Revista Velhas nº14 - Outubro 2021 - CBH Rio das Velhas

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Uma publicação do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas

OUT 2021

ANO

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VII


Editorial Maria Railda Pereira é moradora de Raposos. O rosto forte que estampa a capa da edição nº 14 da Revista Velhas é de alguém que sente o rio de um modo único. Há mais de 45 anos lavando roupas às margens do Ribeirão da Prata, próximo ao seu encontro com o Velhas, Maria vê a sociedade e o rio mudarem de contornos, de configurações, de perspectivas. Os desafios, contudo, não tiram seu sorriso do rosto. Para saber mais sobre a história de Maria Railda e da tradição das lavadeiras, acesse o QR Code. Foto: Robson de Oliveira

bit.ly/lavadeiras-raposos

Mulheres das águas


O que conecta desigualdade de gênero à ausência de saneamento básico? Qual a causa e qual a consequência? A relação direta entre água e a mulher atravessa necessariamente a discussão sobre estereótipos entre os gêneros. Dado o papel social concebido à mulher, historicamente são elas que, à beira do córrego, lavam trouxas de roupas para sustentar a família, que se responsabilizam e assumem os cuidados com a higiene doméstica e pessoal dos filhos, que se necessário carregam latas d’água na cabeça por longas distâncias até suas casas, que cuidam dos membros da família que padecem de doenças de veiculação hídrica. São elas, portanto, as que mais sofrem com a falta de água e de saneamento. Nem por isso – ou exatamente por isso, colegiados que promovem a gestão dos recursos hídricos ou mesmo decisões políticas e a elaboração de leis que versam sobre água, esgoto e higiene, não têm a participação expressiva e efetiva das mulheres. Por quê? Essa reflexão e questionamento se estende a nós mesmos. Como é a participação feminina nas instâncias que compõem o CBH Rio das Velhas? Plenário, Câmaras Técnicas, Subcomitês e Agência de Bacia têm uma composição minimamente paritária? Essa inspiração na força e potência feminina também se faz presente na edição nº 14 da Revista Velhas na entrevista com a ex-ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira. Ela fala sobre as crises hídrica e energética, do desmonte da governança ambiental brasileira e da admiração pelo engajamento em torno da revitalização do Rio das Velhas. A arte aqui também se debruça sobre o tema pelo trabalho de Julia Panadés. ‘Mulher Canoa’ e ‘Mulheres Geológicas’, séries da artista, atravessam questões ligadas à ancestralidade e ao feminino, tangenciando o conceito das montanhas mineiras e o fluxo dos rios nas formas e na cor.

No ano da pior seca no Brasil em 91 anos, traremos também um retrato da estiagem. Responsável pelo abastecimento de metade da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), o Rio das Velhas entrou em estado de alerta – o último estágio antes da necessidade obrigatória de restrição de uso da água – ainda no mês de julho de 2021, apenas no início do período seco. O símbolo dessa crise na Bacia Hidrográfica continua sendo o Rio Bicudo, no Baixo Rio das Velhas. A superexploração e a degradação do território têm feito com que de modo cada vez mais frequente o rio fique “cortado” em determinados trechos, sem ligação de água. O entendimento de que a crise é sistêmica vem nas palavras do físico e professor da USP, Paulo Artaxo. Na matéria ‘Por que está chovendo menos?’, ele esclarece como o desmatamento na Amazônia e o aquecimento global explicam a redução de precipitação nos últimos anos no Brasil Central como um todo. Em meio a todo esse contexto de crise, o Comitê ouve especialistas e aponta quais alternativas seriam viáveis de ser implementadas na região do Alto Rio das Velhas para garantir a segurança hídrica da Região Metropolitana de Belo Horizonte, fruto do Acordo do Governo de Minas Gerais com a Vale, como reparação pela tragédia de Brumadinho, em 2019. Tem também a relação entre o boêmio bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte, e um importante afluente do Rio das Velhas, os percursos do Córrego Santo Antônio e do Ribeirão Maquiné na terra de João Guimarães Rosa e um perfil especial com o poeta das barrancas do Rio Cipó, José Geraldo Silvério, o Zezinho. Se aprochegue.


Expediente Revista Velhas Publicação Semestral do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas Nº14 – Outubro / 2021

Sumário

CBH Rio das Velhas Diretoria Presidenta: Poliana Valgas Vice-presidente: Renato Júnio Constâncio Secretário: Marcus Vinícius Polignano Secretário-Adjunto: Fúlvio Rodriguez Simão

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Diretoria Ampliada Sociedade Civil Instituto Guaicuy – Marcus Vinícius Polignano Assoc. de Desenvolvimento de Artes e Ofícios (ADAO) - Procópio de Castro Usuários de Água CEMIG – Renato Júnio Constâncio FAEMG – Carlos Alberto Oliveira

Com a Palavra

Poder Público Estadual EPAMIG – Fúlvio Rodriguez Simão

O que esperar do acordo da Vale e Governo de Minas para a Segurança Hídrica da RMBH? Especialistas apontam soluções

Poder Público Municipal Prefeitura Municipal de Jequitibá – Poliana Valgas Prefeitura Municipal de Belo Horizonte – Humberto Marques Agência Peixe Vivo Diretora-Geral: Célia Fróes Gerente de Integração: Rúbia Mansur Gerente de Projetos: Thiago Campos Gerente de Administração e Finanças: Berenice Coutinho

p. 08

Esta revista é um produto do Programa de Comunicação do CBH Rio das Velhas. Produzida pela Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social Direção: Paulo Vilela, Pedro Vilela e Rodrigo de Angelis Coordenação de Jornalismo: Luiz Ribeiro Edição: Luiz Ribeiro e Rodrigo de Angelis Redação e Reportagem: Luiza Baggio, Michelle Parron, Ohana Padilha e Luiz Ribeiro Revisão: Isis Pinto Fotografia: Acervo APCBH/ASCOM, Acervo Sudecap, Bianca Aun, Carlos Griffo, CNPq, Fernanda Matos (divulgação), Fernando Piancastelli, Greenpeace, Léo Boi, Leonardo Merçon / Últimos Refúgios, Luiz Maia, Mariane Ravanello (Divulgação), Martim Garcia / MMA, Michele Parron, Nelson Almeida / AFP, Ohana Padilha, Pablo Emílio, Pedro Gontijo, Robson Oliveira, Rogério Tavares (acervo pessoal), Shutterstock, Vinícius Loures Ilustrações: Clermont Cintra e Nila Projeto Gráfico: Márcio Barbalho Design Gráfico e Diagramação: Albino Papa

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Água e Gênero

Santa Tereza, em BH: bairro da boemia contornado por água “braba”

Impressão: ARW Gráfica e Editora Tiragem: 3.000 unidades. Direitos reservados. Permitido o uso das informações desde que citada a fonte.

p. 18


Unidades de Conservação em MG: áreas protegidas ou ameaçadas? p. 22

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Desmatamento na Amazônia, aquecimento global e o regime hidrológico na Bacia do Rio das Velhas

Rio Bicudo: símbolo da crise hídrica

Entrevista: Izabella Teixeira, ex-ministra do Meio Ambiente p. 28

p. 42

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Os percursos do Córrego Santo Antônio e do Ribeirão Maquiné, no Médio Rio das Velhas

A arte de Julia Panadés

Perfil: Zezinho, poeta das barrancas

p. 32

p. 54


Com a palavra

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Os desafios com um rio cada vez mais sem água


Essa condição ameaça não somente o abastecimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte, dependente em 50% das águas do Velhas, mas os usos múltiplos da água de forma geral em toda a bacia hidrográfica, além das próprias funções ecossistêmicas inerentes que um rio tem a cumprir. Cabe a nós entender as razões, globais e locais, que explicam por que chegamos até aqui. Se por um lado temos as mudanças climáticas já estabelecidas, que afetam o clima e o regime hidrológico em todo o mundo, por outro o descuido histórico com o uso e a ocupação do solo e a ausência de um planejamento voltado à conservação de rios, mananciais e bacias hidrográficas hoje cobram um preço caro. Nesse cenário, e tendo como norte, sempre, a saúde ambiental da bacia, o CBH Rio das Velhas tem agido para que tenhamos cada vez mais e melhores águas para todos. Num contexto emergencial como o de crise hídrica durante a estiagem, como foi em 2021, o Comitê – por meio do Grupo de Controle de Vazão do Alto Rio das Velhas (Convazão) – mediou o planejamento integrado das defluências dos reservatórios na região, em parceria com a Copasa, Cemig e AngloGold Ashanti, visando a regularização das vazões e o direito de acesso de todos aos recursos hídricos. Mirando contribuir com a recuperação da Bacia no médio prazo, o Comitê lançou em 2021 o seu Programa de Conservação e Produção de Água. A iniciativa consiste no desenvolvimento e na execução de ações com o objetivo de maximizar o potencial de produção de água nas sub-bacias hidrográficas. Acreditamos que esse será, portanto, um formato mais robusto, contínuo e completo de se promover melhorias hidroambientais no território. Por meio do Programa de Conservação e Produção de Água, a ideia é planejar essas ações, de forma organizada e criteriosa, para que possamos investir o recurso da cobrança pelo uso dos recursos hídricos na bacia da forma mais assertiva possível. Contra a insegurança hídrica, especialmente no contexto da RMBH, vale destacar também que o CBH Rio das Velhas costura um Protocolo de Intenções, que será firmado com o IGAM, IEF, a Agência de Desenvolvimento da RMBH e Copasa.

O tratado irá prever ações que serão realizadas em conjunto para garantir a segurança hídrica da RMBH e que contribuirão para aumentar a capacidade de resiliência do Alto Rio das Velhas e promover a manutenção dos ecossistemas aquáticos. Como se verá especialmente ao longo desta edição da Revista Velhas, a luta pelas águas – não só na Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas – é uma luta de quem por vivência desempenha diferentes papéis frente a esse elemento, mas que ainda ocupa pouco espaço na gestão dos recursos hídricos. Mulheres e homens estão longe de terem as mesmas oportunidades de participar, refletir, debater e pensar sobre fornecimento, gestão e proteção das águas. Nesse contexto, me sinto honrada em ser a primeira presidenta do CBH Rio das Velhas. Espero que esse ineditismo abra precedentes e que cada mulher desta bacia hidrográfica possa enxergar que este espaço que hoje ocupo é para ela também.

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Poliana Valgas Presidenta do CBH Rio das Velhas

Bianca Aun

Não podemos nos acostumar a presenciar o Rio das Velhas, ano a ano, minguar no período de estiagem com vazões significativamente baixas e preocupantes. O cenário com que temos convivido, especialmente na última década, nos faz vivenciar um contexto de insegurança hídrica.


Segurança Hídrica

Água como reparação O governo de Minas e a mineradora Vale celebraram um acordo bilionário em reparação ao rompimento da barragem em Brumadinho, com ações voltadas para a segurança hídrica da Grande BH. O que podemos esperar desse acordo? Especialistas apontam soluções viáveis para a bacia do Rio das Velhas Texto: Luiza Baggio

Lama da barragem de Córrego do Feijão matou ao menos 270 pessoas (nove continuam desaparecidas) e ameaçou a segurança hídrica da Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Luiz Maia

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A tragédia ocorrida em 25 de janeiro de 2019 na cidade de Brumadinho deixou rastros de destruição. O rompimento da barragem de Córrego do Feijão, da mineradora Vale, agravou uma situação que se arrasta há anos: a fragilidade do sistema de abastecimento da população da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Dois anos após a tragédia, o governo de Minas Gerais, a mineradora Vale e o Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG) assinaram o acordo para reparação dos danos provocados pela tragédia. Após meses de negociações, o termo foi assinado com valor de mais de R$ 37 bilhões. O acordo vigerá por 10 anos e a segurança hídrica será um dos destinos do dinheiro. Atualmente, a RMBH é abastecida por duas bacias: a do Paraopeba (51%) e a do Rio das Velhas (49%). Essa porcentagem é diferente para a capital: 30% do abastecimento provém do Sistema Paraopeba e 70% do Sistema Velhas. O rompimento da barragem da Vale interrompeu a captação de água no Rio Paraopeba, já que o manancial foi atingido pelos rejeitos da lama. Após a tragédia, o Rio das Velhas tem sido sobrecarregado na missão de abastecer a Grande BH. O acordo prevê o investimento de R$ 2,05 bilhões para obras nas bacias do Paraopeba e do Rio das Velhas, “que garantirão a segurança hídrica da Região Metropolitana de Belo Horizonte, inclusive de municípios atingidos. As intervenções têm o objetivo de melhorar a capacidade de integração entre os sistemas Paraopeba e das Velhas, evitando o desabastecimento”, diz o documento do governo.

Pelo acordo, a Vale terá que custear e executar os estudos de viabilidade para subsidiar a implantação de: 1) nova captação a fio d’água, adução e reservação no Ribeirão da Prata com vazão mínima de 600 l/s; 2) nova captação a fio d´água, adutora e reservação na região denominada “Ponte de Arame do Rio das Velhas”, garantindo a vazão mínima prevista de 2.000 l/s e a vazão de operação necessária também durante períodos secos; 3) nova captação a fio d´água, adução e reservação com vazão mínima de 2.500 l/s no Ribeirão Macaúbas; 4) ampliação do Sistema Rio Manso, compreendido entre a captação e o reservatório Morro Vermelho, incluindo a Estação de Tratamento de Água (ETA), adutoras, elevatórias e subestação, de forma a atingir uma vazão nominal de 9.000 l/s; e 5) nova adutora de transferência entre os Sistemas do Paraopeba e Rio das Velhas, para uma capacidade de transporte de 3.200 l/s. A secretária de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais, Marília Carvalho de Melo, aponta que os R$ 2,05 bilhões em intervenções devem garantir a segurança hídrica da RMBH. “As ações previstas no acordo trarão segurança hídrica para a região. A Vale está identificando os pontos que podem ser utilizados como novos mananciais de abastecimento. Foi proposto pela Copasa que as intervenções sejam realizadas especialmente em bacias que não tenham barragem a montante, para aumentar a oferta de água para a população com segurança”, afirmou.

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Polignano defende estudo que considere as mudanças climáticas e projeções futuras.

Bianca Aun

Pedro Gontijo

O governo de Minas, por meio do Comitê Pró-Brumadinho, informa que as ações para a segurança hídrica da RMBH estão especificadas no âmbito de outro instrumento jurídico: o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) Segurança Hídrica, firmado com o MPMG e a Vale. O documento prevê a elaboração de

estudos de viabilidade técnico-ambiental e o desenvolvimento de projetos básicos de engenharia de cinco obras estruturantes que garantam o atendimento à demanda hídrica atual da RMBH, correspondente a 15 mil litros por segundo.

Marcus Vinícius Polignano, secretário do CBH Rio das Velhas, alerta que para garantir água em qualidade e quantidade na RBMH é necessário um bom diagnóstico. “Ainda não temos estudos efetivos de ações que vão melhorar a segurança hídrica da região metropolitana. Para isso, precisamos estudar a demanda de vazão necessária para garantir o abastecimento da população, em conformidade com as mudanças climáticas. Um desenho atual com projeções futuras. A segurança hídrica é uma questão que deve ser enfrentada, pois a cada ano vemos o risco de escassez hídrica mais próximo e de comprometer o abastecimento de água, o que será extremamente ruim e grave”, destacou.

Acordo de mais de R$ 37 bilhões entre Vale e Governo de MG foi assinado no início de fevereiro.

A Revista Velhas conversou com especialistas nas áreas de saneamento e meio ambiente, que apontaram quatro possibilidades que contribuiriam para a segurança hídrica do Rio das Velhas e da RMBH:


Bianca Aun

Léo Boi

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Desassoreamento da Represa Rio de Pedras

Descentralização do abastecimento

A represa da pequena central hidrelétrica (PCH) Rio de Pedras é administrada pela Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig). Inaugurado em 1907, o barramento está instalado no Rio das Velhas, no município de Itabirito, e possui um volume total de 604 mil m³.

Um sistema de poços a ser perfurado e uma nova adutora interligada à Estação de Tratamento de Água (ETA) Bela Fama, em Nova Lima, podem trazer mais segurança hídrica à RMBH e alívio ao Rio das Velhas. É o que explica o professor do departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da Universidade Federal de Minas Gerais (DESA/UFMG), Marcelo Libânio.

Há anos o CBH Rio das Velhas articula com a Cemig e Copasa o desassoreamento da represa Rio de Pedras, um dos poucos barramentos na região do Alto Rio das Velhas. Caso não estivesse assoreada, a água da represa poderia ser utilizada para o abastecimento da população, especialmente durante os períodos de estiagem. O secretário do CBH Rio das Velhas, Marcus Vinícius Polignano, ressalta a importância da represa Rio de Pedras para a segurança hídrica da RMBH. “O reservatório é pequeno, mas poderia ajudar na vazão do Rio das Velhas. Estudos já mostraram que o volume acumulado em Rio de Pedras poderia ser disponibilizado em momentos de crise hídrica para o abastecimento público”, esclareceu. De acordo com a Cemig, o volume útil do reservatório atualmente está em 37,5% e a defluência é de 1,39 m³/s.

“Trata-se de uma das medidas de prevenção que visam garantir a segurança hídrica da RMBH, em um cenário de eventual suspensão da captação no Rio das Velhas. A alternativa que se mostrou mais eficiente para garantir o abastecimento do município de Sabará é a perfuração de poços tubulares em áreas de relevante potencial hidrogeológico. A utilização das áreas também se mostra estratégica devido à proximidade com a adutora da Copasa, com a qual os poços serão interligados”, esclareceu Marcelo Libânio. A Copasa informa que medidas de reforço da captação e tratamento estão sendo implementadas pela mineradora Vale em acordo com o MPMG. O superintendente da Unidade de Negócio Metropolitano da Copasa, Sérgio Neves Pacheco, comenta que, em Sabará, a previsão é de implantação de oito a 10 poços. “Com profundidade de 300 a 450 metros, os poços terão capacidade para suprir o abastecimento de 200 l/s ao município, mesma vazão ofertada atualmente pela ETA Bela Fama”, afirmou. Também será construído um sistema de captação para abastecer a ETA Bela Fama da Copasa. “Esse sistema irá captar a água armazenada na barragem de Cambimbe, que é de propriedade da AngloGold Ashanti, e direcioná-la, por tubulação, numa extensão aproximada de 4 km, até a ETA Bela Fama. A vazão a ser captada pelo sistema será capaz de abastecer cerca de 89 mil habitantes, sendo a totalidade do município de Raposos e parte de Nova Lima, atualmente abastecidos pela ETA Bela Fama”, contou Sergio Neves.


Melhorar a capacidade de integração entre os sistemas Paraopeba e das Velhas poderia evitar o desabastecimento da RMBH. A capacidade de transferência de água entre os dois sistemas de distribuição da Copasa nos Rios das Velhas e Paraopeba precisa ser ampliada, aumentando a resiliência, em especial no período de seca. O superintendente da Unidade de Negócio Metropolitano da Copasa, Sérgio Neves Pacheco, esclarece que os sistemas são interligados, entretanto, não é possível fazer a interligação de 100%. “Nossos sistemas são integrados, por meio da Linha Azul. Podemos transportar água do sistema Rio das Velhas para o sistema da bacia do Paraopeba e vice-versa. No entanto, a Copasa não tem como cobrir totalmente um ao outro”, disse. A Copasa utiliza uma rede, formada por 22 km de adutoras que interligam os sistemas de produção das bacias dos Rios das Velhas e Paraopeba, transferindo água tratada de um para o outro. Como solução, Sérgio Neves aponta a necessidade de melhorias na interligação dos sistemas. “A Copasa já tem aprimorado a integração dos sistemas e os valores destinados à segurança hídrica do acordo em reparação ao rompimento da barragem da Vale em Brumadinho nos darão melhores condições”, afirmou.

Bianca Aun

Léo Boi

Integração do sistema de abastecimento da RMBH

Conservação de Áreas Verdes e de Recarga O desaparecimento da vegetação natural e a degradação do solo podem alterar o padrão do fluxo das águas na paisagem e acarretar um fornecimento de água pouco confiável, com implicações para os usuários de água. A bacia do Rio das Velhas, localizada na RMBH, é importante para o abastecimento da população. No entanto, na região, tem se desenvolvido uma grande concentração de atividades industriais e um intenso processo de urbanização, o que intensificou a degradação da bacia. O gerente nacional de Água da The Nature Conservancy (TNC), Samuel Barrêto, explica que a segurança relacionada aos recursos hídricos começa com a garantia da gestão adequada da bacia hidrográfica. “A conservação de bacias hidrográficas é indispensável para garantir o suprimento de água no longo prazo com qualidade e em quantidade, para abastecer a população e para o desenvolvimento da economia, inclusive para criar a resiliência climática. Conservar e recuperar as terras em nossas bacias hidrográficas é fundamental para a biodiversidade, mas também para garantir o nosso fornecimento de água para o futuro”, disse. O superintendente da Copasa, Sérgio Neves, alertou para a perda de resiliência da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas. “Precisamos avançar na conservação e revitalização da bacia do Rio das Velhas. Ao longo do tempo, a bacia tem perdido elementos que contribuem para a sua resiliência, como a cobertura vegetal que auxilia na proteção contra a erosão acelerada e parte significativa de suas vazões fluviais”, finalizou.

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Diversidade

Guardiãs dos rumos dos nossos rios Gestoras das águas por vivência, por que as mulheres ainda ocupam pouco espaço na gestão dos recursos hídricos? Texto: Michelle Parron

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Obra: Caftan Desert Artista: Nila Acrílica s. Papel Canson 140g 20x20 cm - 2018


Lá vão elas andando com latas na cabeça por quilômetros, em busca de um poço para matar a sede dos irmãos e dos filhos. Lá estão elas, lavadeiras, à beira do córrego esfregando roupa por roupa para sustentar a família. Em casa, a função delas é limpar, lavar, cozinhar e cuidar das crianças. Por questões culturais, a divisão de papéis entre mulheres e homens na sociedade acabou empurrando a mulher a criar uma relação muito mais próxima à água. Embora sem essa consciência, ao desempenharem diferentes papéis como prover água, limpar e cuidar da casa e dos filhos, elas se tornaram uma espécie de gestoras da água, esse bem essencial para a vida no planeta. Seria um caminho natural pensar que decisões políticas e elaboração de leis que versem sobre água, esgoto e higiene tivessem a participação expressiva e efetiva das mulheres. Afinal, são elas as que mais sofrem com a falta d’água e inexistência de saneamento básico. São elas que assumem os cuidados com familiares doentes pela ingestão de água insalubre e pela ausência de tratamento de esgoto. Mas não é essa a realidade no Brasil. Mesmo com a maioria dos habitantes formada por mulheres, no Brasil elas são apenas 28% das cadeiras do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), 38% da Agência Nacional de Água (ANA) e 27% dos Comitês interestaduais. Nos Subcomitês do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas) elas ocupam 34% dos lugares. Esses dados apontam que mulheres e homens estão longe de terem as mesmas oportunidades de participar, refletir, debater e pensar sobre fornecimento, gestão e proteção da água no país.

bit.ly/agua-e-genero Assista ao Webinário “Água e Gênero, O protagonismo da mulher na gestão das águas da bacia do Rio das Velhas”

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Para mostrar que a desigualdade de gênero não é exclusividade do meio ambiente, entre os 16 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU), está inserido “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”. O tema divide o mesmo espaço de importância com outras urgências como erradicar a pobreza, acabar com a fome e garantir a disponibilidade e a gestão sustentável da água potável e do saneamento para todos.

“É uma honra ser a primeira mulher. Estou abrindo precedentes para outras mulheres, que é o que mais me deixa feliz. Cada mulher da bacia hoje pode enxergar que aquele espaço é para ela também. Temos que parar de achar que não podemos chegar a certos lugares e a minha presença representa muito isso. Mostra a todas da bacia que é possível estar em uma posição de comando”

Além da baixa representatividade das mulheres, quando presentes e participantes, um outro fator dificulta sua contribuição nas decisões: o respeito a sua fala. Para combater a desigualdade de gêneros a ANA criou, em 2016, o Comitê Pró-Equidade de Gênero da ANA (CPEG) com o objetivo de incorporar às ações de gestão da água o princípio de que a mulher desempenha um papel central no fornecimento, na gestão e proteção da água.

Poliana Valgas – Presidenta do CBH Rio das Velhas

Bianca Aun

Divulgação

Desde que foi criado, algumas mudanças já foram percebidas por Mariane Ravanello, superintendente-adjunta de Planejamento de Recursos Hídricos e coordenadora do Comitê Pró-Equidade de Gênero da ANA. “Uma das evoluções que percebemos é na questão qualitativa. Não sabemos se dá para ligar a mudança apenas a essa ação do comitê ou a toda evolução do tema gênero dentro da ANA, mas qualitativamente nós já estamos sendo mais ouvidas”, diz a coordenadora.

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Mariane Ravanello coordena o Comitê Pró-Equidade de Gênero da ANA.

Perceber e levantar dados concretos. A pesquisadora Fernanda Matos, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), se inquietou com a ausência de mulheres na gestão de recursos hídricos e resolveu apurar como estava a participação delas em números nos Comitês de bacias hidrográficas pelo Brasil. Em parceria com outras instituições e pesquisadores, Fernanda iniciou um levantamento nos 223 Comitês. “Apesar de serem 12 mil espaços de participação nos Comitês (entre titulares e suplentes), identificamos que nos Comitês estaduais a participação da mulher corresponde a 31%. A outra questão levantada pela pesquisa é que muitas vezes as mulheres estão nesses espaços, mas a influência delas ainda é limitada porque é sempre barrada. Toda vez que ela tenta falar alguém atropela, apropria da vez de fala, da ideia, e assim vai enfraquecendo sua participação”, diz a pesquisadora.

Poliana Valgas

A bacia do Rio das Velhas teve um avanço importante em 2020 ao eleger, pela primeira vez, uma presidenta do CBH Rio das Velhas. O cargo é ocupado pela engenheira ambiental Poliana Valgas. Mas no CBH Rio das Velhas a balança entre gêneros segue desequilibrada. As Câmaras Técnicas e Grupos de Trabalho, que são instâncias de discussão e decisão, ainda são espaços dominados pelos homens. A CTOC (Câmara Técnica de Outorga e Cobrança), por sua vez, é a única coordenada por uma mulher, a Heloísa França. Para a bióloga é um desafio pessoal e profissional assumir essa cadeira. “No começo não foi fácil. Mulher e ainda com apenas 36 anos. Mas o conhecimento que eu tinha, o apoio dos conselheiros e a minha dedicação diária aos estudos me atualizam e me ajudam a ficar preparada. Eu me cobro muito e não gosto de titubear quando sou questionada”, explica.


Ohana Padilha

Maria Luiza Lelis Moreira é conselheira do Subcomitê Ribeirão Onça e do CBH Rio das Velhas.

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O acúmulo histórico de funções também impede a participação das mulheres nesses espaços. A sobrecarga vem com as tarefas de casa, nos cuidados com os filhos, o trabalho doméstico, o trabalho fora de casa, os estudos. Diante de tantas funções, sobrar espaço para participar de ambientes importantes de decisão, como é o caso dos Subcomitês, envolve administrar tempo e fazer um esforço bem maior que dos homens. Para Mariane, da ANA, nossas políticas e processos precisam se adaptar à realidade das mulheres. “O acúmulo de tarefas é a variável que faz acontecer a menor participação. A solução não é onerar a mulher com mais essa função, mas transformar o sistema de uma forma que este consiga receber mais essa mulher”.

Uma possibilidade é mudar o desenho de como são feitos os encontros e as reuniões, sugere a pesquisadora Fernanda. “Como podemos facilitar para que mais mulheres participem com reuniões e eventos que não coincidam com horários de entrada e saída de crianças da escola? Vai ter espaço para levar a criança e ela será aceita? Terá alguém para tomar conta ou a mãe poderá ficar com ela durante a reunião?”. Divulgação

Nos Subcomitês o desafio é o mesmo. Maria Luiza Lelis Moreira é psicóloga social e ambiental e atua como conselheira do Subcomitê Ribeirão Onça e do CBH Rio das Velhas. Como mobilizadora social, ela está há 10 anos no Conselho Comunitário Unidos pelo Ribeiro de Abreu (COMUPRA) e no movimento Deixa o Onça Beber Água Limpa. De lá para cá, Maria percebeu avanços, mas a luta é diária. “Há 10 anos atrás eu me lembro que as mulheres eram vistas e lembradas apenas como aquelas que vão fazer números na hora de uma votação, que vão levar um lanche para uma reunião ou preparar a sala para deixá-la limpinha e cheirosa. Não como as mulheres pensadoras, engajadas, que poderiam contribuir com todas as suas vivências”, relembra.

Pesquisadora Fernanda Matos analisou a participação feminina em 223 Comitês de bacias hidrográficas em todo o Brasil.


Ilustração: Clermont Cintra

Mulheres no CBH Rio das Velhas Participação feminina nas instâncias do Comitê ainda é menor que a masculina

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1

CTOC

DIRETORIA

Câmara Técnica de Outorga e Cobrança

8

3 4

5 CTIL

CTECOM

Câmara Técnica Institucional e Legal

Câmara Técnica Educação, Comunicação e Mobilização

16

5

6 2

3 CTPC

CONVAZÃO

Câmara Técnica de Planejamento, Projetos e Controle

11

17 30,4%

1

PLENÁRIO

39 69,6%

Grupo de Controle de Vazão do Alto Rio das Velhas

5 1 GACG

GT de BARRAGENS

Grupo de Acompanhamento do Contrato de Gestão

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3 Para conferir como está a participação delas nos Subcomitês, acesse o site cbhvelhas.org.br


Célia Fróes é diretora geral da Agência Peixe Vivo, onde a presença feminina representa 73% dos colaboradores.

Bianca Aun

O fato é que não falta interesse das mulheres em ocuparem esses lugares. Envolvimento que Carolina Noronha, conselheira do Subcomitê Rio Cipó, percebe desde a escola. Carolina é formada em geografia e professora no distrito da Serra do Cipó, no município de Santana do Riacho. Ela desenvolve algumas ações com os alunos de educação ambiental. Nas atividades propostas, a conselheira nota um envolvimento feminino maior. “Eu percebo uma maior preocupação das mulheres, não só com o meio ambiente em si, mas com as questões coletivas. Percebo que elas têm maior seriedade em tratar os assuntos e percebo um engajamento maior das meninas nas atividades de educação ambiental.” Além de respeitar o espaço das mulheres e promover ações que equilibrem a participação de mulheres e homens na gestão das águas, o que mais pode ser feito?

Léo Boi

Tamires Clei Nunes, coordenadora do Subcomitê Rio Curimataí, acredita que falta mais informação. Ela chegou ao Subcomitê ao ver um cartaz de um evento. Curiosa, foi entender do que se tratava e começou a participar. “Uma das minhas ações é a divulgação do que fazemos pelas redes sociais. O Instagram hoje é a nossa vitrine de projetos e ações. Quando pudermos voltar aos encontros presenciais, penso em fazer seminários temáticos sobre gênero e rodas de conversa. Esse trabalho de inserção da participação das mulheres é de formiguinha, construído na base. E é preciso chegar na base e fazer os convites”, diz a coordenadora.

Uma realidade bem diferente da que vimos até aqui é a ocupação feminina na Agência Peixe Vivo. As mulheres são 73% da agência, o que significa que 22 dos 30 cargos são ocupados por mulheres. Só na direção executiva são quatro mulheres e apenas um homem. A Diretoria geral, comandada por Célia Fróes, também alcançou um lugar de destaque. Célia é a única mulher à frente de uma agência de bacia, das cinco que existem hoje no Brasil. A entidade responsável por dar apoio administrativo, técnico e financeiro ao CBH Rio das Velhas tem a direção da Célia há 10 anos. “Os primeiros anos foram difíceis para se criar uma relação de confiança e respeito junto aos Comitês, principalmente pelo fato de eu ser mulher e estar na linha de frente de uma agência para gerir um montante financeiro expressivo”, relembra ela.

Heloísa França é a única mulher à frente de uma câmara técnica do CBH Rio das Velhas.

Coordenadora do Subcomitê Rio Curimataí, Tamires Clei Nunes aguarda a volta dos encontros presenciais para a realização de seminários e rodas de conversa sobre gênero.

Fernando Piancastelli

A preocupação com a participação das mulheres nos Subcomitês do CBH Rio das Velhas motivou uma ação, promovida pelas mulheres, realizada em março deste ano. Representantes de toda bacia, da ANA, da Agência Peixe Vivo, pesquisadoras e outras profissionais se encontraram no Webinário “Água e Gênero – O protagonismo da mulher na gestão das águas da bacia do Rio das Velhas”. Com levantamento de dados, trocas de experiências e desafios que enfrentam no dia a dia, elas compartilharam suas vidas, percepções e atuações pela gestão das águas. “Eu gostaria de ter mais mulheres participando no Comitê. Nós somos muito fortes. A vida começa pelas mulheres e a vida não existe sem água. As mulheres são como as águas, que crescem quando se encontram. Que a gente possa avançar como as águas, superando desafios, transpondo obstáculos e seguindo rumo ao mar”, diz Poliana, presidenta do CBH Rio das Velhas.

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História

Santa Tereza: contornado por água “braba” e cheio de histórias

Destaque da Igreja Santa Teresa e Santa Teresinha, templo neocolonial localizado na Praça Duque de Caxias.

Michele Parron

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Histórias e memórias do Ribeirão Arrudas em um dos bairros mais tradicionais de Belo Horizonte Texto: Michelle Parron Um reduto da boemia. Famoso por brotar de suas ruas o Clube da Esquina e a banda Sepultura, o nome do bairro Santa Tereza foi levado para longe, além-mar, graças a essa turma de artistas. Mas o “Santê”, além da importância para a música, guarda uma porção de histórias. Com arquitetura de interior e atmosfera de interior, a infância por lá não poderia ser diferente: é como morar em uma cidade do interior. Os moradores nascidos, criados e que ainda permanecem no bairro, carregam na memória o privilégio de terem vivido com água limpa, bananeiras, ruas sem asfalto e de terem por perto um ribeirão bravo, mesmo morando em uma capital. Esse ribeirão é o Arrudas, que anos atrás, quando enchia muito, arrastava até menino. Quem conta algumas dessas histórias da braveza do Arrudas é o Mauro Rios, que chegou ao Santa Tereza na década de 1940, com um ano de vida. Naquela época, para atravessar o ribeirão era preciso pegar carona de barco. Se não era uma longa caminhada até a travessia mais próxima. No início dos anos 1960, a força do Arrudas chamava a atenção de Mauro. “Era violento. Você jogava uma pedra e ‘tchum’, ela sumia. Quando chovia, inundava e a gente via passar geladeira, passar de tudo.”

Acervo Sudecap

Quem sentiu a força do ribeirão Arrudas na pele foi João Geraldo Almeida, que chegou em Belo Horizonte em 1958, aos 19 anos de idade. Analfabeto, sem emprego, sem família e sem

casa para morar, foi debaixo de um pé de bananeira na favela dos Coqueiros, às margens do Arrudas, que ele fez sua morada. “No tempo que eu morei na rua ao lado do Arrudas participei de todas as desordens que esse ribeirão trazia para a vida das pessoas que viviam em sua margem. Quando enchia, o ribeirão levava tudo que estava pela frente. Na realidade, ali não existia um córrego, mas um pântano cheio de entulho, de esgoto in natura, de tudo de ruim que você possa pensar. Era um cheiro terrível”, relembra João. João “Petrobrás”, como gosta de ser chamado, viu sua vida mudar em 1962 quando saiu das margens do rio para morar em Santa Tereza, bairro que o acolheu e lhe ofereceu um primeiro teto. Foi ali também que ele conseguiu se alfabetizar e conquistar o primeiro emprego ao passar em um concurso. A experiência de ter que lidar com o temperamento de um ribeirão furioso transformou João em um defensor das águas. Desde 1993 ele luta pelo córrego Navio Baleia, afluente do Arrudas, na companhia de outros moradores do bairro Pompéia que fazem parte da Associação dos Membros e Amigos do bairro Pompéia (AMAP). Tudo que João quer é ver o córrego saneado. Uma parte desse sonho ele já realizou ao ajudar a conquistar uma obra que saneou 1.300 metros do Navio Baleia e reassentou 80 famílias que moravam em suas margens.

Ribeirão Arrudas contorna o bairro de Santa Tereza (à esquerda) em registro de 1986.

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Michele Parron

Se João teve sua vida marcada pela juventude difícil às margens do Arrudas, Mauro já traz memórias de uma infância feliz pelo bairro Santa Tereza. “Quando criança a gente caçava passarinho, encontrava umas onças pequenininhas, pintinho perdido no meio do mato. Era mato puro. A gente descia, pegava uma trilha que tinha um córrego onde hoje é a Avenida Mendes Sá e ia até o pico da montanha a pé”. A montanha que Mauro menciona é a Serra do Curral, paredão que fica bem em frente ao bairro. Mesmo com essa braveza toda do Arrudas, tinha gente que nadava e tinha gente que descia o ribeirão para pescar. O lugar onde hoje é o conhecido “Bar do Orlando” era parada obrigatória dos pescadores. “Ali se vendia apetrechos de pescaria e era ponto de encontro de quem ia pescar no Arrudas. Até 1980 o nome do local era ‘Bar dos Pescadores’”, conta o psicólogo e educador Hernany Mendes, morador do Santa Tereza há 15 anos. O carinho do Hernany, cliente do bar, levou-o a fundar em 2012 o Bloco dos Pescadores, uma homenagem ao local que até hoje segue comandado pelo senhor Orlando. Antes da pandemia do coronavírus, o bloco se reunia ali toda semana para uma roda de samba.

“Seu” Orlando é hoje o proprietário do estabelecimento que até 1980 era conhecido como “Bar dos Pescadores”.

Na região do Cardoso, Ribeirão Arrudas recebeu intervenções de retificação ainda na década de 1960.

Outro morador que é quase um patrimônio de Santa Tereza e chegou a nadar no ribeirão é o Lincoln Duarte Tertuliano. Senhor simpático, Lincoln nasceu no bairro e, há alguns anos, criou a Confraria São Gonçalo na garagem da sua casa, frequentada por Mauro e outros amigos. Um ponto de encontro semanal de senhoras e senhores do Santa Tereza para tocar, conversar e preparar almoços e jantares. “Aqui não é bar”, diz uma placa na parede. Cada um ali é responsável por levar a sua bebida e estar disposto a jogar muita conversa fora sentado na calçada. Entre amigos na Confraria, o morador relembra do tempo que nadou no Arrudas, que via os peixes e até o fundo do ribeirão, de tão limpa que a água era. Acervo APCBH/ASCOM

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Pescar no Arrudas era uma prática noturna do pai do geógrafo Alessandro Borsagli, que passou sua infância frequentando o bairro por causa dos familiares. “Meu pai pescava bagre de noite e via os peixes subindo no córrego do Leitão. A água do Arrudas era cristalina. Para pescar, ele pegava o trem na Estação Central e ia para fora de Belo Horizonte. Nas paradas do trem só se via pescador entrando e amarrando as varas de pesca debaixo dos vagões.”

Antigo Bar dos Pescadores vendia apetrechos de pescaria e era ponto de encontro de quem ia pescar no Arrudas

Pablo Emílio

A enchente do Arrudas nos anos 1980 foi a primeira memória que o geógrafo tem do ribeirão. Ele se lembra que estava no bairro e começou a cair uma chuva forte. “As pontes foram embora e nós só conseguimos atravessar o Arrudas no bairro Padre Eustáquio para ir embora para casa, no bairro Santo Antônio. Me lembro de olhar o rio e ver os carros dentro da água.” A força da água no canal do Arrudas pode ser explicada pela canalização dos seus afluentes, hoje submersos embaixo de ruas e avenidas da capital. Autor do livro “Rios Invisíveis da Metrópole Mineira”, Alessandro explica que, por tudo o que havia sido feito em quase 90 anos na bacia do Arrudas a montante do Santa Tereza, era inevitável uma intervenção como foi feita ali. “Era muita água chegando. A população, claro, não vai entender que foi um problema criado e potencializado pelo poder público. Ela não sabe como isso afeta o regime hídrico da bacia e das cidades a jusante, como Sabará e Santa Luzia. A canalização foi uma consequência de todos os erros


Michele Parron

cometidos no decorrer de décadas, com relação às intervenções na rede hidrográfica de Belo Horizonte, que obrigou o poder público a fazer um canal daquela largura e profundidade”. Além da pesca e das enchentes causadas pela cheia do Arrudas, José Lima, ex-morador do bairro e assíduo frequentador da Confraria São Gonçalo, recorda quando o Santa Tereza era mais verde. “Lembro quando aqui o bairro tinha poucas casas e o resto era mato. Toda casa tinha uma mangueira, uma goiabeira. Agora, o camarada aqui vai fazer garagem e corta uma árvore”, conta. Diferente do Mauro que, orgulhoso, conta ter plantado três árvores no fundo da sua casa e que na porta colocou uma muda de ipê branco que trouxe de Bonito, no Mato Grosso do Sul.

Lincoln Duarte nasceu em Santa Tereza, já nadou no Ribeirão Arrudas e, há alguns anos, criou a Confraria São Gonçalo na garagem de sua casa.

A turma da Confraria não sabia até então, mas tem gente firme para ver o Santa Tereza virar “floresta” de novo. Em 2011, durante as caminhadas que sempre gostou de fazer pelas ruas do bairro, Luciana Vieira começou a se incomodar com a aridez de alguns quarteirões. “Eu sou nascida e criada neste bairro e comecei a notar que havia uma diminuição considerável do número de árvores”, conta.

CBH Rio das Velhas tem apoiado o projeto de arborização no bairro com a doação de mudas de quaresmeiras do Viveiro Langsdorff.

Foi então que Luciana encarou o desafio de mapear todas as ruas do bairro, olhando trechos onde havia árvores plantadas, tocos remanescentes de supressões e áreas livres para plantio. Em 2019, a jornalista Eliza Peixoto, moradora do bairro que mantém o portal Santa Tereza Tem, contou a Luciana que várias pessoas da associação de moradores queriam fazer a mesma coisa que ela, mas não sabiam por onde começar. Foi então que o projeto Arboriza BH tomou corpo e, no mesmo ano, o mapeamento iniciado por Luciana foi finalizado. Era hora, então, de sensibilizar a população.

O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas tem participação nesse trabalho. Em outubro do ano passado, o Comitê fez a doação de 150 mudas de quaresmeiras do viveiro Langsdorff para o projeto. “Foi uma festa esse recebimento porque foi a primeira oportunidade de a gente inserir crianças no projeto. O momento do transplantar as mudas aconteceu em uma pracinha aqui no bairro com as crianças colocando a mão na terra. Inserir idosos e crianças nesse trabalho é de uma riqueza sem tamanho.” Por enquanto as mudas estão sob os cuidados dos voluntários do projeto até atingirem 1,80 metros. Quando isso acontecer, elas serão replantadas pelas ruas do bairro Santa Tereza. Para quem mora por lá ou em qualquer outro local de Belo Horizonte e queira ajudar a reflorestar o “Santê” ou seu próprio bairro, é só encontrar em contato com a Luciana do Arboriza BH pela página no Instagram do Arboriza BH.

Michele Parron

Hoje o projeto conta com mais de 80 voluntários e soma o plantio de 104 árvores que ganharam as ruas do Santa Tereza desde setembro de 2020 até agora. A meta é atingir três mil árvores plantadas.

Carlos Griffo

“A Organização Mundial da Saúde preconiza um mínimo de uma árvore por habitante. Se Santa Tereza tem 15 mil habitantes, nós teríamos que ter uma média de 15 mil árvores no mínimo. Neste levantamento, à época, em 2019, o bairro tinha 2.300 árvores nas ruas. Ou seja, um déficit absurdo”, conta Luciana.

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Relação do bairro com o Arrudas e com o carnaval inspirou também o Bloco dos Pescadores.


Preservação

Áreas protegidas ou áreas ameaçadas? As unidades de conservação são vitais na conservação dos recursos hídricos. Mas será que estão sendo mesmo protegidas? Texto: Luiza Baggio

Bianca Aun

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Mineração avança na região da Serra do Curral, principal referência natural da paisagem da capital mineira.


Pensar o papel das unidades de conservação (UC) desconectado da água é impossível. Criadas para proteger a fauna e a flora e oferecer serviços à população, como recreação em ambientes naturais, as UCs do Brasil nasceram, também, para proteger os recursos hídricos, tornando-se estratégicas por preservarem o que o ser humano necessita de mais precioso para viver: a água. As UCs são criadas por leis específicas para proteger espaços territoriais e os recursos ambientais existentes. Elas são regidas pela Lei Federal nº 9.985/2000 que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) e são classificadas em 12 categorias, de acordo com suas características e finalidade pela qual são criadas. A principal mudança determinada a partir da criação de uma UC é a definição de seus limites territoriais e de regras para normatizar sua ocupação e seu uso a partir da elaboração do plano de manejo. O Brasil possui atualmente 1.828 unidades de conservação federais, estaduais e municipais, que somam 1.494.989 km2, cerca de 17,5% do território nacional. Na bacia do Rio das Velhas, são 118 áreas protegidas, de acordo com o Plano Diretor de Recursos Hídricos (2015), distribuídas entre 66 Parques, sendo três nacionais, sete estaduais e 56 municipais,

23 Áreas de Proteção Ambiental (APAs), 14 Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN), nove Monumentos Naturais, três Estações Ecológicas, dois Refúgios de Vidas Silvestres (REVIS) e uma Floresta Estadual. Apesar da grande quantidade de unidades de conservação criadas entre 2003 e 2009 – quando o Brasil foi responsável por 70% das áreas terrestres protegidas instituídas em todo o mundo –, a mera criação não basta. Para que cumpra seu papel, a unidade de conservação deve ser efetivamente implantada, o que implica, no mínimo, a existência de plano de manejo, conselho gestor e consolidação territorial. Das 313 UCs federais - de responsabilidade da União, do Ministério do Meio Ambiente e, principalmente, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), 173 não têm plano de manejo, 60 não têm conselho formado e 297 não concluíram a consolidação territorial. Ou seja, a maioria delas está longe de cumprir efetivamente sua função: proteger o meio ambiente.

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Arquivo Pessoal

O procurador da República Leandro Mitidieri, integrante do grupo de trabalho do meio ambiente do Ministério Público Federal, indica riscos de privatização, sobretudo de parques nacionais. “Nós tivemos um número muito grande de unidades de conservação criadas no Brasil. Mas, o jogo está invertendo e passamos de uma posição de buscar a implementação dessas unidades a lutar para que elas não sumam, porque começou um ataque para que muitas delas fossem reduzidas, recategorizadas ou até extintas, em um ataque feroz, em várias frentes”, disse Mitidieri. Para o procurador, ainda impera no Brasil a visão do meio ambiente como entrave ao progresso, e não do desenvolvimento sustentável como a própria garantia de uma prosperidade econômica continuada. “É um modelo que destrói os recursos naturais em prol de crescimento concentrador e de progresso imediato e para poucos”, finalizou.

Vinícius Loures

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Já na bacia do Rio das Velhas, o ambientalista e conselheiro do CBH Rio das Velhas, José de Castro Procópio, alerta que áreas que deveriam ser protegidas sofrem, dentre outras questões, com ocupações ilegais, poluição, extrativismo ilegal, turismo predatório e com a falta de gestão e de fiscalização. “Um dos problemas mais sérios é a falta de conhecimento da população sobre as unidades de conservação e sua importância para a vida e produção de água. As UCs também sofrem interferências de indústrias, loteamentos imobiliários, mineração, são pressionadas por obras de infraestrutura como rodovias, sofrem um grande problema fundiário com as ocupações ilegais, além de poluição, extrativismo ilegal, turismo predatório, falta de fiscalização, gestão e planejamento entre muitas outras questões”.

Ex-gestor de UCs no IEF, Rogério Tavares pede novo traçado para o Rodoanel que respeite as unidades e os corredores ecológicos.

Sob ataque Instituído e protegido por lei, unidades de conservação da bacia do Rio das Velhas, como o Parque Estadual da Serra do Rola-Moça, Monumento Natural da Serra da Calçada, Parque Municipal da Serra do Curral, Monumento Natural Estadual Serra da Piedade, áreas do Sistema de Áreas Protegidas (SAP) Vetor Norte, bem como regiões de Mata Atlântica, Cerrado e de campos ferruginosos, são pressionados pela mineração, expansão imobiliária e mais recentemente pelo projeto proposto pelo governo de Minas Gerais para a construção do Rodoanel. São áreas que guardam abundante biodiversidade, constituídas por espécies da fauna e flora, além de mananciais que são responsáveis pelo abastecimento de água de boa parte da Grande Belo Horizonte. Uma das preocupações em relação ao projeto do Rodoanel é relacionada ao dano ambiental. O conselheiro do Subcomitê Ribeirão da Mata, Rogério Tavares, foi gestor de unidades de conservação por mais de 10 anos no Instituto Estadual de Florestas (IEF) e esclarece que o atual traçado do Rodoanel preocupa por impactar áreas de vegetação natural. “A alça sul passa por cima da Serra da Calçada e a alça norte causará impactos em mais de 20 áreas protegidas do SAP Vetor Norte onde se encontram diversas categorias de unidades de conservação, como monumentos naturais, áreas de proteção ambiental e parques estaduais, conservando o patrimônio natural e espeleológico”, explicou.

Para o procurador da República, Leandro Mitidieri, unidades de conservação sofrem pressão para que sejam reduzidas, recategorizadas ou até extintas.

Rogério Tavares diz que o traçado da nova malha viária precisa ser redesenhado. “Não somos contra a construção do Rodoanel, mas acreditamos que o traçado das alças precisa de um novo desenho que leve em consideração a integridades das unidades de conservação e que mantenha os corredores ecológicos, permitindo a dispersão de espécies, a recolonização de áreas degradadas, o fluxo gênico e a viabilidade de populações que demandam mais do que o território de uma unidade de conservação para sobreviver”, afirmou.


Cercadas

As Unidades de Conservação na Bacia do Rio das Velhas, os requerimentos minerários e o Rodoanel

1 Pedro Leopoldo

Lagoa Santa

Confins Taquaraçu de Minas

São José da Lapa

BRASíLIA

Vespasiano Ribeirão das Neves

Santa Luzia

8

VITÓRIA

Esmeraldas

2

Contagem Sabará

BH

Betim

Caeté

3 Ibirité

SÃO PAULO

Mário Campos

4

Sarzedo

6

5

Raposos

Nova Lima

7

Brumadinho

RIO DE JANEIRO

Rodoanel Rodovias atuais Requerimentos Minerários

Divisa de municípios RMBH

UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

UNIDADES DE CONSERVAÇÃO PRÓXIMAS AO RODOANEL

Bacia do Rio das Velhas

1 - Sistema de Áreas Protegidas (SAP) Vetor Norte

Parque

2 - Monumento Natural Estadual Serra da Piedade

Monumento Natural

3 - Parque Municipal da Serra do Curral

Estação Ecológica

4 - Parque Estadual da Serra do Rola-Moça

Área de Proteção Ambiental/Especial

5 - Monumento Natural da Serra da Calçada

Floresta Estadual

6 - Estação Ecológica de Fechos

Reserva Particular do Patrimônio Natural

7 - Estação Ecológica de Aredes 8 - APA Municipal Cachoeira da Lajinha

Rio Acima

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O traçado preliminar do Rodoanel apresenta quatro alças. As que mais preocupam são a alça sul, que vai sair da BR-040, na altura da Serra da Calçada, passar por Brumadinho e chegar à rodovia Fernão Dias, em Betim. Já a alça norte vai sair da Fernão Dias e vai até a BR-381, na saída para o Espírito Santo, na altura de Sabará e Caeté.

Conselheiro do CBH Rio das Velhas, Procópio de Castro destaca a importância dos corredores ecológicos como ligação entre as unidades de conservação.

A coordenadora do Subcomitê Águas da Moeda, Junia Borges, integrante do movimento “Fechos eu Cuido”, afirma que existe um conflito de interesses entre mineração e a preservação das unidades de conservação. “As UCs e suas zonas de amortecimento deveriam ser áreas onde os recursos naturais estão protegidos. No entanto, é cada vez mais comum vermos as unidades de conservação sofrerem interferências. Em Minas Gerais, especialmente na região do Alto Rio das Velhas, a mineração é um grande problema para essas áreas. Existe um conflito de interesse entre a extração de minério, a ocupação urbana e a conservação dessas áreas”, esclareceu.

Coordenadora do Subcomitê Águas da Moeda, Junia Borges é uma das lideranças do movimento “Fechos eu Cuido”, que propõe a expansão da Estação Ecológica de Fechos.

Fernando Piancastelli

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A Estação Ecológica de Fechos é uma das unidades de conservação pressionada pela mineração. Uma das características da região onde se encontra Fechos é a presença dos chamados aquíferos que são formações geológicas que criam uma espécie de caixa d’água natural. Eles retêm as águas subterrâneas que são disponibilizadas para a superfície por meio de afloramentos e nascentes. Daí surgem 14 dessas importantes fontes de água, classificadas como nascentes de Classe Especial (destinada ao abastecimento para consumo humano ou à preservação de espécies aquáticas), que estão no interior da unidade de conservação. Todas elas são fundamentais para o abastecimento de água na Grande BH.

Michelle Parron

A mineração é outra ameaça às unidades de conservação em Minas. De acordo com dados da Agência Nacional de Mineração (ANM), dos 41.165 processos minerários presentes em Minas Gerais, 657 incidem em UCs federais e 1.852 em unidades estaduais. No caso das zonas de amortecimento (área estabelecida ao redor de uma unidade de conservação com o objetivo de filtrar os impactos negativos das atividades que ocorrem fora dela), 324 processos de mineração incidem nas federais e 1.192 nas estaduais.

No entorno da Estação Ecológica de Fechos estão as minas de Capão Xavier, Capitão do Mato, Mar Azul, Minas Abóboras e Tamanduá, que pertencem à Vale. Em 2011, a mineradora apresentou aos órgãos ambientais o Projeto Vargem Grande, que visa ampliar a exploração de minério na região, expandindo suas atividades em Nova Lima, Belo Horizonte, Rio Acima e Itabirito. A documentação para a ampliação das cavas Capitão do Mato e Tamanduá encontra-se protocolada nos órgãos ambientais competentes para análise de concessão das licenças necessárias à sua implantação. Essa expansão impactará o abastecimento dos córregos Fechos e Tamanduá. Este último, junto com outros mananciais, abastece o ribeirão Macacos, importante afluente do Rio das Velhas, que é responsável por parte do abastecimento de água da população de Belo Horizonte. Ambientalistas e moradores estão agindo para garantir a preservação da biodiversidade e da manutenção da água de qualidade que brota dali. Para isso é fundamental que a área à sudeste de Fechos, a única adjacente à estação ecológica, não ocupada por loteamentos ou atividade minerária, seja preservada permanentemente. Por isso, o movimento “Fechos eu Cuido” luta pela preservação do entorno dessa unidade de conservação e propõe a expansão da Estação Ecológica de Fechos para garantir a preservação de ambientes de alta relevância e que contribuem para a produção de águas de excelente qualidade. “A proposta prevê expansão da área em 269,5 hectares. Lançamos um abaixo assinado eletrônico para apoiar o Projeto de Lei que tramita na ALMG. O nosso objetivo é manter a água em quantidade e qualidade ao expandir a Estação Ecológica de Fechos”, finalizou Júnia Borges. O abaixo assinado pode ser acessado pelo link institutocresce.org.br/ movimentofechoseucuido.


Comitê investe na proteção das UCs Pensando na importância de conservar áreas verdes na bacia para que se mantenha a biodiversidade e regiões de recarga hídrica, o CBH Rio das Velhas tem investido em projetos para a conservação das unidades de conservação. Com recursos da cobrança pelo uso da água, o Comitê já contratou Planos de Manejo para áreas de preservação ambiental, bem como estudos para a criação de corredores ecológicos. Em 2021, o CBH Rio das Velhas contratou o Plano de Manejo para a APA da Serra do Cabral, localizada em Lassance, da APA da Lajinha em Ribeirão das Neves - que corre o risco de ser cortado ao meio pelo Rodoanel - e do Parque Estadual Serra do Sobrado, localizado em São José da Lapa. Também já elaborou o Plano de Manejo do Parque Municipal das Andorinhas, onde se encontra a nascente do Rio das Velhas, em Ouro Preto.

Além disso, o Comitê contratou recentemente dois estudos de mapeamento de corredores ecológicos: um para as Unidades Territoriais Estratégicas (UTEs) Ribeirão da Mata e Carste e outro para a UTE Rio Taquaraçu, localizadas no Vetor Norte de Belo Horizonte, no Médio Alto Rio das Velhas. “Para o CBH Rio das Velhas as UCs são importantes para a conservação do manancial e devem estar integradas com as APPs [Áreas de Preservação Permanente], matas ciliares, fundos de vale, áreas de recarga, remanescentes florestais entre outros. E a formação e manutenção dos corredores ecológicos são essenciais para preservar a biodiversidade e aumentar a segurança jurídica das unidades de conservação”, explicou Procópio de Castro. Os projetos do Comitê podem ser acompanhados pelo Siga Rio das Velhas – siga.cbhvelhas.org.br – no módulo acompanhamento de ações.

Fernando Piancastelli

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Estação Ecológica de Fechos, em Nova Lima, é uma das unidades de conservação pressionada pela mineração na Bacia do Rio das Velhas.


Entrevista

“Para as novas lentes que o Brasil precisa, que venham de Minas e da experiência do Rio das Velhas” Ex-ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira fala à Revista Velhas sobre as crises hídrica e energética, do desmonte da governança ambiental e da admiração pelo engajamento em torno da revitalização do Rio das Velhas Texto: Luiz Ribeiro

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Justamente quando estava às voltas com as negociações sobre mudanças do clima com chefes de Estado de todo o mundo, a barragem de Fundão, em Mariana, na bacia do Rio Doce, se rompeu. Nesta entrevista exclusiva à Revista Velhas, ela relata como foram as primeiras providências tomadas sob o calor da tragédia e como costurou o modelo multistakeholder para, segundo ela, a restauração estritamente socioambiental do território. “Não tinha nada de indenização socioeconômica. Uma coisa é a reparação de dano, outra coisa é restauração do ecossistema. Deturparam o modelo”. Participando desde a década de 1980 do sistema de governança ambiental brasileiro, Izabella lamenta o desmonte do sistema público de gestão do meio ambiente. Ela compara o processo a uma infestação de cupins que destroem a estrutura por dentro sem que seja possível perceber o dano por completo. O novo Marco Legal do Saneamento Básico, contudo, sancionado pelo atual governo, é elogiado pela ex-ministra. “Extremamente importante, porque nós estamos falando de investimentos que dialogam com qualidade de vida, com tecnologia, com desenvolvimento regional e local, com saúde pública, e que permitem que o país saia dessa mácula”. Em 2013, Izabella ganhou o Prêmio Global “Campeões da Terra”, da ONU Meio Ambiente, pela sua contribuição para reduzir o desmatamento na Amazônia. Ela hoje é integrante na Organização das Nações Unidas (ONU) de diferentes grupos de debate sobre as mudanças climáticas e o futuro do mundo e da humanidade.

Ainda em 2019, a senhora e outros seis ex-ministros do meio ambiente, de diferentes espectros políticos, lançaram um comunicado alertando que a governança ambiental do Brasil estava sendo desmontada em afronta à constituição. Isso ainda antes da pandemia, que nas palavras do então ministro Ricardo Salles permitiria avançar mais na mudança de regramentos e simplificação de normas. Você acredita em alguma mudança na gestão ambiental brasileira com a saída de Ricardo Salles? Não, porque a política ambiental brasileira tem como regente mor o presidente. O que você pode é ter algum tipo de interlocução diferente do estilo do ex-ministro. Mas eu não acredito que mude, a não ser que seja por questões de natureza política, para poder dar sobrevivência ao governo. Mesmo assim isso não é autêntico porque o pensamento autêntico está aí, de passar a boiada, de desmontar a gestão ambiental pública no Brasil e, obviamente, fragilizar totalmente o Sistema Nacional de Meio Ambiente. Nelson Almeida / AFP

Ministra do Meio Ambiente entre 2010 e 2016, Izabella Teixeira foi uma das peças-chave para o Brasil no Acordo de Paris, em 2015, quando o país liderou a agenda e se comprometeu internacionalmente a reduzir suas emissões de gases de efeito estufa.


Izabella Teixeira hoje é integrante na ONU de diferentes grupos de debate sobre as mudanças climáticas e o futuro do mundo e da humanidade.

Martim Garcia / MMA

Página ao lado: Izabella Teixeira (a 3ª da direita para a esquerda) e outros seis ex-ministros do meio ambiente alertaram desmonte da governança ambiental brasileira em 2019.

Por isso, lá atrás, nós ex-ministros, ao percebermos as medidas e afirmações do governo [nos posicionamos e hoje] estamos vendo as consequências: aumento do desmatamento, invasão de terra indígena, violência no campo, acabaram todos os espaços da sociedade civil – a área ambiental sempre se estruturou sob três pilares: o lado da ciência, o pilar da participação social e a cooperação internacional; esses três pilares foram destruídos –, acabou com o Fundo Amazônia, acabou com a interlocução internacional, bloqueou tudo, derrubou tudo. Eu falo que nas instituições, por dentro, ocorre um fenômeno de ‘cupinização’. Você só tem a parte externa, quando for mexer mesmo está tudo fragilizado, tudo carcomido. Você comentou isso e, de fato, temos observado o enfraquecimento dos colegiados e da participação da sociedade civil na gestão ambiental. O que a gestão pública perde sem a participação dessas instâncias? Muito. Primeiro, nós vivemos em uma democracia, duramente conquistada. Um país democrático ele constrói as suas soluções e entende seus problemas a partir do diálogo com a sociedade. Um país continental como o Brasil, diverso, cheio de ambiguidades, cheio de desafios precisa [disso] mais do que nunca. Não tem gestor público eficiente, pode ser o cara mais competente do mundo, que se ele não conversar com a sociedade ele não entende, não só os problemas, como também a pluralidade de soluções que o Brasil pode adotar. Então para mim isso estabelece de cara uma miopia política sem precedentes, e é uma miopia política que impede que o Brasil enxergue o seu futuro porque tira a sociedade da sala. A sociedade é diversa? É. A sociedade tem ambiguidades? Tem. Esse é o processo, a democracia é dura.

A segunda coisa que eu acho que deriva disso é uma esterilização de projetos, porque você perde a capacidade de saber andar com aliados, você só vai caminhar com aqueles com quem você conversa, como parte da expressão da sociedade, que são os empresários que têm seus interesses muito pontuais. A interlocução com atores internacionais em que o diálogo com a sociedade civil é extremamente importante está tremendamente prejudicado, então na realidade isso provoca uma grande desconfiança dos seus pares, dos seus antigos aliados. Esse mundo está cada vez mais aberto. Ironicamente, quanto mais o mundo anda abrindo para a sociedade, para intervenção dos movimentos de várias gerações, o Brasil vai e fecha. O governo federal sancionou, em julho do ano passado, o novo Marco Legal do Saneamento Básico (PL 4162/19), que estabelece como meta o acesso de 99% da população à água potável e de 90% à coleta e ao tratamento de esgoto até dezembro de 2033. Como a senhora avalia esse Marco Legal? Eu sou da opinião de que tudo que gerar possibilidades e alternativas para você equacionar os passivos do Brasil você tem que colocar em prática e ajustar no que for necessário. Essa equação do saneamento foi resolvida pelos países desenvolvidos no século XIX e início do século XX, nós estamos um século em atraso. Então eu acho que você ter um Marco Legal que propicia o Brasil sair dessa inércia é extremamente importante, porque nós estamos falando de investimentos que dialogam com qualidade de vida, com tecnologia, com desenvolvimento regional e local, dialogam com a questão de saúde pública, com a questão ambiental, geração de empregos e permitem que o país saia dessa mácula de um país em desenvolvimento.

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Se você não é capaz de ser provedor de qualidade de vida ao seu cidadão, que país é esse? O Brasil tem que entender e se mover na direção de que você precisa de um bem-estar coletivo, você tem que ter uma linha de base de bem-estar coletivo. Tem que ter, nós temos que brigar por isso. Se o Brasil conseguir que todos os brasileiros mudem de patamar em 30 anos, ou 20 anos, você está dizendo que o país chega em 2050 com outra dimensão de status de desenvolvimento. Ótimo, acho bom. Agora, se é tudo privatizado, se vai aumentar a tarifa, se vai impactar... o Brasil vai ter que lidar com isso, não há poupança interna para isso. Nós temos que entender que tem que ter um equilíbrio nesse jogo e, para ter equilíbrio nesse jogo, você tem que fazer com que a maioria saia dessa inércia e, para isso, você tem que ter um kick off [pontapé inicial]. Agora, não é possível que a gente se conforme em viver mais ou menos, a gente tem que ambicionar o melhor para nós. E parar de levar 20, 25 anos para ter lei que atenda o bem-estar da sociedade brasileira. No início dos anos 2000, a recuperação do Rio das Velhas – com as metas de se nadar, pescar e navegar no rio – chegou a se tornar política de Estado em Minas Gerais. A meta integral não foi alcançada, mas algumas conquistas importantes sim, especialmente relacionadas ao saneamento da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Ainda assim, esse tipo de ação é raro. O que falta para a recuperação de rios e bacias hidrográficas se consolidar na agenda pública ambiental?

Então, se você tem um planejamento que é pactuado com a sociedade, você não deveria a cada governo, a cada prefeito eleito, mudar as coisas. Você deveria, sim, ter um pacto e cada governador eleito e cada prefeito cumprir uma parte

Leonardo Merçon / Últimos Refúgios

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O brasileiro perceber que a qualidade de vida dele tem a ver com isso. Nós temos também que romper uma questão cultural importante... se você vai os Estados Unidos, onde a água é privada, não é pública [aqui no Brasil é um bem público, portanto é de toda sociedade], qualquer literatura que a gente leia dos Estados Unidos, qualquer filme que a gente veja dos Estados Unidos, você repara que as casas são todas voltadas para os rios, mesmo das pessoas pobres. O rio, a natureza, é algo importante para ser contemplado. No Brasil você põe o rio nos fundos das casas e você joga fora o lixo, joga não sei mais o quê, como algo que não fosse ser visto.

desse pacto. A sociedade quer em 30 anos a bacia do Rio das Velhas recuperada? Vamos imaginar que essa seja a visão. Independentemente da bandeira política ideológica de prefeito, de governador etc.: esse é um assunto que dialoga com o bemestar de toda a sociedade. Você não precisa ser de direita, de esquerda, de centro, do céu. Não! Isso é um projeto que você deveria ser feito independentemente. A sociedade deveria estar cobrando os resultados de desempenho de cada governador e de cada perfeito e não programas rebatizados que paralisam tudo. Eu gosto muito da lei de recursos hídricos [nº 9.433/97] porque ela permitiu esse sentimento de olhar uma paisagem com essa integração de bacia. O cara que está em Ouro Preto, onde nasce o Rio das Velhas, tem o mesmo compromisso que o cara que está em Belo Horizonte, Diamantina ou Sabará. Você tem uma sensação de pertencimento, que o brasileiro valoriza pouco, porque nós somos um país continental, e esse sentimento de pertencimento leva ao sentimento importante na área ambiental de permanência. As soluções devem ser permanentes, elas devem crescer, ganhar escala e influenciarem de fato a qualidade de vida das pessoas. Eu acho que isso é um pouco a ideia de como é que a gente deve andar com a questão das bacias hidrográficas, com a recuperação de rios, entendendo essa coisa que o mineiro sabe muito bem: eu pertenço a esse lugar e eu permaneço nesse lugar. Há quem atribua que a crise energética que a gente vivencia hoje é também uma crise hídrica. O que a gente deve fazer a curto, médio e longo prazo para garantirmos segurança hídrica e segurança energética para o país? O que os especialistas dizem, e não sou eu, é que você tem uma mistura de crise hídrica e parece que insuficiências nas operações de manejo do setor elétrico na bacia do Paraná. Agora é óbvio que o Brasil está experimentando uma seca – não é só o Brasil, é o mundo. Estão aí as queimadas, o aumento de temperatura, os eventos extremos climáticos estão cada vez mais frequentes. Isso é verdade. Agora, você não explicar isso corretamente à população é que eu acho o erro. Se eu tenho uma crise hídrica em alguma região, qual é a situação dos reservatórios em todas as regiões do país? No Paraná [Bacia Hidrográfica do Rio Paraná], estamos com uma seca profunda, você vê o que está acontecendo com a própria Foz do Iguaçu, a fio d’água. Mas todos os reservatórios no setor elétrico estão comprometidos? De todas as hidrelétricas? Elas estão em baixa?

Rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, o maior desastre ambiental brasileiro, ocorreu durante a gestão de Izabella Teixeira à frente do ministério do meio ambiente.


Tem um problema de crise hídrica? Tem, circunscrito aqui, mas que afeta e vulnerabiliza o sistema. Estamos passando por uma crise com as pessoas sem compreender de fato a dimensão da crise e eu não vejo ninguém chegar e explicar que no Nordeste a situação não é tão crítica assim, mas nós temos que preservar porque o sistema é interligado, portanto você está despachando água para poder gerar energia para compensar questões no Sul, que você está ligando térmica ou vai importar energia da Argentina etc. Você explica às pessoas, você discute as estratégias, você mostra com transparência. Mas eu não estou vendo isso. O meu ponto é: você tem que incluir o cidadão desde o início, sem apavorá-lo, mas dando a ele a capacidade de agir, de discernir, de entender as dimensões do problema e sabendo seu papel em cada uma dessas dimensões. A senhora era ministra do meio ambiente quando ouve o desastre de Mariana. Como esse fato te marcou e como se optou pela criação de uma fundação para fazer a reparação dos danos? Foi um ano [2015] extremamente difícil porque nós estávamos entre os cinco países, junto com a França, que construíam a solução de Paris [Acordo de Paris, tratado no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima]. A preocupação imediata que se tinha – obviamente primeiro com as pessoas – era com a ruptura da hidrelétrica de Risoleta Neves. Eu liguei para o presidente da ANA [Agência Nacional de Águas], mandei todo mundo para o meu gabinete, deslocamos as equipes do Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], helicóptero do Ibama de fiscalização que estava na Amazônia, preparei as equipes de resgate e falei: vai todo mundo para lá para ver o que o estado precisa. E eu tive que ficar operando uma série de questões importantes para poder viabilizar esse aparato todo. Então emocionalmente, para mim, foram dois eventos. O que aconteceu em Mariana e o Acordo de Paris. A abertura do evento foi com o Al Gore [vice-presidente dos Estados Unidos entre 1993 e 2001], em Paris, ao vivo na Torre Eiffel, o Brasil no auge da questão climática. E quando terminou a transmissão ficamos sabendo do atentado de Paris [série de atentados terroristas ocorridos na noite de 13 de novembro de 2015, em Paris e Saint-Denis]. Isso em menos de dez dias. Então eu vivia duas tensões: andar com Mariana e negociar uma grande solução global sob a tensão do terrorismo. A história da fundação, na realidade, começa com o Sebastião Salgado e a Lélia [Wanick Salgado, do Instituto Terra], que vieram ao Brasil sugerir a criação de um fundo para a restauração do Rio Doce. Eles tiveram com a Presidente da República, depois tiveram comigo. Eu tinha experiência como subsecretária do Rio de Janeiro e eu já vivi situações em que, ao se colocar o dinheiro no setor público, a restauração ambiental não acontece. E a restauração ambiental não acontece em quatro anos, ela leva 20 anos. A solução é a longo prazo. E aí a discussão veio com os estados, com Minas e com o Espírito Santo, com a procuradoria-geral do estado, propondo que esse fundo tinha que ter um arranjo institucional. Foi proposta a criação de uma fundação, de modelo multistakeholder, para restauração socioambiental – não tinha nada de indenização socioeconômica. Uma coisa é a reparação de dano, outra coisa é a restauração do ecossistema. No final, já para criar a fundação, não sei de quem foi essa decisão, eu acho que foi um pedido dos governadores, o grupo que cuidava das questões socioeconômicas, de indenização, pediu e a AGU [Advocacia Geral da União] formatou a fundação trazendo isso. E eles colocaram isso tudo no conjunto da Renova,

que foi desenhada para ser uma instituição multistakeholder de restauração socioambiental. Então, deturparam o modelo. Acho também que a implementação da Renova não teve uma liderança para dizer de fato como seria aquele arranjo de governança, como funcionaria e asseguraria a não influência das empresas. O sistema de governança é multistakeholder, ele permite a visão de todos, mas tem que ter gestão, alguém tem que pegar e coordenar isso com vontade. O que mais destacaria para nós da bacia do Rio das Velhas? Acho que Minas é um estado extremamente estratégico para a questão de recursos hídricos e recursos ambientais, e é um estado que está no coração do Brasil. É um estado que é simbólico, não só da nossa história, mas ele está exatamente no centro, você olha como estrategicamente Minas pode irradiar soluções e, mais do que isso, ser muito mais afirmativo em relação a esse conceito de cidadania, de que os mineiros têm tanto orgulho. O mineiro tem muito orgulho de ser cidadão mineiro, ele gosta disso, ele não fica entre Rio e São Paulo, ele é Minas. Eu gosto muito disso, acho belíssimo do ponto de vista da construção de identidade e cidadania o orgulho que Minas tem com a sua terra e da relação com a sua natureza. Eu acho que a história dos recursos hídricos em Minas mostra essa conexão, e acho que agora o Brasil está precisando muito de conexão. Depois de todo esse desastre ambiental político que nós estamos vivendo nós vamos precisar nos conectarmos como brasileiros, como sociedade, e eu acho que isso passa seriamente por Minas. É um estado que conecta o Sul com o Norte, com o Nordeste, com o Centro-Oeste, ele está ali, ele vive isso. É um estado agrícola, por um lado, tem uma região muito rica, com soluções da pecuária ao café, com raízes muito profundas. O mundo está indo para a convergência de duas eras: a climática e a digital. Nós vamos viver esse século exatamente na convergência dessas duas eras. A pergunta que se coloca é qual a cidadania que emerge disso? É uma pergunta realmente importante, porque tem a ver com a qualidade da nossa democracia, tem a ver com o nosso comprometimento individual e coletivo, tem a ver com os espaços políticos que nós construímos como sociedade e se somos capazes de preservá-los ou não. De novo, não só o Comitê, mas o Rio das Velhas, o Rio Doce, mostram caminhos importantes, mostram esse engajamento que reconecta o Brasil. Então eu espero que Minas esteja contando essas histórias dos novos rumos do Brasil e que isso passe pelo Rio das Velhas e pelo Rio Doce. São aprendizados importantes não só pela tragédia, mas aprendizados pela capacidade de se reinventar, de se reorganizar. O Brasil vai precisar se reinventar, nós vamos precisar contar novas histórias sobre o futuro, nós vamos precisar ser solidários com o mundo. O Rio das Velhas e o Doce mostram isso, revelam pelas suas contradições, revelam pelos seus problemas, revelam pelas suas tragédias, mas revelam sim pela capacidade de entender o problema e ter capacidade de encarar para sair dessa situação. Então eu espero realmente que, quando esse Brasil se organizar, para essas novas lentes que o Brasil precisa, que uma delas seja de Minas e que venha da experiência do Velhas, venha da experiência do Doce, tenha essa pluralidade do Brasil que é tão importante para a gente voltar a ser essa gente bronzeada que mostra o seu valor. Ela está aí, daqui a pouco ela volta para a cena e daqui a pouco ela está de volta ao mundo de um jeito muito criativo, muito inovador, de que o mundo precisa.

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“Escrevo a canoa, lenha da terra inundada”

Olhares

‘Mulher Canoa’ e ‘Mulheres Geológicas’, séries da artista Julia Panadés, tratam das questões do feminino, da ancestralidade, dos modos diferentes de vida e da relação com a natureza

Texto: Ohana Padilha Fotos: Bianca Aun

Julia Panadés é artista, professora e escritora. Nasceu e cresceu em Belo Horizonte, tendo vivido parte de sua juventude na cidade de São Paulo. A figura humana é um tema presente no seu trabalho, abordando a transformatividade das formas de vida e as relações existentes na criação de um corpo.


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Graduada em Artes Plásticas pela Escola Guignard da Universidade do Estado de Minas Gerais, mestre em Artes Visuais e doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais, Julia é também professora, editora de livros e já participou de diversas exposições artísticas. Ela conta que a arte sempre a acompanhou desde criança. Com papéis, tintas e muitas inspirações, a artista dá forma às suas criações com diferentes técnicas. Seu trabalho já atravessou por várias linguagens, como o tecido, bordado e a costura, mas o desenho sempre esteve presente no seu fazer artístico. Tempos depois, na época do seu mestrado, a sua atração pela palavra se transformou em escrita e passou a fazer parte do seu processo criativo. Segundo a artista, as séries ‘Mulher Canoa’ e ‘Mulheres Geológicas’ têm uma relação com os desenhos de criação que faz há mais de 20 anos e que, agora, ganhou algumas variações. “As séries, em especial, surgiram pelo impacto planetário do momento que a gente vive. Eu me afeto muito por essa condição desleal com a nossa própria vida e dessa maneira violenta na relação com o ambiente, a natureza, de outras formas de vida ao redor e de outros modos de existência”, diz. ‘Mulher Canoa’ foi criada anos atrás a partir da indignação e do incômodo da artista frente ao projeto de transposição do Rio São Francisco. Em um momento de revolta e de impossibilidade de deter a mega intervenção, Julia escreveu em seu diário e, a partir de um trecho, nasceu a obra.

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“Como é impossível transpor o rio sem matar os índios. Escrevo a canoa, lenha da terra inundada” “Eu sinto que a imagem da canoa traz uma síntese de alguns elementos que penso que sejam vitais. Traz essa anterioridade de um modo de vida, mas também alguma coisa que é póstuma. Um conhecimento que é muito anterior à nossa lógica atual que tem a ver com o fluxo que as águas correntes trazem e tem também a ver com as gerações”, destacou Julia. Como desdobramento da ‘Mulher Canoa’ surge a série ‘Mulheres Geológicas’, que traz também o conceito das montanhas de Minas Gerais e do fluxo dos rios nas formas e na cor. Para além disso, as mulheres grávidas, com seios e barrigas aparentes e crianças acopladas, trazem o sentido da gestação e do nascimento, conceitos que são profundamente estudados e abordados pela artista. “A mulher que guia, a mulher que dá a vida. Relação direta com a continuidade sobre as obras inacabadas que somos como espécie que não tem como avançar se não tiver uma mulher gestando”, explicou. Com o traço que cria, com a aquarela que dá a forma e por seu expressar, Julia Panadés nos provoca a refletir e a contemplar novas maneiras de se viver com a água que corre, com o valor da ancestralidade, sobre o real sentido da vida e as singelezas das relações. Feche os olhos. Depois abra. Sinta. Aprecie.


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Bianca Aun

Estiagem

Por que está chovendo menos? Texto: Luiz Ribeiro

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Nos últimos anos, precipitações foram inferiores à média histórica na bacia do Rio das Velhas e no Brasil Central como um todo. Dois principais fenômenos explicam a redução de chuvas, segundo pesquisador.

Pela primeira vez na história, o Sistema Nacional de Meteorologia (SNM) emitiu um Alerta de Emergência Hídrica no território brasileiro. Associado exclusivamente à escassez de precipitação, o alerta vale para a bacia do Rio Paraná – que abrange, além de Minas Gerais, porções dos estados de São Paulo, Goiás, Mato Grosso do Sul e Paraná – para o período de junho a setembro. O déficit de chuvas atual é considerado severo, segundo a nota também assinada pelo Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (CENSIPAM), com a participação de todos os órgãos federais ligados à meteorologia. Mas por que tem chovido menos? De acordo com o cientista Paulo Artaxo, doutor em física atmosférica pela Universidade de São Paulo (USP), dois principais fenômenos explicam a falta de chuvas no Brasil.


Shutterstock

O Aquecimento Global Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), das Nações Unidas, lançado em agosto deste ano, aponta: as mudanças climáticas já estão entre nós, ocorrendo de modo rápido, generalizado e, em alguns casos, já podem ser irreversíveis. “A influência humana aqueceu o clima a uma taxa que não tem precedentes pelo menos nos últimos 2 mil anos”, alertam os cientistas no sumário. A temperatura da superfície global aumentou mais rapidamente desde 1970 do que em qualquer outro período de 50 anos, pelo menos nos últimos 2 mil anos. A temperatura do planeta hoje é cerca de 1,09ºC maior que a observada no período de 1850 a 1900. Pela primeira vez o IPCC estima quanto desse aquecimento é culpa humana, e conclui que, assustadoramente, é a maior parte: 1,07ºC.

Segundo o cientista Paulo Artaxo, as alterações globais de temperatura e ciclo hidrológico estão impactando o Brasil fortemente, reduzindo as chuvas principalmente no Nordeste brasileiro e na região central. “O clima do planeta como um todo está mudando, nós estamos alterando a circulação atmosférica e as massas de ar muito mais secas, comparadas com as que chegavam há 20, 30 anos atrás, estão atingindo o Brasil Central e o Nordeste brasileiro. São duas áreas fortemente atingidas pela redução da precipitação e isso tem impactos no ecossistema e na sustentabilidade dessas regiões”. Atualmente o aquecimento global é causado principalmente por emissões da queima de combustíveis fósseis, como carvão, petróleo e gás natural. Estima-se que 83% de todos os gases de efeito estufa lançados na atmosfera vêm da queima de combustível fóssil e 17% das emissões globais vêm de desmatamento de florestas tropicais. O Brasil é de longe o maior emissor de gases de efeito estufa por causa do desmatamento, segundo Artaxo.

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Segundo cientistas, 83% de todos os gases de efeito estufa lançados na atmosfera vêm da queima de combustível fóssil.


Inequivocadamente, a Amazônia joga um papel muito importante no ciclo hidrológico do país inteiro e, em particular, no Brasil Central. É o que afirma Paulo Artaxo. “A Amazônia é um gigantesco processador de vapor de água e hoje nós já desmatamos cerca de 19% da área original da floresta. Trabalhos recentes apontam claramente que a Amazônia está num processo de transição, se transformando de um enorme absorvedor de carbono, que era há 10, 15, 20 anos atrás, em uma fonte de carbono para a atmosfera global”. A situação de fato é preocupante. A taxa anual de desmatamento da Amazônia, calculada via monitoramento de satélite pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (taxa Prodes), voltou a crescer a partir de 2015, saltando para mais de 11 mil quilômetros quadrados em 2020. “Com isso, reduz-se a evapotranspiração e, consequentemente, as chuvas vento abaixo, que são carreadas pelos ventos alísios, que vêm desde o Equador até o Brasil Central e o Sul do Brasil. Hoje já há uma documentação muito forte e muito clara do ponto de vista da ciência que aponta como essas mudanças já estão impactando a sociedade brasileira como um todo”, explica Artaxo.

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Por onde passam, esses ventos, se forem úmidos, trazem chuva – daí o nome popular de rios voadores, que os cientistas chamam de Ventos de Zona de Convergência do Atlântico Sul.

Estudos indicam transição na Amazônia: de enorme absorvedor para fonte de carbono para a atmosfera global.

Greenpeace

O desmatamento da Amazônia


Umidade vinda do oceano com os ventos provoca chuvas na Amazônia e região central

Infográfico: Clermont Cintra

Como os rios voadores causam chuvas no Brasil?

Ventos alísios (leste para oeste)

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Amazônia

Os ventos “batem” na região montanhosa da Cordilheira dos Andes e “fazem a curva” em direção à região central.

Centro Oeste

Sudeste

Oceano Atlântico Sul

Fonte: Prof. Pedro Côrtes/IEE/USP


6 meses de agonia no Rio das Velhas CNPq

Com exceção de 2020, todos os anos de 2012 para cá, na Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas, registraram chuvas abaixo da média histórica. Com a combinação de pouca chuva, insuficientes áreas verdes para recarga e alta demanda pelo uso da água, seja para abastecimento humano ou indústrias, o rio tem sofrido ano a ano com baixas vazões. Em 2021 não foi diferente. Responsável pelo abastecimento de metade da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), o Rio das Velhas entrou em estado de alerta, ainda ao final do mês de julho, no ponto de captação da Copasa, no Sistema Bela Fama, em Nova Lima – com vazões médias na faixa de 10 m³/s. O estágio é o último antes da necessidade obrigatória de restrição de uso da água. As baixas vazões do Rio das Velhas chamaram a atenção ao longo de praticamente todo o ano. Ainda no começo de maio, o manancial já se encontrava em estado de atenção – que antecede a situação crítica de escassez hídrica e seu estado de alerta. “Acompanhamos de forma sistemática a situação das vazões do Rio das Velhas e o cenário atual [2021] tem se mostrado pior em relação aos últimos anos. Já no início da época de estiagem a situação do Rio das Velhas era extremamente preocupante. Normalmente os meses críticos são julho, agosto e setembro. Este ano, já no início de maio o Velhas pedia socorro”, afirma a presidenta do CBH Rio das Velhas, Poliana Valgas.

Cientista Paulo Artaxo é doutor em física atmosférica pela USP.

Apenas no início da estiagem, Rio das Velhas já registrava vazões significativamente baixas em 2021.

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Bianca Aun

Para evitar que a situação piorasse e chegasse ao racionamento, o Comitê – por meio do Grupo de Controle de Vazão do Alto Rio das Velhas (Convazão) – mediou o planejamento integrado das defluências dos reservatórios na região, em parceria com a Copasa, Cemig e AngloGold Ashanti, visando a regularização das vazões e o direito de acesso de todos aos recursos hídricos. O Convazão vem articulando, também, uma pactuação com os usuários que possuem reservatórios na região, para implementação de um sistema integrado de gestão de vazões de contribuição, que serve de aporte para regularização do rio nos períodos de maior estiagem.

Precipitação (mm)

Precipitação Anual acumulada na Bacia do Rio das Velhas* 1500 1400 1300 1200 1100 1000 900 800 700 600 500 400 300 200 100

Média Histórica 1295 mm

2012

2013

2014

2015

2016

2017

* Área aproximada da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas. (45ºW a 42.5º / 17.5º a 20ºS)

2018

2019

2020

Dados: CPTEC/ INPE


Já com baixa vazão, Rio das Velhas recebe pequeno aporte do Ribeirão Macacos pouco antes do Sistema Bela Fama captar mais da metade de suas águas para abastecer a RMBH.

Léo Boi

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Só chuva basta? O regime de chuvas é fundamental para a segurança hídrica e garantia de usos múltiplos da água. De todo modo, os especialistas afirmam: não basta somente chover, é preciso que essa água se acumule no solo. É imprescindível que haja um sistema de produção natural de água operando com eficiência, com a existência de um solo geologicamente íntegro, com matas, áreas de recargas e nascentes preservadas. “As plantas, no seu funcionamento básico, são responsáveis por uma série de serviços ecossistêmicos de manutenção dos mananciais hídricos que são absolutamente estratégicos. No Cerrado brasileiro, por exemplo, certamente a eliminação da vegetação nativa impacta negativamente no ciclo hidrológico da região do Brasil Central”, destaca Artaxo.

Para a presidenta do Comitê, a situação alarmante de baixas vazões do Rio das Velhas tem sido recorrente e evidencia, de fato, que o problema não é só mais a falta de chuva. “Só chover não adianta, nosso problema maior é de recarga. O Rio das Velhas está sendo sacrificado e precisamos pensar em ações que o ajudem a manter sua resiliência, que vem diminuindo cada vez mais. O Alto Rio das Velhas é a região que produz água para abastecer a RMBH e é também onde existem grandes atividades extrativistas”, conclui Poliana Valgas.


Estiagem

De perene a intermitente Desaparecimento das águas do Rio Bicudo durante a estiagem tornou-se comum nos últimos anos 42

Texto: Luiza Baggio Fotos: Léo Boi


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Afluente do Rio Bicudo, Córrego da Mariquita é mais um na região totalmente seco.


Assolados pela estiagem, vários rios estão vendo suas águas sumirem devido a longos períodos sem chuva, mas também por intensa exploração humana, representada por captações para irrigação, perfuração descontrolada de poços artesianos que sugam o lençol freático e o avanço do desmatamento. Essa é também a realidade do Rio Bicudo, fundamental para a vida nos municípios de Morro da Garça e Corinto e para o Baixo Rio das Velhas, sendo um dos principais afluentes em sua margem esquerda. Um manancial que sofre, ano após ano, com a estiagem. A superexploração e a degradação da bacia ligam o alerta para o Bicudo que deixa de correr quando não chove. O Rio Bicudo percorre aproximadamente 150 km desde a sua nascente, em Morro da Garça, até a foz, no distrito de Beltrão, em Corinto. O temor da população local é de um processo gradativo de piora ou mesmo de colapso, caso nenhuma atitude seja tomada. O morador de Corinto e conselheiro do CBH Rio das Velhas e Subcomitê Rio Bicudo, Leandro Vaz Pereira, afirma que há pelos menos seis anos a população da região tem passado por essa dura experiência. “Tudo parecia indo bem no Bicudo quando de repente ele secou. O que era um grande rio foi se encolhendo e diminuindo até ficar cortado em 2015. De lá para cá essa situação se repetiu em todos os anos. O manancial seca no período de estiagem, quando vira um caminho de gado, como dizem por aqui”, declarou.

Polignano afirma que é preciso melhorar a gestão da bacia. “O rio é uma consequência e o somatório da gestão do território. O Bicudo é um bom exemplo de um rio que já teve um volume de água expressivo e que se tornou intermitente, deixando de ter vazão. Muitos usuários na cabeceira retiram um volume considerável de água no Bicudo, o que contribui para a escassez. É um conflito não resolvido! As outorgas precisam ser mais limitadas e conscientes, para preservar as áreas de produção”, finalizou. Para o coordenador do Subcomitê Rio Bicudo, Luiz Felippe Maia, é preciso agir. “Há anos o Rio Bicudo virou intermitente. As matas ciliares foram degradadas e seu leito assoreado. O rio tem apresentado dificuldade para atender a todos. Precisamos agir para que as próximas gerações tenham água”, afirma.

Leandro Vaz Pereira diz que nos últimos seis anos a situação de escassez no Bicudo tem se agravado.

A solicitação foi motivada por um estudo contratado pelo Comitê que analisou os usos de recursos hídricos sobre as vazões disponíveis em toda a bacia. “Fomos a campo analisar todas as outorgas da bacia do Rio Bicudo para verificar quais estão ou não em uso. Constatamos que o valor total outorgado é superior ao limite possível. No entanto, nem todas as outorgas estão em uso”, disse o coordenador do estudo realizado pela Irriplan Engenharia, Heider Venâncio Silva. Por meio do levantamento de usuários de água e dos usos outorgados, o trabalho concluiu que a demanda concedida pelo estado excede a oferta de água do Bicudo em 506%. Além disso, o Plano Diretor de Recursos Hídricos (PDRH) da Bacia do Rio das Velhas reitera que as demandas e os consumos são superiores à disponibilidade hídrica da UTE Rio Bicudo, agravada por perfurações indiscriminadas de poços artesianos e barramento dos cursos d’águas, o que colabora para o agravamento da escassez hídrica. No entanto, o IGAM não deferiu o pedido do CBH Rio das Velhas. A análise do instituto sustenta que a bacia do Rio Bicudo tem, atualmente, 25,4% de sua vazão outorgada. O órgão informa que a situação de conflito é configurada quando há comprometimento total da vazão outorgável e, portanto, não apresenta os critérios necessários para a emissão da Declaração de Área de Conflito.

Michelle Parron

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A situação preocupa o CBH Rio das Velhas, que solicitou ao Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM), no ano de 2018, a declaração de conflito pelo uso da água na Unidade Territorial Estratégica (UTE) Rio Bicudo. A declaração de área de conflito é utilizada em bacias nas quais a disponibilidade hídrica é menor que a demanda dos usuários.

Para o secretário do CBH Rio das Velhas, Marcus Vinícius Polignano, a situação é grave. “O que acontece é que temos mais demanda do que rio para entregar na bacia do Bicudo. Um descontrole em relação às outorgas. O estado vai outorgando sem saber da capacidade de produção do rio, o que tem exaurido o curso d’água. Todo mundo quer água, mas poucos investem na produção de água e conservação da bacia”, declarou.

Captações para irrigação, perfuração descontrolada de poços artesianos e avanço do desmatamento são os principais fatores de pressão na bacia do Rio Bicudo.


Córrego da Mariquita, afluente do Rio Bicudo

506% a mais de água concedida pelo Estado (outorgas) do que o limite disponível.

500

400

45

300

200

100

Águas em abundância no Rio Bicudo somente próximo à foz, no seu encontro com o Velhas.


CBH Rio das Velhas já construiu 678 bacias de contenção de água da chuva na região.

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Quer saber mais sobre a crise hídrica no Rio Bicudo? Assista ao vídeo:

bit.ly/seca-riobicudo


Barraginhas plantam água na bacia do Bicudo Para mudar a triste realidade da bacia do Rio Bicudo, o CBH Rio das Velhas tem investido em projetos hidroambientais no território com a construção de bacias de contenção de água da chuva, mais conhecidas como barraginhas, que retêm a água da chuva, permitindo que ela se infiltre no solo. Até o momento, o Comitê investiu em dois projetos de recuperação hidroambiental na região, um realizado em 2015 e outro em 2019, totalizando a construção de 678 barraginhas.

Coordenador do Subcomitê Rio Bicudo, Luiz Felippe Maia aponta degradação das matas ciliares e assoreamento do leito.

Um estudo realizado em 2021 pela Agência Peixe Vivo constatou que as barraginhas construídas nas localidades rurais da bacia do Rio Bicudo são capazes de promover reduções nas vazões de pico nos cursos d’água a jusante dessas intervenções, e o consequente aumento na infiltração das águas pluviais no solo da bacia hidrográfica. “As barraginhas captam as águas das enxurradas e permitem sua lenta infiltração no solo, entre uma chuva e outra, para reabastecer os mananciais subterrâneos, aumentar a permanência da água no solo e promover a revitalização de nascentes na bacia hidrográfica. Sendo assim, elas vão ajudar a mudar a realidade de escassez hídrica, plantando água na bacia do Rio Bicudo”, esclareceu Flávia Mendes, coordenadora técnica da Agência Peixe Vivo. O projeto prevê colocar em prática dois tipos de tecnologias já conhecidas. Uma é o círculo de bananeiras, que trata das águas usadas dentro das casas, como em pias, tanques e chuveiros, as chamadas águas cinzas, e envolve o custo médio de R$ 100 reais por círculo. A outra é o tanque de evapotranspiração (TEvap), com custo médio de R$ 1 mil, o sistema que pode ser construído utilizando materiais de construção civil e pneus para tratar a água dos sanitários. Cada uma das tecnologias pode atender uma família de até 5 pessoas.

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Unidades Territoriais

Tudo é água Os percursos do Córrego Santo Antônio e do Ribeirão Maquiné até desaguarem no Rio das Velhas Texto: Ohana Padilha

Fernando Piancastelli

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Rio Santo Antônio próximo à foz do Rio das Velhas


MAPA DE LOCALIZAÇÃO UTE SANTO ANTÔNIO MAQUINÉ

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LEGENDA

Nascentes revitalizadas Inumutaba Curvelo

O território que abriga o Córrego Santo Antônio e o Ribeirão Maquiné compreende os municípios de Curvelo e Inimutaba, estando na parte central de Minas Gerais e no Médio Baixo Rio das Velhas. Da junção dessas duas importantes sub-bacias nasce a Unidade Territorial Estratégica (UTE) Santo Antônio-Maquiné, subdivisão de planejamento e gestão da bacia do Velhas. O lugar guarda histórias da época dos desbravadores, destacase pelo desenvolvimento de diversas atividades econômicas e pela cultura mineira muito peculiarmente enraizada na vida das pessoas que por lá moram. Historicamente, por volta do século XVIII, às margens do Santo Antônio, viajantes e desbravadores que subiam e desciam os Rios das Velhas e São Francisco em busca de riquezas naturais tinham o córrego como local de passagem e pouso. Nessas idas e vindas, uma humilde capela foi se erguendo dando origem a um núcleo populacional. Com um padre baiano chamado Antônio Corvello de Ávila, o povoado foi se desenvolvendo nas imediações do atual município de Curvelo.

Também às margens do Córrego Santo Antônio, no século XIX, havia a Fazenda Santo Antônio, que deu início a uma formação de várias outras fazendas. O local passou a ser chamado de Fábrica da Cachoeira, ou simplesmente Cachoeira, até virar o município de Inimutaba, ao lado de Curvelo. O Santo Antônio nasce no município de Curvelo nas proximidades da BR-040. Depois corre pela cidade até receber as águas de dois importantes afluentes: os córregos Santa Maria e Riacho Fundo. Adiante corta o município de Inimutaba até deixar as suas águas no Rio das Velhas. Já o Ribeirão Maquiné nasce nos limites de Curvelo e nas proximidades do município de Cordisburgo. Atravessa o caminho entre as duas cidades até também desaguar no Velhas.

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Diogo Carvalho tem 28 anos e é nascido e criado em Curvelo. Tem memória do Córrego Santo Antônio de quando era criança, quando via o rio passar e marcar momentos de sua infância. “Tenho uma relação muito próxima com o Córrego Santo Antônio. Minha avó paterna mora pertinho dele, então cresci indo aos finais de semana à casa dela, que ficava na beira do rio mesmo, poluído, brincando com meus primos. Lembro que ele [Córrego Santo Antônio] sempre foi um lugar de despejo, de esgoto, e com às margens sempre afetadas por queimadas e desmatamento”. Já adulto, Diogo se mudou para a capital do estado e as visitas à terra natal passaram a ser mais esporádicas. “Nas minhas idas e vindas entre Curvelo e Belo Horizonte fiquei sabendo que parte do esgoto tinha sido interceptado e, quando cheguei perto dele, novamente vi a água do rio transparente, com peixinhos dentro e com a mata ciliar mais preservada. Isso me deu um otimismo para a volta da vida no rio”.

De acordo com o Plano Diretor de Recursos Hídricos (PDRH) da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas, as atividades econômicas mais significativas da Unidade Territorial Estratégica (UTE) Santo Antônio-Maquiné são os serviços e a atividade agropecuária. Nesse contexto, os principais agentes de degradação advêm de cargas difusas geradas pelas atividades agrossilvipastoris e minerárias e dos lançamentos de esgotos domésticos e efluentes industriais. O conselheiro do Subcomitê Santo Antônio-Maquiné e representante do Sindicato dos Produtores Rurais de Curvelo, Marco Aurélio Machado, fala sobre as atividades econômicas do município. “A maior atividade é a agropecuária de corte com uma boa qualidade de carne e boas tecnologias aplicadas.

Fernando Piancastelli

Ao longo dos anos, Diogo Carvalho pôde observar mudanças na qualidade do Córrego Santo Antônio.

Fernando Piancastelli

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Bianca Aun

A vivência de Diogo reflete em parte a relação das pessoas da região com os cursos d’água e sobre como esses impactos históricos estão tão marcados na convivência da população com os rios.


Fernando Piancastelli

Também somos o 12º município produtor de leite do estado”, ressaltou. A silvicultura – prática que estuda as maneiras naturais e artificiais de restaurar e melhorar o povoamento nas florestas para atender ao mercado – também é notória na região. “O reflorestamento gera empregos na cidade. As produções de leite e carne geram emprego para as pessoas, há também pequenos produtores que fazem parte da economia”, destacou Marco Aurélio. Sobre os impactos, o conselheiro informou que as atividades têm os seus efeitos tanto para produzir carne e leite, quanto para gerar alimento para os animais. Mas salientou que nos últimos anos não tem havido expansão das áreas e que, por isso, quase não há novos desmatamentos no município. Ele destacou também um aumento da eficiência das atividades, o que faria cada hectare produzir mais leite e carne. Ainda segundo o Plano Diretor de Recursos Hídricos, 74,4% do uso do solo da região é representado pela agropecuária e 14,1% por cobertura natural com vegetação arbustiva. Um dos principais impactos decorrentes da atividade agropecuária é o favorecimento de processos erosivos, em decorrência da remoção da cobertura vegetal e exposição do solo.

Marco Aurélio Machado é conselheiro do Subcomitê Santo Antônio-Maquiné e representante do Sindicato dos Produtores Rurais de Curvelo.

Para ver o rio correr As sub-bacias do Córrego Santo Antônio e do Ribeirão Maquiné, com todos os seus afluentes, nascentes aparentes e sua riqueza natural são essenciais para as atividades da região – e, também, para o Rio das Velhas, que recebe suas águas. Para ver as águas correrem em qualidade e quantidade pelo lugar, o CBH Rio das Velhas já investiu na construção de 301 bacias de contenção, popularmente conhecidas como barraginhas, no cercamento de quase 3.500 metros de áreas protegidas, serviços de desassoreamento e controle de erosões, plantio de mais de 8 mil mudas, além de ações de mobilização social e educação ambiental nos municípios de Curvelo e Inimutaba.

Bianca Aun

Também conselheiro no Subcomitê local, Christian Rodrigues é um dos responsáveis pela melhora no efluente que é despejado no Córrego Santo Antônio.

Silvicultura é uma das principais atividades econômicas na região e que também traz impactos aos recursos hídricos.

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Atualmente está sendo elaborado um estudo sobre o projeto de recuperação de áreas degradadas e de conservação e manejo adequado do solo em áreas rurais no Ribeirão Maquiné. A expectativa com o projeto é ver o curso d’água revitalizado e produzindo mais água. O território também conta com os investimentos do Programa Pró-Mananciais da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa).

Água de qualidade e em quantidade

Marco Aurélio, que também é o coordenador do Coletivo Local de Meio Ambiente (Colmeia), grupo formado nos municípios que recebem o Programa Pró-Mananciais, explicou que umas das diretrizes do programa é optar por um manancial a ser revitalizado. Assim, o Colmeia de Curvelo optou pelo Córrego Santo Antônio, que já recebeu o plantio de mudas em áreas degradadas, a recuperação e o cercamento de nascentes. Também já foi realizada a construção de barraginhas e atividades de educação ambiental nas escolas estaduais e municipais da cidade.

Quando indagado sobre a crise hídrica atual, Christian Fabiano de Sá Rodrigues, técnico em tratamento de esgoto da Copasa de Curvelo e conselheiro do Subcomitê Santo Antônio-Maquiné, informa que há disponibilidade hídrica para o abastecimento na região, o qual é realizado por poços profundos, mas alerta sobre como as alterações no regime de chuvas impactam a captação. “Precisamos das chuvas para as recargas hídricas, pois as águas para o abastecimento vêm de poços profundos localizados em locais estratégicos em que são captadas e depois encaminhadas para as residências”, destacou. Christian também ressalta que a revitalização e o reflorestamento no entorno das galerias dos poços são fundamentais para a recarga hídrica e para a garantia de água para a população. É importante destacar que a região não possui Unidade de Conservação e nem áreas prioritárias de conservação, como observado no PDRH.

Primeiro a coordenar o Subcomitê Santo Antônio-Maquiné, Vicente do Carmo diz que colegiado trabalha pela produção de água.

Michelle Parron

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De acordo com o Plano Diretor de Recursos Hídricos, a região do Santo Antônio-Maquiné conta com a captação de água para o abastecimento de 100% dos municípios de Curvelo e Inimutaba, ambos possuindo tratamento de água com desinfecção e fluoretação.

Desde 2011, a Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) de Curvelo está em operação e trata cerca de 90% do esgoto que é produzido pela população. Mesmo com esse número considerado satisfatório, o esgotamento sanitário na cidade há alguns anos tornou-se motivo de preocupações por parte da população curvelana. Isso porque o Córrego Santo Antônio, onde o efluente gerado é despejado, tem registrado cada vez mais vazões significativamente baixas, não conseguindo diluir o que é liberado da ETE. Para melhorar esse cenário e atender as necessidades ambientais da região, a Copasa tem investido. “Foram intensificadas as pesquisas para melhorar ainda mais o efluente da estação, não só para atender a legislação, mas também para possibilitar a evolução do tratamento de esgoto”, informou Christian.

No imaginário de Guimarães Rosa

Foz do Córrego Santo Antônio em seu encontro com o Rio das Velhas.

Descritos nas obras literárias do escritor mineiro João Guimarães Rosa, os municípios de Curvelo e Inimutaba fazem parte do Circuito Turístico Guimarães Rosa. A iniciativa de cunho literário surgiu a partir da paixão das pessoas pelo trabalho do escritor.

“(...) CURVELO vive, Curvelo se faz presente, como se fosse bem um de seus centros – sede, núcleo, pólo de cristalização de sua área de paisagens: “cidade capital” da minha literatura”. Trecho da ‘Carta de Guimarães Rosa’, no livro ‘Joãozito: Infância de João Guimarães Rosa’.

Fernando Piancastelli

No circuito são realizadas expedições, caminhadas, contação de histórias e outras atividades nos locais que foram inspirações para as obras do autor. Também fazem parte do circuito os municípios de Araçaí, Buritizeiro, Corinto, Felixlândia, Morro da Garça, Pirapora, Pompéu, Ponto Chique e Presidente Juscelino.


Subcomitê Santo Antônio-Maquiné

Para ver os mananciais da região com água de qualidade, a Copasa segue aprimorando sua tecnologia com um póstratamento físico-químico com adição de um coagulante orgânico, que visa melhorar ainda mais a qualidade do efluente.

Para conhecer mais sobre a realidade do território, promover a troca de experiências e gerar mais conhecimento, o CBH Rio das Velhas já realizou na região o VI Encontro de Subcomitês, o Seminário Revitaliza Rio das Velhas e a 104° Reunião Plenária – que fizeram parte da programação da Semana Rio das Velhas em 2016, 2018 e 2019, respectivamente.

Além da consolidada pecuária de corte, Curvelo é o 12º município produtor de leite no estado.

O Subcomitê Santo Antônio-Maquiné, vinculado ao CBH Rio das Velhas, tem o objetivo de tornar o Comitê mais próximo e atuante no território. Assim, de forma coletiva e participativa, o Subcomitê discute maneiras de compatibilizar o equilíbrio ecológico com o desenvolvimento econômico e socioambiental do local.

Vicente do Carmo, conselheiro do Subcomitê Santo AntônioMaquiné, foi o primeiro coordenador do colegiado e ressaltou a importância da mobilização no lugar. “Foi uma oportunidade muito boa da gente se envolver e se comprometer mais com a produção de água. Nós partimos da premissa que precisamos de muita água aqui e nos envolvemos de tal maneira que o grupo foi se fortalecendo e o Subcomitê desenvolveu uma parte muito bacana na região”, destacou.

Michelle Parron

Fernando Piancastelli

Atualmente, a ETE de Curvelo conta com um tratamento de esgoto avançado. “Temos um efluente com uma remoção de carga orgânica muito acima da legislação. Percebemos que o efluente clarificado contribui com a vida do córrego, pois nesse período [de estiagem] o esgoto tratado é o que dá fluência ao Córrego Santo Antônio a jusante da estação de tratamento de esgoto de Curvelo, passando por Inimutaba, até chegar ao Rio das Velhas”, explicou.

Plenária comemorativa do CBH Rio das Velhas em 2019 aconteceu em Curvelo.

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Fernando Piancastelli

Mais de 300 barraginhas já foram construídas pelo CBH Rio das Velhas na região.


Perfil

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José Geraldo Silvério, o Zezinho: vontade de defender o rio apareceu primeiro na forma de verso.


Zezinho é um homem que cuida de rio e de gente Ribeirinho faz da poesia, da prosa boa e do ambientalismo seus instrumentos para proteger as belezas da Serra do Cipó Texto: Michelle Parron Fotos: Fernando Piancastelli Ele diz que aprendeu a pescar ainda na barriga da Ana, sua mãe. Foi com ela que descobriu a poesia e fez rima com a água, as flores, as árvores, as cachoeiras e os animais. Menino nascido e criado nas barrancas do Rio Cipó, em Minas Gerais, José Geraldo Silvério, o Zezinho, desde pequeno não saía de dentro da água. Sua infância foi igual a de toda criança ribeirinha que vive feito bicho solto e transforma o rio em piscina e a mata no quintal de casa. Pescar, ele também pescava. Aprendeu com Pedro, seu pai. Já para aprender a nadar, Zezinho seguiu o costume da região e mandou ver nas “piabinhas” vivas goela abaixo. Dizem que quem come o tal peixe vivo aprende a nadar igual ele. “Isso é perigoso porque as piabinhas têm dente, né?”, conta rindo do tempo de criança. Companheiro de pescaria do pai, Zezinho via seu velho protegendo com bravura o pedaço da terra da família às margens do Rio Cipó. Pedro protegia a barranca do rio como se fosse a sua cria e peitava pescador armado que praticava pesca predatória. “Meu pai morreu em 1999, antes da proibição da pesca predatória no Rio Cipó. Na época de criança eu via que, mesmo com a humilhação que o meu pai passava, ele nunca desprotegeu a barranca dos pescadores. Com ele fui criando coragem e interesse pela defesa do rio também”. Para quem não sabe, a pesca predatória no Rio Cipó foi proibida em 2004 e atualmente só é permitido pescar para subsistência. A vontade de defender o rio apareceu primeiro na forma de verso. Para falar o que sentia sem arrumar inimigo, a mãe do Zezinho, professora rural por 25 anos, aconselhou o menino a usar a poesia para denunciar os problemas. “Minha mãe não ensinava a técnica, mas a essência das palavras para a gente conseguir alcançar a consciência das pessoas. Com uns 10 anos eu fui me destacando e venci um concurso da sala sobre a bandeira nacional.”

A poesia do ribeirinho foi além da sala de aula. No meio dos anos 1980, incentivado pelas professoras da escola, participou do concurso “A nova poesia brasileira” da editora Shogun Arte, do escritor Paulo Coelho. Dos três poemas inscritos por Zezinho, dois foram publicados no livro da editora. Anos mais tarde, ele teve notícia de que seus versos foram parar também em uma prova de vestibular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e se encheu de orgulho. A inspiração do Zezinho é a Serra do Cipó, quintal da sua casa que foi chamado de “Jardim do Brasil” pelo paisagista Roberto Burle Marx. Quem não conhece já pode imaginar o tamanho da beleza da região. “Para mim toda essa bacia é como um santuário ecológico. Com a poesia, eu procuro detalhar as belezas e as fragilidades do Cipó, já que aqui hoje é um lugar muito cobiçado por várias frentes de exploração de recurso”. Mas por um tempo esse olhar de proteção do Cipó estava adormecido na “cegueira ambiental” que ele vivia, como Zezinho mesmo diz. Antes de entender o seu papel de protetor do meio ambiente, ele passou anos trabalhando como carvoeiro. Incomodado com aquela situação, no início dos anos 1980 escreveu o projeto “Cipó sem fumaça”, para que as pessoas largassem o carvão de lado. O projeto sugeria que o carvoeiro recebesse uma ajuda financeira até conseguir migrar de profissão. “Eu caminhei com esse projeto e fui em alguns gabinetes de políticos. Cheguei a ir até a Assembleia Legislativa de Minas Gerais tentando arrumar algum padrinho. Nessa época eu comecei a contabilizar alguns inimigos, mas a minha ideia também foi entrando no ouvido de um e de outro”.

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Esse sonho de ver o Cipó protegido foi de encontro com a passagem da “Expedição pelo Velhas de 2009: encontros de um povo com sua bacia” por Santana do Pirapama. “Naquela época eu enxergava o rio só pelo peixe e não pela água e muita gente que participou do encontro não sabia que morava em uma bacia. Depois disso, a gente vai criando consciência de que a defesa do rio não se dá só pela propriedade, mas essencialmente pela quantidade e qualidade da água que é o nosso bem mais precioso. Isso significa que não basta só vigiar a barranca, mas é preciso também vigiar as nascentes.” Na expedição, ele foi convidado pelo CBH Rio das Velhas e pelo Projeto Manuelzão a descer o rio até Barra do Guaicuí, representando o município. Para Zezinho foi a melhor viagem que ele fez na vida, pois teve a oportunidade de testemunhar o abraço de dois gigantes: o Rio das Velhas e o Velho Chico. “Naquela hora eu pensei: por que é que o ser humano, em pleno século 21, ainda mexe um cisco para destruir uma beleza dessa e não preserva os mananciais?”. A descida do rio foi só o primeiro capítulo que Zezinho escreveu ao lado do Comitê ao longo desses 12 anos. Depois do encontro com a expedição, a vontade do ribeirinho em defender o rio ganhou mais conhecimento e se fortaleceu na organização social. Em 2012 ele foi chamado para ajudar a criar o Subcomitê Rio Cipó. Ajudou a mobilizar a prefeitura, as pessoas e foi responsável por trazer para o Subcomitê aquela que chegou como estagiária, representando a prefeitura de Santana de Pirapama, e hoje ocupa o cargo de presidenta do CBH Rio das Velhas: Poliana Valgas.

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De lá para cá, algumas alegrias e lutas foram sendo vivenciadas, como a aprovação do primeiro Projeto Hidroambiental. As reuniões, oficinas e os seminários são encontros que o produtor rural e poeta do Cipó sente alegria em participar. Mas tem um momento para ele que é o mais especial: o Encontro dos Subcomitês. “Eu vivo assim meio amedrontado, porque eu recebo ameaças. Quando eu redigi o projeto contra o carvão nos anos 1980, eu ganhei alguns inimigos, mas eu não intimidei. Mas quando a gente realiza um encontro dos Subcomitês é como se fosse um antídoto, um remédio, uma injeção de ânimo. A gente vê que tem região que tem companheiros com a situação muito mais difícil”.

Integrante do Amigo do Rio, programa de monitoramento ambiental participativo do Projeto Manuelzão que conta com o apoio dos ribeirinhos, Zezinho ajuda a fazer coleta da água do Rio Cipó. Para ele, ser amigo do rio é como ser um mensageiro. “A gente ajuda a analisar a mortandade de peixes e a turbidez da água. Dá uma tristeza danada quando o espelho d’água vai virando aquele tapete verde. Aí é só questão de dias ou horas para o peixe se deitar por cima do rio”. Esse tapete verde que ele diz é a eutrofização, resultado de um processo de poluição das águas que reduz o oxigênio, aumenta o número de cianobactérias e impacta a vida aquática. Amigo de gente, Zezinho é um voluntário pela saúde das pessoas doentes, principalmente as acamadas que a família não consegue mais cuidar. Produtor rural, no seu pedaço de terra ele planta cana e feijão, que é o que consegue dar um sustento para a família. Mas seu sonho mesmo é ainda se firmar na literatura, apesar de achar que vai demorar um tempo. “Acho que vou ter que esperar o próximo século. Eu até que tenho certo conhecimento, mas a escolaridade que precisa, não”. Zezinho se considera um semianalfabeto e se coloca como um estudante vitalício, pois nunca conseguiu concluir os estudos. Ele talvez não saiba, mas o conteúdo que ele busca para se firmar na literatura já está dentro dele, que é esse olhar sensível para a natureza que ele carrega desde criança. Consciência para cuidar da natureza ele tem de sobra e sabe que tudo o que for feito em defesa do seu território ainda é pouco. “Para mim, a região do Cipó é um patrimônio da humanidade. A nossa responsabilidade sobre essa dádiva de Deus é muito grande e vai aumentando a cada dia, ao passo que vai degradando. Tem gente que não consegue enxergar a natureza como uma mãe. Que só enxerga a terra como um campo de extração do recurso natural. Eu diria ao povo do Cipó que tudo o que a gente fizer em defesa da preservação daquele vale ainda é pouco”, conclui esse ribeirinho amigo do rio, cuidador do meio ambiente e de quem vive perto dele.

No caminho dos tropeiros em Fechados, distrito de Santana de Pirapama, transporte do capim-andrequicé ainda se dá como há séculos passados.


Zezinho se tornou símbolo da preservação da Serra do Cipó, região que mais contribui em qualidade ambiental para o Rio das Velhas.

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Fechados, distrito de Santana de Pirapama


Balanço do Cipó Autor: Zezinho, poeta do Velhas e do Vale do Cipó

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Fim de semana e lá vou eu. Poeira. Mesma estrada. Vento na cara, solavanco, chão vira banco no corredor da jardineira rara. Mais adiante a velha ponte: rio de águas claras! E quando a jardineira avança, galeia sacoleja e balança o olhar varre o que alcança e o coração dispara: É o Cipó! O Cipó é rio. É mato. É serra. Fauna e flora. Natureza. É uma riqueza de topete. É cafundós. O Cipó é chão batido. É gente prosa. Um bom filho à casa torna: é pra lá que eu vou... É cá que eu tô! E não estou só. Aqui festinhas de famílias viram enxames de abelhas! E no forró de terreiro meio mundo balanceia. O sanfoneiro puxa o fole o ritmista bate palmas o caboclo se entremeia: melhor é nem pisar no calo! Senão a serra retumbeia. E aí, tem fulano que arruaça, e no moído da Manguaça tem doente que não sara! Pito aceso, tira gosto, desce mais uma seu moço! Hoje o tema inspira. Ê gente boa e sertaneja ON sempre aquecendo este coração caipira. Aqui pras bandas do Cipó, Pirapema e Pirapama é peixe grande peixe bravo; Fechados não é regime; Caiçaras já foi Aldeia e Duas Barras é vizinha do Crime. Aqui pras bandas do Cipó o Coberto é sem lona e chove grosso na Chuvinha. Tibuna tá na onda e o Inhames não cozinha. Aqui pras bandas do Cipó Campo Alegre não dá risadas. Queimados tem conceito. Praia, cachoeiras e cascatas é do Paraúna ao Rio Preto. Aqui pras bandas do Cipó tem é muito cabedal! É ouro (água) e diamantes (peixes) até a ponte é do cristal. Queijo fresco e requeijão rapadura e farinha! A pinguinha artesanal! Aqui o cheque e o xeque-mate ainda é a palavra o fio de barba e o cascalho é Real. Aqui pras bandas do Cipó, do Paraúna ao Veraneio tem é muita mulher prendada! Pra não casar com moço feio a véu da noiva é sem grinalda. O chapéu de Sol sem abas não faz sombra na orelha... tá lá sempre encostado na encosta da Aldeia. Pra chegar lá no chapéu a Estrada serpenteia por uma subida íngreme e uma descida que rupeia (arrepia). Escalar a pé enxuto a cascaria estropeia (estropia). Refazer e desfazer esse caminho tem coragem que falseia! Adrenalina lá encima que até o medo titubeia. Uma aventura e tanto! Numa distância que se baseia: dá pra cima e dá pra baixo é mais ou menos légua e meia. Aqui na Serra do Cipó a Estrada tipo escada é trilha de escravos. Lá em cima nas Campinas o que cerca o boi é um bom cavalo! Aqui na serra do Cipó cerca boa é de pedra em muro... e o rio preto é bem escuro. Estrada Real... de percurso e extremos monumentais! Caminho dos caminhantes, metamorfoses ambulantes em jornadas inebriantes por essas trlhas reais. Aqui da Serra do Cipó o Joca... O Juquinha virou lenda! Sempre viva nas Veredas cheias de espécies raras: a riqueza das riquezas. Pensando bem direitin ser do Vale do Cipó é uma fineza! Pois a cabocla e o caboclo caladin com mão boba vira a mesa... É por isso que eu digo que a nossa terra é uma rareza! Então; diante da realeza e sob as bênçãos de vossa Alteza; num gesto de nobreza e muita clareza por gentileza vamos preservar essa lindeza! A nossa casa brasileira com certeza. O rio que eu cuido é imprescindível, indispensável, essencial para que Cidade e Sertão possam sobreviver! Ah, meu velho! O rio de que vos falo sou Eu! – Eu sou o rio – por obséquio deixem o rio viver. Até porque, via de regra, se o rio não corre, se a matriz deita e dorme e sua regra não escorre... a vida fica um porre... E a gente morre.


Ponte de Cristal no Rio Cipó. Santana de Pirapama (MG)

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A revista Velhas semestralmente homenageia um artista em suas contracapas. Nesta edição: a obra Veredas, da artista Nila (Aquarela, 15x10 cm - 2015) @nila.do.cerrado


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