundamentais da lei moral, quais sejam: universalidade e necessidade. É por isso que a lei moral se apresenta como um mandamento racional, pois está na estrutura cognoscente de todos os sujeitos. Não está no conteúdo da ação, e sim na forma pura. Para entender o que foi dito acima, é preciso compreender a distinção kantiana entre o mundo necessário e o mundo construído. Kant distingue dois mundos: o mundo da natureza e o mundo da liberdade. O mundo da natureza é determinado naturalmente. Ex: “Todos os dias o sol nasce e se põe”, “Todos os seres vivos vão morrer algum dia”. Essas leis são leis necessárias. O mundo da liberdade não é determinado nem necessário, é construído. O sujeito pode ou não agir dessa ou daquela forma. Porém, se o sujeito pretende que a sua ação cotidiana, que seu hábito, se torne uma lei moral, é preciso que essa sua ação seja necessária não apenas a um grupo, mas a todos, universalmente.
2 Weber e a responsabilidade Max Weber (1864-1920), filósofo, sociólogo, cientista, historiógrafo, considerado um dos maiores teóricos da história alemã, nasceu em Erfurt, Prússia, em 21 de abril de 1864, filho de uma família abastada. Estudou nas universidades de Heildelberg, Berlim e Gottingen. Em 1895 foi nomeado professor de economia política na Universidade de Freiburg e no ano seguinte em Heildelberg. Devido a uma doença, ficou inativo entre 1897 e 1903 (REALE, ANTISERI, 2005, p. 467). A partir de 1904 volta à atividade intelectual, publicando vários ensaios. Em 1905 publicou sua obra mais conhecida e polêmica A ética protestante e o espírito do capitalismo, que vincula o nascimento do capitalismo à doutrina calvinista da predestinação e à consequente interpretação do êxito material como garantia da graça divina. 142
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Os critérios de avaliação da ação moral: dever e responsabilidade
Mas o objeto de estudo dessa pesquisa será a obra Ciência e política: duas vocações (1919). Weber se propõe à discussão dos critérios de avaliação da ação moral e traz para o debate a avaliação das consequências das ações. Considera a ética do tipo kantiana, como ética religiosa, da pura convicção. A diferença entre a ética kantiana e a religiosa é que, nesta última os fundamentos estão nos mandamentos divinos, já na ética de kant os fundamentos estão no mandamento de uma razão, que seria, segundo Weber, abstrata. Para Weber, o mundo moderno coloca um desafio que exige uma nova ética. O modelo ético favorável a essa nova configuração social é a ética da responsabilidade. A modernidade, através das ciências experimentais, desencantou o mundo, desmitificou-o, explicando-o pelas leis das ciências. Não dá para continuar fazendo certas afirmações ingênuas com relação aos acontecimentos do mundo. Todo sujeito pode ter acesso às previsões das consequências de determinada ação. Logo, pode ser-lhe imputada tal responsabilidade, isto é, responsabilidade pelas consequências da ação. Na obra Ciência e política: duas vocações e no capítulo I de A ciência como vocação, Weber vai mostrar a diferença entre fazer política e fazer ciência. Mostrará ainda a diferença de racionalidades que está por trás de ambas. Essa obra surgiu no início do século XX, por volta do ano 1919. Os cargos das universidades alemãs eram ocupados por influentes nacionalistas. Weber entra nessa discussão sobre a prática da ciência na Alemanha: “O que então esperar os que se consagram à vida científica” (WEBER, 2009, p. 25). Para responder a tal questionamento, Weber irá recorrer ao modelo universitário norteamericano e fazer um paralelo com o modelo alemão. Isso o faz perceber que nos Estados Unidos as circunstâncias que cercam a carreira universitária possibilitam aos jovens cientistas uma expectativa positiva para uma vida inteiramente dedicada à ciência. Enquanto na Alemanha a situação não é tão estimulante, nos Estados Unidos os jovens universitários desempenham uma função de assistente com boa remuneração, podendo em breve assumir uma cátedra. Nos institutos alemães a situação é diferente. Os jovens não gozam de incentivos financeiros suficientes, e aqueles que não possuírem certa fortuna pessoal encontrarão grandes dificuldades para se dedicarem à carreira científica. Um outro entrave à carreira científica do jovem alemão é que os professores titulares das disciplinas possuem grande estabilidade profissional nos institutos, o que dificulta a entrada de novos cientistas. Esse quadro mostra, ainda nas entrelinhas, uma profunda influência política nos Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 135-153, jan./jun. 2012
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institutos alemães. Parece que a estabilidade dos titulares das disciplinas está associada a indicações políticas. E mais, as escolas se tornaram grandes empresas capitalistas e, portanto, se subjugam a interesses econômicos, como a busca de salas mais cheias, indicações para os postos da docência com critérios arbitrários etc. A princípio, somente o acaso pode providenciar uma segurança ao jovem universitário quando, por exemplo, assume uma cadeira ou a direção de alguma escola. Porém, o autor parece não concordar que funções tão importantes venham a ser ocupadas em função do acaso. Na verdade, a responsabilidade de possível mediocridade deve recair sobre as arbitrariedades que estão por trás da organização dos institutos, e não no mero acaso. Quanto ao jovem que se interessa pela carreira científica, não deve confiar no acaso; deve se esforçar, dedicar-se à vida acadêmica com afinco, pois “[...] deve ter não somente as qualificações do cientista, mas também as do professor” (WEBER, 2009, p. 30). Para Weber, a dedicação à vida científica está diretamente ligada a certa inspiração do candidato. Não bastam os esforços para alcançar êxito na atividade acadêmica, é preciso levar em consideração as inclinações que determinado jovem demonstra para tal prática. Porém, a inspiração não se concretiza sem o esforço do jovem cientista. Isso demandará trabalho, entrega, persistência. A isso se poderia chamar de vocação científica, uma vez que o jovem não se guiaria pelo mero acaso para alcançar a causa desejada, mas, movido pela paixão de sua causa, inseriria o esforço acadêmico como meio para alcançá-la. Num paralelo com a atividade artística, Weber deixa claro que a atividade científica não é como a concreção de uma obra de arte, pois nesta a significação e o valor não se perdem no tempo, não poderá ser ultrapassada por uma outra obra com recursos diferentes; quanto àquela, cumpre o papel de sempre questionar e se deixar questionar pelas afirmações feitas. A arte, portanto, não perde sua validez no tempo, já a ciência deve estar sempre preparada para novas descobertas e novas indagações a respeito das afirmações feitas. Enquanto a obra de arte pede valor perene, a ciência pede superação constante [...] No campo da ciência não apenas nosso destino, mas também nosso objetivo é o de nos vermos, um dia, ultrapassados (WEBER, 2009 p. 36). Diante disso, impõe-se nova questão: se a atividade científica está diretamente ligada à possibilidade de superação de suas afirmações, como manter acesas as motivações dos que se consagram à vida científica? 144
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Para o autor, claro deve estar que a atividade científica encontra seus méritos não na sugestão de valores às mais variadas formas de vida, mas na possibilidade de prever os efeitos de determinadas atividades. Com o desencantamento do mundo metafísico-religioso, não há mais espaço para uma explicação dos fenômenos atribuída aos “deuses” ou a forças misteriosas. A natureza, a partir das grandes descobertas dos séculos XV, XVI e com o progresso das ciências da experimentação, passou a ser entendida como um conjunto de leis, e não como um desencadeamento de ações a partir da volição e temperamento dos deuses. Porém, a atividade científica é mais que previsão das consequências dos fenômenos. Um rápido resgate histórico poderá ajudar na compreensão do processo científico. Talvez uma das primeiras grandes conquistas no tocante à racionalização seja a mudança da explicação mítica para a racional. Depois, Sócrates (século V a.C), na Grécia antiga, inserirá o conceito como grande marca da intelectualização e como implicação desta na vida prática. A modernidade trouxe a experimentação racional, tornando possível a previsão de eventos futuros. Na época da efervescência das ciências exatas, muitos dos exames na natureza foram utilizados para tentar encontrar os desígnios de Deus. Contudo, apesar do que se disse acima, não é possível afirmar a existência de um sentido no mundo ou da possibilidade de captá-lo pela ciência ou ao menos não deveria ser esse o papel da ciência “[...] qual é o sentido da ciência enquanto vocação, se estão destruídas todas as ilusões que nela divisavam a via que conduz ao ‘ser verdadeiro’, à ‘verdadeira arte’, à ‘verdadeira natureza’, ao ‘verdadeiro Deus’, à ‘verdadeira felicidade’?” (WEBER, 2009 p. 43). Weber procura deixar claro que à ciência não cabe responder: “que devemos fazer?” ou “como devemos viver?”, visto que a atividade científica não tem sentido, ou ao menos não deveria se arvorar no direito de dizer ao ser humano qual o sentido de sua vida. O problema é que alguns professores estão nas salas de aula como se fossem verdadeiros profetas e demagogos, transferindo aos alunos suas convicções e seus valores. Dentre os motivos apontados pelo autor que justificam uma neutralidade axiológica no tocante à atividade científica está a eterna luta de valores entre as várias formas de vida. Quando a discussão parte para valores, a ciência deve silenciar-se, pois todas as sociedades postulam legitimidade em seus valores, em suas tradições. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 135-153, jan./jun. 2012
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Portanto, nesse aspecto, o máximo que a ciência pode fazer é sugerir os meios para alcançar determinado fim, e não apontar fins e valores às pessoas. Weber apresenta a razão como calculadora, ou seja, fria, ausente de sentimentos, inclinações, que leva em conta apenas os elementos necessários para atingir determinados fins, que já devem de antemão estar “postos”. Se quiser falar da finalidade dessa razão, deve-se falar da lógica do êxito. Isso significa que a escolha dos meios obedece à eficiência. A racionalidade instrumental não determina quais valores são verdadeiros, visto que pode atender a efetivação de qualquer fim proposto. É, portanto, uma racionalidade técnica. É nesse sentido que se explica que ela não pode apontar fins e valores para todas as pessoas e que, portanto, a ciência cala-se diante dos fins. Weber constata um pluralismo ético e a impossibilidade de um total conhecimento científico a respeito dos fins (WEBER, 2009, p. 48). Há ainda uma pergunta a responder: se não é simplesmente uma arte da previsão dos acontecimentos, se não é uma cartilha de valores a serem seguidos, qual será então o papel da ciência? De fato, a ciência possibilita a previsão das consequências das ações dos seres humanos, fornece instrumentos e métodos para o estudo dos efeitos das ações, mas a atividade científica alcança clareza no que se refere aos meios e estratégias para alcançar determinado fim. Encontra-se nesse instante a grande diferença entre a ética da convicção, que avalia apenas a intenção do sujeito na ação, e a ética weberiana da responsabilidade, pois nesta última não basta a reta intenção; é preciso avaliar as consequências de determinada ação (MARCONDES, 2008, p. 122). Outra discussão trazida por Weber é a relação entre meios e fins. Enquanto na ética da convicção, segundo Weber, o que interessa é a concretização do fim a todo custo, a ética da responsabilidade assume a cisão entre meios e fins no que se refere à vida política, segundo a qual ocupar-se cientificamente é tratar apenas dos meios, e não dos fins, como afirmado acima. Assim, a possibilidade de conhecer os efeitos das ações obriga os seres humanos a assumir responsabilidade sobre as consequências de seus atos, visto que a emergência da ciência tornou possível calcular os efeitos colaterais das ações. O sujeito, com toda a evolução científica, não pode se esconder no argumento da ignorância para se isentar de possíveis responsabilidades, sendo, portanto, legitimamente senhor do próprio destino. 146
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Mas, se a racionalidade resume-se no esclarecimento do mecanismo causal, que permite prever as consequências de uma ação, qual seria, portanto, sua participação numa ética, se o interesse é manter essa forma ética de regulamentar a vida coletiva, isto é, política? Para responder a tal questionamento é preciso trazer à tona a discussão que perpassa o capítulo II da obra A política como vocação, já referida. Nesse capítulo Weber não se deterá em conceituações sobre a política ou na procura de políticas a serem adotadas. A preocupação do autor é desvendar a racionalidade que está por trás da política e identificar os aspectos das ações políticas que se enquadram na vocação política. Weber constata que a ação política carrega em si a carreira política, ou seja, a possibilidade de escrever o nome na história de determinada nação. A carreira política concede ao ser humano o sentimento de poder. A possibilidade de influenciar outros seres humanos, de participar do poder, pode elevar o político profissional de sua modesta posição à inscrição do nome na história das relações humanas políticas (WEBER, 2009, p. 107). Diz Weber: “[...] a esse propósito, formula-se a seguinte pergunta: quais são as qualidades que lhe permitem esperar situar-se à altura do poder que exerce – por menor que seja – e, consequentemente, à altura da responsabilidade que esse poder lhe impõe?” (WEBER, 2009, p. 107). Nesse momento surge uma discussão ética sob o olhar da novidade que Weber apresenta como critério de avaliação da ação moral: a responsabilidade sobre os efeitos e as consequências de determinada ação. O autor apresenta então três características determinantes do homem político: a paixão, o sentimento de responsabilidade e o senso de proporção. A paixão se apresenta aqui como propósito a realizar, causa a ser perseguida. Não é uma paixão como aquele sentimento avassalador de casais enamorados, ou como excitação estéril que conduz os homens cegamente à ideologias maquiadas de causas revolucionárias. A paixão a que Weber se refere é aquela motivação que impulsiona o ser humano a objetivos previamente traçados. Mas só a paixão não basta ao homem político, é preciso ter sentimento de responsabilidade, e a isso acrescenta-se o senso de proporção. Para o desenvolvimento tanto do sentimento de responsabilidade quanto do senso de proporção, o homem político deve lançar mão da neutralidade axiológica (WEBER, 1992, p. 369), ou seja, deve guardar distância de homens e coisas e deixar que os fatos ajam sobre si. Enquanto a nutrição da causa Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 135-153, jan./jun. 2012
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perseguida fica por conta da paixão, a moderação do homem político no envolvimento com tal causa fica por conta do sentimento de responsabilidade e do senso de proporção (WEBER, 2009, p. 108). Um elemento comum e que precisa ser repudiado pelo homem político é a vaidade. A vaidade é, segundo Weber, um dos maiores inimigos do homem político. Ela é inimiga da causa, do recolhimento e do afastamento de si mesmo. Ora, se uma das características fundamentais do homem político é o distanciamento de seus valores com o fato, como poderá ele alimentar sentimentos de glória, reconhecimento, sucesso, como no caso da vaidade? É claro que, em toda situação e em qualquer atividade, os homens lidam a todo instante com tal inimigo. No caso do cientista, por exemplo, a vaidade não influenciará tanto o resultado de sua ação, porém no que se refere à atividade política. Por lidar diretamente com o poder, o homem precisa estar sempre em posição de combate contra tal inimigo. “O pecado contra o Espírito Santo de sua vocação consiste num desejo de poder, que, sem qualquer objetivo, em vez de se colocar exclusivamente a serviço de uma ‘causa’, não consegue passar de pretexto de exaltação pessoal” (WEBER, 2009, p. 109). Para Weber, os dois maiores pecados do político são a ausência de uma causa e a ausência de um sentimento de responsabilidade. A ausência de uma causa conduz o homem político à esterilidade, e a ausência de responsabilidade faz o político buscar o poder pelo poder, por pura vaidade. Ao falar do resultado final de determinada ação política, Weber mostra uma nítida diferença entre a ética kantiana da pura convicção e a ética da responsabilidade, pois na primeira o que se deve levar em consideração é a intenção. Ora, nem sempre o resultado da ação corresponde à intenção originária. Logo, é necessário calcular os efeitos e as consequências de determinada ação. É aqui que definitivamente deve entrar o sentimento de responsabilidade. Para Weber, a razão não pode ditar as causas que moverão os agentes políticos. “No que se refere à natureza da causa em nome da qual o político procura e utiliza o poder, nada podemos adiantar: ela depende das convicções pessoais de cada um [...]” (WEBER, 2009, p. 110). As causas podem ser humanistas, religiosas, sociais, culturais, éticas, profanas. Diante dessas causas a razão se cala. Mas a razão pode e deve prever as consequências e efeitos que as ações do homem político, ao buscar ele tais causas, desencadeiam. Ora, se a paixão move o homem político, tem-se então um conflito de paixões. Se quiser pensar a política com considerações ética, não 148
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é possível discutir qual paixão todos devem defender, mas levar em conta os efeitos das ações que dela resultam, isto é, a responsabilidade. Isso significa que exigir ética na política é exigir responsabilidade. A razão não pode ditar uma cartilha de causas a serem perseguidas, só pode calcular os meios de alcançar determinada causa, determinado fim. E, a partir das consequências, sugerir o sentimento de responsabilidade e o senso de proporção. Alguém que queira retratar a base de legitimidade das ações políticas, poderia dizer que nos primórdios da humanidade a política e a religião andavam juntas. O substrato ético era oferecido pela religião. Posteriormente, com a ruptura entre política e religião na modernidade, pode-se pensar em duas teses: primeiro, ou política e moral não têm nenhuma ligação, são distintas, ou segundo, o elemento ético aparece como uma convicção do que é bom. Diz Weber, nem um nem outro, a ética da política está na responsabilidade dos efeitos. Diante disso, claro deve estar que, para Max Weber, não é possível fazer considerações racionais sobre normas do mesmo modo que se faz para “fatos” concretos. Existe, na verdade, um pluralismo ético irredutível. Não se pode conhecer normas morais como se conhece, por exemplo, as leis da natureza. Se não se pode sustentar esta ou aquela ética como válida para todos, tem-se que admitir um pluralismo de éticas. “Não pode suportar a irracionalidade ética do mundo o partidário da ética da convicção. Ele é um racionalista cosmo-ético“ (WEBER, 2009, p. 116). E à pergunta “qual ética adotar?”, diria Weber, esta pergunta não está no nível científico. Isso é questão de valores, e, como já se disse, os valores dependem das paixões, das causas defendidas pelos indivíduos. Não diz respeito à racionalidade, à indicação da norma moral a ser seguida. No tocante à ciência como vocação, pode-se dizer que aquele que decidir dedicar-se a ela, não poderá se arrogar o direito de fazer profecias a respeito do sentido da vida. “A ciência não é produto de revelações, tampouco é graça que um profeta ou um visionário houvesse recebido para assegurar a salvação das almas. Como também não é parte integrante da meditação de sábios e filósofos que se dedicam a refletir sobre o sentido do mundo” (WEBER, 2009, p. 54). No que se refere à política como vocação, não é ela alojamento de convicções puras, de paixões desmedidas, de ideologias cegas. O homem político não deve emprestar às suas decisões convicções pessoais. É bem verdade que o Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 135-153, jan./jun. 2012
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que mantém acesa a chama da vida política é o estabelecimento de uma causa ou de causas a serem perseguidas. Porém, também é verdade que o político deve lançar mão de certa distância entre a realidade dos “fatos” e suas crenças. Aquele que deseja a salvação da própria alma ou de almas alheias, deve, portanto, evitar os caminhos da política que, por vocação, procura realizar tarefas muito diferentes, que não podem ser concretizadas sem violências. O gênio ou demônio da política vive em estado de tensão extrema com o Deus do amor [...] (WEBER, 2009, p. 121).
Weber demonstra, a partir da impossibilidade de uma consideração cognitiva sobre as normas morais, que há no mundo das relações humanas um grande conflito entre os “deuses” da ética, da política, da religião etc. E nesse “politeísmo” ético não se pode eleger este ou aquele como crença válida para todos. O máximo que pode acontecer é um “acordo”, um “compromisso” entre tais “deuses”.
Considerações finais E então, Kant ou Weber? Com justiça se pode dizer: os dois. Esta pesquisa não pretende negar a legitimidade da pretensão de validade moral nem da ética deontológica kantiana, tampouco da ética weberiana da responsabilidade. Dentro dos limites históricos impostos a ambos, deram respostas à altura dos questionamentos que emergiam até então. Se Kant intuiu a necessidade de uma fundamentação moral com os critérios da clareza e distinção da modernidade racionalista, dentro do projeto iluminista de universalização da igualdade e da liberdade, Weber, diante de um mundo desencantado, explicado pelas leis da natureza, marcado pela desvalorização da base metafísico-religiosa, permeado por uma pluralidade cosmo-ética, foi perspicaz ao trazer para a discussão moral a responsabilidade sobre os efeitos e consequências da ação do sujeito. Se Kant “pecou” ao desconsiderar as circunstâncias concretas da vida humana na avaliação moral, usando como critério de avaliação apenas a intenção do agente, Weber “pecou” por desconsiderar a possibilidade do conhecimento racional sobre as normas morais, impedindo a discussão sobre a fundamentação de normas válidas para todos. 150
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Se não dá para tomar partido a respeito desta ou daquela ética, ao menos dá para tomar partido a respeito da necessidade de uma vida pautada na ética, como queria Aristóteles, num princípio de compreensão racional da conduta humana. O ser humano, apesar de não poder eleger uma única norma moral para sua vida, pode e deve pretender que sua asserção seja válida para todos. Se a impossibilidade de consideração cognitiva sobre normas morais frear os anseios do mesmo homem por uma vida justa, aí não tem como fugir do “relativismo crônico” que assola as relações humanas. Ora, se o sujeito não puder exigir, por exemplo, que “todas as pessoas digam a verdade”, logo uma sociedade justa não é possível, visto que ninguém acreditará na afirmação de ninguém. O sujeito, ao exigir que sua afirmação ou que suas convicções sejam válidas, não o faz em função de um caráter meramente sentimentalista, o faz porque entende que uma sociedade justa só é possível se todos os indivíduos acolhem como norma válida para todos, por exemplo, dizer a verdade. A pretensão de uma norma moral válida para todos os sujeitos se apresenta à existência humana como necessidade. Weber está correto ao mostrar que os indivíduos não podem vestir-se do véu da ignorância e colocar a culpa das consequências e efeitos colaterais de suas ações no acaso, nos deuses. Ora, a natureza já foi explicada e a explicação mítica não mais dá conta dos problemas da ética. O homem já experimentou do “fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal”, ele não pode mais se esconder no argumento da ignorância para justificar seus erros. A evolução científica mostrou que é, sim, possível prever os efeitos das ações dos indivíduos, logo, pode lhes ser imputada responsabilidade sobre tais efeitos e consequências. Contudo, Kant também se faz muito atual diante da postura relativista e laxista do homem que se arroga pós-moderno. Alguns pós-modernos, além do véu da ignorância, vestiram também o véu do ceticismo axiológico e saem por aí disseminando a relativização de todos os valores. O desafio do filósofo moral é, portanto, erguer-se na pretensão de justificação da norma não em função de sua utilidade ou do bem que tal norma promova, mas em função da justiça que esta ou aquela norma venha promover.
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THE critERIA OF EVALUATION OF THE moral ACTION: dUTY AND responsIbiliTY Abstract Among the several discussions on the criteria of evaluation of the moral rules, emerge two personalities that marked the history of the ethics and the philosophy: 152
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Kant and Weber. For the former, the reason, incapable to know without the sensitivity, must give up the contents of the sensitivity in what concerns the orientation of his practical life. The action of the subjects must take into account only the duty and not the consequences. Kant intends to find a basis, a principle of judgment applicable to all and to any human action. Opposed to Kant’s idea, is Max Weber’s ethics of the responsibility. To Weber, the criterion of the evaluation of the moral rule must be the consequence of the action. With this idea, Weber introduces the bases of an ethics of the responsibility, in which the subject, conscious of the consequences of his action, takes the responsibility for his actions. Keywords: duty, morality, responsibility.
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A ESCOLARIZAÇÃO DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE NA PERSPECTIVA DAS PEDAGOGIAS NÃO-DIRETIVAS: UMA REFLEXÃO À LUZ DA OBRA DE GEORGES SNYDERS Alex Sandro Corrêa*
Resumo O objetivo deste artigo é refletir sobre a escolarização da infância e da juventude, destacando algumas concepções presentes nas chamadas “pedagogias não diretivas”, contrapondo-as às críticas propostas por Georges Snyders. Sendo assim, destacam-se as críticas dirigidas ao conservadorismo pedagógico, ao conformismo presente nas práticas escolares e ao ideal de democracia marcado por relações idílicas, que ignoram as contradições sociais. Palavras-chave: Infância; juventude; escolarização; não diretivismo; pedagogia.
Nosso objetivo neste trabalho encaminha-se no sentido de compreender alguns elementos propostos por Snyders sobre a escolarização da infância e da juventude. Tentaremos explicitar, na perspectiva deste autor, como se tornou problemático pensar o tema da escolarização sob o ponto de vista da pedagogia não diretiva nos moldes como tem sido considerada por muitos autores. Dessa forma, explicitaremos, por um lado, a análise crítica empreendida por Snyders sobre a forma como os pedagogos não diretivos têm conduzido o debate em torno da escolarização da infância e da juventude; por outro lado, apontaremos alguns argumentos que o autor mobiliza, a fim de apresentar uma nova concepção de escola, infância e juventude. Snyders mobiliza, nesta obra, conceitos sociológicos, políticos e filosóficos para problematizar, discutir e compreender a escolarização da infância, de modo a realizar um entrelaçamento entre as questões políticas e Professor do Instituto Federal de São Paulo – Campus Bragança Paulista. Mestre em Educação-PUC-São Paulo. *
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A escolarização da infância e da juventude na perspectiva das pedagogias não-diretivas: uma reflexão à luz das da obra de Georges Snyders
as pedagógicas, rebatendo as posturas que defendem a neutralidade do que se ensina nas escolas, tal como têm proposto os pedagogos não diretivos. Ressaltamos, ainda, nosso empenho em demonstrar a proposta pedagógica subjacente às críticas imputadas por Snyders às pedagogias não diretivas bem como demonstrar suas concepções e referenciais de análise. Vale destacar que Snyders reconhece as contribuições propiciadas pela não diretividade para tomada de consciência sobre determinados problemas e a relevância destes, fato que não invalida as críticas que o autor dirige a alguns representantes dessa pedagogia, destacando as respostas que o marxismo oferece às indagações propostas pelos não diretivistas. Para Snyders: A contribuição da não-diretividade é ter situado, no primeiro plano das preocupações, a relação entre professores e alunos, a confrontação entre a dominação do mestre e a fraqueza passiva do aluno, e obrigar-nos a procurar as condições de uma autonomia do aluno, de uma tomada de iniciativa e de responsabilidades. Obrigar também a saber como dar valor à sua experiência pessoal e à expressão dessa experiência, inclusive a experiência da situação de aluno, da sua prática social, das ligações sociais e escolares que são as dele. E, por este modo, abrir um acesso à vida democrática da classe. Por outro lado, a não-diretividade é um esforço constante para tomar em conta a vida real do grupo, intensificar as riquezas afetivas e intelectuais que se revelem no grupo-classe, quebrar o isolamento individualista, a incompreensão, a desconfiança e, por esta segunda via, favorecer a vida democrática (SNYDERS, 1974, p. 7-8).
Valendo-se dos aspectos acima descritos, Snyders não coloca em dúvida os propósitos bem intencionados dos não diretivistas; antes, ao contrário, o autor sustenta haver, entre tais autores, uma angústia por viverem os problemas da escolaridade com pronunciada acuidade. Por consequência, Snyders reconhece a obrigação em compartilhar dos mesmos propósitos, pois “a vontade de libertação e justiça”, postulada pela não diretividade, “tanto na vida como na pedagogia, não oferece qualquer dúvida” (p. 8). No entanto, Snyders esclarece desde o início o cerne de suas preocupações. Nosso autor aponta como problemático o risco de que este apelo à democracia se deteriore em conformismo. Da mesma forma, a ausência deliberada do mestre, a título de facultar aos alunos o exercício da liberdade, coloca-os à deriva, vítimas de preconceitos, dogmatismos, estereótipos e Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 154-164, jan./jun. 2012
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hábitos mentais cristalizados por uma forma única de ser e pensar. Nesse aspecto, o autor nos adverte sobre os perigos que certa indiferença pelos conteúdos pode resultar na vida dos alunos, condenando-os a um ceticismo cuja única atitude possível é a passividade tanto dos pensamentos como dos comportamentos, tornando-os inaptos para enfrentar os desafios que as tarefas complexas exigem. Quanto à formação do grupo e sua existência, o grande receio é que este ou se divida em facções, ou se “instale no fácil conforto da efusão, da atenção apaixonada, mas quase exclusiva às peripécias da sua própria existência (1978, p. 8). Tais circunstâncias são apontadas como propiciadoras para o isolamento da escola, seu confinamento entre muros, como se ela estivesse cercada por uma “muralha de marfim”, à distância da sociedade à qual pertence e de seus problemas. Nesse sentido, podemos já reconhecer como uma das marcas do pensamento de Snyders sobre a escolarização a ideia de que, para que esta seja compreendida em sua totalidade, deve-se levar em conta a sociedade na qual está inserida. Apesar do reconhecimento, explicitado pelo autor, da escola como reprodução do social, ele coloca a questão nos seguintes termos: “[...] agora que sabemos como o escolar é reprodução do social, devemos procurar, apesar de tudo, que força intrínseca o escolar pode exercer, em que condições históricas e sob que formas históricas pode contribuir sem ilusão e sem abdicação, para a transformação do social” (SNYDERS, 1978, p. 12). Nesse aspecto, Snyders postula que a escola deveria concentrar os seus esforços no desenvolvimento da reflexão crítica sobre os problemas sociais, explicitando os mecanismos de dominação e exploração que favorecem a divisão social e a desigualdade. Desse modo, entendemos que a questão proposta pelo autor poderia ser encaminhada da seguinte forma: apesar de ser a escola uma reprodução ou um reflexo do social, ela deve realizar permanentemente um esforço no sentido de desvelar ou desmascarar as contradições sociais responsáveis pela desigualdade entre os homens. Apesar de reconhecer o entrelaçamento entre o social, o político e o escolar, considerando as contradições sociais como determinantes do modelo de escola que existe, Snyders não considera o fazer pedagógico ou as relações pedagógicas uma questão menor. As críticas desse autor às pedagogias não diretivas já apresentam, elas mesmas, uma concepção diferente das práticas escolares, do papel que cabe ao mestre, da autoridade, da importância do conhecimento e da vida em grupo. 156
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Ao proceder suas críticas às pedagogias não diretivas, valendo-se dos pontos de vista tanto pedagógico como político, o autor sustenta que “não objetivava ter trabalhado a favor da escola tradicional”. Percebemos que, ao longo de toda sua obra, Snyders vai manter um diálogo permanente com o marxismo, lançando mão de suas categorias de análise e enfatizando a luta de classes como base para pensar as contradições que se manifestam no interior das escolas. Na primeira parte da obra, “Para Onde Vão as Pedagogias Não-diretivas?”, o autor relata pesquisas empíricas em educação que tentam destacar a “eficácia” das pedagogias não diretivas por meio da construção de modelos reduzidos. Snyders coloca como compromisso empírico o estudo sequencial dos autores, a fim de manter a originalidade de cada um, embora reconheça que todos por ele estudado participam de um grande movimento “em que as semelhanças têm maior importância do que as diferenças” (SNYDERS, 1978, p. 17). Nas pesquisas relatadas pelos pedagogos não diretivos, percebe-se que o método de investigação adotado se vale de uma antropologia social em que a ação, os comportamentos bem como as atitudes dos diferentes grupos são adotados como instrumentos de análise. Nesse aspecto, a escala laboratorial ou a escala subjetiva de cunho individual perdem importância, e ganham destaque os agrupamentos. As experiências pedagógicas de Lewin, Lipitt e White, na interpretação de Snyders, tinham como referência o grupo. No tocante a este aspecto, Snyders sustenta que: Para a pedagogia há, neste caso, um conhecimento correto: o educador considerará essencial afinar a sensibilidade com o clima do grupo-classe; percebe-se o campo de vida do grupo, a constelação de fatores como unidade e não apenas isolar uma dada variável individual [...]. A coesão do grupo, o grau de integração de seus membros, são dados principais para o professor, que lhes poderá avaliar, ao mesmo tempo, as cambiantes qualitativas e um esforço de melhoramento: cumplicidade da classe na posição, inércia do grupo vivido como obstáculo às vontades individuais, alegria de estarem juntos associados a uma tarefa comum (SNYDERS,1978, p. 37-38).
Portanto, é no contexto dessas pesquisas que Snyders move críticas contundentes, expondo, por meio do potencial crítico da teoria marxista, o Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 154-164, jan./jun. 2012
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caráter profundamente conservador da escola proposta pelos não diretivistas. Considerando as semelhanças que há entre os autores por ele estudados, tentaremos destacar outros aspectos que nos permitam expor melhor o contraponto representado pela crítica de Snyders. Por meio de uma análise consistente de autores como Lewin, Neill, Ferry, Bany e Jonhson, Rogers, Lobrot, Oury e outros, nosso autor refuta o sentido como tais autores, uns mais outros menos, conduzem o tema da escolarização da infância e da juventude, descurando-o da vida política, dos problemas sociais, inclusive da luta de classes, fato que coloca os não diretivistas numa posição conformista, cujo pensamento pôde ser qualificado como despolitizado. Analisando Summerhill como protótipo do que acabamos de ressaltar, Snyders vai evidenciar os fundamentos da pedagogia de Neill. Tais fundamentos podem ser compreendidos na perspectiva dos seguintes aspectos: adaptação da criança a um mundo sem coações, sendo estas consideradas sob quaisquer circunstâncias como injustificadas e inibidoras dos desejos infantis (centrando portanto todo o trabalho escolar nos desejos da criança); apelo para a não intervenção do adulto nos comportamentos da criança e a destituição da autoridade docente. Na ideia: “[...] Toda educação, cujo objetivo principal não seja suprimir toda a coação, prepara a criança para obedecer a todos os ditadores e patrões que encontrar na vida” (NEILL apud SNYDERS, 1978, p. 56), Snyders aponta o aspecto conformista dessa concepção, avaliando-a como incapaz de diferenciar a autoridade pedagógica do autoritarismo conservador. Aliás, o autor pondera que, ao confundir ou tratar indistintamente todas as formas de autoridade, inclusive a docente, Neill presta um grande serviço à manutenção do status quo, pois, se, na concepção deste autor, todas as formas de autoridade se confundem, afinal, opor-se a quê? Nesse aspecto, podemos reconhecer uma forte ligação das ideias de Neill com as de Dewey, quando este autor faz a denúncia do magistrocentrismo como uma das marcas da escola tradicional. No entanto, podemos afirmar que Dewey representa um avanço com relação a Neill, na medida em que o primeiro argumenta a favor da autoridade docente, tornando-a justificável. Talvez, um dos pensamentos de Dewey, que melhor expressa o que destacamos acerca da autoridade docente, se resuma no seguinte: “O professor reduz ao mínimo as ocasiões em que tenha de exercer autoridade pessoal. Quando se faz necessário falar e agir firmemente, fá-lo no interesse 158
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A escolarização da infância e da juventude na perspectiva das pedagogias não-diretivas: uma reflexão à luz das da obra de Georges Snyders
do grupo e não como exibição de poder pessoal. Aí está toda a diferença entre ação arbitrária e ação justa e leal” (DEWEY, 1976, p. 49). No Brasil, na interpretação de Freitas (2002), Manoel Bomfim, apoiado por uma nova concepção de infância que estava se consolidando em sua trajetória, realiza, a exemplo dos não diretivistas, pesadas críticas à centralidade que o professor possuía na relação com os alunos. Movido por razões de natureza civilizatória, inclusive o imperialismo da colonização ibérica, este autor postula a liberdade da criança e a insubordinação de sua espontaneidade à autoridade do professor. Neste sentido, é possível reconhecer algumas marcas do não diretivismo pedagógico em seu pensamento. Outro aspecto sobre o qual Snyders chama a atenção com relação às pedagogias não diretivas diz respeito ao sentido que seus representantes atribuem às coações. Sob orientação do pedagogo não diretivo proposto por Neill, a criança teria plena liberdade para expressar seus desejos, de maneira tal que o menor sinal de interdição representaria já uma agressão ao desenvolvimento natural e espontâneo da criança. Dessa forma, fica abolida toda e qualquer forma de interdição ou coação, a igual título dos modelos, pelos quais a criança poderia pautar o seu desenvolvimento. Com efeito, a criança deveria buscar nela mesma os princípios de suas próprias certezas de inserção no mundo, apoiada unicamente em suas experiências e acervo cultural. Da mesma forma que tentam destituir a autoridade pedagógica do seu papel, os não diretivistas procuram igualmente destituir de seu papel os adultos em geral, inclusive os pais. A explicação que tais autores oferecem é simples, basta deixarem as crianças entregues ao desejo, e com o tempo tudo se enquadra na mais perfeita ordem, como se as tensões por si sós desaparecessem espontaneamente. Portanto, fumar, masturbar-se, ir para a cama a qualquer hora, considerar a escola e as lições como algo facultativo são apenas desajustes que não devem receber qualquer intervenção do adulto ou do mestre. O que pensar, então, da disciplina escolar? Na perspectiva de Neill, ela é desnecessária. Pois “o grupo conhece tanto o objetivo a atingir como o melhor meio de fazê-lo seguir pela ovelha momentaneamente tresmalhada; sabe dosar desaprovação, crítica e mesmo ameaça de repúdio (NEILL apud SNYDERS, 1978, p. 77). Com efeito, a tão almejada disciplina interativa e consciente, que é uma conquista do grupo em conformidade com as regras Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 154-164, jan./jun. 2012
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estabelecidas por meio de uma construção coletiva, incluindo o professor, reduz-se, na proposta apresentada por Neill, a um fim em si mesma. Vale ressaltar, no conjunto dessas reflexões, que, sendo a criança, pela própria limitação da idade, incapaz de discernir com coerência a complexidade dos fatos que a rodeiam, Snyders aponta como problemático deixá-la entregue unicamente aos seus desejos. Neste aspecto, o autor nos adverte sobre o caráter conformista a que estão entregues todas as crianças sujeitas à educação não diretiva, como nos prova a seguinte ideia: De fato, Neill espera que os alunos não hão-de tornar-se nem antissemitas nem imperialistas; mas, para o evitar, não conta de maneira nenhuma com uma reflexão referente a tais atitudes, suas razões de ser, o papel que desempenham. Irão intervir apenas o “desenvolvimento natural” da criança, a atmosfera feliz em que vive e o exemplo de alguns seres, sobretudo do próprio Neill (SNYDERS, 1978, p. 57).
Fica clara, segundo Snyders, a função implícita que tal pedagogia desempenha no sentido de ocultar as contradições sociais, inibir o potencial crítico do aluno e reduzir sua reflexão ao menor índice possível. Configura-se, então, o caráter despolitizado das pedagogias não diretivas, conformistas e conservadoras, por preterir a ideia de que a luta de classes é um dos principais fatores responsáveis pelas injustiças e desigualdades sociais. Nesse aspecto, ganha destaque, segundo Snyders, o ideal de escola proposto pelos não diretivistas, cuja utopia é: “A utopia da escola fora do mundo, independente do mundo, leva a aceitar o mundo tal como ele é, com a única condição de permitir construir, nele, algumas ilhotas de renovação pedagógica” (SNYDERS, 1978, p. 65). O apelo à felicidade, ou melhor, a psicologização dos problemas sociais, converte todas as questões sociais em estados de felicidade ou infelicidade que cada indivíduo manifesta. Nesse aspecto, os não diretivistas delegam à educação a tarefa de proporcionar a felicidade social, independentemente das reais condições de existência. Mais uma vez Snyders denuncia a atitude conformista presente em tais autores, pelo fato de desconsiderarem as transformações sociais bem como a necessidade da revolução que libertaria os homens dos atavismos da dominação e da exploração, ordenaria um universo caótico e o faria habitável ao homem, invertendo, portanto, os mecanismos de alienação, ou seja, daquilo que torna os homens maus e infelizes. 160
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Outra preocupação a ganhar espaço nas críticas que Snyders dirige às pedagogias não diretivas refere-se ao profundo desprezo, manifestado por tais pedagogias, pela busca da verdade como ideal educativo. Negar a importância dos conteúdos transmitidos pela cultura tem sido uma das marcas dos não diretivistas, conforme pudemos constatar na seguinte ideia: “O fundamento deste estudo é a ideia de que as crianças deviam aprender pela experiência a raciocinar e a definir, sozinhas, o que é justo e o que constitui um comportamento aceitável” (BANY e JONHSON apud SNYDERS, 1978, p. 85). Portanto, o encolhimento proposto por tais autores, do acesso à cultura, teve como resultado, na concepção de Snyders, a instituição de uma pedagogia cuja marca é o ceticismo. Nesse aspecto, as pedagogias não diretivas colocam a tarefa do aprendizado como responsabilidade do grupo. É o grupo, por meio de sua própria iniciativa, que decidirá o que estudar e como fazê-lo. Com efeito, os conteúdos, o legado das tradições, o conhecimento acumulado e sistematizado pela humanidade perdem totalmente seus significados, pois o ceticismo dominou a tal ponto os não diretivistas que eles só reconhecem o método como válido. Por consequência, Snyders aponta, entre outros aspectos, que este profundo desprezo pelos conteúdos não possibilita a menor remissão aos problemas sociais, uma vez que o grupo é um microcosmo fechado, o que nos possibilitou estabelecer uma analogia com o denominado “microinteracionismo simbólico”, cujo grande representante foi George Mead. O conservadorismo e o conformismo ganham destaque na crítica de Snyders, sobretudo para ressaltar o caráter apolítico presente entre os não diretivistas. Pois, no ideário da não diretividade, as contradições sociais são colocadas “entre parênteses”, tal como a luta de classes é implicitamente negada como determinante das condições individuais. Nota-se claramente, pelas ideias que desenvolvemos até aqui, que a escolarização da infância e da juventude proposta por Snyders é interpretada e compreendida por meio de análise fundamentalmente sociológica, política e, até certo ponto, filosófica. Nesta análise ganham destaque as críticas que este autor dirige à pedagogia não diretiva, ressaltando o conservantismo pedagógico, o conformismo e o ideal de democracia, marcado por relações idílicas, que ignoram as contradições sociais. A democracia proposta pelos não diretivistas não passa de um engodo; pois, à medida que tais pedagogias Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 154-164, jan./jun. 2012
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conformam os indivíduos em relações fechadas, de grupo, sem que os façam tomar contato com a realidade social, esta aparecerá como harmônica, bela e feliz, ou seja, desprovida de contradições sociais. Com efeito, a democracia, da forma como é concebida por tais pedagogos, não mais é do que o modo eficaz para perpetuar a dominação e a exploração, por ser incapaz de atribuir um estatuto digno dos problemas sociais. Nesse aspecto, as categorias de análise do marxismo mobilizadas por Snyders colocam-se como um poderoso meio de resistência. Para ele: A não-diretividade é o método que se pode adotar atualmente, é aquele que se é levado a adotar atualmente, em pedagogia, quando se verifica o malogro da escola burguesa e não se consegue adotar resolutamente outras posições, nem aliar luta pedagógica e luta política de massas. É o último recurso daqueles que, tendo descoberto a crítica política dos conteúdos ensinados, se refugiam na recusa, na negação e, finalmente, no desprezo (SNYDERS, 1978, p. 303).
Na passagem acima descrita, bem como na seguinte, não poderíamos permanecer incólumes, sem estabelecer uma relação, ou melhor, identificar uma presença frankfurtiana na análise de Snyders. Obviamente, teríamos muito a aprofundar. No entanto, quando Snyders coloca que “nem aguardar que a Revolução se faça para metamorfosear a escola, nem acreditar que se possa instituir uma boa escola numa sociedade má” (1978, p. 295), percebemos alguns elementos que aproximam a crítica frankfurtiana de seu pensamento. Pois a última parte da ideia exposta foi inteiramente defendida por Adorno em seus escritos sobre educação e emancipação1. Numa outra passagem, quando Snyders defende a primazia dos conteúdos, percebemos, também, certa ressonância com os frankfurtianos, principalmente quando Snyders insere a indagação “que tipo de homem esperam formar?” Embora Adorno não desenvolva explicitamente a importância dos conteúdos, as perguntas “para onde a educação deve conduzir?” e “que tipo de homem nós queremos formar com a educação?” ganham importância em seu pensamento.
1 Chamo atenção para a seguinte obra de Thedor Adorno: Educação e emancipaçã (2000). Tradução Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
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Snyders coloca em relevo a importância dos conteúdos como contraponto ao que as pedagogias não diretivas colocam acerca do método. Pois, para o autor, a pedagogia só ganha significado quando suas questões deixam claro o seguinte: O que se ensina e o que se oculta aos alunos? Como lhes apresentam o mundo em que vivemos? Para que ações os conduzem as palavras, os silêncios, as atitudes implícitas e explícitas do mestre? Que ajuda se lhes dá, para ultrapassarem as mistificações interessadas nas quais tantas forças contribuem para os manter? (SNYDERS, 1978, p. 310).
Nessa perspectiva, o conceito de continuidade e o de ruptura ganham posição central no pensamento de Snyders. Inspirado no marxismo, o autor põe a experiência do aluno e a cultura numa relação dialética; pois, se, por um lado, a experiência do aluno deve ser considerada válida no contexto escolar, por outro lado, a mesma experiência deve ser ultrapassada, a fim de que o aluno consiga oferecer respostas para as questões que sozinho jamais conseguiria resolver. Com isso, a valorização da cultura, dos conteúdos escolares, da autoridade pedagógica e do patrimônio cultural da humanidade foi invocada pela concepção de escolaridade, presente em Snyders, para proceder à desmontagem do ideário pedagógico proposto pelos não diretivos. Snyders precisa o sentido de sua busca, sinalizando para “a proposta de uma pedagogia cujos conteúdos sejam tais que, do princípio ao fim, continuidade e ruptura estejam intimamente ligadas” (SNYDERS, 1978, p. 315). Nesse aspecto, é possível perceber uma busca autêntica da verdade por parte do aluno bem como uma iniciativa particular, regida pelo senso da responsabilidade, que é o simétrico oposto do autoritarismo, cuja figura emblemática é a concepção que Snyders atribui ao diálogo socrático. Com efeito, as relações entre mestre e aluno perdem seu caráter horizontal proposto pelos pedagogos não diretivos, em que não há autoridade alguma, bem como seu caráter vertical de sujeição incondicional do aluno ao mestre. Para finalizar, vale ressaltar que, na segunda parte da obra, Snyders sistematiza as ideias já elaboradas em sua crítica aos pedagogos não diretivos. Obviamente, as questões levantadas neste trabalho não esgotam todas as ideias presentes na crítica que Snyders dirige às pedagogias não diretivas. Gostaríamos de salientar, mais uma vez, que o pensamento de Marx é a Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 154-164, jan./jun. 2012
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fonte onde Snyders busca inspirar suas ideias, valendo-se dos instrumentos de análise que a teoria marxista oferece. Sua relação com o marxismo é de intenso diálogo, fértil e positiva, como pôde ser visto na seguinte citação: “a doutrina de Marx é a legítima sucessora, a continuação direta e imediata de tudo que a humanidade criou de melhor no século XIX: a filosofia alemã, a economia política inglesa e o socialismo francês” (SNYDERS, 1978, p. 338). A noção de continuidade e a de ruptura, talvez uma das heranças mais importantes do marxismo a ganhar força no pensamento de Snyders, perpassam todos os temas de estudo, buscando destacar por meio da tensão dialética os elementos que conservam e ao mesmo tempo superam a realidade.
Referências COULON, Alain. A escola de Chicago. Tradução: Tomás R. Bueno. Campinas: Papirus, 1995. DEWEY, John. Experiência e educação. Tradução: Anísio Teixeira. 2. ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1976. FREITAS, Marcos Cezar. Da ideia de estudar a criança no pensamento social brasileiro: a contraface de um paradigma. In: FREITAS, Marcos Cezar; KUHLMANN Jr., Moysés (Orgs.). Os intelectuais na história da infância. São Paulo: Cortez, 2002. SNYDERS, Georges. Para onde vão as pedagogias não-diretivas? Tradução: Ruth Delgado. 2. ed. Lisboa: Moraes Editores, 1978. THE SCHOOLING OF THE CHILDHOOD AND OF THE YOUTH IN THE PERSPECTIVE OF THE NON-DIRECTIVE PEDAGOGIES: A REFLECTION IN THE LIGHT OF GEORGES SNYDERS’ WORK. Abstract The objective of this article is to reflect on the schooling of the childhood and of the youth, highlighting some conceptions present in the so-called “non-directive pedagogies”, opposing them to the criticisms proposed by Georges Snyders. So, it is highlighted the criticisms addressed to the pedagogical conservatism, to the conformism present in the schooling practices and to the ideal of the democracy marked by idyllic relations, which ignore the social contradictions. Keywords: Childhood. Youth. Schooling. Non-directive. Pedagogy. 164
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ECOTEOLOGIA: DO GRITO DOS POBRES AO GRITO DA TERRA NA PERSPECTIVA DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO EM LEONARDO BOFF Emerson Sbardelotti Tavares*
Resumo A Teologia da Libertação surge como inovação teológica no continente americano e ganha depois todo o mundo. Ela ousa refletir a realidade cotidiana à luz da prática e da pedagogia libertadora do Moreno de Nazaré não mais a partir da dedução, mas de uma práxis libertadora – da opressão imposta, 41 anos atrás, pelas ditaduras militares latino-americanas com financiamento estadunidense – diante do pobre, que sofre e clama por vida ao Deus da Vida que fez sua tenda e habitou no seu meio. Se houvesse que resumir o conceito ou a ideia central da Teologia da Libertação em uma só frase, esta seria: opção preferencial pelos pobres. A ecoteologia de Leonardo Boff é um paradigma que nasce do grito dos pobres e ao mesmo tempo do grito da Terra, e consigo traz a reflexão do cosmocentrismo: centralidade ecológica como alternativa ao antropocentrismo que se sustenta na produtividade e na exploração da natureza. Palavras-chave: Teologia da Libertação; ecologia; Leonardo Boff; opção preferencial pelos pobres; ecoteologia.
Introdução Falar de teologia na América Latina e no Caribe depois do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965) é falar da Teologia da Libertação;
* Estudante de bacharelado em Teologia pelo Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória do Espírito Santo (IFTAV); licenciado em História pelo Centro Universitário São Camilo, Vitória – ES; bacharel em Turismo pela Faculdade de Turismo de Guarapari – ES; autor de O mistério e o sopro: roteiros para acampamentos juvenis e reuniões de grupos de jovens. Brasília: CPP (www.cpp.com.br), 2005; autor de Utopia poética. São Leopoldo: CEBI (www.cebi.org.br), 2007; agente de pastoral leigo da Paróquia Nossa Senhora da Conceição Aparecida, Cobilândia, Vila Velha – ES; assessor para as áreas de Mística, Espiritualidade, Juventude, Bíblia e Liturgia. Correio eletrônico: emersonpjbes@hotmail.com.
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contudo, o Concílio foi o evento e o fato histórico-teológico mais importante do século XX para a Igreja Católica. Mas, no corrente século XXI, continua pendente a plena aceitação do Vaticano II, embora se tenham dado passos importantes na reforma litúrgica, na adequação da catequese, na nova codificação canônica, na renovação teológica das universidades, na internacionalização da cúria romana, entre outros; fica ainda muita estrada para ser percorrida na direção do próprio Concílio como também da Teologia da Libertação. Se houvesse que resumir o conceito ou a ideia central da Teologia da Libertação em uma só frase, esta seria: opção preferencial pelos pobres. O grito dos pobres ecoa por toda a Terra, e cada dia mais alto. Da mesma forma, a Terra grita diante do desenvolvimento insustentável: sustentar o desenvolvimento e crescimento econômico das nações poderosas em detrimento do planeta, a exploração indiscriminada dos recursos e, pior, a sustentabilidade da pobreza e da miséria dos países subdesenvolvidos, é levar o planeta que conhecemos ao caos irreversível. Dentro das contribuições dadas por Leonardo Boff, apontamos aquelas que refletem o seu pensamento teoantropocósmico, e que se fazem mais atuais do que nunca. É evidente que não se pode abraçar todo o arcabouço intelectual e literário de Leonardo Boff construído nas últimas quatro décadas, mas se deu um primeiro passo, ou um novo passo, para que a pesquisa e o interesse neste pensador e nos outros pensadores citados, e que gestaram a Teologia da Libertação que hoje se conhece, possa continuar a existir e a estimular outros a penetrarem ainda mais nas águas profundas desta teologia, sem preconceitos e no diálogo sincero e aberto, seduzindo e se deixando seduzir.
1 A Teologia da Libertação A Teologia da Libertação (TdL) é um fato social e eclesial que acompanha as mudanças de paradigmas da sociedade e da Igreja. Estando ou não esta teologia na mídia ou nos altares, sua reflexão se faz necessária e cada dia mais profética. É a filha da união da Igreja Católica Apostólica Romana com os pobres. Ela já não é sinônimo exclusivamente de Teologia LatinoAmericana, mas também de Teologia Africano-Asiática da Libertação, Teologia Indígena da Libertação, Teologia Feminina da Libertação etc. A TdL é um movimento teológico com dimensões globais e estrutura plural. 166
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Ecoteologia: do grito dos pobres ao grito da terra na perspectiva da teologia da libertação em Leonardo Boff.
Sua eficácia está em gestar um novo tipo de cristão: o pé no chão. Aquele que é engajado na luta pela defesa da vida ao lado dos oprimidos e disposto à mudança de valores na sociedade, à ideia da revolução solidária não violenta e ao sonho de um ser humano novo, mulher e homem; mantendo sua fé e sua esperança. Se houvesse que resumir o conceito ou a ideia central da TdL em uma só frase, seria: opção preferencial pelos pobres! A TdL acredita e afirma o lugar central de Jesus de Nazaré e não substitui Jesus de Nazaré pelos pobres, mesmo Este sendo pobre. Ela destaca o lugar que ocupam os pobres na revelação cristã, mas não os coloca no lugar de Cristo. Ela entende que os pobres não são dispensáveis. Não se pode ser cristão sem acolher a mensagem que vem dos pobres, que é a mesma proclamada pelo Segundo Testamento. Ela ensina que quem pode dizer “Cristo é Senhor” com sinceridade, como expressão de toda a sua vida, são os pobres. Daí o lugar central dos pobres, que não afeta em nada o lugar central de Jesus de Nazaré, pelo contrário, o confirma. Por detrás da TdL existe a opção profética e solidária com a vida. Boff, o maior expoente da TdL no Brasil, diz: De repente, a teologia foi para as ruas e se tornou assunto nos botequins, porque tocava numa ferida aberta no corpo social: os pobres e os crucificados. A Teologia da Libertação nasceu de uma profunda espiritualidade, de um encontro dos cristãos com o Senhor no meio dos pobres, e arrastou consigo a comoção de grandes segmentos da sociedade que já se encontravam envolvidos com o desafio do tratamento e eliminação desta ferida. A TdL não nasceu inspirada por Marx, mas teve seu nascedouro no berço da fé. Mais do que um discurso teológico que parte de análises sociopolíticas, a TdL é uma prática religiosa e tem uma mística de solidariedade e identificação com os oprimidos. Os cristãos são chamados a desenvolver uma santidade política. O que está em jogo na Igreja não é a Teologia da Libertação, mas a libertação dos cristos de hoje (BOFF, 1991, p. 68).
Libanio tem uma explicação sobre a TdL: A teologia da libertação foi, antes de tudo, uma libertação da teologia. Ela quer ser uma teologia para a nossa situação e não simples xerox da teologia de outros países. Ao querer ser uma teologia para a América Latina, ela parte Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 165-182, jan./jun. 2012
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dos problemas da América Latina. Ora, o maior problema que nós vivemos é a situação de opressão, de exploração das grandes massas populares. E a TdL quer ser esta teologia que motiva e ilumina o cristão na luta pela libertação. Por isso se chama Teologia da Libertação. Ela não organiza, nem faz a libertação. Ela quer simplesmente ajudar esses homens e mulheres, que são cristãos, a verem o que a sua fé diz sobre tal luta, motivando-a, iluminando-a, criticando-a nos pontos em que possa ter entrado algo de anticristão (LIBANIO, 2011, p. 1).
Sobre o método da TdL: ele é indutivo, partindo da interpretação da realidade de pobreza e exclusão e do compromisso com a libertação para fazer a reflexão teológica e convidar à ação transformadora desta mesma realidade, sem contudo abrir mão da Revelação e da Tradição. Teixeira expõe alguns pontos do método: O primeiro passo no processo metodológico da TdL é o VER. Daí a necessidade do recurso à mediação socioanalítica (MSA), que fornece o conhecimento positivo da realidade social. A teologia, como tal, não está provida dos instrumentos necessários para a captação da realidade, mas deve se colocar “à escuta” das disciplinas que tratam desta questão. As ciências do social (CdS) entram como matéria-prima do processo teológico, a nível de seu objeto material, mas não são elas que fornecem a “pertinência” própria da teologia como tal. As ciências do social exercem um estatuto mediacional para a TdL, ajudando a teologia a melhor compreender a realidade sobre a qual teologizará. O segundo passo metodológico relaciona-se ao JULGAR. Trata-se do momento propriamente teológico do método da TdL, de constituição de sua formalidade específica. É o momento do recurso à mediação hermenêutica (MH), quando vêm elaborados os critérios teológicos de leitura do texto socioanalítico. É aqui que entram os princípios da fé que conformam a pertinência teológica: a escuta da Fé, da Escritura, da Tradição e da Razão Teológica. Trata-se da instância mediante a qual se teologiza, o “à luz da fé” que garante a formalidade teológica. No processo de produção teológica é esta instância que mantém o primado, enquanto trabalha a matéria-prima dada com o recurso da formalidade do olhar teológico. É a instância que garante a qualidade da produção teológica. O terceiro passo relaciona-se à mediação prática (MP). É o momento sintonizado com o AGIR. Entra aqui em questão toda a complexa dialética entre teoria e práxis. Trata-se do delicado momento da tradução em ação concreta do que se viu e julgou anteriormente à luz da fé. O patamar agora não é mais o do socioanalítico ou 168
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teológico, mas essencialmente prático, e a ação tem outras leis e exigências. A singularidade da prática teológica latino-americana está na operacionalidade de uma fé articulada com a prática agápica, e também na compreensão de que “a Fé se vive hoje na tecitura de coordenadas inéditas, demarcadas por afrontamentos históricos, que se tornam assim o novo lugar de exercício do logos teológico” (TEIXEIRA, 2011, p. 1).
O lugar situacional da TdL é a América Latina e o Caribe logo após o encerramento do Concílio Ecumênico Vaticano II e chegou à sua culminância nos Documentos da Segunda Conferência Geral do Episcopado da América Latina, em Medellín, Colômbia, em 1968. Ela se faz entender como a prática de toda a teoria levantada no mesmo Concílio, principalmente no que diz respeito ao aggiornamento, aos sinais dos tempos, e à abertura da Igreja Católica em sua aproximação com os mais necessitados do Reino aqui no Continente. Por isso, a TdL é universal e particular, é católica apostólica e latino-americana e caribenha. Vivia-se na América Latina o período cruel das ditaduras militares, todas financiadas pelo governo estadunidense; a particularidade da TdL será o chão de uma profecia viva e decisiva para as mudanças que ocorrerão depois. A realidade eclesial se confundia com o contexto sociopolítico-cultural. Com a Bíblia em uma mão e na outra a Constituição Pastoral Gaudium et Spes, sobre a Igreja no Mundo de Hoje, os habitantes da América Latina e do Caribe recebiam uma moderna boa-nova: As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens do nosso tempo e de quantos sofrem são as alegrias e as esperanças, as tristezas e angústias dos discípulos de Cristo. Nada há de verdadeiramente humano que não encontre eco em seu coração. A comunidade cristã está integrada por homens que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo em seu peregrinar para o reino do Pai, e receberam a Boa-nova da salvação para comunicá-la a todos. A Igreja, por isso, sente-se íntima e realmente solidária com o gênero humano e com sua história (GS,2009, p. 6).
Nesse parágrafo se acham presente todos os temas que a TdL tentaria desenvolver ao longo das quatro décadas seguintes, quando bispos, padres, religiosas, leigos e leigas iriam traçar um retrato da realidade, exigindo e trabalhando por mudanças rápidas e profundas, que ainda hoje mantêm Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 165-182, jan./jun. 2012
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grande atualidade. O resultado de tamanha ousadia seria a perseguição desenfreada e o martírio.
2 Teologia da Libertação – temas fundamentais São temas fundamentais da TdL: a Opção pelos Pobres (OP); a Opção pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e a Questão Ecológica.
2.1 A Opção pelos Pobres (OP) A Opção pelos Pobres (OP) nunca foi uma moda passageira, nem é hoje em dia. Ela é a base da TdL, pois é a opção radical feita por Jesus de Nazaré. Jesus escolheu os pobres enquanto seguidores, colaboradores mais próximos, discípulos, amigos. Quanto mais se aprofunda na teologia do pobre, mais se aprofunda na Palavra de Deus, mais aparecem novos fundamentos e realidades que falam da veracidade da OP em seu triplo sentido: pastoral, teológico e bíblico. A OP é a essência de um cristianismo católico que pretende ser fiel ao Evangelho. Consiste na decisão voluntária de unir-se ao mundo dos pobres, assumindo com postura e estética evangélica, com realismo histórico, a causa da libertação integral. Ela deve ser realizada por todos aqueles que creem, independente da sua situação socioeconômica. A OP é uma expressão moderna, mas ela está no fundamento da Bíblia. A Bíblia parte da revelação de um Deus que opta por pessoas que são oprimidas por seus iguais, por seus reis, pelos reis inimigos e pelos mais poderosos. O Deus da Bíblia se revela, pela primeira vez, como o Deus destes pobres específicos no livro do Êxodo: os camponeses e os trabalhadores das construções do Faraó do Egito. A opção do Deus da Bíblia é estrita: toma partido deles contra o opressor. No Êxodo, Deus se revela como defensor dos pobres: Para entender a natureza da pobreza no antigo Mediterrâneo Oriental, precisamos nos deter na expressão “país do Egito, casa da servidão” do Decálogo. Casa da servidão (heit abodim) remete-nos ao sistema social que dominou o Egito, como também Caná, o Israel monárquico, a Síria e a Babilônia: o Modo de Produção Tributário. Começando pelos últimos, o povo do rei era a base social que produzia os bens de consumo de todos. Embora a posse das terras fosse 170
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da aldeia, o dono legal de todas as terras do Egito era o rei. A ele pertenciam também, por lei, os corpos de todos os camponeses do Egito. Nessas condições, antes que os produtos das terras e dos animais fossem usados para o consumo local, era preciso separar a renda do dono, o rei, que era a quinta parte. Para manter a fé do povo em benefício do sistema, eram necessários ritos suntuosos em templos igualmente suntuosos. Isto é, no modo de produção tributário, o templo e a religião são indispensáveis como sustentáculos da coroa. Quando se diz em Ex 20,2 que o Egito era “a casa da servidão”, isso é o que significa. E foi o Deus Iahweh que tirou esse Israel dessa servidão, reivindicando com esse fato salvífico a lealdade incondicional do seu povo (PIXLEY, 2011, p. 17-19).
Procurando seguir os passos de Jesus de Nazaré, os bispos latinoamericanos na Conferência de Puebla (1979), no México, assumiam, com renovada esperança e força vivificadora do Espírito Santo, a clara e profética opção preferencial e solidária pelos pobres feita na Conferência de Medellín (1968), na Colômbia; e reconheciam a necessidade sempre atual de uma conversão de toda a Igreja para essa opção, no intuito de uma integral libertação. Em seus números 1140, 1147, confessam e afirmam que: Na Igreja da América Latina, nem todos nos temos comprometido bastante com os pobres; nem sempre nos preocupamos com eles e somos com eles solidários. O serviço do pobre exige, de fato, uma conversão e purificação constante, em todos os cristãos, para conseguir-se uma identificação cada dia mais plena com Cristo pobre e com os pobres. O compromisso com os pobres e oprimidos e o surgimento das Comunidades de Base ajudaram a Igreja a descobrir o potencial evangelizador dos pobres, enquanto estes a interpelam constantemente, chamando-a à conversão e porque muitos deles realizam em sua vida os valores evangélicos de solidariedade, serviço, simplicidade e disponibilidade para acolher o dom de Deus (CELAM, 1986, p. 353-356).
2.2 A Opção pelas CEBs As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), na Igreja do Brasil e na América Latina e no Caribe, constituem um dos traços mais dinâmicos da vida em comunhão, da vida em sociedade. O método para estabelecer a relação entre fé e vida nas CEBs é o ver-julgar-agir-rever-celebrar, vivido Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 165-182, jan./jun. 2012
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e discutido em pequenos grupos por causa de um impulso renovador que cresceu a partir das décadas de 1950 e 1960, chegando até os nossos dias hodiernos, em que se relê a história e se descobrem desafios a partir da experiência dos Intereclesiais das CEBs, da espiritualidade e da vivência eucarística, do anúncio da Palavra de Deus e do testemunho de fé (martírio), da solidariedade e do serviço, da formação dos discípulos missionários e de rede de comunidades, da participação nos movimentos sociais, da abertura ao ecumenismo e ao diálogo inter-religioso. Mas o que significam as CEBs? Existem muitas formas de comunidades; essa se denomina de base, quer dizer, composta das pessoas e dos estratos que se encontram mais embaixo na escala social (pobres, indígenas, negros, mulheres marginalizadas, desempregados) e constituem também o grupo majoritário da Igreja, que são os leigos, homens e mulheres que não pertencem à hierarquia da Igreja. Ela se denomina também eclesial – algo que tem relação com a Igreja, e por isso se distingue das demais formas de comunidade. O eclesial aparece aqui como adjetivo qualificativo do substantivo comunidade. Entretanto, numa perspectiva eclesiológica fundamental, o adjetivo (eclesial) é mais importante do que o substantivo (comunidade), porque é ele o princípio constituinte e estruturante da comunidade. A comunidade eclesial se constitui como resposta à fé cristã e como resultado do apelo evangélico à conversão e à salvação. Essa consideração nos parece profundamente necessária e também inquestionável (BOFF, 2008, p. 39-40).
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), pronunciando-se sobre as CEBs, diz: Fator de renovação interna e novo modo de a Igreja estar presente no mundo, elas constituem, por certo, um fenômeno irreversível, senão nos detalhes de sua estruturação, ao menos no espírito que as anima. As CEBs não surgiram como produto de geração espontânea, nem como fruto de mera decisão pastoral. Elas são resultado da convergência de descobertas e conversões pastorais que implicam toda a Igreja – povo de Deus, pastores e fiéis – na qual o Espírito opera sem cessar. O Concílio Vaticano II, eminentemente pastoral, provocou um grande impacto na Igreja. De forma privilegiada, as CEBs redescobrem, na leitura bíblica, o aspecto libertador da História da Salvação. Veem sua própria caminhada prefigurada no Êxodo do povo de 172
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Israel e atualizada na vivência do Mistério Pascal de Jesus Cristo. Assumem sua luta pela justiça como realização do profetismo na sociedade de hoje (CNBB, 1999, p. 5-9).
Mosconi diz que o Documento de Aparecida reconfirmou o valor das CEBs: “As CEBs têm sido escolas que têm ajudado a formar cristãos comprometidos com sua fé, discípulos e missionários do Senhor” (n. 178). “As CEBs são expressão visível da opção preferencial pelos pobres. São fonte e semente de variados serviços e ministérios a favor da vida na sociedade e na Igreja” (n. 179). Porém, este autor diz que o texto original do Documento de Aparecida, aprovado em assembleia pelos bispos, continha afirmações ainda mais animadoras a respeito das CEBs, mas que desapareceram do documento oficial aprovado pela Santa Sé: Enraizadas no coração do mundo, as CEBs são espaços privilegiados para a vivência comunitária da fé, mananciais de fraternidade e de solidariedade, alternativa à sociedade atual, fundada no egoísmo e na concorrência brutal... Queremos, decididamente, reafirmar e dar novo impulso à vida e à Missão profética e santificadora das CEBs, no seguimento missionário de Jesus. Elas têm sido uma das grandes manifestações do Espírito na América Latina e no Caribe depois do Concílio Vaticano II... Depois do caminho feito até agora, com avanços e dificuldades, é o momento de uma profunda renovação desta rica experiência eclesial em nosso continente, para que não percam sua eficácia missionária e sim a melhorem e a aumentem diante das contínuas novas exigências da época (MOSCONI, 2010, p. 32).
Em sua mensagem ao povo de Deus sobre as CEBs, a CNBB assim se expressou: Queremos reafirmar que elas continuam sendo um “sinal da vitalidade da Igreja”. Os discípulos e as discípulas de Cristo nelas se reúnem para uma atenta escuta da Palavra de Deus, para a busca de relações mais fraternas, para celebrar os mistérios cristãos em sua vida e para assumir o compromisso de transformação da sociedade. Além disso, como afirma Medellín, as comunidades de base são “o primeiro e fundamental núcleo eclesial, célula inicial da estrutura eclesial e foco de evangelização e, atualmente, fator primordial da promoção humana. São as relações de reciprocidade que, promovendo a Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 165-182, jan./jun. 2012
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solidariedade, que é a força dos pobres e pequenos, permitem que se diga que “gente simples, fazendo coisas pequenas, em lugares pouco importantes, consegue mudanças extraordinárias” (CNBB, 2010, p. 6-8).
2.3 A questão ecológica A TdL, em toda sua existência, não abriu mão de discutir o ser humano e a Criação. A preocupação com os pobres levou-a a se preocupar com a Terra. Nunca se maltratou tanto a Terra como no século XX e agora também no século XXI. A ecologia é o novo paradigma. A partir dela a sociedade deverá encontrar uma forma genuína de organizar o conjunto de relações humanas entre si, com a natureza e com o Universo neste século XXI ou irá desaparecer. Mas o que é ecologia? O termo ecologia foi cunhado em 1866 pelo biólogo alemão Ernst Haeckel (1834-1919). Ele é composto de duas palavras gregas: oikos, que significa “casa”; e logos, que quer dizer “reflexão” ou “estudo”. Assim, ecologia quer dizer o estudo que se faz acerca das condições e relações que formam o habitat (casa) do conjunto e de cada um dos seres da natureza. Atualmente o conceito se expandiu para além dos seres vivos. Ecologia representa a relação, a interação e o diálogo que todos os seres (vivos e não vivos) guardam entre si e com tudo o mais que existe. A natureza (o conjunto de todos os seres), desde as partículas elementares e as energias primordiais, até as formas mais complexas de vida, é dinâmica; ela constitui um tecido intricadíssimo com conexões por todos os lados. A ecologia não abarca apenas a natureza (ecologia natural), mas também a cultura e a sociedade (ecologia humana, social etc.). Assim, a tese básica de uma visão ecológica da natureza reza: tudo se relaciona com tudo em todos os pontos. Todos os seres da Terra estão ameaçados, a começar pelos pobres e marginalizados. E dessa vez não haverá uma arca de Noé que salve alguns e deixe perder os outros. Ou todos nos salvamos, ou todos corremos o risco de nos perder. Devido à importância dessa questão, todas as práticas humanas e todos os saberes devem se redimensionar a partir da ecologia e dar sua contribuição específica na salvaguarda do criado. É essa reconversão que hoje se impõe a todos (BOFF, 2008, p. 25-28).
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O certo é que da primeira definição até hoje são muitas as variações no conceito de ecologia e, portanto, da interpretação que ela oferece à realidade. Esta variação se baseia em três eixos: 1. O reconhecimento e vinculação do ser humano na rede de relações dos organismos vivos, o que gerou um diálogo entre ciências naturais e ciências sociais. 2. O surgimento do conceito de ecossistema (Tansley, 1935). 3. A dimensão de escala do oikos, porque não se trata mais só do âmbito vital de uma espécie, e sim do caráter planetário e cósmico da vida (SUSIN e SANTOS, 2011, p. 50).
3 Teologia da Libertação e pastoral A TdL inspira o serviço pastoral, e o serviço pastoral fornece reflexões que fazem com que a TdL não fique estática; sendo assim, ela evolui com a reflexão política, econômica, social e religiosa que brota no meio das CEBs.
3.1 A questão da ortopráxis na TdL Existe de fato a palavra ortodoxia: no seu sentido comum, no meio católico, refere-se à correta, verdadeira, certa doutrina ensinada pelo Magistério apoiado na Palavra de Deus, entendida e interpretada ao longo da Tradição da Igreja. À semelhança dessa palavra, forjou-se o termo ortopráxis: aquela práxis que seja correta, verdadeira. Surge a pergunta: a partir de que instância se julga assim? Não da doutrinal, mas da realidade dos pobres. Ortopráxis, para a TdL, é aquela ação transformadora da realidade na linha da libertação dos pobres em oposição a práticas que os mantêm alienados, submissos, oprimidos e excluídos. Boff diz: A teologia da libertação e o discurso ecológico têm algo em comum: partem de duas chagas que sangram. A primeira, a chaga da pobreza e da miséria, rompe o tecido social dos milhões e milhões de pobres no mundo inteiro. A segunda, a agressão, sistemática à Terra, desestrutura o equilíbrio do planeta, Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 165-182, jan./jun. 2012
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ameaçado pela depredação feita a partir do tipo de desenvolvimento montado pelas sociedades contemporâneas e hoje mundializadas. Ambas as linhas de reflexão e de prática partem de um grito: o grito dos pobres por vida, liberdade e beleza (cf. Ex 3,7): a teologia da libertação; e o grito da Terra que geme sob a opressão (cf. Rm 8,22-23): a ecologia. Ambas visam a libertação, uma dos pobres a partir deles mesmos, como sujeitos históricos organizados, conscientizados e articulados com outros aliados que assumem a sua causa e a sua luta; e outra da Terra mediante uma nova aliança do ser humano para com ela, num relacionamento fraternal/sororal e com um tipo de desenvolvimento sustentável que respeite os diferentes ecossistemas e garanta uma boa qualidade de vida às gerações futuras. Como se situa a teologia da libertação diante da preocupação ecológica? Inicialmente devemos reconhecer que a teologia da libertação não nasceu no horizonte da preocupação ecológica. O fato maior e desafiador não era a Terra como totalidade ameaçada, mas os filhos e filhas da Terra explorados e condenados a morrer antes do tempo, os pobres e oprimidos. Com isso não significa dizer que suas instituições básicas tenham pouco a ver com a ecologia. Elas têm a ver diretamente com ela, pois o pobre e o oprimido são membros da natureza e sua situação representa objetivamente uma agressão ecológica. A opção pelos pobres contra a sua pobreza e em favor de sua libertação constituiu e continua a constituir o núcleo axial da teologia da libertação. Optar pelos pobres implica numa prática: significa assumir o lugar do pobre, sua causa, sua luta e, no limite, seu destino muitas vezes trágico (BOFF, 1996, p. 163-168).
3.2 Da ecoteologia à ecopastoral A ecologia, mais do que uma necessidade científica e planetária, é sem dúvida um movimento social, pois lança as bases de uma nova compreensão da vida na Terra. E esta compreensão faz com que a ecoteologia vá em direção à ecopastoral e vice-versa. Preferivelmente nas CEBs, novos caminhos são apontados para que seus membros possam ir além da comunidade humana para o outro mundo possível, criando assim um futuro diferente para o planeta e para a própria família humana. E a conjunção de ecologia e pastoral constitui o elemento indispensável para responder ao grito dos pobres no grito da Terra, responder ao grito da Terra no grito hodierno dos pobres. 176
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Pastoral vem da palavra pastor. Pastor é aquele que cuida, organiza e conduz o rebanho. O pastor é Jesus de Nazaré, o moreno crucificado e ressuscitado. O termo pastoral é muito presente na linguagem e nos documentos da Igreja, quase que exclusivamente; não se faz uso do termo em outros ambientes sociais. Pastoral é a ação da Igreja no mundo. É uma ação evangelizadora que se realiza na comunidade eclesial de base a partir de mútua cooperação. Pastoral é uma ação transformadora que procura atender às necessidades brotadas na caminhada do Povo de Deus. É serviço e doação no seguimento da pedagogia e da prática libertadora do Mestre de Nazaré. A Igreja deve estar atenta a este novo sinal dos tempos: a Terra e a Humanidade enquanto Eco Sagrado; pois possuem a mesma origem e o mesmo destino, que vai do caos e da tragédia ao cuidado e sustentação de toda a vida: O ser humano é, pois, a própria Terra num momento avançado de sua evolução, quando começou conscientemente a sentir, a pensar, a amar, a cuidar e a venerar. A Terra é um princípio generativo. Representa a Mãe que concebe, gesta e dá a luz. Emerge assim o arquétipo da Terra como Grande Mãe, Pacha Mama e Nana. Da mesma forma que ela tudo gera e cria as condições boas para a vida, ela também tudo acolhe e tudo recolhe em seu seio. Sentir-se Terra é mergulhar na comunidade terrenal, no mundo dos irmãos e das irmãs, como foi vivido exemplarmente por Francisco de Assis em sua mística cósmica. Cada um precisa refazer essa experiência de comunhão radical com a Terra, a fim de recuperar suas raízes terrenais e alimentar sua própria identidade. A partir da experiência da Mãe Terra, surgirá naturalmente a experiência de Deus como Mãe de infinita ternura e cheia de misericórdia. Essa experiência associada àquela do Pai de ilimitado amor e bondade nos abrirá a uma experiência mais global e integradora do mistério de Deus. A consciência coletiva incorpora mais e mais a concepção que o Planeta Terra é a nossa Casa Comum, a única que temos para habitar. Importa, por isso, cuidar dela, torná-la habitável para todos, conservá-la em sua generosidade e preservá-la em sua integridade e esplendor. Daí nasce um ethos mundial compartido por todos, capaz de unir os seres humanos para além de suas diferenças culturais, sentindo-se de fato como filhos e filhas da Terra que a amam e respeitam como a sua própria Mãe (BOFF, 2009, p. 341-344). Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 165-182, jan./jun. 2012
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Uma teologia a partir da práxis pastoral da Igreja: A opção da TdL orienta-se numa concepção dialética entre as práticas individuais pessoais e as estruturas sociais. Supera o acento sobre o individual, valorizando o aspecto pessoal, não naquilo que tem de individual, mas de abertura ao social, ao estrutural, ao societário. A opção prévia e fundante da TdL é pelos pobres contra a pobreza. Nasce de motivação ético-evangélica com o objetivo político-social de terminar com a pobreza injusta, não para transformar os pobres em ricos, mas para que tenham condição justa, digna e humana de vida. Tal opção nasce de um contexto de pobreza e opressão a partir do senso ético e evangélico de quem, com sensibilidade humana, com abertura ao outro, e sem dúvida, tocado pela graça de Deus, se empenha na luta contra a injustiça da pobreza em vista da justiça de uma condição humana e digna (LIBANIO, 1987, p. 126-132).
3.3 Caminhos de uma ecoespiritualidade a serviço da vida A espiritualidade passou e ainda passa por uma grande crise. Tanto as expressões tradicionais como as contemporâneas são questionadas, e para muitos perderam o sentido de ser. Com a renovação institucional e pastoral ocorrida com o Concílio Ecumênico Vaticano II, com o redimensionamento da vida religiosa, com a readequação do ministério ordenado e com o crescimento das CEBs surgiram novas formas de expressar a fé e a vida, acompanhadas por um grande desejo de crescimento interior. Há vários conceitos e definições a respeito de espiritualidade. Apresentaremos aqueles que são os mais esclarecedores. A que se propõe aqui é a espiritualidade cristã, pé no chão. Boff conceitua: Espiritualidade é aquilo que produz dentro de nós uma mudança. O ser humano é um ser de mudanças, pois nunca está pronto, está sempre se fazendo, física, psíquica, social e culturalmente. Não raro, é no âmbito da religião que ocorrem tais mudanças. Mas nem sempre. Hoje a singularidade de nosso tempo reside no fato de que a espiritualidade vem sendo descoberta como dimensão profunda do humano, como o momento necessário para o desabrochar pleno de nossa individuação e como espaço da paz no meio dos conflitos e desolações sociais e existenciais (BOFF, 2001, p. 17-18). 178
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Casaldáliga e Vigil afirmam: “Espiritualidade”, decididamente, é uma palavra infeliz. A palavra espiritualidade deriva de “espírito”. E, na mentalidade mais comum, espírito se opõe à matéria. Os “espíritos” são seres imateriais, sem corpo, muito diferentes de nós. Nesse sentido, será espiritual o que não é material, o que não tem corpo. E se dirá que uma pessoa é “espiritual” ou “muito espiritual” se vive sem se preocupar com o material, nem sequer com seu próprio corpo, procurando viver unicamente de realidades espirituais. O espírito de uma pessoa é o mais profundo de seu próprio ser: suas “motivações” últimas, seu ideal, sua utopia, sua paixão, a mística pela qual vive e luta e com a qual contagia os outros. Espírito é o substantivo concreto, e espiritualidade é o substantivo abstrato. O Espírito é a dimensão de qualidade mais profunda que o ser humano tem, sem a qual não seria pessoa humana. Essa profundidade pessoal forjada pelas motivações que fazem a pessoa vibrar, pela utopia que a move e anima, pela compreensão da vida que essa pessoa foi fazendo laboriosamente para si através da experiência pessoal, na convivência com seus semelhantes e com os outros seres, a mística que essa pessoa põe como base de sua definição individual e de sua orientação histórica (CASALDÁLIGA. VIGIL, 1996, p. 21-26). Gutiérrez diz: A espiritualidade é um caminhar em liberdade segundo o Espírito de amor e de vida. Essa caminhada tem seu ponto de partida em um encontro com o Senhor. Dá-se aí uma experiência espiritual que faz essa liberdade brotar e lhe dá sentido. O encontro é marcado pela iniciativa divina. Portanto, a espiritualidade não é, como se diz às vezes, o campo de aplicação de determinada teologia. A experiência espiritual é o terreno no qual a reflexão teológica lança raízes. Na raiz de toda espiritualidade existe uma experiência determinada, feita por pessoas concretas que vivem um tempo bem preciso. É viver o tempo do Espírito, em conformidade com ele (GUTIÉRREZ, 2000, p. 50-53).
Os caminhos de uma ecoespiritualidade a serviço da vida se baseiam nas relações trinitárias, constituindo assim o eixo articulador do discurso ecológico como novo, necessário e urgente paradigma; como redimensionamento Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 165-182, jan./jun. 2012
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da TdL, em que o grito dos pobres é o grito da Terra e vice-versa. Com a Terra todos sofremos e com ela todos nos sentimos felizes. A OP, na ecoespiritualidade, é entendida como ética ecológica a partir de uma tomada de consciência do ser humano como filho da Terra, interligado com o cosmo e com Deus.
Conclusão Há um provérbio africano que diz: “Muitas pessoas pequenas, em muitos lugares pequenos, fazendo coisas pequenas, mudarão a face da Terra”. Esse provérbio se encontra e se realiza nas palavras proferidas, experimentadas e ruminadas em pequenas doses, por Leonardo Boff, nestes 41 anos da Teologia da Libertação e de formulação de opiniões, não só para as pessoas no Brasil, mas no continente americano e em todo o mundo. Leonardo Boff, incansavelmente, representa os ideais mais sinceros e profundos de uma teologia pé no chão, ecológica e franciscana, que soube se adaptar ao tempo, que permeia, por isso, a vida em todas as suas dimensões. Mesmo não estando mais na mídia, não chegando aos rincões mais distantes, e sofrendo ainda hoje a perseguição por parte dos setores mais conservadores da Igreja Católica Apostólica Romana, metaforicamente dizendo, continua sendo brasa sob cinza, simplesmente hodierno. A ecologia é a maior preocupação da Humanidade. Assim se entende porque reúne em torno de si tantos adeptos em tantas categorias sociais e culturas. Mesmo tendo surgido o tema em ambientes alheios à Igreja e por vezes opostos ao cuidado com a natureza, a partir dos anos de 1990 começou-se a esboçar uma aproximação e uma reconciliação entre teologia cristã e ecologia. Comprometidos/as com a libertação é que alguns teólogos e teólogas no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos, já no começo dos anos 1990, começaram a desenvolver a teologia ecofeminista e a ecoteologia. A Ecoteologia de Leonardo Boff é um paradigma que nasce do grito dos pobres e ao mesmo tempo do grito da Terra, e consigo traz a reflexão do cosmocentrismo: centralidade como alternativa ao antropocentrismo que se sustenta na produtividade e na exploração da natureza. A preservação da natureza dos ecossistemas depende da forma como os seres humanos se portarão eticamente, como compreendem sua missão de habitantes da Terra. 180
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Conclui-se que a Ecoteologia de Leonardo Boff é a ética do saber cuidar, uma ética do ser humano em compaixão pela Terra.
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PIXLEY, Jorge. O Deus Libertador na Bíblia: Teologia da Libertação e filosofia processual. São Paulo: Paulus, 2011. SUSIN, Luiz Carlos; SANTOS, Joe Marçal G. dos. (Orgs.). Nosso planeta, nossa vida: ecologia e teologia. São Paulo: Paulinas, 2011. TEIXEIRA, Faustino. Teologia da Libertação: eixos e desafios. Disponível em www.fteixeira-dialogos.blogspot.com. Acesso em: 09 mar. 2011.
Ecotheology: from the cry of the poor to the cry of the earth in the perspective of the liberation theology in Leonardo Boff. Abstract Liberation Theology emerges as theological innovation in American continent and wins after all over the world. She dares to reflect the daily reality in the light of the practice and pedagogy of Moreno of Nazareth, liberating not more from the deduction, but of a liberating Praxis – 41 years ago: the oppression imposed by military dictatorships in Latin America with American financing – before the poor, suffering and cries out for life to the God of life, which made her tent and dwelt in their midst. If there were that summarize the concept, the central idea of liberation theology in a single sentence, this would be: preferential option for the poor. The Ecotheology of Leonardo Boff is a paradigm that is born of the cry of the poor and at the same time of the cry of the Earth, and with it brings the reflection of ecological cosmocentrism: centrality instead of anthropocentrism which maintains productivity and exploitation of nature. Keywords: Liberation Theology; ecology; Leonardo Boff; preferential option for the poor; ecotheology.
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REVISTAS EM PERMUTAS NACIONAIS Título – Local – Periodicidade 1. Analytica: Revista de Filosofia da UFRJ – Semestral 2. Atualidade Teológica: Revista do Departamento de Teologia da PUC-Rio – Bimestral 3. Caminhando: Revista da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista – Semestral 4. Revista de Catequese: UNISAL – Trimestral 5. Cognitio: Revista de Filosofia da PUCSP – Semestral 6. Coletânea: Revista de Filosofia e Teologia Faculd. de S. Bento – RJ. – Semestral 7. Direito: Revista da Faculdade de Direito de Cachoeiro do Itapemerim- ES – Semestral 8. Espaços: Revista de Teologia do Instituto S. Paulo de Estudo Superior – Semestral 9. Estudos Teológicos: Inst. Ecumênico em Teologia Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – Semestral 10. Horizonte Teológico: Inst. Santo Tomás de Aquino – ISTA – Semestral 11. Hypnos: Revista de Filosofia da PUCSP – Semestral 12. Kriterion: Revista de Filosofia da UFMG – Semestral 13. Razão e fé: Revista Inter e Transdisciplinar de Teologia. Filosofia e Bioética – Semestral 14. Rhema: Revista de Filosofia e Teologia do ITASA – MG – Quadrimestral 15. Religião & Cultura: Revista do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUCSP -Semestral 16. Repensar: Revista de Filosofia e Teologia do Inst. Paulo VI – RJ – Semestral 17. Revista de Ciências da Educação: UNISAL – Semestral 18. Revista Dominicana de Teologia: EDT – Semestral Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 183-186, jan./jun. 2012
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Revistas em Permutas
19. Revista Filosofia da PUCPR – Semestral 20. Revista Litterarius: FAPAS RS – Semestral 21. Sapientía Crucís: Revista Filosófico-Teológica – Anápolis – GO – Anualmente 22. Scientia: Revista Interdisciplinar do Centro Univ. Vila Velha ES – Semestral 23. Theós: Revista de Reflexão Teológica da Faculdade Teológica Batista de Campinas – Semestral 24. TQ: Teologia em Questãoda Faculdade Dehoniana SP – Semestral 25. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da UNESP – Semestral 26. Veritas: Revista de Filosofia da PUCRS – Trimestral 27. Via Teológica: Faculdade Teológica Batista do Paraná – Semestral
REVISTA EM PERMUTA INTERNACIONAL Título – Local – Periodicidade 1. Stromata: Revista Filosofia y Teologia Universidad Del Salvador – Argentina – Semestral
REVISTAS NACIONAIS – ASSINATURA Título – Periodicidade 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 184
Caros Amigos – Mensal Concilium – Bimestral Estudos Bíblicos – Trimestral Família Cristã – Mensal Grande Sinal – Bimestral Mundo e missão – Mensal Perspectiva Teológica – Quadrimestral REB – Revista Eclesiástica Brasileira – Trimestral
Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 183-186, jan./jun. 2012
Revistas em Permutas
9. Revista de Liturgia – Bimestral 10. Revista de Cultura Teológica – Trimestral 11. Revista Vitória – Bimestral 12. RIBLA – Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana – Trimestral 13. SEDOC – Bimestral 14. Tempo e presença – Bimestral 15. Revista de Koinoina – Bimestral 16. Síntese – Quadrimestral
CADERNOS Título – Periodicidade 1. Cadernos Adenauer – Bimestral
REVISTAS INTERNACIONAIS – ASSINATURAS Título – Local – Periodicidade 1. Bíblica: Editrice Pontifício Instituto Bíblico – Roma – Bimestral 2. Christus: Revista de Teología y Ciências Humanas – México – Bimestral 3. Diakonia: Internationale Zeitschrift für die Práxis der Kirche – Bimestral 4. Diakonia: Província Centroamericana de la Companía de Jesús Centro Ignaciano de Centroamérica – El Salvador – Trimestral 5. Família et Vita: Pontificium Consilium pro Família Stato Città Del Vaticano – Quadrimestral 6. Il Regno: Bologna – Quinzenal 7. Journal for the Study of the Old Testament – Trimestral 8. Journal for the Study of The New Testament – Trimestral
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Revistas em Permutas
9. Medellín: Teologia y pastoral para américa latina – Colombia – Trimestral 10. Misiones extranjeras – Madrid – Bimestral 11. Moralia: Revista de ciências Morales Instituto Superior de Ciências Morales – Madrid – Trimestral 12. Recherches de Science Religiuse – França – Trimestral 13. Revista de Espiritualidad – Madrid – Trimestral 14. Revista Mensaje – Santiago – Trimestral 15. Revue Biblique – L’école Biblique et Archéologique Française – França – Trimestral 16. Revue d’Histoire Ecclésiatique – França – Trimestral 17. Reseña Bíblica – Asociación Bíblica Española – Trimestral 18. Spiritus: Revue d’ expériences et recherches missionnaires – França – Trimestral
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NOTA AOS COLABORADORES Os trabalhos submetidos à Revista Capixaba de Filosofia e Teologia (REDES) devem enquadrar-se na linha editorial da revista, e observar as normas e orientações indicadas abaixo. Os trabalhos submetidos serão avaliados pelo Conselho Editorial, mas sua publicação não expressará necessariamente o posicionamento do Conselho nem das instituições mantenedoras. A responsabilidade pelos artigos assinados é exclusiva dos autores. Os direitos autorais dos trabalhos aprovados são automaticamente transferidos à REDES como condição para sua publicação. Os textos que não forem aprovados para publicação não serão devolvidos aos seus autores. O autor que tiver seu trabalho publicado terá direito a três exemplares da revista. 1. A Revista REDES publica artigos e resenhas, assim como reedita trabalhos clássicos e documentos históricos relacionados à temática da revista. Os artigos e resenhas devem ser inéditos e não podem ser simultaneamente submetidos a outro periódico. 2. Podem ser submetidos trabalhos redigidos em Português ou Espanhol. 3. Os originais devem ser enviados ao Coordenador da revista em três vias impressas, das quais uma com identificação de autor e duas sem identificação, e uma cópia em arquivo eletrônico com identificação de autor(es) e título do trabalho. Os originais devem ser acompanhados de cartas submetendo o trabalho para publicação, e de uma folha à parte, em caráter de obrigatoriedade, contendo informações completas sobre o(s) autor(es): nome, vínculo institucional, endereço para correspondência, telefone, fax e correio eletrônico. De tais informações somente o endereço eletrônico será divulgado na publicação. 4. Os trabalhos devem ser digitados em espaço um e meio, com margens de 3 cm na margem superior e esquerda e 2 cm na margem inferior e direita, e apresentados em papel tamanho A4, impresso em um único lado e com páginas numeradas. Os artigos não devem ultrapassar 40 páginas (cerca de 10.000 palavras) e as resenhas não devem exceder 10 páginas (2.500 palavras). Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 10, n. 18, p. 187-188, jan./jun. 2012
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Nota aos Colaboradores
5. Preferentemente o texto deve ser editado no formato Word, obedecendo às seguintes recomendações:
– Utilização da fonte Times New Romam, corpo 12 para o título, corpo 11 para o texto corrido e corpo 10 para as citações bibliográficas destacadas e notas de rodapé; – Deve ter alinhamento justificado e os parágrafos formatados com recuo especial na primeira linha, valendo também para as notas de rodapé; 6. Os artigos submetidos ao Conselho Editorial devem conter resumo em português e abstract em inglês, com no máximo 150 palavras cada; até 5 palavras-chave, também em português e em inglês. 7. Citações devem ser abreviadas no corpo do texto (sobrenome do autor, ano da publicação e, quando for o caso, página) e completas as referencias ao final do texto, segundo as NBR 6022:2003 e NBR 6023:2002 da ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas. As notas de rodapé devem restringir-se a notas explicativas. 8. Os trabalhos devem ser remetidos para:
– Secretaria do Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória (Iftav) Rua Cosme Rolim, 5 Cidade Alta Vitória ES 29015-050 Telefone e fax do Iftav: [27] 3223-1829 / [27] 3322-6795 – Caixa Postal 010-224 Vitória ES 29001-970
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– Endereço eletrônico: revistaredes@salesiano.com.br
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