Revista Velhas nº 15 - Março de 2022 - CBH Rio das Velhas

Page 1

Uma publicação do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas

MAR 2022

VIII ANO

15


Imagem de Capa: Filme que se repete: Jequitibá em mais uma de suas históricas inundações, no registro aéreo de Léo Boi.


Editorial

À margem Do furacão Katrina, que em 2005 devastou a região metropolitana de Nova Orleans, no sul dos Estados Unidos, aos rompimentos de barragens de mineração em Minas Gerais, em 2015 e 2019, assim como as enxurradas e deslizamentos na região Serrana do Rio de Janeiro, em 2011 e em fevereiro passado. Em todo o mundo, quem mais é afetado por eventos climáticos extremos, territórios ambientalmente degradados e crimes socioambientais são as minorias étnicas. O fenômeno tem nome: racismo ambiental, cunhado pelo ativista norteamericano Benjamin Chavis, no final dos anos 1970. É de se supor, portanto, que as enchentes e inundações observadas na Bacia do Rio das Velhas neste último período chuvoso tenham também impactado de diferentes formas os distintos grupos sociais aqui presentes. E foram precisamente as populações ribeirinhas, de cidades inseridas no Quadrilátero Ferrífero, que vivenciaram um outro tipo de agressão em 2022: além da água, uma lama viscosa cobriu casas, destruiu quase tudo à sua frente e por lá ficou – até que, de pá em pá, moradores e poder público a removessem. A pergunta que não quer calar é: que lama é essa? Para as lutas que enfrentaremos por uma sociedade mais justa e ecologicamente equilibrada, já dizia Gonzaguinha: “Eu acredito é na rapaziada”. Em uma reportagem especial, contaremos as histórias de jovens ativistas – da bacia do Velhas e do mundo – que estão cada vez mais engajados em fazer a mudança que precisa acontecer agora. Mudança é o que querem também acadêmicos e lideranças comunitárias de Belo Horizonte. Essa união tem proporcionado transformações e impulsionado o sonhar nas bacias dos Ribeirões Arrudas e Onça.

A 15ª edição da Revista Velhas traz também uma entrevista exclusiva com Tasso Azevedo, coordenador do MapBiomas, que comenta a série de mapeamentos sobre o uso e a cobertura do solo, a água, o fogo e a mineração no Brasil, que evidenciou um país em processo franco de degradação ambiental – e uma Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas que perdeu 40% de água superficial nos últimos 30 anos. Nesse contexto, cresce também a pressão sobre a agropecuária. Responsável por 72% dos gases de efeito estufa emitidos no Brasil, o setor é peça fundamental no cumprimento – ou não – das metas apresentadas pelo país na 26ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre o Clima (COP26). No território do Rio das Velhas, a agropecuária ocupa 44% da área total. No caminho da revitalização, uma boa notícia: o Brasil possui a maior área florestal tropical recuperável do mundo. Contaremos, assim, como o CBH Rio das Velhas tem fomentado a recuperação de áreas degradadas, especialmente a partir da produção, doação e plantio de mudas nativas em toda a bacia hidrográfica. Tem também os encantos e as peculiaridades da cidade de Sabará na forma de conto, do escritor Caio Junqueira Maciel. E um mergulho nas águas da Unidade Territorial Rio Pardo, no Médio Baixo Rio das Velhas, recanto bucólico de paz e de belezas naturais únicas. Mergulhemos juntos!


Expediente Revista Velhas Publicação Semestral do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas Nº15 – Março / 2022 CBH Rio das Velhas Diretoria Presidenta: Poliana Valgas Vice-presidente: Renato Júnio Constâncio Secretário: Marcus Vinícius Polignano Secretário-Adjunto: Fúlvio Rodriguez Simão Diretoria Ampliada Sociedade Civil Instituto Guaicuy – Marcus Vinícius Polignano Assoc. de Desenvolvimento de Artes e Ofícios (ADAO) - Procópio de Castro

Sumário Com a Palavra

p. 06

Usuários de Água CEMIG – Renato Júnio Constâncio FAEMG – Carlos Alberto Oliveira Poder Público Estadual EPAMIG – Fúlvio Rodriguez Simão IEF – João Paulo Mello Sarmento Poder Público Municipal Prefeitura Municipal de Jequitibá – Poliana Valgas Prefeitura Municipal de Belo Horizonte – Humberto Marques Agência Peixe Vivo Diretora-Geral: Célia Fróes Gerente de Integração: Rúbia Mansur Gerente de Projetos: Thiago Campos Gerente de Administração e Finanças: Berenice Coutinho Esta revista é um produto do Programa de Comunicação do CBH Rio das Velhas.

Quando a universidade encontra-se com a comunidade p. 08

Produzida pela Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social Direção: Paulo Vilela, Pedro Vilela e Rodrigo de Angelis Coordenação de Jornalismo: Luiz Ribeiro Edição: Luiz Ribeiro e Rodrigo de Angelis Redação e Reportagem: Luiza Baggio, Michelle Parron, Leonardo Ramos, Paulo Barcala e Luiz Ribeiro. Revisão: Isis Pinto Fotografia: Álvaro Gomes, Bianca Aun, Fernando Piancastelli, Gerthard Waller, Leandro Durães, Léo Boi, Lucas Nishimoto, Márcia Alves, Marcos Neves, Ohana Padilha, Ricky Stilley, Robson Oliveira, Shutterstock e arquivo pessoal de Gabriel Noronha, Txai Suruí e Lívia Pereira Ilustrações: Clermont Cintra e Albino Papa Projeto Gráfico: Márcio Barbalho Diagramação: Albino Papa e Sérgio Freitas Impressão: ARW Gráfica e Editora Tiragem: 3.000 unidades. Direitos reservados. Permitido o uso das informações desde que citada a fonte.

14

Racismo ambiental: por que algumas comunidades são mais afetadas por desequilíbrios no ambiente?


A agropecuária na encruzilhada do clima Inundações, devastação e uma estranha lama no Alto Rio das Velhas p. 20

Olhares: Histórias do Velhas em Sabará p. 26

Brasil possui maior área florestal recuperável do mundo

p. 42

48

Jovens: hoje eles decidem o futuro do meio ambiente

30 Bacia do Rio Pardo: história, belezas naturais e cenários singulares p. 54

36 Entrevista: Tasso Azevedo, coordenador do MapBiomas


Com a palavra

Entre extremos

As mudanças climáticas globais e vários outros desequilíbrios no ambiente têm potencializado os extremos – na Bacia do Rio das Velhas e no mundo. Em um mesmo ano temos vivenciado tanto a seca profunda, com pluviosidade baixa e níveis críticos de vazão dos nossos cursos d’água, quanto, meses depois, chuvas intensas e consequentes enchentes e inundações. Vivemos, portanto, num limiar antagônico entre o medo da chuva e a insegurança hídrica. Essa forma de apropriação do espaço deve mudar urgentemente. O CBH Rio das Velhas reconhece a enchente como um processo natural do rio, mas se preocupa especialmente com o uso e a ocupação do solo e a apropriação das planícies de inundação – espaços à margem dos cursos d’água que naturalmente ficam inundados durante as cheias e que, assim, não podem ser ocupados.

6

Entendemos ser fundamental e urgente a adoção de políticas públicas – do Estado e municípios – nas áreas que compõem essas planícies de inundação. Cabe ao poder público agir no sentido de evitar a ocupação dessas áreas e de, gradativamente, promover o processo de realocação das famílias que ali já se encontram – caso contrário, continuaremos a ver e viver essas cenas ano após ano. A fim de melhor embasar as políticas públicas a serem adotadas para evitar a ocupação dessas áreas e para, gradativamente, promover o processo de realocação das famílias que ali já se encontram, o CBH Rio das Velhas planeja o desenvolvimento de estudos sobre as planícies de inundação de cada município e um plano para atender contingências climáticas na bacia. A ideia é que este último seja um guia que apresente mecanismos de ação e auxílios à população para as contingências advindas tanto da cheia quanto da estiagem. Em meio a esse contexto de fortes chuvas, acompanhamos também, com enorme preocupação, a segurança das estruturas de mineração na bacia hidrográfica que persistem em ameaçar nossos rios e a nossa população. Acreditamos que não pode ser imputada ao processo natural das chuvas a justificativa sobre qualquer incidente que venha a acontecer. Nunca é demais destacar que, atualmente, duas barragens de rejeitos inseridas no Alto Rio das Velhas – de onde vem a água que abastece 50% da Região Metropolitana de Belo Horizonte – se encontram no nível máximo de criticidade quanto à segurança e, qualquer eventual rompimento, além de todos os trágicos danos socioambientais que já conhecemos, também poderia implicar em um caos hídrico na Grande BH.


Exigimos, assim, políticas de segurança e monitoramento contínuos para todas as estruturas de mineração inseridas na Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas e no estado de Minas Gerais como um todo.

Bianca Aun

7

Poliana Valgas Presidenta do CBH Rio das Velhas


Educação

8

Ilustração: Clermont Cintra


Quando a universidade encontra-se com a comunidade

Cleiton Henriques da Silva integra coletivos comunitários e luta pela revitalização do córrego Tamboril, na região Norte de BH.

Professores, estudantes e moradores se unem para projetar a vida nos bairros de Belo Horizonte Texto: Michelle Parron

“EU VEJO A VIDA MELHOR NO FUTURO…” Tempos Modernos, Lulu Santos Jardim Felicidade, em 1993, era um lugar bem diferente de um jardim e estava longe de despertar no Cleiton Henriques da Silva algum sentimento de alegria. Com 13 anos de idade, no dia da sua mudança para lá, uma das primeiras imagens que viu foi a de um córrego sujo, um esgoto a céu aberto. Era o córrego Tamboril, conhecido também como Fazenda Velha. Diante daquela cena, Cleiton lamentou: “não acredito que vou morar perto desse córrego”.

Cleiton é um jovem ativista que batalha pelas melhorias no bairro. O despertar da consciência ambiental e social surgiu a partir do contato com o grupo de teatro do Jardim Felicidade. Hoje, ele participa de uma série de ações do Núcleo Tamboril, ligado ao Projeto Manuelzão. “Eu sou um dos fundadores da Associação Coletiva da Juventude, uma associação de jovens criada em 2011 pelo interesse em trazer melhorias ao bairro. Agora chamamos de Associação Coletiva, porque não são só mais jovens que participam. Na época, levantamos as pautas prioritárias do coletivo, algumas delas ambientais, como o Parque Izidoro e a preservação e revitalização do córrego Tamboril”.

Bianca Aun

Localizado na bacia do Ribeirão Onça, região Norte de Belo Horizonte, o bairro Jardim Felicidade foi loteado em 1980. Os moradores foram os responsáveis por erguer suas próprias casas, além das primeiras obras de infraestrutura, tudo no sistema de mutirão. Na época, o córrego Tamboril era limpo, o que permitia aos moradores usarem sua água, e cada lar tinha sua própria fossa. Com a chegada da rede de esgoto da Copasa, sem interceptores, o córrego passou a ser poluído. A partir daí, a população deixou de ter uma relação de cuidado e hoje o Tamboril não está como o Cleiton o encontrou em 1993, mas ainda precisa de cuidados e da retirada de esgoto e entulho, despejados pelos próprios moradores.

9

A união dos moradores, que marcou a história dos primeiros anos do Jardim Felicidade, foi fundamental para que, em 2017, a comunidade barrasse um projeto para a região apresentado pela Prefeitura de Belo Horizonte em audiência pública, que envolvia uma série de modificações, inclusive a desapropriação de várias casas. “A prefeitura apresentou um projeto para revitalizar o córrego, mas se tratava de um projeto viário com a ampliação de uma via principal, uma avenida às margens do córrego. O projeto deixou nítido que, a partir dali, seriam necessários dois passos para cobrir o córrego Tamboril. E a comunidade se uniu e negou o projeto. A partir disso, criou-se a vontade da população de dizer o que ela queria”, conta a arquiteta Elisa Marques, que iniciou, com outros alunos e com o professor de arquitetura da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Roberto Andrés, uma colaboração com os moradores para elaboração de um outro caminho possível para o córrego e para o bairro, bem diferente daquele apresentado pela prefeitura.


Essa revitalização da nascente foi fruto da iniciativa ‘Valorização das Nascentes Urbanas’, promovida pelo CBH Rio das Velhas e Subcomitê Ribeirão Onça a partir dos recursos da cobrança pelo uso da água na bacia. No local, foi realizada a limpeza e o plantio de mudas e grama, contenção de barranco em madeira, construção e melhoria dos reservatórios de água e das bicas. Com a comunidade, foi feita uma campanha para arrecadar materiais e realizar um mutirão para a criação do espaço de lazer.

Bianca Aun

Para Roberto, o contato dos estudantes com os moradores fez com que eles entrassem em contato com o mundo real. “Faz parte do processo acadêmico tomar distância de algumas coisas, mas a gente também precisa se aproximar para ficar próximo das pessoas, do real, dos problemas reais. Eu acho que a universidade ganha muito, não só pela experiência do real, mas pelas trocas de saberes. Aproximar-se, fazer as coisas juntos, permite formar profissionais mais atentos ao que está se passando, que papel eles podem ter e como podem contribuir. Acho que é pensar a cidade como uma escola. E todos têm a ganhar com isso.”

Arquiteta Elisa Marques, da UFMG, ajudou a desenvolver projeto que conciliava aspectos urbanísticos e ambientais para o Jardim Felicidade, incluindo a recuperação do córrego Tamboril.

10 Em três meses foi construído um projeto que conciliava os aspectos urbanísticos e ambientais do Jardim Felicidade, que incluía a recuperação do Córrego. Foram realizadas práticas de discussão e análise dos desejos e das necessidades da população, com o intuito de estabelecer diretrizes de melhorias para o córrego e seus arredores. A proposta valoriza o convívio, como calçadas mais largas, pontos de travessia do córrego, redução da velocidade dos veículos, espaços de lazer, praças, alamedas e hortas comunitárias. Apresenta elementos de cuidado ambiental e infraestrutura, como a recuperação de nascentes, interceptação de esgoto, drenagem de água de chuva e tratamento das margens. Dessa forma, ressignifica a presença do córrego no bairro e torna positivo o convívio entre ele e os moradores.

Meses depois, a Rua de Lazer, quarteirão que concentra as principais nascentes do córrego Tamboril, recebeu a colaboração dos estudantes da Faculdade Izabela Hendrix, que construíram um projeto arquitetônico para o espaço coletivo. O projeto foi apresentado para a prefeitura, que não deu retorno. Assim como fez com o projeto de revitalização do córrego Tamboril. Porém, o Cleiton carrega com ele um tipo de esperança que aprendeu com o Paulo Freire. A esperança de esperançar. “São muitos desafios, quando eu passo na beira do córrego, eu fico chateado cada vez que eu vejo um ponto de entulho novo. Mas, enquanto a gente ficar quieto, isso nunca vai mudar.

Córrego Tamboril, pertencente à bacia do Ribeirão Onça, atravessa o bairro Jardim Felicidade

Mas o primeiro contato do Jardim Felicidade com a universidade começa antes disso. Cleiton conheceu Roberto Andrés, professor de arquitetura, durante o projeto da Rua de Lazer. A Associação Coletiva já queria criar uma área de lazer no bairro. Ao encontro desse desejo, o professor elaborou um projeto com os alunos de arquitetura que criava um espaço próximo às bicas de água que haviam passado por um processo de recuperação.

Fernando Piancastelli

“Por mais que a gente tenha um senso crítico avançado, muitas vezes estamos ali emaranhados de tantos problemas e algumas coisas vão passando batido. Da mesma forma que a gente resolve algumas coisas, é importante ter gente que vem de fora, inclusive com energia e com conhecimento, e a presença da universidade sempre nos anima e encoraja”, explica Cleiton ao relembrar o processo participativo que resultou na criação do projeto de revitalização do córrego com os professores e alunos da UFMG.


A gente costuma dizer que só a luta transforma. A gente está em uma época de pouca escuta, e isso está se refletindo na gestão pública. Mas eu acredito em tempos melhores, tempos em que as pessoas vão voltar a discutir mais coletivamente, dar atenção às comunidades, escutar mais. Estamos retomando os trabalhos para colocar em pauta essas pendências e a gente espera alcançar um futuro em que de fato essa água seja vista pelos moradores e pela prefeitura como uma fonte de vida, de lazer, com um meio ambiente protegido, onde o ecossistema seja estabelecido.”

Núcleo Capão Ainda na bacia do Ribeirão Onça, o pessoal do Núcleo Capão, ligado ao Projeto Manuelzão, mantém uma relação intensa com diversas universidades além da UFMG, como Izabela Hendrix, Fumec, Una e o IFMG (Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Minas Gerais). Uma das lideranças à frente do Núcleo é a Roseli Correia da Silva, coordenadora-geral do Subcomitê Ribeirão Onça e professora da rede municipal de ensino que, junto a outros voluntários, luta por melhorias tanto na qualidade da água do córrego do Capão, quanto na qualidade de vida da população na região de Venda Nova. “Desde que a gente começou a se envolver com o território, ouvíamos falar que o córrego Capão ia virar uma avenida. Tivemos acesso a um projeto enorme da prefeitura, com avenida com três pistas de cada lado. A ideia era ligar a Cidade Administrativa, passando por Venda Nova e finalizando em Betim. A comunidade se apropriou dessa ideia e até hoje muita gente espera essa avenida. Era preciso criar um novo imaginário para a comunidade, mostrar que aquilo poderia virar outra coisa, como um parque ciliar, por exemplo.”

Em 2017, o CBH Rio das Velhas e o Subcomitê Ribeirão Onça somaram forças aos coletivos comunitários e à Faculdade de Arquitetura da UFMG e promoveram a revitalização de uma nascente no bairro Jardim Felicidade.

Em parceria com diversas universidades, Núcleo Capão anseia pela criação do Parque Linear do Córrego do Capão e por resposta da Prefeitura de Belo Horizonte.

Recentemente, estudantes de paisagismo do IFMG - Campus Santa Luzia elaboraram outro projeto que inclui a proposta da horta comunitária no sistema de Agrofloresta. Fizeram o levantamento de dados e vegetação adequada e conseguiram 1.500 mudas para o reflorestamento. O plantio deve acontecer ainda no primeiro semestre de 2022.

Bianca Aun

Ohana Padilha

Dito e feito. A estudante Priscila Melo, do curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade Izabela Hendrix, criou o projeto do Parque Linear do Córrego Capão. “Ela pensou no Capão como um parque com 2 km e meio de extensão, desde a nascente até a foz, com vários equipamentos, recomposição da mata ciliar integrando a comunidade cigana que vive dentro da área”, conta Roseli. Além desse projeto, outros estudantes elaboraram planos de mobilidade urbana e habitação para a região. Juntas, essas propostas integraram um dossiê apresentado para a Prefeitura de Belo Horizonte durante uma reunião do Subcomitê Ribeirão Onça, ainda sem retorno.

11


Cercadinho Vivo Em outro ponto da cidade, na Bacia do Ribeirão Arrudas, a mestre em geografia e análise ambiental, Márcia Marques, foi uma das responsáveis por criar pontes entre a UNI-BH e os moradores dos bairros Buritis e Havaí, próximos ao córrego Cercadinho. Elaborado como um projeto de extensão, o Cercadinho Vivo foi realizado entre 2015 e 2019 com o objetivo de divulgar para as pessoas a Lei das Águas e a oportunidade que os moradores têm de participar da solução dos problemas da região por meio dos Comitês de Bacias. “A gente fazia, ao mesmo tempo, o monitoramento da bacia do Cercadinho e divulgava os resultados em eventos, realizava ações socioambientais e mostramos que existe como buscar soluções para os problemas da bacia. Era, ao mesmo tempo, um trabalho educativo e técnico/acadêmico”, explica Márcia, hoje coordenadora-geral do Subcomitê Ribeirão Arrudas. Atualmente, o projeto está caminhando para se transformar em uma associação que atue na resolução de problemas ambientais dentro da bacia. Os ex-alunos continuaram atuantes e o projeto se transformou em um movimento em prol da bacia do cercadinho, com a participação de pessoas de frentes políticas, sociais, ambientais, além da equipe técnica formada por ex-alunos.

Léo Boi Bianca Aun

12

Márcia Marques atualmente coordena o Subcomitê Ribeirão Arrudas, vinculado ao CBH Rio das Velhas.

Córrego Cercadinho, na bacia do Ribeirão Arrudas, era o elo que impulsionava os moradores a buscar melhorias ambientais para a região, em projeto de extensão.


13


Diversidade

14

Águas ancestrais De que forma o racismo é o fiel da balança no que diz respeito às causas ambientais?

Bianca Aun

Texto: Leonardo Ramos


Quem teve a oportunidade de conviver com suas avós vivenciou a mística de se relacionar com alguém que, ao mesmo tempo, tem tanto a oferecer quanto a solicitar. De nossa parte, somos educados a cuidar bem de nossos parentes, especialmente os mais frágeis. Isso está na construção da nossa sociedade: cuidar de nossos antecessores da mesma maneira com que gostaríamos de ser cuidados. Porém, não lidamos da mesma forma com a terra e o território onde vivemos. Essa postura é fruto do modelo de sociedade em que nascemos, que enxerga o meio ambiente como uma mera fonte de “recursos” para a construção de uma “civilização avançada”.

O termo “racismo ambiental” foi elaborado por Benjamin Franklin Chavis Jr., que foi assistente de Martin Luther King Jr. em sua juventude. Homem negro norte-americano, ele percebeu que resíduos tóxicos decorrentes da industrialização e da exploração do meio ambiente afetavam mais as populações negras dos Estados Unidos do que as pessoas brancas. Isso acontece especialmente pelo fato de que populações mais discriminadas tendem a ocupar territórios mais degradados devido às diferentes violências sofridas na vigente estrutura social – o que traz também a interdição, social ou econômica, do acesso aos territórios originalmente ocupados.

Reverendo Benjamin Chavis durante protesto contra depósito de lixo tóxico em Warren County, EUA, 1983. O reverendo, ao centro, cunhou o termo “racismo ambiental” a partir de suas investigações e pesquisas entre a relação de resíduos tóxicos e a população negra norte-americana.

Ricky Stilley

A 26ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre o Clima (COP26), realizada em novembro de 2021, trouxe novamente à discussão pública a questão do racismo ambiental. Marcado pela presença de povos indígenas e quilombolas brasileiros, o encontro deixou evidente que a escolha que fizemos de explorar este planeta sem pensar no amanhã atinge a todos os seres humanos, mas não igualmente.

Ricky Stilley

Velhas discussões, novas reflexões

Jonatan Lopes

O Rio das Velhas é o maior afluente do Velho Chico e abriga uma grande diversidade da fauna e da flora tanto da Mata Atlântica quanto do Cerrado. Toda essa diversidade ambiental, assim como a de povos que moram no entorno dela, sofrem com as mudanças climáticas que tanto sentimos ultimamente. No entanto, devido ao distanciamento que a maior parte de nós guarda com o ambiente em que vivemos, parece que não temos tanto respeito quanto teríamos com nossos ancestrais.

15


Bianca Aun

Ouro Preto, próximo às nascentes do Rio das Velhas

Terra mãe ou terra minha? Minas Gerais e, em especial, a Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas, abrigou diversos povos que foram empurrados para o anonimato e se esconderam durante séculos no intuito de sobreviverem. Krenak, Maxacali, Puris, Kaxixós, entre outros, viviam nesta região antes da chegada dos primeiros portugueses e foram, além de perseguidos, condenados a abandonar suas línguas, crenças, territórios, enfim, sua cultura, em razão da colonização. Por esse motivo, é uma tarefa difícil mapear os indígenas que ainda vivem na bacia. É o que nos conta Danilo Borum-Kren, indígena que mora em Santo Antônio do Leite, distrito de Ouro Preto. “Nos documentos oficiais, fomos chamados de Aimorés, Cataguases, Batatás entre outros nomes, porque ninguém se importava com como nós nos denominávamos, mas sim como eles nos enxergavam: seja como gente brava (aimorés), por conta de nossa cultura guerreira; como “os que não falam nossa língua”, porque fazemos parte do grupo macro-jê e não falávamos tupi; ou “gente dura” (batatás). Então, recentemente, escolhemos descrever a nossa etnia como Borum-Kren”, conta. “Somos um povo do Alto Rio das Velhas, parente dos Krenak e dos Aranãs, do grupo dos Botocudos de Minas, que nunca saiu deste território. Pelo fato de o grupo dos Botocudos ter passado por uma guerra de extermínio por não aceitarem a invasão europeia à época, nosso povo se escondeu, especialmente na região de Ouro Preto, em alguns distritos com mata fechada, lutando para sobreviver. Essa matança começou em 1765 e durou até meados dos anos 1980, durante a ditadura, e, por isso, fomos obrigados a esconder nossa cultura.”

Danilo Borum-Kren destaca como a colonização empurrou para o anonimato os povos originários do Alto Rio das Velhas.

Bianca Aun

16

Nesse sentido, é também difícil medir objetivamente os reais impactos da exploração do meio ambiente nos povos originários da região. Mas ele narra quais são os desafios para quem se relaciona com a terra como quem cuida de um parente idoso. “Temos sofrido muito com a mineração e a especulação imobiliária. Hoje nosso sonho é ter uma terra demarcada com um local preservado, para conter o avanço da exploração, pois aquelas terras de onde nós tirávamos nosso alimento e nossas plantas medicinais estão loteadas, e não podemos mais ir lá. Queremos ter acesso aos rios, principalmente o Rio das Velhas, que, para nós, é um rio sagrado. As montanhas, a terra, o rio, são como um grande organismo do qual fazemos parte. Para nós, o rio não é só um curso d’água, é um ancestral. O nome completo do Rio das Velhas é ‘Uaimií Minhag Makiãn’, o que significa o rio das ancestrais. Como as pessoas brancas veem a natureza apenas como um recurso a ser explorado, elas loteiam as terras e impedem o acesso que tínhamos ao que precisamos para viver, impedindo, inclusive, os animais de transitarem livremente.”


Racismo ambiental O que dizem os números?

Infográfico: Clermont Cintra

Os EUA possuem vasta pesquisa sobre como a poluição e os problemas ambientais afetam desproporcionalmente comunidades negras, latinas, indígenas ou de baixa renda.

17

Incidência de câncer:

Comunidades do entorno:

Os 10 maiores produtores de energia a carvão nos EUA têm uma taxa de câncer no pulmão 19% mais alta do que a média do país.

Cerca de 2 milhões de pessoas moram a 5km das 12 piores plantas de carvão dos EUA, 76% delas são negras. Sua renda média per capita anual é de US$ 14.626, contra US$ 21.587 da média nacional.

Transporte público

Risco de morte

Outro grupo com maior exposição a poluentes são as pessoas que não possuem carro: seu contato chega a ser 19% mais alto que a média da Califórnia.

Pessoas negras de baixa renda têm maior risco de morrer pela emissão de partículas finas de usinas de energia, seguidas por pessoas negras de classe média, brancas não latinas de baixa renda e negras de alta renda.

Menor poder de compra, mais poluição A disparidade é ainda maior quando se leva em conta quais grupos são responsáveis pela emissão de partículas (poder de compra, acesso, padrões de consumo etc) vs. sua exposição a elas. Membros da comunidade latina respiram 63% mais poluição do que produzem; da comunidade negra, 56%, enquanto na comunidade branca sua exposição é 17% menor do que sua produção.

Maior exposição a PM2,5: Na Califórnia, membros da comunidade latina são 15% mais expostos a índices mais altos de PM2,5 (um elemento de poluição atmosférica) do que o californiano médio. Entre as comunidades negras, a exposição chega a ser 18% mais alta. Para os residentes brancos, o número é 17% menor que a média. Fontes:

Universidade de Harvard, Stanford e Washington, NAACP, Union of Concerned Scientists


Mamãe Oxum A bacia do Velhas também foi local de resistência para povos compulsoriamente trazidos de longe, como é o caso dos povos da África, que não estavam nessas terras originalmente, mas que ouviram os mesmos cantos das águas de lá, aqui. Também impedidos de viverem de acordo com suas cosmogonias, adotaram, neste território, o Rio das Velhas como força de resistência e renovação. Oxum, deitada à beira do rio, lhes ensinou a cuidar de quem lhes ofertava tudo aquilo que era necessário para viver como seus filhos.

Ione Maria de Oliveira, liderança do quilombo e aprendiz de matriarcas, relata que, entre outras coisas, a duplicação da MG-020 desapropriou famílias, cortou espécies de mangueiras e alterou o território. “Depois que Vicência faleceu, o quilombo foi dividido e as famílias que aqui moravam produziam tudo de forma comunitária, num trabalho de partilha. Mas o Estado desapropriou algumas famílias para a construção da MG-020, e, nessa ação, perdemos também várias espécies de mangueiras para a duplicação da estrada.”

A construção de Belo Horizonte não ocorreu sem violências. A população que aqui vivia, de maioria negra, antes que este território fosse oficializado como capital de Minas Gerais, teve suas terras desapropriadas em nome da modernidade de influência francesa e foi afastada do local que hoje conhecemos como o centro da cidade. O território onde se encontra o Quilombo de Mangueiras, no entanto, desde antes do início da construção da capital, já pertencia ao casal de lavradores Cassiano José de Azevedo e Vicência Vieira de Lima. Mesmo longe do centro da cidade, a expansão urbana não demorou a chegar.

Com o tempo, também a água do córrego Lajinha, afluente do Ribeirão Onça, se viu ameaçada. “Sou semente da minha matriarca, que virou ancestral aqui no quilombo, e ela me ensinou que, para a matriz africana, tudo começa na água, tudo começa pelo banho. Os orixás nascem na água. Mas as águas hoje estão contaminadas com coliformes fecais devido a uma ocupação do lado esquerdo do quilombo. E nossos clamores não são ouvidos. Quando dizemos que a água está contaminada, há sempre alguém que desmente, mesmo que nós apresentemos os laudos, mesmo que nossas crianças adoeçam no contato com o curso d’água. O quilombo é tombado como patrimônio dessa cidade, e a fauna e a flora estão 92% íntegras. Temos lutado com outros quatro quilombos urbanos pela construção do plano urbanístico das comunidades, até mesmo para proteção dessas áreas”, conta Ione. “Quando começa o período de chuva, rezamos sempre para que Ossanha, que é o dono da mata e das folhas, ajude a reflorestar o território para nos proteger.”

Ione Maria de Oliveira, liderança do Quilombo Mangueiras, em BH, denuncia contaminação do córrego Lajinha por ocupação vizinha.

Bianca Aun

18


Em 2017, como ação do projeto ‘Valorização de Nascentes Urbanas da Bacia do Ribeirão Onça’, o CBH Rio das Velhas revitalizou olho d’água no Quilombo Mangueiras.

Lideranças do Mangueiras e de outros quatro quilombos lutam pela construção de plano urbanístico das comunidades.

Este território não nasceu ontem e não se reduz a números. O CBH Rio das Velhas sabe bem que as avós merecem o máximo respeito, assim como seus descendentes. Filho de Uaimií ou de Oxum, o Comitê entende o rio como muito mais do que água para beber, mas como água para viver. Seja em Belo Horizonte ou em Várzea da Palma, os filhos, netos e bisnetos da Velha Mãe buscam equidade. E isso fará bem a todos, a mim, a você e a quem, deitado no leito do rio, se levanta para defender seu bem mais precioso: sua vida.

19 Bianca Aun

Ohana Padilha

A vovó de hoje é a mamãe de ontem


Enchentes e inundações

20

Não adianta lutar contra as águas

Texto: Luiza Baggio e Paulo Barcala

As fortes chuvas que caíram em Minas Gerais deixaram quase metade dos municípios do estado em situação de emergência e, mais uma vez, demonstraram a urgência de mudarmos a forma como lidamos com as águas


Marcos Neves

De dentro de casa, Edna Rodrigues Coutinho, 40 anos, escutava a chuva que caía em Jequitibá apreensiva. Ela, o esposo e seus três filhos já haviam presenciado alagamentos no município em outras ocasiões, pois Jequitibá é uma cidade marcada por um histórico de enchentes e inundações. Mas, em janeiro de 2022, a situação foi diferente para a família de Edna. O nível do Rio das Velhas não parava de subir e a ameaça de rompimento do dique de contenção das águas da chuva era iminente. Ela e sua família abandonaram, então, o imóvel onde moravam e partiram para um abrigo. Ao todo, em Jequitibá, 10 famílias ficaram desabrigadas e 11 desalojadas, que foram para a casa de familiares. “No domingo [09/01], a Defesa Civil passou pela minha casa avisando sobre a ameaça de alagamento. Não deu tempo de tirar nada. Saímos na mesma hora, pois o risco de rompimento do dique nos deixou assustados. Caso rompesse era morte na certa! Na madrugada de segunda nossa casa foi alagada pela cheia no Rio das Velhas. Perdemos tudo!”, conta Edna, que morava próximo ao dique de contenção de águas das chuvas, construído para evitar a reincidência de inundações em Jequitibá. A família de Edna não poderá voltar ao imóvel e hoje procura uma casa para alugar. “É muito triste ver tudo o que construímos ser destruído. A nossa casa teve a estrutura comprometida, o chão da cozinha afundou. Mas o que importa é que estamos com vida!”, comentou. Jequitibá foi alagada no dia 10 de janeiro. Apesar da existência do dique de contenção, as chuvas intensas em toda a bacia do Rio das Velhas provocaram um ápice na elevação no nível da água a montante da estrutura, no Rio das Velhas e, consequentemente, no Ribeirão Jequitibá. Isso causou transposição de água em alguns locais do dique e a incidência de fraturas na estrutura e, com isso, alagamentos em vários pontos da cidade.

Em Raposos, quase 2/3 dos 16,5 mil habitantes da cidade precisaram deixar suas casas devido às inundações de janeiro.

Léo Boi

Município historicamente afetado pelas inundações, Jequitibá, no Médio-Alto Rio das Velhas, viu o filme se repetir neste último período chuvoso.

21


A porta-voz da Defesa Civil de Jequitibá e presidenta do CBH Rio das Velhas, Poliana Valgas, explica que as inundações não foram causadas por um transbordamento do Rio das Velhas, mas sim pela grande quantidade de chuva. “A cidade é muito baixa, próxima do nível do Rio das Velhas, por isso tem um dique de contenção, para evitar que as cheias entrem na cidade. Não foi a água do rio que alagou a cidade, mas sim a grande quantidade de chuvas”, explica.

Balanço das cheias 22

O cenário de alagamentos também se repetiu em outros municípios da bacia do Rio das Velhas. A cheia atingiu a capital Belo Horizonte, além de Itabirito, Rio Acima, Raposos, Nova Lima, Sabará, Santa Luzia e Santo Hipólito. O número de cidades em situação de emergência por causa da chuva ultrapassou 400 em Minas Gerais. Desde o início do período chuvoso, 25 pessoas perderam a vida no estado. No dia 09 de janeiro, no ponto de captação da Copasa, em Nova Lima, o Rio das Velhas atingiu uma vazão de 530 m³/s. Em comparação, no período mais crítico da estiagem, em setembro de 2021, o manancial registrava aproximadamente 10 m³/s. Segundo a Copasa, choveu no sistema produtor do Rio das Velhas, apenas nos 15 primeiros dias de janeiro de 2022, quase que o dobro da média histórica para todo o mês. Em relação a janeiro do ano passado, a primeira quinzena de 2022 teve cinco vezes mais chuva. Em Itabirito foi declarado, também no dia 09 de janeiro, estado de calamidade pública pelo cenário de destruição provocado pelo histórico volume de chuvas. No município vizinho, em Rio Acima, no mesmo dia o Rio das Velhas atingiu grande parte da cidade. Pessoas tiveram que ser resgatadas de barco e mais de mil cidadãos ficaram desalojados. Já em Raposos, cidade com aproximadamente 16,5 mil habitantes, quase 66% dos moradores precisaram deixar suas casas devido às inundações provocadas pelos temporais de janeiro. Aproximadamente duas mil pessoas ficaram desabrigadas e outras nove mil desalojadas. No distrito de Honório Bicalho, em Nova Lima, a situação mais crítica foi no dia 10 de janeiro. A água do Rio das Velhas subiu aproximadamente 2,5 metros, alagando grande parte da localidade.

Léo Boi

Léo Boi

As cheias também atingiram o Baixo Rio das Velhas. Vista de Santo Hipólito.

Presidenta do CBH Rio das Velhas, Poliana Valgas é também secretária de Meio Ambiente e Saneamento de Jequitibá e representante da Defesa Civil municipal.

O secretário do CBH Rio das Velhas, Marcus Vinícius Polignano, destaca que os transtornos causados nas cidades não são culpa das águas. “Sofremos três anos seguidos com volumes de vazões do rio extremamente baixos. Há pouco estávamos discutindo a escassez e, agora, estamos falando sobre a abundância que chegou de repente. Não dá para brigar com as chuvas, que são um fenômeno natural que ocorre há anos e que continuará a acontecer. Também não dá para brigar com a cheia do rio, que é absolutamente natural, pois não temos como dimensionar o volume de água que vai cair. Mas podemos afirmar que eventos extremos como o de escassez e de chuvas abundantes serão cada vez mais frequentes, devido às mudanças climáticas, o que nos mostra a urgência em mudar a forma como lidamos com as águas”, acrescentou. De acordo com Polignano respeitar a natureza é o primeiro passo. “Quando vemos inundações em cidades dentro da bacia do Rio das Velhas, diversas dessas casas estavam praticamente às margens do rio. Margem de rio é uma área de inundação que deve ser preservada e não ocupada. Se ficarmos brigando por esse modelo de ocupação, vamos perder em todas as chuvas. De imediato, as prefeituras precisam pensar em um plano de realocação das comunidades mais carentes, que todos os anos sofrem com as inundações e são vítimas do mesmo processo. É cada vez mais essencial ter políticas públicas para dar segurança a essas pessoas e um Plano Diretor que seja respeitado”, completou Polignano. Neste sentido, o CBH Rio das Velhas planeja o desenvolvimento de estudos sobre as planícies de inundação de cada município e um plano para atender contingências climáticas na bacia. O objetivo é embasar as políticas públicas a serem adotadas para evitar a ocupação das áreas de inundação e, gradativamente, promover o processo de realocação das famílias que vivem em áreas de risco.


Durante a cheia, Rio das Velhas ocupou suas planícies de inundação em Raposos, hoje apropriadas pelo adensamento urbano.

Quer saber mais sobre os impactos da cheia na bacia do Rio das Velhas em 2022? Assista ao vídeo: bit.ly/cheias-2022

Marcos Neves

Marcos Neves

Marcos Neves

23


Uma estranha lama Além da intensidade das chuvas, outra coisa atraiu a preocupação das cidades atingidas: a lama que cobriu casas, quintas, ruas, pontes e até telhados. “Muito estranha, espessa, viscosa, homogênea, que parece processada”, notou Glauco Gonçalves Dias, da ONG Casa de Gentil, morador de Raposos e integrante do Subcomitê Águas do Gandarela, vinculado ao CBH Rio das Velhas. Quase um mês depois do pico das cheias, a lama continuava nos bairros Vila Bela e Matadouro. Já em Itabirito, após os dias de sol forte e limpeza, adquiriu a forma de “poeira com particulado muito fino, característica de minério”, conta Heloísa França, do Subcomitê Rio Itabirito e gerente técnica do Serviço Autônomo de Saneamento Básico (SAAE) da cidade – que também sofreu com a lama densa de até “um metro de altura” e gastou máquinas, caminhões e retroescavadeiras para limpar a sujeira, tal a consistência do material acumulado.

Pelo levantamento inicial, estima Heloísa, “os prejuízos, só do SAAE, incluem sistemas de esgotamento avariados, parte da rede de interceptação rompida, danos em elevatórias e vários sistemas de drenagem obstruídos pelo enorme volume de lama”. Após o auge da cheia, foi constituída uma força-tarefa de coletores voluntários, inicialmente em Raposos, Nova Lima, Rio Acima, Itabirito e Ouro Preto, para recolher amostras de águas, sedimentos, solos e lama que atingiram o Quadrilátero Ferrífero e seu entorno. Na outra ponta, uma rede de instituições e pesquisadores se pôs em movimento para coordenar a coleta e prosseguir com a investigação. O Grupo de Pesquisa em Educação, Mineração e Território, os laboratórios de Educação Ambiental e Pesquisas da UFOP e de Solos e Meio Ambiente da UFMG, o Movimento pelas Serras e Águas de Minas (MovSAM) e o Projeto Manuelzão se uniram e já tinham cadastradas, até o final de janeiro, 55 amostras, sendo 16 de água e 39 de lama.

Robson Oliveira

24

Ohana Padilha

O passo seguinte, segundo Paulo Rodrigues, geólogo do Centro de Desenvolvimento da Tecnologia Nuclear (CDTN) e ativista do MovSAM, é “contactar organizações idôneas, independentes e tecnicamente capacitadas para analisar a lama da enchente, nosso foco principal neste momento”.

Glauco Gonçalves Dias (à esquerda) pede que lama que ficou em Raposos após o recuo das águas seja investigada.

Glauco Gonçalves Dias afirma que a Polícia Civil esteve em Raposos para investigar e questiona: “Queremos saber se essa lama tem dona”. A prefeitura confirma: “Realmente estamos solicitando uma investigação da lama encontrada no município. Na última enchente [em 2020] a quantidade de lama foi bem menor. Já nesta última enchente, a lama atingiu de forma intensa ruas e moradias. Assim o município entende ser necessária uma análise mais criteriosa do ocorrido”.

Quase um mês depois do pico da cheia, lama ainda continuava nos bairros Vila Bela e Matadouro, em Raposos.


Robson Oliveira

O modelo de cidade esponja Os anos passam e o roteiro das chuvas de verão é o mesmo há décadas. Até quando a população conviverá com o caos? O arquiteto e urbanista Sérgio Myssior afirma que medidas poderiam amenizar e até prevenir cenas comuns em período de chuva. “Primeiro é preciso mudar o curso da política ambiental, de saneamento e de drenagem do município. Essas obras estruturantes de macrodrenagens [em construção em Belo Horizonte] são importantes, apesar de já chegarem atrasadas. Mas é essencial que a cidade adote uma política distribuída em todo seu território: uma política de microdrenagem que se traduz em política de particulares, tanto empresas, quanto poder público, através de políticas que viabilizem implantar jardins drenantes, caixas de retenção e de reuso de água, aumento de áreas verdes e áreas permeáveis, assim como a recuperação de áreas degradadas”, definiu. Com soluções baseadas na natureza e o investimento em infraestrutura verde é possível transformar o ambiente construído e melhorar a qualidade de vida nas cidades. “E se a água de chuva, a mesma que causa inundações e prejuízos, pudesse se transformar em um ativo urbano de grande valor? Esta é a ideia central da cidade esponja, uma nova orientação no planejamento e na gestão urbana que vem sendo introduzida em grandes cidades, especialmente na China, onde mais de 65% da população encontra-se em áreas com potencial de inundações e alagamentos”, explicou o urbanista. A cidade esponja busca absorver, reter, infiltrar em terreno natural e reduzir o escoamento superficial, especialmente retardando a contribuição naquele momento de pico das chuvas. E são Soluções Baseadas na Natureza (SbN), ou seja, recursos naturalísticos e relacionados à infraestrutura verde.

Mas é possível adaptar uma cidade existente para essa orientação de Cidade Esponja? Sergio Myssior explica que sim. “Com certeza, este é o objetivo, explorar a incrível capacidade de transformação das cidades! A primeira regra é não repetir as receitas do passado e esperar resultados diferentes. Os municípios devem buscar o planejamento e a gestão integrada das políticas de desenvolvimento e sustentabilidade urbana, inclusive ampliando para uma abordagem regional e intermunicipal, de forma que a bacia hidrográfica seja adotada como referência territorial”, acrescentou. Jardins de chuva, parques lineares, pisos drenantes, passeios e ruas permeáveis, telhados verdes, caixas de retenção e valas de infiltração forçada, renaturalização de cursos d´água, recuperação de Áreas de Preservação Permanente (APP) e uma infinidade de dispositivos de micro e macrodrenagem constituem os elementos da cidade esponja. O recurso hídrico absorvido nesse modelo é fundamental para garantir a recarga do aquífero. A água armazenada poderá ser reutilizada, valorizada e usada de maneira racional e integrada à paisagem urbana. “Mas a cidade esponja não é uma solução mágica e instantânea. Dificilmente atenderá aos gestores que prometem soluções milagrosas ou que não estejam dispostos a ‘ousar’ na gestão urbana”, finalizou Sergio Myssior.

25


Olhares

26


Rio das Velhas Histórias

“O Rio das Velhas lambe as casas velhas, casas encardidas onde há velhas nas jinelas”. (Carlos Drummond de Andrade, “Sabará”)

Aníbal andava pelas ruas da cidade em busca de uma inspiração para um conto. A água do chafariz Kaquende não era a fonte de Castália e não lhe trouxe a inspiração. Resolveu atravessar a pontezinha do ribeirão e foi para os lados do Solar Melo Viana, pensando em subir a ladeira do Morro da Cruz. Quem sabe, escreveria um conto surrealista, em que o bandeirante Borba Gato encontrasse o cão Quincas Borba, que viera de Barbacena? Foi atraído por uma velha, que apareceu na inexistente janela das ruínas do Solar Melo Viana. A janela, como num passe de mágica, incrustou-se na derrocada parede do casarão. E, na janela, a velha. Aquilo atraiu algumas pessoas na ruazinha estreita, atrás da praça de esportes.

Conto de Caio Junqueira Maciel, extraído do livro Imagens Textuais de Sabará (Sabará, Borrachalioteca, 2021). Ilustração: Albino Papa

27


A velha começou a contar velhas histórias, num incessante fluxo, como se fosse o Rio das Velhas em correria para abraçar e se fundir com o São Francisco. A velha falou de um menino iniciado do vento; relatou sobre um triste senhor aposentado que partiu do Rio de Janeiro numa viagem em busca dos seios de Duília; e contou de uma família que precisava vender um piano; da morte de uma portaestandarte; de uma garotinha chamada Tati. Depois, discorreu sobre um certo João Ternura e passou a ler aforismos que estavam escritos no caderno de um tal de João. 28

Aos poucos, as pessoas foram se desinteressando das narrativas e deixaram a ruazinha. Ali só ficou Aníbal, que tudo anotava; a velha não parava de falar. E Aníbal reparou que o poeta Drummond estava certo em escrever “jinelas” em vez de janelas, pois a velha estava mesmo era numa jinela... Tudo muito estranho; e belo. Depois, a velha desapareceu, assim como a “jinela”. Aníbal viu folhas levadas pelo vento em direção ao Rio das Velhas. A noite desceu, surgiu a lua e todos os astros e zoroastros a iluminar a cidadezinha, que fica “a dois passos da cidade importante”.


29

* Caio é pseudônimo de Luiz Carlos Junqueira Maciel, natural de Cruzília, sul de Minas, mestre em literatura brasileira pela UFMG. Caio Junqueira Maciel publicou livros de poemas, como Sonetos dissonantes (1980), Felizes os convidados (1985), Pele de jabuticaba (2019) e Igrejinha do Rosário (2021). Publicou o romance Um estranho no Minho (2020) e os livros de ensaio A escritura do tempo na poesia de Dantas Mota (2020) e O sangue que rejuvenesce o sangue Drácula (2021). Participou de várias antologias, como a de contos em Coletivo 21 (2011), Adolescência e companhia (2012) e Micros-BH (2021).


Restauração

Ohana Padilha

30


Em busca do bioma perdido No caminho da recuperação ambiental, as florestas do Brasil largam na frente Texto: Leonardo Ramos

31 Professor Pedro Brancalion, da USP, lidera pesquisa para saber quais biomas são mais eficientes no processo de recuperação de áreas degradadas.

O Brasil possui a maior área florestal tropical recuperável do mundo. Essa é a boa notícia que um estudo publicado na revista Science Advances, em 2019, anuncia. Cientistas de vários lugares do mundo, liderados pelo professor Pedro Brancalion, do Departamento de Ciências Florestais da USP (Universidade de São Paulo), pesquisaram as florestas tropicais do planeta no intuito de levantar quais desses biomas seriam mais eficientes no processo de recuperação de áreas degradadas, buscando contribuir para que o processo de regeneração do ecossistema global seja mais ágil.

Gerthard Waller

“As florestas do Brasil possuem dois principais fatores que favorecem sua recuperação: por um lado, em geral, elas são muito eficientes em recuperar carbono, o que se traduz no fato de que elas crescem muito rápido; e, por outro, por conta do desmatamento excessivo, a recuperação pode evitar a extinção de muitas espécies de plantas e animais, o que as colocam como locais preferenciais de preservação”, explica Pedro Brancalion.


Fernando Piancastelli

32

Mata Atlântica e Cerrado, biomas da Bacia do Rio das Velhas, são prioritários para a restauração de ecossistemas no mundo, segundo pesquisador. Em destaque, a Estação Ecológica da UFMG, em Belo Horizonte.

“Restauração é remédio” Segundo o IEF (Instituto Estadual de Florestas), 40% do território de Minas Gerais pertence ao bioma Mata Atlântica, mas apenas 9,5% dele é composto de vegetação nativa remanescente, enquanto o Cerrado, que cobre 54% do estado, conta com 22,3% de seu bioma original preservado. Para o professor da USP, isso também inclui Minas Gerais como local em que a recuperação ecossistêmica pode ser muito eficiente. “Restauração é remédio: a gente só dá remédio para quem está doente. Assim, a degradação excessiva de muitas florestas no Brasil faz com que elas sejam prioridade para a restauração. Tanto a Mata Atlântica quanto o Cerrado são regiões prioritárias para restauração de ecossistemas no mundo justamente porque são biomas muito biodiversos e muito importantes para o bemestar humano, ao mesmo tempo em que também estão muito ameaçados.” Na Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas, que também se encontra numa área de transição entre a Mata Atlântica e o Cerrado, são muitos os agentes antrópicos que têm colocado essa diversidade

de espécies da fauna e da flora brasileira em risco iminente de extinção. Queimadas, agropecuária, mineração, expansão urbana e outras ameaças avançam sobre as florestas remanescentes. Na Região Metropolitana de Belo Horizonte, por exemplo, o Rio das Velhas e seus afluentes se encontram cercados de concreto, e todos os anos ao menos um grande incêndio atinge seus entornos. Mas, no interior de Minas, os rios da bacia não sofrem menos: água imprópria para consumo e leitos assoreados a jusante das grandes cidades carregam as cicatrizes da urbanização desregulada. Não faltam, porém, iniciativas que buscam não só preservar a floresta original como também recuperá-la ou restaurá-la.

Quer saber mais sobre o Viveiro Langsdorff, a produção das mudas e dos mutirões de plantio em Congonhas do Norte e na UFMG? Assista ao vídeo: bit.ly/plantio-recuperacao


Em novembro de 2021, no município de Congonhas do Norte, o diretor de Cultura, Turismo, Meio Ambiente e Igualdade Racial da cidade, Cloves Oliveira, mobilizou cerca de 80 alunos do Ensino Médio da Escola Estadual Capitão Miguel Jorge Safe para percorrerem a cabeceira do córrego Santa Maria, que abastece o município, plantando no entorno 500 mudas de espécies nativas da região. Segundo Cloves, muitos dos cursos d’água próximos, que abastecem o Rio Paraúna – considerado um dos mais importantes afluentes de boa qualidade do Rio das Velhas – sofrem com o assoreamento.

Cloves Oliveira liderou mutirão de plantio de mudas em Congonhas do Norte, no MédioBaixo Rio das Velhas.

Bianca Aun

Educar para a recuperação

Iniciativa envolveu 80 alunos da Escola Estadual Capitão Miguel Jorge Safe para recuperar cabeceira do Córrego Santa Maria, que abastece o município.

Léo Boi

33

Léo Boi

A ação, para ele, possui uma função essencial: contribuir para a infiltração da água das chuvas no solo e para o consequente revigoramento dos rios que por ali passam. “As árvores são a carga natural do rio. São várias as nascentes que contribuem para o Rio Congonhas, que vai desaguar no Paraúna. Com as mudas recebidas, vamos reflorestar as principais nascentes do município”, celebra. Essas mudas fazem parte de um total de 2.500 recebidas pela prefeitura de Congonhas do Norte do CBH Rio das Velhas. As espécies são provenientes do Viveiro Langsdorff, em Taquaraçu de Minas, uma parceria entre o Comitê, a Agência Peixe Vivo, a ArcelorMittal Brasil e o Subcomitê Rio Taquaraçu que, desde 2017, já produziu e doou mais de 180 mil mudas de espécies nativas da região em um total de 28 municípios da bacia.


“Plantar árvores é plantar água”

Para Renato Constâncio, vice-presidente do CBH Rio das Velhas, além de proporcionar a recuperação das áreas de Mata Atlântica e Cerrado degradadas, o plantio extensivo de mudas cumpre um outro papel de extrema importância: o de plantar água. “A cobertura vegetal proporcionada pelo plantio das árvores, quando elas se estabelecem, colabora com a permanência da água no solo onde foram plantadas. Através do Viveiro Langsdorff e da produção de mudas dos biomas Mata Atlântica e Cerrado, todas pertencentes ao território da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas, o Comitê buscou o fomento de disponibilidade de mudas para os projetos hidroambientais e a partir de demandas levantadas pelos municípios da bacia”. O Viveiro Langsdorff começou a distribuição de mudas em 2018 a partir de chamamentos públicos em que prefeituras, órgãos governamentais, cooperativas, ONGs e demais entidades interessadas na retirada gratuita de mudas pudessem também ter acesso ao programa. As mudas doadas fizeram parte de diversas ações envolvendo associações de moradores, escolas, faculdades, membros do Comitê, entre outros atores.

Ohana Padilha

34

Implicar a sociedade civil nessas ações possui um aspecto pedagógico importante, uma vez que especialmente as pessoas que moram em centros urbanos perderam muito do contato direto com rios e florestas, o que as impede também de entender os efeitos do uso desordenado de tudo o que este planeta nos oferece.

Vice-presidente do CBH Rio das Velhas, Renato Constâncio destacou importância do Viveiro Langsdorff na produção das mudas doadas para toda a bacia hidrográfica.

Fernando Piancastelli

As mudas produzidas pelo viveiro fazem parte do planejamento de ações do Comitê consolidadas no Plano Diretor de Recursos Hídricos, que incluem o “mapeamento das áreas degradadas existentes através de levantamento de campo; e a recuperação de uma área degradada em uma sub-bacia de controle através de projeto demonstrativo”.

Só para a recuperação da Estação Ecológica da UFMG Comitê doou 5 mil mudas nativas.

No meio do caminho tinha uma Estação Também em Belo Horizonte as mudas do viveiro já preparam o caminho da recuperação de áreas degradadas. Num local que havia sofrido recentemente com queimadas, entre ruas e nascentes, a Estação Ecológica da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) recebeu 5 mil mudas para suas ações de reflorestamento. O aluno de graduação em Geografia e bolsista do projeto Mais verde, mais vida, de iniciativa da Estação, Luiz Filipe Lima participou do processo de obtenção e plantio das mudas. Pensado inicialmente para a recuperação de áreas degradadas prioritariamente em regiões urbanas de vulnerabilidade social, o pontapé inicial do projeto foi dado dentro do próprio território universitário, em virtude da pandemia da Covid-19, no mutirão que aconteceu em dezembro de 2021. Luiz destaca que a parceria com o Viveiro Langsdorff possibilitou uma ação crucial para a valorização do espaço da Estação Ecológica enquanto área verde urbana. “O quarteirão 15 tem grandes áreas queimadas, assim como tomadas pelo capim. É uma ação importante para o equilíbrio ecológico não só da estação, como também de Belo Horizonte. A nossa proposta é levar mudas para outras áreas, principalmente dentro do meio urbano na Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas.” A professora Maria Auxiliadora Drumond, diretora da Estação Ecológica, explica a importância da unidade na preservação dos biomas. “A Estação possui 114 hectares, um dos maiores fragmentos de Mata Atlântica e Cerrado, uma vez que estamos numa área de transição entre esses dois biomas. São várias espécies exóticas e uma grande diversidade de fauna. Estamos situados numa região de expansão urbana, com uma avenida [Carlos Luz] que corta a estação em dois fragmentos, além de ser uma região que, em época de seca, sofre com incêndios florestais. Nesse sentido, o plantio das mudas ajuda a recuperar as áreas degradadas e contribui para a minimização dos impactos de mudanças climáticas, alterando localmente o microclima e protegendo as nascentes que existem na região.”


Covas abertas para plantio de mudas e recuperação ambiental no município de Nova União, no Médio-Alto Rio das Velhas.

35

Responsável por aquilo que cultivas

Léo Boi

O professor Pedro Brancalion ressalta, por fim, que a recuperação florestal necessita de esforços contínuos e acompanhamento cuidadoso para que o processo seja bem-sucedido, mas comemora realizações como a do Viveiro Langsdorff. “Essa com certeza é uma iniciativa importante: disponibilizar mudas para que o processo de restauração ocorra. Em várias situações, facilitar a vida daqueles que querem investir em restauração, mas não têm condições para isso, é uma condicionante essencial. Mas, não é a única solução, nem deve ser a única iniciativa. Muitos plantios não se consolidam como florestas restauradas por conta de vários motivos que impedem o desenvolvimento das mudas – como capins invasores, gado na região do plantio, incêndios e outros fatores. Por outro lado, a restauração também pode ser eficiente sem o plantio das mudas, por meio da regeneração natural, desde que também essa área seja isolada e que a floresta possa se regenerar sem ser atrapalhada”, conclui.


Márcia Alves

Entrevista

36

Tasso Azevedo foi Diretor Geral do Serviço Florestal Brasileiro e Diretor Executivo do Imaflora. Atualmente, lidera o MapBiomas e é Coordenador Geral do Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima (SEEG).


Brasil real revelado Coordenador do MapBiomas, Tasso Azevedo comenta a série de mapeamentos que jogou luz para o avanço da degradação ambiental em todos os biomas, estados e bacias hidrográficas do país Por Luiz Ribeiro Infográficos: Clermont Cintra

O Brasil perdeu 3,1 milhões de hectares (ha) de superfície de água em 30 anos, uma redução de 15,7% que equivale a mais de uma vez e meia a superfície de água de toda região nordeste em 2020. A tendência de perda foi observada em todos os biomas e todas as regiões hidrográficas do país que guarda 12% das reservas de água doce do planeta. Com 40% de redução, a Bacia do Rio das Velhas foi a 7ª subbacia hidrográfica, dentre 76, que mais perdeu superfície de água nas últimas três décadas. O território do Rio São Francisco como um todo reduziu 15% em águas. Entre os estados da federação, 23 tiveram redução de superfície de água e Minas Gerais foi o 3º pior nesse indicador, com um saldo negativo de mais de 118 mil ha. De 1985 a 2020, o Brasil também perdeu 82 milhões ha de vegetação nativa, enquanto a agropecuária avançou 81,2 milhões ha – um acréscimo de 44,6%. Na Mata Atlântica, dois terços do bioma hoje são ocupados pela agropecuária. 24 das 27 unidades federativas do país registraram perda de cobertura original nesse período. A cada ano, uma área equivalente à Inglaterra – 150 mil km² – é queimada no Brasil. Entre 1985 e 2020, quase 20% do território brasileiro pegou fogo ao menos uma vez. Dois terços do fogo ocorreram em áreas de vegetação nativa e, no caso do Cerrado, a área queimada por ano desde 1985 equivale a 45 vezes a área do município de São Paulo.

Em 35 anos, a mineração sextuplicou no Brasil: de 31 mil ha para 206 mil ha. Quase três quartos da atividade no país ocorrem na Amazônia. Hoje, o garimpo já ocupa uma área maior que a mineração industrial e avança sobre terras indígenas e unidades de conservação. Os dados são fruto da série Brasil Revelado, do MapBiomas, iniciativa multi-institucional que envolve universidades, ONGs e empresas de tecnologia, focada em monitorar as transformações na cobertura e no uso da terra no Brasil. Quem está à frente dessa empreitada é Tasso Azevedo, engenheiro florestal formado pela Universidade de São Paulo e pesquisador associado do Brazil-Lab na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Azevedo foi Diretor Geral do Serviço Florestal Brasileiro e Diretor Executivo do Imaflora. Atualmente, lidera o MapBiomas e é Coordenador Geral do Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima (SEEG). Em entrevista à Revista Velhas, Tasso Azevedo comenta a série de mapeamentos sobre o uso e a cobertura do solo, a água, o fogo e a mineração no Brasil, que evidenciou um país em processo franco de degradação ambiental. “Talvez estejamos próximos a um ponto de ruptura, em que a dinâmica do planeta pode começar a multiplicar ou aprofundar nossos impactos, em vez de atenuá-los”, adverte.

37


Os resultados da série Brasil Revelado são Nos últimos impressionantes. Para além da fotografia que ela nos 30 anos, a Bacia apresenta dos últimos 30/35 anos, o que a análise sobreHidrográfica essas séries históricas do nos sugere?

redução de superfície florestal, notadamente na Amazônia, tem impacto na disponibilidade de água e chuva, que por sua vez está relacionada com a seca, que por sua vez está relacionada com o fogo, que também está relacionada à disponibilidade de água. Essas coisas conversam e se potencializam. Somadas a isso as mudanças climáticas globais, a gente tem uma espécie de máquina trabalhando no sentido contrário da regeneração dos ecossistemas.

40%

1/5

149

72

202

201

201

201

201

81 Mha

Mil hectares

101

Corpo d’água Área não vegetada

201

201

201

201

206

Agropecuária

52

201

201

200

200

200

200

200

200

200

200

200

199

199

199

199

199

199

199

199

199

199

198

198

198

200

82 Mha

Formação natural não florestal

Aumento

83

2020

2019

2018

2017

2016

2015

2014

2013

2012

2011

2010

2009

2008

2007

2006

2005

2004

área minerada

2003

2002

2001

2000

1999

1998

1997

1996

1995

1994

1993

1992

1991

1990

1989

1988

1987

1985

(19,6% do Brasil)

1986

Particularmente, a Bacia Hidrográfica do Rio das 31 Velhas perdeu 40% de água superficial nesse período. O que explica essa tendência de redução de superfície de água que ocorre em oito das 12 bacias Em 2020, a hidrográficas do Brasil?

1.672.142

É interessante só notar no Brasil é que, quando você pensa nos cursos de água natural, a perda foi nas 12 bacias. 1985As principais 2020bacias que maior não 6x tiveram perda que é porque essas tiveram nesse período um OoBrasil teve [Bacia Hidrográfica] Tocantins-Araguaia, barramento grande. Na para reportado porperda exemplo,de isso82 fica muito claro: do lado do Araguaia há o ano de 1985, uma redução das superfícies de água natural porque não teve milhões ha dedo Tocantins, tem um levePerda 206 em saltando de barramento, e, no lado aumento, vegetação nativa que a perda água] natural estava sendo compensada por 31 mil[dehectares alocação de barragens. entre 1985 e 2020.

Nos últimos 30 anos, a Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas perdeu 40% de superfície de água.

82

Mil hectares

para 206 mil. Nesse período, a fatores, mas o principal Mha é que Sobre essa tendência há alguns 149 o regime de chuvas está mudando. Em geral, no Brasil, isso agropecuária está acontecendo: nem tanto uma redução do total das chuvas, aumentou 81,2 mas uma concentração da chuva num determinado período e o aumento dos períodos milhões ha. secos. E [para 101se ter] água nas bacias

2020

2019

2018

2017

2016

81 2015

2014

2013

2012

2011

2010

2009

2008

2007

2006

2005

2004

2003

2002

2001

2000

1999

1998

1997

1996

1992

1991

1990

1989

1988

1987

1986

31

1995

52

hidrográficas, é importante se manter a constância, sempre ter chuva, sempre ter água correndo e ter o processo de reciclagem 83 [das águas]72 que as árvores fazem. A mudança no clima está causando essa concentração de água em um período, então você tem às vezes enchente e logo depois uma seca prolongada – e, na média, a superfície de água foi diminuindo. O segundo fator é o Floresta desmatamento, porque nas bacias ele reduz a capacidade de você reciclarFormação a água. natural E aí tem especificamente a questão das áreas de não das florestal proteção, áreas ripárias, áreas de preservação permanente ou matas ciliares, Agropecuária porque elas têm a capacidade de promover a Mha retenção de água, funcionando como uma espécie de esponja que Corpo d’água Aumento retém a água durante o período úmido e vai soltando essa água de Área não vegetada forma mais lenta no período seco para manter os cursos d’água.

1993

40% 1985

38

Perda

Floresta

A gente pode dizer que, em geral, o planeta opera atenuando os nossos impactos, e, nesse momento, talvez estejamos próximos a um ponto de ruptura, em que a dinâmica do planeta, por conta dessas alterações todas, pode começar a multiplicar ou aprofundar os impactos, em vez de atenuá-los. A floresta, por exemplo, vinha atenuando os nossos impactos, crescendo, se recuperando e capturando o carbono que a gente emite para a atmosfera. Mas, à medida em que a gente está impactando, desmatando, degradando recursos e chegando próximo a esse ponto de ruptura – na Amazônia, por exemplo, já tem regiões que não conseguem capturar mais carbono do que emitem – ela agrava o problema. Então essa é a questão fundamental: como km² manter o planeta como um aliado, que nos ajuda a atenuar e minimizar os nossos impactos, em vez de agravá-los.

2020

1985

O Brasil teve perda de 82 milhões ha de vegetação nativa Ementre 2020,1985 a e 2020. Nesse período, a área minerada noagropecuária Brasil é 6x aumentou maior que81,2 milhões ha.para o reportado o ano de 1985, saltando de 31 mil hectares para 206 mil.

Rio das Velhas Que estamos num processo de degradação dos recursos perdeu 40% de naturais. A gente observa isso tanto na perda de cobertura de vegetação nativa no Brasil, quanto pela perda de superfície de superfície água e a degradação causada pelo fogo – e esses três processos deestando água. acabam relacionados. O efeito da degradação e

do solo brasileiro já queimou ao menos uma vez desde 1985.

198

198

(19,6% do Brasil)

1994

desde 1985.


Especialmente no Cerrado, a água natural de rios livres está perdendo espaço para a água antrópica, de reservatórios. Quais são as consequências disso no ciclo hidrológico, de maneira geral? Dependendo de como for feito e planejado, ele pode ser bom, como pode ser ruim. Se tiver dentro do Marco Regulatório e se forem reservatórios pensados e implementados a partir dessa lógica, autorizados e que seguem a regulação de uso dos órgãos reguladores, eu diria que eles são positivos.

Léo Boi

O problema é que a gente tem uma grande quantidade de reservatórios que são informais. E qual é a diferença de um para outro? É que nos reservatórios que são cadastrados, registrados, e que são reservatórios de uso público, eles são caracterizados por serem de uso múltiplo. Então, a gestão deles passa pela lógica do bem público, do benefício público. Um lago de hidrelétrica, embora seja vinculado a uma operação de hidrelétrica, a sua gestão tem que ser pensada de forma a lidar com as outras necessidades que se tem de água, seja o consumo humano, irrigação da agricultura, pesca – tudo o que precisar, além da geração de energia. A gente tem uma

quantidade muito grande de reservatórios informais, que são, na verdade, apropriação privada daquele recurso hídrico – e aí, como ele não está no sistema regulatório, ele impacta o sistema hídrico como um todo. O que eu quero dizer é que, dependendo de como forem feitos, os reservatórios são uma coisa boa, porque eles, digamos, mantém mais água, durante mais tempo, disponível. Mas eles não podem ser feitos em prejuízo dos cursos naturais, porque se a gente vai gerando um prejuízo para os cursos naturais, a gente está, talvez, gerando uma máquina que opera no sentido contrário. E tem alguns lugares que é trágico, né? Belo Monte talvez seja o melhor caso que se tem hoje que é uma tragédia, porque não se tem água para gerar energia, se destruiu uma parte gigante de um rio que tinha uma importância fundamental para a comunidade que está ali, e com enormes impactos na questão pesqueira e na biodiversidade local.

23% da água superficial no Brasil são de reservatórios e represas artificiais, como a Represa de Três Marias, na região Central de Minas Gerais.

39


Do ponto de vista de perspectiva, a área ocupada pela mineração no Brasil, proporcionalmente a outros usos da terra, é muito pequena. Nós estamos falando de 200 mil hectares, ou um pouco mais do que isso, que é 0,02% do território. Mas o problema é que onde tem mineração há um impacto muito profundo e, dependendo, um impacto que se alastra, especialmente através dos recursos hídricos. Antes, a gente [do MapBiomas] fazia os mapas de mineração tudo junto e, esse ano, nós aprimoramos a técnica de mapeamento de forma a captar não só as pequenas operações de mineração, que não estavam sendo captadas, como também separar aquilo que seria a mineração industrial do garimpo. E o que chamou atenção não foi tanto o crescimento de área da mineração como um todo, porque a mineração industrial ela vinha crescendo e tem mantido o mesmo ritmo de crescimento.

40%

2020

2019

2018

2017

2016

2015

2014

2013

2012

2011

2010

2009

2008

2007

2006

2004

2003

2002

2001

2000

1999

1998

1997

1996

1995

1994

1993

1992

1991

2005

Perda

82 Mha

Floresta

81 Mha

Formação natural não florestal Agropecuária Corpo d’água

Aumento

Área não vegetada Garimpo já representa 52% da área ocupada pela mineração no país.

O que chamou muita atenção foi o que aconteceu com o garimpo. Porque o garimpo, em geral, é uma atividade feita de forma irregular, e não só porque muitas vezes não tem autorização, mas porque não segue absolutamente nenhum padrão de controle ambiental, nem social, com condições de trabalhos muito ruins, operando sem salvaguardas ambientais nenhuma. E essas áreas não são recuperadas. Então, no caso do garimpo, é uma área que vai se acumulando, com enorme impacto sobre o recurso hídrico – porque tem contaminação com mercúrio e outras coisas – e tem esse fator de que ela está crescendo notadamente nos últimos anos em áreas protegidas, especialmente em terras indígenas.

Em 2020, a área minerada no Brasil é 6x maior que o reportado para o ano de 1985, saltando de 31 mil hectares para 206 mil.

206

Mil hectares

149 101 83

72

52

2020

2019

2018

2017

2016

2015

2014

2013

2012

2011

2010

2009

2008

2007

2006

2005

2004

2003

2002

2001

2000

1999

1998

1997

1996

1995

1994

1993

1992

1991

1990

1989

1988

1987

1986

31 1985

40

1990

1989

1988

O Brasil teve perda de 82 milhões ha de vegetação nativa entre 1985 e 2020. Nesse período, a agropecuária aumentou 81,2 milhões ha.

Um dos estudos do MapBiomas mostrou que a 30 anos, a Bacia mineração cresceu mais de seis vezes entre 1985 Hidrográfica doessa mineração se dá e 2020. Em Minas Gerais, Rio das Velhas predominantemente de forma industrial, mas não são irrelevantes os números perdeu 40% de sobre garimpo – é o 5º estado com mais área destinada a essa atividade. superfície O que esses números revelam em relação às diferentes de água. dinâmicas das áreas de mineração e suas relações?

2020

1985

Shutterstock

Nos últimos

1987

1986

(19,6% do Brasil)

1985

uma vez desde 1985.


Depende do bioma e da situação. No caso do Cerrado,

ter fogo – e até com certa frequência – não é um evento que naturalmente seria raro. O fato de naturalmente não ser raro – mas raro que estou falando é pegar fogo a cada 10, 15, 20 anos – quer dizer que o ambiente está mais propício a lidar com o fogo. Mas, mesmo no Cerrado, a gente tem sinais de que ele está queimando mais do que deveria em algumas regiões. O que quer dizer isso? Quer dizer que o ambiente está se degradando. No caso do Pantanal e da Amazônia é uma outra história, e a mesma coisa vale para a Mata Atlântica. No Pantanal, embora o fogo seja algo que aconteça, especialmente nas áreas altas, para se ter fogo natural tem que ter ignição, que geralmente é raio. E raio vem, em geral, antes da chuva, então o fogo não pega grandes dimensões. Existe o fogo natural, mas ele vem, pega fogo, vem o vento, vem a chuva e apaga. Então, você convive, dá tempos de os bichos escaparem.

Como esses estudos se complementam? Quais fotografias comuns eles trazem? Eles adicionam layers [camadas] de informação que se comunicam, tem vasos comunicantes para tudo. E o que é importante a gente entender é: quais os processos que levam a um processo de degradação, ou que levam a um processo de regeneração, ou a um processo virtuoso em relação ao uso do território. A ideia é que – e é para isso que a gente produz esse dado – seja na academia, sejam nas formações de políticas públicas, sejam nas decisões empresariais, a gente possa levar em consideração esse conhecimento para tomar decisões que, basicamente, ajudem a gente a conservar e regenerar esse recurso natural, seja o solo, seja a água, seja a biodiversidade, que estão na base do que sustenta a vida no planeta hoje. A nossa vida, porque o planeta não está nem aí. Ele estava aí muito antes da gente, vai estar aí muito depois da gente e, para ele, tanto faz a gente estar aqui ou não. Mas interessa à gente fazer com o que o planeta funcione ainda de forma que nos proteja.

O que a gente está tendo hoje é um efeito muito mais complexo, que é uma seca aprofundada no Pantanal, que você vê a olhos vistos: a gente está falando de uma redução de quase 60% da superfície de água do Pantanal, entre 1985 e 2020. E as conversões de pastagem nativa para pastagem plantada geraram um regime diferente de uso do fogo, em que você o usa na época mais seca para renovar pastos e esse fogo escapa para dentro de áreas naturais, que já estão mais secas, e isso realmente não é algo que o Pantanal está acostumado ou suporta. Então, o impacto na fauna é uma coisa impressionante, porque, além de o bicho morrer queimado, o bicho que sobrevive não tem o que comer. A gente está para entender ainda a extensão da consequência do que estamos vendo agora. Para a Amazônia, é mais complexo ainda, porque lá os eventos de fogo são muito raros. A chance de se ter fogo em algum lugar da Amazônia é de 1 para 500 anos. E ainda precisa ter um raio, basicamente, para gerar fogo. Então, é possível afirmar que praticamente todo fogo que tem na Amazônia é causado pela ação humana, que é ou renovação de pasto, ou colocar fogo em área recém desmatada para terminar o trabalho. E é esse fogo que vai para dentro da floresta, ainda mais na fase seca. E a floresta acaba apagando o fogo, só que, no processo de apagar o fogo, a floresta se degrada, e ela não tem os instrumentos de recuperação rápida e de proteção contra o fogo que tem o Cerrado. E, se você degrada uma vez com fogo na Amazônia, a floresta é capaz de se recuperar em talvez 10, 15, 20 anos. Se pega fogo duas vezes, nesse período que ela tinha para se recuperar, esse prazo aumenta para 30, 35, talvez 40 anos. E, se pegar fogo três vezes, a gente nem sabe se recupera ou não, não tem dado para isso. E aí está tudo ligado, porque se a Amazônia vai se degradando, ela tem menos capacidade de jogar água para atmosfera, que representa 1/3 da chuva no Brasil; e aí menos capacidade de jogar água para atmosfera, fica mais seco, mais seco mais fogo, mais fogo mais degradação das águas...

41

E á n 6 o o s 3 p

1/5 do solo brasileiro já queimou ao menos uma vez desde 1985. Nos últimos

1.672.142 km²

(19,6% do Brasil)

31 1985

Vocês também revelaram que 1/5 do território brasileiro já queimou ao menos uma vez desde 1985. O Cerrado é o 2º bioma que mais queimou (36% da área, só atrás do Pantanal, com 57,5%). Quais as implicações disso a médio prazo?


Aquecimento global

A agropecuária na encruzilhada do clima

Fotomontagem: Albino Papa

42


Setor responde por mais de 70% das emissões de gases de efeito estufa e sofre pressão por sustentabilidade Texto: Paulo Barcala

Marcio Astrini, Secretário Executivo do Observatório do Clima, destaca que o setor agropecuário, embora seja o maior emissor de gases de efeito estufa no país, será o mais atingido pelo aquecimento global.

O governo brasileiro assumiu, na 26ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre o Clima (COP26), realizada em novembro último, uma série de compromissos para “fazer o dever de casa” no desafio de conter o aquecimento global e evitar mudanças climáticas ainda mais drásticas, entre eles reduzir a emissão de gases de efeito estufa (GEE) em 50% até 2030 e zerar o desmatamento ilegal até 2028. Na encruzilhada que pode conduzir tanto ao alcance das metas como ao desastre ambiental e climático está a agropecuária. Dados do Observatório do Clima, que reúne 70 entidades da sociedade civil brasileira para analisar as mudanças climáticas no contexto nacional, mostram que as atividades rurais foram responsáveis, em 2019, por 72% do total de 2,17 bilhões de toneladas de GEE emitidos pelo Brasil naquele ano. Apenas as emissões de metano pelo rebanho bovino corresponderam a 17% do total de emissões de GEE do Brasil em 2020. O metano é o segundo maior causador do efeito estufa, atrás somente do dióxido de carbono, mas capaz de aquecer a atmosfera 28 vezes mais do que o CO². Para Marcio Astrini, especialista em Gestão e Políticas Públicas e Secretário Executivo do Observatório do Clima, “o Brasil tem toda a possibilidade de cumprir os compromissos assumidos na COP 26, mas este governo não irá cumpri-los”. Ele ainda chama atenção para o que deveria ser evidente: “a sustentabilidade traz benefícios gerais para o país, mas também melhora o desempenho do setor agropecuário, que será o mais atingido pelo aquecimento global e é dependente da regularidade climática para produção em grande escala”.

Márcia Alves

“Desmatar condena a agropecuária pelo desequilíbrio climático e ainda pela pressão internacional”, lembra, referindo-se às legislações fortemente restritivas que Europa, EUA e China estão adotando para eliminar de seu cardápio o desmatamento. “Os criminosos ambientais”, fulmina, “usam terra pública, atividade madeireira ilegal, garimpo ilegal, ataque a áreas protegidas. Hoje assumiram a presidência da República, que estimula o crime, fazendo boa parte do setor refém desses criminosos”.

43


Plano Diretor da Bacia do Rio das Velhas tem agenda para o setor A agropecuária ocupa quase 44% da área da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas, com mais de 12 mil km², notadamente no Médio Baixo e Baixo Velhas. Com tamanha extensão, a atividade é uma importante fonte de contaminação difusa, geração de processos erosivos e retirada de cobertura vegetal natural. O manejo inadequado do solo gerou áreas degradadas na bacia, especialmente de pastagens. O uso da água na agricultura irrigada nem sempre é racional e não há planejamento territorial adequado para a gestão de recursos naturais e para o desenvolvimento sustentável. Para enfrentar o assunto, o CBH Rio das Velhas tem, em seu Plano Diretor de Recursos Hídricos (PDRH), a chamada Agenda Estratégica Laranja, que prevê diversas ações voltadas para o setor agropecuário: controle da carga poluidora, apoio à reservação local, incentivo a programas de uso racional de água, melhoria do controle de sedimentos e erosão, planejamento para uso eficaz da irrigação e recuperação de áreas degradadas.

No entanto, segundo Resende, apesar de o volume, em quilos de agrotóxico por hectare, ser bem menor na Bacia do Rio das Velha do que em outras regiões de Minas, a adoção do método por si só “é uma preocupação”.

“O maior problema ambiental relacionado à agropecuária na nossa bacia são as pastagens degradadas”, diz. E acrescenta: “50% da chuva cai sobre as pastagens. Quando o solo está exposto, a água escoa em forma de enxurrada, causando erosão, aumentando a turbidez e o assoreamento”. A solução pede técnicas simples, explica: “Se aduba a pastagem, cresce o capim, sequestra mais carbono, melhora a absorção da água da chuva, quase zera o escoamento”.

Servidor aposentado da Emater e ex-conselheiro do CBH Rio das Velhas, Ênio Resende aponta as pastagens degradadas como o maior problema ambiental do setor na bacia hidrográfica.

Ohana Padilha

44

Ênio Resende, engenheiro agrônomo e servidor aposentado da Emater, era vice-presidente do CBH Rio das Velhas quando o PDRH – cuja primeira versão data de 2004 – foi atualizado, em 2015. Para ele “a agropecuária tem um destaque muito grande por vários motivos e um deles é com relação ao tamanho da área ocupada, praticamente três quartos do estado”. E prossegue: “O setor tem tudo a ver com a água. Não se faz gestão das águas sem envolver os produtores rurais, um dos mais importantes atores na gestão de recursos hídricos”.

Resende avalia que o setor agrário tem baixa expressão na Bacia do Rio das Velhas, mas ressalva as regiões fisiográficas do Médio Baixo e Baixo Velhas, onde a atividade é maior. Mesmo nelas, contudo, o porte não se compara ao de outras regiões do estado, como explica: “Pelo Censo Agropecuário de 2017, a população bovina da bacia era de 77 mil cabeças, enquanto só Campina Verde, no Triângulo Mineiro, tem mais de 300 mil. Curvelo tem 6.400 hectares de milho. Só Unaí, no Noroeste, tem 343 mil”.


Infográfico: Clermont Cintra

Distribuição das classes de uso e cobertura do solo Bacia do Rio das Velhas

Vegetação Arbustiva - 37,27%

Vegetação Arbórea - 7,87%

45

Silvicultura - 2,97%

Agropecuária - 43,87%

Área Urbana - 2,92%

Queimada - 2,52% Afloramento Rochoso - 1,71% Hidrografia - 0,41% Agricultura Irrigada - 0,26% Mineração - 0,26%

Fonte: Plano Diretor de Recursos Hídricos da Bacia do Rio das Velhas, 2015.


Agropecuária responde por 72% das emissões de gases de efeito estufa no Brasil; na bacia do Rio das Velhas, setor ocupa quase 44% do território.

Bianca Aun

Bianca Aun

46


Léo Boi

O produtor rural entrou no clima Ana Paula Mello, gerente de Meio Ambiente do Sistema FAEMG (Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Minas Gerais), considera que “as metas da COP26 são ousadas e geram para o Brasil grande necessidade de ações, recursos e a necessidade de adequar as políticas públicas à realidade do setor”.

47

Mello aponta caminhos: “O Plano ABC mitigou, na última década, cerca de 170 milhões de toneladas de carbono. Há um grande potencial, com aplicação de tecnologias, para a redução das emissões”. Mas mostra a dimensão do desafio: “Em Minas, temos uma Inglaterra inteira em matas nativas somente nas propriedades rurais, que são número de quase um milhão. A tecnologia existe, da Embrapa e de outras instituições, para promover a integração de lavoura, pecuária e floresta, quase como um sistema fechado. Para abarcar esse universo enorme, é preciso investimentos, transferência de tecnologia, capacitação, assistência técnica. Como financiar isso?”, pergunta. A questão crucial é que o tempo para responder à indagação - e, em decorrência, colocar em movimento soluções de largo espectro - é cada vez mais escasso para a bacia do Velhas, para o estado, para o Brasil, para o planeta.

Ana Paulo Mello, da FAEMG, considera que as metas do Brasil na COP26 sejam ousadas, mas que setor quer alcançá-las.

Ohana Padilha

Segundo ela, ninguém deseja um cenário catastrófico. “Do jeito que a coisa está, já são sentidos os efeitos: geada na cafeicultura, secas e inundações, eventos climáticos extremos se tornando mais frequentes, com mais impactos à agropecuária.” Luz no fim túnel existe, acredita: “Todos queremos trilhar caminhos bons, conseguir chegar nessas metas de forma que o estado possa prosperar, com desenvolvimento sustentável, gerando renda e defendendo o meio ambiente”.


Ativismo

Shutterstock

48

A liderança sueca Greta Thunberg, de 19 anos: cara e voz do ativismo jovem contemporâneo.


Ana Corrêa, de Belo Horizonte, é fundadora da Uniclima, iniciativa criada para promover a sustentabilidade dentro das instituições de ensino superior.

Bianca Aun

Jovens: hoje eles decidem o futuro do meio ambiente Sem “blá-blá-blá”, nova geração de ativistas ambientais mostra que a mudança se faz na prática Texto: Michelle Parron

49 “A Terra está falando e ela nos diz que não temos mais tempo”, disse a liderança indígena brasileira, Txai Suruí, ao discursar na última Conferência do Clima (COP26), em 2021, na Escócia. Com apenas 24 anos, ela deixou seu alerta para o mundo sobre o que está acontecendo com as florestas e os indígenas brasileiros. Txai, assim como outros jovens ativistas ambientais, ainda nem tinha nascido quando a ciência fez seus primeiros alertas sobre os perigos das mudanças climáticas no mundo. Ainda assim, eles parecem atentos às mensagens que o planeta passou a dar em resposta às agressões e explorações que vem sofrendo há anos. Sem tempo para esperar que a salvação da Terra venha com os acordos e discursos cheios de “blá-blá-blá” das lideranças mundiais, como disse em tom crítico a ativista sueca Greta Thunberg, de 19 anos, durante o evento préCOP26, Youth4Climate, jovens de várias partes do mundo e de diferentes realidades estão cada vez mais engajados em fazer a mudança que precisa acontecer agora. Eles parecem não querer mais ouvir sobre metas de reduções de emissão de gases de efeito estufa, de redução da poluição e de medidas para preservação das florestas. Eles querem e estão agindo agora, inclusive os jovens do Brasil. Para Txai Suruí, a juventude brasileira é ativa e está preocupada com a política e o meio ambiente. “A COP26 teve a presença de uma grande delegação de jovens de todo o Brasil e eles trazem um recado de esperança e poder da transformação que precisa acontecer para termos um mundo que respeita o meio ambiente, que seja justo socialmente, com igualdade de gênero, antirracista e sem a exploração dos nossos corpos e territórios”, diz a liderança indígena.

No front para incomodar Conectada aos movimentos mundiais e promovendo mudanças dentro da sua própria universidade, Ana Corrêa, de 23 anos, é um exemplo de ativista que se organiza em coletivo e transforma. Natural de Belo Horizonte, formada em Relações Públicas e ativista climática há cinco anos, é fundadora da Uniclima, iniciativa criada para promover a sustentabilidade dentro das Instituições de Ensino Superior, que atualmente conta com 30 membros focados em demandar ações climáticas das universidades. Também é membro do Youth Climate Leaders e da Climate Students Movement. “A gente vê líderes globais falando o tempo todo em combater a fome, a pobreza, mas onde está a ação climática dentro disso? A crise climática é a crise das crises, não só pela questão interseccional de gênero, raça e classe, mas porque ela impacta tudo. Impacta a nossa alimentação, nosso transporte e quem mais vai sofrer é quem menos contribui para esse problema”, conta a ativista. O que motiva a Ana a continuar na luta ambiental é estar em coletivo e ver que as suas atitudes inspiram outras pessoas a agir. Ao longo de seus anos como ativista, ela já esteve em vários movimentos como a Anistia Internacional, Anonymous for the Voiceless, Mercy for Animals e Coalizão pelo Clima. “Ver a participação de lideranças jovens e, principalmente, negras aqui no Brasil, me dá esperança por ver essa representatividade ganhar um lugar para falar e manifestar sua indignação com o que está sendo feito no planeta, e também por deixar os políticos, as pessoas em lugares de poder, os tomadores de decisão desconfortáveis”, diz Ana.


Militância pela educação ambiental Interessado na geografia urbana, nos rios e no poder da educação não formal, Gabriel Noronha, de 28 anos, é aquele ativista que despertou curiosidade pelo seu entorno desde cedo, observando mapas. Formado em Geografia, foi como voluntário no Centro de Educação Ambiental - Programa de Recuperação e Desenvolvimento Ambiental da Bacia da Pampulha (CEA - Propam), em Belo Horizonte, que teve a oportunidade de sensibilizar outros jovens para a causa. “Eu acredito muito nessa educação que se expressa em placas, museus, espaços públicos, centros de educação ambiental, espaços comunitários, porque esses locais são espaços em que o estudante tem a oportunidade de aprender de um modo interdisciplinar, e isso é muito importante para a cidadania dele. No Propam, a gente levava os estudantes nas nascentes, nos parques, mostrava a Bacia Hidrográfica e até a estação de tratamento químico que tem antes da água chegar na Lagoa da Pampulha ”, diz o jovem. Uma das contribuições do Gabriel para a bacia da Pampulha, na capital mineira, foi ajudar a catalogar 507 nascentes para o Projeto Catalogador de Nascentes da Bacia da Pampulha.

Arquivo pessoal

50

Gabriel Noronha despertou curiosidade pelo seu entorno desde cedo, observando mapas.

Do cartão postal da capital mineira, descemos pelo Rio das Velhas até chegar a Buenópolis, onde vive Tamires Nunes, de 24 anos, outra jovem que atua pelo meio ambiente. Socióloga e pós-graduanda em Recursos Hídricos e Ambientais, foi criada na zona rural do município até a adolescência. Para ela, suas raízes dizem muito sobre sua relação com a causa ambiental. “Esta temática está sempre presente em minhas vivências, desde a infância, e até na minha crença espiritualista. Eu acredito na força da natureza como um organismo vivo e integrado à humanidade. Em suma, é a minha filosofia de vida lutar pelo meio ambiente”, conta Tamires. Sua militância começou na graduação. Passou a estudar Sociologia Ambiental e se aprofundou na agroecologia do Norte de Minas Gerais. Em 2019, ao participar do seminário de entrega do Projeto Hidroambiental do Subcomitê Rio Curimataí, Tamires foi convidada a integrar o colegiado vinculado ao CBH Rio das Velhas. De lá para cá, já travou diversas lutas como coordenadora pela sociedade civil do Subcomitê. Mesmo com essa vontade de fazer a diferença, ela ainda se frusta quando ouve a frase “precisamos educar as crianças para termos adultos melhores”. Isso porque, ela acredita que a responsabilidade da mudança precisa estar também nas atitudes dos adultos: “se partimos do pressuposto que as crianças reproduzem os comportamentos que observam, como podemos jogar na conta das gerações futuras nossos maus hábitos, sem ao menos darmos o exemplo de mudança de postura e ações?”, conta.


A luta com as mãos na terra De volta à capital mineira, uma outra ativista resolveu levar a sua luta ambiental através da alimentação. Lívia Pereira, de 22 anos, tem a sua trajetória ligada à agroecologia e para ela o alimento é uma discussão que atravessa muitos lugares, pois fala sobre território, colonialidade e injustiça social, temas que não se separam da causa ambiental. “A agroecologia é a minha bandeira de luta, onde eu encontro a construção de outros caminhos possíveis”, diz.

“Meu objetivo é ensinar e educar aqueles que vão visitar a pousada a terem mais consciência ambiental, para que eles possam sair de lá e aprender mais sobre conservação, sobre o Rio das Velhas e a Mata Atlântica, inclusive para mostrar como ela já foi quase dizimada. É preciso educar mais pessoas para que elas possam educar seus filhos, seus netos, seus amigos, e nisso a gente poder mudar o planeta”, explica. E os planos da Victoria não param por aí. Ela pretende reflorestar a área com plantas nativas e implantar o projeto Asas, que faz a soltura de animais silvestres que foram resgatados do tráfico pela Polícia Ambiental.

Bianca Aun

Desde que entrou na faculdade de Ciências Socioambientais, Lívia começou a se envolver com os movimentos de agricultura urbana de Belo Horizonte. Hoje ela atua no Parque do Brejinho com agrofloresta, mobilização social e educação ambiental. “O que me motiva é o meu amor pela mãe Terra e a dor que me dá de ver essas injustiças e violências que ela sofre em favor de poucos. Acredito que essa não seja a única forma de existir e que o progresso não é a única resposta. Por acreditar nisso é que sigo lutando, comunicando, sonhando e instigando as pessoas que estão comigo. A juventude tem muita força, muita potência a trazer para os movimentos sociais”, conta Lívia.

Na porção mais alta da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas, uma adolescente de 17 anos, que vive em meio a 110 hectares de Mata Atlântica preservada, entre Ouro Preto e Itabirito, está fazendo a diferença. Victoria Almeida resolveu transformar a pousada, que é o negócio da família, em uma ferramenta de preservação e conhecimento. Além de poderem descansar com a natureza ao redor, os hóspedes da pousada têm a oportunidade de conhecer as riquezas da fauna e flora da região e ainda contemplar o Rio das Velhas, que passa dentro da propriedade. Além de poderem andar às margens e tomarem banho de rio, a jovem faz questão de explicar para os hóspedes sobre a importância daquele curso d’água para Belo Horizonte e toda região metropolitana.

Arquivo pessoal

51

Bianca Aun

Lívia Pereira, de 22 anos, atua no Parque no Brejinho, em Belo Horizonte, com agrofloresta, mobilização social e educação ambiental.


Robson Oliveira

Das margens do Ribeirão da Prata, próximo à confluência com o Rio das Velhas, em Raposos, Casa de Gentil atua na transformação social e valorização cultural de crianças e adolescentes, destacando o pertencimento com o território e cursos d’água.

A transformação começa no quintal de casa A educação ambiental desde a infância é um dos papéis importantes que a Casa de Gentil realiza há nove anos, em Raposos. A organização, que atua na transformação social e valorização cultural dos moradores, realiza atividades com crianças e adolescentes, mostrando a importância do cuidado com o território e com o Ribeirão da Prata, que passa bem pertinho da Casa, e faz com que as crianças tenham convívio direto com as águas. “Quando a gente entende que o Ribeirão da Prata nasce lá em cima, no limite entre Rio Acima, Caeté, depois entra no limite Caeté/Raposos, e vem descendo, a gente começa a conversar isso com as crianças”, explica Rafael Gonçalves, idealizador e fundador da Casa de Gentil. Recentemente, a organização realizou a implantação de uma horta comunitária, uma ação em que crianças e jovens colocaram a mão na massa. Chamada de Horta Gentil, o espaço se tornou um local de trocas, de saberes e aprendizados entre as pessoas envolvidas. “A gente acredita na educação freiriana de emancipação, de tornar todos nós, educadores e educandos, seres mais críticos, fazendo questionamentos, vendo os reais potenciais desse território hoje, como ele evoluir e como podemos evoluir juntos”, explica Rafael.

“Mudar o mundo é fazer um esforço global executado localmente. As revoluções e transformações feitas a nível local, como por exemplo, o reflorestamento, as agroflorestas, o biomonitoramento, realizados pelo meu povo, bem como construir cidades mais sustentáveis com transporte público de qualidade, com menos desigualdades sociais e mais empregos verdes, podem mudar a realidade e, se executadas por todo o globo, podem mudar o mundo” diz Txai Suruí.

Pela mudança do clima, mapeando e protegendo nascentes, lutando pela segurança alimentar, mostrando a importância de um rio para um território, fazendo sua própria horta, não importa qual seja a luta desses jovens. Enquanto o mundo acompanha a lentidão da burocracia nos acordos internacionais, as novas gerações têm urgência e partem para a ação. Arquivo pessoal

52


Arquivo pessoal

53

Liderança indígena Txai Suruí, de 24 anos, foi a única brasileira a discursar na sessão inaugural da última Conferência do Clima (COP26), na Escócia, em 2021.


54

Entre a Serra do Espinhaço e o sertão mineiro

Leandro Durães

Unidades Territoriais


Recanto bucólico de paz, a bacia do Rio Pardo une história e belezas naturais em cenários singulares Texto: Luiza Baggio

Quem não gosta de sair por aí passeando e conhecendo lugares bonitos? Encravada na Serra do Espinhaço, a bacia do Rio Pardo nos apresenta muitas surpresas como serras, cachoeiras, corredeiras, várias grutas com vestígios do homem pré-histórico e cursos d’água preservados. Uma região que chama a atenção pela tranquilidade e pelas paisagens bucólicas, que atrai muitos turistas. O Rio Pardo é um importante tributário que garante uma recarga de vida e águas limpas ao Rio das Velhas. Sua nascente se localiza na Serra do Espinhaço, no município de Diamantina, e o curso d’água percorre 80 km até desaguar no Velhas, em Santo Hipólito. Tendo como principais afluentes o Rio Pardo Pequeno e o Ribeirão das Varas, a sub-bacia do Rio Pardo drena parte do território dos municípios de Augusto de Lima, Buenópolis, Diamantina, Gouveia, Monjolos e Santo Hipólito. Na região, os Rios Pardo e Pardo Pequeno são conhecidos como Pardão e Pardinho.

Dona Orlanda consegue identificar mudanças no meio ambiente. “O maior problema que eu acho é que o povo suja o rio. E o lençol vai só baixando e as nascentes secando. Isso tudo é a evolução do homem né?”. Se chamam de evolução, Dona Orlanda preferia não ter evoluído. “Nossa cidade é pequenininha e tem um monte de carro. Essa fumaça vai para um único lugar, que é a camada de ozônio. Hoje ninguém mais anda de cavalo ou bicicleta. A fumaça vai para camada de ozônio e o chorume para o lençol freático. E depois a gente bebe ele né? E depois a gente fica doente. Antigamente a gente tinha uma vida simples, mas todo mundo era feliz. A gente comia o que produzia, não existia agrotóxico, nada”. Aprendizados e críticas que Dona Orlanda aprendeu no cotidiano, na vivência. Comparando a vida de hoje com a que tinha quando era moça, ela percebe muitas mudanças. “O que antes eram embrulhos de pano e de papel, hoje são plásticos que viram lixo e se espalham por toda cidade. Com a poesia, Dona Orlanda expressa a angústia de ver as coisas mudarem sem conseguir impedir o surgimento de tantos problemas. “Ninguém dá conta de solucionar mais não. Se dois quiserem, mais se dois não querem. O que podemos fazer? Rezar, só rezar. O que é bom hoje, é problema para o futuro. Os que vão vir vão sofrer demais”. E se há tristeza em sua observação sobre o mundo, há muita alegria no viver. “Eu sou feliz demais. E falo com todos para cuidar do Pardo. E ainda digo: o campo da sabedoria é tão vasto que aquele que chama sábio ainda sabe pouco”, finalizou Dona Orlanda.

55

Álvaro Gomes

A Unidade Territorial Estratégica (UTE) Rio Pardo é terra de Dona Orlanda Aparecida Souza Braga, de 68 anos. Na década de 1970 ela foi morar em Monjolos e, desde então, tem o Rio Pardo como inspiração. Desde pequena tem o dom de rimar, mas foi ajudando a neta a escrever uma poesia para um trabalho de escola que Dona Orlanda começou a escrever. De estudo, tem só até o “segundo ano de grupo”, mas lendo muito e acompanhando as mudanças das palavras consegue escrever uma poesia em cinco ou seis minutos. “Muitas falam sobre meio ambiente; a maioria delas. Sou ambientalista nata”, diz.

Moradora de Monjolos, Dona Orlanda tem o Rio Pardo como inspiração para suas poesias.


A história da região vem da época do garimpo, que hoje é também fonte de interesse turístico, como é o caso da antiga ponte ferroviária sobre o Rio Pardo, localizada em Monjolos, remanescente da principal via de acesso à Diamantina. O antigo Ramal Ferroviário Diamantina-Corinto, inaugurado em 1914, deu lugar a uma ecovia chamada Trilha Verde da Maria Fumaça. Hoje percorrida por caminhantes, ciclistas e cavaleiros, o caminho oferece cenários e experiências únicos. Afinal, ela se estende por quase 100 quilômetros e faz a ligação entre a Serra do Espinhaço a leste e o Sertão Mineiro a oeste, unindo as localidades de Diamantina, Bandeirinha, Barão de Guaicuí, Mendes, Quartéis, Conselheiro Mata, Rodeador e Monjolos.

Com mais de três séculos de fundação, passando de povoado a arraial até chegar a município, Diamantina é uma cidade rica em história e tradições. Possui um patrimônio arquitetônico, cultural e natural rico e preservado. A sede do município não pertence à bacia do Rio das Velhas, mas grande parte da zona rural e de seus cursos d’água sim.

A UTE Rio Pardo está inserida na Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço, reconhecida, em 2005, pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) como Patrimônio Mundial e integra o circuito da Estrada Real. A Cadeia do Espinhaço é uma das regiões mais belas de Minas que se prolonga pelas terras da Bahia, atravessando os vários sertões de Guimarães Rosa.

Terra de Chica da Silva, do inconfidente Padre Rolim e do presidente Juscelino Kubitscheck, Diamantina tem sua formação intrinsecamente ligada à exploração do ouro e do diamante. Em 1990, o município recebeu o título de Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco e, atualmente, é uma das cidades históricas mais conhecidas e visitadas do país. O casario colonial, de inspiração barroca; as edificações históricas; as igrejas seculares; a belíssima paisagem natural e uma forte tradição religiosa, folclórica e musical conferem uma singularidade especial à cidade.

MAPA DE LOCALIZAÇÃO UTE RIO PARDO

o Ri

Sã irão be Ri

o

P

ar

io

s elha sV da

UTE Rio Pardo

re go do

Capão

Barão de Guaicui

a an nt

o da

s Varas irão da Ribe

Cór

Monjolos

de en qu

Senhora da Glória

a er av r im

R i b eirã

Rodeador

Sa

Diamantina

C órr

Conselheiro Mata

Pe qu en o

irão

Buenópolis

Bata tal

R ib e

Distritos

P ego

do

Santo Hipólito

Municípios

Augusto de Lima

Ma çan gan a

Ri

R

Rios e Córregos

oJ

Có rre go

de an Gr do r Pa

Ribeirão

LEGENDA

o

Buriti rego Cór

São João da Chapada

Augusto de Lima

Córr ego Ca

56

Antiga estação ferroviária de Barão de Guaicuí, distrito de Gouveia, onde passa a Trilha Verde da Maria Fumaça. Local foi transformado em centro cultural.

Fernando Piancastelli

Herança histórica do garimpo

iva Est

Gouveia

Gouveia Monjolos Santo Hipólito R io

Pa ra úna


Álvaro Gomes

Corredeiras e quedas d’água A UTE Rio Pardo também é reconhecida por suas belas quedas d’água. Conselheiro Mata é um distrito pertencente à cidade de Diamantina, criado em 1890 com o nome de Riacho das Varas e que chama a atenção pela quantidade de corredeiras de rara beleza. Além de bucólico, o lugarejo, com apenas uma rua principal, é emoldurado por casinhas coloridas e convidativas, além de ser cercado por 20 cachoeiras. Uma delas é a cachoeira das Fadas, o cartão postal de Conselheiro da Mata. Com aproximadamente 30 metros de queda d’água cristalina, forma um poço propício ao banho. Cercada por densa mata de transição e de galeria e afloramentos rochosos, é um lugar maravilhoso para quem gosta de banhos, trilhas e lazer em área verde. Uma ótima opção para quem deseja sair da rotina das cidades urbanas e que está em busca de um momento de descanso e de encontro com a natureza. Nem é preciso falar que as outras cachoeiras também são lindas. A dos Anjos fica próxima ao centro do distrito. Ali há várias quedas d’água não muito grandes e ótimas piscinas naturais para brincar. Mas a mais cobiçada mesmo é a do Telésforo. São 18 quilômetros do centro de Conselheiro da Mata até lá. A cachoeira é simplesmente linda, assim como o Rio Pardo, que é ladeado por areia branquíssima e finíssima. Um verdadeiro oásis no meio da mata e das montanhas. A queda d’água é um dos mais belos atrativos naturais da Bacia do Rio das Velhas e merece ser apreciada.

Espinhaço, ao fundo, próximo à localidade de São João da Chapada, onde nasce o Rio Pardo.

Augusto de Lima, Buenópolis, Diamantina, Monjolos e Santo Hipólito também possuem cachoeiras. Nesses municípios o urbano e o natural são retratados em harmonia.

Leandro Durães

Com 30 metros de queda e poço propício ao banho, Cachoeira das Fadas é uma das principais atrações de Conselheiro Mata (Distrito de Diamantina).

57


Alexandre tem mobilizado a população e os gestores municipais em busca da revitalização e preservação do território. “Temos buscado parcerias para projetos de revitalização que envolvem a construção de bacias de contenção de água das chuvas, entre outras ações que possam melhorar a qualidade ambiental da região”, esclareceu.

Os Subcomitês são ferramentas importantes na gestão de recursos hídricos constituindo um avanço na descentralização da gestão das águas. Seus membros exercem a função de articuladores das entidades existentes na sub-bacia e possuem funções públicas relacionadas às questões ambientais, sociais e educacionais.

Álvaro Gomes

58

A UTE Rio Pardo ainda não possui instalado um Subcomitê, instância ligada ao CBH Rio das Velhas. No entanto, Alexandre Magno tem mobilizado a população. “Tenho dialogado com moradores da bacia do Rio Pardo e acreditamos que, unindo esforços, alcançaremos as melhorias necessárias. Criar um Subcomitê na UTE Rio Pardo é um desafio, pois envolve a mobilização dos três segmentos da sociedade (poder público, usuários da água e sociedade civil organizada), mas é sem dúvida um objetivo que precisa ser alcançado”, afirmou.

Alexandre Magno tem mobilizado a população e o poder público em busca da revitalização do território do Rio Pardo.

Álvaro Gomes

Conservar a biodiversidade do território do Rio Pardo, região tão importante em termos socioambientais e culturais, é um desafio. Alexandre Magno Gonçalves é um ambientalista de Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), que frequenta a bacia do Rio Pardo desde pequeno. “A região sofre com a supressão da vegetação para a expansão das atividades agrícolas, o que tem ocasionado o assoreamento de alguns cursos d’água. Noto que há uma falta de incentivo de práticas agrícolas ambientais corretas para os proprietários rurais. Muitos sabem da necessidade de preservar o meio ambiente, mas precisam do sustento que vem da terra. Sem o incentivo acabam ficando desacreditados com as questões ambientais”, disse.

Fazenda em São João da Chapada (Distrito de Diamantina), cabeçeiras do Rio Pardo

Leandro Durães

A importância de preservar

Rio Pardo em Monjolos.


Em 2003, o Projeto Manuelzão propôs o compromisso de revitalizar a Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas até o ano de 2010. Dois anos depois, a proposta passou a fazer parte da carteira de projetos do governo do estado de Minas Gerais, surgindo assim a Meta 2010 e, posteriormente, a Meta 2014: navegar, pescar e nadar no Rio das Velhas na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). A Meta, respaldada pelo Plano Diretor do CBH Rio das Velhas, definiu estratégias, ações de saneamento e a recuperação ambiental, visando alcançar a melhoria das águas e a volta dos peixes ao rio. Em 2007, o então governador, Aécio Neves, afirmou que nadaria no Rio das Velhas – em trecho da RMBH – quando o projeto de revitalização da bacia começasse a dar resultados. Três anos depois, ele e o já empossado novo governador, Antônio Anastasia, cumpriram a promessa de nadar no rio, mas distante da Grande BH, em Santo Hipólito. Com as Metas 2010 e 2014 os resultados foram significativos, principalmente na região do Baixo e do Médio Rio das Velhas. Essas áreas, beneficiadas pelas intervenções na RMBH, apresentaram melhorias significativas na qualidade das suas águas.

Lucas Nishimoto

Mergulho simbólico em Santo Hipólito marca a Meta 2010

Os avanços, contudo, não foram suficientes para que o objetivo de nadar nas águas do Rio das Velhas na Grande BH fosse concretizado, em função do alto índice de coliformes fecais na região. Apesar desse ponto negativo do balanço, foram positivos os avanços na política de saneamento básico na bacia, o que tem possibilitado a volta dos peixes ao rio e a diminuição na ocorrência de mortandades.

Lucas Nishimoto

59

Rio das Velhas próximo à foz do Rio Pardo, em Santo Hipólito.


Também em 2010, a UTE Rio Pardo foi palco do Movimento Contra a Barragem no Rio das Velhas. À época, o vilarejo centenário de Senhora da Glória, município de Santo Hipólito, corria o risco de ser inundado pelas águas do Rio das Velhas. A população de Senhora da Glória, aterrorizada com a possibilidade de ter suas casas, histórias e vidas submersas, reagiu. Seus moradores acreditaram na mobilização como força para impedir a obra. A região de Senhora do Glória estava entre as cinco áreas mineiras escolhidas pelo governo federal para construções de barragens cujo objetivo primordial seria a reserva de água para a regularização da vazão para a transposição das águas do Rio São Francisco. As represas funcionariam como caixas d’água, que regularizariam a vazão do Velho Chico no período de estiagem. Elas não auxiliariam o abastecimento humano nem a produção energética.

Lucas Nishimoto

Barragem não!

Estudos realizados pelo CBH Rio das Velhas comprovaram a inviabilidade e os danos ambientais que seriam causados pela construção do barramento. A represa se transformaria num grande lago que exportaria algas tóxicas para o Rio São Francisco.

Apolo Heringer Lisboa (Projeto Manuelzão), Rogério Sepúlveda (então presidente do CBH Rio das Velhas), Antônio Anastasia (então governador de Minas Gerais) e outras lideranças em ato contrário à construção de barragem no Rio das Velhas.

Barragem no Rio das Velhas inundaria o vilarejo histórico de Nossa Senhora do Glória, distrito de Santo Hipólito.

Lucas Nishimoto

60


Pelas lentes de Leandro Durães, a Cachoeira do Telésforo, em Conselheiro Mata - símbolo da Unidade Territorial Estratégica (UTE) Rio Pardo. Para saber mais sobre a região: bit.ly/ute-rio-pardo


Realização

Apoio Técnico

Comunicação

Acesse nosso portal e redes sociais

cbhvelhas.org.br @cbhriodasvelhas

A Revista Velhas semestralmente homenageia um artista em suas contracapas. Nesta edição: Cabeça de nego, de DMS (Tela/canvas 150x100, Water based MTN, 2017).


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.