Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória - Iftav Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo - FCSES
REDES
Revista Capixaba de Filosofia e Teologia a. 8 - n. 14 - janeiro/junho 2010 Vitória-ES
FILOSOFIA e RELIGIÃO
ISSN 1679-4265 Redes: Revista Capixaba de Filosofia e Teologia
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Vitória
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n.14 p.1-218
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© 2010 - Iftav/FCSES Todos os direitos reservados. A reprodução de qualquer parte da obra, por qualquer meio, sem autorização da editora constitui violação da LDA 9.610/98.
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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Redes: Revista Capixaba de Filosofia e Teologia. Ano Vitória, a. Vitória, a. 8, n. 14 (Jan./Jun. 2010). - Vitória : Iftav / FCSES, 2010. 216 p. ; 21,5 cm. Semestral ISSN 1679-4265 1. Filosofia - Periódicos. 2. Teologia - Periódicos. I. Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória - ES. II. Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo. CDU 1+2 (05)
Tiragem: 300 exemplares | Periodicidade: Semestral
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Sumário
APRESENTAÇÃO .................................................................................................7 A CRISE DA RAZÃO NA FENOMENOLOGIA ................................... 9-28 The crisis of reason in the phenomenology Thana Mara de Souza O QUEFAZER DO INTELECTUAL EM TRÊS EXEMPLOS: ÁLVARO VIEIRA PINTO, PAULO FREIRE E LEONARDO BOFF .................................................29-43 The tasks of the intellectual in three examples: Álvaro Vieira Pinto, Paulo Freire and Leonardo Boff Rodrigo Marcos de Jesus A CONCEPÇÃO SEMÂNTICA DA VERDADE E A TEORIA DA VERDADE-COMO-CORRESPONDÊNCIA ...............45-78 The semantic conception of truth and the theory of truth-as-correspondence Renato Machado Pereira RUBEM ALVES E A RELIGIÃO: UMA ANÁLISE DA PRIMEIRA DA SEGUNDA FASE DE SEU ITINERÁRIO REFLEXIVO . ....................................................................79-114 Rubem Alves and the religion: an analisis of the first and second phases fo his reflexive route Antônio Vidal Nunes DER MENSCH UND SEINE OPFERRITUALE ..............................115-150 Humankind and its sacrificial rituals Joachim G. Piepke A CONCEPÇÃO DE DEUS EM IMMANUEL KANT NA CRÍTICA DA RAZÃO PURA ..........................................................151-183 The conception of God in Immanuel Kant in the critics of pure reason Ângelo José Salvador
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BIOÉTICA: DESAFIOS DO SÉCULO XXI .......................................185-203 Bioethics: challenges of the 21st century Margareth de Oliveira Kuster SÍNODO ARQUIDIOCESANO DE VITÓRIA DO ESPÍRITO SANTO. Na fidelidade ao passado, mas decididamente aberta ao novo .............................205-209 Archidiocesan Synod of Vitória in Espírito Santo. In faithfulness to the past, but certainly open to the new! Dom Luiz Mancilha Vilela REVISTAS EM PERMUTAS ..................................................................211-214 NOTA AOS COLABORADORES .........................................................215-216
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APRESENTAÇÃO
A Revista Capixaba de Filosofia e Teologia (Redes), fundada em 2003, de circulação semestral, é fruto de uma parceria dos cursos de Filosofia da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo (FCSES) e Teologia do Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória (Iftav). O periódico foi concebido para estimular e difundir a construção do conhecimento filosófico-teológico produzido pelos professores e alunos dos citados cursos, bem como de pesquisadores de outras instituições de ensino e pesquisa. O nome Redes conserva a universalidade dos temas básicos da revista, que são filosofia e teologia. O conhecimento é aqui pensado como entrelaçamento de significações. “Rede” traz à tona as ideias de acentrismo, metamorfose, heterogeneidade, multiplicidade, transdisciplinaridade. A Redes busca a coerência entre a práxis dos cursos de Filosofia e Teologia, além da integração multidisciplinar com diversas outras áreas do conhecimento, como as ciências da religião, incluindo aí vários recortes que podem ser feitos no estudo do fenômeno religioso, destacando-se a antropologia, a comunicação social, a história, a pedagogia, a psicologia e a sociologia.
Paulo Cesar Delboni
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A CRISE DA RAZÃO NA FENOMENOLOGIA Thana Mara de Souza*
Resumo Neste artigo pretende-se mostrar qual o papel que a razão analítica terá no pensamento de Heidegger e Sartre. Contra Descartes, que estabelece a razão como guia contra todos os erros e como solução para todas as crises, Heidegger mostra que a certeza do cogito não é anterior à certeza do sum (da existência), e que por isso esta não se restringe àquela: aqui a compreensão aparece como anterior à razão, como aquela que possibilita qualquer espécie de racionalidade. E se Sartre também entende o homem como imediatamente no mundo, ainda pensa em termos de sujeito, e por isso precisará estabelecer um papel positivo à razão, não à razão analítica, mas a uma razão dialética, que tem como finalidade não chegar a verdades absolutas e eternas, mas elaborar em termos teóricos a compreensão heideggeriana. Mostraremos, portanto, como a razão perde o papel único e essencial que tinha na filosofia de Descartes para se tornar, ela própria, fonte de uma crise; e, se ainda mantém algum papel na fenomenologia, é um papel coadjuvante, o de ajudar a teorizar a compreensão do homem no mundo. Palavras-chave: Razão. Crise. Descartes. Heidegger. Sartre.
Este artigo apresenta três momentos da razão na história da filosofia. O primeiro momento, que será apenas esboçado, servirá como contraponto aos outros dois, nos quais a crise da razão aparecerá com
Professora do Departamento de Filosofia da Ufes e autora do livro Sartre e a literatura engajada: espelho crítico e consciência infeliz. São Paulo: Edusp, 2008. *
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força. Trata-se aqui de elencar as estruturas principais da filosofia de Descartes, o papel que a razão adquire como único ponto fixo e seguro que permitirá chegar às verdades indubitáveis e eternas. Não estamos em um momento de crise da razão, pelo contrário, mas é justamente a crítica a esse papel fundamental da razão que será o ponto de partida para as crises posteriores. Por isso mostraremos em termos gerais como a razão se dá na filosofia de Descartes, a fim de melhor compreendermos depois como a crise pode surgir dela. O segundo momento será justamente a explicitação da crítica de Heidegger ao privilégio dado por Descartes à racionalidade, ao conhecimento e ao pensamento. A partir da inversão da primeira verdade cartesiana, Heidegger mostrará que a razão só é possível porque o Dasein é compreensão de ser, abertura, um lançar-se ao mundo, revelando, nessa relação, a verdade, o sentido do ser. O papel da razão aqui é totalmente subordinado ao papel ontológico da pré-compreensão, e, embora ainda tenha espaço como manifestação particular da compreensão, ela não é tratada por Heidegger. Essa crise da razão, crise que atinge o papel fundamental que tinha na filosofia de Descartes, é retomada por Sartre de uma maneira totalmente outra que a de Heidegger – e é nisso que consistirá o terceiro momento. Embora com influência direta do filósofo alemão, e mantendo o primado do ontológico sobre o ôntico, Sartre mantém a noção de sujeito, e por isso também falará da noção de conhecimento, de um conhecimento racional que se dirige às coisas, à história e ao homem. Se a razão não pode mais ter o papel prioritário que tinha em Descartes, se a razão analítica e lógica não pode mais servir como único guia para a descoberta das verdades, ela não deixa de ter um papel importante na compreensão da realidade humana. Junto com a crise da razão analítica, há em Sartre a necessidade de pensar uma razão outra, uma razão mais abrangente, que dê conta desse sujeito que há muito deixou de ser coisa pensante. Comecemos então com a filosofia na qual não há ainda crise da 10
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razão, na qual, aliás, a razão se estabelece como único guia verdadeiro para se sair de qualquer crise. Nas Meditações sobre a filosofia primeira podemos perceber o caminho de um filósofo em busca dos primeiros fundamentos para estabelecer em algum momento algo firme e permanente nas ciências. Tal como Arquimedes desejava um ponto firme e imóvel para remover a terra inteira de seu lugar, Descartes deseja encontrar algo que seja certo e inabalável para poder construir sua filosofia e sua ciência com bases mais sólidas do que as que existiam até então. Pensando não admitir nada que não fosse verdadeiro, absolutamente verdadeiro, que não aparecesse sob a luz natural, que não fosse claro e distinto, Descartes inicia sua investigação eliminando os sentidos e as falsas certezas, as ilusões das sensações que nos fazem pensar que temos certeza quando só temos erro. Apenas o pensar por meio de uma razão totalmente lógica poderá guiar o filósofo à descoberta de sua primeira verdade, desse ponto fixo e imóvel a partir do qual até mesmo a existência de Deus será provada, e que é justamente a certeza de que ele é, a de que ele pensa. Mesmo com todas as dúvidas, e justamente por ser capaz de se colocar dúvidas, Descartes descobre, como intuição clara e distinta, que algo duvida, que ele ao menos consegue duvidar. A descoberta de que nem mesmo o gênio maligno pode abalar a certeza de que algo duvida, de que, por meio do pensamento, a dúvida é possível, faz com que a primeira certeza seja atingida. Existe algo que pensa, e, por pensar, existe. A partir de então, é o pensamento solitário de um homem que não pode dizer ainda se tem corpo ou se vê coisas, que irá guiar racionalmente às descobertas de Deus e do mundo. A ciência só pode ser construída por meio do que é claramente verdadeiro, ou seja, por meio da adequação entre discurso e objeto, discurso e realidade. Logo no título da terceira regra de Regras para a direção do espírito podemos ler o seguinte: “No que respeita aos objetos considerados, há que procurar não o que os outros pensaram ou o que nós próprios suspeitamos, Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 9-28, jan./jun. 2010
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mas aquilo de que podemos ter uma intuição clara e evidente ou que podemos deduzir com certeza; de nenhum outro modo se adquire a ciência” (DESCARTES, 1989, p. 18). Temos, portanto, uma ciência certa e rigorosa, que, para atingir a Verdade, deve abandonar a história dos erros da filosofia. Essa ciência só pode existir por meio de uma racionalidade que apareça como adequação, como intuição clara, que consegue perceber o que Descartes chama de “luz natural”. Apenas com o olhar intelectual atento e centrado, não atrapalhado pelas ilusões que as sensações poderiam causar, é que o filósofo é capaz de observar essa luz natural. Só por meio de um método estabalecido racionalmente é que se pode ver essa luz – naturalmente racional. Meditações feitas sem métodos, meditações confusas, obscurecem a luz natural e cegam os espíritos. Para realmente ver, para alcançar fundamentos verdadeiros que possam ser a base da filosofia e das ciências, é preciso decidir-se pelo método de investigação, de meditação, que deve ser, para Descartes, o uso atento e rigoroso da percepção clara e distinta das coisas. Apenas com essa percepção clara, com essa intuição evidente, com a razão que sabe distinguir nitidamente o que é verdadeiro do que é falso, é que Descartes conseguirá alcançar suas Verdades absolutas, seus pontos a partir dos quais o mundo todo será movido, e até Deus será provado. O conhecimento é quem leva à prova da existência do homem como ser pensante, à prova da existência de Deus, e então à prova da existência do mundo e do corpo. Em todo o livro Meditações sobre filosofia primeira temos esse percurso da razão conhecendo, logicamente, as verdades indubitáveis, as certezas a partir das quais a ciência pode se fundamentar, caminho esse que é sistematizado anteriormente em Regras para a direção do espírito, sistematização, aliás, que segue as ordens da matemática, da geometria e da aritmética. Trata-se, para Descartes, de seguir uma ordem das razões, uma ordem racional, lógica e causal, que fará o homem 12
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conhecer uma primeira certeza clara e distinta para depois, com ela, ampliar cada vez mais seus conhecimentos e suas verdades. Aqui não há, portanto, nenhuma crise da razão. A crise aparece, no início das Meditações, justamente porque ainda não se estabeleceu esse método racional e lógico para alcançar verdades indubitáveis e fixas, eternamente firmes como o ponto de Arquimedes. A possibilidade da loucura, do ceticismo, da crença em um gênio maligno só tem poder enquanto o filósofo ainda não encontrou os olhos adequados para ver a luz natural: no momento em que a primeira certeza é adquirida, em que o “penso, logo existo” é afirmado como verdade indubitável, Descartes já tem ao menos uma arma contra esses medos que não fazem mais sentido. Com a certeza do “penso, logo existo”, do “cogito, ergo sum”, Descartes encontra seu ponto fixo e com ele move céus e terras, atinge não só sua essência como também a essência divina e a realidade do mundo e do corpo. O estabelecimento do pensamento como único capaz de conceber um método racional e lógico para alcançar as verdades aparece nessa filosofia como modo seguro de não cair no erro da crise, da loucura, do ceticismo. A crise só é possível enquanto não há razão, enquanto não há possibilidade alguma de se chegar ao conhecimento certo e seguro. Mas a partir do momento em que a razão, por meio de um conhecimento adequado, alcança uma verdade que seja indubitável, então a crise é posta de lado. Mesmo que ela insista em voltar, a partir da primeira certeza já há um critério para determinarmos o que é verdade e o que é erro, o que é certo e o que é ilusão – e a crise não tem mais espaço nessa filosofia certa e segura, em que a razão indubitável encontrou seu reto caminho. A razão é a solução para as crises descritas no início das Meditações sobre a filosofia primeira, e é isso que podemos perceber nessa afirmação ao fim das Meditações: “As dúvidas hiperbólicas dos últimos dias devem ser rejeitadas como dignas de riso” (DESCARTES, 2004, p. 191). Após encontrar as certezas, ao menos no campo teórico as dúvidas Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 9-28, jan./jun. 2010
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e os erros não têm mais poder nenhum, podem ser ridicularizados, diminuídos. A razão aparece, portanto, na filosofia de Descartes, como o estabelecimento do fim da crise. Mas é justamente dessa razão, dessa primeira certeza, que Heidegger irá desconfiar, e a crise, agora, passará a ser não a descrença num ponto fixo e seguro que só a racionalidade pode dar, mas justamente a crença nessa teoria do conhecimento, a crença nessa verdade como proposição adequada que só a razão poderia fornecer. É o papel da razão que Heidegger pretende diminuir em seu livro Ser e tempo, não a fim de fazer a crise retornar, mas de fazer a solução da crise tomar um outro caminho, não mais da razão, mas da compreensão, não mais do conhecimento, mas do ser. Orientando-se historicamente, o propósito da analítica existencial pode ser esclarecido da seguinte maneira: Descartes, a quem se atribui a descoberta do cogito sum, como ponto de partida básico do questionamento filosófico moderno, só investiga o cogitare do ego dentro de certos limites. Deixa totalmente indiscutido o sum, embora o sum seja proposto de maneira tão originária quanto o cogito. A analítica coloca a questão ontológica a respeito do ser do sum. Pois somente depois de se determinar o seu ser é que se pode apreender o modo de ser das cogitationes (HEIDEGGER, 2002, p. 82).
Uma das críticas de Heidegger a Descartes é o fato dele ter se concentrado na questão do pensamento, e não da existência. Se sua primeira certeza envolve tanto o pensar quanto o existir, era necessário discutir, desde o início, esse “existo” que o filósofo moderno pensa atingir apenas depois de provar a existência de um Deus bondoso que não engana. O que Heidegger propõe é justamente inverter o procedimento cartesiano. Ao invés de partir da noção de conhecimento racional e lógico para alcançar a verdade pensada como adequação e corres14
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pondência, o filósofo alemão irá partir do questionamento sobre o sentido do ser, questionamento este que é feito necessariamente por um ente, e por um ente que tem de estar no mundo, descobrindo seu ser a partir desse mundo e dos entes intramundanos que ele não é. O Dasein, ser-aí, é o ente privilegiado no questionamento e na busca pelo sentido do ser, privilegiado, porque desvela, ao ser-no-mundo, o mundo e a si mesmo como o ente que revela o ser. E essa busca pelo sentido do ser, que se dá necessariamente na existência, não se dá por meio do pensamento, da ordem das razões, mas por meio da compreensão. Começando pelo lado oposto da primeira certeza de Descartes, pelo existo, e não pelo penso, Heidegger estabelece outra relação entre os dois termos. Ao invés de o pensamento vir em primeiro lugar, é a existência que se dá de imediato, e aparece não por meio de um conhecimento lógico e solipsista, mas na própria vivência. O Dasein, em sua vivência, coloca em questão o seu ser. É no mundo, sendo, que o ente se mostra como ser e questiona o sentido mesmo desse ser. Não se trata, portanto, de questões abstratas e indiferentes à concretude da existência: é na própria existência que a questão sobre o ser se coloca, é na relação com o mundo e a instrumentalidade das coisas que o Dasein desvela o ser. É nesse sentido que Heidegger descreve o que é o Dasein: além de ser o ente privilegiado para a compreensão da questão do sentido do ser, ele é o ente que se compreende em seu ser, mas se compreende a partir de sua existência, e não a partir de uma essência qualquer que fosse anterior à existência. A compreensão se dá a partir de suas possibilidades próprias, seja as que ele mesmo escolheu, seja as que lhe foram impostas. É na concretude das ocupações do Dasein que se pode compreender as possibilidades escolhidas e sofridas – e é apenas porque já há uma certa compreensão que se pode, depois, tematizar o que é possibilidade e escolha. Há uma compreensão implícita em toda a vivência, em toda existência, em toda relação com o mundo – e a ela Heidegger dá o Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 9-28, jan./jun. 2010
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nome de pré-compreensão. Em todo lançar-se do Dasein já há uma espécie de compreensão do mundo, do Dasein e do sentido do ser. Mas essa compreensão não exclui a pergunta explícita pelo sentido do ser. Pelo contrário: é porque há pré-compreensão que a pergunta é possível e deve ser feita. Sem a pré-compreensão, não haveria desvelamento possível, não haveria descoberta possível. Só porque o Dasein já é pré-compreensão é que os questionamentos podem ser feitos. Há, portanto, uma inversão da relação estabelecida por Descartes em sua primeira verdade: não é porque penso que existo, mas é porque existo que penso. A existência aparece de imediato ao Dasein, revelase como óbvia de início e é a partir dessa relação que surge clara e distintamente a convicção de que qualquer pensamento é possível. Ao invés de “penso, logo existo”, temos agora um “existo, logo penso”. É a existência que se revela como originária, como a que permite o questionamento sobre o ser, que não é feito por meio do conhecimento, mas sim da tematização da compreensão. A compreensão heideggeriana não é sinônimo de conhecimento. Assim como o Dasein não é o sujeito, sua relação com o mundo também não é a mesma da relação entre um sujeito e um objeto, relação essa que torna, na maior parte das vezes, o objeto como inessencial em relação ao sujeito. Essa é uma das críticas de Heidegger a Descartes: ao se colocar a certeza do conhecimento no pensamento, na ordem das razões, o mundo deixa de ser essencial e, para ter sua existência comprovada, precisa antes provar que Deus existe. Se o conhecimento é um ato exclusivo do sujeito, de um sujeito isolado pensante, não há como diretamente garantir a existência tão óbvia do mundo. Heidegger, interessado em compreender concomitantemente a existência do Dasein e do mundo (influência de Husserl e sua noção de intencionalidade, que foi, aliás, bastante desviada por Heidegger), não se restringe à noção de conhecimento como juízo adequado, à noção de verdade pensada como correspondência. Para ele, a relação entre o Dasein e o ‘mundo’ é ontológica, é mais essencial, não se dá apenas 16
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por meio de um conhecimento solipsista. Trata-se de uma relação necessária entre o Dasein e o mundo, um interligado ao outro, o Dasein se compreendendo na medida em que é no mundo, na medida em que se relaciona com os entes intramundanos, ou seja, com as coisas, as utensilidades, os instrumentos que se tem à mão. Não se trata de uma relação de conhecimento científico entre sujeito e objeto, de uma relação de indiferença do primeiro com o segundo – trata-se de uma relação necessária e fundamental entre o ser-aí e o próprio aí, a facticidade, a concretude. O conhecimento, na filosofia de Heidegger, deixa de ter a importância fundamental que tinha na filosofia de Descartes. Ele continua a existir, mas deixa de ser o fundamento de toda e qualquer relação do Dasein com o mundo. Pelo contrário: o conhecimento, aqui, só é possível porque se fundamenta nessa relação mais essencial que é a da compreensão. O fundamento da filosofia não é mais dado pela ciência e sua ordem das razões: não é mais a razão quem combaterá a crise, mas a crise está agora justamente no estabelecimento da razão como único guia certo e seguro para se encontrar a verdade. Ao inverter a primeira certeza de Descartes, Heidegger critica o papel da racionalidade e mostra que o fundamento da razão está na compreensão, que a ciência, ôntica, tem de ter bases nas questões ontológicas. No lugar do conhecimento, o ser. No lugar da razão, a compreensão. No lugar de uma teoria do conhecimento, a ontologia. A questão da verdade, da relação do Dasein com o mundo, deixa aqui de ser uma questão de teoria de conhecimento – de como o sujeito pode fazer afirmações certas e seguras sobre o objeto – para ser uma questão de ser, portanto, uma questão ontológica, mas uma questão ontológica que não pode ser feita senão na existência, no modo como o Dasein se ocupa com os entes intramundanos e se preocupa com os outros. A ciência e a razão (e esta é guia da ciência) deixam de ser o ponto fixo e seguro que Descartes pensava ter atingido e perdem, assim, o Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 9-28, jan./jun. 2010
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poder de mover o mundo e provar a existência de qualquer coisa, seja do sujeito pensante, de Deus ou do mundo. A razão entra em crise na filosofia heideggeriana, e seu papel, agora, é ser apenas um dos modos de o Dasein se relacionar com o mundo, um dos modos de compreender essa relação necessária. A problemática ontológica adquire primazia sobre a problemática ôntica, sobre a questão do conhecimento. A busca pelo sentido do ser – projeto de Ser e tempo – não é feita de acordo com uma ordem abstrata das razões, mas na própria existência, no momento mesmo em que o Dasein se ocupa dos entes intramundanos. A compreensão do ser se dá na cotidianidade, nas possibilidades que o Dasein escolhe ou tem que vivenciar. Não se trata de ser como os entes simplesmente dados, mas de ter, em seu próprio ser, uma pré-compreensão do sentido do ser, uma pré-compreensão da facticidade, da concretude que o Dasein já sempre é. É somente no mundo que o Dasein pode compreender e questionar seu ser. E é esse questionamento, possibilitado pela pré-compreensão, que o faz ser diferente do ente simplesmente dado, das coisas e utensilidades que encontra dentro do mundo. O Dasein não se encontra dentro do mundo, ele está em relação necessária com o mundo. Sem se confundir totalmente com o mundo, sem estar, portanto, “dentro” do mundo, o Dasein também não se encontra totalmente fora do mundo: é nessa relação que o Dasein se compreende, é nessa relação que ele existe, e nela, portanto, que ele é. De nenhum modo o Dasein pode ser pensado como um ente que às vezes quer ter uma relação com o mundo – não se trata, na filosofia de Heidegger, de uma escolha do Dasein. Ele é necessariamente relação com o mundo, só é na medida em que está aí, em um certo espaço, lugar, tempo. E o conhecimento, aqui, é um dos modos de o Dasein ser-nomundo: ele só é possível porque se fundamenta nessa relação essencial do Dasein com o mundo, porque desde sempre o Dasein é abertura em direção aos outros entes, é um lançar-se em direção ao factual. 18
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O conhecimento é uma das maneiras que o Dasein tem de realizar a relação necessária com o mundo – e é uma maneira que só é possível porque o Dasein, antes de tudo, é compreensão, ou seja, é ontologicamente abertura, um lançar-se para fora de si mesmo, é, enfim, desvelamento, mesmo e principalmente quando tenta velar essa sua essência. “Conhecer é um modo de ser do Dasein enquanto ser-no-mundo, isto é, o conhecer tem seu fundamento ôntico nessa constituição ontológica” (HEIDEGGER, 2002, p. 100). A compreensão, portanto, é uma constituição ontológica do Dasein, e significa a abertura que o Dasein tem de ser: na pré-compreensão que é, na abertura e lançamento para fora de si, na relação com o mundo, o Dasein é desvelamento do sentido do ser. A noção de verdade como conhecimento adequado e a de conhecimento racional e lógico são derivadas da noção essencial, mais principal e mais concreta, como é dito no início de Ser e tempo, de uma verdade mais originária, da compreensão da abertura e desvelamento que o Dasein é – e que seria a condição de possibilidade da verdade como juízo, do pensamento tal como Descartes postula. Assim como a relação entre Dasein e mundo é uma relação necessária, uma abertura que se dá a partir da compreensão que o Dasein é, e não mais uma relação entre sujeito e objeto que se baseia em um conhecimento lógico, a verdade não se restringe mais ao conhecimento, à correspondência entre o discurso do sujeito e a realidade do objeto, mas passa a ser constituinte da própria essência do Dasein, passa a ser e revelar o sentido do ser. Em sua analítica existencial, Heidegger chega à conclusão de que “o que se deve verificar não é uma concordância entre conhecimento e objeto e muito menos entre algo psíquico e algo físico [...]. O que se deve verificar é unicamente o ser e estar descoberto do próprio ente, o ente na modalidade de sua descoberta” (HEIDEGGER, 2002, p. 286). E verificar o ser desvelado na própria ocupação do Dasein com os entes simplesmente dados é colocar a questão ontológica como Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 9-28, jan./jun. 2010
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antecedendo a questão ôntica: é aquela que permite esta, é a existência que permite o pensar racional lógico, e não o contrário, não uma razão que atinge, abstratamente, a certeza da existência. O conhecimento e a verdade passam a ser modos particulares dos modos fundamentais que são a compreensão e a verdade como alethéia, como desvelamento que se dá em toda ocupação, em toda abertura que o Dasein é. Por estas questões serem ônticas, o conhecimento como proposição adequada só se torna possível porque há um fundamento ontológico anterior, que é a relação necessária do Dasein com o mundo, que é a pré-compreensão que se mostra presente na ocupação e na preocupação que o Dasein não pode deixar de ser. Na filosofia de Heidegger temos, no lugar da questão sobre o conhecimento, a questão sobre o sentido do ser. No lugar da ciência, da questão ôntica, temos a ontologia. E no lugar da razão como possibilidade da filosofia, temos a compreensão como estrutura essencial do Dasein. A razão deixa, portanto, de combater as possibilidades de crise, como aparecia nas Meditações sobre a filosofia primeira. É seu papel que agora é questionado, e a crise passa a ser componente da própria razão. Ao inverter a primeira certeza de Descartes, ao colocar o “existo” como originário, Heidegger postula uma outra relação do Dasein com o mundo, uma relação que se dá de imediato e necessariamente, uma relação que não passa antes por certezas indubitáveis, mas que se mostra presente na própria ocupação, no próprio fato de o Dasein ser-no-mundo. Ao criticar a primazia que Descartes dá ao penso no lugar do existo, Heidegger enfatiza a existência como primeira constatação e torna o pensamento racional derivado dessa relação original do Dasein com o mundo. O fundamento da razão passa a ser a compreensão, assim como o fundamento das questões ônticas passa a ser a questão ontológica, assim como o fundamento do conhecimento passa a ser o ser. A razão, sozinha, não é mais suficiente para se eliminar a crise: é preciso compreender que a relação essencial não se dá mais por meio 20
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de proposições e juízos certos, mas na própria existência, no próprio ocupar-se e preocupar-se. E, de modo geral, podemos dizer que Sartre continua essa filosofia heideggeriana, reafirmando o primado do ontológico sobre o ôntico, da compreensão sobre a razão, do ser sobre o conhecer. Mas, por manter o sujeito que Heidegger abandona, por ainda estabelecer como prioridade a existência de um sujeito, o filósofo francês tem de dar uma importância maior à questão do conhecimento e da razão. Embora ainda submetido à questão ontológica, que é o modo como o Para-si necessariamente se relaciona com o Em-si, com o mundo, o conhecimento ainda é um modo importante dessa relação. Se Heidegger não precisa tratar com mais profundidade de uma razão positiva, já que eliminou o papel forte do sujeito, tentando justamente estabelecer uma relação totalmente distinta da relação de conhecimento, Sartre, por manter o sujeito e a subjetividade, por manter um sujeito separado do objeto, também trata da questão de como conhecer esse objeto e o sujeito que conhece. Em O ser e o nada podemos ver a ênfase na questão ontológica, na compreensão do Para-si como relação necessária com o que lhe falta, o ser, relação essa que só pode ser pensada na facticidade, no mundo concreto das relações conflituosas com o outro. Mesmo que esse Para-si não seja o Dasein de Heidegger, sua relação com o mundo e com o ser se dá nos mesmos moldes do que mostramos brevemente aqui: é por meio da própria existência que a essência se revela, é na compreensão das atitudes do Para-si como nada de ser que deseja ser completude que sua essência se desvela. A razão aqui aparece apenas do mesmo modo como em Heidegger: através de uma crítica negativa. A ela não é dado um papel fundamental, mesmo porque trata-se aqui de questões ontológicas, e não ônticas. E, para o tratamento ontológico, é a compreensão da realidade humana que servirá como guia. No entanto, o ontológico sartriano exige o ôntico, e, por isso mesmo, não será possível não propor positivamente um papel à razão. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 9-28, jan./jun. 2010
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Essas semelhanças não diminuem, porém, as diferenças radicais que há entre Sartre e Heidegger. A manutenção da noção de sujeito, se não elimina a possibilidade de pensar em termos de compreensão e existência, não permite a Sartre ignorar um dos principais modos desse sujeito se relacionar com os objetos e com os outros sujeitos, que é por meio do conhecimento racional. E é com essa perspectiva que Sartre irá escrever a Crítica da razão dialética. Nesse livro temos o estabelecimento de uma razão que possibilita melhor o conhecimento do próprio sujeito e de sua historicidade. Se os objetos matemáticos podem continuar sendo conhecidos por meio da razão analítica já ordenada por Descartes, é preciso, porém, pensar um outro tipo de razão, um tipo de razão que é capaz de conhecer o sujeito sartriano, que não é de modo algum o sujeito cartesiano, o sujeito pensante que se apoia num ponto seguro e firme e que, com isso, constrói o universo e prova a existência de Deus. Como o sujeito não é mais o mesmo, a razão que o compreende também não pode mais ser a mesma. Seguindo as ambições de Kant, de estabelecer os limites da razão, Sartre também escreve sua crítica da razão e ali expõe uma outra razão que seria mais própria para dar conta de seu Para-si. Vejamos então agora como essa crise da razão, colocada por Heidegger de modo a atingir toda a razão, se torna, em Sartre, uma crise da razão analítica e como, no lugar dela, surge a necessidade de pensar uma outra razão, uma razão dialética, que melhor explique as ambiguidades próprias da realidade humana. A racionalidade analítica, cheia de ordens lógicas e causais, só pode existir junto com a noção de essência, de uma natureza que justifique essas relações necessárias entre os acontecimentos e as relações. Como já dissemos no início, Descartes pretende justamente olhar a luz natural sem se cegar, e para isso estabelece regras, métodos, ordens: para que sua razão se conforme à racionalidade causal e lógica que existe na natureza. 22
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Mas em Sartre não há essa essência na natureza, nem em uma natureza externa nem em uma natureza humana. Não é possível, por meio da causalidade, reproduzir a ordem que já há em uma natureza. Não temos mais nenhuma natureza humana, nenhuma essência que se encontre antes da existência do homem, que a explique e a justifique, fornecendo ligações lógicas entre uma ação e outra, entre o passado e o presente. O que há é justamente a negação da essência como anterior à existência e o estabelecimento do primado ontológico e ôntico da concretude, da relação do Para-si com o mundo. Se é assim, como dar conta da historicidade humana? Se já se eliminaram as essências que justificam as causalidades entre os fatos, como compreender a existência que somos? Como compreender os atos desse homem que é à medida que se faz, que age ou escolhe não agir? Qual método possibilitaria uma melhor compreensão desse homem sem justificativas, sem desculpas, sem essências, que tem como arma sua liberdade, liberdade que é para ele ao mesmo tempo uma punição? A descrição do absoluto da existência que somos vem acompanhada da renúncia à primazia do conhecimento, desse conhecimento pensado como juízo e proposição adequada, como garantia de encontrar verdades eternas e indubitáveis. Mas se o conhecimento não tem mais primazia, ele não pode ser desconsiderado nessa relação do Parasi com o mundo e com os outros Para-sis. É por isso que Sartre se coloca como objetivo não só estabelecer o primado ontológico frente ao ôntico, mas também pensar uma nova razão, um novo método que melhor compreenda esse homem tão fragmentado, fragmentado não apenas diante de guerras mundiais e da perda de valores universais, mas fragmentado ontologicamente, fragmentado por ser, em sua própria essência, vazio, nada de ser, falta, desejo. E, como podemos ver em Questões de método, é a dialética esse novo método que permitirá pensar numa nova razão, numa razão ampliada, que compreenda relações que não sejam causais e lógicas, Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 9-28, jan./jun. 2010
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que admita ambiguidades e paradoxos. Mas é uma razão dialética bastante singular, que reproduz, contra o marxismo de sua época, a crítica que Marx fez a Hegel. A dialética hegeliana tem, segundo Sartre, o grande mérito de ser a mais ampla totalização filosófica, na qual o Saber é elevado à sua dignidade mais eminente, mas tem também o grande problema de fazer o vivido ser absorvido pelo sistema. Tudo que é real passa a ser racional, passa a ser “engolido” pela Razão, pelo Sistema. O vivido se torna indiferente, é absorvido pelo movimento que coloca no final o que já está desde o início: o espírito absoluto. E o que Marx fará (conforme a análise de Sartre em Questões de método) é criticar esse excesso de sistematização, reintroduzindo o vivido, fazendo a realidade histórica ser irredutível a uma ideia. Sem cair no irracionalismo de Kierkegaard, concorda com este na crítica a Hegel, no fato de ter de recuperar a importância do real, dele não ser reduzido totalmente ao racional. A dialética da matéria proposta por Marx pretende mostrar que o humano é irredutível ao conhecimento, deve ser vivido e produzido, trabalhado, mas não como uma subjetividade vazia. “Marx tem razão, contra Kierkegaard e contra Hegel, uma vez que afirma, com o primeiro, a especificidade da existência humana, e uma vez que toma, com o segundo, o homem concreto em sua realidade objetiva” (SARTRE, 2002, p. 26). Mas se Sartre admite a importância e o acerto da dialética marxista, diz, nesse mesmo livro, que ela se encontra paralisada, anêmica, esclerosada. Para ele, o marxismo contemporâneo ignora a complexidade da teoria de Marx e simplesmente separa a teoria da práxis, faz desta mero exemplo da teoria (do mesmo modo como Hegel reduzia a realidade à Ideia). Se o marxismo de sua época recorre aos fatos, é apenas para conformá-los à teoria, para interpretá-los segundo a teoria. É o que podemos ver no exemplo que Sartre dá sobre Valéry. Ao tentar compreender suas obras e sua vida, o marxista contemporâneo se contenta em situá-las de acordo com a época e a classe à qual ele pertenceu, e, ao 24
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classificá-lo como pequeno burguês, deduz todas suas ideias e atitudes a partir do que já pensam sobre a pequena burguesia. E o que Sartre tentará fazer com a proposta de um novo método que possibilite uma razão dialética é recuperar a individualidade, é não torná-la mero reflexo da classe, das definições que simplesmente situam o sujeito. Sua resposta aos que pensam saber tudo de Valéry por nomeá-lo pequeno burguês é: “Valéry é um intelectual pequenoburguês, eis o que não suscita qualquer dúvida. Mas nem todo intelectual pequeno-burguês é Valéry” (SARTRE, 2002, p. 54). Refazendo a crítica de Marx a Hegel, Sartre pretende restituir o singular no universal, o real na ideia, o individual no geral, o sujeito na história. Admitindo as mediações da psicanálise e da sociologia, Sartre pretende mostrar as relações do indivíduo com sua família e com os pequenos grupos e associações. Sem anular o sujeito na história, o filósofo francês pretende justamente salientar o papel da singularidade, mostrar como Valéry, se é pequeno-burguês, não se restringe a ser isso, é um pequeno-burguês que reagiu de modo único a determinados acontecimentos, que escreveu determinadas obras que só ele poderia escrever. Com a psicanálise Sartre quer mostrar que é na particularidade de uma história que a pessoa faz, de forma obscura, a aprendizagem de sua classe. E com a sociologia pretende mostrar as relações humanas em meio a grupos locais, que também é uma forma indireta de viver a História maior. O que ele procura são mediações que permitam ligar as particularidades ao social, mediações que ajudarão o marxismo a reencontrar seu caminho real – mas para isso é preciso elaborar um método, uma “ordem das razões”, não mais das razões analíticas, mas das razões dialéticas, uma ordenação do conhecimento dialético do homem, que exige uma nova racionalidade, a qual, por sua vez, deve ser construída na experiência, considerando o papel do indivíduo no acontecimento histórico, fazendo com que a totalização envolva não só as categorias sociais e econômicas, mas também os atos e as paixões. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 9-28, jan./jun. 2010
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Por isso Sartre nomeará seu método de progressivo-regressivo, porque é um vaivém entre a história e o indivíduo, entre a superestrutura e a infraestutura, entre o sistema e o vivido, com uma iluminando a outra sem se dissolver nela. Há aqui uma dialética do subjetivo e do objetivo, uma necessidade conjugada da “interiorização do exterior” com a “exteriorização do interior”, desse movimento da práxis que é ao mesmo tempo assimilação da história pelo homem e transformação dessa história. “Definiremos o método da abordagem existencialista como um método regressivo-progressivo e analítico-sintético; é, ao mesmo tempo, um vaivém enriquecedor entre o objeto (que contém toda a época com significações hierarquizadas) e a época (que contém o objeto em sua totalização” (SARTRE, 2002, p. 112). O indivíduo é compreendido pela história, e a história é compreendida pelo indivíduo. Vai-se de início às características da época, tendo ainda o objeto como um certo vazio, mas depois o objeto é enriquecido pelo conhecimento obtido da época, enriquecimento esse que não anula o objeto, mas faz com que nos voltemos novamente para a época, dando novas significações ao que lhe aconteceu. O objeto é enriquecido pela época e ao mesmo tempo enriquece e transforma a época por meio do modo como a vive. Mas justamente porque essa racionalidade deve ser construída na experiência, não basta estabelecer novas regras para a direção do espírito. É voltando-se para a experiência, para a existência singular de um homem, que Sartre pretende praticar sua razão dialética a fim de compreender essa relação tão íntima e tão paradoxal entre o homem e a história, entre o Para-si e o Em-si, entre o nada e o ser. Essa tentativa exaustiva de compreender uma vida em sua totalidade, em sua singular universalidade, será realizada de forma mais completa nos livros sobre Genet e Flaubert, que não analisaremos. O que nos importa ressaltar aqui é que Sartre descreve a importância de construir um novo método, de pensar uma razão que permita compreender a realidade humana. E, ao estabelecer essa 26
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necessidade de pensar ainda nos limites de uma nova razão, Sartre propõe um papel da razão para que alcancemos a compreensão colocada por Heidegger. Trata-se, então, de um outro momento da crise da razão, um momento que continua a não dar espaço para a razão analítca, mas que volta a buscar a racionalidade, não mais para atingir verdades eternas como as de Descartes, mas para atingir a busca do sentido do ser, como proposto por Heidegger.
Referências DESCARTES. Meditações sobre filosofia primeira. Campinas: Unicamp, 2004. ______. Regras para a direção do espírito. Lisboa: Edições 70, 1989. HEIDEGGER. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 2002. SARTRE. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1999. _____. Questões de método. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2002.
THE CRISIS OF REASON IN THE PHENOMENOLOGY Abstract In this article we intend to show what role that the analytic reason will have in Heidegger’s and Sartre’s thought. Against Descartes, who determines reason as a guide against all the mistakes and as solution for all crises, Heidegger shows that the certainty of the cogito is not prior to the certainty of the sum (of the existence), and that for this reason it is not restrict to that: here the understanding appears as prior to reason, as the one which enables Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 9-28, jan./jun. 2010
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any sort of rationality. And if Sartre also understands man as immediately in the world, yet thinking in terms of subject, and for this reason will need to determine a positive role to reason, not to the analytic reason, but to a dialectic reason, which has as an aim not to reach absolute and eternal truths, but to elaborate in theoretical terms the heideggerian understanding. We will present, therefore, how reason loses the unique and essential role that it had in the Descartes’ philosophy to become, itself, source of a crisis; and, if it still keeps any role in the phenomenology, it is a supporting role, the one that helps to theorize the understanding of man in the world. Key words: reason, crisis, Descartes, Heidegger, Sartre.
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O QUEFAZER DO INTELECTUAL EM TRÊS EXEMPLOS: ÁLVARO VIEIRA PINTO, PAULO FREIRE E LEONARDO BOFF Rodrigo Marcos de Jesus*
Resumo Discutiremos a função do intelectual no Brasil na segunda metade do século XX. Para tanto, recorreremos a três exemplos históricos: Álvaro Vieira Pinto, Paulo Freire e Leonardo Boff. O objetivo é identificar que elemento comum perpassa a concepção de intelectual nesses autores. Analisar esta concepção e a função do intelectual no contexto brasileiro neste período constitui duplo interesse: a) histórico e b) formativo. O primeiro, para um resgate e uma compreensão do quefazer do intelectual num período importante da filosofia brasileira. O segundo, para auxiliar a pensar e a re-pensar a atual atividade intelectual e a formação acadêmica. Palavras-chave: Intelectual. Quefazer. Brasil.
Introdução Discutamos a função do intelectual no Brasil. Para isso, evoquemos três representantes do pensamento filosófico brasileiro: Álvaro Vieira Pinto, Paulo Freire e Leonardo Boff. A partir desses três pensadores e de suas atuações específicas – a filosofia, a educação e a teologia, respectivamente – procuremos identificar o que
Do Grupo Filosofia no Brasil (Fibra). Núcleo de Estudos e Pesquisas do Pensamento Complexo (Neppcom/FaE/UFMG). E-mail: rodrigomarcosdejesus@ yahoo.com.br *
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há de comum no quefazer de suas atividades intelectuais. Apontar o elemento comum presente nesses exemplos permitirá entendermos o que significou ser intelectual num período relevante da história da filosofia brasileira (segunda metade do século XX). Além do interesse histórico, o resgate da concepção de intelectual desse período pode nos ajudar – no confronto com o nosso tempo – a pensar e a re-pensar a atual atividade intelectual, a prática e a formação acadêmica. Este estudo privilegiará a abrangência, a identificação das grandes linhas orientadoras do trabalho intelectual dos autores escolhidos. O que é ser intelectual? Iniciemos a questão com uma aproximação etimológica. Intelectual, etimologicamente, tem a ver com a inteligência (intellectus, de intus-legere), é aquele que se ocupa com a inteligência do sentido realizado e presente nas atividades humanas. Desse modo, o intelectual seria capaz de intuir e ler no interior do real um sentido e valor. “Nas diferentes práticas históricas, [o intelectual] vê o homem, seu destino, sua realização ou sua frustração em jogo” (BOFF, 2003, p. 151). Mais do que a fragmentação e a análise, o intelectual é o homem da totalidade e da síntese. A par desta definição preliminar salientemos outro traço comum aos pensadores escolhidos. Álvaro V. Pinto, P. Freire e L. Boff compartilham uma mesma percepção: julgam estar vivendo num período de mudança profunda na realidade que impele a uma tomada de decisão e têm consciência do condicionamento histórico do próprio intelectual. Portanto, para esses pensadores, é preciso compreender o significado da mudança na realidade e a partir dela, sabendo-se condicionado historicamente, ter clareza do papel do intelectual neste período de modificações. Daí nasce a indagação sobre o quefazer do intelectual. Esquematicamente podemos distinguir três concreções do intelectual: a) Álvaro Vieira Pinto: o filósofo como intelectual vive num período de transformações na infraestrutura (condições econômicas e industriais) e superestrutura (condições culturais) da sociedade brasileira (décadas de 1950-60), fase caracterizada como nacional30
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desenvolvimentista. Nesta fase o filósofo é impelido a contribuir com o processo de desenvolvimento através de uma visão de totalidade desse processo; b) Paulo Freire: o educador como intelectual, situado num contexto de opressão (desumanização) das classes populares, é chamado a praticar uma educação libertadora, que favoreça a humanização do oprimido e do opressor (décadas de 1960-701); c) Leonardo Boff: o teólogo como intelectual, imerso num contexto de pobreza e exploração do povo, que em sua maioria é cristão, é chamado a não apenas refletir sobre o papel do cristão na tarefa da libertação dos oprimidos e excluídos, mas também a tomar uma nova postura (ortopráxis) frente a essa situação (décadas de 1970-802). Detalhemos cada concreção um pouco mais.
1 Álvaro Vieira Pinto O período é o dos anos 1950-60. Ocorre uma mudança profunda da realidade brasileira. Motivada por essenciais transformações econômicas e sociais, a consciência brasileira começa a ter a percepção exata de seu próprio ser. O atual momento de transformação – de um país agrário, objeto colonial, de consciência alienada e poder autoritário para um país industrializado, sujeito nacional, de consciência crítica e poder democrático – oferece ao filósofo a oportunidade de surpreender o jogo de oposições, não para ocupar-se delas de modo gratuito, mas para optar por um dos lados em disputa. O filósofo é
Frise-se que esta data é somente uma demarcação didática. Com efeito, Paulo Freire estende sua práxis de uma educação libertadora até o final de sua vida (1997). 2 Aqui a data apresentada é também apenas um recurso didático. Leonardo Boff, o único dos três pensadores ainda vivo, continua sua atuação em prol da libertação dos oprimidos, tendo incorporado, principalmente desde seu afastamento da igreja institucional e dos seus estudos sobre a teologia da criação, a perspectiva ecológica. 1
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indagado a procurar as causas, o sentido e o critério que devem guiá-lo na sua tomada de decisão por uma das posições em conflito. Neste período, em que o desenvolvimento (entendido por Vieira Pinto de modo amplo, pois engloba tanto o desenvolvimento econômico como o cultural) é a questão em foco, a contradição principal existente é entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. O tema em questão posto pela realidade ao filósofo é o da consciência nacional, sua origem, seu significado e valor. Examiná-lo – após recolher as contribuições das várias ciências – é tarefa filosófica, diz respeito à compreensão do processo da realidade geral e nacional. Esclarecer a questão da consciência não é algo de mero interesse acadêmico. Investigar sua formação e descrevê-la cuidadosamente é uma contribuição valiosa à comunidade. Pois ter uma consciência bem formada sobre o fenômeno do desenvolvimento ajuda a compreender a mudança pela qual passa a sociedade brasileira e é uma ferramenta a mais no auxílio ao processo de desenvolvimento nacional. Como todo processo é carregado de sentido, de significado e traz em si as ideias que o orientam, cabe ao filósofo explicitar essas ideias, sistematizá-las e colocá-las num horizonte maior de totalidade. A cada fenômeno corresponde uma ideologia, ao desenvolvimento corresponde a ideologia3 do desenvolvimento nacional. O filósofo é chamado a produzir os esquemas de compreensão dessa mudança acelerada na realidade para que a comunidade obtenha a inteligência do processo como um todo e possa, a par disso, potencializar as possibilidades latentes no fenômeno. Entretanto, essa ideologia formalizada pelo filósofo não é criação sua, provém das massas populares. Estas constituem a vanguarda do Ideologia apresenta em V. Pinto um caráter positivo, ela é produto de um momento histórico, nunca algo a priori; não pode por isso ser separada da prática. A ideologia constitui nas ideias orientadoras presentes em um fenômeno (explícitas ou não). Portanto, o sentido de ideologia no nosso autor difere daquele comumente adotado por algumas correntes marxistas. 3
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processo de desenvolvimento, uma vez que elas executam as tarefas materiais do desenvolvimento e o desenvolvimento é feito em proveito delas. As massas começam a existir junto com o desenvolvimento. As exigências das massas são expressões da mudança de consciência por que passa o país, de uma consciência colonial, heterônoma, subdesenvolvida, inautêntica, ingênua, para uma consciência do ser nacional, autônomo, em desenvolvimento, autêntica e crítica. A ideologia do desenvolvimento tem de proceder da consciência das massas. A verdade sobre a situação nacional não deriva dos intelectuais ou políticos, mas é dita pelas massas “[...] pois não existe fora do sentir do povo, como proposição abstrata, lógica, fria. Não é uma verdade enunciada sobre o povo, mas pelo povo” (VIEIRA PINTO, 1959, p. 38). Aos políticos e intelectuais cabe acolhê-la e interpretá-la com o instrumental lógico-categorial, sem distorcê-la ou mistificá-la. A ideologia, então, não deve vir de cima. Ela só é legítima quando exprime a consciência coletiva e não é imposta. Não basta a justaposição harmoniosa das classes dirigentes e do povo, é preciso “[...] a existência de quadros intelectuais capazes de pensarem o projeto de desenvolvimento sem fazê-lo à distância, mas consubstancialmente com as massas” (VIEIRA PINTO, 1959, p. 39, grifo nosso). Como análise filosófica, a ideologia do desenvolvimento utilizase das contribuições da economia, sociologia, geoantropologia e da história, transforma os dados em problemas e lhes confere sentido. A generalidade da filosofia permite a constituição de critérios de verdade e normas reguladoras para a elaboração de projetos específicos. A ideologia do desenvolvimento nacional, portanto, dialoga com as demais ciências e com a massa. E será a expressão, a enunciação de forma lógica e organizada daquilo que é anunciado, expresso de maneira inábil pelo sentir do povo. O filósofo deve se colocar existencialmente do ponto de vista das massas, ou seja, por-se em situações concretas. Este trecho de Álvaro é explícito quanto à especificidade do filósofo no país subdesenvolvido: Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 29-43, jan./jun. 2010
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Não há problemas filosóficos universais senão os de natureza abstrata. Desde, porém, que temos de pensar o real concreto, aquele com que efetivamente nos defrontamos e sobre o qual somos obrigados a agir, os problemas deixam de apresentar-se de maneira imprecisa, e se desenham como desafios para a inteligência, partidos das coisas próximas. As tarefas que incumbem ao filósofo do país subdesenvolvido são específicas, refletem a condição da realidade de que o pensador participa. Não admitem ser consideradas em igualdade com as dos filósofos pertencentes aos centros dominantes da cultura, para os quais o mundo é visto da perspectiva do país onde vivem, até agora, sempre em algum dos que têm estado em posição cultural eminente (VIEIRA PINTO, 1960, v. 1, p. 64).
Há diferença entre o pensamento dos filósofos da metrópole, que podem fazer elocubrações ideológicas simples ou devaneios metafísicos, e o pensamento dos filósofos do subdesenvolvimento. Para os primeiros não se apresenta a necessidade de transformação social, já para os segundos urge uma ideologia transformadora. Os do centro já estão na cultura alta. Os da periferia precisam galgar os degraus culturais. Entretanto, ambos estão bem situados historicamente. O filósofo da periferia tem outra realidade e outra missão. Sabe que a população do seu país está privada dos bens culturais e materiais para o bem-estar humano. Sabe que essa situação é imoral e deve ser ultrapassada “com o ingresso do país nos níveis plenos de desenvolvimento”. Essa transformação é verdadeiramente ontológica, uma transmutação do ser nacional, exige uma formulação ideológica, que é incumbência do filósofo elaborar. Por isso não pode desviar-se dessa missão para recair em criação de concepções de cunho abstrato. Ele está existencialmente investido, “[...] porquanto não apenas a consciência moral de solidariedade humana, mas até seus mais legítimos interesses pessoais o obrigam a constituir-se em intérprete do país a que pertence” (VIEIRA PINTO, 1960, v. 1, p. 65). 34
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2 Paulo Freire No período das décadas de 1960-70, P. Freire entende como problema iniludível daquele momento histórico a humanização e a desumanização como possibilidades ontológica e histórica. Para ele: Os movimentos de rebelião, sobretudo de jovens, no mundo atual, que necessariamente revelam peculiaridades dos espaços onde se dão, manifestam, em sua profundidade, esta preocupação em torno do homem e dos homens, como seres no mundo e com o mundo. Em torno do que e de como estão sendo (FREIRE, 2005, p. 31, nota 1).
Vivenciamos uma realidade opressora, que desumaniza tanto opressores quanto oprimidos, ainda que de formas diferenciadas. Neste contexto há necessidade de libertação tanto de oprimidos, que são impedidos de ser, quanto de opressores, que, ao oprimirem, têm também sua humanidade distorcida. A pedagogia do oprimido proposta por Paulo será [...] forjada com ele [o oprimido] e não para ele, homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto de reflexão dos oprimidos, de que resultará seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará” (FREIRE, 2005, p. 34).
Segundo Giroux (1987), o objetivo desse tipo de pedagogia é duplo: tornar o político mais pedagógico e o pedagógico mais político. Nesta perspectiva, a educação não é neutra (como de resto para Freire a educação nunca é e nem será), e o educador é, então, convocado a tomar posição diante da opressão. Uma educação que trabalhe pela humanização do ser humano oprimido terá de ser uma educação libertadora, e o educador, um problematizador. A educação Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 29-43, jan./jun. 2010
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como prática da liberdade nega o homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo e nega um mundo também sem os homens. Ela propõe uma reflexão autêntica sobre os homens em suas relações com o mundo. Desse modo, o educador buscará junto com os educandos problematizar o mundo e os homens a fim de que da emersão das consciências resulte a inserção prática no mundo. O papel do educador é proporcionar a mudança de percepção sobre o mundo (superação do conhecimento no nível da doxa para o conhecimento no nível do logos), a fim de propiciar a mudança de atitude com relação ao mundo. Isso não é feito só através de “conteúdos críticos”, exige a mudança de postura do próprio educador perante os educandos. Daí resulta uma educação que não estabelece dicotomia entre educador e educandos, que não disserta sobre um tema, mas dialoga. Enfim, uma educação na qual os conteúdos sejam não uma doação ou imposição, “mas a devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este [o povo] lhe entregou de forma desestruturada” (FREIRE, 2005, p. 97, grifo nosso). Assim, a educação deve partir do concreto, do estado presente e existencial do povo, ou seja, de sua situação de opressão. Como educadores temos a tarefa de dialogar nossa visão de mundo com a visão de mundo do povo. E na prática mútua de se educar através do diálogo, mediatizados pelo mundo, trabalharmos contra a desumanização do ser humano. Para a concretização dessa educação libertadora é preciso que o educador seja não um mero transmissor de saber, mas um intelectual. Deve saber “ler dentro da realidade” (intus-legere) o problema colocado por nosso tempo e a partir dele praticar uma educação que favoreça a humanização dos oprimidos (que será também humanização dos opressores). Para tanto, é preciso, além de competência científica sobre sua área de conhecimento, de clareza política, de conhecimento da história autoritária do país, ter respeito à identidade do educando 36
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e um profundo amor pelos homens e pelo mundo concretizado no compromisso ético em prol da libertação.
3 Leonardo Boff A teologia da libertação, da qual Leonardo será um dos intelectuais mais influentes e atuantes, está inserida dentro do contexto dos movimentos de libertação nos países subdesenvolvidos, do emergir da mobilização popular na sociedade e nas Igrejas dos países latinoamericanos e do compromisso com os pobres assumido pela Igreja católica no Brasil. Nas palavras do próprio autor: Toda práxis contém dentro de si sua teoria correspondente. Assim ocorre com a teologia da libertação, que pretende ser a teoria adequada às práticas do povo oprimido e crente; ela quer ser o momento de esclarecimento e de animação do caminho da libertação popular, sob inspiração evangélica (BOFF, 2004, p. 154-5).
Se com Paulo Freire temos uma pedagogia correspondente à libertação, com esta corrente teológica teremos uma teologia em sintonia com os movimentos de libertação populares. As primeiras formulações teóricas da teologia da libertação ocorrem no final dos anos 1960, com Rubem Alves e José Comblin. Mas é nas duas décadas seguintes que ela atinge seu maior grau de elaboração e sistematização, se espalha por todo o mundo latino-americano, se consolida na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), entra em diálogo produtivo com as teologias negras africana e norteamericana e com o mundo asiático, além de ter encontrado apoios e resistências na teologia europeia. Antes de expormos a função intelectual do teólogo, devemos citar (o espaço não permite detalhamentos) dois pressupostos da teologia Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 29-43, jan./jun. 2010
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da libertação, necessários à compreensão do quefazer teológico. Como teoria (teológica) da prática libertadora a teologia da libertação parte de 1) uma experiência de Deus a partir dos pobres e 2) um compromisso ético, uma opção clara pela libertação dos pobres. Isso lhe permite enfatizar: uma concepção de Deus em que este demonstra uma opção preferencial pelos pobres; a interpretação da história da salvação como história de luta contra a opressão em favor da libertação; a figura de Cristo como libertador integral, tendo sua morte causa também política; o pobre como elemento substancial, e não simplesmente algo a mais nos evangelhos; a Igreja como instrumento-sinal de libertação no meio histórico e uma espiritualidade de libertação que não dicotomiza as dimensões da mística e da política. Ora, a teologia se organiza ao redor do olho da fé e do olho da realidade histórico-social. Nessa inter-relação dialética os temas do passado iluminam os de hoje e vice-versa. Assim, a função do teólogo é dupla, ele é explicitador e conscientizador das implicações teóricas e práticas de fé da comunidade. Como explicitador ele, com sua bagagem teórica, auxilia na compreensão da fé, assume as características de professor-doutor. Como conscientizador, o teológo ajuda a pensar a realidade histórico-social à luz da fé, adquire a postura de intépreteprofeta. Se o intelectual se aprofunda na tarefa do pensamento (pensamento que é característica de qualquer pessoa), o teólogo, sendo o intelectual da Igreja, se aprofunda na tarefa (que é de todo crente) de pensar a fé. O ideal de sua formação é formação clássica (domínio da teoria) e a ausculta do tempo presente (articulação fé e história). Para isso, é preciso uma renovação constante dos conhecimentos, uma atitude de aprendizagem e capacidade para fazer sínteses elaboradas. Além disso, é necessário que o teólogo tenha criatividade, seja propositivo e auxilie a comunidade em sua própria capacidade de pensamento. O teólogo latino-americano é entendido pela teologia da libertação como intelectual orgânico da comunidade, pois: a) dedica-se aos estudos, 38
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dentro de uma realidade sócio-histórica definida e b) preocupa-se com a caminhada da comunidade. Seu saber é um saber prático – não meramente teórico – orientado para a vida da comunidade. Como intelectual orgânico, o teólogo pode apresentar quatro concretizações básicas: a) teólogo-professor: docente nos institutos teológicos; trabalho de acento teórico; possui a exigência de sistema, de ordem, de visões globalizantes; procura uma hierarquização dos temas de acordo com sua relevância para a comunidade e de sua incidência existencial (pertinência ao contexto histórico dos membros da comunidade). b) teólogo-assessor: assessora os organismos da Igreja (conferências, conselhos, pastorais); articula reflexão teológica e pastoral, para isso trabalha vários discursos (o bíblico, o político, o histórico, o popular) dentro de uma totalidade (síntese). c) teólogo-explicitador: nos grupos, nas plenárias e reuniões cabe ao teólogo desocultar, problematizar, criticar e sintetizar; essa tarefa exige versatilidade, capacidade de articulação, apreensão e relativização das polarizações; sua função não é magisterial nem de suprir o trabalho dos participantes, mas de “[...] deixar transparecer o horizonte da fé que se alimenta da oração e mística, mesmo quando se confronta com as questões mais dilacerantes da justiça e da libertação dos oprimidos” (BOFF, 2004, p. 165). d) teólogo-animador: participa de encontros, está inserido na comunidade, aqui o teólogo participa de uma reflexão eminentemente comunitária, uma vez que “reflete em cima das práticas e do nível de consciência revelado pelo grupo”; este é o lugar de maior aprendizagem e de alimentação da fé do teólogo, que se dá no seu contato com a fé do povo; a pedagogia e os recursos de dinâmica de grupo são importantes tanto quanto a teologia, neste trabalho. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 29-43, jan./jun. 2010
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Neste quefazer do teólogo a grande originalidade está no método. Parte-se do nível de consciência religiosa do povo para a reflexão, e não da doutrina já formulada para a prática. É sobre a objetivação e a conscientização do povo expressas em relatórios, dramatizações e trocas de experiência que se organiza a reflexão. A partir daí se processam três momentos, que são dialetizados: ver – julgar – agir, os quais constituem “[...] passos de um único e mesmo processo de expressão, aprofundamento e mobilização da fé, para que seja eficaz em termos de produzir graça social, dignidade dos filhos de Deus e uma convivência mais participada e fraterna” (BOFF, 2004, p. 167). O término e a culminação de todo esse processo ocorre na celebração.
Considerações finais No início do texto apresentamos dois interesses que nos orientavam neste estudo, um histórico e outro, por assim dizer, formativo. Consideremo-los. A nosso ver, na perspectiva histórica, uma figura comum é ressaltada no quefazer intelectual dos três pensadores vistos, a saber: o intelectual orgânico, tal como tematizado por Gramsci. Segundo o filósofo italiano, “todos os homens são intelectuais, poder-se-ia dizer por isso; mas nem todos os homens têm na sociedade a função de intelectuais” (GRAMSCI, 1978, p. 346). Os intelectuais unificam e dão coerência às ações econômica, social e política. Conseguem o consentimento das massas através de uma concepção de mundo, da consciência da função histórica de um grupo, e exercem coerção e disciplina por meio dos veículos (instituições, meios de comunicação etc.) da sociedade civil. O intelectual orgânico organiza, expressa e defende os interesses do grupo ao qual pertence. Quando ligado ao proletariado, diríamos ainda, às massas, às classes populares, ao povo, engaja-se no processo histórico ao lado destes e assume como sua 40
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tarefa “formar uma concepção de mundo coerente e unitária, [o que] significa tomar consciência das contradições vividas no cotidiano, criticá-las e superá-las unificando teoria e prática” (SCHLESENER, 1992, p. 30). Ou seja, o intelectual orgânico deve ser explicitador, crítico e propositivo, características que, como vimos, podem ser verificadas em Álvaro Vieira Pinto, Paulo Freire e Leonardo Boff.4 Quanto ao aspecto formativo, desejamos apenas indicar alguns pontos. Fica evidente a perspectiva dialógica intra e transacadêmica dos autores. Com efeito, todos eles se apropriam das pesquisas e dos conteúdos das demais áreas do conhecimento acadêmico e com eles se enriquecem. Para compreenderem a situação histórica na qual estão inseridos buscam se informar e se formar com o auxílio dos mais variados saberes (ex: história, geografia, sociologia, economia, antropologia, psicologia), sem com isso perderem a especificidade de seus campos e de suas tarefas próprias. Além disso, se abrem ao diálogo com o conhecimento, as aspirações e motivações das classes populares, o que demonstra o não confinamento acadêmico de suas atividades e as preocupações não só teóricas, mas principalmente práticas de seu quefazer. O que fica para nós destes exemplos? Penso que a atitude de abertura diante dos saberes e interpelações acadêmicos e não acadêmicos e a ênfase no caráter prático da atividade intelectual são duas características desses pensadores que muito têm a nos questionar quanto ao que fazemos e ao que faremos de nossa atividade intelectual e de nossa formação acadêmica.
L. Boff é explícito ao se autodefinir como intelectual orgânico. Já V. Pinto não utiliza nos escritos por nós consultados essa expressão. Tampouco Paulo Freire na Pedagogia do oprimido (texto que nos serviu de base), no entanto, sabe-se que após este livro Freire teve contato com Gramsci e foi por este influenciado. 4
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Referências BOFF, Leonardo. Ética e eco-espiritualidade. Campinas, SP: Verus Editora, 2003. _____. Novas fronteiras da Igreja: o futuro de um povo a caminho. Campinas, SP: Verus Editora, 2004. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. _____. Pedagogia da esperança: reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005a. GIROUX, Henry. Escola crítica e política cultural. Trad. Dagmar M. L. Zibas. São Paulo: Cortez, 1987. GRAMSCI, A. Problemas da Vida Cultural. In: _____. Obras Escolhidas. Trad. Manoel Cruz. São Paulo: Martins Fontes, 1978. SCHLESENER, Anita. H. Hegemonia e cultura: Gramsci. Curitiba: UFPR, 1992. VIEIRA PINTO, Álvaro. Ideologia e desenvolvimento nacional. Rio de Janeiro: ISEB/MEC, 1959. _____. Consciência e realidade nacional. Rio de Janeiro: Iseb/MEC, 1960 (v. 1, 2).
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THE TASKS OF THE INTELLECTUAL IN THREE EXAMPLES: ÁLVARO VIEIRA PINTO, PAULO FREIRE AND LEONARDO BOFF Abstract We will discuss the role of the intellectual in Brazil in the second half of the 20th century. To do so, we will refer to three historical examples: Álvaro Vieira Pinto, Paulo Freire and Leonardo Boff. The objective is to identify which common element passes by the conception of intellectual in these authors. To analyze this conception and the function of the intellectual in the Brazilian context in this period constitutes double interest: a) historical and b) formative. The former, for an accomplishment and an understanding of the tasks of the intellectual in an important period of the Brazilian philosophy. The latter, to help to think and to rethink the current intellectual activity and the academic formation. Key words: Intellectual; tasks; Brazil.
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A CONCEPÇÃO SEMÂNTICA DA VERDADE E A TEORIA DA VERDADE-COMO-CORRESPONDÊNCIA Renato Machado Pereira*
Resumo Este artigo tem por finalidade analisar o problema da verdade no trabalho apresentado por Alfred Tarski, chamado de Concepção semântica da verdade. Discutiremos filosoficamente a concepção apresentada por Tarski, compararemos sua concepção com a concepção da verdade-como-correspondência e buscaremos descrever seu valor filosófico. Palavras-chave: Verdade. Semântica. Correspondência. Tarski.
Introdução Em grego, verdade se diz aletheia, que significa “não-oculto”, “não-escondido”, “não-dissimulado”. Em latim se diz veritas e se refere a precisão, rigor e exatidão de um relato no qual se diz com detalhes o que aconteceu. Em hebraico se diz emunah e significa “confiança”. Na literatura filosófica e no significado próprio que lhe confere cada povo, encontramos várias concepções para o termo “verdade”, desde sentido prático, sentido de relação, de revelação, de consistência, até ausência de uma propriedade como verdade. Essa diversidade de concepções e de mudanças no conhecimento ao longo da história mostra o quanto a pesquisa sobre a verdade é necessária. Principalmente
* Professor Assistente da Faculdade Pitágoras – Unidade Poços de Caldas/MG. Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. E-mail: renato_rmp@yahoo.com.br
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quando a discussão está no âmbito da investigação científica, em que se espera que os conceitos sejam o mais preciso e claro possível. Discutir qual concepção é a ideal e qual é a mais adequada para o discurso científico é importante para o avanço do conhecimento. Os pensadores que diretamente se preocupavam com o termo “verdade” na língua natural, no conhecimento, na realidade, nas investigações científicas etc. desenvolveram teorias da verdade. Um dos objetivos dessas teorias é decidir o que usar na definição do termo “verdade”. Qualquer que seja o objetivo de explicar e definir a “verdade”, tal definição deve trazer clareza e amenizar a perplexidade do seu sentido. Muitos teóricos procuraram defini-la por meio de outras palavras ou termos mais simples que afunilavam a ideia do vocábulo. Entretanto, o que muitas vezes acontecia era que essas palavras ou termos propostos guardavam ou preservavam semelhantes problemas trazidos pelo termo “verdade”. No início do século XX o lógico e matemático Alfred Tarski ambicionou alcançar dessa palavra uma definição “formalmente correta e materialmente adequada” que evitasse termos semânticos, ou seja, termos que relacionam expressões de uma linguagem com os objetos a que se referem essas expressões. Pois considerava que nenhuma das noções semânticas era pré-teoricamente suficientemente clara para ser empregada com segurança. Seu pressuposto para criar tal concepção parte de uma noção simples. Ele pede que consideremos a sentença “a neve é branca” e nos pergunta em que condições essa sentença é verdadeira e em que condições é falsa. É-nos claro que essa sentença é verdadeira se a neve é branca, e falsa, se a neve não é branca. Logo, a definição de verdade pode ser expressa pela seguinte equivalência: A sentença “a neve é branca” é verdadeira se, e somente se, a neve é branca. Essa equivalência mostra uma definição tarskiana aparentemente simples e trivial, mas promissora, segura e apta a recolher um amplo consenso. 46
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Generalizando, a condição de adequação material e de correção formal assevera que a definição da verdade tem de implicar todas as sentenças do seguinte padrão, chamadas tanto de “forma T” como de “esquema T” ou “convenção T” (1944, p. 9): (T) X é verdadeira se e somente se p, em que a letra “p” deve ser substituída por qualquer sentença da linguagem e “X” por um nome dessa sentença (ou a própria sentença entre aspas).1 Diferentemente do que fala de outros termos semânticos, Tarski (1944, p. 16) afirma que “verdadeiro” possui uma natureza lógica diferente; “verdadeiro” expressa uma propriedade, ou denota uma classe, de sentenças. Desse modo, uma definição de verdade será uma conjunção lógica das sentenças na forma T que possuem a propriedade de ser verdadeira e que pertençam a uma linguagem formalizada. Com essa inovação e esse desejo de formalidade, Tarski se torna um dos precursores de várias outras ideias acerca da verdade. Porém, o modo pelo qual o próprio Tarski enfatiza a importância filosófica da sua definição contrasta com a intensidade das críticas que afirmam precisamente o oposto. Alguns contendores dizem que a definição de Tarski não é filosoficamente relevante, porque não esclarece satisfatoriamente a noção de verdade, ou que Tarski não resolveu o problema que se propôs a resolver. Mas, mesmo que se queiram defender as duas afirmações, trata-se de afirmações diferentes (RODRIGUES FILHO, 2006, p. 24). Na tentativa de encontrar o valor da noção de verdade apresentada por Tarski, muitos comentadores discutem a possibilidade de interpretar a teoria tarskiana como uma reabilitação da teoria da verdade-como1 A qualquer sentença com a forma dessa equivalência passaremos a chamar “sentença-T”.
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correspondência.2 Todavia, as reações à importância filosófica da sua definição, enquanto um esclarecimento da noção de verdade-comocorrespondência, são bastante variadas, indo desde a rejeição total até a aceitação entusiasmada (RODRIGUES FILHO, 2006, p. 25).
1 Teorias da verdade-como-correspondência Muito da literatura contemporânea sobre verdade toma como ponto de partida algumas ideias que são proeminentes no início do século XX. Porém, há algumas concepções da verdade que já estavam sendo discutidas há muito tempo e influenciaram a maior parte das discussões atuais. Um grande exemplo disso é a definição de “verdadeiro” dada por Aristóteles, que influenciou muitas teorias do início do século XX e, indiretamente, muitas outras. Isso pode ser visto no quadro organizativo apresentado por Haack (1978) em seu livro Filosofia das lógicas, p. 128:
2 As teorias da verdade-como-correspondência estão baseadas na ideia de que “verdade é correspondência com a realidade”, ou seja, um portador-de-valor-deverdade é verdadeiro quando as coisas no mundo são como os portadores-de-valorde-verdade dizem que são.
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Podemos observar, segundo Haack (1978), que a concepção semântica da verdade de Tarski recebeu influência direta da concepção aristotélica e tem “afinidade” com a teoria da correspondência. Compreendermos essa “afinidade” (se existe ou não) é um dos principais objetivos deste artigo. Para tanto, será fundamental entendermos as teorias da verdade-como-correspondência, ou seja, entendermos a sua estrutura básica e as suas características principais, visando sempre à futura comparação com a concepção semântica da verdade. Desse modo, este tópico não procurará desenvolver uma análise crítica das teorias da verdade-como-correspondência, mas objetivará caracterizá-la; ou seja, o intuito é compreender o que é uma teoria da correspondência, e isso servirá de base para discutirmos se a “Concepção Semântica da Verdade” de Tarski é uma teoria da correspondência ou não. As teorias da verdade-como-correspondência estão baseadas na ideia de que “verdade é correspondência com a realidade”, ou seja, um portador-de-valor-de-verdade é verdadeiro quando as coisas no mundo são como os portadores-de-valor-de-verdade dizem que são. As teorias correspondenciais estão entre as teorias robustas da verdade; isto é, aquelas teorias que consideram que a verdade tem uma natureza. Além disso, constituem, em geral, segundo Lynch (2001, p. 5), uma visão realista objetiva: se algo é verdadeiro, isso não depende daquilo em que cada um acredita; a verdade depende do mundo, e não de nós. Mas dizer apenas “Verdade é correspondência com a realidade” não expressa adequadamente a essência dessas teorias. Será necessário esclarecermos três aspectos da ideia de verdade-comocorrespondência (LYNCH, 2001, p. 9): 1. O que tem a propriedade de ser verdadeiro (qual é o portadorde-valor-de-verdade). 2. A “realidade” à qual corresponde o portador-de-valor-deverdade. 3. A correspondência (ou seja, qual a relação entre o portadorde-valor-de-verdade e a realidade). Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 45-78, jan./jun. 2010
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1.1 Portadores-de-valor-de-verdade As teorias da verdade-como-correspondência têm utilizado como portadores-de-valor-de-verdade: crenças, pensamentos, ideias, juízos, sentenças, asserções, expressões vocais e proposições. Contudo, é de costume usar a expressão “portadores-de-valor-de-verdade” sempre que queremos assumir uma postura neutra dentre essas opções. Dois pontos devem ser lembrados: i. Esses portadores-de-valor-de-verdade devem ser tais que se possa confiar que não vão mudar seu valor de verdade. ii. Devemos saber distinguir entre portadores-de-valor-deverdade secundários e primários.3 Na literatura contemporânea quase somente proposições são mencionadas como portadores-de-valor-de-verdade. 1.2 A relação de correspondência Como vimos, a correspondência se dá entre o portador-de-valorde-verdade e a realidade. Mas o que é que conecta ou relaciona, de modo geral, um portador-de-valor-de-verdade à realidade? Em outras palavras, o que é a noção de correspondência? Discutiremos duas interpretações sobre essa noção: a correspondência como correlação, também conhecida como relação fraca, e a correspondência como congruência, também conhecida como relação forte (Grayling, 1997, p. 142-143; Pitcher, 1964, p. 9-14). A correlação pode ser entendida como o emparelhamento de itens, ou membros de dois ou mais grupos de coisas, um-para-um, de acordo com algumas regras ou princípios. Podemos considerar, por 3 Portadores-de-valor-de-verdade secundários são derivados de valores-deverdade de portadores-de-valor-de-verdade primários, cujos valores-de-verdade não são derivados de nenhum outro portador-de-valor-de-verdade.
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exemplo, o sentido de correspondência um-para-um dos matemáticos. Suponhamos que coloquemos a série de números naturais com uma correspondência um-para-um com a série dos números naturais pares. Assim, Números naturais: Números naturais pares:
1 | 2
2 | 4
3 | 6
4 | 8
5 ... n | | 10 ... 2n
Podemos dizer que da série dos naturais o número 1 corresponde para o número 2 da série dos naturais pares, 4 da série dos naturais corresponde para o 8 da série dos naturais pares, e assim por diante. Isso segue do seguinte raciocínio: dado um número xi de um grupo, no caso, o conjunto dos números naturais, e a regra y = 2x, há um único membro yi do outro grupo, no caso, o conjunto dos números naturais pares. E tudo isso significa dizer que xi corresponde para yi, ou seja, xi do conjunto dos números naturais e yi do conjunto dos números naturais pares estão correlacionados ou emparelhados um com o outro em concordância com a regra estipulada. Claramente, nós temos especificado uma regra ou princípio para a correspondência, dado que na ausência de um contexto, ou na ausência da indicação de um grupo, ou na ausência da explicitação de uma regra, dizer “5 corresponde para 10” não fica compreensivo. Segundo Kirkham (1992, p. 174), Aristóteles foi o primeiro a apresentar uma concepção da verdade-como-correspondência como correlação, em sua formulação: “Dizer daquilo que é que não é, ou daquilo que não é que é, é falso, enquanto dizer daquilo que é que é, ou daquilo que não é que não é, é verdadeiro”. Outro filósofo que defende a visão de correspondência como correlação é J. L. Austin (1950). Sua visão é a de que todo portadorde-valor-de-verdade está correlacionado a um fato possível; se esse fato possível realmente acontece, então o portador-de-valor-de-verdade é verdadeiro; caso contrário, é falso. A verdade, para Austin, é Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 45-78, jan./jun. 2010
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considerada como uma relação quaternária entre uma afirmação (é a informação transmitida por uma sentença declarativa), uma sentença, um estado de coisas (um fato possível), e um tipo de estado de coisas. A correspondência é determinada por convenções linguísticas, que especificam se o estado de coisas ao qual uma sentença se refere é do tipo apropriado para torná-la verdadeira. Para Austin (1950, p. 28), as palavras e o mundo são correlacionados de duas formas: • por meio de convenções descritivas, correlacionando palavras (sentenças) com tipos de situações encontrados no mundo (estados de coisas), e • por convenções demonstrativas, correlacionando palavras (afirmações, isto é, sentenças realmente emitidas) com situações de fato encontradas no mundo em ocasiões particulares.
Assim, uma afirmação é considerada verdadeira quando “o estado de coisas particular ao qual está correlacionada pelas convenções demonstrativas” é de um tipo segundo o qual a sentença usada para fazê-la está correlacionada pelas convenções descritivas. Por exemplo, suponhamos que alguém, S, em um instante t, diga “X está dormindo”. As convenções descritivas correlacionam as palavras com situações em que as pessoas dormem, e as convenções demonstrativas correlacionam as palavras com a real atividade de X no instante t. O que S diz em t será verdadeiro se a situação real, correlacionada com as palavras que S profere pelas convenções demonstrativas, é do tipo correlacionado com aquelas palavras pelas convenções descritivas. Por outro lado, a correspondência como congruência pode ser entendida em termos de “encaixar” ou “ajustar”, como quando nós dizemos que extremidades reunidas de um pedaço de papel rasgado se encaixam ou se ajustam. Tais teorias da verdade alegam que há um isomorfismo estrutural entre os portadores-de-valor-de-verdade e os fatos aos quais eles correspondem quando o portador-de-valor-deverdade é verdadeiro. 52
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Segundo Bertrand Russell, em seus artigos “Da Natureza da Verdade e da Falsidade”, de 1910, e “Verdade e Falsidade”, de 1912, a correspondência consiste em um isomorfismo estrutural entre as partes de uma crença e as partes de um fato; é a correspondência daquilo que se acredita ser verdadeiro ou falso com os fatos que tornam as crenças verdadeiras ou falsas. Para Russell (1910, p. 155-157; 1912, p. 21), acreditar consiste em uma relação do crente com vários objetos unidos por outra relação. Por exemplo, a crença A acredita que B ama C, consiste no A (o sujeito) relacionado a B (um termo-objeto), C (outro termo-objeto) e na relação amar (a relação-objeto). O sujeito A anuncia a crença de que “B ama C” e esse enunciado será verdadeiro “quando uma pessoa que acredita nele acredita de modo verdadeiro e, falso, quando uma pessoa que acredita nele acredita de modo falso” (RUSSELL, 1910, p. 152). Dessa forma, Russell restringe a natureza da verdade à verdade das crenças, uma vez que a verdade dos enunciados é uma noção derivada da verdade das crenças. Um problema ocorre quando o enunciado é apenas um objeto (RUSSELL, 1910, p. 155). Por exemplo, a crença “Rodrigo acredita que Sócrates não existiu” é composta apenas do sujeito “Rodrigo”, do objeto “Sócrates não existiu” e da relação de acreditar. O enunciado, nesse caso, é o objeto “Sócrates não existiu”, que pode ser verdadeiro ou falso, dependendo se existe o fato que Sócrates existiu. O problema surge quando a veracidade e a falsidade da crença estão dependendo da existência ou não de uma única entidade, no caso, “Sócrates”. Russell considera, nesse caso, a crença verdadeira sustentável, pois a crença é a relação da mente do sujeito com o objeto que existe. Mas quando é falsa é insustentável, pois a relação da crença não pode ser uma relação com nada. E ele conclui: Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 45-78, jan./jun. 2010
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Devemos portanto abandonar a perspectiva de que as crenças consistem numa relação com um único objeto. Não podemos sustentar esta perspectiva com relação às crenças verdadeiras enquanto a rejeitamos com relação às falsas, pois isto faria uma diferença intrínseca entre crenças verdadeiras e falsas, e permite que descubramos (o que é obviamente impossível) a verdade ou a falsidade de uma crença simplesmente por exame da natureza intrínseca da crença. Desta forma devemos nos dirigir à teoria de que nenhuma crença consiste numa relação com um único objeto (RUSSELL, 1910, p. 155, grifo do autor).
Assim, o problema está em admitir que, quando acreditamos de modo falso, não existe nada em que estamos acreditando. A maneira de escapar a essa dificuldade consiste em sustentar que, se acreditamos de modo verdadeiro ou se acreditamos de modo falso, não existe uma única coisa em que estamos acreditando. Quando acreditamos que “B ama C”, temos diante de nós não um objeto, mas vários. Dessa forma, a crença é uma relação da mente com vários outros termos: quando esses outros termos têm entre si uma relação “correspondente”, a crença é verdadeira; quando não, ela é falsa. A descrição da verdade, segundo Russell, requer uma congruência entre a relação da crença e uma segunda relação chamada “um fato”. No caso, a crença “A acredita que B ama C” requer uma congruência entre os termos da crença (A, acreditar, B, amar, C – nessa ordem) com o fato que tem B, amar e C (nessa ordem) como seus termos. Isto é, os objetos relacionados dessa forma constituem uma “unidade complexa”, que, quando relacionados na mesma ordem em que também estão na minha crença, constituem o “fato correspondente à crença”. Logo, uma crença é verdadeira quando corresponde a certa unidade complexa – um fato – e é falsa quando não corresponde. Vejamos um exemplo concreto (RUSSELL, 1912, p. 20-21),
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Do lado esquerdo da figura está a crença – Othello acredita que Desdemona ama Cássio – com seus cinco termos e a seta vertical, que simboliza a direção da relação. Do lado direito está o fato de que Desdemona ama Cássio, com seus três termos e uma seta vertical indicando sua direção. Pode-se dizer que as duas relações – a crença e o fato – se encaixam, porque cada um dos dois termosobjeto (Desdemona e Cássio) aparecem em ambas as relações, e a relação-objeto (amar) aparece em ambas, e a crença e o fato têm a mesma direção. Se uma dessas condições não fosse satisfeita, a crença e o fato não se encaixariam e a crença seria falsa. Dessa forma, a crença seria falsa se a direção do fato fosse diferente (se Cássio amasse Desdemona), se um dos termos-objeto fosse diferente (se Desdemona amasse Rafael) ou se a relação-objeto fosse diferente (se Desdemona odiasse Cássio). A correlação e a congruência parecem ser diferentes concepções de correspondência (GRAYLING, 1997, p. 143). Isso é indicado pelo fato de que podemos dizer que as metades de uma folha de papel rasgada se ajustam (correspondem) exatamente ou perfeitamente Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 45-78, jan./jun. 2010
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quando reunidas. Porém, não podemos dizer de 3, da série de números naturais, que corresponde exatamente ou perfeitamente para o 6, da série dos números naturais pares. Estas duas interpretações da relação de correspondência trazem dificuldades particulares. A maior dificuldade para elaborarmos ou entendermos uma teoria baseada na correlação está na regra ou no princípio que norteia a correspondência entre portador-de-valorde-verdade e o fato. Para tentarmos entender uma teoria desse tipo devemos compreender a regra de correspondência. Nas teorias baseadas na congruência, dificuldades aparecem na conexão entre as partes de um portador-de-valor-de-verdade e as partes do fato que ele descreve, visto que o portador-de-valor-de-verdade como um todo é congruente com o fato como um todo. Podemos questionar qual é a relação entre essas partes, que tipos de coisas podem ser constituintes de um portador-de-valor-de-verdade ou de um fato, como fazer para determinar quantos constituintes um portador-devalor-de-verdade ou um fato tem e quais as regras para fazê-lo. 1.3 Realidade – realismo e não-realismo Vimos que a correspondência relaciona um portador-de-valor-deverdade com a realidade, e essa relação se dá, sob pelo menos as duas possíveis interpretações descritas, por correlação ou congruência. Assim, falta-nos compreender o significado de “realidade”. A realidade ou parte dela é tratada, geralmente, sob os nomes: “fatos” ou “estados de coisas”. Kirkham (1992) caracteriza estado de coisas e fatos da seguinte maneira: Utilizo o termo “estado de coisas” no seu sentido filosófico (que não é o usual): “estado de coisas” não é um sinônimo para “fato” ou “situação”, porque fatos potenciais mas não realizados são também estados de coisas. Até mesmo fatos impossíveis contam como estados de coisas, embora 56
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esses estados de coisas nunca ocorram em nenhum mundo possível. Talvez a melhor maneira de se definir “estados de coisas” seja dizer que qualquer coisa cuja ocorrência possa ser asseverada (com verdade ou falsidade) por meio de uma sentença declarativa conta como um estado de coisas, sendo que nada mais, além disso, conta. [...]. Um fato, então, é um estado de coisas que ocorre no mundo real (KIRKHAM, 1992, p. 109-110).
Discussões filosóficas sobre a realidade podem ser subordinadas a discussões sobre o realismo e o não-realismo. E muitas ideias sobre o realismo e o não-realismo estão relacionadas com as ideias sobre verdade. Segundo Dummett (apud Grayling, 1997, p. 254), realismo é a tese de que o mundo existe e tem características independentes de algum conhecimento ou experiência. Assim, portadores-de-valorde-verdade sobre o mundo são verdadeiros ou falsos em virtude do modo como as coisas estão no mundo, quer nós não saibamos ou possamos vir a saber como as coisas são no mundo e, portanto, independentemente de sabermos ou não o valor-de-verdade desses portadores-de-valor-de-verdade. Dessa forma, uma teoria realista da verdade parece impor certa condição ontológica à verdade de um portador-de-valor-de-verdade. Segundo Putnam (apud Grayling, 1997, p. 285-286), o realismo metafísico é a tese de que o mundo consiste de uma totalidade fixa de objetos independentes da mente. E argumenta que quem sustenta essa visão acredita que há exatamente uma verdade e uma descrição completa do mundo; então, verdade consiste em uma forma de correspondência entre a descrição e o mundo. Para Putnam, verdade-como-correspondência exibe independência (do que o homem sabe ou pode vir a saber), bivalência (uma sentença apenas pode ser verdadeira ou falsa) e singularidade (não pode ser mais que uma verdade ou descrição completa da realidade). Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 45-78, jan./jun. 2010
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E também, para Dummett, a bivalência é uma característica marcante do realismo. Segundo os realistas, verdade e falsidade independem de nossa capacidade de decidir qual o valor de qualquer portador-de-valor-deverdade. Em resumo, uma teoria da verdade realista sustenta que, para que um portador-de-valor-de-verdade seja verdadeiro, um certo estado de coisas deve ocorrer de modo independente da mente. Por exemplo, a crença de que “a neve é branca” é verdadeira se, e somente se, a neve for branca. De acordo com o realismo, “a neve é branca” é verdadeira se, e somente se, a neve é branca no mundo externo, independente das nossas mentes. Uma teoria não-realista é qualquer teoria que negue o realismo, ou seja, nega que, se o mundo existe, ele tem características independentes de algum conhecimento ou experiência. Ou seja, a existência daquilo que dizemos ser “do mundo” depende da percepção por alguma mente. Assim, não é uma condição para a verdade da crença “a neve é branca” que neve realmente seja branca em um mundo externo.
2 A concepção semântica da verdade segundo Alfred Tarski O lógico e matemático polonês Alfred Tarski inicia, após 1920, o projeto de fornecer rigorosas definições para noções úteis em metodologia científica. Em 1933 ele publica o artigo “O Conceito de Verdade em Linguagens Formalizadas”, em que discute o critério segundo o qual uma definição de “sentença verdadeira” deve satisfazer e dá exemplos de tais definições para linguagens formais particulares. A teoria da verdade de Alfred Tarski apresentada nesse artigo e as teorias de seus sucessores desfrutam de um curioso duplo estado. 58
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Por um lado, são teorias matemáticas caracterizadas por ricas classes de resultados matemáticos. Por outro, são creditadas por filósofos por trazerem uma análise filosoficamente significativa da natureza da verdade (SOAMES, 1984, p. 397). Segundo Soames (1984, p. 400-401), Tarski possuía duas motivações: 1. remover a dúvida de certas noções científicas de verdade e 2. eliminar o que ele toma ser a incoerência implicada por nossa noção ordinária de verdade trazida pela antinomia do mentiroso. Para Tarski, estas duas motivações são conectadas, dado que a antinomia constitui uma das origens do ceticismo sobre a possibilidade de construção das concepções da verdade. Tarski empreendeu três tarefas (LYNCH, 2001, p. 324): 1. Dizer o que pode contar como uma definição satisfatória de “sentença verdadeira” para uma dada linguagem formal e construir uma teoria da verdade que seja formalmente correta e materialmente adequada. 2. Fazer um conceito de verdade fisicamente respeitável. 3. Fazer uma teoria que seja imune à antinomia do mentiroso. Assim, para Tarski (1944, p. 9-10), o problema principal é dar uma definição satisfatória da verdade, é construir uma definição que seja materialmente adequada e formalmente correta, ou seja, que preserve o real e intuitivo significado da noção de verdade e que respeite as regras formais a que deveremos submetê-la. Isso levando em consideração a sua adesão ao fisicalismo. O fisicalismo é a tese de que a linguagem da física é uma “linguagem universal”, que serve para a expressão de toda a ciência empírica (SANTOS, 2003, p. 123). Não significa isso que, de fato, a química, a biologia, a psicologia, a sociologia etc. utilizem a linguagem da física para expressar as suas teorias (ou sequer que a devam utilizar). O que se defende é, antes, que qualquer sentença desses outros domínios da Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 45-78, jan./jun. 2010
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ciência possa ser traduzida (segundo regras de dedutibilidade recíproca) numa sentença materialmente equivalente da linguagem da física. Para que esta traduzibilidade seja garantida, será preciso que todos os conceitos e expressões de qualquer área científica possam ser definidos usando-se apenas conceitos e expressões da física (eventualmente, com o auxílio também de alguma terminologia lógico-matemática). Segundo Soames (1984, p. 401), a versão do fisicalismo de Tarski é “moderada”, permitindo tanto elementos físicos quanto matemáticos. Aproximadamente, este “fisicalismo moderado” afirma que: • Todos os fatos são físicos ou matemáticos. • Todas as afirmações científicas (ou descritivas) são redutíveis a características físicas ou matemáticas. • Todos os conceitos científicos (ou descritivos) são definidos em termos de conceitos físicos ou matemáticos. Tarski (1944, p. 17) propõe o nome “Concepção Semântica da Verdade” para designar a sua teoria da verdade. Sobre semântica, ele tinha em mente o seguinte: “A semântica é uma disciplina que – grosso modo – se ocupa de certas relações entre as expressões de uma linguagem e os objetos (ou ‘estado de coisas’) a que se ‘referem’ essas expressões” (TARSKI, 1944, p. 17). Ele chama o conceito de verdade de conceito semântico, porque ela pode ser definida em termos de outros conceitos semânticos, especialmente do conceito de satisfação (a respeito do qual falaremos mais tarde). Assim, para assegurar que a semântica se enquadrasse dentro do seu fisicalismo, Tarski precisou reduzir todos os conceitos semânticos a conceitos físicos ou lógicomatemáticos. Sua estratégia era definir todos os conceitos semânticos, exceto satisfação, em termos de verdade. A verdade era então definida em termos de satisfação, e esta era definida somente em termos de conceitos físicos e lógico-matemáticos (KIRKHAM, 1992, p. 204). Por essas razões, Tarski afirma que “o problema de definir a verdade se mostra estreitamente relacionado com o problema mais geral de aplicar os fundamentos da semântica teórica” (1944, p. 18). 60
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Assim, também, o portador-de-valor-de-verdade escolhido por Tarski precisa necessariamente ser algo físico (uma cadeia de sons ou de sinais concretos) ou lógico-matemático, o qual, então, será as expressões linguísticas, mais especificamente, as sentenças (TARSKI, 1933, p. 156; TARSKI, 1944, p. 10-11). Como as sentenças, as linguagens possuem um papel fundamental na construção da sua concepção. Nas palavras do próprio Tarski: “[...] sempre devemos relacionar a noção de verdade, assim como a sentença, a uma linguagem específica; pois é óbvio que a mesma expressão que é uma sentença verdadeira em uma linguagem pode ser falsa ou sem sentido em outra” (TARSKI, 1944, p. 11). Para Tarski (1969, p. 113), a definição de verdade deve ser relativa a uma linguagem particular. Ele afirma que a verdade é um atributo das sentenças (enquanto objetos físicos, ou classes de tais objetos), mas acrescenta que ela é um atributo que as sentenças possuem ou não possuem, dependendo, entre outras coisas, do seu significado e da sua estrutura gramatical na linguagem em questão. Por isso, de certa maneira, não é correto falar da “definição de verdade de Tarski”, mas sempre uma definição de verdade referente a uma dada linguagem. No famoso artigo de 1933, o que Tarski faz é apresentar a definição de verdade para uma linguagem particular, no caso, a linguagem do Cálculo de Classes, e depois descreve, de um modo geral, como é que o mesmo método de construção da definição pode ser aplicado a outras linguagens com uma estrutura mais ou menos semelhante. Nas palavras dele: “Não pretenderemos de todo dar aqui uma definição geral única do termo [“sentença verdadeira”]. O problema que nos interessa será dividido numa série de problemas separados, cada um dos quais relativo a uma só linguagem” (TARSKI, 1933, p. 153). Portanto, não há apenas uma definição da verdade. De fato, nem mesmo temos duas ou mais concepções da verdade aqui. O que temos é uma concepção da “verdade-em-L1”, uma concepção da “verdadeem-L2”, e assim por diante. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 45-78, jan./jun. 2010
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A relativização é necessária pelo fato de que as linguagens tratadas são diferentes em significado e estrutura e, principalmente, porque Tarski deseja eliminar termos semânticos primitivos, pois considera que nenhuma das noções semânticas é, pré-teoricamente, suficientemente clara para ser empregada com segurança (HAACK, 1978, p. 151). Assim, procurando evitar termos semânticos primitivos e considerando suas condições de definição da verdade – formalmente correta e materialmente adequada –, Tarski restringe consideravelmente as linguagens de sua investigação. Em outras palavras, ele deseja construir uma concepção infalível, neutra em relação a outras concepções e teorias, mesmo que isso torne a concepção da verdade exclusiva de poucas linguagens. Por exemplo, as línguas naturais não respeitam as condições impostas; consequentemente, falham na construção da concepção semântica da verdade. Nas palavras de Tarski, [...] para todas as linguagens naturais ou faladas – o significado do problema [da definição da verdade] é mais ou menos vago, e sua solução apenas poderá ter um caráter aproximado (TARSKI, 1944, p. 21).
Desse modo, Tarski se dedica principalmente ao estudo das linguagens formais. Ele é um daqueles pensadores que veem nas línguas naturais um meio inadequado para a expressão e o desenvolvimento da ciência e que acalentam a esperança de que linguagens mais apropriadas a esse fim possam finalmente substituir a linguagem de todos os dias no discurso científico (TARSKI, 1944, p. 21; TARSKI, 1969, p. 112-113). E chega a afirmar: Linguagens formalizadas são completamente adequadas para a apresentação da lógica e de teorias matemáticas; e me parece que não há nenhuma razão essencial porque elas não podem ser adaptadas para uso em outras disciplinas científicas e em particular para o desenvolvimento das partes teóricas das ciências empíricas (TARSKI, 1969, p. 114). 62
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Tarski (1969, p. 116) acentua que sua definição da verdade, em especial para linguagens científicas, não trata de um critério de verdade, ou seja, a definição em si não é um critério prático para decidir se uma sentença particular em uma linguagem é verdadeira ou falsa. Esta é uma tarefa da própria ciência, e não da lógica ou de uma teoria da verdade. Ele exemplifica esse fato a partir da seguinte sentença: “As três bissetrizes de todo triângulo se encontram em um único ponto”. Se estamos interessados em saber se essa sentença é verdadeira e se queremos uma resposta a partir da definição da verdade, a única informação que encontraremos é que a sentença é verdadeira se as três bissetrizes de um triângulo sempre se encontram em um ponto, e é falsa se elas não se encontram. Apenas uma investigação geométrica nos permitirá decidir qual é realmente o caso. Assim, ele cita a noção de prova ou demonstração como um procedimento de averiguação da verdade para sentenças. Segundo Tarski (1969, p. 117-120), essa noção passou por duas etapas. Inicialmente, Uma demonstração era uma atividade intelectual que tinha como objetivo convencer a nós próprios e aos outros da verdade de uma sentença em discussão; mais especificamente, ao desenvolver uma teoria matemática, eram usadas demonstrações para convencer a nós próprios e aos outros de que uma sentença sob discussão tinha de ser aceita como verdadeira a partir do momento em que algumas outras sentenças tivessem sido previamente aceitas como tais. Não se colocavam quaisquer restrições aos argumentos usados nas demonstrações, exceto a de que eles tinham de ser intuitivamente convincentes (TARSKI, 1969, p. 118).
A necessidade que então surgiu de submeter a noção de demonstração a uma análise mais profunda é uma segunda etapa num processo que teve seu início com a criação do método axiomático. Desse modo, a noção intuitiva de demonstração é substituída por uma nova noção, e exatamente definida como demonstração formal. Mas para Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 45-78, jan./jun. 2010
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que, relativamente a uma certa teoria, se possa caracterizar de modo puramente formal a noção de demonstração, é preciso começar por proceder à formalização da linguagem da teoria. Enfim, relacionando as noções de prova e verdade, Tarski faz a seguinte pergunta: “O conjunto de todas as sentenças formalmente demonstráveis coincide com o conjunto de todas as sentenças verdadeiras?” (1969, p. 121). A conclusão dele é que a resposta é negativa. Sendo assim, uma importante contribuição da concepção semântica da verdade é a apresentação da noção de verdade como estando relacionada à noção de prova, mas, ao mesmo tempo, sendo distinta desta. Em Tarski (1933, p. 198), a resposta dessa pergunta é dada em forma de dois teoremas e um lema: Teorema 5: Toda sentença demonstrável é uma sentença verdadeira. Lema D: Todo axioma é uma sentença verdadeira. Teorema 6: Existem sentenças verdadeiras que não são demonstráveis.4 Ou seja, há sentenças formuladas na linguagem que são verdadeiras, mas não podem ser demonstradas na base dos axiomas e regras de prova. Os próprios axiomas não podem ser demonstrados, mas são verdadeiros (Lema D). Assim, a noção de verdade alarga o conjunto de sentenças verdadeiras, que incluem sentenças demonstráveis e sentenças não demonstráveis mas verdadeiras. E Tarski finaliza dizendo que “não há conflito entre noção de verdade e prova no desenvolvimento da matemática; as duas noções não estão em guerra, mas vivem em tranquila coexistência” (1969, p. 125).
As demonstrações desses teoremas se encontram em Tarski, 1933, p. 198-199.
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2.1 Definição de verdade Para Tarski, uma definição satisfatória de verdade será uma definição materialmente adequada e formalmente correta. Desse modo, em primeiro lugar, devemos especificar a estrutura da linguagem e, em segundo lugar, estabelecer o critério para a adequação material, conhecido como convenção T. A definição geral da verdade será uma conjunção lógica de todas as sentenças-T da linguagem (TARSKI, 1944, p. 16). Vejamos um exemplo: Vamos estabelecer a nossa linguagem formalmente correta, que chamaremos de L1, de um caso particular do Cálculo Sentencial de 1ª ordem: Vocabulário de L1: Conectivos sentenciais: Λ, V Parênteses: ( , ) A definição de sentenças de L1 é dada a seguir: Usaremos A e B para representar sentenças. i. A é uma sentença atômica. ii. B é uma sentença atômica. iii. Toda sentença atômica é uma sentença. iv. (A Λ B) é uma sentença. v. (A V B) é uma sentença. vi. Nada mais é uma sentença. Assim, as únicas sentenças que nossa linguagem L1 possui são: A, B, (A Λ B) e (A V B). Então, queremos uma teoria que implique todas as sentenças-T seguintes: Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 45-78, jan./jun. 2010
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“A” é verdadeira se, e somente se, A. “B” é verdadeira se, e somente se, B. “(A Λ B)” é verdadeira se, e somente se, (A Λ B). “(A V B)” é verdadeira se, e somente se, (A V B). Portanto, uma definição completa da verdade para essa linguagem seria uma conjunção lógica de todas essas sentenças-T. A conjunção seguinte é exatamente esse tipo de conjunção lógica: Para toda sentença s da linguagem L1, s é verdadeira se, e somente se, A, e s é idêntico a “A”, ou B, e s é idêntico a “B”, ou (A Λ B), e s é idêntico a “(A Λ B)”, ou (A V B), e s é idêntico a “(A V B)”. Nós, assim, chegamos à sentença que pode realmente ser aceita como a desejada definição geral da verdade: ela é formalmente correta e adequada no sentido que implica todas as equivalências da convenção T. A linguagem escolhida possui um vocabulário mínimo para reduzir o trabalho que deve ser realizado para definir a verdade. Mas ela é o suficiente para observarmos que a conjunção lógica de um número limitado de sentenças é viável. Porém, se houvesse um número infinito de sentenças, essa conjunção lógica seria inviável. A questão é a seguinte: de que modo podemos expressar para cada sentença de uma linguagem L, formalizada e com meios para formar um número infinito de sentenças, a sentença-T que lhe corresponde? Uma vez que L tenha infinitas sentenças, o método de formar a conjunção de todas as sentenças-T é inaplicável. Mas se as sentenças de L forem formadas por aplicações sucessivas de um conjunto finito de operações a um conjunto finito de sentenças simples e se for possível determinar de que modo a verdade ou a falsidade das sentenças compostas dependem da verdade ou da falsidade das sentenças simples, a dificuldade pode ser vencida. Assim, para resolver esse problema, 66
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Tarski desvia sua atenção para outro conceito: o de satisfação. Pois, satisfação pode ser definido através do método recursivo, utilizando objetos concretos (sequências de objetos) e por ser independente do termo “verdadeiro”. A ideia é definir o conceito semântico de satisfação e depois definir verdade em termos de satisfação.
3 Comparando a concepção de Tarski com a teoria da correspondência Os textos de Tarski não são conclusivos em relação à pergunta se sua concepção semântica da verdade é uma concepção da verdadecomo-correspondência. Em certos momentos afirma que sua concepção deve caracterizar a noção cotidiana de verdade e que não pretende construir nova noção, mas sim capturar o real significado da noção clássica de verdade (1944, p. 9-10). Por outro lado, Tarski também deixa claro que nenhuma das formulações da concepção da verdadecomo-correspondência é satisfatória,5 inclusive a aristotélica. Enfim, (1) Tarski pretendia escrever uma concepção da verdade como uma concepção da verdade-como-correspondência? (2) Independentemente de suas intenções, a concepção da verdade de Tarski é uma concepção da verdade-como-correspondência?
5 Como formulações representativas da concepção da verdade-comocorrespondência, Tarski menciona as seguintes (TARSKI, 1933, p. 153-155; TARSKI, 1944, p. 12; TARSKI, 1969, p. 102): (1) Dizer daquilo que é que não é, ou daquilo que não é que é, é falso, enquanto dizer daquilo que é que é, ou daquilo que não é que não é, é verdadeiro (Aristóteles). (2) Uma sentença verdadeira é uma sentença que diz que o estado de coisas é tal e tal e o estado de coisas é efetivamente tal e tal. (3) A verdade de uma sentença consiste na sua concordância (ou conformidade, ou correspondência) com a realidade. (4) Uma sentença é verdadeira se designa um estado de coisas existente.
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Essas duas perguntas dividem filósofos, que discutem e discordam sobre as respostas dadas em relação a (1), a (2) e inclusive a ambas. Richard Kirkham cita alguns exemplos de filósofos que se pronunciaram diante dessas questões: J. L. Mackie, Susan Haack e Herbert Keuth defendem respostas negativas a essas questões, enquanto Donald Davidson, Karl Popper, Wilfred Sellars e Mark Platts as respondem afirmativamente. Gerald Vision dá uma resposta negativa a (2), enquanto Hartry Field e A. J. Ayer a respondem com um sim (KIRKHAM, 1992, 242).
O próprio Kirkham responde sim à questão (1), mas deixa dúvidas em relação à resposta da segunda. Agora tentaremos comparar a concepção de Tarski com a concepção correspondentista, mas com o intuito principal de expor o valor da concepção semântica da verdade. Para compararmos a concepção da verdade de Tarski com as teorias da verdade-como-correspondência, devemos nos ater aos três aspectos básicos das teorias da correspondência: 1. o portador-de-valor-de-verdade; 2. a correspondência, ou seja, a relação de verdade; 3. a “realidade” à qual corresponde o portador-de-valor-deverdade. Em relação ao portador-de-valor-de-verdade, pouca influência há nessa comparação, pois Tarski se utiliza das “sentenças”, e muitos outros autores de teorias da correspondência aceitam esse portadorde-valor-de-verdade. O problema está na relação de correspondência e no que podemos conceber por realidade em linguagens formais. Primeiramente, alguns críticos acreditam que a relação de correspondência está na definição de verdade através do conceito de satisfação. Porém, a definição de satisfação é mero artifício para a construção da definição da verdade (KEUTH, 1978, p. 423). Ou seja, 68
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a definição de satisfação não apaga a definição da verdade dada pela convenção T. Não está contida na definição de satisfação a essência da definição da verdade de Tarski.Desse modo, a discussão deve versar apenas em cima da convenção T: (T) X é verdadeira se, e somente se, p, em que a letra “p” deve ser substituída por qualquer sentença da linguagem, e “X”, por um nome dessa sentença. A característica da convenção T que expressa a relação de correspondência deve figurar no contraste entre o lado esquerdo (“X é verdadeira”) e direito (“p”) das instâncias da sentença-T. Entretanto, se o lado direito da bicondicional corresponde à realidade expressando uma condição necessária e suficiente para a verdade da sentença mencionada no lado esquerdo,então “p” o expressa de modo trivial, e não informativo. Não fica claro o que é “correspondência”, ou seja, a convenção T não ameniza a perplexidade desse termo semântico. A única informação que temos é que há uma relação extensional (TARSKI, 1944, p. 35). Tentarmos revelar algo mais dessa bicondicional é tirarmos conclusões que não estão expressas nos textos de Tarski. Ao tratarmos de realidade na convenção T, devemos lembrar que Tarski estava interessado apenas nas linguagens formalizadas. Tais linguagens não possuem exclusivamente objetos empíricos, mas também objetos ideais, como, por exemplo, os objetos da geometria euclidiana (ponto, reta e plano, entre outros). A ideia de realidade para esses tipos de linguagem é problemática, principalmente quando tentamos especificá-la como realista ou não. Assim, devemos retomar Tarski e lembrar que ele afirma que a concepção semântica da verdade é completamente neutra em respeito à posição do realismo, à do idealismo, à do empirismo ou à da metafísica. Essas discussões nos levam a concluir que Tarski não estava preocupado em chegar a uma conclusão exata sobre a questão se a concepção Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 45-78, jan./jun. 2010
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semântica da verdade é uma concepção da verdade-como-correspondência. Seu texto parece sempre deixar margem para dúvidas, e isso nos sugere que provavelmente ele tenha tido um motivo para tal. Talvez ele não estivesse preocupado em “reabilitar” a teoria da correspondência, mas apenas intencionasse buscar um sentido preciso e formal que alcançasse o significado comum do termo “verdade”, tendo, para tanto, partido da teoria clássica, sem necessariamente estar preocupado em permanecer nos moldes de uma teoria filosófica específica; daí sua afirmação de neutralidade. Portanto, não é relevante a definição tarskiana de que ela seja enquadrada em algum movimento filosófico, e não altera a essência da definição pensá-la como sendo da linha da correspondência ou não. Isso é fato, pois, se concluímos que ela é uma teoria da verdade-comocorrespondência, aceitamos que há uma relação de correspondência na convenção T e que isso não infringe sua condição de adequação material e correção formal. E se concluímos que não é uma definição correspondentista, ela, então, simplesmente expressa uma definição extensional da verdade, nada mais. Desse modo, o trabalho de Tarski não esclarece a noção de correspondência, e a ausência de tal esclarecimento é precisamente uma posição filosófica por ele assumida (RODRIGUES FILHO, 2006, p. 26). Logo, a questão, agora, deve ser outra: Qual era a intenção de Tarski ao buscar construir uma concepção da verdade nesses moldes? A essa pergunta, Tarski responde concluindo com a neutralidade de sua concepção: Tem-se sustentado que – a causa de que uma sentença tal como “a neve é branca” é considerada semanticamente verdadeira se a neve é de fato branca – a lógica se encontra envolta de um realismo extremadamente acrítico. Se eu tivesse a oportunidade de discutir essa objeção com o autor [...] lhe pediria que eliminasse as palavras “de fato”, que não figuram na 70
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formulação original e são equivocadas, ainda quando não afetam o conteúdo. Pois estas palavras produzem a impressão de que a concepção semântica da verdade tem por finalidade estabelecer as condições em que teremos a garantia de poder afirmar qualquer sentença e, em particular, qualquer sentença empírica. Em efeito, a definição semântica da verdade nada implica em respeito às condições em que pode afirmar uma sentença tal como (1) A neve é branca. Apenas implica que, sempre que afirmamos ou rejeitamos essa sentença, devemos estar atentos para afirmar ou rejeitar a sentença correlacionada (2) A sentença “a neve é branca” é verdadeira. De maneira que podemos aceitar a concepção semântica da verdade sem abandonar nenhuma atitude gnosiológica que possamos ter tido; seguimos sendo realistas ingênuos, realistas críticos ou idealistas, empiristas ou metafísicos: o que tenhamos sido antes. A concepção semântica é completamente neutra no que faz respeito a todas essas posições (TARSKI, 1944, p. 55).
Uma instância do esquema (T) não fornece um critério que possibilite decidir se a sentença é verdadeira ou falsa, mas apresenta as condições sob as quais podemos definir a verdade e o faz utilizando as próprias sentenças da linguagem. Assim, um ponto essencial do argumento de Tarski é que as instâncias de (T) são definições de verdade satisfatórias, independentemente de qualquer posição filosófica, porque fornecer um tal critério de decisão não é tarefa de uma definição da verdade (RODRIGUES FILHO, 2006, p. 46). O’Connor (1975) em seu livro The correspondence theory of truth expressa isso de maneira significativa: Como sabemos que, por exemplo, a neve satisfaz “x é branca” sem já sabermos que a sentença “a neve é branca” é verdadeira [?] [...]. De fato, é óbvio que não podemos identificar as coisas individuais que satisfazem uma sentença aberta sem conhecer os valores de verdade
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das sentenças fechadas resultantes de substituirmos, nas sentenças abertas, as variáveis não ligadas por nomes de coisas individuais. Sendo assim, não é uma explicação da verdade e da falsidade em termos de satisfação claramente circular? A essa objeção, um defensor da teoria semântica da verdade responderá que a teoria pretende apenas fornecer uma definição clara e precisa de verdade. Ela não pretende oferecer um método para determinar quais sentenças particulares são verdadeiras e quais são falsas. A resposta é justificada, mas aponta para uma característica da teoria que limita seriamente seu interesse filosófico. Pode-se pensar que é um tipo bem estranho de definição, uma definição que não nos ajuda a identificar os elementos da classe definida (O’CONNOR apud Kirkham, 1992, p. 250-251).
Mas a definição de Tarski da verdade é de muita ajuda para identificar elementos da classe que ela define, como é qualquer outra definição de qualquer outro conceito. Para identificar os elementos da classe dos “pássaros”, precisa-se primeiro de uma listagem dos elementos que podem ser candidatos a ser pássaro. Mas será preciso, então, sairmos e examinarmos os vários elementos para vermos se para cada elemento dado ele atende ou não a certas condições. A definição ajuda, ao nos dizer o que devemos procurar. Da mesma forma, para determinar se uma sentença é verdadeira ou não, precisamos de dois elementos: uma definição de verdade nos dizendo o que procurar e um método de observação ou justificação por meio do qual possamos fazer a procura. Devemos notar que, sem uma definição de verdade, não saberíamos se deveríamos ou não examinar a neve e determinar sua cor. A prova de que a teoria de Tarski fornece toda a ajuda que qualquer outra definição de qualquer outro conceito fornece é que sua teoria nos diz qual dessas coisas devemos fazer: nos diz o que procurar. A prova de que ela não nos fornece mais ajuda do que qualquer outra definição é que, se estamos realmente na dúvida a respeito do 72
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valor de verdade de “a neve é branca”, ainda teremos de ir examinar a neve e determinar sua cor (KIRKHAM, 1992, p. 251). Em resumo, a definição da verdade tarskiana é dada através de uma conjunção lógica das sentenças-T. Desse modo, ela exibe todas as sentenças de uma linguagem formal ou, pelo menos, a forma geral de cada uma delas em se tratando de linguagens com número infinito de sentenças, as quais podem receber o valor de verdadeiro ou falso. A definição em si não diz quais são verdadeiras e quais são falsas, mas nos guia dizendo-nos quais são as possíveis candidatas. Cabe, então, a uma “prova” ou “demonstração formal”, verificar quais delas são verdadeiras e quais são falsas.
Considerações finais O trabalho de Tarski não traz a solução final para a dificuldade de definir a verdade, mas constitui um passo a mais para a discussão da formalidade e da adequação da definição de verdade no campo das investigações científicas. Sinal disso é a influência tarskiana nos trabalhos de muitos outros pensadores, como: • O autor Donald Davidson (2002), com sua “teoria do significado”. Davidson descreve uma teoria do significado a partir das ideias apresentadas por Tarski e acentua sua defesa em relação à importância filosófica do trabalho de Tarski. [...] uma teoria do significado para uma linguagem L mostra “como os significados das sentenças dependem dos significados das palavras” se ela contiver uma definição (recursiva) da verdade-em-L. [...]. Espero que o que estou dizendo possa ser descrito em parte como uma defesa da importância filosófica do conceito semântico de verdade de Tarski (DAVIDSON, 2002, p. 30-31). Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 45-78, jan./jun. 2010
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Davidson tinha a intenção de explorar linguagens que Tarski havia abandonado, como a linguagem natural. E alega que é possível aplicar as técnicas de Tarski a essa linguagem e que fazer isso traz um surpreendente benefício: uma teoria da verdade para uma linguagem natural é uma teoria do significado para essa linguagem. Em suas palavras, “uma teoria do significado (em meu sentido perverso) é uma teoria empírica, e sua ambição é explicar o funcionamento de uma linguagem natural” (2002, p. 32). E mais, “[...] a condição que colocamos sobre as teorias satisfatórias do significado é, em essência, a convenção T de Tarski, que testa a adequação de uma definição semântica formal da verdade” (2002, p. 30). Kirkham, em seu comentário sobre a teoria do significado, acentua a semelhança dela com a teoria tarskiana da verdade. Com relação a uma linguagem matemática simples, tal como aquelas com as quais Tarski estava preocupado, uma teoria davidsoniana do significado para essa linguagem (exceto pela transformação de uma definição de muitas cláusulas numa série de axiomas) pareceria exatamente a mesma que uma teoria tarskiana da verdade para essa linguagem. De modo similar, uma teoria davidsoniana do significado para uma linguagem natural diferiria de uma teoria tarskiana da verdade, à parte da mudança do tratamento em termos de definição para o tratamento axiomático, somente no sentido de acrescentar axiomas (para nomes, advérbios, functores etc.) àqueles já existentes. O instrumental lógico da definição de Tarski e as sentenças-T geradas por ela [...] permanecem os mesmos, mas nós os vemos agora como realizando uma tarefa diferente (KIRKHAM, 1992, p. 321).
E afirma que, se Davidson estiver certo, “seria difícil exagerar a importância do seu insight” (1992, p. 311). E “que nós ainda não temos uma teoria completa do significado, mas, pelo menos, sabemos 74
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como construir uma. Sabemos como trabalhar com a semântica. Se Davidson está certo” (1992, p. 311). • O autor Quine (1990), com seu “descitacionalismo”. Quine descreve sua teoria do descitacionalismo a partir da transparência da verdade expressa na convenção T. Por exemplo, se considerarmos que é verdadeiro que “rosas são vermelhas”, parece que podemos ver através de sua veracidade e considerar simplesmente que rosas são vermelhas com um simples tirar as aspas. Inferimos que é verdadeiro que rosas são vermelhas a partir da proposição “rosas são vermelhas”, e vice-versa. Ainda há validade subjacente às teorias da verdade-como-correspondência, como Tarski tem nos ensinado. Por exemplo, dizer que “a neve é branca” é verdadeira se e somente se ela é um fato que a neve é branca, nós podemos simplesmente tirar ‘ela é um fato que’ por causa de sua vacuidade, e dizer “A neve é branca” é verdadeira se somente se a neve é branca. Atribuir verdade para uma sentença é atribuir brancura para a neve; tal é a correspondência nesse exemplo. A atribuição de verdade é apenas um retirar as aspas. Verdade é des-citação (QUINE, 1990, p. 475).
Enfim, estas foram algumas das discussões empreendidas na nossa busca pela compreensão da Concepção Semântica da Verdade escrita por Alfred Tarski. Concordando com o otimismo de Tarski, afirmamos que a pesquisa sobre a verdade é necessária e pode chegar uma época em que nos veremos diante de várias concepções da verdade incompatíveis, porém, igualmente claras e precisas. Parece-me que nenhuma destas concepções que tem sido formulada, até agora, é inteligível e inequívoca. Porém, isso pode mudar; pode vir uma época em que nos veremos frente a várias concepções da verdade, Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 45-78, jan./jun. 2010
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incompatíveis, mas igualmente claras e precisas. Será, então, necessário abandonar o uso ambíguo do termo “verdade”, introduzindo em seu lugar diversos termos, cada um dos quais denotando uma diferente noção (TARSKI, 1944, p. 43).
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THE SEMANTIC CONCEPTION OF TRUTH AND THE THEORY OF TRUTH-AS-CORRESPONDENCE Abstract This article aims to analyze the problem of truth in the essay presented by Alfred Tarski, called Semantic conception of truth. We will discuss philosophically the conception presented by Tarski, we will compare his conception to the conception of the truth-as-correspondence and we will seek to describe its philosophic value. Key words: Truth. Semantic. Correspondence. Tarski.
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RUBEM ALVES E A RELIGIÃO: UMA ANÁLISE DA PRIMEIRA E DA SEGUNDA FASE DE SEU ITINERÁRIO REFLEXIVO Antônio Vidal Nunes*
Resumo O presente texto1 postula duas etapas importantes no itinerário reflexivo de Rubem Alves. No primeiro momento encontramos o jovem teólogo empenhado na elaboração de um pensamento religioso que justifique a inserção e participação dos cristãos na ordem do mundo. No segundo, após uma avaliação crítica das ideias passadas, estabelecerá o seu humanismo e nele, a origem e o sentido da religião. Palavras-chave: Rubem Alves. Religião. Desejo. Homem.
Introdução Rubem Alves, intelectual brasileiro, é um dos mais importantes nomes do pensamento religioso protestante no Brasil e na América Latina. As investigações a respeito de sua obra transcendem o território latinoamericano. Seus livros já foram traduzidos em vários países. Embora ele tenha abandonado suas pesquisas acadêmicas há mais de 20 anos, os resultados de suas atividades reflexivas, que marcaram profundamente o protestantismo progressista brasileiro e latino-americano, continuam a despertar interesse de inúmeros pesquisadores. Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo. 1 Trabalho apresentado no II Congresso Brasileiro de Filosofia da Religião (Anpof), Belo Horizonte, 8 de novembro de 2007. *
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Inicialmente Rubem Alves foi incompreendido e marginalizado por uma tradição de pensamento religioso libertário, de matriz católica, que se tornou hegemônica em nosso continente, pois na década de 70 ele introduziu pressupostos e conceitos (tais como corpo, estética, desejo, ecologia etc.) estranhos ao discurso de emancipação. Logo, porém, tornou-se reconhecido nacionalmente e até no exterior, e seus escritos continuam a gozar de atualidade e vitalidade. São vários os livros e trabalhos acadêmicos que evidenciam o interesse pela obra desse pensador nascido em Minas Gerais. Nesta investigação objetivamos destacar as concepções religiosas que emergem do pensamento de Rubem Alves em duas fases iniciais de sua reflexão. A primeira, que denominei teológica, iniciou-se após a sua formação em Teologia, no ano de 1957, no Seminário Presbiteriano de Campinas. Neste momento, tomaremos como elemento de análise a produção intelectual que ele realizou até 1964, ano em que ocorreu o golpe militar no Brasil. Ainda que Rubem Alves tenha escrito vários artigos no jornal Brasil Presbiteriano, órgão oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil, deter-nos-emos no trabalho que julgamos mais importante dessa fase: sua dissertação de mestrado intitulada A theological interpretation of the meaning of the revolution in Brasil, defendida no Union Theological Seminary de Nova Iorque em 1964. Essa obra, praticamente desconhecida dos brasileiros, será a nossa referência fundamental para a análise dessa fase inicial de sua produção. Com o golpe militar e a perseguição engendrada tanto por sua Igreja como pelos militares, Alves exilou-se nos Estados Unidos, onde, a partir de uma avaliação crítica de sua produção intelectual até então realizada, passou a desenvolver o seu humanismo na fase que denominei filosófico-poética. Na primeira fase de seu pensamento havia as atividades de um teólogo preocupado em abrir caminhos e justificativas para a participação dos cristãos no mundo. Na segunda fase Rubem Alves 80
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Rubem Alves e a religião: uma análise da primeira e da segunda fase de seu itinerário reflexivo
tornou-se mais filosófico, buscando as origens da religião no próprio coração do homem. Trata-se de uma etapa em que a temática religiosa preponderou sobre os demais assuntos a propósito dos quais ele discorria. Na verdade, a busca da compreensão do fenômeno religioso sempre foi uma das maiores paixões do pensador mineiro: o tema perpassará toda sua obra.
1 A referência libertária: o compromisso social A reflexão religiosa de Rubem Alves se coloca no prolongamento de práticas e reflexões que o antecederam. As Igrejas protestantes sempre viveram uma tensão permanente entre duas formas de conceber a participação e a intervenção dos cristãos na ordem mundana. Podemos encontrar duas vertentes: uma mais espiritualista e ortodoxa; outra mais ecumênica, compromissada com o mundo e com os problemas sociais. Nesta última perspectiva, teve papel importante o Conselho Mundial das Igrejas, criado oficialmente em 1948, em Amsterdã, onde nesse ano se realizou o seu I Congresso Internacional. Nesse evento participaram 352 delegados de 147 Igrejas de 44 países. Para se contrapor ao Conselho Mundial das Igrejas, foi criado o Conselho Internacional das Igrejas, por Carl McIntire, com uma postura conservadora e fundamentalista. A Igreja Presbiteriana – da qual participou Rubem Alves – institucionalmente, por meio do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil, manteve-se reservada em relação a assumir as posições defendidas pelo Conselho Mundial das Igrejas. Muitos de seus líderes se identificavam com os postulados apregoados pelo Conselho Mundial. Não faltaram manifestações de dirigentes apoiando a vinculação da Igreja a essa entidade. A própria Confederação Evangélica do Brasil, da qual fazia parte a Igreja Presbiteriana do Brasil, acabou aderindo ao Conselho Mundial das Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 79-114, jan./jun. 2010
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Igrejas. Por mais controle que se procurasse ter sobre seus membros, foi inevitável que muitas lideranças dessa Igreja se aproximassem das ideias inovadoras difundidas por esse órgão ecumênico. O próprio Rubem Alves, por algum tempo, fez parte dessa instituição. Não poderíamos deixar de lembrar aqui o movimento do Evangelho Social, que, iniciando-se nos Estados Unidos da América, estendeu-se a outros países, inclusive ao Brasil, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial. Esse movimento defendia maior compromisso social dos cristãos. A visão que então tinha esse grupo de pensadores a respeito do pecado ia além de uma conotação subjetiva e individualista, para alcançar uma concepção estrutural. O evangelho não deveria se constituir apenas num meio de transformação individual. Era preciso intervenção nas estruturas sociais, uma ação eficiente de todos, a fim de que se obtivessem as mudanças necessárias. Na base desse movimento encontramos certas ideias presentes no pensamento teológico do alemão Albrecht Ritschl (1822-1889), que, negando no homem o pecado original, colocou-o na ordem social e em suas estruturas. Esse posicionamento abriu caminho para a estruturação simbólica realizada por Walter Rauschenbusch (1861-1918), a partir do seu diálogo com as ciências sociais. Segundo Alves (1997, p. 13), “as igrejas, através dos séculos, se preocuparam especialmente com os pecados individuais, pecados que se curam com o arrependimento e penitências. Rauschenbusch se preocupava especialmente com os pecados sociais, isto é, aqueles pecados que se encarnam na sociedade”. Rauschenbusch, tido como um dos arautos do evangelho social, engajou-se na busca da realização de uma nova sociedade, na árdua defesa do ecumenismo, e passou a criticar duramente o evangelismo (SILVA, 1996, p. 63). Ele explicitava nos evangelhos e no posicionamento de Jesus os princípios sociais e éticos que deveriam levar os cristãos à promoção da responsabilidade social. Christianity and the social crises (1907), The social principles of Jesus (1916) e A teology for the social gospel (1917) são suas obras mais importantes. 82
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Rubem Alves e a religião: uma análise da primeira e da segunda fase de seu itinerário reflexivo
Os pioneiros do evangelho social achavam que o ponto crucial do desajuste industrial residia no conflito entre o capital e o trabalho. Insistiam que as relações entre ambos constituíam uma questão moral. A igreja, portanto, forçosamente teria de ter uma resposta aos problemas morais que denegriam a sociedade. Trataram então de formular uma nova ética social cristã que exigisse uma maior participação da igreja e uma tomada de consciência na amplitude de sua função (SILVA, 1996, p. 65).
Nos Estados Unidos um grande número de pessoas se engajou na promoção e vivência dos ideais defendidos por esse movimento, sobretudo por meio de novelas evangélicas, gênero literário por intermédio do qual, de forma simples e popular, se procurava explicitar os princípios éticos no cotidiano das pessoas. No Brasil, um dos livros vinculados a esse gênero literário bastante difundido foi Em seus passos o que faria Jesus?, escrito por Charles Sheldon. Essa iniciativa, que começou a perder força nos Estados Unidos a partir de 1930, também chegou ao Brasil e encontrou receptividade em muitos jovens sensíveis aos problemas sociais vividos neste país. Não obstante as fracas reverberações que aqui causou, mereceu toda atenção dos fundamentalistas e dos órgãos oficiais da Igreja Presbiteriana, que procuraram, por meio dos veículos de comunicação disponíveis, lançar as suas críticas contra tal novidade e desqualificá-la, sob a alegação de que esse evangelho cometia desvios em relação à reta doutrina. Sobre isso Alves (1984, p. 268) declarou que “[...] o evangelho social foi um movimento que nunca chegou ao Brasil. No entanto chegaram até nós as suas reverberações e o horror ante tão radical adulteração do evangelho”. Embora o movimento do Evangelho Social não tenha sido assumido aqui pelas instituições religiosas, ele despertou na consciência de muitos jovens a necessidade da experiência de uma fé comprometida com uma nova ordem social. Não resta dúvida de que o pensamento religioso de Alves, imbuído de preocupações sociais, ainda que tecido Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 79-114, jan./jun. 2010
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com um quadro conceitual novo e atualizado, se coloca no prolongamento da reflexão anteriormente realizada. Tal reflexão se vincula a Richard Shaull, o grande mestre de Alves, que estabeleceu diálogo com o marxismo, coisa que estava distante dos idealizadores do Evangelho Social. Em torno de Shaull, a partir do início de 1950, estava não apenas Rubem Alves, mas muitos jovens que, identificados com os princípios do Evangelho Social, procuravam, nos espaços institucionais destinados à juventude, participar ativamente do processo de reconstrução nacional. Shaull sabia dos limites do referencial interpretativo presente no movimento, por isso tratou de estabelecer novos paradigmas que pudessem fornecer uma melhor interpretação e orientação para uma práxis cristã mais bem fundamentada e pertinente ao contexto, abrindo caminho para aquilo que posteriormente será denominado Teologia da Libertação. Em relação a essa articulação entre o movimento do Evangelho Social e a Teologia da Libertação, ressaltou Alves (1997, p. 14): Walter Rauschenbusch, pastor batista dos Estados Unidos, foi o líder de um movimento que tomou o nome de “Evangelho Social” – isso muito antes que as ideias de Marx fossem conhecidas, e 20 anos antes da revolução bolchevista. A vocação cristã pela justiça antecede o marxismo por muitos séculos. O “Evangelho Social” pode ser assim considerado como a versão protestante, solitária, precoce, daquilo que cerca de 60 anos depois recebeu o nome de Teologia da Libertação.
2 A fase da juventude: o teólogo da revolução Tal como assinalamos antes, consideramos o período da juventude do pensamento de Rubem Alves aquele que se iniciou com a sua saída do seminário presbiteriano de Campinas em 1957, quando então ele concluiu o seu curso teológico. A partir desse momento, Alves 84
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passou a escrever e publicar suas reflexões com base nos diálogos estabelecidos durante o tempo de sua formação teológica. Inicialmente podemos encontrar seus textos no jornal Presbiteriano, órgão oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil. A preocupação com a participação e envolvimento dos cristãos e da Igreja nos problemas do mundo estava presente em suas elaborações. O postulado subjacente aos seus escritos é o de que a experiência de fé não deveria retirar os cristãos do mundo, mas comprometer-se com ele, a fim de poder transformar as estruturas sociais injustas e desumanas, substituindo-as por uma nova ordem social mais justa e humana. Não nos deteremos, neste momento de nosso percurso reflexivo, numa análise pormenorizada desses escritos. Fixar-nos-emos, como já indicamos anteriormente, num dos trabalhos mais importantes dessa fase do pensador mineiro, que é a sua dissertação de mestrado concluída em 1964. Parece-nos ser esse o trabalho exemplar dessa fase. Nele Alves expressou as suas convicções de forma mais completa e detalhada. Esse trabalho se tornou possível graças a uma bolsa de estudos que ele recebeu nos Estados Unidos. Sua dissertação ficou desconhecida dos brasileiros por aproximadamente 40 anos. Com o golpe militar ocorrido no Brasil em abril de 1964, poucos dias antes da defesa da dissertação de Rubem Alves nos Estados Unidos, sua publicação tornou-se impossível em nossa pátria. Posteriormente o próprio autor perdeu interesse em publicá-la, pois, mediante uma avaliação crítica, concluiu que não tinha mais identificação com muitas das ideias ali defendidas; além disso, a obra perdera o seu tempo e o seu contexto de origem, mantendo apenas um significado de valor histórico. Ela foi publicada apenas em 2004, pelo Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória, como um número especial da revista Redes, sob este título: “A teologia da libertação em suas origens: por uma interpretação da revolução e do pensamento no Brasil”. Como já ressaltamos, essa obra foi escrita na década de 1960, período de efervescência cultural e política. Os trabalhadores do campo Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 79-114, jan./jun. 2010
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e da cidade, os estudantes, uma parte dos militares, os empresários e os intelectuais visualizavam novas possibilidades para a pátria. Nesse contexto original e importante deu-se a contribuição do Instituto de Estudos Brasileiros (Iseb), que pretendia estabelecer novos caminhos para o país. Constituído de pensadores de várias áreas dos saber – economia, histórica, sociologia, filosofia –, o Iseb buscou repensar caminhos de autonomia para o país em face da subserviência vivida em relação às nações colonizadoras que o exploraram. Rubem Alves, assim como Paulo Freire, manteve diálogo com alguns pensadores do referido centro de pesquisa. Ressaltam-se, na reflexão alvesiana, as contribuições especialmente de Nelson Werneck Sodré, Guerreiro Ramos e do filósofo Álvaro Vieira Pinto. Eles deram os elementos teórico-metodológicos necessários para sua interpretação da realidade brasileira. Rubem Alves pretendia, com o seu labor teológico, contribuir para esses processos de mudanças, ou melhor, estabelecer uma fundamentação teológica que possibilitasse a inserção dos cristãos e da Igreja numa nova realidade histórica que surgia. O Brasil passava por um processo revolucionário, que poderia levar a uma ruptura com o passado colonialista. Após vários séculos de dominação, a nação poderia alcançar um novo momento em seu processo histórico. Até então o País vivera em função das grandes potências. Não tinha vida própria, não tinha um projeto para si. A qualidade da vida nacional até então era do tipo “vida reflexa” tanto da economia como da política e da ideologia. Respondíamos a comandos externos. Essa situação de subserviência da nação, ou seja, o período pré-revolucionário, estaria em vias de superação com a realidade revolucionária emergente. Interpretando aquele momento histórico, Alves (2004, p. 53) profetizava: a [...] situação revolucionária do Brasil está girando em torno de dois polos. O primeiro é a questão da desumanização. Desumanização é a 86
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categoria que descreve o conteúdo da vida brasileira porque o seu resultado, alienação do natural, é consequência inevitável da vida reflexa. O segundo é o fato de que uma nova realidade, em descontinuidade com as estrutura da “vida reflexa”, emergiu como um poder revolucionário: o povo. O que caracteriza o povo é a descoberta dele mesmo. O sentido de pertença, e a decisão de plano para ele mesmo. O conteúdo deste plano é a reversão do processo de desumanização.
A desumanização vinculava-se, para ele, à exclusão do homem na participação do natural, ou seja, daquilo que lhe era necessário para uma vida digna. A situação de dominação vivida pelo povo brasileiro lhe tirou, em razão de todo tipo de espoliação experimentada, as possibilidades de atendimento às suas necessidades básicas. Para isso, era necessário mudanças qualitativas profundas em nossas estruturas econômicas e políticas. A Igreja e os cristãos não se encontravam fora ou acima dessa realidade. Assim, a sua busca de sentido para sua ação no mundo teria de levar em conta esse quadro social. A questão que Alves colocava poderia ser formulada desta maneira: Que sentidos poderiam estabelecer a Igreja e o cristão para a sua ação neste mundo concreto? Que significação poderia orientar o agir da Igreja, que, inserida neste mundo, deveria também trazer uma resposta ao quadro dramático e desumanizante da realidade brasileira? É com essas questões que Alves aspirou a caminhos ou justificativas novas para os cristãos, situados nessa ordem mundana particular e específica. Essa busca se colocou no contexto da linguagem teológica.
3 A busca de sentido A referência fundamental para a busca de sentido é a revelação, e ela se coloca na dimensão da transcendência: uma transcendência que não perde o mundo, antes indica ao homem os caminhos necessários Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 79-114, jan./jun. 2010
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para a práxis e para a organização humana. É ela que deveria estabelecer orientações em termos de significações para o processo revolucionário brasileiro, de tal forma que esse processo servisse à vida e à reconstrução de uma nova sociedade. Assim, a articulação entre a ordem temporal e a transcendente e eterna, entre a realidade política e a teológica se impunha como necessária, mas os caminhos propostos eram vários. Primeiramente Alves refutou as possibilidades colocadas pelo caminho ou modelo essencialista proposto pelo paradigma da lei natural. Esse modelo tinha seus pressupostos na filosofia grega, e servia de base para a atividade teológica católica. Segundo essa perspectiva, há uma ordem dada subjacente ao mundo existente, acessível ao homem por meio da atividade racional. Esta, quando bem orientada, deveria revelar ao homem o sentido da sua ação e do mundo. Para Alves (2004, p. 56), a lei natural é baseada em dois princípios. O primeiro princípio é que o todo da realidade é unificado pela base racional, que, por sua vez, está em harmonia com a mente de Deus. E o segundo: a razão humana é um instrumento eficiente para descobrir esta racionalidade. Como Maritain pontua aqui, “uma ordem ou uma disposição a qual a razão humana pode descobrir, estar de acordo, e a partir da qual o ser humano deve agir”.
No entender do pensador mineiro, essa postura é marcada por uma confiança exagerada na razão, assim como por uma modalidade explicativa que enfraquece a revelação e a teologia. Para ele, não é mais possível ter uma confiança cega na razão, nem se pode corroborar a absolutização do poder que lha deram. Reclamando a perda de historicidade da razão, o filósofo em estudo adverte que ela não escapa aos contextos existenciais concretos. Alves (2004, p. 57) argumenta que postular a razão ancorada numa realidade última como um dado universal é algo muito arriscado, sobretudo depois das contribuições de Kierkegaard, Marx e Freud. Mas o pensador mineiro também mostra 88
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os limites da proposta de Karl Barth para a busca de sentido centrada no conceito de analogia. Embora Barth tenha avançado em relação ao paradigma da lei natural, anteriormente assinalado, centrando-se numa proposta cristológica, Alves acredita que ele continua platônico (ALVES, 2004, p. 61). Seu conceito de reino de Deus é rígido, separado das ambiguidades do mundo. Sua proposta não realiza de maneira adequada uma articulação entre a esfera do transcendente e a da ordem mundana. Nem a primeira proposta, a da lei natural, nem a segunda, a da relação analógica, seria, para Alves, adequada. Na primeira, [...] a revelação desaparece no começo, e o terreno para o sentido é encontrado em conceitos da filosofia grega. No segundo caso, o conceito bíblico de revelação extingue-se no processo, estabelecendo uma relação estática e duvidosa entre alegoria e analogia (ALVES, 2004, p. 62).
Como já sugerimos, para Alves, o sentido deveria ser encontrado na revelação bíblica, que, no dizer dele, se constituiria num milagre, pois ela está para além de todas as possibilidades históricas. Da mesma forma que transcende a nossa finitude, a revelação bíblica também se põe em descontinuidade absoluta com as várias dimensões do nosso existir, por isso ela, como declara o filósofo, paradoxalmente está suspensa sobre o abismo, pois não se encontra no prolongamento daquilo que faz parte deste mundo, e não podemos explicitá-la de forma dedutiva. Não obstante tal descontinuidade, é essa revelação que envolve o homem e o ilumina. Não sendo uma categoria do tempo nem do conhecimento, ela se encontra em meio aos homens, ela os perpassa (ALVES, 2004, p. 63). O sentido maior da revelação poderia ser descrito da seguinte forma: “Deus age na história”. Ele sempre lhe indica algo que está para além da própria história. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 79-114, jan./jun. 2010
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É o transcendente que irrompe na história. Alves fez questão de mostrar que isso se trata de coisa bem distinta das religiões da natureza. “Elas viam a vida e a história como produtos da ordem cosmológica. Na visão bíblica, porém, o natural, o cosmo, é um símbolo de um significado transcendente” (ALVES, 2004, p.64). Dessa forma, o sentido se apresenta não como algo imanente à história, mas evento de graça. Por isso, ele é sempre mistério que não pode ser alcançado pela razão, engaiolado em conceitos que dissecam o presente. Os profetas olhavam para o futuro a partir dos propósitos divinos, da dádiva de Deus. Eles “[...] não fechavam os olhos para a história. Eles olhavam através dela” (ALVES, 2004, p. 64). Mas é preciso ressaltar uma diferença entre a escatologia presente no Velho Testamento e a manifestada no Novo Testamento. Na primeira, a esperança messiânica aponta para o futuro, há uma espera no futuro, o reino virá; na segunda, o reino já se encontra entre nós. Está às mãos. Cristo, a partir de seu nascimento, passa a ser o sentido da história. Ele é uma invasão na história da dádiva divina. E a [...] universalidade de Jesus é encontrada no fato de que, neste acontecimento particular, Deus revela-se como o senhor de todos os acontecimentos. O poder e o sentido dados a todos os acontecimentos da história são revelados na vida deste homem. O caminho para o sentido não é a verdade universal: é este indivíduo. O caminho para o sentido não é a correspondência entre acontecimentos e sentidos. É o caminho da fé, isto é, da transparência. Na fé cristã, portanto, Jesus Cristo é o fim da generalização e da opacidade, na busca de sentido. Ele é o indivíduo que traz transparência à vida e à história (ALVES, 2004, p. 67).
Dialogando com Bonhoeffer, Niebuhr, Cullman e outros, Alves (2004, p. 70) evidenciou que, com o nascimento de Jesus de Nazaré, Deus se torna homem e assume em tudo a condição humana. Ele não apareceu no meio dos homens, mas surgiu a partir dos homens. Viveu em tudo as ambiguidades e os limites da vida natural. Teve fome, sono, 90
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cansaço, sede, medo, amigos, inimigos, irritações etc. Nem mesmo da dimensão mais trágica do existir, que é a própria morte, ele escapou. Ele se insere no natural e, assumindo-o, indica-lhe os limites e sentidos. Sendo Ele concebido pelo poder do Espírito Santo, aponta para algo que transcende o natural como dádiva de Deus. O natural é o penúltimo e, portanto, precede o último. É no último que o penúltimo encontra o seu sentido. É preciso lembrar que Jesus de Nazaré, após assumir todas as consequências de sua pertença ao natural, inclusive a própria morte, ressuscitou. Há aí uma descontinuidade com o natural, com o penúltimo. Jesus afirma o natural, coloca-o como dádiva e revela que o seu sentido se encontra para além do natural. Assim, a pretensão de querer absolutizar o natural torna-se uma idolatria. Mas privar o homem do natural pode redundar em desumanização. Negar ao ser humano a participação adequada nos bens naturais que lhe permitam uma sobrevivência digna constitui algo pecaminoso, pois “[...] podemos dizer, então, à luz da vida de Jesus de Nazaré, que a humanização depende do envolvimento do homem com o natural como dádiva, como penúltimo” (ALVES, 2004, p. 74). Em relação à morte de Jesus de Nazaré, ressaltou Alves (2004) que ela ocorreu como fenômeno do natural que foi assumido por Ele. Mas há mais a se considerar: Ele não apenas morreu, mas foi brutamente executado pelos poderes do mundo que não o aceitaram. Não foi morte por indivíduos, mas por estruturas políticas que o rejeitaram. Assim sendo, as estruturas de poder passaram a ocupar o lugar do último, tornaram-se absolutas. Na condição de ídolos, esses poderes realizam todo tipo de desumanização, inclusive negando ao homem a participação nas dádivas do natural. Segundo Alves (2004, p. 77), a busca de sentido na vida de Jesus Cristo é respondida em termos de aceitação do natural como uma dádiva, penúltimo, ao mesmo tempo aberto para o transcendente último. Este é o conteúdo positivo de sua Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 79-114, jan./jun. 2010
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vida. Este é o seu sim. Por outro lado, ele diz um decisivo não a todas as formas de idolatria que neguem ou absolutizam o natural. [...]. Ele destrói os falsos deuses e seus poderes. Assim fazendo, reafirma o natural como dádiva, como um penúltimo aberto à graça do último.
Para Alves (2004, p. 81), o Estado, quando não se torna ídolo e não vive na idolatria, encontra seu sentido em Jesus Cristo e como tal deve servi-lo. Isso se realiza à medida que ele possibilita a todos a dádiva do natural, já que a “[...] função primária do Estado é fazer a dádiva do natural disponível a todos”. Com isso, a humanização tornase possível, dada a sua abertura ao que é o último e transcendente. Já não é a instância de adoração e de desumanização, mas, enquanto guiado pelo sentido cristológico, coloca-se a serviço de todos. Todavia, a essa altura de sua reflexão, pergunta-se Alves: como compreender o Estado brasileiro? Como interpretá-lo à luz do paradigma bíblico e de uma reflexão cristológica? A resposta era taxativa: o Estado no Brasil, controlado por forças econômicas e políticas demoníacas, nunca esteve a serviço do povo, pelo contrário, deixou-o passar privações do natural. As estruturas políticas são desumanas e ilegítimas, pois ferem o sentido maior e não garantem ao povo a participação no natural. Mas o Estado também é apresentado como um usurpador de Deus, pois a dádiva divina não é distribuída e repassada a todos. Ele deverá ser julgado e derrubado pelo poder divino. A revolução já se constitui num julgamento divino, no momento em que, enquanto parte do natural, não se absolutiza, mas realiza as possibilidades de uma nova humanidade. A revolução emerge com o surgimento do povo, com poder de mudar a situação, de estabelecer uma descontinuidade com as estruturas de poder existentes. A revolução não é um fim em si mesmo, mas deve ser uma ação a serviço da instauração de uma nova ordem adequada aos desígnios divinos. 92
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4 Marxismo, Igreja e revolução Alves (2004, p. 67), em sua reflexão desse momento, ressaltou a importância do marxismo, por oferecer instrumentos interpretativos sobre a realidade brasileira, tendo, assim, contribuído para a revolução. Na verdade, o marxismo não criou a revolução. Esta surgiu em decorrência da privação do natural imposta ao homem. O marxismo apenas “[...] derrubou os mitos que justificavam o status quo, introduzindo, então, uma nova realidade na apreensão intelectual da situação pelo povo”. Rubem Alves não desconhecia as reservas da Igreja em relação ao marxismo, mas sabia que não havia como identificá-lo com o demoníaco, como se tentou fazer. Era preciso levar a sério a contribuição marxista; ela forçava a Igreja a se posicionar diante do mundo, a não perder de vista a realidade dada, com suas contradições. A sua preocupação com o natural era legítima e tinha razão de ser. As críticas do marxismo em relação à Igreja precisavam ser consideradas. A religião também pode se tornar uma ideologia e perder a dimensão bíblica de Jesus como doador do natural e, de forma acomodada, justificar a ordem estabelecida. Sobre isso escreveu Alves (2004, p. 91): [...] muito frequentemente a religião torna-se ideologia, quer dizer, a justificação para a qualidade de existência em que está envolvida. A religião pode tornar-se um ídolo objetivo por meio do qual os homens tentam vencer as inseguranças de nossa existência. A religião pode ser uma compensação psicológica. Então, o psicológico tanto quanto a crítica marxista da religião são válidos.
Quando o marxismo atacava a religião, atribuindo-lhe a condição de ópio do povo, poderia estar correto, sobretudo quando a Igreja deixava de considerar ou não levar a sério a dádiva do natural, contribuindo para manter o povo na alienação do natural. Dessa forma, o Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 79-114, jan./jun. 2010
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marxismo poderia ser possuidor de um significado teológico, à medida que buscava inserir todos na participação do natural. Mas essa doutrina também não pôde deixar de correr riscos, assumindo o lugar do religioso ou, então, reivindicando para si um caráter metafísico, um fim em si mesmo. Assim, deixou de servir à humanização e contribuir, de uma forma adequada, com a revolução. Esta, por sua vez, também se encontrava marcada pela ambivalência e pela ambiguidade. Não obstante a sua importância como julgamento de Deus sobre as pretensões humanas, a revolução corre o risco de se desviar dos desígnios divinos e se tornar, também, como já assinalamos antes, um ídolo. Aí, ela perde o seu caráter libertador. Nesse sentido, advertiu Alves (2004, p. 96-97): A ambiguidade e a ambivalência da revolução são consequências do fato de que na revolução as estruturas de poder estão em conflito. Uma nova realidade está nascendo. Quando as velhas estruturas que pelo seu poder alienaram os homens do natural são destronadas, novas possibilidades de humanização emergem aos homens. Porém, o novo poder sempre corre o risco de criar novos ídolos. [...]. A possibilidade redentora da revolução é o seu poder de derrubar os ídolos. A possibilidade demoníaca da revolução é a idealização de seu poder.
Quando for libertadora, a revolução também será julgamento para a Igreja, que, muitas vezes, perdendo sua dimensão profética, acomoda-se às benesses do Estado e do status quo. Já não se comporta como peregrina, mas passa a relevar a procura de segurança e de sua sobrevivência. Embora fale de morte e ressurreição, ela se recusa a morrer para poder renascer. Ela se torna idólatra quando passa a legitimar a ideologia do Estado demoníaco em troca de segurança. Dessa forma, a “[...] rejeição da igreja à revolução está baseada primeiramente no medo e não na lucidez profética” (ALVES, 2004, 99). Nesse sentido, a revolução é julgamento da Igreja quando esta se silencia diante de um Estado desumanizador para não perder suas 94
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regalias. Mas, se a Igreja for serva de Cristo, ela deverá impedir que a revolução se torne idólatra, que se desvie das suas funções redentoras. A Igreja torna-se, desse modo, a voz de Deus na revolução. O julgamento da Igreja pela revolução e da revolução pela Igreja constitui o caminho de humanização. Alves finaliza sua dissertação com as seguintes palavras: “[...] só nesta dialética pode a humanização, como expressa na vida de Jesus Cristo, encontrar o seu caminho na presente situação histórica no Brasil” (ALVES, 2004, p. 102). Pelo que pudemos expor até este momento de nosso labor reflexivo, dessa primeira etapa da reflexão religiosa de Alves pode-se dizer que se constitui numa atividade teológica centrada na revelação e de cunho transcendentalista, que visa a encontrar as justificativas necessárias à participação da Igreja e dos cristãos no processo revolucionário que o Brasil estava vivendo na década de 1960. As ciências sociais são requisitadas a subsidiar esse processo, com os instrumentos necessários de compreensão da realidade brasileira; a revelação deve proporcionar os elementos de sentido que apontam novas possibilidades para nossa sociedade em vias de superação da dominação colonialista, que sempre impediu a nação de executar um projeto para si e que manteve o povo privado da dádiva do natural, levando-o a desumanização. Até aqui, o sentido foi dado por Jesus Cristo, que, enquanto Deus, tornou-se humano. Há uma recusa da razão como instrumento suficiente de significação para o mundo. Embora não lhe negue o seu papel, Alves suprime-lhe qualquer tipo de absolutização. A razão não se encontra acima da história e de seus condicionamentos. Essa convicção permaneceu inalterada em toda a trajetória reflexiva de Alves. O que se alterou foi a forma de justificá-la. Ainda encontramos, no que vimos até agora, Alves evidenciando os limites não apenas da metafísica clássica, mas, também, de sua possível presença em concepções que poderiam contribuir com o processo revolucionário. Ele destacou o risco de o marxismo constituir-se Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 79-114, jan./jun. 2010
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numa metafísica e perder a oportunidade de contribuir para o bem da sociedade brasileira. Passaremos agora a considerar o segundo momento de sua elaboração religiosa, que passou por algumas transformações em relação à primeira fase, sobretudo quanto a um otimismo ingênuo que perpassava a reflexão do jovem teólogo.
5 A reflexão da maturidade: o coração do homem como residência divina Concluída sua dissertação de mestrado, Rubem Alves retornou ao Brasil. Nosso país passava por momentos difíceis: os militares haviam assumido o poder, engendrando um golpe de Estado. Alves tomou conhecimento da perseguição e prisão de alguns amigos com os quais tinha identificação política e teológica, mas não poderia deixar de retornar, pois, quando fora para os Estados Unidos, deixara sua família no Brasil. Teria de correr os riscos. Os últimos acontecimentos em sua pátria encontravam-se na contramão de tudo aquilo que ele havia pensado em relação à sociedade brasileira. Era um duro golpe para o jovem pensador, que estivera convencido de que sua nação, de forma inevitável, estava na iminência de passar por mudanças profundas em sua estrutura socioeconômica. De alguma forma, ele tinha trabalhado em suas reflexões teológicas no sentido de despertar as consciências, sobretudo as dos cristãos, para os novos tempos. Via agora o projeto desejado, que acalentou os sonhos de muitos brasileiros, abortado pelos militares que tomaram o poder. A situação ficou ainda mais dramática quando, após o seu retorno ao Brasil, começou a ser perseguido por sua própria Igreja. Alves era acusado de herege e comunista num documento elaborado por autoridades religiosas de sua Igreja. Tal documento o incriminava juntamente com outros colegas que até então mantinham um posi96
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cionamento progressista em suas atividades teológicas. De certa maneira, Alves sentiu-se só e abandonado num contexto político incerto e ameaçador. A sua Igreja – interessada em usufruir algumas benesses e vantagens com os novos donos do poder, como já ressaltamos – tratou de expurgar todos aqueles que não pensavam a partir da ortodoxia. Houve uma virada conservadora no interior da instituição religiosa da qual ele fazia parte. Já existia uma tensão permanente entre uma tendência conservadora e outra mais heterodoxa, como também já assinalamos em nossa reflexão, no interior da Igreja Presbiteriana. O golpe militar propiciou condições objetivas para que as autoridades religiosas conservadoras conseguissem impor sua hegemonia. Nessas condições, um documento elaborado por membros de sua própria Igreja, contendo acusações contra o pensador mineiro, chegou às mãos dos militares. A partir de então, além da perseguição que lhe empreendiam alguns componentes de sua própria Igreja, havia outra, comandada pelos militares. Em meio a essa situação dramática e perigosa, o apoio veio de amigos de outro país, que, sabendo dos riscos que Rubem Alves corria, resolveram retirá-lo do Brasil, conferindo-lhe uma bolsa de estudos, obtida em Nova Jersey. Assim, Alves, pelo aeroporto de Viracopos, em Campinas, conseguiu se retirar para o exílio, onde desenvolveria o seu humanismo e uma nova forma de compreender a experiência religiosa. Essa partida ele a descreverá com as seguintes palavras: [...] não me esqueço nunca do momento preciso quando o avião decolou. Respirei fundo e sorri, descontraído, na deliciosa euforia da liberdade. Ainda hoje, quando um avião decola, sinto de novo aquele momento (ALVES, 1987, p. 31).
Esse momento foi precedido por outro de muita tensão. Quando Alves apresentou o passaporte; ele sabia dos riscos de ser preso, pois era indiciado pelos militares no Estado de Minas Gerais. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 79-114, jan./jun. 2010
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A experiência vivida diante dos novos rumos impostos à sua pátria e aquela que passou no interior de sua Igreja possibilitaram a Alves uma reflexão crítica sobre as convicções e representações que até então estiveram a tecer tudo o que ele escreveria. Assim, aos poucos, no exílio inevitável, ele passaria a construir uma nova constelação simbólica, que se distanciaria daquilo em que antes ele acreditava. Nesse novo momento Rubem Alves se tornou mais filosófico. Postulamos que ele, em sua metamorfose intelectual, caminhou de uma reflexão teológica para uma filosófica. A religião continuou a merecer sua atenção e interesse, porém, agora, a referência básica não era mais a revelação, mas o próprio homem. A partir de uma compreensão do homem, ele decifrará o significado da religião. A revelação, que anteriormente lhe serviu de base, continuará a ser evocada em sua reflexão, mas como uma manifestação dos anseios vividos pelo homem num dado contexto histórico. Ela seria a expressão das buscas e dos sonhos do homem. Assim sendo, sugerimos que já não era a revelação em si que definiria o agir humano, mas seria o agir humano, com base nos seus sonhos e utopias, que a tornaria compreensível. Houve uma inversão em relação ao primeiro momento de sua atividade intelectual. Ele continuaria a usar os símbolos de sua tradição cristã, mas estes ganharão um novo significado, a partir da nova hermenêutica de que Alves fará uso daquele momento em diante. A religião revela os desejos humanos em contextos concretos do seu existir. Deus passa a ser o nome da beleza que habita os universos recônditos do coração humano. Em suma, Deus não pode ser compreendido como algo existente independentemente dos sonhos que habitam o coração humano. É nesse horizonte que Alves passa a compreender a religião articulada ao projeto libertador do homem que se põe em experiência de opressão e dominação. Após os primeiros anos no exílio, Alves começou a delinear o seu humanismo e, com ele, uma nova forma de compreender a religião. Em 98
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seu livro Da esperança, publicado nos Estados Unidos em 1969, que na verdade foi sua tese de doutorado, começaram a aparecer os primeiros caracteres simbólicos do seu humanismo. Ajuntando alguns conceitos velhos de sua tradição cristã, mas com novos conteúdos semânticos adicionados a outros novos que ele passaria a usar, ganhou forma uma nova concepção de homem, que, depois, ele a estenderia para além da compreensão da religião, a exemplo da ciência e da educação. Entre as palavras novas que usou para expressar sua concepção de homem, algumas soaram estranhas a muitos pensadores, sobretudo aos teólogos que tinham, como Alves, ideias libertárias. Corpo, desejo, prazer, estética e utopia lhes pareciam conceitos inadequados e indevidos num discurso que se pretendia libertador. Essas palavras pertenciam ao rol dos termos burgueses. Nesse sentido, não puderam apreciar adequadamente o novo modo de conceber o homem e a religião proposto por Alves. Somente muitos anos depois alguns desses pensadores começaram a perceber a intuição do visionário de Boa Esperança. Entre eles encontramos até mesmo aqueles que chegaram a trilhar os seus caminhos e passaram a pronunciar as palavras antes amaldiçoadas.
6 O homem enquanto ser simbólico e de desejo Como já ressaltamos anteriormente, o exílio possibilitou a Rubem Alves um afastamento forçado de sua pátria. Distante de sua terra, teve a oportunidade de rever seus pensamentos. Com isso, distanciou-se daquela preocupação imediata com o processo concreto vivido pelo Brasil. Passou, então, à busca de melhor compreensão do homem. Do homem concreto, não do homem abstrato e nãohistórico. Ocupou-se, ao invés, de compreender o homem situado, datado, inserido no mundo e que, a partir das opressões do presente, buscava a realização de uma ordo amoris. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 79-114, jan./jun. 2010
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Alves estabelecerá diálogo com Marx, coisa que já havia iniciado na primeira fase com Freud, Nietzsche, Kierkegaard, Feuerbach e alguns poetas. Isso sem contar alguns pensadores de sua tradição religiosa com os quais já tinha mantido contato desde o período de sua formação seminarística. O homem passou a ser apresentado como um ser histórico, inconcluso, aberto ao futuro. À inconclusão do homem juntou-se a do mundo, com o qual o ser humano se encontra intimamente articulado. A respeito dessa articulação entre homem e mundo disse Alves (1987, p. 45): O homem é um ser histórico. Ele não nasce no mundo das coisas, das pessoas e do tempo como um produto acabado. Seu ser não preexiste à história. Torna-se o que é através da história de suas relações com o Meio Ambiente. Não é, por conseguinte, apenas um ser no mundo: torna-se um ser com o mundo. Homem e mundo não se juntam como duas entidades estranhas que estão eventualmente numa relação de contato, como se fosse uma mente ou ego que simplesmente notasse aquilo que se lhe contrapõe, ou seja, matéria.
Ao mesmo tempo em que é um ser histórico, portanto, distinto dos outros animais, pois estes não têm um passado e muito menos sonham com o futuro, o homem habita a linguagem. É nela que ele se constitui humano, ao receber, através da tradição, um legado que o torna diferente entre os viventes. Ao mesmo tempo, é por meio da linguagem que o homem é capaz de nomear o novo e as novas possibilidades para o seu mundo. Em meio às palavras nascem os homens, com as quais eles se tornam criadores de mundos, de novas possibilidades para sua vida. Dessa forma, o homem não é um ser enquadrado em um mundo dado, com pretensões de eternidade e naturalidade. Visto que são nítidos os símbolos que o aprisiona, ele pode criar um novo verbo 100
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que nomeie novas veredas para o seu existir. Rubem Alves distingue dois tipos de linguagens: uma, histórica; outra, não-histórica. Aquela se cristalizou e perdeu o seu tempo, que se encontra em descompasso com o movimento da história; esta, fluida, viva e aberta, indica o advento de uma nova ordem. Assim, para Alves (1987, p. 46), [...] a linguagem do homem constitui um espelho de sua historicidade. Ela não emerge simplesmente do metabolismo que se dá entre o ser humano e o mundo, mas é proferida como uma resposta às situações concretas. É óbvio que linguagem nem sempre consiste na expressão da historicidade humana. [...]. Quando a linguagem é histórica, no entanto, ela conta a história humana, o que não implica uma simples descrição. Ela contém a interpretação humana da mensagem e do desafio que este lança ao mundo, afirmando o que acredita que seja a sua vocação, o seu lugar, as suas possibilidades, a sua direção e a sua função no mundo.
Simultaneamente ao fato de o homem constituir um ser de linguagem, ele também é um ser de desejo. Em vários momentos da reflexão que ele faz nessa fase Alves definirá o homem como uma mistura de desejo e linguagem. Se, por um lado, a linguagem amarra os desejos, por outro lado, os desejos libertam os símbolos e os tornam vivos e fluidos. Definir o homem como ser de desejo já é um posicionamento adverso em relação a boa parte da tradição filosófica ocidental, que menosprezou e desqualificou os elementos afetivos e emotivos da experiência humana. Há em Rubem Alves um resgate dos sentidos, da sensibilidade. São eles que nos movem, que nos possibilitam transformar nosso mundo. Mas não podemos atribuir a esse pensador uma postura subjetivista; ele não é ingênuo para deixar de perceber a importância do contexto, da realidade em que se insere o homem na condição de ser histórico. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 79-114, jan./jun. 2010
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Em meio às contradições do mundo, os sonhos emergem e o corpo indica novas possibilidades. Corpo é uma categoria nova, que passará a ser usada por Alves. Ele não entenderá o corpo como uma realidade puramente biológica, mas como algo construído com os ingredientes antes ressaltados, ou seja, a linguagem e os sonhos. É por meio do corpo que o homem estabelece contato com o mundo. Propugnará que, [...] por meio do seu corpo, o homem descobre a natureza como seu corpo. Portanto, o corpo não consiste em algo estranho. É, sim, amigável, carinhoso, um lugar de alegria e felicidade: o seu lar. Através de seus sentidos corporais, o ser humano é capaz de se deleitar na natureza. Descobre-se num jardim, num lugar de gozo estético. Um jardim é uma combinação de cores, formas, odores, movimentos ritmos e sons. Num jardim, as possibilidades sensoriais do homem são estimuladas ao máximo. Ele se vê forçado a refletir sobre si mesmo e se torna aberto como um horizonte para o que lhe vem do exterior. Aquele mundo que está lá fora, através do corpo humano converte-se numa parte do homem. [...]. Através de seu corpo, ele é capaz de fertilizar e transformar o mundo (ALVES, 1987, p. 20).
Não há como conhecer o mundo sem o corpo. O corpo é o centro a partir do qual tudo se irradia. É por meio dele que sentimos, amamos, beijamos, nos alimentamos, acariciamos, nos defendemos, garantimos nosso sustento, fazemos revolução, conhecemos, como o corroboram estes dizeres de Alves (1982, p.37): Cada corpo é o centro do mundo. Quaisquer que sejam as realidades que me atingem, nada sei sobre elas em si mesmas. Só as conheço como reverberações do meu corpo. Os limites do meu corpo denotam os limites do meu mundo. Por que vejo as estrelas poderei dizer, com Bergson, que o meu corpo vai até elas. [...]. O mundo estrutura em torno do corpo. Cada corpo é o centro do universo. 102
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Aliada ao corpo, encontra-se a imaginação. Ela permite ao homem as possibilidades de transcendência em relação ao seu mundo; busca os mundos possíveis; e migra para lugares ainda não nomeados da realidade. Alves está convencido de que, “[...] através da imaginação, o homem transcende a facticidade bruta da realidade, que é imediatamente dada, e afirma que o que é não deveria ser, e o que ainda não é deverá ser” (ALVES, 1975, p. 20). Visto que o homem é um ser histórico, é pela imaginação que ele vai criando e recriando o seu mundo. Muitas vezes, o mundo se torna pequeno ou inadequado para os propósitos que habitam nossas entranhas. As realidades novas surgem primeiramente dentro de nós, e nos tornamos grávidos delas. Assim, antes de existirem concretamente, elas fazem moradia em nossa interioridade. Quando isso ocorre, [...] somos capazes de gerar estrelas, imaginar utopias, dar à luz deuses. O mundo é muito pequeno para o nosso corpo. O nosso desejo é grande demais para nossos limites. Como se estivéssemos numa prisão e sentíssemos uma terrível claustrofobia, porque o desejo se sente sufocado e procura espaços, horizontes diferentes. Somos seres grávidos e dentro de nós cresce um mundo novo, mundo que o corpo passa a amar, mundo a que o corpo passa a se entregar (ALVES, 1983, p. 36).
O corpo se entrega porque há promessas de felicidade, de prazer. Viver é muito mais do que sobreviver, é buscar a plenitude do corpo. Alves buscava ressaltar o caráter dionisíaco da vida. O sentido erótico da vida não deveria ser buscado no fim do processo, mas na travessia. A vida seria em si essencialmente travessia, não se poderia perder o tempo que flui e passa. Seria bom que a experiência do presente fosse um aperitivo para o futuro. Alves (1987, p. 172) fala da prioridade axiológica do transbordamento, do deleite, do prazer, neste excerto: O corpo não quer simplesmente viver. Se assim fosse, a vida não seria mais que uma função vegetativa. O corpo quer viver em prazer. A vontade Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 79-114, jan./jun. 2010
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de viver brota de um determinante erótico [...]. Eros indica uma atividade humana longe de condições para que o corpo encontre satisfação em objetos que lhe deem prazer, sejam estéticos, sejam valores morais, sejam religiosos. Da busca de prazer, surge a necessidade de agir.
Neste momento de nosso itinerário reflexivo estivemos a falar da centralidade que o homem ganha no pensamento de Rubem Alves. O homem é definido como ser de desejo, de sonho. Mas duas questões poderiam nos conduzir ao foco de nosso problema nesta reflexão: o que seria a religião para Alves, nesse momento? Que relação haveria entre sua concepção antropológica e a religião? Posto que sua paixão pela religião é permanente, a forma de concebê-la passa por mudanças. Com a convivência e o estudo dos teólogos de sua tradição cristã durante o período de formação teológica, Alves avançará em suas representações religiosas, rompendo com muitas das suas convicções oriundas da sua formação inicial na família e na comunidade das quais participou, como algumas daquelas concepções presentes na sua primeira fase reflexiva. Após o exílio ele estabelecerá diálogo com alguns pensadores que contribuirão não apenas para a sua compreensão do homem, mas, também, para a renovação da sua inteligibilidade do fenômeno religioso. Entre esses pensadores, muitos tiveram interesse por esse fenômeno, seja para afirmá-lo, seja para desqualificá-lo enquanto prática humana. Entre tais interlocutores podemos citar Comte, Freud, Feuerbach, Marx, Peter Berger, Manheim, Durkheimm e Wittgenstein. Para o pensador em discussão, a religião colocava-se, antes de tudo, como um enigma a ser decifrado. Contudo, para ele, os vários discursos estabelecidos não conseguiram, de forma adequada, a realização desse objetivo. Isso não significa que não tenham trazido contribuições à sua compreensão, mas ficaram aquém quando pretenderam desvelar o fenômeno religioso que tanto fascina o homem. 104
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A ciência moderna possibilitou, a partir das mais variadas linguagens e perspectivas científicas, uma avalanche de críticas à religião. Tudo indicava que o fenômeno religioso, uma vez decifrado cientificamente, não sobreviveria. O novo saber que chegava aos tempos modernos, e que já havia investigado o mundo da natureza, agora chegava ao homem para revelá-lo em seus segredos milenares, na sua constituição interna, nas suas práticas sociais. Comte, Freud e Marx, cada um a seu modo, trataram de esclarecer as razões da religião e o seu fim próximo. Tudo fazia crer que os funerais da religião se concretizariam. Isso era uma questão de tempo. Mas Alves (1988b, p. 36), olhando para além de seu tempo, observou que: A história, entretanto, parece que se deleita em zombar de nossas previsões científicas. Quando tudo parecia anunciar os funerais de Deus e o fim da religião, o mundo foi invadido por uma infinidade de novos deuses e demônios, e de um novo fervor religioso que totalmente desconhecíamos tanto pela intensidade quanto pela variedade de suas formas, encheu os espaços do mundo, que se proclamava secularizado.
Quando tudo indicava a morte certa da religião, ela renasceu com vigor e força; talvez, não com as roupagens simbólicas tradicionais, mas com outras. Foi expulsa pela porta da frente, mas entrou pelas janelas dos fundos. Para Alves, o que se impõe é uma compreensão adequada desse fenômeno presente na vida humana em todas as épocas e lugares. Não há como dizer, com isso, que ela é nada e sem sentido. Segundo ele, a religião não foi bem compreendida por aqueles que se dispuseram a decifrá-la. Dessa forma, Alves (1988b, p. 24) iniciou a sua tentativa pessoal – no diálogo com muitos desses pensadores, para entendê-la –, com base num postulado fundamental de que o homem é um ser de desejo, de sonho e imaginação: “[...] o que é a religião senão uma forma de imaginação? A religião é imaginação e, inversamente, a imaginação tem sempre uma função religiosa para Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 79-114, jan./jun. 2010
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o homem. É evidente que a religião não pretende descrever aquilo que é dado na experiência”. Nesse sentido, Alves se aproxima de Feuerbach, por quem sempre nutriu uma grande admiração. A exemplo de Alves, Feuerbach foi um apaixonado pela religião. Isso o moveu a compreendê-la de forma obstinada e original. Essa paixão era contrária às formas dominantes de sua época, fato reconhecido por Alves (1988a) nas seguintes observações: [...] somente um apaixonado pela religião se daria ao trabalho de uma análise tão minuciosa como a que encontramos em “Essência do cristianismo”. Somente um apaixonado pela religião teria a coragem de escrever um livro que lhe custaria a carreira acadêmica e o condenaria ao ostracismo intelectual pelo resto da vida. Nem mesmo Kant teve tal coragem. Diante das reações desfavoráveis provocadas pela primeira edição da Crítica da razão pura, em verdade a destruição da teologia tradicional que ela contém, ele escreveu habilidosamente no prefácio à 2a edição: “Achei, portanto, necessário negar o conhecimento/Deus a fim de fazer lugar para a fé”. Nada disso encontramos em Feuerbach. Nenhuma concessão. Nenhuma retratação. “O clamor provocado pelo presente trabalho” – diz ele no prefácio à segunda edição – não me surpreende e, consequentemente, em nada modificou a minha posição.
Com Feuerbach, Alves descobriu a grandeza e a força dos sonhos humanos. Aprendeu que uma e outra expressam alguma coisa que nem mesmo os crentes são capazes de perceber. Portanto, a religião é um canto de esperança de uma alma solitária, uma confissão silenciosa e inconsciente dos segredos que se ocultam na alma. Para ele, a religião nos revela o projeto que o homem tem para sua própria vida. É isso que o homem não percebe em sua experiência religiosa. A religião, como nos diz Feuerbach, nada sabe desse antropomorfismo; a sua essência está oculta para o homem religioso. É isso que 106
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deve ser desvelado, mostrado nesse projeto feuerbachiano: “[...] nada mais faço à religião – também à teologia ou à filosofia especulativa – do que abrir os seus olhos, ou melhor, voltar para fora os seus olhos que estão voltados para dentro, i. é., apenas transformando o objeto da fantasia no objeto da realidade” (FEUERBACH 1988, p. 31). Aprendemos – pela tradição cristã – que Deus, por bondade, criou o homem à sua imagem e semelhança. Feuerbach (1988, p. 77) o inverte, dizendo-nos que, na verdade, é Deus uma criação do homem à sua imagem e semelhança. Os atributos humanos colocados em Deus, subtraídos dos limites humanos e ampliados ao infinito pela imaginação, tornam-se qualidades de Deus: Deus não é o que o homem é, o homem não é o que Deus é. Deus é um ser infinito, o homem finito; Deus é perfeito, o homem imperfeito; Deus é eterno, o homem transitório; Deus é plenipotente, o homem impotente; Deus é santo, o homem pecador.
O ser real, existindo independente do homem, para Feuerbach (1988, p. 55), é uma idolatria. A religião não nos fala de um ser distante, mas do próprio homem, ainda que este não tenha consciência do fato. Conhecer Deus enquanto criação humana é o caminho do autoconhecimento, pois [...] a consciência de Deus é a consciência que homem tem de si mesmo, o conhecimento de Deus é o conhecimento que o homem tem de si mesmo. Pelo Deus conhece o homem e vice-versa pelo homem conheces o seu Deus; ambos são a mesma coisa. O que é Deus para o homem é o seu espírito, a sua alma o que é para o homem o seu espírito, sua alma, seu coração, isto é também o seu Deus: Deus é a intimidade revelada, o pronunciamento do Eu do homem; a religião é uma revelação solene das preciosidades ocultas do homem, a confissão dos seus mais íntimos pensamentos, a manifestação pública dos seu segredos de amor. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 79-114, jan./jun. 2010
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Feuerbach (1988) posiciona-se de maneira contrária à de muitos pensadores modernos em relação à ciência. A religião não deve ser negada, mas compreendida no seu sentido mais profundo e essencial. A alienação religiosa se configura à medida que atribuímos a Deus aquilo que é nosso, constitutivo de nossa essência. Mas essa alienação não se resolve – e aqui vai a crítica de Alves (1988b, p. 75-76) a Feuerbach – apenas pelo exercício crítico da filosofia, como acreditava o pensador alemão, mesmo porque não existe uma essência humana a-histórica subsistente por si mesma. Com a contribuição de Marx, Alves evidenciou que o homem é um ser histórico, concreto, que possui as marcas de uma historicidade e de seu mundo social. As ilusões não são acontecimentos apenas subjetivos, corrigíveis pela filosofia, mas decorrências de fatores externos à própria consciência, que precisam ser suprimidos para a superação da alienação. Em outras palavras, a superação de certas ilusões só é possível à medida que são superadas as situações que se encontram na base dessa alienação. Nesse sentido, segundo Marx (Apud ALVES, 1984, p. 54), [...] o sofrimento religioso é ao mesmo tempo a expressão de sofrimento real e protesto contra o sofrimento real. Ela [a religião] é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, da mesma forma que ela é o espírito de uma situação sem espírito. Ela é ópio do povo.
Religião é um sintoma. Resultado de uma situação, ela é desprovida de sentido próprio e de importância política. Não há hermenêutica possível de ser realizada, como o fez Feuerbach, que viu na religião algo a ser decifrado. Após analisar profundamente o conceito de alienação em Marx, Alves (1984) sugeriu que a religião não deve ser simplesmente entendida como reflexo invertido da realidade, mas o “suspiro e o protesto” do oprimido; seria a expressão da resistência à ordem imposta: 108
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Não basta ignorar a religião como reflexo impotente de uma causa econômica. Seria necessário revelar o seu segredo de projeto político reprimido e de expressão de um sujeito que, sob condições de alienação objetiva, mantém ao nível da imaginação os espaços de liberdade que direcionam suas atividades (ALVES, 1984, p. 75).
Embora Marx tenha trazido contribuições importantes em relação a Feuerbach, Alves (1984, p. 75) acredita que havia “[...] algo de Feuerbach perdido, a ser recuperado; o sonho do poder histórico, da imaginação não mais como pura alienação, mas como protesto contra a alienação”. Para Alves (1984, p. 50), Feuerbach e Marx se complementariam: “[...] em Feuerbach, abre-se para a política através da psicologia. Em Marx, abre-se o caminho da psicologia para a política”. Se houver um conflito entre os desejos humanos e a ordem social estabelecida, o que se imporá será a busca dos caminhos de uma nova ordem social desejada pelos oprimidos. E a religião? Para Alves (1984, p. 50), ela “[...] nada mais seria do que uma forma simbólica que toma essas aspirações”. Mas Alves (1984, p. 50) ainda se pergunta: não seria possível encarar a religião de uma nova forma, ou seja, [...] não seria possível encarar a religião, como realidade espiritual, como expressão de um projeto utópico da superação das condições objetivas, sendo que estas, por sua vez, nos forneceriam os dados do problema a ser resolvido e, ao mesmo tempo, o instrumento para a solução?
Alves acredita que qualquer resposta política que objetive mudanças necessárias em contexto concreto e que não levarem em conta os desejos e aspirações dos envolvidos, será insatisfatória. Então, a religião, tendo como solo o coração do homem, emerge a partir das dores e dos sofrimentos do presente. A religião não escapa Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 79-114, jan./jun. 2010
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ao drama da existência humana. Por isso, com razão expressou Alves (1988b, p. 20): [...] é necessário reconhecer as origens humanas da religião. Se houvesse tal coisa como uma religião que não nascesse da situação existencial do homem, como poderia eu entendê-la? Como poderia ela ser objeto de amor.
Assim sendo, a religião não se refere a algo distante e desvinculado da experiência humana, antes ela se refere aos sonhos dos homens a partir de situações existenciais concretas. O que se torna necessário é aprender a decifrar esses sonhos de forma adequada, coisa que Freud não soube realizar, no entender de Alves. É conhecida a crítica à religião realizada por Freud. Segundo Freud (2001), a religião não passa de um infantilismo que nos faria reviver certas experiências da infância. Contra esse posicionamento, levanta-se Rubem Alves. Segundo Alves (1988b), Freud foi capaz de interpretar os sonhos individuais, mas não foi capaz de compreender a religião enquanto um grande sonho coletivo; não ousou empregar os instrumentos que ele mesmo criou para compreender o fenômeno religioso enquanto um sonho coletivo, pois [...] o que é a religião, senão um sonho de grupos humanos inteiros? A religião é para a sociedade aquilo que o sonho é para o indivíduo. Se isso for verdade, então cometeremos um grande erro ao classificála como uma forma de falsa consciência. A religião revela a lógica do coração, a dinâmica do “princípio do prazer”, na medida em que ela luta por transformar um caso não-humano ao seu redor uma “ordo amoris” (ALVES, 1988b, p. 27, grifo do autor).
Freud, na compreensão de Alves, acabou sucumbindo à racionalidade científica e iluminista tal como o fizera o próprio Marx. Em 110
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Freud, o “princípio do prazer” foi suplantado pelo “princípio da realidade”. Sobre isso afirmou Alves (1986, p. 78) que Freud descobriu que os homens, contrariamente ao que o iluminismo nos havia legado, não agem racionalmente. O que os impulsiona são motivos inconscientes, eróticos, que habitam as profundezas da alma. Mas ao invés de partir daí para a formulação de uma teoria positiva do inconsciente, como tentaram fazer os românticos, Freud conclui como um estoico moralista – o inconsciente deve ser reprimido.
Conclusões provisórias Com base na reflexão que realizamos até agora, tentando explicitar as representações de Rubem Alves em relação ao religioso nos dois momentos distintos do seu itinerário reflexivo, podemos dizer isto: no primeiro, Alves – posicionando-se como teólogo, com pretensão de contribuir para o processo revolucionário brasileiro – explicita um sentido, a ser encontrado através da revelação, para a realidade nacional e para a participação dos cristãos no mundo; no segundo, com um discurso filosófico, sua busca de sentido não recai sobre a revelação bíblica, mas sobre o homem como ser de desejo e sonho. Na fase inicial, há uma afirmação da transcendência, que, em descontinuidade com o mundo, irrompe em meio a ele e lhe revela os desígnios divinos; na reflexão da maturidade, a transcendência passa a ser compreendida a partir da imanência do próprio homem, que aparece como único absoluto. No primeiro momento a revelação é a referência básica; no segundo, ela se constitui como manifestação que brota do sonho e da utopia humana em situações históricas concretas. A Bíblia passa a ser um grande livro poético, que fala dos anseios e das expectativas de um homem concreto em meio ao sofrimento e à dor. Não se entende o homem e a história a partir da Bíblia, mas a Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 79-114, jan./jun. 2010
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Bíblia a partir do homem situado e datado historicamente. Deus não é um ser transcendente distante, que se encarna na história e na vida humana, mas um ser que brota dos desejos e dos sonhos humanos; Ele é o nome dos anseios mais belos e grandiosos perseguidos pelo homem; portanto, Sua existência não é como as demais existências, que são externas; Ele nasce a partir de dentro, com base na miserabilidade humana e na sua busca pelo infinito. Alves (1984) postulou ainda que Marx, Comte e Freud, não obstante suas contribuições, acabaram por reduzir a experiência religiosa à alienação, à falta de sentido, ao infantilismo, não compreendendo o seu significado mais profundo na vida de um ser que se define como alguém constituído de desejo, eternamente desajustado num mundo sempre distante dos seus ideais de felicidade.
Referências ALVES, Rubem. Apresentação. In: RAUSCHENBUSCH, Walter. Orações por um mundo melhor. São Paulo: Paulus,1997. ______. Apresentação. In: FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Campinas: Papirus, 1988a. ______. Da esperança. Campinas: Papirus, 1987. ______. O enigma da religião. 4. ed. Campinas: Papirus, 1988b. ______. Filosofia da ciência. São Paulo: Ars Poética, 1996. ______. Gestação do futuro. Campinas: Papirus, 1986. ______. Poesia, profecia e magia. Rio de Janeiro: Centro Ecumênico de Documentação e Informação, 1983. ______. Protestantismo e repressão. São Paulo: Ática, 1982. 112
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Rubem Alves e a religião: uma análise da primeira e da segunda fase de seu itinerário reflexivo
ALVES, Rubem. O suspiro do oprimido. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 1984. ______. Teologia da Libertação em suas Origens. Redes. Vitória: Iftav, 2004. ALVES, Rubem. Variações sobre a vida e a morte. 4. ed. São Paulo: Paulinas, 1982. ANTISERI, D.; REALE, G. História da filosofia. São Paulo: Paulinas, 1990. v. 1, 2, 3. BONHOEFFER, Dietrich. Resistência e submissão: cartas e anotações escritas na prisão. São Leopoldo: Sinodal, 2003. BULTMANN, Rudolf. Crer e compreender. São Leopoldo: Sinodal, 2001. FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Campinas: Papirus, 1988. FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: Imago, 2001. MARX, Karl. Os pensadores. 2. ed. São Paulo: Victor Civita, 1978. PHILIPPE, Marie-Dominique. O amor: na visão filosófica, teológica e mística. Petrópolis: Vozes, 1999. PLATÃO. O banquete. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991. SILVA, Hélerson da. A era do furacão: história contemporânea da Igreja Presbiteriana do Brasil: 1959-1966. 1996. 183f. Dissertação (mestrado em Ciência da Religião). Instituto Metodista de Ensino Superior de São Bernardo dos Campos, São Paulo, 1996. SHELDON, Charles M. Em seus passos que faria Jesus? Campinas: United Press, 1998. TILICH, Paul. Dinâmica da fé. São Leopoldo: Sinodal, 2002. WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. São Paulo: Nova Cultura, 1989. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 79-114, jan./jun. 2010
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Ant么nio Vidal Nunes
RUBEM ALVES AND THE RELIGION: AN ANALISIS OF THE FIRST AND SECOND PHASES FO HIS REFLEXIVE ROUTE Abstract The present text postulates two important stages in the reflexive route of Rubem Alves. At the first moment we find the young theologian engaged in the elaboration of a religious thought that justifies the insertion and participation of Christians in the order of the world. At the second one, after a critical evaluation of the past ideas, it will be determined his humanism and in it, the origin and the sense of religion. Key words: Rubem Alves. Religion. Desire. Man.
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DER MENSCH UND SEINE OPFERRITUALE Joachim G. Piepke
Resumo O sacrifício e os ritos sacrificais fazem parte dos atos simbólicos mais antigos da humanidade e possuem o seu poder inquebrado até hoje. Este fato se mostra tanto nos arcaicos ritos sacrificais do Candomblé, ainda hoje praticados, quanto nos autossacrifícios modernos de islamistas radicais. A interpretação do sacrifício nas ciências antropológicas abrange um vasto espectro de conteúdos possíveis: ato de suborno de Deus (E. B. Tylor), sacralização e dessacralização do profano (H. Hubert e M. Mauss), mito de origem (A. Jensen), garantia da communitas (V. Turner), complexo de Édipo (S. Freud), violência mimética (R. Girard) e arquétipo de vida e de morte (C. G. Jung). A tradição cristã usou modelos da história da religião e interpretou a morte de Jesus na cruz como reparação infinita de um pecado original hipotético. Seria mais perto do espírito cristão ver a morte de Jesus como entrega da vida solidária com a humanidade sofrida, em que se presenteia a vida através da morte. Palavras-chave: Rituais sacrificais. Teorias de sacrifício. Bode expiatório. Sacrifício de Cristo.
1 Der ethnographische Befund In den Jahren 1990/91 hatte ich Gelegenheit, als Gast bei verschiedenen Candomblé-Gemein-schaften in Brasilien an ihrem Leben und Ritualen teilnehmen zu dürfen. Candomblé bezeichnet eine afroamerikanische Religionsform, abgeleitet vom afrikanischen Bantuwort candombe, der Name für die Perkussionsinstrumente des Kultes. Die Wurzeln des Candomblé liegen bei den Yoruba in Westafrika, den heutigen Ländern Nigeria, Benin und Togo. Ähnlich verhält es sich mit dem Kult der macumba, der auf eine angolanische Bantuwurzel Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 115-150, jan./jun. 2010
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zurückgehend die halb-religiösen Tänze der cumbas, der Tänzer und zugleich Fetischpriester oder Medizinmänner der Bantu bezeichnet. Diese Tradition geht auf die Bantustämme von Kamerun, Gabun, Kongo, Botswana, Sambia, Angola und Mozambique zurück. Zu Beginn meiner Forschungen musste ich durch einen Initiationsritus in die Kultgemeinschaft aufgenommen werden, um dadurch meinem Forschungsobjekt, den Geistern und Göttern der Kultgemeinschaft, offiziell vorgestellt zu werden. Das Ritual bestand aus einem Speiseopfer, dem sogenannten Ebó, portugiesisch „despacho“ genannt, das wörtlich „Abfertigung, Versand“ bedeutet. Meine Informantin und „Mãe de Santo“ mit Namen Palmeirinda, eine Fetischpriesterin des Kultes, hatte vorweg meine für mich zuständigen Geister ausfindig gemacht, die mich auf meiner Mission begleiten würden. Für mich als katholischen Priester waren Oxalá, der Geist des Himmels, sowie Xangô, der Blitz- und Donnergeist, zuständig. Das Opfer für Oxalá bestand aus gekochtem weißen Mais in einer weißen Porzellanschale, weil Oxalá nur „Weißes“ akzeptiert, für Xangô aus einer Mischung von kleingehacktem und gekochtem Quiabo (Abelmoschus esculentus, Okraschoten), Zwiebeln, Knoblauch und Krabben, wobei 6 Schoten unzerkleinert und aufrecht stehend im Kreis am Tonschalenrand angeordnet wurden. Laut Erklärung Palmeirindas muss Xangô ein irdenes Tongefäß erhalten, weil es in Afrika ursprünglich aus Holz war. Da aber ein Gefäß aus Holz für den Normalverbraucher in Brasilien unerschwinglich ist, muss mindestens die Farbe des Gefäßes dem Holz ähnlich sein. Die 6 unzerkleinerten Schoten stellen in reduzierter Weise symbolisch die 12 Apostel dar, wodurch man sich ihrer Macht versichern will. Das Speiseopfer wurde am Hausaltar Palmeirindas 3 Tage lang stehen gelassen und dann in den Busch gekippt. Während der Darbringung des Opfers wurde gebetet und jeder der Anwesenden konnte still einen Wunsch oder eine Bitte an die Geister formulieren. Das kultische Fest (xirê) im Terreiro, der Kultstätte, begann am 116
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Ostersamstag, weil während der christlichen Fastenzeit die Geister ruhen und nicht gestört werden dürfen. Am Anfang stand die Schlachtung der Opfertiere. Opfertiere sind Tauben, Hühner, Enten, Schildkröten, Ziegen und Rinder, wobei letztere selten sind, da ihre Anschaffung zu teuer ist. Jeder Orixá, d.h. jeder Geist, besitzt die ihm spezifischen Opfertiere, wobei das Geschlecht und die Farbe der Tiere symbolische Bedeutung haben. Oxalá beispielsweise akzeptiert nur weißes Federvieh oder eine weiße Ziege, Exu dagegen, dem Götterboten und Trickster, muss dunkles Federvieh oder ein dunkler Ziegenbock dargebracht werden. Vor dem Opfer werden den Tieren sorgfältig die Pfoten gewaschen, damit sie vom Schmutz der Erde gereinigt in die Sphäre des Sakralen, des Heiligen, eintreten können. Die teilnehmende Kultgemeinde wird von Kopf bis Fuß mit dem noch lebenden Federvieh bestrichen, wobei die Schuld und die Unreinheit der Menschen auf die Opfertiere übergehen und damit im Akt des Opferns mit in die sakrale Sphäre hinübergenommen werden. Die Ehrfurcht vor der Gegenwart der Geister in diesem heiligen Raum überwältigt die Menschen. Sie werfen sich vor den Geistern auf den Boden, in Anerkennung der eigenen Niedrigkeit und Schwachheit gegenüber der größeren Macht der Orixás. Das Opfertier wird durch den Opferpriester, den axogun, geschächtet und das Blut über die heiligen Steine der Orixás, ihrer Skulpturen und Symbolfiguren vergossen und in Tonschalen aufgefangen. Herz, Nieren und Leber bleiben 3 Tage lang im heiligen Hain und werden danach vergraben. Das essbare Fleisch wird schon während der laufenden Opferhandlung für das Festmahl zubereitet, das unmittelbar nach dem ca. dreistündigen Opferritual beginnt. Am Abend nach der Opferhandlung versammelt sich die Kultgemeinde im sogenannten Barracão, dem Festsaal oder der Kultstätte. Die Musiker stimmen zuerst die Lieder Exus an, der als Erster geehrt werden muss, um sich seiner Dienstbotenrolle zu versichern. Dieses sogenannte Padê de Exu (wörtlich: die Aussendung Exus) wird durch Opfergaben von geröstetem Maismehl, kleinen Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 115-150, jan./jun. 2010
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Maiskuchen, Palmöl und Brandwein begleitet. Szenenwechsel. Auf der Insel Flores in Indonesien werden bis heute die Felder für die Aussaat von Reis und Mais durch Abbrennen des Buschwerks und der Unkräuter gesäubert. Danach beginnt man die traditionellen Opferrituale, um ein gutes Wachstum und eine reiche Ernte zu garantieren. Die Ältesten bekleiden sich festlich mit ihrer schwarzen Adatbluse und einem roten Ikatsarong, einer Art langem Rock, und begeben sich zum Feld des Erdherrn, wo sie repräsentativ für alle Felder die Zeremonie vornehmen. Der Ethnologe Karl-Heinz Kohl beschreibt sie folgendermaßen: „Sie beginnt mit der rituellen Schlachtung und Zerlegung eines Schweinchens und einer Ziege. Ort der Opferhandlung sind die Sitzsteine der Tonu Wujo, die sich in der Mitte des mã nikoleũ [des Feldes] befinden und die dort bei der Erstanlage des Feldes zur Erinnerung an das Selbstopfer der Reisjungfrau auf die Erde gelegt worden waren. Ganz wie im Tonu Wujo-Mythos beschrieben, werden die Gliedmaßen der beiden Tiere über die vier Seiten des geschwendeten Brachfelds verteilt. Ebenso verfährt man mit einer Anzahl von Eiern, von kleinen Palmblattpäckchen und Bambussegmenten, die man zuvor mit gekochtem und ungekochtem Reis, Wasser und Palmwein gefüllt hat. Ein Teil der Opfergaben ist für die Gunadewa der Winde, ein weiterer Teil für die Mäuse, Vögel und anderen kleineren Feldschädlinge gedacht, die in den Gebeten beschworen werden, sich von der Saat fern zu halten. Der Erdherr stimmt einen neuen Gebetszyklus an und versichert der Reisjungfrau, dass ihre Brüder alles getan hätten, um sie vor den wilden Tieren des Waldes zu schützen. Zum Abschluss der Zeremonie werden die schwarze Bluse und der Sarong auf die Sitzsteine der Tonu Wujo gelegt“ (Kohl 1998: 230). Der ideologische Hintergrund dieser Zeremonie ist der Mythos vom Tod der Reisjungfrau mit Namen Tonu Wujo, der als Zerstückelungsmythos zur Kategorie der Ursprungsmythen gehört. Karl-Heinz Kohl hat ihn folgendermaßen wiedergegeben: „Festlich hatten sie die 118
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Schwester [Tonu Wujo] gekleidet, der Saum des Sarongs fiel bis zur Erde, die Bluse schützte sie vor den heißen Sonnenstrahlen, Reifen aus Elfenbein trug sie an den Armen, Silberringe schmückten ihre Ohren. ‚Ihr meine Brüder habt mich schön gekleidet, festlich gewandet habt ihr mich. So holt denn das chinesische Schwert, nehmt den Dolch aus Java, wie einer Kokosnuss sollt ihr mir das Haupt spalten, wie einer Bananenstaude sollt ihr mir den Bauch durchschneiden.‘ Ihr jüngster Bruder, der als letzter an der Brust der Mutter lag, er durchtrennte ihr den Hals, der durchschnitt ihr die Kehle. Dann zerteilte er ihren Leib, hackte ihn in Stücke. Die verteilte er über das ganze Feld, legte sie an dessen vier Ecken aus. Da erhob sich vom Sitzplatz der Reisjungfrau noch einmal deren Stimme und sprach zu ihnen: ‚Nach vier Nächten und fünf Tagen sollt ihr, meine Brüder, wieder hoch in den Garten steigen. Kommt herbei und geht mich suchen, kommt und seht nach Nogo Emas zerstückeltem und in die Erde gepflanztem Leib‘“ (Kohl 1998: 218). Die Brüder kehrten nach der gesetzten Frist zurück und fanden auf dem Feld die ersten sprossenden Schösslinge. Da opferten sie noch ein Schwein und eine Ziege, um das Wachstum der Halme zu beschleunigen. Die Ernte war so überwältigend, dass sie sieben Hütten und fünf Speicher damit füllen konnten. Einen ähnlichen Mythos von der angrenzenden Insel Solor hatte bereits P. Paul Arndt 1951 aufgezeichnet: „Es war einmal eine Mutter mit sieben Söhnen und einer Tochter. Der Vater war schon tot. Die Söhne arbeiteten im Feld. Sie hatten aber kein Saatgetreide dafür. Da sagte die Mutter ihren Söhnen: ‚Wenn ihr keine Saat habt, tötet mich und gebraucht mich als Saatgut.‘ Da töteten sie ihre Mutter, zerhackten sie fein und streuten sie aufs Feld. Den Kopf legten sie nach der Anweisung der Mutter auf einen Stein in der Mitte des Feldes, die Füße an den unteren Rand de Feldes, die Hände an das obere Ende. Darauf begaben sie sich nach Hause und warteten acht Tage, was mit dem Felde geschehen würde. Nach acht Tagen gingen sie zum Feld und sahen zu ihrem großen Erstaunen, dass das Feld mit allen Arten Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 115-150, jan./jun. 2010
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von Feldfrüchten bestanden war. In großer Freude kehrten sie nach Hause zurück. Als sie dann die Feldfrüchte reifen sahen, bauten sie ein Feldhaus und fertigten alle Körbe und Behältnisse an, die für die Ernte und das Bergen der Früchte erforderlich sind. Nachdem sie alles fertig hatten, kamen die Feldfrüchte alle von selber vom Feld und sammelten sich im Feldhaus... Der Kopf der Mutter blieb auf dem Stein in der Mitte des Feldes. Dort wurden Ziegen und Schweine geschlachtet; das Blut wurde auf und um den Stein gespritzt und ihm wurde der Name Nubanara gegeben“ (Arndt 1951: 222). Bis heute werden von den Bauern Reiskörner, die Leber eine geschlachteten Schweines, Betelnuss, Kalk, Tabak und Palmwein zum Opferplatz gebracht. Der Palmwein wird über den Stein gegossen, die übrigen Gaben darauf gelegt. Machen wir einen Sprung zurück in die Geschichte der Menschheit. Als im 16. Jahrhundert die spanischen Eroberer Mexiko entdeckten, nahmen sie gewahr, dass die einheimischen Bewohner, die Maya und Azteken, seit Jahrhunderten ihren Göttern Menschenopfer darbrachten. Fray Bernardino de Sahagún, ein gelehrter Franziskanermönch, der 1529 nach Mexiko kam und die Sprache der Azteken, Nahuatl, erlernte, schildert im Florentiner Codex die Jahresfeste eines jeden Monats. Der erste Monat beginnt mit dem Fest des Regengottes Tlaloc. Das Fest ‚Die Bäume erheben sich‘ fand statt am 20. Februar. Er schreibt: „Und an diesem Fest wurden die Regengötter gefeiert. Man brachte Opfer überall auf den Bergen dar und hing Opferpapiere auf. Man brachte Opfer auf dem Tepetzinco, oder dort mitten in der Lagune an der Stelle, die Pantitlan genannt wird. Dorthin brachte man die Opferpapiere, und dort errichtete man Bäume, wie es heißt, [nämlich] sehr lange Pfähle. An ihnen befinden sich [die Opferpapiere], durch die alles grün wird, sprießt und wächst. Und dorthin brachte man auch die kleinen Kinder, die ‚Menschen-Opferstreifen‘ genannt wurden. Und zwar solche, die zwei Haarwirbel auf dem Scheitel hatten, die unter einem guten Zeichen geboren waren. Überall 120
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wurden solche gesucht und gekauft. Man sagte, dass das sehr kostbare Opfer seien, dass [die Regengötter] sie gern entgegennähmen, damit zufrieden seien, dadurch befriedigt würden, dass mit ihnen Regen erfleht wird... Und alle haben ihre eigentümliche Frisur, in der einzelne Quetzalfedern stecken. Sie haben Halsketten aus grünen Steinperlen und tragen Armbänder, sie tragen grüne Steinperlen als Armbänder. Sie sind im Gesicht mit Kautschuk bemalt und haben im Gesicht einen runden Fleck aus Teig von zerquetschten Mohnsamen. Und sie tragen mit Kautschuk betropfte Sandalen... Man macht ihnen Flügel aus Papier, sie tragen Flügel aus Papier. Man trug sie auf Tragbahren, die an der Stelle, wo [die Opfer] sich befanden, mit einem Dach aus Quetzalfedern versehen waren, und machte ihnen Musik mit Blasinstrumenten. Sie erregten großes Mitleid, brachten die Leute zum Weinen, brachten allgemeinen Tränenausbruch hervor, verursachten allgemeine Trübsal, man seufzte über sie... Und wenn die Kindchen weinen, wenn ihre Tränen schnell hervorstürzen, wenn ihnen die Tränen an den Augen hängen, so sagte man: ‚Es wird regnen‘; ihre Tränen bedeuteten Regen. Darüber freute man sich, damit war man zufrieden. Man sagte: ‚Der Regen wird sich gleich einstellen, wir werden gleich Regen erhalten‘“ (Seler 1927: 55-58). Das zweite Jahresfest ist das Fest der Opferung der Kriegsgefangenen. Sahagún berichtet: „Das Fest, das man ‚Menschenschinden‘ nennt, wurde in folgender Weise gefeiert: In dieser Zeit werden allen Gefangenen geopfert, die gesamte Beute, die man gemacht hat, Männer, Weiber und Kinder. Die Krieger, die einen Gefangenen haben, wenn am anderen Tage ihre Gefangenen geopfert werden sollen, fangen an, ihren Siegestanz zu tanzen, zu der Zeit, da die Sonne sich neigt. Und die ganze Nacht lassen sie die Gefangenen wachen in dem Gemeindehause des Distrikts. Und dort nehmen sie ihnen das Haar von dem Wirbel des Scheitels weg, und legen es vor dem Feuerherde nieder, zur Zeit, da die Nacht sich scheidet [um Mitternacht], wenn man sich kasteite. Und wenn der Morgen angebrochen ist, lassen sie Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 115-150, jan./jun. 2010
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sie zum Opfer aufbrechen, wenn die Zeit zum Opfer da ist, an dem eigentlichen Festtage. Und an diesem ganzen Fest zogen sie allen Opfern die Haut ab: darum hieß es Menschenschinden (...) Es töteten sie die Priester, nicht die Krieger, die die Gefangenen gemacht hatten. Diese brachten sie nur hin, überlieferten sie nur [den Priestern], packten sie am Schopf, nahmen sie am Kopf und brachten sie so die Stufen des Tempels hinauf. Und wenn ein Gefangener ohnmächtig wird und die Besinnung verliert, so wird er geschleift, so schleppen sie ihn hinauf... Und nachdem man sie in dieser Weise hinaufgebracht hat vor das Angesicht Uitzilopochtlis, legt man sie, einen nach dem andern, auf den Opferstein, übergibt sie den Priestern, sechsen derselben übergibt man sie. Die legen sie mit der Brust nach oben und schneiden ihnen die Brust auf mit einem dicken breiten Feuersteinmesser. Und das Herz der Gefangenen nennt man Adlerfrucht, Edelstein. Sie heben es weihend zur Sonne empor, zu dem ‚Türkisprinzen‘ [dem jungen Feuergott], dem ‚aufsteigenden Adler‘, geben es ihr, nähren sie damit. Und nachdem es dargebracht worden ist, legt man es in das Quauhxicalli [die Adlerschale] nieder. Und die Gefangenen, die geopfert worden, nennt man ‚die aus dem Adlerlande‘ [oder die Adlerleute]. Darnach rollt man sie herab, stürzt sie [die Stufen des Tempels] herab. Sie klappern, kugeln gleich Kürbissen herab, schlagen auf, wälzen sich um und um, bis sie unten auf dem Apetlac [der Vorterrasse am Fuß der Stufenreihe] ankommen. Und dort nimmt man sie auf und übergibt sie den alten Männern (...) Die bringen sie nach ihrem Gemeindehause, wohin der Besitzer des Gefangenen [der Krieger, der ihn gemacht hat] es bestimmte und gelobte. Dort holt man es [das Fleisch] und bringt es nach Hause, um es zu verzehren. Dort zerteilt, zerschneidet, zerlegt man es“ (Seler 1927: 62-64). Es folgt dann eine detaillierte Auflistung der Körperteile, wem welches zukommt, das ich Ihnen an dieser Stelle ersparen möchte. Am Ende kocht man eine Art Gulasch mit Maiskörnern, worin sich für jeden ein Stückchen von dem Fleisch des Gefangenen befindet. 122
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Sahagún schildert in allen Einzelheiten alle zwanzig Opferfeste. Die gewöhnliche Art und Weise, das Opfer zu töten, bestand darin, das Herz aus dem auf dem Opferstein ausgestreckten lebendigen Körper herauszuschneiden. Die Opfer des sechsten Festes wurden ertränkt, die des neunten Festes verbrannt, die des elften enthauptet. Eine besonders schmerzhafte Variante bestand darin, die Opfer zuerst ins Feuer zu werfen, noch lebend herauszuziehen und dann das Herz herauszuschneiden. Als mannhaftes Zeichen galt es, die Schmerzen in Würde zu ertragen und sich selbst als Opfer der Gottheit anzubieten. Ein wesentlicher Teil des Opferrituals bestand darin, die Reste des getöteten Körpers als Reliquien aufzubewahren. Die abgezogene Haut des Opfers wurde tagelang von den Siegern übergestülpt und wie eine zweite Haut getragen. Die Oberschenkelknochen gehörten traditionellerweise dem Krieger, der den Gefangenen gemacht hatte. Männliche Priester pflegten die Haut einer Frau, die als Göttin Toci getötet worden war, tagelang anzuziehen (vgl. Davies 1981: 250-251). Machen wir wieder einen Sprung in die Gegenwart. In einer Untersuchung mit dem Titel „Von Marionetten, Helden und Terroristen“ charakterisiert Edda Heiligsetzer das Selbstopfer der Palästinenser: „Jung ist er, sehr jung. Fast etwas Kindliches hat sein Gesicht noch. Doch trägt er bereits den Bart, der ihn als traditionell gläubigen Muslim ausweist. Jetzt ist er ruhig und gefasst. Mehr noch: er ist in Hochstimmung. Die Vorbereitungen sind fast abgeschlossen. 62 Stunden hat er nun allein verbracht. Ununterbrochen, Tag und Nacht, hat er durch lautes Beten und religiöse Gesänge sich in die jetzige Stimmung versetzt, jenen eigentümlichen Zustand, jene Mischung aus Trance und unnatürlich gesteigerter Präsenz. Doch nun ist er bereit. Er hat gebadet, sich den Kopf geschoren – das Zeichen des shahid – des Auserwählten, des Märtyrers für Allah. Nun kleidet er sich an. Es ist die Uniform der israelischen Streitkräfte. Und auch der Bart ist jetzt ab. Man wird ihn nicht erkennen, keinen Verdacht schöpfen... Noch ein letztes Mal wird er beten und sich dann mit den Helfern Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 115-150, jan./jun. 2010
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treffen, die ihn an den Ort seiner Bestimmung bringen. Sie haben ihn noch nie gesehen, wissen nicht, wer er ist, und auch er weiß nichts von ihnen. Alle haben erst an diesem Morgen Treffpunkt, Zeit und Einsatzort erfahren. Sobald sie in dessen Nähe angekommen sind, werden die Helfer ihn sofort verlassen. Er wird allein sein Ziel erreichen, zu Fuß oder mit dem öffentlichen Bus; allein wird er sein, mitten unter seinen Todfeinden. Aber er ist ganz ruhig, er wird sich nicht verraten, und niemand wird auch nur ahnen, was bevorsteht: Wie es vereinbart ist und wie er es in der letzten Woche gelernt hat, wird er die vielen Stangen Dynamit an seinem Körper zünden. Ein kleiner simpler Schalter in seiner Hosentasche ist über ein Drähtchen mit dem Sprengstoff verbunden. Er wird sterben, sterben in einem riesigen Feuersturm, sterben für Allah, für seinen Glauben und sein Volk. Und er wird viele, sehr viele seiner Feinde mit in den Tod reißen. Er ist glücklich. Er lächelt...“ (Heiligsetzer 1998). Augenzeugen berichten überraschenderweise nicht selten, der Attentäter hätte unmittelbar vor der Tat einen regelrecht vor Glück strahlenden Gesichtsausdruck gezeigt – dieses Glück hat sogar einen eigenen Namen: „das Lächeln der Freude”. Auch die bis vor einiger Zeit üblichen selbst gedrehten Abschieds-Videos der Attentäter für ihre Angehörigen bestätigen diesen Eindruck. Der Opfertod für den Glauben ist nach islamistischer Ideologie ein freudiges Ereignis, das Martyrium wird als Geschenk für Allah empfunden. Neu ist die Erscheinung des freiwilligen Selbstopfers um religiöser oder religiös-nationaler Überzeugungen willen nicht. Man denke nur an den Heldentod „für Gott, Kaiser und Vaterland”, dessen jeweiligen Varianten wir in vielen Ländern vorfinden, wie bei den japanischen Kamikaze-Piloten im Zweiten Weltkrieg. Für ihr Land und ihren Gott-Kaiser stürzten sie sich mit Bomben beladen auf die feindlichen Kriegsschiffe, den sicheren Tod vor Augen. Oder die sogenannten Assassinen, um ein Beispiel aus dem Vorderen Orient zu nennen. Entstanden im 11. Jahrhundert, kämpfte die schiitische 124
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Sekte, bewundert von der Bevölkerung, mit Intrigen, Meuchelmorden und Selbstmordattentaten gegen die verhassten Kreuzritter und Abtrünnige aus dem eigenen islamischen Lager. Der jeweilige Attentäter war ganz bewusst allein mit einem Dolch bewaffnet, um auf jeden Fall nicht lebend aus der Sache herauszukommen. Seine Tat, zu der er sich angeblich mit Haschisch stimuliert haben soll (daher auch der Name hashashun, wörtlich: Hanf-Esser), sah er als religiösen Akt, als Opfer für den Glauben an. Selbstopfer genießen in der Regel eine fast abgöttische Verehrung in der eigenen Gruppe oder Gesellschaft. Auch die palästinensischen Selbstmordattentäter machen keine Ausnahme: Sie sind die Idole der Kinder und Jugendlichen, die ihre Bilder sammeln wie unsere Kinder die von Fußballspielern und Popstars (vgl. Heiligsetzer 1998).
2 Die Ethnologen Schon bei der Etymologie des Wortes „Opfer“ sind sich die Ethnologen und Philologen uneins: Die einen leiten es vom lateinischen Verb operari (= verrichten, arbeiten), die anderen vom lateinischen offerre (= darbringen) ab. Die Lateiner haben es da leichter, denn das Wort „Sacrificium“ leitet sich aus sacrum (= das Heilige) und facere (= tun, handeln) ab. Genauso uneinig sind sich die Ethnologen in der inhaltlichen Bestimmung des Begriffs. Josef Drexler schlägt in seiner 1993 erschienenen Dissertation sogar vor, den Begriff ganz zu eliminieren, da er nur zur Verwirrung beiträgt. Ich halte mich eher an meinen Kollegen und Mitbruder Anton Quack, der im „Opfer“ rituelle Handlungen sieht, bei denen übermenschlichen Wesen Gaben dargebracht werden, die dem Menschen wertvoll sind und auf deren Gebrauch er verzichtet, um damit in Kontakt zur Transzendenz zu treten (vgl. Quack 2004: 156). Opfertheorien beschäftigen die Ethnologen seit Beginn ihrer Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 115-150, jan./jun. 2010
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Wissenschaft. Edward Burnett Tylor (1832-1917), ein erklärter Evolutionist in Sachen Religionsethnologie, erklärte in seinem Werk Primitive Culture, erschienen 1871, das Opfer als Bestechungsakt des Menschen gegenüber der Gottheit. Der lateinische Grundsatz do ut des (= ich gebe dir etwas, damit du mir etwas zurückgibst) liegt allen Opferhandlungen zu Grunde. Erst im Laufe der Entwicklung der Religion traten dann auch Aspekte der Verehrung und des Verzichts hinzu. Tylors Gedanken basieren auf der Idee der Kulturevolution als eines mechanistischen Uhrwerks, das in der Evolution der Kulturen, einmal in Gang gesetzt, unaufhaltsam seinen Gang von einfachen zu komplexeren Formen nimmt. Angewandt auf die Religionsentwicklung hieße dies Entwicklung von primitiven materialistischen zu höheren vergeistigten Formen des Religiösen, vom Animismus zum Ein-Gott-Glauben. James George Frazer (1854-1941) in seinem Hauptwerk „The Golden Bough“ (= Der Goldene Zweig) entwickelte ein Erklärungsmodell des Opfers, das sich auf die Idee des magischen Handelns reduzieren lässt. Alle Formen der Opferrituale sind auf magische Vorstellungen zurückzuführen. Vegetations- und Speiseopfer beruhen auf der Vorstellung der sympathetischen Magie, d.h. gute Früchte, die geopfert werden, garantieren durch ihr Vorbild eine neue gute Ernte, Blutopfer verleihen der Erde Fruchtbarkeitskraft oder verjüngen die Kraft der Fruchtbarkeitsgottheit. So interpretiert er den rituellen Königsmord, eine in Afrika weit verbreitete Form des Opfers, als „magische Verjüngungspraktik“: Der König, von dessen Lebenskraft die Fruchtbarkeit von Mensch, Tier und Pflanzen abhängen, wurde getötet, wenn auf Grund seines Alters oder seiner Krankheit eine Schwächung seiner kosmischen Lebenskraft befürchtet und de facto auch festgestellt werden konnte. Ein neuer, junger König sollte neue Lebenskraft garantieren. Der alte König als Inkarnation des „Korngeistes“ wurde getötet, um die Gottheit vor Senilität zu bewahren und damit die Körnerfrüchte vor einem hohen Alter zu bewahren – nach 126
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Frazer ein eklatantes Beispiel für imitative Magie. Ebenso interpretiert er das Sündenbockmotiv nicht etwa als Sühne- und Versöhnungsopfer, sondern als einen Akt der Kontaktmagie: Das Berühren des Sündenbocks durch die Hände der Menschen ist kein symbolischer Akt der Schuldübertragung, sondern ein handfestes materielles Abladen der Schuld auf ein anderes Lebewesen. Die Etikettierung mit dem Begriff der „Magie“ erklärt aber nicht das Opfer, sondern bringt eher noch mehr Verwirrung in die Sachlage. W. Robertson Smith (1846-1894) entwickelte einen ganz anderen Ansatzpunkt. In seiner Schrift „Lectures on the Religion of the Semites“ (1889) legt er für seine Opfertheorie eine Blutsverwandtschaft von Nomadenstämmen mit einer tierähnlichen Gottheit zu Grunde, was man mit dem Fachausdruck des Totemismus bezeichnet. Dieses Totemtier darf normalerweise nicht getötet werden, da es heilig ist. Nun fand er aber gewisse Ausnahmeriten bei Nomaden auf der Sinaihalbinsel, in denen gerade das Totemtier, ein Kamel, feierlich geschlachtet und in einem gemeinsamen Mahl verzehrt wurde. Durch dieses Mahl traten die Feiernden in eine „totemistische Kommunion“ mit dem Totemtier, d.h. in eine durch das Blut besiegelte Gemeinschaft mit der Gottheit, wurden somit von ihrer Schuld entsühnt und in ihrer Gemeinschaft erneuert. Das Problem Smiths liegt nun darin, dass er sich bei seinen Überlegungen auf eine Überlieferung des Hl. Nilus aus dem 4. Jahrhundert stützt, der von einem solchen Kamelopfer im Sinai berichtet. Joseph Henninger hat bereits 1955 nachgewiesen, dass es sich bei dieser Nilus-Geschichte um ein Klischee spätgriechischer Romanliteratur handelt. P. Wilhelm Schmidt (1868-1954), Gründer des hiesigen Anthropos Instituts, fußte seine Opfertheorie auf die in den sogenannten Primärkulturen, den Jäger- und Sammlerkulturen, dargebrachten Speiseopfer. Das ursprüngliche Opfer nach Schmidt ist das Primitialopfer, das Erstlingsopfer oder die Erstlingsgabe. Es handelt sich hierbei um Lebensmittel, die durch die Jagd oder das Sammeln von Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 115-150, jan./jun. 2010
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wilden Früchten erworben sind und von denen der Mensch vor dem Verzehr eine kleine symbolische Portion der Gottheit darbringt, um ihr dadurch Ehrfurcht und Dank zu erweisen. Gleichzeitig stellt es eine Anerkennung der Oberhoheit der Gottheit dar, die Herr über das Leben ist. Da aber Lebensmittel auch durch Töten von Lebendigem geliefert werden, tritt der Sühnegedanke auf, denn der Mensch hat sich durch das Töten schuldig gemacht. Das Vergießen des eigenen Bluts ist für Schmidt keine eigentliche Opferhandlung, sondern eher eine symbolische Anerkennung, dass der Mensch durch seine Sünde sein Leben verwirkt hat, denn Blut stellt in diesem Sinn kein Lebensmittel dar. Die Erklärung Schmidts ist dadurch eingeschränkt, dass sie alles Opfern auf den Genuss von Lebensmitteln und ihre symbolische Abgabe an den Herrn des Lebens zurückführen will, ohne in Betracht zu ziehen, dass auch ganze Tiere oder Menschen als Opfer verbrannt, ertränkt oder erschlagen werden, ohne dass der Mensch davon etwas verzehrt (Vorbichler 1956: 121-129). Henri Hubert (1872-1927) und Marcel Mauss (1872-1950) entwickelten 1899 in einem Artikel über die Natur und die Funktion des Opfers die Theorie eines Übergangsritus vom Profanen zum Sakralen und vice versa. So heißt es dort: „Ganz gewiss steht fest, dass das Opfer immer eine Weihe mit einschließt; bei jedem Opfer geht ein Objekt aus dem profanen Bereich in den religiösen über; es ist geweiht“ (Hubert-Mauss 1899: 36) und daraus folgt für sie die Definition: „Das Opfer ist ein religiöser Akt, der durch die Weihe eines Opferobjekts die Beschaffenheit der moralischen Person verändert, die ihn durchführt, oder die bestimmter Objekte, auf die er ausgerichtet ist“ (Hubert-Mauss 1899: 41). Das Opferobjekt ist nicht wie bei Smith von Natur aus heilig, sondern es wird erst durch die Vernichtung geheiligt. Die Verbindung mit der Transzendenz wird durch das heilige Mahl vollendet. Eine zweite Opferform ist die des „Entweihens“, wenn sich der Opferer in einem Zustand der kultischen Unreinheit befindet und er sich dieser Unreinheit entledigen muss. Er überträgt 128
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dann seine Sünde durch ein Sühneopfer oder seine Krankheit durch ein Heilungsopfer auf das Opfertier, das zum Sündenbock wird und vernichtet werden muss. Hier sprechen Hubert und Mauss von einem Akt der „Desakralisation“, einem Reinigungsopfer. Dabei ist zu beachten, dass Hubert und Mauss in der Linie der soziologischen Schule Émile Durkheims die sakrale Welt nicht als objektive reale annehmen, sondern als reine Projektion der profanen Gesellschaft. Profane Gesellschaften projizieren Götter in den Himmel, machen in ihrer Vorstellungskraft aus ihnen ideale Gemeinschaften, die fiktiv sind. Das Opfer ist dann ein Akt der Selbstverleugnung, durch den das Individuum seine reale Gesellschaft anerkennt. Es erinnert den Einzelnen daran, dass kollektive Kräfte vorhanden sind, vertreten durch ihre Götter und damit mit transzendenter Autorität versehen, denen er sich unterordnen muss. Evans-Pritchard kritisierte in seiner Analyse diese Theorie mit den Worten: „Obwohl sie [die Analyse des Vedischen und Hebräischen Opfers] ein Meisterwerk in sich war, so sind die Schlussfolgerungen ein nicht überzeugendes Stück soziologistischer Metaphysik... Es sind keine Schlussfolgerungen, die sich aus der Analyse ergeben, sondern auf Grund einer brillanten Analyse der Opfermechanismen, oder besser sollte man sagen, auf Grund einer brillanten Analyse ihrer logischen Struktur oder eher noch ihrer Grammatik postuliert werden“ (Evans-Pritchard 1965: 70-71). Adolf E. Jensen (1899-1965), Schüler von Leo Frobenius und später Leiter des Frobenius-Instituts in Frankfurt, beschäftigte sich mit den Ergebnissen der Frobenius-Expedition 1937-38 zu den Molukken und Holländisch Neu Guinea, einem Gebiet, in dem die Zerstückelungs-mythen und Fruchtbarkeitsrituale bis heute weit verbreitet sind. In seinem Hauptwerk „Mythos und Kult bei Naturvölkern“, erschienen 1951, interpretiert er die agrarischen Opferrituale als Wiederholung und Gegenwärtigsetzen des Ursprungsmythos: Die in der Urzeit lebenden halbgottartigen Wesen, die Dema-Gottheiten, töten aus nicht immer bestimmbaren Motiven eine herausragende Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 115-150, jan./jun. 2010
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Dema-Gottheit, aus deren Körperteilen die Nutzpflanzen und Kulturgüter entstehen. Die Dema werden (zur Strafe?) zu Menschen und zu sterblichen und sich fortpflanzenden Wesen. Sie bewahren das Andenken an die getötete Gottheit in ihrem Kulthaus auf, durch dessen Betreten sie in das Innere der Gottheit eintreten. Das Essen der Pflanzen bedeutet mehr als eine reine Nahrungsaufnahme, es ist eine zeichenhafte Kommunion mit der Gott-heit. Die Menschenopfer in Altmexiko dagegen haben den Kontakt mit dem Ursprung verloren und stellen bereits eine Degenerationsphase des Ursprungsopfers dar. Die hohe Zahl der Menschenopfer deutet darauf hin, dass man den eigentlichen Sinn des Opfers vergessen hatte und sich im Quantitativen verlor. Jensen spricht von sinnentleerten Überbleibseln des ursprünglichen Rituals. Das Verdienst Jensens besteht sicherlich darin, dass er die Zusammenhänge zwischen gegenwärtigen Opferritualen und Ursprungsmythen gesehen hat, wenn auch dieser Zusammenhang oftmals bei den betreffenden Völkern selbst verloren gegangen ist. Fraglich dagegen ist die Reduzierung aller Opferrituale auf das DemaPrinzip, als ob dieses das ursprünglichste aller Rituale wäre und alle übrigen nur degenerierte Formen des einen. Karl Meuli (1891-1968) untersuchte als Altphilologe griechische Opferbräuche und stieß auf parallele Gebräuche bei prähistorischen Jägergruppen. In seinem Buch „Griechische Opferbräuche“, erschienen 1946, streift er durch die Völkerkunde und Prähistorie rund um den Globus, wo auch immer er Knochenfunde und Tiergräber findet. Er kommt dann zum Schluss, „dass das olympische Opfer nichts anderes sei als ein rituelles Schlachten. Das Zere-moniell dieses Schlachtens hat seine nächste Analogie im Schlacht- und Opferritus asiatischer Hirtenvölker; dieser Ritus selbst wiederum geht auf Jägerbrauch zurück... Im olympischen Opferritual haben die Griechen ein angestammtes Erbstück aus eben dieser vorgeschichtlichen Hirten –, weiterhin aus der urzeitlichen Jägerkultur bewahrt, und zwar haben sie es reiner und treuer bewahrt als alle indogermanischen Brüders130
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tämme.“ (Meuli 1945: 223-224). Das olympische Opfer bestand in der Form eines festlichen Mahles, bei dem nur die weißen, in Fett gewickelten Knochen den Göttern gegeben wurden, denn das Fleisch wurde von den Teilnehmern des Mahles selber verzehrt. Das Faktum, dass es genaue Vorschriften gab, wo das Bein für die Opfergabe abgetrennt werden musste und was das Mindestgewicht der Opfergabe sein sollte, schreibt Meuli dem späteren Einfluss der Opferpriester zu, die nicht von den bloßen Knochen leben konnten (ebd. 215-217). Demnach ist das olympische Opfer kein eigentliches Opfer gewesen, sondern die Erinnerung an die Sitte der urzeitlichen Jäger, dem Tier wieder sein Knochengerüst zurückzugeben, damit es zu neuem Leben erstehen könne. Schädel- und Knochenfunde aus prähistorischer Zeit deuten auf Tierfriedhöfe hin, die genau zu diesem Zweck angelegt wurden. Hinter den Jägerritualen steht nicht der Glaube an eine Gottheit, sondern der Glaube an die Heiligkeit und Unverlierbarkeit des Lebens, der später, seines eigentlichen Sinnes entleert, zu Opfern umgedeutet wurde (ebd. 282-283). Die prähistorische Theorie Meulis wurde mit dem Etikett „Nebel des Paläolithikums“ versehen, denn sie stellt eine unbewiesene und unbeweisbare hypothetische Konstruktion dar. Die Gedanken Meulis führte Walter Burkert (geb. 1931) in seinem Werk mit dem Titel „Homo Necans“ („Der Mensch, der tötet“, 1972) weiter. Er übernimmt die urzeitliche Jägertheorie und sieht die Opfertötung als das Grunderlebnis des „Heiligen“. „Der homo religiosus agiert“, so schreibt er, „und wird sich seiner selbst bewusst als homo necans. Dies ist ja ‚Handeln‘ schlechthin, r`έζειν, operari – woraus das Lehnwort ‚Opfer‘ übernommen ist –, eine Benennung, die den Kern dieses ‚Handelns‘ euphemistisch verschweigt“ (Burkert 1972: 9-10). Die Jagd ist das entscheidende Element, auf Grund dessen die menschliche Gesellschaft entstanden ist. Durch sie wurde der raubtierähnliche Aggressionstrieb des Menschen kanalisiert, nach außen auf ein gemeinsames Ziel gelenkt und somit von der Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 115-150, jan./jun. 2010
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eigenen Gesellschaft abgelenkt. Die Opferhandlung verfolgt einen ähnlichen Zweck. Den kollektiven Aggressionen kommt eine bandstiftende Funktion zu, denn im kollektiven Tötungsrausch verschafft sich die Gruppe eine kathartische, reinigende Aggressionsentladung. „Man könnte freilich versuchen“, so schreibt er, „durch begriffliche Distinktionen diese Zusammenhänge zu durchschneiden und die Jagd vom Opfer scharf zu trennen: das Töten bei der Jagd ist nicht Zeremoniell, sondern praktisches, zufallsabhängiges Handeln, und Sinn und Zweck ist ganz diesseitig, die Gewinnung von Fleisch zur Nahrung. Mit dem ‚Wild‘ kontrastiert das gezähmte Haustier. Doch zeigt eben die Konvergenz von Jagd- und Opferbräuchen, dass eine solche Trennung falsch ist“ (ebd. 22-23). Im Opferritual bleibt im Mittelpunkt das Erlebnis des Todes, „veran-staltet durch Gewalttat des Menschen kraft vorgegebener Notwendigkeit; und fast immer ist damit das andere, das menschlich-allzumenschliche verbunden: das Essen, das festliche Opfermahl der dafür und dadurch Geheiligten“ (ebd. 1972: 20). Als letzten aus der Reihe der Ethnologen und Religionswissenschaftler möchte ich noch kurz Victor Turner (1920-1983) erwähnen, denn Turner bemühte sich, über die Beschreibung der Phänomene hinaus eine Deutung des Opfers zu geben. Er unternahm Feldstudien unter den Ndembu in Sambia und unterscheidet dort zwei Kategorien des Opfers, einmal das Opfern in Lebenskrisen (life-crisis-rituals) (was van Gennep als „rites de passage“ bezeichnet hat) und zum anderen das Opfern in Situationen der Not wie Krankheit, Unfruchtbarkeit und Misserfolg (rituals of affliction). Die Ursache der Notsituation wird in einer Verfehlung gegenüber den Verstorbenen, den Ahnen gesehen oder in der Verletzung sozialer Normen, die zu Missstimmung und Streitigkeit führen. Die Gemeinschaft gerät dadurch in einen unstabilen Zustand und droht auseinanderzubrechen. In dieser Situation stellt das Opferritual den sozialen Kitt dar, der die Gemeinschaft wieder versöhnt und damit 132
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zusammenhält. Das Ritual ermöglicht die Kommunikation zwischen der sichtbaren und unsichtbaren Welt, weil durch den Tod des Opfertiers ein Kanal zwischen den beiden Bereichen eröffnet wird. „Beim Tier- oder Menschenopfer beendet das Töten das Leben des Opfers vollständig, vielleicht als Ersatz für das des Opfernden. Aber es schenkt auch Leben … man könnte auch sagen, dass es das wiederbelebt, was schon tot ist, und dem das Leben nimmt, das noch lebendig ist. Die Tatsache, dass Blut bei der Geburt wie auch beim Schlachten auftritt, verleiht dem blutigen Opfer die Qualität des Neugeborenwerdens wie auch des Leben Beendens“ (Turner 1977: 202). Der Kommentar von Turners einheimischen Informanten dazu lautet: „Opfern bedeutet Leben für alle“ (ebd.). Daher verwandelt das Opfer die Beteiligten nicht allmählich, stufenweise, sondern gewaltsam und auf einmal durch den Akt des Schlachtens. Der hastige und extreme Charakter des blutigen Opfers steht wahrscheinlich in Verbindung mit der Notwendigkeit, die soziale Krise schnell und schmerzhaft zu beenden. Die Neugeburt des Selbst und der Communitas sowie die Erneuerung der gesellschaftlichen Grenzen und Regeln sichern den Fortbestand der Gesellschaft (vgl. Turner 1977: 215). Mit Turner möchte ich zusammenfassen, dass die Ethnologen sich bemüht haben, alle funktionalen Aspekte des Opferrituals aufzulisten – Verehrung einer höheren Macht, Unterwerfung unter höhere Mächte, Abwehr böser Mächte, Kommunion mit der Gottheit, Sühneleistung und Versöhnung, Kraftübertragung, Abgabenleistung, der Austausch von Geschenken, Reinigung, Wiedergutmachung oder Erbitten von Gnadenerweisen –, sodass ein jeder aus einem dieser Aspekte eine Gesamttheorie erarbeitet hat. Es handelt sich aber beim Opfer um einen komplexen Vorgang, der nicht auf eine oder mehrere dieser funktionalen Aspekte reduziert werden kann. Auf der Ebene der Funktionen ist der Opfervorgang in seiner Ursächlichkeit nicht erklärbar. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 115-150, jan./jun. 2010
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3 Die Psychoanalytiker Unter den Vätern der Psychoanalyse hat sich Sigmund Freud (1856-1939) mit dem Thema Opfer in seinem Buch „Totem und Tabu“, erschienen 1913, befasst. Bezeichnenderweise trägt es den Untertitel „Einige Übereinstimmungen im Seelenleben der Wilden und der Neurotiker“. Freud stützt sich dabei auf die Abhandlungen Smiths über den Totemismus und Frazers über das magische Denken. Als Evolutionist postuliert er den inneren Zusammenhang von ontogenetischer Entwicklung des Individuums und phylogenetischer Entwicklung der menschlichen Gesellschaft. Die drei libidinösen Phasen des Individuums – Narzissmus, Abgrenzung von der Elternfixierung und Reifezustand – haben ihre parallelen Phasen in der geistigen Entwicklung der Kulturstufen – nämlich vom magischen Animismus der Primitiven, über die Phase der Religion der Gottglaubenden zur höchsten Entwicklungsstufe, der Wissenschaft. Religion ist für ihn eine kollektive Zwangsneurose, die sich ursprünglich aus Schuldgefühlen entwickelte und sich bis heute davon ernährt. Am Anfang der Kultur steht ein Urverbrechen, der Vatermord. In der Urhorde der ersten Menschen besaß der Patriarch das Monopol auf alle Frauen. Seine Söhne erhoben sich gegen ihn, weil sie ebenfalls in den Genuss der Frauen kommen wollten, so töteten sie ihn und verspeisten ihn anschließend, in einer symbolischen Identifikation mit ihm. Es regt sich jedoch das Schuldbewusstsein und sie belegen das Totemtier, das den toten Vater repräsentiert, mit einem Esstabu. In Erinnerung an dieses erste große Opfer wird aber im Zyklus der Jahreszeiten das Totemtier dennoch rituell geschlachtet und feierlich verzehrt. So zeigen sich im Ursprung des Opfers und der Religion die grundlegenden Elemente der religiösen Neurose: das rituelle Schlachten des Opfers, das Schuldeingeständnis der Täter und die Erneuerung des Lebens in der mahlzeitlichen Communio. Der einst ermordete und verspeiste Vater wird mit der Zeit zu einer Gottheit hochstilisiert. Diese Urtat 134
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vererbt sich genetisch auf die ganze Menschheit und wird im griechischen Ödipusmythos historisch sichtbar. Die Freudsche Hypothese lässt sich heute nicht mehr halten. Abgesehen von der willkürlichen Konstruktion einer Urhorde und deren Sexualverhalten wird kein Wissenschaftler heute annehmen, dass sich moralische Handlungen auf die Genetik der Erbmasse übertragen können. Evans-Pritchard kommentiert die Freudsche Hypothese mit der Bemerkung, dass bis heute nichts entdeckt worden ist, „was dieser zyklopischen Familie entspräche“ (vgl. Drexler 1993: 49). Trotz aller berechtigten Einwände gegen Freud muss man dennoch anerkennen, dass er den Schlüssel zum Verständnis des Opferrituals nicht in den von den einzelnen Kulturen verschieden interpretierten Funktionen des Opfers sieht, sondern in der Psyche des Menschseins. Und die Psyche des Menschseins bringt er in Verbindung mit dem Mythos, in dem sich die psychischen Bilder und Vorgänge des Individuums in kollektiven Erinnerungen kristallisiert haben. Den Gedanken Freuds eines ursprünglichen Gewaltaktes, der sich in die Psyche eingegraben hat, führte in gewisser Weise René Girard (geb. 1923) weiter, wenn er den Gewaltakt in der jedem Menschen eingeschriebenen Rivalität zu seinem Bruder oder Nächsten sieht. Das Paradebeispiel dieser Gewalt findet er in der biblischen Darstellung des ersten Brudermords: Kain erschlägt seinen jüngeren Bruder Abel, weil dieser ein perfekteres Opfer Gott darbringt als er selber es vermag. Der jüngere Bruder hat durch seine „Mimesis“, wie Girard es nennt, d.h. seinen Nachahmungstrieb seinen älteren Bruder überholt und vor Gott ausgestochen. Hier liegt das Motiv zur Gewaltanwendung und zum Brudermord. Damit sich aber dieser Mord nicht endlos in Blutrachefehden fortsetzt, setzt Gott der Gewalttat ein Ende: Er selber markiert Kain mit einem Zeichen, das ihn vor der Rache der Nachkommen Abels schützen wird (vgl. Girard 1983: 147-153). Den Nachahmungstrieb, vom griechischen Wort mi,mhsij übernommen, sieht er bei allen höheren Säugetieren gegeben: „Wenn ein Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 115-150, jan./jun. 2010
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Individuum einen Artgenossen die Hand nach einem Gegenstand ausstrecken sieht, ist es sogleich versucht, dessen Geste nachzuahmen“, schreibt Girard (Girard 1983: 19-20). Er begründet es mit des von Kindheit an vorhandenen Nachahmungstriebs des Aneignens, d.h. was ich im Besitz des Anderen sehe, möchte auch ich besitzen. Gerät der mimetische Prozess in die Krise, d.h. wächst er sich zu einem ernsten Eklat aus, der selbst vor Mord nicht zurückscheut (s. Kain und Abel), so tritt, um den Lynchmord zu vermeiden, an seine Stelle die Opferung. Er schreibt wörtlich: „Im Opferakt bekräftigt sich die Einheit einer Gemeinschaft, und diese Einheit tritt hervor gerade auf dem Höhepunkt der Spaltung, gerade dann, wenn die Gemeinschaft sich so darstellt, als sei sie nun durch den mimetischen Zwist völlig zerrissen und dem endlosen Teufelskreis der rächenden Repressalien heillos ausgeliefert. Auf die Opposition jedes gegen jeden folgt brüsk die Opposition aller gegen einen… Es leuchtet ohne weiteres ein, wieso dieses Opfer die Lösung bringt: Die ganze Gemeinschaft ist wieder solidarisch auf Kosten eines Opfers, das nicht nur unfähig ist, sich zu verteidigen, es ist auch viel zu machtlos, um Rache heraufzubeschwören… Der Opferakt ist nur eine Gewalttat mehr, eine Gewalttat, die zu anderen Gewalttaten hinzukommt, aber sie ist die letzte Gewalttat, das letzte Wort der Gewalttätigkeit“ (ebd. 35). Girard kehrt die Reihenfolge der Gesellschaftsgründung Freuds um: der Mord steht nicht am Anfang der Gesellschaft, sondern am Ende des mimetischen Prozesses als Lösung der Gesellschaftskrise. Die versöhnende Wirkung des stellvertretenden Opfers gewinnt an Ausdehnung und Dauer durch die Eindämmung der mimetischen Kräfte auf Grund von Verboten und durch die Kanalisation des Gewaltpotentials in den Riten. „Das Religiöse ist nichts anderes als diese ungeheure Anstrengung, den Frieden aufrechtzuerhalten. Das Sakrale ist die Gewalt, doch wenn das Religiöse die Gewalt verehrt, dann immer nur deshalb, weil es von ihr annimmt, dass sie den Frieden bringe; das Religiöse ist gänzlich auf den Frieden ausgerichtet, aber 136
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die Wege zu diesem Frieden sind nicht von gewaltsamen Opferungen frei“ (ebd. 43). Girard sieht hier einen spontanen psychologischen Mechanismus am Werk, der sich einen stellvertretenden Sündenbock sucht, um die Zerstörung der Gesellschaft durch das mimetische Gewaltpotential abzuwenden. Der Begriff des „Sündenbocks“ geht auf die Übersetzung der Vulgata von Leviticus Kapitel 16 zurück, in der das griechische apopompai/oj (= der weggeleitet wird) der Septuaginta durch das lateinische caper emissarius übersetzt ist, der aber im Hebräischen „für Asasel bestimmt“ genannt wird. Asasel aber ist ein alter Wüstendämon. Ihm wird das Leben dieses Opfertieres angeboten, denn, einmal in die Wüste getrieben, hat der Bock keine Überlebenschance. Im Begriff des Sündenbocks ist das Rituelle und das Psychologische miteinander verbunden, was von der Ethnologie in dieser Weise nie anerkannt worden ist, nämlich dass ein innerer Zusammenhang zwischen dem Rituellen und der psychischen Neigung des Menschen, seine Ängste und Konflikte auf willkürliche Opfer zu übertragen, besteht (vgl. Girard 1983: 136). Es handelt sich also nicht um eine bildhaft dargestellte Übertragung von moralischer Schuld oder seelischer Angst auf ein Opfertier, sondern um eine wirkliche Transferenz durch den rituellen Akt, wodurch ebenso real Ent-Schuldung, Vergebung und Versöhnung erreicht wird. Der Schweizer Psychoanalytiker und Schüler Freuds Carl Gustav Jung (1875-1961), der selber ethnologische Forschungen in Kenia unternommen hatte, legte seinen Gedanken über 30.000 Traumanalysen zugrunde. Bei seinen Analysen dieser Träume stieß er darauf, dass viele dieser Traumbilder, gerade wenn es sich um stark emotionelle Träume handelte, nicht aus der persönlichen Erfahrung des Träumenden abgeleitet werden konnten. Freud hatte dieses Phänomen ebenfalls beobachtet, es rein evolutionistisch als „archaische Überreste“ aus den Anfängen der Menschheit gedeutet. Jung dagegen findet darin Formen, die offenbar dem menschlichen Geist angeboren Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 115-150, jan./jun. 2010
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sind. Er schreibt: „Wie der menschliche Körper ein ganzes Museum von Organen darstellt, von denen jedes eine lange Entwicklungsgeschichte hinter sich hat, so können wir auch erwarten, dass unser Geist in ähnlicher Weise organisiert ist. Er kann ebenso wenig wie der Körper, in dem er existiert, ein Produkt ohne Geschichte sein. Mit ‚Geschichte‘ meine ich nicht die bewusste Beziehung unseres Geistes auf seine Vergangenheit in Sprache und anderen kulturellen Traditionen. Ich meine die biologische, prähistorische, unbewusste Entwicklung des Geistes im archaischen Menschen, dessen Psyche der des Tieres noch sehr ähnlich war. Diese unermesslich alte Psyche bildet die Grundlage unseres Geistes… Der erfahrene Erforscher der Seele erkennt die Analogien zwischen den Traumbildern des modernen Menschen und den Erzeugnissen des primitiven Geistes, seinen ‚kollektiven Bildern‘ und seinen mythologischen Motiven… Der Psychologe muss nicht nur über ausreichende Erfahrung mit Träumen und anderen Produkten unbewusster Tätigkeit, sondern auch über mythologisches Wissen verfügen. Ohne dieses Rüstzeug kann er wichtige Analogien nicht erkennen… (Jung 1986: 67). Jung nennt diese archaischen Formen der Seele „Archetypen“ oder „Urbilder“. Der Ausdruck „Archetyp“ wird oft missverstanden, so als ob es sich dabei um bestimmte mythologische Bilder handeln würde, die vererbt würden. Archetypen sind vielmehr angeborene Tendenzen, solche Bilder zu produzieren, die im Detail von-einander abweichen können, aber dennoch dieselbe Grundstruktur aufweisen. Es gibt beispielsweise sehr verschiedene Bilder der verschlingenden Muttergottheit, aber ihre Grund-struktur ist immer dieselbe: die panische Angst vor dem sich auftuenden Uterus, der den Betroffenen zu verschlingen droht; oder das Bild der feindlichen Brüder (Kain und Abel, Esau und Jakob, Romulus und Remus), bei denen immer die Rivalität zur Krise führt. Ähnlich wie Instinkte bei Tieren zu vorgegebenen Handlungsmustern führen, so produzieren Archetypen im Inneren der Psyche Phantasien und symbolische Bilder. Diese inneren Erscheinungen nennt Jung 138
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Archetypen. Ihren Ursprung kennt man nicht. Sie sind allgegenwärtig, zu allen Zeiten und in allen Kulturen vorhanden. Jung schildert exemplarisch den Fall eines jungen Mädchens: „Einen sehr wichtigen Fall brachte mir ein Mann, der selber Psychiater war. Er zeigte mir eines Tages ein handgeschriebenes Büchlein, das er zu Weihnachten von seiner zehnjährigen Tochter geschenkt bekommen hatte. Es enthielt eine ganze Serie von Träumen, die das Mädchen im Alter von acht Jahren gehabt hatte, und war die merkwürdigste Traumserie, die ich je gesehen habe. Obgleich kindlich, waren sie doch unheimlich und enthielten Bilder, deren Ursprung dem Vater völlig unbegreiflich war. Dies waren die Motive: • „Das böse Tier“, ein schlangenähnliches Ungeheuer mit vielen Hörnern, tötet und verschlingt alle anderen Tiere. Aber Gott kommt, in Gestalt von vier einzelnen Göttern, aus den vier Ecken und gibt den toten Tieren das Leben wieder. • Eine Auffahrt in den Himmel, wo heidnische Tänze zelebriert werden; und ein Abstieg in die Hölle, wo Engel gute Taten tun. • Eine Schar kleiner Tiere ängstigt die Träumerin. Die Tiere werden ungeheuer groß, und eins von ihnen verschlingt das kleine Mädchen. • Eine kleine Maus wird von Würmern, Schlangen, Fischen und Menschen durchdrungen. Dadurch wird die Maus menschlich. Dies schildert die vier Stadien des Ursprungs der Menschheit. • Man sieht einen Wassertropfen, wie er erscheint, wenn man ihn durch ein Mikroskop betrachtet. Das Mädchen sieht, dass der Tropfen voller Zweige ist. Dies illustriert den Ur-sprung der Welt. • Ein ungezogener Junge bewirft alle Leute, die an ihm vorübergehen, mit kleinen Erdklumpen. Dadurch werden alle Vorübergehenden schlecht. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 115-150, jan./jun. 2010
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• Eine betrunkene Frau fällt ins Wasser und kommt erneuert und nüchtern wieder heraus. • Die Szene spielt in Amerika, wo viele Leute auf einem Ameisenhaufen rollen, wobei sie von den Ameisen angegriffen werden. Die Träumerin fällt in panischer Angst in einen Fluss. • Auf dem Mond gibt es eine Wüste, und die Träumerin sinkt so tief in den Boden, dass sie in die Hölle gerät. • In diesem Traum hat das Mädchen eine Vision von einem leuchtenden Ball. Es berührt ihn. Dämpfe steigen von ihm auf. Ein Mann kommt und tötet es. • Das Mädchen träumt, es sei gefährlich krank. Plötzlich kommen Vögel aus seiner Haut und bedecken es vollständig. • Mückenschwärme verdunkeln die Sonne, den Mond und die Sterne, bis auf einen. Dieser eine Stern fällt auf die Träumerin. In dem ungekürzten Originaltext beginnt jeder Traum mit den einleitenden Worten der Märchen: ‚Es war einmal…‘ Mit diesen Worten deutet die kleine Träumerin an, jeder Traum solle eine Art Märchen darstellen, das sie ihrem Vater als Weihnachtsgeschenk erzählen möchte. Der Vater versuchte, die Träume innerhalb ihres Zusammenhangs zu deuten. Er konnte es aber nicht, weil keine persönlichen Anknüpfungspunkte vorhanden zu sein schienen. … [Das Mädchen] starb, etwa ein Jahr nach diesem Weihnachtsfest, an einer Infektionskrankheit“ (Jung 1986: 69-72). Ich kann an dieser Stelle nicht im Einzelnen auf diese Traumbilder eingehen, sie alle aber handeln vom Thema der Zerstörung und Wiederherstellung des Lebens, von Tod und Wiedergeburt, von Vergehen und Auferstehen. Bilder der universalen Mythologie tauchen auf, kosmogonische und apokalyptische Bilder. Wenn auch einige christliche Motive wie Himmel und Hölle, Engel und Teufel erscheinen, so deuten die Bilder auf einen nicht-christlichen Ursprung hin. Das Mädchen erlebte in ihren Träumen die drohende Ankündigung ihres nahen Todes; es formten sich uralte Bilder in ihrer Seele, die 140
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durch den Tod hindurch das Leben erblickten; ihr Lebensopfer war im Unbewussten von der Erneuerung des Lebens durchdrungen. Die lebensbedrohende, aber noch unbewusst schlummernde Krankheit erzeugte auf der einen Seite grausame und beängstigende Bilder der Zerstörung, auf der anderen Seite aber Bilder des unzerstörbaren Lebens. Hier liegt m. E. der Ansatz zu einem tieferen Verständnis der Opferrituale der Menschheit: Der Mensch „weiß“ aus seinen Archetypen seit Anbeginn um die Fragilität des Lebens, das immer und überall vom Tod bedroht ist. Er „weiß“ aus seinen Archetypen auch um die Möglichkeit des Überlebens – durch den Tod und die offensicht-liche Zerstörung hindurch. Daher sucht er im Opferritual seine Zerstörung stellvertretend vorwegzunehmen, um dadurch sein Überleben zu garantieren. Da er aber seine eigene Begrenztheit hinsichtlich des Todes Tag für Tag in dieser Welt erfährt, garantiert nur die sterbende und getötete Gottheit in der unzerstörbaren Welt der Transzendenz oder Traumzeit das Überleben der irdischen. Diese seelischen Bilder des Menschen haben sich im Laufe der Jahrtausende in den Mythen der Urzeit niedergeschlagen, die nichts Anderes darstellen als das Sedimentgestein jahrtausendalter Erfahrung von Leben und Tod. Jedes dargebrachte Opfer, in welcher Form auch immer, stellt die sterbende Gottheit dar, die das alte, zerbrechliche Leben immer wieder im Jahres- und Lebenszyklus erneuert und endgültiges neues Leben garantiert.
4 Der christliche sterbende Gott Auch die christliche Gottheit in der Person Jesu stirbt als Opfer der Gewalt – nicht auf einem kultischen Altar, sondern als religiös motivierter politischer Aufwiegler. Jesu öffentliches Auftreten, seine Botschaft vom Kommen des Gottesreiches und seine heilenden Handlungen standen von Anfang an unter dem Zeichen eines gewaltsamen Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 115-150, jan./jun. 2010
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Endes. Jesus wäre naiv gewesen, hätte er nicht die Gefangennahme und Enthauptung Johannes des Täufers durch Herodes Antipas als Vorzeichen für sein eigenes Schicksal gesehen, denn Herodes stand das sogenannte römische „Jus gladii“, das Recht auf Todesstrafe, zu. Außerdem war ihm bewusst, dass seine Verkündigung eine direkte Provokation der jüdischen religiösen Elite darstellte, denn sie sah sich – als Verfechterin des wahren Heilswegs durch die gewissenhafte Befolgung der Tora – durch Jesu Botschaft der radikalen Liebe zu Gott und dem Nächsten vom eschatologischen Heil ausgeschlossen. Jesu Religionskritik wurde durchaus wahrgenommen und auch ernst genommen (vgl. die „Weh-Rufe“ gegen die Pharisäer und Schriftgelehrten in der Bergpredigt bei Mt 5-7 und Lk 11,37-12,12). Der jüdische Sanhedrin besaß schließlich das Recht auf Steinigung bei religiös-moralischen Vergehen (s. die Ehebrecherin oder Stephanus). Auch muss die Gefahr einer Identifizierung Jesu mit einer revolutionär-zelotischen Gruppierung nicht ausgeschlossen gewesen sein, denn sowohl Judas Iskariot (= Sikarier, „Dolchträger“) wie auch die sogenannten „Donnersöhne“ (= Boanerges: Jakobus und Johannes) deuten auf Verbindungen mit diesem terroristischen Milieu hin. Wenn auch sich Jesu Worte und Taten ausdrücklich von jeder konkret politischen Konnotation absetzten, so konnten sie dennoch nicht eine solche Interpretation vermeiden, wie es sich dann konkret bei seinem Prozess vor den Römern gezeigt hat. Somit musste Jesus mit Verfolgung, Verurteilung und dem Tod am Kreuz rechnen. Er stirbt den Kreuzestod wie viele andere Rebellen und Kriminelle um das Jahr 30. Jesu Tod kommt als geschichtliches Ereignis einer menschlichen Absage an seine Botschaft und Person gleich. Er geht bewusst seinen Weg der Gewaltlosigkeit auf einen gewaltsamen Tod hin weiter. Von daher muss er dem Tod einen Sinn beigemessen haben, der nicht im Widerspruch zu seinem Lebenswerk stand, sondern innerhalb dieses Lebenswerks einen sinnvollen Stellenwert einnehmen konnte. Für ihn stellt der gewaltsame Tod die radikalste Form seines Dienstes an 142
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der Menschheit dar: „Denn auch der Menschensohn ist nicht gekommen, sich dienen zu lassen, sondern um zu dienen und sein Leben hinzugeben als Lösegeld für viele“ (Mk 10,45). Im Johannesevangelium erscheint unmittelbar vor seinem Tod anstatt der Erzählung des Paschamahls der ausführliche Bericht über die Fußwaschung an den Jüngern – als Zeichen des radikalen Dienens im Kontext des gewaltsamen Endes Jesu (Joh 13,1-20). In der Folgezeit versuchen die ersten Gemeinden, den Tod Jesu auf dem Hintergrund von Israels Heilsgeschichte zu verstehen. In der lukanischen Tradition erleidet Jesus den Märtyrer-tod des Propheten: „Zu dieser Zeit kamen einige Pharisäer zu ihm und sagten: Geh weg, verlass dieses Gebiet, denn Herodes will dich töten. Er antwortete ihnen: Geht und sagt diesem Fuchs: Ich treibe Dämonen aus und heile Kranke, heute und morgen, und am dritten Tag werde ich mein Werk vollenden. Doch heute und morgen und am folgenden Tag muss ich weiterwandern; denn ein Prophet darf nirgendwo anders als in Jerusalem umkommen. Jerusalem, Jerusalem, du tötest Propheten und steinigst die Boten, die zu dir gesandt sind“ (Lk 13,31-34). Jesus erleidet das authentische Prophetenschicksal. Als eschatologischer Prophet löst er in seiner Person die Heilsrelevanz der Tora ab. In der markinischen Tradition wird sein Tod als notwendiges Ereignis der Heilsgeschichte gedeutet: „Dann begann er, sie darüber zu belehren, der Menschensohn müsse vieles erleiden und von den Ältesten, den Hohepriestern und den Schriftgelehrten verworfen werden; er werde getötet, aber nach drei Tagen werde er auferstehen. Und er redete ganz offen darüber. Da nahm ihn Petrus beiseite und machte ihm Vorwürfe. Jesus wandte sich um, sah seine Jünger an und wies Petrus mit den Worten zurecht: Weg mit dir, Satan, geh mir aus den Augen! Denn du hast nicht im Sinn, was Gott will, sondern was die Menschen wollen“ (Mk 8,31-33). Der Gerechte muss viel leiden und wird dadurch in die Herrlichkeit Gottes eingehen. Sein Tod erhält keine besondere Heilsfunktion, sondern wird als das von Gott geplante und Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 115-150, jan./jun. 2010
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gewollte Durchgangsstadium zum Leben gesehen. Das Leid ist ein Zeichen von Gottes Gegenwart. Die paulinische und johanneische Traditionen schließlich sehen seinen Tod als Sühneopfer für die Sünde der Welt: „Gott aber hat seine Liebe zu uns darin erwiesen, dass Christus für uns gestorben ist, als wir noch Sünder waren. Nachdem wir jetzt durch sein Blut gerecht gemacht sind, werden wir durch ihn erst recht vor dem Gericht Gottes gerettet werden. Da wir mit Gott versöhnt wurden durch den Tod seines Sohnes, als wir noch Gottes Feinde waren, werden wir erst recht, nachdem wir versöhnt sind, gerettet werden durch sein Leben“ (Röm 5,8-10). Der Tod ist hier das letzte Glied eines gewaltlosen Lebens und gleichzeitig sein Höhepunkt. Gottes Heil für den Menschen offenbart sich bis zum bitteren Ende als ein Angebot in Freiheit, ohne selbst menschliche Machtmechanismen oder religiöse Gewalt für den Sendungserfolg seines Sohnes in Anspruch zu nehmen. Erst im Tod für alle erweist sich Gottes Macht als die größere, denn er erschafft durch ihn hindurch neues Leben. Die Lebensgeschichte Jesu wird eine Geschichte für die Anderen und wegen der Anderen. Seine grausam abgebrochene Lebensgeschichte wird die Lebensgeschichte aller Leidenden, von Gewalt und Tod Gezeichneten. Sie ist Gottes tiefste Solidarität mit einer durch die Gewalttätigkeit der Natur und des Menschen verwundeten und letztendlich hilflosen Menschheit. Darin geschieht Versöhnung mit Gott und Leben in Vollendung. In der Westkirche vergaß man bald den heilsgeschichtlichen Kontext der Lebensgeschichte Jesu und entwickelte in der Patristik unter dem Einfluss des Neuplatonismus, des römischen Rechtsdenkens und der Opferpraktiken des Altertums eine ontologische Heilslehre vom Kreuz. Der Gottmensch hat die Menschheit aus der Gewalt des Teufels losgekauft, indem er sein Blut am Kreuz dafür hingegeben hat. Jesus wird im wörtlichen Sinn das Sühneopfer für die von der Menschheit verursachte Erbschuld oder die endgültige Wiedergutmachung einer verletzten Rechtsordnung Gottes. Anselm 144
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von Canterbury (1033-1109) erarbeitete schließlich im Hochmittelalter in seinem zweibändigen Werk „Cur Deus Homo?“ (1098) eine systematische Erlösungslehre, in der er auf die grundsätzliche Frage eingeht: Zeigt nicht die Erlösung durch den Kreuzestod Jesu eine Grausamkeit Gottes, die mit dem Gutsein Gottes nicht vereinbar ist? Denn er lässt seinen eigenen Sohn auf dem Opferaltar schlachten, um Genugtuung für die an ihm verbrochenen Frevel zu erlangen. Anselm löst das Problem, indem er die Welt-ordnung als eine von Gott verfasste Rechtsordnung auffasst, die durch die Sünde des Menschen grundlegend gestört ist. Denn durch die Sünde kam der Tod, der ohne die Sünde nicht stattgefunden hätte. Gott aber wollte sich sein Schöpfungswerk durch des Menschen Frevel nicht zunichte machen lassen, weshalb er durch einen Akt der Wiedergutmachung die ursprüngliche Schöpfungsordnung wieder herstellen lassen wollte. Für die Wiederherstellung der Schöpfungsordnung aber hat der Mensch Gott nichts Äquivalentes anzubieten, denn die Gabe muss ontologisch Gottes Ordnung entsprechen, d.h. unendlich sein. Da nach dem Verursacherprinzip der Mensch für den angerichteten Schaden verantwortlich zeichnet, muss es ein Mensch sein, der den Schaden wieder gutmacht. Da der Mensch aus ontologischen Gründen es nicht vermag, muss es einen Gottmenschen geben, der diese Wiedergutmachung leisten kann. Zur Wiedergutmachung reicht aber nicht ein frommes und untadeliges Leben hin, denn das ist der Gottmensch ohnehin Gott geschuldet, sondern es muss der Tod sein, den er Gott nicht schuldet, weil er als sündloser nicht der Strafe des Todes verfallen ist. Die ungeschuldete, freiwillige Hingabe seines Lebens im Tod bedeutet dann die unendliche, Gott gemäße Wiedergutmachung der gestörten Seinsordnung. Mit dieser Anselmschen Satisfaktionslehre stehen wir wieder inmitten des religionsgeschichtlichen sakrifiziellen Denkens. Gott braucht den blutigen Opfertod eines Gottes, um dem Menschen neues Leben zu gewähren. Die sakrale Gewalt ist wieder legitimiert, ja sogar ontologisiert. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 115-150, jan./jun. 2010
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Ich möchte hier noch einmal René Girard zitieren: „Durch ein unerhörtes Paradox, doch ganz dem sakrifiziellen Leitfaden unserer Menschheit entsprechend, macht die Logik des gewalttätigen Logos [gemeint ist damit die Gottheit], die sakrifizielle Deutung, den aufgedeckten Mechanismus zu einer Art Opfer- und Kultgrundlage. Auf dieser Grundlage ruhten bis jetzt die ‚Christenheit‘ und die moderne Welt auf. Man kann, so denke ich, aufzeigen, dass das historische Christentum, insoweit es sich als Verfolger betätigt hat, mit der sakrifiziellen Deutung der Passion und Erlösung zusammenhängt. Sämtliche Aspekte der sakrifiziellen Deutung hängen miteinander zusammen. Dass man in die Gottheit wieder die Gewalt hineinbringt, kann nicht ohne Auswirkung auf das ganze System bleiben, denn damit entlastet man die Menschheit zum Teil von einer Verantwortung, die für alle eine und dieselbe sein müsste“ Girard 1983: 232-233). Allein die Übernahme des alttestamentlichen Opferbegriffs auf Jesu Kreuzestod barg bereits in sich die Übernahme der sakrifiziellen Bedeutung. Die Konsequenzen der institutionalisierten Gewalt haben wir zur Genüge in der Geschichte der Christenheit erfahren: Kreuzzüge, Inquisition, Hexenwahn, Conquista-Mission oder absolutistischer Kirchenstaat – immer wurden unschuldige Menschen im Namen Christi und seines Kreuzesopfers hingeschlachtet, wohl gemerkt zur Bewahrung der Wahrheit und des rechten Glaubens. Die Scheiterhaufen für die Ketzer, Häretiker und Hexen mussten brennen, um die inneren Zwiespälte der Gesellschaft auf einen gemeinsamen Sündenbock hin zu kanalisieren. Nur so ist der schauspielhafte Charakter der öffentlichen Blutopfer und die begeisterte Anteilnahme aller Schichten des Volkes zu erklären. Alle waren Opferer, einig in der Tatsache, ihre eigene Verantwortung auf den Sündenbock abzuwälzen, um wieder gereinigt aus der Bluttat aufer-stehen zu können. Alexander Schuller, Soziologe aus Berlin, schrieb unter dem Titel „Wir suchen im Blutopfer nach Rettung“ in der Frankfurter Allge146
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meinen Sonntagszeitung anlässlich des Massakers in einer Erfurter Schule durch einen Jugendlichen im Jahr 2002: „Das Muster kennen wir, und es ist uralt: eine Messe, eine Opfermesse, ein Schlachtfest, älter als Bibel und Koran, älter als Olympia und Babylon. Diese Messe findet im öffentlichen Raum statt, oft genug unter freiem Himmel, unter den Augen aller, in Hotelhallen und Bahnhöfen, in Schulen und Synagogen. Aber nicht die Früchte des Feldes und nicht die Tiere der Herde werden dargebracht, sondern Menschen wie du und ich. Unser dunkler, unser scheinbar vergessener Ursprung ist universale Gegenwart“ (Schuller 2002: 11). Es ist hoch an der Zeit, das Opfer Jesu zu entmythologisieren oder besser gesagt, von seinem Ballast der Religionsgeschichte zu befreien und ihm die eigentliche Bedeutung wieder zurückzugeben. Das Kreuz steht als Widerspruch gegen das Leben und gegen die Vernunft. Es beinhaltet die gewalttätige Ablehnung eines neuen Lebensprojekts, der Gottesherrschaft, und damit auch die Ablehnung Gottes selbst. Das Kreuz steht gegen Gott und sein Heil für den Menschen. Jesus geht dennoch den Weg zum Kreuz als einzige Möglichkeit der gewaltfreien Liebe. Die Hingabe seines Lebens ist ein Opfer, das er zu bringen gewillt ist, nämlich das Scheitern seiner gesamten Existenz, die er in die Hand Gottes legt. In dieser radikalen Annahme der menschlichen Ohnmacht allein im Vertrauen auf Gott schafft Gott neues Leben in der Person Christi, das wir Auferweckung oder Auferstehung nennen, wenngleich diese Begriffe nicht das Eigentliche aussagen. Denn neues Leben in Gott bedeutet eine neue Seinsweise des Lebens, die außerhalb unserer natürlichen Wahrnehmung liegt. Der glaubende Mensch muss Jesu Lebensopfer auf seine je eigene Weise nachvollziehen. Das ist keine Verherrlichung des Leidens oder ein feiger Masochismus im Angesicht der Macht der Gewalt, sondern ein Gewaltverzicht, der Leben spendet in der größeren Logik des Schöpfers. Das solidarische Leiden und Sterben für das Leben der Welt ist die erlösende Aktivität des Widerspruchs gegen die Gewalt. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 115-150, jan./jun. 2010
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HUMANKIND AND ITS SACRIFICIAL RITUALS Abstract The sacrifices and the sacrificial rites are part of the most ancient symbolic acts of humankind and they have their unbroken power until nowadays. This fact appears both in the archaic sacrificial rites of Candomblé, still practiced today, and in the modern auto sacrifices of radical Muslims. The interpretation of sacrifice in the anthropological sciences encompasses a wide spectrum of possible contents: act of bribery of God (E. B. Tylor), sacralization and dissacralization of profane (H. Hubert and M. Mauss), myth of origin (A. Jensen), guarantee of communitas (V. Turner), Oedipus complex (S. Freud), mimetic violence (R. Girard) e archetype of life and of death (C. G. Jung). The Christian tradition used models of history of religion and interpreted Jesus’ death on the cross as infinite reparation of a hypothetical original sin. It would be closer to the Christian spirit to see Jesus’ death as surrender of life sympathetic to the suffering humanity, in which it is offered life through death. Key words: Sacrificial rituals, theories of sacrifice, scapegoat, Christ’s sacrifice. 150
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A CONCEPÇÃO DE DEUS EM IMMANUEL KANT NA CRÍTICA DA RAZÃO PURA Ângelo José Salvador*
Resumo A metafísica medieval girou em torno de uma ideia geral: Deus. Kant coloca em xeque todo esse edifício; Immanuel se posiciona como alguém que quer investigar os limites da razão no processo do conhecimento; é o Deus produzido pela filosofia, até então vigente em seu tempo, que Kant destrona. O filósofo prova que o mundo dos fenômenos é o campo para o abastecimento das intuições sensíveis do homem, que, por sua vez, são usadas pelo entendimento (intelecto) para construir o conhecimento. Para além do mundo fenomênico não há como conhecer, pois de onde o sujeito tiraria material para produzir conhecimento? A razão, quando pretende ir além dos limites do conhecimento, cai em erros, elaborando ideias destituídas de verdade. A ideia de Deus é uma delas. A razão supõe que pode conhecer Deus. Para Kant, podemos apenas pensar Deus, mas não conhecê-lo; isso na obra Crítica da razão pura. Palavras-chave: Estética transcendental. Analítica transcendental. Dialética transcendental. Metafísica. Deus.
Introdução Conhecer as causas possibilitava, no pensamento da Idade Média, “chegar até Deus”. A dedução é clara: o mundo deve ter uma causa, um ente supremo que criou tudo o que existe. Kant problematizará tal
Graduado em filosofia pela Faculdade Salesiana de Vitória e aluno do Curso de Teologia do Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória (Iftav). *
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conceito “provando” que isso só é possível no mundo dos fenômenos, portanto, passar desse mundo – mundo das causas – para outra realidade – mundo suprafísico – é ilegítimo; diante disso, a metafísica sofre forte abalo perante a nova ótica à qual Kant a submete.
1 A revolução copernicana de Kant No decorrer do trabalho elaborado por Immanuel Kant, sua paixão pela metafísica fica explícita. Não é sua pretensão derrubá-la, mas investigar sua possibilidade enquanto ciência bem fundada. Admite, porém, que até “os dias de hoje” aquela ainda não conseguiu se firmar como conhecimento seguro, ou seja, seus fundamentos estavam desde o início corroídos pelo dogmatismo. Diante de tal situação, Kant se pronuncia da seguinte forma: “[...] Pois a razão emperra continuamente na metafísica mesmo quando quer discernir a priori (como se arroga) aquelas leis que a experiência mais comum confirma” (KANT, 1996, p. 38, grifo do autor). Para Kant, a Crítica da razão pura tem o seguinte projeto: “O assunto desta crítica da razão pura especulativa consiste naquela tentativa de transformar o procedimento tradicional da Metafísica e promover através disso uma completa revolução na mesma [...]” (KANT, 1996, p. 41). Kant propõe, em contraposição à metafísica clássica, uma inversão radical no modo como o homem se comporta no processo do conhecimento, definido por ele como uma revolução comparada à que Copérnico realizou no campo da astronomia. Ao invés de o sujeito se regular pelos objetos, são estes que se regulam pelos modos da razão humana. Immanuel exprime essa sua descoberta na seguinte passagem: Por isso tente-se ver uma vez se não progredimos melhor nas tarefas da metafísica admitindo que os objetos têm que se regular pelo nosso conhecimento, o que assim já concorda melhor com a requerida possi152
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bilidade de um conhecimento a priori dos mesmos que deve estabelecer algo sobre os objetos antes de nos serem dados. O mesmo aconteceu com os primeiros pensamentos de Copérnico que, depois das coisas não quererem andar muito bem com a explicação dos movimentos celestes admitindo-se que todo o exército de astros girava em torno do espectador, tentou ver se não seria mais bem-sucedido se deixasse o expectador mover-se e, em contrapartida, os astros em repouso (KANT, 1996, p. 39, grifo do autor).
Todo o conhecimento começa com a experiência, pois, do contrário, como a faculdade do conhecimento seria despertada para a atividade senão por meio de objetos que tocam os sentidos? No entanto, mesmo admitindo que o conhecimento tenha seu início com a experiência, não quer dizer que ele esteja confinado a tal afirmação; existem conhecimentos que não estão presos à experiência, chamados a priori, totalmente distintos dos empíricos, que são a posteriori, cujas fontes residem na experiência. “[...] portanto, [por] conhecimentos a priori entenderemos não os que ocorrem de modo independente desta ou daquela experiência, mas absolutamente independente de toda a experiência” (KANT, 1996, p. 54, grifo do autor). A Crítica da razão pura pretende purificar os conhecimentos produzidos pela Razão, quando esta pretende alçar voo além de suas possibilidades, não sendo possível fundar uma ciência segura. Por exemplo, a ideia de Deus que será estudada na Dialética Transcendental. Para empreender tal tarefa, Kant parte da distinção tradicional entre juízos analíticos e juízos sintéticos. Juízos analíticos são aqueles com base nos quais a ligação do predicado com o seu sujeito é formulada por processo de identidade, ou seja, num enunciado não há contradição entre sujeito e predicado; um é espelho do outro e vice-versa. Este tipo de juízo nada acrescenta ao conhecimento; noutras palavras, não traz nada de novo ao conceito de sujeito. Quando se diz: – “todos os corpos são extensos” –, fala-se de um juízo analítico. Com efeito, não há necessidade de ir Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a .8, n. 14, p. 151-183, jan./jun. 2010
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além do conceito para encontrar a sua extensão, pois esta já se encontra contida no sujeito do enunciado. Os juízos analíticos não são juízos de experiência; são de natureza a priori. Os juízos sintéticos, por sua vez, não trabalham com o princípio de identidade. Logo, o predicado sempre diz algo para além do sujeito. Na afirmação: – “todos os corpos são pesados” – o predicado é algo bem diverso daquilo que penso no mero conceito de corpo. Este tipo de juízo é baseado na experiência. Nem os juízos analíticos nem os sintéticos fornecem bases sólidas para a ciência, pois os juízos analíticos não trazem nada de novo, embora sejam universais e necessários. Os juízos sintéticos acrescentam conhecimento, mas estão presos à experiência, não permitindo a universalidade e a necessidade. Diante da insuficiência dos juízos analíticos e sintéticos para fundamentar a ciência, que tipo de juízo daria conta de tal demanda? Kant irá descobrir que os juízos sintéticos a priori dariam base para essa tarefa. Estes são universais e necessários (a priori) e produzem conhecimento (juízos sintéticos). Kant elucida a nova luz com o seguinte exemplo: Tudo o que acontece tem sua causa. No conceito de algo que acontece penso, na verdade, uma existência à qual precede um tempo etc. e disso é possível extrair juízos analíticos. Mas o conceito de causa jaz completamente fora daquele conceito e indica algo distinto daquilo que acontece; não está, portanto, absolutamente contido nesta última representação (KANT, 1996, p. 59).
As ciências teóricas da razão estão embasadas por juízos sintéticos a priori. A matemática formula proposições não empíricas. Ex.: a proposição 7+5 = 12; esta operação não é analítica; é necessário sair de um desses conceitos (7 ou 5) e ser guiado pela intuição correspondente a um dos dois, por exemplo, os cinco dedos da mão, e desse modo somar sucessivamente as unidades do número cinco obtido na 154
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intuição ao conceito de sete. O que é pensado se restringe na soma de 7+5, mas não significa que esta adição seja igual ao número 12. A geometria pura, a física e a metafísica seguem o mesmo caminho; entretanto, resta saber se esta última pode de fato estar embasada em juízos sintéticos a priori, ou seja, se a metafísica é possível enquanto ciência. Do contrário, a ideia de Deus tomará novo significado e sofrerá forte mudança de sentido. A Crítica da razão leva precisamente à Ciência; o uso da razão com ausência de Crítica, ao contrário, conduz a erros destituídos de qualquer fundamento. É necessário ter coragem para avançar na tentativa de tratar a metafísica criticamente, promovendo seu crescimento, pois ela é uma ciência indispensável à razão humana. Antes de continuar o exame da razão, Kant introduz alguns de seus conceitos, que são importantes para a boa compreensão de seu trabalho. A palavra transcendental não significa algo para além do mundo físico, mas, sim, o modo como o sujeito conhece o objeto, de acordo com que este for possível a priori. Este novo método – ou, no dizer de Kant, sistema – denomina-se filosofia transcendental. Esta estuda as possibilidades e os modos mediante os quais o sujeito pode conhecer o objeto. Para Kant, esta é uma nova ciência, para a qual a Crítica da razão pura deverá apontar todo o seu projeto. Como introdução à filosofia transcendental, o filósofo irá dizer que existem dois caminhos do conhecimento humano que nascem de uma raiz comum, mas obscura, que são a sensibilidade (estética transcendental) e o entendimento (analítica transcendental): por aquela os objetos são dados; por este, são pensados. 1.1 A estética transcendental Há uma relação entre sujeito e objeto que Kant tentará explicar de modo sistemático. A estética transcendental irá trabalhar tal questão no sentido de que o homem apreende o objeto do conhecimento Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a .8, n. 14, p. 151-183, jan./jun. 2010
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mediante categorias. É o que será exposto a seguir. O pensamento possui uma espécie de força que visa ao objeto a ser apreendido; Kant chama esta “força” de intuição. Para que isso aconteça é necessário que um objeto seja dado; é preciso que haja um sujeito e um objeto. Este afeta a mente humana, ou seja, toca o aparelho sensorial de alguma maneira. Para Immanuel, o objeto é obtido por meio de representação, devido a este “afeto” causado por ele; tal capacidade é denominada sensibilidade. É por meio dela que os objetos nos são dados e é através dela que são fornecidas as intuições. O homem não alcança o objeto em si, mas sua representação. E o efeito de um objeto sobre essa representação, aceitando que somos afetados pelos objetos, é denominado sensação. Uma intuição empírica ocorre quando esta trata de objetos. E fenômeno é o objeto indeterminado de uma intuição empírica. A estética transcendental estuda a sensibilidade e suas leis. “Denomino estética transcendental uma ciência de todos os princípios da sensibilidade a priori” (KANT, 1996, p. 72, grifo do autor). Kant esclarecerá, na estética transcendental, que há duas formas puras de intuição sensível: tempo e espaço, que são os princípios do conhecimento a priori, isto é, do conhecimento puro. O primeiro a ser trabalhado é o conceito de espaço. Este é representação a priori que se põe antes de todas as intuições externas. Ele é a condição da possibilidade dos fenômenos. O espaço é intuição e deve estar presente no sujeito a priori, ou seja, anterior a qualquer percepção de um objeto. Enfim, o espaço é uma intuição pura. Diante de tais afirmações pode-se concluir que: 1) O espaço não representa as coisas em si mesmas; 2) o espaço é a forma dos fenômenos externos; é uma condição subjetiva da sensibilidade, a qual possibilita a intuição externa (KANT, 1996, p. 75). Para Kant, não é possível negar a subjetividade, ou melhor, a condição subjetiva no conceito de espaço. É ela que possibilita a intuição dos objetos fora do sujeito. Ele resume tal pensamento do seguinte modo: 156
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[...] o conceito transcendental dos fenômenos no espaço é uma advertência crítica de que em geral nada intuído no espaço é uma coisa em si e de que o espaço tampouco é uma forma das coisas que lhes é própria quiçá em si mesmas, mas sim que os objetos em si de modo algum nos são conhecidos e que os por nós denominados objetos externos não passam de meras representações da nossa sensibilidade, cuja forma é o espaço e cujo verdadeiro correlatum, contudo, isto é, a coisa em si mesma, não é nem pode ser conhecida com a mesma e pela qual também jamais se pergunta na experiência (KANT, 1996, p. 77, grifo do autor).
Após refletir sobre o espaço, Kant expõe suas teses a respeito do tempo. Este, assim como o espaço, não é uma entidade que existe por si mesma ou que se faz presente nas coisas objetivamente. Se estas afirmações fossem válidas, o tempo seria algo real mesmo sem objeto, que é o primeiro caso; no segundo, ou seja, o tempo como propriedade das coisas, não poderia preceder, de forma alguma, os objetos como sua condição, muito menos ser intuído e conhecido a priori por enunciados sintéticos. Kant afirma que ocorre o contrário: “Isso pode muito bem ocorrer se o tempo nada mais for senão a condição subjetiva sob a qual podem ocorrer em nós todas as intuições. Pois então essa forma da intuição interna pode ser representada antes dos objetos, por conseguinte a priori” (KANT, 1996, p. 79, grifo do autor). O tempo é a forma do sentido interno, ou seja, é o sujeito que intui a si mesmo e seu estado interno. O tempo não é algo inerente aos fenômenos externos, mas, sim, à possibilidade a priori dos fenômenos, inclusive os internos, isto é, da alma humana (KANT, 1996, p. 80). Conforme observa Höffe, “espaço e tempo pertencem a duas esferas distintas. O espaço é a forma intuitiva do sentido externo, que nos fornece, através dos cinco sentidos, as impressões acústicas, óticas, gustativas..., enquanto o tempo pertence ao sentido interno com suas representações, inclinações e seus sentimentos” (HÖFFE, 2005, p. 71). Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a .8, n. 14, p. 151-183, jan./jun. 2010
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Em conclusão, espaço e tempo são categorias que possibilitam conhecimentos sintéticos a priori; a matemática pura é um bom exemplo quando se pensa no conhecimento do espaço juntamente com suas relações. Espaço e tempo, portanto, são formas puras de toda intuição sensível, e dessa maneira deixam o campo aberto para proposições sintéticas a priori.
2 A analítica transcendental Segundo Kant, o conhecimento surge de duas fontes da mente, a saber: a receptividade das impressões, que recebe as representações; e a espontaneidade dos conceitos, que conhece os objetos fornecidos pela receptividade das impressões. Pela primeira os objetos são simplesmente dados; pela segunda são pensados. O conhecimento elementar consiste na síntese entre os conceitos e as intuições. O homem é constituído de uma intuição, que é sempre sensível (recebe os objetos provenientes dos sentidos), e de um entendimento, que pensa os objetos da intuição sensível. A intuição não é mais importante do que o entendimento, e este, não mais que a intuição. “Pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas” (KANT, 1996, p. 92). E continua Kant ilustrando a importância de não trocar as funções das faculdades cognitivas do homem: [...] tanto é necessário tornar os conceitos sensíveis (isto é, acrescentarlhes o objeto na intuição) quanto tornar as suas intuições compreensíveis (isto é, pô-las sob conceitos). Estas duas faculdades ou capacidades também não podem trocar as suas funções. O entendimento nada pode intuir e os sentidos nada pensar. O conhecimento só pode surgir da sua reunião. Por isso, não se deve confundir a contribuição de ambos, mas há boas razões para separar e distinguir cuidadosamente um do outro. Consequentemente, distinguimos as ciências das regras da sensibilidade 158
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em geral, isto é, a Estética, da ciência das regras do entendimento em geral, isto é, a lógica (KANT, 1996, p. 92).
Como foi visto, Kant chama de lógica as regras do entendimento ou faculdade de pensar. Aquela pode ser encarada com dois objetos distintos: primeiro, uma lógica geral; segundo, uma lógica particular do entendimento. A primeira trata das regras do pensar, não levando em conta a multiplicidade dos objetos aos quais se dirige; já a segunda possui as regras para pensar adequadamente os objetos. A lógica geral trata somente da forma do entendimento. Ao invés de trabalhar com uma lógica árida, totalmente isolada dos conteúdos, Kant quer provar, na primeira parte da analítica transcendental, ou seja, na analítica dos conceitos, que há uma lógica que pretende provar que os conceitos do pensamento não são vazios, mas se reportam aos objetos provindos das intuições sensíveis espaçotempo; tal lógica é chamada de lógica transcendental. É uma nova lógica, que supera a lógica dos antigos, sendo esta apenas formal (a lógica geral explicitada acima). A lógica transcendental é considerada por Kant uma nova ciência, que estabelece os limites do conhecimento humano com respeito ao objeto. O filósofo ilustra na seguinte passagem seu novo empreendimento: Uma tal ciência, que determinasse a origem, o âmbito e a validade objetiva de tais conhecimentos, teria que se denominar lógica transcendental porque só se ocupa com as leis do entendimento e da razão, mas unicamente na medida em que é referida a priori a objetos e não, como a lógica geral, indistintamente tanto aos conhecimentos empíricos quanto aos conhecimentos puros da razão (KANT, 1996, p. 95, grifo do autor).
O filósofo de Königsberg se dirige com dureza à lógica geral, porque esta trata apenas da simples forma do conhecimento, sendo Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a .8, n. 14, p. 151-183, jan./jun. 2010
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incapaz de se referir aos objetos. Ela foi utilizada arbitrariamente como órganon na produção de conhecimento. Em conclusão, tal lógica, como órganon, chama-se dialética, ou lógica da ilusão. Nada diz sobre os conteúdos do conhecimento, mas apenas sobre as condições formais da harmonia com o entendimento, sendo alheias aos objetos, não passando, desse modo, de pura verbosidade. A lógica transcendental inaugura definitivamente uma crítica à lógica formal destituída de conteúdo. Aquela pode ser dividida em analítica transcendental e dialética transcendental. (Esta última comporta a concepção de Deus, na qual o respectivo trabalho se sustenta). A parte da lógica transcendental que analisa os elementos do conhecimento puro do entendimento e os princípios que possibilitam a pensabilidade dos objetos é a analítica transcendental, chamada por Kant de lógica da verdade (KANT, 1996, p. 97). Em contraposição, quando se usa arbitrariamente os princípios puros do entendimento, ultrapassando os limites da experiência possível, corre-se sério risco de tornar-se obsoleto e vazio de conteúdo, quando, por meio de sofismas totalmente ressecados, faz-se um uso material de princípios formais da capacidade de pensar (entendimento) e julgar individualmente sobre o material fornecido pelas intuições espaço-tempo. A lógica transcendental é mal usada quando se arroga como órganon de um uso geral e ilimitado e pretende, só com a capacidade de pensar, afirmar e julgar sobre objetos. Quando isso acontece, dá-se o nome de dialética. Kant reserva a segunda parte da lógica transcendental à crítica da ilusão dialética, chamada de dialética transcendental. A dialética transcendental é uma crítica do entendimento e da razão quando esta é usada hiperfisicamente – ou seja, além da experiência possível –, na tentativa de desvendar sua falsa aparência no processo do conhecimento. (Inclui-se aqui o conhecimento do Ser Divino através de provas). A analítica é a decomposição do conhecimento a priori nos elementos do conhecimento puro do entendimento. Este não é uma 160
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capacidade de intuição, mas de pensar o múltiplo dado pela intuição. Em palavras simples, o homem é dotado de um “aparelho” que organiza o material fornecido pelas intuições espaço-tempo, chamado de entendimento. Nisso reside o processo de conhecer. Os elementos do entendimento são os conceitos que medeiam ou que traduzem os objetos sensíveis. “Conceitos, portanto, fundam-se sobre a espontaneidade do pensamento [...]. O entendimento não pode fazer outro uso desses conceitos a não ser julgar através deles” (KANT, 1996, p. 102). Adverte Kant que nenhum conceito é remetido a um objeto, mas antes a uma representação deste. É aí que entra o juízo, que é um conhecimento mediato do objeto. O juízo é uma representação fornecida pela intuição sensível (KANT, 1996, p. 102). Em todo juízo há um conceito legítimo para muitos outros conceitos e que sob tais concebe uma representação dada que é reportada rapidamente ao objeto. Tomemos, por exemplo, o juízo: “Todos os corpos são divisíveis”. Aqui, o conceito de divisível remete a diversos outros conceitos. E um entre estes se refere ao conceito de corpo. Portanto, os juízos possuem a tarefa de unificar as representações fornecidas pelas intuições. Faz-se necessário deixar o próprio Kant explicar a função do juízo e do conceito: Podemos, porém, reduzir todas as ações do entendimento a juízos, de modo que o entendimento em geral pode ser representado como uma faculdade de julgar. Com efeito, segundo o visto acima ele é uma faculdade de pensar. O pensamento é o conhecimento mediante conceitos. Como predicados de juízos possíveis, porém, os conceitos se referem a uma representação qualquer de um objeto ainda indeterminado. Assim o conceito de corpo, por exemplo, metal significa algo que pode ser concebido por meio desse conceito. Portanto, só é conceito por nele estarem contidas outras representações pelas quais pode se referir a objetos. Trata-se, por conseguinte, do predicado de um juízo possível, por exemplo de que todo metal é um corpo. As funções do entendimento podem, portanto, Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a .8, n. 14, p. 151-183, jan./jun. 2010
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ser todas encontradas desde que se possa apresentar completamente as funções da unidade nos juízos (KANT, 1996, p. 103).
Marcondes elucida a passagem acima da seguinte forma: Kant deriva os conceitos dos juízos, dando com isso prioridade aos juízos sobre os conceitos. Não pode haver nenhuma combinação de conceitos se não houver uma unidade originária que o permita. Dado o caráter predicativo dos conceitos, estes só podem ser entendidos a partir de seu papel nos juízos. Os juízos possuem uma unidade, ou seja, uma forma lógica que independe de seu conteúdo. Os conceitos enquanto predicados de juízos possíveis relacionam-se a uma representação de um objeto ainda não determinado (MARCONDES, 2004, p. 210).
As representações sensíveis fornecidas pelas intuições sensíveis espaço-tempo não são suficientes para produzir conhecimento se não forem apreendidas por conceitos e se esses conceitos não forem combinados num juízo. Por isso Kant problematiza o conhecimento de Deus após estar convencido de que só se pode conhecer dentro do mundo dos fenômenos mediante conceitos. Quando a razão tenta sair desse espaço e postular o conhecimento de coisas além da experiência possível, cai em erros escandalosos. Para ilustrar os juízos e as categorias ou conceitos puros do entendimento, Kant elabora uma tábua dos juízos e das categorias, que é apresentado a seguir:
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JUÍZOS
CATEGORIAS
Quantidade dos juízos Universais Particulares Singulares
Da quantidade unidade pluralidade totalidade
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Qualidade Afirmativos Negativos Infinitos
Da qualidade realidade negação limitação
Relação Categórico Hipotético
Da relação inerência e substância causalidade e dependência (causa e efeito) comunidade (ação recíproca entre agente e paciente)
Disjuntivos Modalidade Problemáticos Assertórios Apodíticos
Da modalidade possibilidade – impossibilidade existência – não-ser necessidade – contingência
Kant pretende, com o quadro acima, fornecer o mapa das possibilidades do pensar, demonstrando que os conceitos puros do entendimento (categorias) são válidos somente na medida em que são dirigidos à representação dos objetos e, como já se sabe, fornecidos pelo espaço-tempo. Existe um múltiplo a ser ordenado da sensibilidade a priori para dar aos conceitos uma matéria; o pensamento necessita que o múltiplo seja ligado, formando uma síntese. “Por síntese entendo, no sentido mais amplo, a ação de acrescentar diversas representações umas às outras e de conceber a sua multiplicidade num conhecimento” (KANT, 1996, p. 107). O que deve ficar claro é que não se pode conhecer negando a importância de uma ou de outra faculdade pertencente ao ser humano. As intuições fornecem objetos; os conceitos pensam estes, possibilitando o conhecimento. Dois grandes rios da modernidade são sintetizados com tal afirmação, a saber, o racionalismo e o empirismo. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a .8, n. 14, p. 151-183, jan./jun. 2010
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Ao afirmar que o homem não pode pensar diretamente os objetos sem intuições sensíveis (pois não haveria objeto para ser pensado) e que os objetos, por sua vez, não podem ganhar sistematização negando o intelecto, Immanuel “resolve” boa parte do problema relativo ao conhecimento. Resta saber quais são as consequências de tal descoberta na sua concepção de Deus dentro dos limites da Crítica da razão pura. O caminho está preparado para a próxima etapa, que é a concepção de Deus em Kant. O que foi exposto até o momento tem caráter sintético das ideias principais do filósofo de Königsberg; tanto é que a questão da imaginação no processo do conhecimento e do Eu Penso1 foi suprimida, por não ser de fundamental importância para este trabalho. Caso contrário, a linha de pensamento poderia chegar a lugares indesejados, atrapalhando o objetivo estabelecido, não chegando à meta almejada. Não quero, de maneira alguma, afirmar que tais assuntos não sejam importantes. Eles o são. Contudo, como já foi frisado, não o são para esta pesquisa.
3 A dialética transcendental Após examinar a estética transcendental e a analítica transcendental, Immanuel Kant empreende sua última batalha e retoma o problema inicial, que deu origem à crítica da razão: indagando se a metafísica é possível enquanto ciência, chega à conclusão de que ela produz verdades fantasmas, ou seja, destituídas de todo e qualquer fundamento válido para uma ciência segura. Tudo isso é realizado na terceira parte da Crítica da razão pura, que compreende a Dialética Transcendental. Esta estuda a “razão e suas estruturas” (REALE, 2005, p. 891) e é o lugar onde se encontra a concepção kantiana de Deus (lembrando que
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O Eu Penso será sucintamente tratado na Dialética Transcendental. Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 151-183, jan./jun. 2010
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essa concepção é somente dentro dos limites da Crítica da razão pura). A razão, diferentemente do entendimento, salta arbitrariamente do mundo dos fenômenos para o mundo metafenomênico; aquela não se satisfaz apenas com o sensível, mas sua tendência natural é elevar-se até a um nível onde não há mais nada de empírico. Como fora explicitado na Estética Transcendental, as intuições sensíveis espaço-tempo fornecem material para as categorias do entendimento, que foram estudadas na Analítica Transcendental. Sem intuições os conceitos são vazios, e sem os conceitos as intuições se tornam cegas (conforme foi visto). A Dialética Transcendental, portanto, estudará as ideias da razão quando estas tentam se elevar do sensível para o inteligível ilegitimamente, pretendendo conhecer para além da experiência possível (intuições e conceitos). Ela se ergue naturalmente em busca do incondicionado, imaginando alcançá-lo, caindo, dessa forma, em ilusões cada vez mais escandalosas e desmedidas. A Dialética Transcendental pretende elucidar os juízos emitidos pela razão quando esta extrapola o mundo dos fenômenos de forma arbitrária: Nossa tarefa aqui não consiste em tratar da ilusão empírica (por exemplo, óptica) [...] e sim em tratar unicamente da ilusão transcendental, que influi sobre princípios cujo uso jamais se apoia na experiência – caso este em que teríamos pelo menos uma pedra de toque de sua correção – mas, contra todas as advertências da Crítica, conduz-nos inteiramente para além do uso empírico das categorias e entretém-nos com a fantasmagoria de uma ampliação do entendimento puro (KANT, 1996, p. 230, grifo do autor).
Kant chama de transcendentes os princípios da razão que ultrapassam os limites da experiência. Transcendental e transcendente são termos completamente diferentes; o primeiro – como já se sabe – diz sobre as Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a .8, n. 14, p. 151-183, jan./jun. 2010
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possibilidades do sujeito de conhecer, ou investigação sobre; o segundo trata de princípios que ultrapassam qualquer obstáculo, para se aventurar em lugares onde qualquer limite é desconhecido; são lugares onde não há condições de experiência. Por tal motivo, transcendente e transcendental não são termos semelhantes (KANT, 1996, p. 230-231). A dialética transcendental pode tornar evidentes as ilusões da razão, mas não tem condições de fazer com que elas sejam eliminadas por completo. É uma ilusão natural e impossível de ser evitada, tendo como base princípios subjetivos, dando a estes caráter de objetividade, ou seja, de conhecimento seguro sobre a realidade. “Existe, portanto, uma dialética natural e inevitável da razão pura” (KANT, 1996, p. 231). Na analítica transcendental o entendimento foi demonstrado como faculdade das regras ou de conhecimentos que se referem às representações de um objeto. A razão, por sua vez, é denominada por Kant como faculdade dos princípios. Estes são conhecimentos a partir de conceitos, nada mais do que isso. O entendimento não pode fornecer conhecimentos sintéticos a partir de meros conceitos; estes são apenas princípios. A razão unifica as regras do entendimento sob princípios, para poder perceber toda a realidade de forma coerente e significativa: Se o entendimento é uma faculdade da unidade dos fenômenos mediante regras, a razão é a faculdade da unidade das regras do entendimento sob princípios. Portanto, ela jamais se refere imediatamente à experiência ou a qualquer objeto, mas ao entendimento, para dar aos seus múltiplos conhecimentos unidade a priori mediante conceitos, a qual pode denominar-se unidade da razão e é de natureza completamente diferente da que pode ser produzida pelo entendimento (KANT, 1996, p. 234).
Na verdade, a razão possui uma tendência irrefreável de organizar sob princípios a unidade das regras do entendimento, para que este entre em harmonia consigo mesmo. Tal princípio, porém, não é 166
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direcionado a objetos, nem pretende fazê-lo; sua função é diminuir o máximo possível os conceitos do entendimento dando-lhes caráter mais unitivo. “A unidade da razão não é, portanto, unidade de uma experiência possível, mas é essencialmente distinta desta, que é a unidade do entendimento” (KANT, 1996, p. 236). Num primeiro momento Kant admitirá que a razão tem conceitos, mas não como os conceitos do entendimento que pensam sobre o material fornecido pelas intuições espaço-temporais, e sim como conceitos inferidos, isto é, chega a conclusões usando apenas a razão, sem dar espaço para o uso da experiência. Eles não querem ser limitados por ela, pois isso não é o suficiente para os conceitos da razão que tendem sempre para o hiperfísico. Estes contêm o incondicionado, demonstrando que toda a experiência está submetida a eles. Kant chamará tais conceitos da razão de ideias transcendentais. Kant se aproxima bastante de Platão ao tratar da razão. Tanto um quanto o outro admitem que a razão “sente” uma necessidade irresistível de alcançar o incondicionado, não se contentando apenas com o mundo dos fenômenos, ou seja, o mundo sensível. A diferença entre os dois filósofos é que, para Platão, a ideia reside num plano transcendente e é dever do filósofo alcançá-la; Kant, por sua vez, considera a ideia como uma necessidade da razão de alcançar o incondicionado, mas nunca poderá atingi-lo enquanto conhecimento verdadeiro. A razão, quando raciocina, universaliza o conhecimento na forma de conceitos (ideias); por exemplo, na premissa: – “Platão é mortal” – o conhecimento pode, simplesmente, ser extraído da experiência por meio do entendimento. No entanto, a razão relaciona Platão num conceito mais elevado, ou seja, o de homem, para depois tirar a conclusão: “Todos os homens são mortais. Platão é homem. Logo, Platão é mortal”. Homem é um conceito universal e é uma síntese de todas as intuições, noutras palavras, a totalidade das condições. O conceito transcendental da razão é uma totalidade das condições para um determinado condicionado; apenas o incondicionado torna possível a Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a .8, n. 14, p. 151-183, jan./jun. 2010
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totalidade das condições (ex. a ideia de Deus), isto é, dá coerência e significado ao mundo dos fenômenos (KANT, 1996, p. 245). Kant esclarecerá da seguinte forma o que foi dito acima: Por ideia entendo um conceito necessário da razão ao qual não pode ser dado nos sentidos nenhum objeto congruente. Portanto, os nossos conceitos racionais puros ora considerados são ideias transcendentais. Eles são conceitos da razão pura, pois consideram todo o conhecimento empírico como determinado por uma absoluta totalidade das condições. Não são inventados arbitrariamente, mas propostos pela natureza da razão mesma, relacionando-se por isso necessariamente ao uso total do entendimento. São, por fim, transcendentes e ultrapassam os limites de toda a experiência, na qual, consequentemente, não poderá jamais apresentar-se um objeto que seja adequado à ideia transcendental (KANT, 1996, p. 247-248, grifo do autor).
As ideias da razão, conforme o exemplo do silogismo, sempre buscam a universalidade – que é a totalidade –, chegando ao incondicionado, sanando a voracidade do conhecimento por uma explicação coerente do mundo dos fenômenos. A admissão de um ente supremo (Deus) fundamentaria a existência do mundo enquanto contingência. 3.1 As três ideias da razão Kant reduz todas as ideias transcendentais a três tipos bem distintos: a primeira contém a unidade suprema do sujeito pensante; a segunda, a unidade suprema da série das condições dos fenômenos; a terceira, a unidade suprema da condição de todos os objetos do pensamento em geral (KANT, 1996, p. 251). A Psicologia corresponde ao sujeito pensante; a Cosmologia, ao conjunto de todos os fenômenos; e por último, a Teologia possui a condição absoluta de tudo o que pode ser pensado – o ente de todos os entes. “Portanto, a razão pura for168
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nece a ideia para uma doutrina transcendental da alma (psychologia rationalis), para uma ciência transcendental do mundo (cosmologia rationalis), finalmente também para um conhecimento transcendental de Deus (theologia transcendentalis)” (KANT, 1996, p. 251, grifo do autor). Em consequência disso, as três ideias da razão são: alma, mundo e Deus; e nesta última o presente trabalho alcança sua meta, ou seja, nela está contida a concepção de Deus na Crítica da razão pura. Kant é enfático ao distinguir o entendimento do projeto específico ao qual a razão se submete. Nenhuma das “ciências” – Deus, alma e mundo – é produto do entendimento, mas é unicamente um genuíno problema e produto da razão pura. Os resultados obtidos pela razão são chamados de silogismos; são sofisticados modos de obter “conhecimentos”, que não podem ser retirados com facilidade da razão humana, mas devem ser colocados sob o crivo da Crítica. Tais silogismos são comparados quase com sofismas. Todavia, Kant retira esta conotação pejorativa pelo motivo exposto acima, uma vez que aqueles são produtos da razão natural, e não algo inventado do acaso. O primeiro silogismo é o da alma, chamado por Kant de paralogismo;2 o segundo é o do mundo, que recebe a designação de antinomias3 da razão pura; e por último, Deus, que recebe o nome de ideal da razão pura. O paralogismo considera a alma como uma substância; em outras palavras, a partir do Eu Penso se estabelece a existência de uma alma substancial. O Eu Penso foi suprimido do segundo capítulo pela não necessidade direta de sua exposição neste trabalho; entrementes, para entender a falha do paralogismo, faz-se necessário dar uma breve elucidação sobre ele.
Conclusões incorretas (Cf. HÖFFE, 2005) ou raciocínio que não é válido (Cf. Aurélio). 3 Conflito de leis (Cf. HÖFFE, 2005) ou conflito entre duas asserções demonstradas ou refutadas, aparentemente com igual rigor (Cf. Aurélio). 2
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O Eu Penso kantiano significa uma unidade originária que acompanha toda a multiplicidade fornecida pela intuição, transformando-a em conhecimento. É diferente do Eu Penso cartesiano; mesmo sendo de fundamental importância para o processo de conhecimento, não é uma substância pensante; ele pode ser pensado, mas não conhecido. O Eu Penso acompanha todas as representações advindas da sensibilidade. Ele é algo que fica na retaguarda do conhecimento, dando suporte para que este se consolide. Höffe esclarece da seguinte forma as afirmações descritas acima: O “Eu” da apercepção transcendental não é o eu pessoal de um indivíduo determinado. Enquanto o si-mesmo individual pertence ao eu empírico, que vive no mundo em determinado tempo, o “Eu penso” transcendental tem seu lugar metodológico anterior a toda experiência e constitui a origem da unidade posta em todo juízo (HÖFFE, 2005, p. 100, grifo nosso).
Por puro que o Eu Penso seja (não há nada de empírico), distingue um objeto interno, que é a alma, e um externo, que é o corpo. Por isso, o Eu já é objeto da psicologia racional, fundada unicamente como Eu Penso. Não pode ser uma psicologia empírica, ou seja, que admite material provindo dos sentidos. Em última instância, Kant quer falar sobre os argumentos da psicologia racional da tradição cartesiana, a qual considera o Eu enquanto substancialidade. Ora, a substância é uma das categorias que só pode ser aplicada aos dados da intuição, e não ao Eu Penso, que é apenas o substrato das próprias categorias (ou o elemento fundante destas). Em suma, se o Eu é apenas consciência do meu pensamento, não é possível aplicar ao ente pensante a categoria de substância. Logo, não permite que haja um sujeito que exista por si mesmo. Kant esclarece melhor o paralogismo da razão pura com a seguinte passagem: De tudo isso vê-se que a psicologia racional tem a sua origem num simples equívoco. A unidade da consciência que subjaz às categorias é 170
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tomada aqui por uma intuição do sujeito enquanto objeto, aplicandose-lhe a categoria da substância. A unidade da consciência, todavia, é somente a unidade no pensamento, pela qual não é dado nenhum objeto e à qual, portanto, não pode ser aplicada a categoria da substância, que pressupõe sempre uma intuição dada; tal sujeito, por conseguinte, não pode absolutamente ser conhecido. O sujeito das categorias pelo fato de pensá-las não pode, portanto, obter um conceito de si mesmo como um objeto das categorias (KANT, 1996, p. 267, grifo do autor).
Após explicar o erro do paralogismo, passa-se ao equívoco da antinomia da razão pura ou cosmologia racional. A razão, como é sabido, exige uma unidade absoluta de todos os fenômenos. Ora, existe o condicionado. Logo, deve haver, a partir da soma de todas as condições, o absolutamente incondicionado. Portanto, as ideias transcendentais não passam de categorias maximizadas até o incondicionado. As ideias cosmológicas utilizam o método regressivo, quer dizer, buscam o incondicionado retrocedendo à série causal, até chegarem ao objetivo desejado. Procuram, em última instância, o fundamento, e não a consequência. Por mundo entende-se o conjunto de todos os fenômenos e as ideias. As ideias só se referem a um incondicionado partindo dos fenômenos. No intuito de descobrir a falha que leva ao incondicionado, Kant chama tal investigação de antitética transcendental, cuja significação diz respeito ao conflito entre conhecimentos pretensamente dogmáticos. “Se para o uso dos princípios do entendimento não aplicamos a nossa razão meramente a objetos da experiência, mas nos aventuramos a estendê-la além dos limites desta, então surgem proposições dogmáticas pseudorracionais, que da experiência não podem nem esperar confirmação nem temer refutação” (KANT, 1996, p. 281, grifo do autor). A razão negando toda a experiência possível promulga teses sem ter comprovação empírica, tentando conciliar suas proposições entre si mesmas, caindo, desse modo, em antinomias. A proposição: Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a .8, n. 14, p. 151-183, jan./jun. 2010
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– “o mundo tem um início no tempo e é também quanto ao espaço encerrado dentro de limites” – tem comprovação da razão, mas, se sua antítese for evocada, também pode ser legitimada pela razão. Desse modo, ter-se-á a seguinte proposição: “O mundo não possui um início nem limites no espaço, mas é infinito tanto com respeito ao tempo quanto com respeito ao espaço”. Não é possível resolver esta antinomia, porque seus conceitos ultrapassam os limites da experiência possível, impedindo que possam ser refutados ou comprovados. “Elas [as antinomias] não permitem absolutamente que em qualquer experiência possível lhes seja dado um objeto congruente, nem sequer que a razão as pense de acordo com leis universais da experiência” (KANT, 1996, p. 303). 3.2 O ideal da razão pura e a concepção de Deus em Kant Na Estética Transcendental foi amplamente visto que a sensibilidade fornece material para ser representado por meio dos conceitos puros do entendimento, os quais foram apresentados na analítica transcendental. Os conceitos só são realmente válidos quando remetidos aos fenômenos, produzindo o conhecimento efetivo do real. As ideias, por sua vez, se encontram mais distantes da realidade objetiva (mundo fenomênico) do que as categorias, porque as ideias não podem ser representadas por nenhum fenômeno; estão totalmente fora de uma experiência possível. Elas possuem uma completude que nenhum conceito empírico pode alcançar, e a razão, por meio delas, almeja uma unidade sistemática, na tentativa de aproximar a unidade empírica, sem poder fazê-lo concretamente. Existe algo que se encontra ainda mais afastado da realidade objetiva do que a ideia, chamado por Kant de ideal. É algo individual, singular, determinado mediante a ideia. O filósofo confessa que a razão humana não possui apenas ideias, mas também ideais, que possuem uma validade prática, funcionando como princípios regulativos. 172
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O ideal se configura como um arquétipo, criando dentro do ser humano um ideal de homem a ser alcançado, através das ações cotidianas. Tais ideais não são reais; no entanto, são de fundamental importância para a razão, que necessita do conceito de perfeição para compararse e perceber os seus defeitos. A intenção da razão com o seu ideal é a determinação completa de todas as coisas, partindo de regras a priori. Nessa ótica, ela pensa um objeto completamente determinável segundo princípios, embora na experiência faltem condições para isso, pois o próprio conceito é transcendente. Em outras palavras, o ideal não pode determinar o fenômeno, porque é algo alcançado apenas com a razão, não partindo do mundo fenomênico. O que a ideia de Deus tem a ver com tudo isso? Na razão teórica Deus não é considerado o ente transcendente da fé (o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó), mas um ideal transcendental. O ideal que tinha uma conotação de arquétipo ou modelo para as coisas, acaba ganhando ares de realidade, até transformar-se – para a razão pura – num ente real. Com efeito, ele é uma representação a priori que está para além da experiência. Diante disso, Deus, na concepção de Kant, é um ideal transcendental, uma mera ideia da razão que determina todo o fenômeno, e tal ideal é destituído de realidade objetiva. Logo, não pode ser conhecido, mas apenas pensado. Höffe dá uma boa compreensão do que esta concepção de Deus para Kant representa: Como nas outras partes da Dialética, a razão se envolve na aparência dialética logo que toma o ideal transcendental de uma totalidade de todos os predicados por um princípio constitutivo do conhecimento dos objetos e realiza primeiro a totalidade dos predicados, ou seja, faz dela um objeto, depois a hipostasia, isto é, a afirma como um objeto que existe fora do sujeito pensante, e, terceiro, a personifica considerando-a como pessoa individual, para, finalmente, determinar a pessoa supostamente objetiva pelas categorias da realidade, da substância, da causalidade e da necessidade na existência. Na realidade, o ideal transcendental é uma mera Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a .8, n. 14, p. 151-183, jan./jun. 2010
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ideia da razão, enquanto as categorias só são válidas para a experiência possível e perdem “todo conteúdo quando com elas ouso sair do campo dos sentidos” (B 707) (HÖFFE, 2005, p. 165-166).
Deus é a totalidade de todos os predicados; é a origem de tudo e essência de tudo. É necessário que a razão tenha um ente desse porte para buscar a unidade absoluta de todo o conhecimento. É por isso que a razão põe para si mesma um ente supremo, algo a ser alcançado por meio de uma busca incessante. Kant se expressa da seguinte maneira a esse respeito: Compreende-se por si que para este seu fim, a saber, para representarse unicamente a determinação completa e necessária das coisas, a razão não pressupõe a existência de um tal ente que é conforme ao ideal, mas somente a ideia do mesmo para derivar de uma totalidade incondicionada da determinação completa a totalidade condicionada, isto é, a totalidade do que é limitado. Para a razão, portanto, o ideal é o modelo (prototypon) de todas as coisas, as quais em conjunto como cópias imperfeitas (ectypa) tiram dele a matéria para a sua possibilidade e enquanto se aproximam mais ou menos dele permanecem sempre infinitamente distantes para alcançá-lo (KANT, 1996, p. 361, grifo do autor).
Pelo exposto, a possibilidade das coisas é uma derivação de uma realidade originária. Todas as negações são apenas limitações de uma realidade superior e suprema. Toda a multiplicidade não passa de um limitador de Deus (realidade suprema), assim como existem várias figuras dispostas num espaço infinito. Consequentemente, o objeto do ideal da razão [...] é também o ente originário [...]; enquanto não possui nenhum ente acima de si é o ente supremo [...]; e, enquanto tudo como condicionado está subordinado a ele, é denominado o ente de todos os entes [...]. Tudo isto, porém, não 174
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significa a relação objetiva de um objeto real com outras coisas e sim da ideia com conceitos (KANT, 1996, p. 361-362, grifo do autor).
Entrementes, tal ente supremo (Deus) não pode de forma alguma ser conhecido, apenas pensado (como já foi frisado). Após desenvolver a analítica, foi possível provar que conhecer, para Kant, é somente unir o múltiplo de uma intuição dada num conceito, ou seja, o objeto provindo do múltiplo é agrupado numa categoria, formando o conhecimento. O ideal da razão está completamente fora dessa ótica, tratando, desse modo, de uma ilusão, e não do conhecimento de um ser real. O erro consiste em ter como princípio para todas as coisas algo que somente o é para objetos. “Em consequência disso, tomamos o princípio empírico dos nossos conceitos da possibilidade das coisas como fenômenos, se suprimimos esta limitação, como um princípio transcendental da possibilidade das coisas em geral” (KANT, 1996, p. 363). A seguinte questão pode ser levantada: qual é o caminho que a razão percorre para chegar a esta ideia de Deus? A razão pressupõe um ente supremo para servir de fundamento ao entendimento e determinar completamente seus conceitos. Ela percebe no pressuposto algo de ideal que pode ser contraposto ao de coisas fictícias e, a partir disso, imaginar e se convencer de que uma coisa que é do próprio pensamento seja algo real. A partir do regresso das causas condicionadas, a razão busca encontrar uma que é incondicionada, servindo como fundamento supremo de tudo. Pelo que foi dito, a razão não inicia sua busca partindo dos conceitos, e sim a partir da experiência, tendo com base uma coisa existente, como, por exemplo, uma árvore, um cachorro ou uma criança. O xeque-mate está pronto para ser efetuado: se tais coisas existem, deve-se rigorosamente concordar que algo existe necessariamente. A árvore, o cachorro e a criança são contingentes, ou seja, a causa deles existirem está fora (não existem em si mesmos). A razão, “desesperadamente”, procura uma causa que Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a .8, n. 14, p. 151-183, jan./jun. 2010
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seja incondicionada para dar razão à existência da árvore, da criança e do cachorro. Esse é o caminho que a razão percorre para afirmar o ideal que ela mesma põe para si, isto é, Deus. A razão busca um conceito que seja capaz de alcançar o incondicionado, ou melhor, a causa incondicionada. Sua intenção, entre todos os conceitos possíveis, é encontrar aquele que não possui nenhum conflito interno que possa entrar em desacordo com a necessidade absoluta. Logo após a primeira incursão, a razão conclui que algo deve existir necessariamente. Ela põe em xeque tudo aquilo que não comunga com a ideia de necessidade, deixando espaço para apenas uma: o ente absolutamente necessário, o ideal da razão, em suma, DEUS. No universo de conceitos de coisas possíveis, o de um ente composto da realidade suprema conjuga-se da melhor maneira com o conceito de um ente incondicionadamente necessário. Isso deve ser aceito quase obrigatoriamente, pois a existência de um ente necessário não poderia ficar sem algo que a fixasse num ponto seguro. Em uma passagem da Dialética Transcendental Kant expõe o resumo de tudo o que foi dito: Tal é, pois, o caminho natural da razão humana. Primeiramente ela se convence da existência de um ente necessário qualquer. Neste, ela reconhece uma existência incondicionada. A seguir procura o conceito do que é independente de toda condição, e encontra-o naquilo que é a condição suficiente de todas as outras coisas, isto é, contém toda a realidade. Mas o todo sem barreiras é unicamente absoluto e comporta o conceito de um ente único, a saber, do ente supremo; e assim a razão conclui que o ente supremo enquanto fundamento originário de todas as coisas existe de modo absolutamente necessário (KANT, 1996, p. 365-366).
Mas a razão falha ao tentar alçar voo rumo a tal ente supremo, pois não pode conhecê-lo adequadamente através da razão teórica. Quando tenta fazê-lo, cai em dogmatismos e falsos conhecimentos. 176
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“O novo paradigma da teologia filosófica, de Kant, se constrói sobre uma destruição do paradigma antigo segundo o qual seria possível demonstrar a existência de Deus por via especulativa” (HÖFFE, 2005, p. 161). Todo o processo que a razão fez não passou de pura especulação, chegando a lugares impensáveis para o conhecimento possível e efetivo das coisas. Num outro momento, Kant argumentará que tal razão pode ter sua utilidade concreta, mas isso só é possível no campo da moral. Nesse intuito, Immanuel Kant rejeitará as tradicionais provas da existência de Deus, provando que elas não passam de um uso ilegítimo da razão, ou seja, seus enunciados estão para além de uma experiência possível, trabalhando apenas com o raciocínio abstrato, acelerando sob um terreno movediço que não pode levar a lugar algum. Para o filósofo, são três as provas da existência de Deus elaboradas pela tradição: a prova ontológica, a cosmológica e a físico-teológica. A razão se utiliza ou de uma via empírica para comprovar a existência de Deus ou de um caminho transcendental. Este elimina toda a experiência e infere de maneira a priori o conceito de uma causa suprema (através de meros conceitos); aquela parte de uma causa contingente até atingir a causa incondicionada. “Provarei que a razão trabalha em vão tanto numa direção (a empírica) como em outra (a transcendental), e que ela inutilmente abre as suas asas para mediante a simples força da especulação ultrapassar o mundo dos sentidos” (KANT, 1996, p. 368). A prova ontológica. Em todas as épocas o homem falou de um ente absolutamente necessário – Deus; todavia, nunca se perguntou como tal ideia pode ser pensada ou se sua existência pode ser provada. Pela expressão incondicionado as leis do entendimento foram ignoradas; por meio de exemplos lançados no ar, tentou-se obstinadamente provar a sua existência. No exemplo da geometria, a afirmação de que um triângulo é composto de três ângulos é sem sombra de dúvida necessária. Todos os exemplos foram retirados de meros juízos, e não Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a .8, n. 14, p. 151-183, jan./jun. 2010
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das coisas reais. Se um juízo possui uma necessidade incondicionada, não quer dizer que as coisas são da mesma natureza. A proposição anterior não afirmou que três ângulos são necessários absolutamente; é porque existe um triângulo que também existem necessariamente três ângulos – trata-se de um juízo analítico. Kant ataca com rigor aqueles que pretendem inferir através desta regra lógica a possibilidade de demonstrar a existência de um ente absolutamente necessário. [...] essa necessidade lógica demonstrou tão grande poder de ilusão que em decorrência, ao se formar um conceito a priori de uma coisa posto de tal modo que segundo a opinião corrente compreendia sem seu âmbito também a existência, acreditou-se poder seguramente inferir disso que, visto a existência ser necessariamente inerente ao objeto desse conceito, isto é, sob a condição de eu pôr tal coisa como dada (existente), também, sua existência é posta necessariamente [...], e que esse ente é por isso ele mesmo absolutamente necessário porque a sua existência é pensada junto com um conceito admitido a belprazer e sob a condição de que eu ponha o seu objeto (KANT, 1996, p. 369, grifo nosso).
A existência do ente absolutamente necessário é inferida arbitrariamente, pois não diz respeito a uma coisa real, mas é apenas um conceito esclerosado da razão. Quando se diz: “aquilo existe” – dentro de uma realidade possível –, faz-se uma proposição sintética, pois existência é um conceito das categorias que só funciona quando remetido à multiplicidade provinda da sensibilidade. O erro basilar do argumento ontológico consiste em confundir um predicado lógico com um real. O predicado lógico se serve de qualquer coisa, não acrescentando nada a um juízo. Por exemplo: Ser; não é um predicado real, pois não acrescenta nada ao conceito de alguma coisa. No juízo: –“Deus é onipotente” – a partícula é (ser) não passa de uma cópula. A palavra Deus, junto com todos os seus predicados, continua inalterada. Deus é justo, infinito, beatíssimo, onipotente, sublime etc. Tudo isso 178
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nada traz de novo ao conceito de Deus; é um juízo analítico. Pode-se pensar um ente supremo, mas não se pode provar se ele existe ou não (KANT, 1996, p. 371). Se o objeto posto acima tivesse proveniência dos sentidos, não haveria dificuldade de confundir a existência de algo com o seu simples conceito. Através deste, o objeto é pensado dentro de uma experiência possível. Pela existência, entrementes, é pensado como incluído dentro da experiência total. Portanto, pensar a existência apenas pela categoria pura impede de provar se algo existe na realidade. Por se tratar de uma ideia, o ente supremo não pode aumentar o conhecimento humano em relação a sua existência. Em suma, provar a existência de Deus através de conceitos puros não é possível; o argumento ontológico está descartado. A prova ontológica sucumbiu sob o bombardeio da crítica kantiana. Com a prova cosmológica não será diferente. Para Kant, esta prova é a mais falaciosa de todas as três: “Neste argumento cosmológico juntam-se tantos princípios racionalizantes, que a razão especulativa parece ter nele empregado toda a sua arte dialética para levar a efeito a maior ilusão transcendental possível” (KANT, 1996, p. 375). A prova cosmológica na verdade é a prova ontológica disfarçada; a princípio, ela parte da experiência, pois afirma que se algo existe – empiricamente –, deve existir algo absolutamente necessário. Tendo em vista que o objeto de toda a experiência possível chama-se mundo, a prova é cosmológica. A priori, a prova parece diferente da ontológica, porém, logo se mostra de natureza idêntica: não é possível saltar do mundo empírico e sob meros conceitos postular a existência de um ente absolutamente necessário. A necessidade absoluta é uma existência pautada em meros conceitos; é o mesmo artifício utilizado pela prova ontológica (KANT, 1996, p. 375). Resta a prova físico-teológica. Esta se baseia na ideia de que a ordem e a natureza do mundo podem fornecer um argumento seguro para provar a existência de Deus. Kant trata a prova físico-teológica Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a .8, n. 14, p. 151-183, jan./jun. 2010
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com maior consideração: “Esta prova merece sempre ser citada com respeito” (KANT, 1996, p. 384). Os principais pontos da prova são os seguintes: 1) O mundo possui sinais de uma ordem realizada com grande sabedoria, possuindo um propósito determinado. 2) Tal ordem finalista é completamente diferente das coisas do mundo, postulando que elas são apenas contingentes. Logo, deve haver um princípio racional ordenador que possa ter organizado a diversidade das coisas para fins últimos. 3) Deve existir uma causa sábia e sublime. 4) Tal causa pode ser inferida, pois o mundo revela um edifício construído com grandiosa arte. Os argumentos rezam que a natureza, juntamente com todos os seres, possui uma finalidade. Kant percebe uma falha na prova físico-teológica: a ordem e a finalidade do mundo provariam apenas a contingência da forma, mas a matéria (ou substância do mundo) ficaria totalmente desguarnecida de sentido. A prova pode, no máximo, revelar um arquiteto do mundo, mas não um criador do mundo, não servindo para provar o ente absolutamente necessário. As três provas caíram todas por terra, demonstrando que a razão especulativa não pode provar a existência de um ente absolutamente necessário (Deus). A Dialética Transcendental cumpriu seu papel de investigar a legitimidade dos conhecimentos proferidos pela razão quando esta salta arbitrariamente do mundo sensível para a produção de meras ideias destituídas de qualquer conteúdo empírico. Desse modo, prova que a metafísica não pode ser embasada por juízos sintéticos a priori, não tendo condições de constituir-se como ciência segura. O ente supremo mostrou-se apenas um ideal da razão especulativa, um conceito que coroa e conclui a totalidade do conhecimento humano, cuja realidade não pode ser provada nem refutada.
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Conclusão A crítica kantiana ajuda a perceber que o mistério não pode ser explicado pela simples razão especulativa. Kant abre espaço para a fé, porque percebe que provar a existência de Deus através de meros conceitos racionais é demais para uma mente tão pequena. No prefácio da segunda edição da Crítica da razão pura Kant fala a esse respeito: “Portanto, tive que elevar o saber para obter lugar para a fé”. Tratase mais de um gesto de humildade do que a tentativa desesperada de negar a existência de Deus. Entrementes, um novo paradigma se impõe: chegar à existência de Deus por via especulativa não é possível. Diante disso, não há mais um princípio regulador real que se coloca externamente ao homem – em um mundo suprafísico. O ser humano, a partir de agora, deve construir seus valores. Não há mais um “deus” que os possa ditar. Por tais razões, a metafísica sofre uma envergadura decisiva para o pensamento ocidental, que influenciará toda uma geração posterior. Mesmo no campo prático, onde Kant admite Deus, este não é mais fonte de normas; é apenas um ser que pode garantir a felicidade daquele que age moralmente. O homem está agora totalmente responsável por seu destino; não há mais leis eternas baseadas em um ente supremo que o possa reger.
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THE CONCEPTION OF GOD IN IMMANUEL KANT IN THE CRITICS OF PURE REASON Abstract The medieval metaphysics moved around a general idea: God. Kant challenges all this construction; Immanuel sets himself as someone who wants to investigate the limits of reason in the process of knowledge; it is the 182
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God produced by the philosophy, until then operative in his time, that Kant dethrones. The philosopher proves that the world of phenomena is the field for the supply of the sensitive intuitions of man that, by his turn, are used by the understanding (intellect) to build the knowledge. For beyond the phenomenal world there is no way to know, because where would the subject take material to produce knowledge? The reason, when it is intended to go beyond the limits of knowledge, commits mistakes, elaborating ideas deprived of truth. The idea of God is one of them. The reason supposes that it can know God. For Kant, we can only think God, but not know Him; it is in the work Critics of pure reason. Key words: Transcendental aesthetics, transcendental analytics, transcendental dialectics metaphysics, God.
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BIOÉTICA: DESAFIOS DO SÉCULO XXI Margareth de Oliveira Kuster*
Resumo Este artigo é uma contribuição para a sociedade em geral, principalmente para as pessoas que se interessam por bioética, numa reflexão sobre o pensamento e a cultura ocidental no período compreendido entre o século XVI e o século XXI. Insere a bioética enquanto ciência do século XX, que chegou para unir especialidades e trazer de novo a fundamentação filosófica para a análise dos problemas do tempo atual. A intenção foi elaborar um artigo que pudesse ser compreendido por todos, sendo esta uma proposta da bioética, unindo todos os interessados nas discussões que envolvem a vida e o viver, a morte e o morrer neste século. Os problemas estão colocados, e precisa-se mudar a forma de pensar e intervir no social maior para um futuro melhor para esta e para as gerações que estão por vir. É um chamado a uma sociedade mais participativa e solidária com destino a um mundo melhor para todos. Palavras-chave: Bioética. Cultura ocidental. Século XXI. Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados, não podia ser senão mui duvidoso e incerto, de modo que me era necessário tentar seriamente uma vez em minha vida, desfazerme de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências [....]. (DESCARTES, 1973, p. 93).
* Psicóloga clínica e hospitalar, mestranda em Ética e Gestão pela EST-RS, pósgraduada em Medicina Psicossomática. E-mail: m.kuster@uol.com.br
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Introdução A dúvida cartesiana é o ponto de partida de Descartes (1973)1 para todo o pensamento que desenvolveu e parece que ela o acompanhou ao longo de toda sua vida, pois em Meditações, publicado nove anos antes de sua morte, em 1641, essa obra permanece como condição essencial de seu próprio pensar filosófico. Convido, portanto, os leitores, a uma imaginária volta ao mundo do século XVI, período em que viveu o filósofo e pensador Descartes (1596-1650), com as notícias que hoje talvez aparecessem como manchetes dos grandes jornais internacionais: surge o calendário moderno, o Brasil e a bússola são descobertos, tem início a reforma protestante na Alemanha, Camões publica Os lusíadas em Portugal, Leonardo da Vinci, Michelangelo e Rafael imprimem um jeito novo de arte na Itália, que se expande para o mundo, Copérnico apresenta a hipótese de um Universo heliocêntrico, causando o rompimento drástico do mundo antigo e do mundo medieval com a era moderna. Época das grandes navegações e intercâmbio cultural e científico, permitindo aos povos influenciar e serem influenciados por outros. Todo o mundo ficou interdependente, e antigos limites pareciam não existir mais. Era a revolução científica2 chegando e a filosofia progressivamente se separando da teologia, fazendo surgir novas Igrejas, conflitos religiosos e conflitos culturais. Historiadores falam da emergência de uma nova consciência do ser humano, que se expande de forma rebelde, ambiciosa e criativa (TARNAS, 2000).
Considerado o pai da filosofia moderna, tornou-se conhecido com a máxima: “cogito, ergo sum” ou seja, “penso, logo existo”, considerada a primeira grande intuição da razão, a partir da qual a dúvida começa a ser superada, já que esta é uma verdade clara, fornecida pela razão. 2 Movimento no século XVII que separa a ciência da filosofia, pretendendo com isso um conhecimento mais estruturado e prático. 1
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Nesse cenário tenso de novidades e descobertas, desenvolve-se o Humanismo, movimento de estudiosos da cultura clássica antiga que enfatiza as necessidades das pessoas, valorizando os direitos e o acesso delas à cultura e ao conhecimento. O humanismo torna-se marca essencial dos intelectuais da época, principalmente para os italianos (médicos, sacerdotes e outros, que eram homens de boa conduta, de grande destaque social e sabedoria) (TARNAS, 2000). A medicina na época se ocupava da dissecação de cadáveres nas aulas de anatomia, ganhando impulso com as obras artísticas de Da Vinci, que também utilizava o nu com interesse artístico, chegando ele mesmo a dissecar mais de 30 cadáveres. O homem assim descrito perde seu caráter anterior de mistério divino da criação e assume o lugar de objeto controlável e manipulável. O corpo passa a ser compreendido como soma de partes, e acreditava-se que bastava dividir o objeto de estudo em partes para compreender o todo. Herança da ciência cartesiana, que divide para conhecer. Na medicina o compromisso ficou com o biológico do corpo, separando mente e corpo, e os médicos intervindo no corpo e considerando as doenças como processos meramente individuais, naturais e biológicos (SIQUEIRA & ZOBOLI & KIPPER, 2008). Como consequência na própria formação médica, essa visão faz crescer o número de especialidades médicas; assim, cada vez se conhece mais do menos. Era o binóculo cartesiano nas ciências médicas e o predomínio do pensamento essencialmente racional sobre os fenômenos e as pessoas (SIQUEIRA, 2007). Exames complementares e equipamentos tecnológicos substituindo a clínica e o avaliar pela história do doente. Mecanicizam-se o contato e as hipóteses de diagnóstico, ficando estes para as imagens radiográficas e exames cada vez mais sofisticados. O simples tornou-se complexo, e o acesso, restrito à minoria (SIQUEIRA, 2000). Nesse contexto de compreensão da realidade, outro filósofo contemporâneo de Descartes nos aponta que é impossível conhecer as Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 185-203, jan./jun. 2010
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partes sem conhecer o todo, tampouco conhecer o todo sem conhecer as partes: Pascal (2003). O desencantamento em relação ao mundo era grande, e a expansão científica em todos os campos tornou-se irrestrita. Havia um fascínio em cada descoberta, e o ser humano foi colocado como centro do Universo e senhor de todas as coisas. Essa forma de pensar chama-se antropocentrismo, e o homem é colocado como um ser racional e que tudo explica pela razão e pela ciência. Essa forma de pensar se estendeu até o século XX.
1 Racionalidade, tecnologia e consequências Assistiu-se do século XVI ao século XX a grandes descobertas. Eis que surge o automóvel, o avião, o voo espacial, o rádio, a TV, o celular etc. A mulher conquista direitos e independência no mundo do trabalho e nas relações familiares, a arte e o cinema dominam o tema dos entretenimentos, e inúmeras outras descobertas em todos os aspectos da vida. O Universo passou a ser indeterminado e infinito, assim como a realidade ficou mais complexa e pluralizada. O homem e seu saber científico (comercial, industrial e tecnológico) dominaram o objeto natureza de tal forma que quase a comprometeu totalmente. É o resultado do antropocentrismo irresponsável e predatório (BOFF, 1999). Em meio a tudo isso se produziram duas grandes guerras mundiais3, com consequente depressão econômica, ascensão e queda de ditaduras, holocausto, acesso a armas nucleares, acesso ao lazer etc. O desmatamento assumiu proporções gigantescas, e o planeta ficou ameaçado. O mundo até o século XIX era perigoso para todos, e cresceu a corrida armamentista dos países ricos, já se prevenindo de uma
Após a Segunda Guerra Mundial, há grande desenvolvimento dos centros de reabilitação física, devido ao grande número de lesionados = efeito pós-guerra. 3
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temida terceira guerra. O progresso trouxe consigo consequências não previstas anteriormente, e a natureza foi imensamente sacrificada (BOFF, 1999). Após quatro séculos de mudanças econômicas, políticas e sociais, o mundo dos homens predominantemente racionais fragiliza-se nas certezas, e o saber fragmentado não responde mais às demandas emergentes. De novo recorre-se a Descartes (1973) em suas Meditações, quando desperta no leitor a constatação de que não existem métodos fáceis para resolver problemas difíceis (DESCARTES, 1973). É exatamente nesse contexto social que se focará o interesse nas descobertas mais essenciais no campo das ciências médicas, pois é aqui o propósito de acompanhá-las para compreender os desafios atuais da bioética.
2 Surgimento da bioética A bioética surge nos anos 1970 nos Estados Unidos, com amplas preocupações na maneira de perceber e encarar o mundo, a vida e o viver (GOLDIM, 2002), a morte e o morrer (SEGRE & COHEN, 1995). Bioética significa, de forma mais simples, a ética da vida, e para Potter (1971), oncologista americano que assim a definiu na década de 704, a bioética resulta de uma grande preocupação com a interação do problema ambiental às questões da saúde, da vida e do viver. Para ele, era preciso combinar o trabalho dos humanistas com o dos cientistas, porque senão o futuro seria incerto. Ele propôs a bioética como uma ponte para o futuro, nome inclusive de seu livro. No ano de 1971, o Kennedy Institute, nos EUA, praticamente reduziu sua atuação ao campo biomédico e individual para as difíceis 4 A década de 70 também é marcada pelo crescimento dos movimentos e literatura de autoajuda nos países desenvolvidos, assim como da psicologia de enfoque comunitário e social.
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questões relacionadas à vida e ao morrer nos hospitais em geral. Passou a ser motivo de grandes reflexões a respeito do uso de tecnologia médica5 nos pacientes terminais e recebeu em duas décadas muitas críticas pelo reducionismo prático. Em 1988 o professor Warren Reich acrescenta à proposta da bioética a abordagem interdisciplinar, pluralista e sistemática, incluindo problemas de meio ambiente e outros, conforme Potter (1971) defendia. De 1970 a 1988 a bioética assumiu caráter mais individual, e, para Garrafa (2005), a autonomia6 parece ter prevalecido à justiça, e o individual foi ocupando o lugar do coletivo. Era o pragmatismo americano se impondo e os princípios da bioética principialista ganhando espaço com os princípios de autonomia, beneficência, não maledicência e justiça. Pode-se dizer que o movimento da bioética surgiu no final dos anos 60 nos Estados Unidos, como fruto da preocupação com os pacientes que precisavam fazer hemodiálise, e o número de equipamentos disponíveis era insuficiente; porém, a denominação bioética se firma nos anos 70 nos EUA, nos anos 80 na Europa e nos anos 90 na Ásia e nos países em desenvolvimento. Com características distintas e considerando realidades locais, sendo um dos campos mais crescente em todos os países, principalmente nos países ocidentais, marcados pelas dificuldades no processo de viver e no processo de como morrer (PESSINI, 2005). Nos anos 90 na América Latina surgiu uma nova proposta epistemológica: A Bioética de Intervenção, com base filosófica e consequencialista. Esta proposta apoia-se no filósofo Jonas, que em seu livro El principio de responsabilitad (1995) defende que não se deve comprometer as condições de uma continuação infinita da humanidade na terra. 5
vitais.
Alguns aparelhos altamente especializados que fazem a função de certos órgãos
6 Autonomia é o primeiro princípio da abordagem principialista da Bioética de Beauchamp e Childress, como direitos a liberdade, privacidade, escolha individual e liberdade da vontade.
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Em 1998, o 4º Congresso Mundial de Bioética, em Tóquio, retoma os princípios do professor Potter (1971) e reafirma suas ideias iniciais, criando o termo Bioética Global; porém, tal enfoque ficou confundido com o termo “globalização” e, então, se optou pela definição de Bioética Profunda. Pretendia-se entender o planeta como um conjunto de sistemas entrelaçados e mutuamente interdependentes, não tendo o homem como centro, e sim a vida, e esta não somente do homem, mas de toda espécie viva. É o resgate dos pensamentos iniciais de Potter (1971), que voltam e assumem destino prático na ordem do cotidiano. O desafio parece ser o de combinar o conhecimento científico com o filosófico, para as ações do dia-a-dia em todos os contextos. Em 2001 a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) define a bioética como área de reflexão da vida, da saúde e do ambiente de forma ampla, plural, interdisciplinar. Faz críticas em relação aos abusos dos novos conhecimentos, em todas suas propostas e áreas. Inclui em suas discussões a questão da prudência como princípio necessário quando se trata de procedimentos dos quais podemos nos arrepender num futuro próximo. No final do século XX os avanços das ciências da saúde surpreendem com as novas biotecnologias. Citem-se o projeto genoma humano, o movimento transumanista7 a lei de biossegurança, dentre outros fatos (PESSINI, 2005). Discussões bioéticas assumem espaços interdisciplinares, ao mesmo tempo em que se expandem e requerem novas adequações. Os temas são em relação à clonagem humana, aborto, eutanásia, ortotanásia, biodiversidade, finitude da vida, recursos naturais, alimentos transgênicos, racismo, alocação de recursos para a saúde, engenharia genética, dentre outros. Movimento cultural e intelectual surgido nos anos 80 nos EUA que tem por interesse aprimorar a condição humana através da razão aplicada, usando tecnologia para aprimorar as capacidades intelectuais, físicas e psicológicas do homem. Defende libertar a raça humana de seus limites biológicos, numa nova era da espécie humana. 7
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Para Lown (1997), um dos mais destacados cardiologistas do século XX, jamais a medicina avançou tanto no campo de diagnóstico e tratamento das mais variadas doenças como no século passado, e nunca o ser humano foi tão mal cuidado.
3 Século XXI Mundo globalizado e intercambiado, e a Internet como ferramenta essencial da vida civilizada. Acordos internacionais propondo diálogo8 como princípio fundamental de todos os encaminhamentos dos problemas globais. A economia torna-se recessiva, e aumenta a distância entre ricos e pobres. Nesse cenário de graves problemas sociais de difícil solução, iniciativas particulares e não governamentais propõem o resgate do fazer solidário, da compaixão, da busca de uma ética para além do instituído e governamental (ASSMAN & SUNG, 2000). Respostas anteriormente válidas não são mais suficientes, e um novo paradigma se faz emergente, fazendo surgir a esperança por novas possibilidades. O filósofo contemporâneo Morrin9 (2001) nos convida a refletirmos a realidade, substituindo o pensamento que isola e separa por um pensamento que distingue e une (MORRIN, 2006, p. 89), numa proposta da Teoria da Complexidade. Esta teoria tem visão interdisciplinar acerca dos sistemas complexos e possui sete princípios básicos do que denominou “o método”. Muitos dos avanços tecnológicos na área médica são indiscutíveis quanto aos benefícios em detecção e prevenção de várias doenças, 8 O diálogo é o primeiro princípio da ética oriental, de acordo com o filósofo Ilkeda, 2008. 9 Edgar Morrin é filósofo, sociólogo, antropólogo e historiador francês. Considerado um dos maiores pensadores da atualidade. Possui mais de 50 obras publicadas em vários idiomas, com temas das ciências modernas.
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tratamentos precoces, métodos não invasivos para diversos procedimentos cirúrgicos e outros. Há também aqueles que causam discussões e polêmica, dando muito poder a quem os oferece ao mesmo tempo em que aumenta a distância entre médico e paciente (SIQUEIRA, 2000 & PESSINI, 2008) e ricos e pobres. Sabe-se que muitas vezes a resolutividade de problemas na área da saúde está limitada a quem tem acesso ao sistema, e a distância entre necessidade e acesso pode significar perda de muitas vidas e sonhos. Desde a década de 1970 ocorre, na maioria das vezes, de pessoas morrerem isoladas e até mesmo solitárias nos hospitais, ligadas a aparelhos, sem a presença de familiares; uma solidão desumanizante. Alguns recursos tecnológicos muitas vezes são usados sem critérios claros, e não raro nos parecem desumanos; e, do ponto de vista financeiro, são recursos excessivos10, principalmente para os países em desenvolvimento, que ainda se veem com problemas de saneamento básico por resolver. Ainda se morre de desnutrição e gripe em meio a alta tecnologia com pacientes crônicos e terminais em alguns centros, o que, a princípio, parece-nos contraditório (SIQUEIRA, 2000). A medicina moderna amplia o divisor social de quem precisa do atendimento em saúde, principalmente se pensarmos em saúde pública. Para o bioeticista Greco (1999, p. 191), para que se possam controlar as doenças existentes e as que estão por vir, fazem-se necessárias a eliminação da pobreza e a acentuação da ética. A ética da correta utilização dos recursos públicos, a priorização de aplicação desses recursos em atividades que beneficiem a maioria da população, principalmente nas áreas de educação, saúde pública e saneamento básico. A bioética, nesse contexto, é uma reflexão pertinente a toda
10 Alguns pacientes chegam a custar para a rede hospitalar pública mais de R$ 20 mil/mês, e isto muitas vezes por falta de critérios claros no usar ou não alta tecnologia em pacientes sem perspectiva de melhora ou cura.
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formação profissional, trazendo questões emergentes sérias do contexto da vida e das articulações desta com as ciências e as relações sociais. É uma postura global e inclusiva para os difíceis problemas atuais da sociedade. Em se tratando da bioética clínica, precisa-se ampliar as questões colocadas, pois ainda as discussões abertas são tímidas para casos clínicos de difícil manejo, como o uso ou não de alta tecnologia em pacientes em cuidados paliativos, eutanásia, ortotanásia, aborto, morte encefálica, técnicas de reprodução, entre outras. Enquanto isso, avançam as descobertas do projeto genoma humano, manipulação do DNA e a Lei de Biossegurança. No Brasil tem-se, desde 1995, a Lei de Biossegurança, Lei nº 8.974/95, ligada ao Ministério de Ciência e Tecnologia, visando à proteção da saúde humana, dos animais, das plantas e do meio ambiente de forma não hierarquizada. Este último aspecto representa um fato inédito no país, pois não existia nenhum outro documento legal que tratasse da questão da saúde ambiental até então (VALLE, 1998). A bioética do século XXI adquire identidade pública e não mais dependente da consciência e autonomia das pessoas. Para Garrafa (2005, p. 132), “[...] ela exige a responsabilidade do Estado frente aos cidadãos, principalmente aqueles mais frágeis e necessitados, bem como frente à preservação da biodiversidade e do próprio ecossistema.” Em 2005 foi aprovada a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO, consagrando os direitos humanos como referencial teórico fundamental da bioética, caracterizando-se pelos direitos ambientais e pela solidariedade, transcendendo a noção de país e Estado. O Brasil e os outros países em desenvolvimento presentes incluem nas discussões em bioética o campo sanitário, social e ambiental, em oposição aos países ricos, que queriam novamente restringi-la ao campo biomédico e biotecnológico (GARRAFA, 2005). No início deste novo milênio pode-se apontar no mundo ocidental três formas de pensar e atuar em bioética: a americana, mais 194
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pragmática e que privilegia a autonomia das pessoas para os casos e procedimentos; a europeia, que vai se ocupar mais com a fundamentação filosófica; e a latino-americana, que tenta conjugar a influência americana e a europeia com a inclusão dos problemas sociais pertinentes às questões e aos procedimentos (PESSINI, 2005).
4 A crise do paradigma dominante O modelo do homem antropocêntrico parece não responder mais aos problemas de difícil manejo do cotidiano. Questões sociais graves assumem manchetes de TV e revistas semanais, e o pensamento racional parece não ser suficiente para os problemas que se têm e as soluções que se precisam. Como utilizar o saber profissional, história de vida, subjetividade, para as intervenções que se fazem necessárias? Quando se tem por objeto a pessoa humana e seu destino, tal tarefa é por demais desafiante. O homem expandiu conhecimentos, enfrentou competições, assumiu poder e dominou impérios, mas se tornou só e solitário. “O mundo virtual criou um novo habitat para o ser humano, caracterizado pelo encapsulamento sobre si mesmo e pela falta do toque, do tato e do contato humano” (BOFF, 1999, p. 11). A felicidade inicialmente sonhada não aconteceu. Felicidade entendida como o mundo de valores, sendo ela um valor positivo, interpessoal e historicamente determinado. Como Descartes mesmo nos propõe em Meditações, que se resgatem os fundamentos do pensamento do homem, encontramos em Aristóteles (384-322 a.C) que o homem precisa de companhia de outro ser humano para tornar-se mais humano, consequentemente mais solidário. Precisa-se de mudanças na forma de pensar, de forma estrutural e epistemológica, percebendo o homem para além do ser competitivo por natureza, mas ao mesmo tempo solidário por opção, superando a visão meramente economista reducionista dos últimos quatro Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 185-203, jan./jun. 2010
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séculos (ASSMAN & SUNG, 2000). A economia cresceu, o mundo transformou-se, e o conviver humanitário carece de reflexão e novas tomadas de posição. Momento de avançarmos do modelo cartesiano para uma nova construção do saber, incluindo o desafio do ser humano complexo e com múltiplas integrações concomitantes. Um ser integral biopsicossocial-espiritual e preocupado com o habitat e a qualidade de vida de todos.
5 Nova proposta, novo paradigma11 Assmann e Sung (2000, p. 170) defendem que a felicidade como o fim essencial do homem está ligada a ele próprio, mas também a todo o planeta, requerendo para isso que “[...] o desejo de solidariedade se transforme em necessidade vital personalizada como experiência própria em um número crescente dos habitantes desse planeta”. A essência humana é vista não como fundamentada na racionalidade, mas na capacidade de desejar uns para os outros uma verdadeira alegria de viver, um amor solidário que se complementa na felicidade do outro, enquanto o outro igual a si próprio. O caminho proposto é o do reconhecimento do outro enquanto outro = alter, de forma inclusiva, participativa, cooperativa e valorativa. Muda-se o paradigma anterior dominante, pois, se na Idade Média a confiança estava no poder da Igreja, no mundo atual a confiança parece se estabelecer em torno do mercado financeiro. As teorias econômicas possuem estranhos pontos em comum com as teorias teológicas, e nelas se busca um salvador para todos, num apelo para uma confiança irrestrita no outro = instituição, Deus. 11 Paradigma é um conjunto de princípios, ideias e valores compartilhados por uma comunidade e que servem de referência e de orientação para o viver. A mudança de paradigma ocorre quando surgem novas visões da realidade, como está se verificando atualmente.
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Nessa perspectiva acredita-se que, se o homem é fruto da cultura, portanto da experiência, pode-se mudar a forma de desejar viver a experiência, portanto a cultura. A tríade cérebro, enquanto substrato anatômico e físico; mente, enquanto construção subjetiva a partir da interação com o meio; e cultura, enquanto elemento da ordem do social maior, mostra que a humanidade é construção integrada e não única, imprinting cultural de que fala Morrin (2000, p 28). Um novo paradigma se faz emergente com a aproximação entre ciência e filosofia, numa busca de integrar com mais humanidade o saber e construir uma sociedade com novos valores (CAMUS, 2000). A sociedade pós-moderna12 precisa ser reconceituada, pois é por demais marcada pela razão que luta contra a ambivalência a que ela mesma se impôs. Como consequência, vê-se aumentar a intolerância, a rigidez e a exclusão entre as pessoas. A cultura atual, na tentativa de acabar com a ambiguidade inerente à condição humana, faz surgir os medos e as ansiedades pelos diferentes, e então estes são projetados nos que estão à margem da ordem social, os excluídos; daí se querer distância deles, e até mesmo eliminá-los. Assim acontece quando em bioética alguns bioeticistas defendem que, tendo utilidade e função, o ser humano estará apto para a vida; negam, com isso, a própria ambiguidade desta (SINGER, 2002). É preciso olhar o ser humano e com ele relacionar-se de modo e razão diferentes, levando-se em conta o aspecto transdisciplinar de análise, incluindo os temas do desejo, da epistemologia, da sociologia, da psicologia, da antropologia e outros. A solidariedade pode ser um princípio que facilite as relações entre as pessoas, devendo estar presente nas discussões dos valores fundamentais da bioética. Faz-se necessária, nesse novo paradigma emergente, a prática consciente e constante do diálogo, e para Siqueira (2008, p. 60), “[...] precisamos
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Sociedade a partir do final do século XVIII até o momento atual.
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nos preparar para o tempo de falar e ouvir.” Propõe o resgate da maiêutica socrática, segundo a qual o diálogo é o instrumento que busca a verdade. A felicidade da maioria pode ser desejada e afirmada em possibilidades reais, numa relação mais simétrica e horizontal, numa busca de vínculos relacionais que promovam crescimento e satisfação para um maior número de pessoas, para também no futuro não se meditar sobre as mesmas dúvidas das gerações passadas.
Considerações finais Analisando historicamente a estrutura do pensamento ocidental dominante desde o século XVI até o momento atual da bioética enquanto campo de conhecimento de saberes compartilhados, pode-se concluir que um novo paradigma se faz emergente para dar conta das angústias e sofrimentos da vida moderna. É necessário o resgate da sociabilidade cooperativa como princípio articulador da coesão social, em que o diálogo e a solidariedade sejam os instrumentos para medir as complexas situações humanas vivenciadas em detrimento da confrontação, da competitividade e da lógica mercantil. Não desaparece a competitividade, mas o mundo do outro aparece como mundo coafirmado, mundo possível e de pertença igualitária. Os problemas do tempo atual são complexos e exigem posturas mais dialogais e consensuais. O saber bipartido busca novas formas de integração e novas maneiras de lidar com a vida e o morrer, e esses são imperativos do cotidiano. Certezas rapidamente são transformadas em questionamentos, e a cautela e a ponderação são valores pertinentes às questões do dia. Avanços tecnológicos sem reflexão ética têm se mostrado perniciosos e perversos na economia do mercado vigente. É preciso discutir com critérios mais claros o que é mais adequado fazer e por que, sem a sedução das promessas mágicas que vêm junto com cada 198
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descoberta tecnológica e científica. A bioética do século XXI traz o resgate da reflexão filosófica para os encaminhamentos práticos que se precisam ter na ordem do dia. Necessitamos do pensar filosófico como aquele que perpassa toda ciência, procurando soluções criativas para os problemas existentes. Para o filósofo, conversar – falar – argumentar é o exercício de uma arte que fala de seu amor à sabedoria, para além de qualquer saber bipartido e linear. De acordo com Pessini (2008), a filosofia assume seu lugar ao lado das ciências médicas, apontando outra possibilidade de análise dos problemas da Bioética clínica, trazendo o paciente como pessoa13 (SALVADOR, 2009), num momento muito oportuno, quando este havia se tornado um número, um órgão ou um consumidor. Pessini (2008) propõe reflexões éticas não apenas em relação aos seres humanos, mas a todos os seres vivos, incluindo, em sua análise, as questões dos valores que temos para a vida, do meio ambiente, da cultura, da mediação com um tipo de progresso que facilita e garante a vida sem ameaçá-la. É um resgate das ideias iniciais de Potter (1971), seu criador e primeiro expoente. Por um resgate no século XXI da filosofia com a ciência no enfrentamento das difíceis questões do mundo globalizado. Faz-se, portanto, necessária a participação ativa de toda a sociedade, de forma prática e inclusiva, pois boa parte da convivibilidade que se deseja depende das escolhas que se fazem ao longo da vida e de como se estabelecem laços comunicativos e formas de pertencimento. É preciso uma ética que leve as pessoas e o Estado a respeitar acordos internacionais não como normas ou impositivos, mas como postura diferenciada diante da vida. E, mais que acordos com os outros, precisa-se de uma nova tomada de posição interna diante da
Pessoa aqui entendida como unidade psicossomático-espiritual aberta ao mundo, ao outro e ao Absoluto, devendo ser tratada como fim e nunca como meio. 13
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vida e do Universo, com atitudes cuidadoras que facilitem o conviver e a inclusão do outro no mundo de significações possíveis. Como contribuir para que mais pessoas se autoafirmem em relacionamentos com outras pessoas, incluindo o saber racional e o saber subjetivo, são construções históricas e afetivas de processos conscientes e inconscientes que vão facilitar ou dificultar a vida desta e das futuras gerações. Acredita-se, porém, que essa é uma alternativa viável e necessária, que inclui e melhora a vida das pessoas. O desafio, portanto, é de todos. Concluindo, pode-se dizer que Potter (1971), assim como Descartes no final de sua vida, reconhece que a bioética tornou-se algo muito além do que se imaginara, e em seus escritos finais de 1998 assim se expressa em Pessini (2008, p. 50): “[...] o que lhes peço é que pensem a Bioética como uma nova ética científica que combine a humildade, responsabilidade e competência, numa perspectiva interdisciplinar e intercultural e que potencialize o sentido de humanidade das pessoas”.
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Margareth de Oliveira Kuster
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Bioética: desafios do século XXI
BIOETHICS: CHALLENGES OF THE 21ST CENTURY Abstract This article is a contribution for the society in general, mainly for the people who are interested in Bioethics, in a reflection about the western thought and culture in the period included between the 16th century and the 21st century. It inserts Bioethics as a 20th century science that came to unite specialties and to bring again the philosophic foundation for the analysis of the problems of our time. The aim was to develop an article which could be understood by all people, being this a proposal of the Bioethics, bringing together all interested people in the discussions that involve life and living, death and dying in this century. The problems are set and it is necessary to change the form of thinking and to intervene in a bigger social, for a better future for this current generation and for the ones that are coming. It is a call for a more participative and sympathetic society leading to a better world for all. Key words: Bioethics. Western culture. 21st century.
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SÍNODO ARQUIDIOCESANO DE VITÓRIA DO ESPÍRITO SANTO Na fidelidade ao passado, mas decididamente aberta ao novo! Dom Luiz Mancilha Vilela*
Resumo A Arquidiocese de Vitória do Espírito Santo realizou o Primeiro Sínodo entre 2006 e 2009, levando em consideração as mudanças sociais e a escuta ao povo que compõe sua área geográfica, e, a partir dele, traçou seu objetivo de ser sinal de esperança para o povo. No dia 23 de agosto de 2009, concluiu solenemente Sínodo Arquidiocesano. O Sínodo nos convocava para uma mística da caminhada, seja no interior da Igreja Particular, seja no seu diálogo com o mundo. Palavras-chave: Arquidiocese de Vitória. Sínodo. Igreja. Povo de Deus.
Sínodo é uma reunião do Bispo com seu clero e leigos comprometidos, por um determinado período, com o objetivo de perceber a realidade e adequar os processos de evangelização para que o anúncio de Jesus Cristo aconteça em todos os lugares. A Arquidiocese de Vitória do Espírito Santo realizou o Primeiro Sínodo entre 2006 e 2009, levando em consideração as mudanças sociais e a escuta ao povo que compõe sua área geográfica, e a partir dele traçou seu objetivo de ser sinal de esperança para o povo. A Arquidiocese de Vitória do Espírito Santo, no dia 23 de agosto de 2009, concluiu solenemente um Sínodo Arquidiocesano. Por que
* Arcebispo da Arquidiocese de Vitória (ES).
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nós usamos o termo “Sínodo Arquidiocesano”, e não “Assembleia Arquidiocesana”? Seria apenas uma questão de preferência verbal ou tínhamos uma intenção específica ao usarmos o termo “sínodo”? A palavra “assembleia” é uma expressão muito rica em nossa vida eclesial. É um termo que nos congrega na expressão e na vida do Mistério de Cristo e de Sua Igreja, Povo de Deus e Corpo Místico. Ao mesmo tempo é uma palavra cujo sentido original, devido ao uso constante, foi enfraquecendo. Hoje é um termo usado com sentidos diferentes. É empregado para designar desde pequenas reuniões que congreguem pequenos grupos em torno de temas de interesse desses grupos até grandes reuniões em torno de grandes temas, de interesse regional, nacional e internacional, com representações coerentes com os objetivos pretendidos. Na concepção que caminhamos, optamos pelo Sínodo, gestado em três anos de muito trabalho através de pequenas e grandes assembleias reflexivas e litúrgicas, que nos permitiram uma compreensão maior dos desafios da evangelização e as intuições para novas iniciativas. “O Sínodo Diocesano celebra-se quando a juízo do Bispo Diocesano e ouvido o conselho presbiteral, as circunstâncias o aconselharem” (Dicionário de termos da fé). Coincidentemente, num tempo que se caracteriza como “tempo de mudança de época”, surgiu nesta Porção do Povo de Deus a necessidade de, enquanto caminhávamos, lançarmos um olhar estratégico e místico sobre a Arquidiocese de Vitória do Espírito Santo. Estávamos convictos de que esta Igreja assumiu em seu caminhar evangelizador atitudes proféticas. Sentíamos, no entanto, que ela precisava revitalizar seu testemunho interno e seu empenho no diálogo com o mundo nos seus diversos aspectos da realidade urbana e rural e do agir político e transformador. Fiéis ao conceito de Povo de Deus, que exige, por isso mesmo, paradas reflexivas, orantes e revitalizadoras, sentimos que aquele era o momento para essa empreitada corajosa, quase uma aventura! 206
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Sínodo Arquidiocesano de Vitória do Espírito Santo
A realização de um “sínodo” nos proporcionaria a oportunidade que uma “assembleia” não conseguiria. O sínodo nos permitiria, “um tempo” para a caminhada de comunhão. Eis porque a convocação de um “sínodo” e não de mera “assembleia”. O Mistério da Igreja Povo de Deus é Mistério do Povo de Deus que caminha em Comunhão, Mistério de Comunhão! O caminho pode ser percorrido individualmente, egoisticamente, ou juntos e comunitariamente. Na caminhada é possível acomodarse nas próprias conquistas, fechar-se em si mesmo, bebendo da água de poço sem renovação do precioso líquido mantenedor da vida. O Mistério da Igreja Povo de Deus, porém, é Mistério de Povo de Deus que caminha em Comunhão, Mistério de Comunhão! As circunstâncias nos indicavam que devíamos continuar nossa marcha de Povo de Deus, buscando, porém, viver e anunciar o Reino de Deus como caminhada de comunhão, buscando águas mais profundas. Por isso nossa preocupação central desde o início da convocação sinodal foi “caminhar juntos na acolhida fraterna e na esperança”. Este lema resumiu nossa motivação sinodal. O Sínodo nos convocava para uma mística da caminhada, seja no interior da Igreja Particular, seja no seu diálogo com o mundo. Esta foi a essência da intuição sinodal: promover uma caminhada em comunhão, com a reflexão orante de todos: Grupos de Reflexão, Comunidades Eclesiais com suas pastorais, associações e movimentos eclesiais. Estávamos socialmente fechados e eclesialmente desunidos em nossa missão, embora nosso rosto parecesse belo para os que nos viam de longe ou mesmo muito feio para outros. O grande desafio de caminhar juntos precisava de tempo para estabelecer o diálogo, a reflexão conjunta, os rumos da história e da caminhada arquidiocesana. A caminhada sinodal permitiu-nos a experiência. Formamos comissões de serviço e temáticas. Fizemos pesquisa técnica. Visitamos as áreas pastorais. Ouvimos a liderança. Definimos Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 205-209, jan./jun. 2010
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a metodologia de trabalho. Elaboramos regimento. Produzimos textos. Organizamos estudos. Rezamos. Celebramos. Encontramo-nos em assembleias ou sessões sinodais. Produzimos orientações para os temas que brotaram dos apelos do povo: Celebração do Mistério Pascal, Igreja Missionária, Ministerialidade, Família, Cultura de Paz e Formação. A escuta deu o “tom” de todo o processo. Ouvimos com humildade (através de pesquisa técnica e na escuta às Comunidades) o que o povo pensa de nós e deseja de nós. As orientações fundamentaramse nos apelos do Evangelho e orientações da Igreja, na tentativa de encontrar respostas às angústias que surgiram e aos desafios que se apresentaram. O caminhar juntos aconteceu desde a escuta às comunidades, passou pelas sessões temáticas até à assembleia conclusiva. Uma caminhada, lenta e progressiva, às vezes com entusiasmo, outras com pouco entusiasmo, com duração de três anos. Três anos em volta da preocupação de caminhar juntos, na acolhida fraterna e na esperança, ouvindo o povo e tentando responder às suas questões fundamentais. Vimos, ouvimos e nos abrimos à Palavra de Deus, que lançou luzes para a nossa ação evangelizadora nos próximos anos. O que a Igreja se propõe através do sínodo é um vasto trabalho evangelizador, que exigirá alguns anos de cada discípulo missionário, de cada comunidade eclesial, desta Igreja Particular. Entretanto, para não perdermos nosso objetivo, nossa meta de caminhar juntos, numa profunda mística, deixamos bem claro o que queremos como Igreja de Vitória do Espírito Santo: “Ser Sinal de Esperança para o povo, anunciando e testemunhando a Boa Nova de Jesus Cristo, à luz da evangélica opção pelos pobres, caminhando juntos, na acolhida fraterna” (Doc. Sinodal). Metodologia de trabalho para a realização do Sínodo: • Nomeação de uma comissão central (sendo esta composta por coordenadores das comissões de serviço). 208
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Sínodo Arquidiocesano de Vitória do Espírito Santo
• Nomeação de comissões de serviço e temáticas. • Definição dos temas e datas das sessões sinodais. • Definição de períodos para confecção de materiais de estudo e para o estudo. • Definição de datas para retorno dos resultados dos estudos feitos nas comunidades e grupos e sintetizados pelas paróquias. • Definição de tempos de trabalho para que as comissões temáticas pudessem preparar a apresentação dos resultados para as sessões sinodais. • Realização das sessões. • Constituição de uma equipe de assessoria para auxiliar o Arcebispo sobre as orientações pastorais de cada sessão. • Elaboração do documento conclusivo.
ARCHDIOCESAN SYNOD OF VITÓRIA IN ESPÍRITO SANTO In faithfulness to the past, but certainly open to the new! Abstract The Archdiocese of Vitória in Espírito Santo held the First Synod between 2006 and 2009, taking into consideration the social changes and the listening of the people who constitute its geographic area, and from it planned its objective of being a hopeful sign for the people. On August 23rd of 2009, it was concluded solemnly Archdiocesan Synod. The Synod convoked us for a mystic of walking, either in the interior of the Private Church or in its dialog with the world. Key words: Archdiocese of Vitória. Synod. Church. People of God.
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REVISTAS EM PERMUTAS NACIONAIS Título – Local – Periodicidade 1. Analytica: Revista de Filosofia da UFRJ – Semestral 2. Atualidade Teológica: Revista do Departamento de Teologia da PUC-Rio – Bimestral 3. Caminhando: Revista da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista – Semestral 4. Revista de Catequese: UNISAL – Trimestral 5. Cognitio: Revista de Filosofia da PUCSP – Semestral 6. Coletânea: Revista de Filosofia e Teologia Faculd. de S. Bento – RJ. – Semestral 7. Direito: Revista da Faculdade de Direito de Cachoeiro do Itapemerim- ES – Semestral 8. Espaços: Revista de Teologia do Instituto S. Paulo de Estudo Superior – Semestral 9. Estudos Teológicos: Inst. Ecumênico em Teologia Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – Semestral 10. Horizonte Teológico: Inst. Santo Tomás de Aquino – ISTA – Semestral 11. Hypnos: Revista de Filosofia da PUCSP – Semestral 12. Kriterion: Revista de Filosofia da UFMG – Semestral 13. Razão e fé: Revista Inter e Transdisciplinar de Teologia. Filosofia e Bioética – Semestral 14. Rhema: Revista de Filosofia e Teologia do ITASA – MG – Quadrimestral 15. Religião & Cultura: Revista do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUCSP -Semestral 16. Repensar: Revista de Filosofia e Teologia do Inst. Paulo VI – RJ – Semestral 17. Revista de Ciências da Educação: UNISAL – Semestral 18. Revista Dominicana de Teologia: EDT – Semestral Redes - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a. 8, n. 14, p. 211-214, jan./jun. 2010
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Revistas em Permutas
19. Revista Filosofia da PUCPR – Semestral 20. Revista Litterarius: FAPAS RS – Semestral 21. Sapientía Crucís: Revista Filosófico-Teológica – Anápolis – GO – Anualmente 22. Scientia: Revista Interdisciplinar do Centro Univ. Vila Velha ES – Semestral 23. Theós: Revista de Reflexão Teológica da Faculdade Teológica Batista de Campinas – Semestral 24. TQ: Teologia em Questãoda Faculdade Dehoniana SP – Semestral 25. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da UNESP – Semestral 26. Veritas: Revista de Filosofia da PUCRS – Trimestral 27. Via Teológica: Faculdade Teológica Batista do Paraná – Semestral
REVISTA EM PERMUTA INTERNACIONAL Título – Local – Periodicidade 1. Stromata: Revista Filosofia y Teologia Universidad Del Salvador – Argentina – Semestral
REVISTAS NACIONAIS – ASSINATURA Título – Periodicidade 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 212
Caros Amigos – Mensal Concilium – Bimestral Estudos Bíblicos – Trimestral Família Cristã – Mensal Grande Sinal – Bimestral Mundo e missão – Mensal Perspectiva Teológica – Quadrimestral REB – Revista Eclesiástica Brasileira – Trimestral
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Revistas em Permutas
9. Revista de Liturgia – Bimestral 10. Revista de Cultura Teológica – Trimestral 11. Revista Vitória – Bimestral 12. RIBLA – Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana – Trimestral 13. SEDOC – Bimestral 14. Tempo e presença – Bimestral 15. Revista de Koinoina – Bimestral 16. Síntese – Quadrimestral
CADERNOS Título – Periodicidade 1. Cadernos Adenauer – Bimestral
REVISTAS INTERNACIONAIS – ASSINATURAS Título – Local – Periodicidade 1. Bíblica: Editrice Pontifício Instituto Bíblico – Roma – Bimestral 2. Christus: Revista de Teología y Ciências Humanas – México – Bimestral 3. Diakonia: Internationale Zeitschrift für die Práxis der Kirche – Bimestral 4. Diakonia: Província Centroamericana de la Companía de Jesús Centro Ignaciano de Centroamérica – El Salvador – Trimestral 5. Família et Vita: Pontificium Consilium pro Família Stato Città Del Vaticano – Quadrimestral 6. Il Regno: Bologna – Quinzenal 7. Journal for the Study of the Old Testament – Trimestral 8. Journal for the Study of The New Testament – Trimestral
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Revistas em Permutas
9. Medellín: Teologia y pastoral para américa latina – Colombia – Trimestral 10. Misiones extranjeras – Madrid – Bimestral 11. Moralia: Revista de ciências Morales Instituto Superior de Ciências Morales – Madrid – Trimestral 12. Recherches de Science Religiuse – França – Trimestral 13. Revista de Espiritualidad – Madrid – Trimestral 14. Revista Mensaje – Santiago – Trimestral 15. Revue Biblique – L’école Biblique et Archéologique Française – França – Trimestral 16. Revue d’Histoire Ecclésiatique – França – Trimestral 17. Reseña Bíblica – Asociación Bíblica Española – Trimestral 18. Spiritus: Revue d’ expériences et recherches missionnaires – França – Trimestral
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