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“O MARCO HÍDRICO

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SAM BU RÁ

SAM BU RÁ

Em 30 de outubro, o país elegeu o novo presidente, Luís Inácio Lula da Silva. Qual a sua avaliação da política ambiental que se encerra? Qual o cenário que aguarda o presidente eleito?

Em quatro anos, vivemos um imenso retrocesso na política ambiental. Houve retrocessos em diversas áreas. Mas, no meio ambiente, ocorreu uma desconstrução. Para não ficar apenas na linguagem retórica, eu destacaria algumas questões fundamentais. O primeiro grande equívoco fora a transferência da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) do Ministérioo do Meio Ambiente para o Ministério do Desenvolvimento Regional. Desde a sua criação, no começo dos anos 2000, o fundamento dessa agência era o estabelecimento de toda uma estrutura de governança que levasse em conta a gestão do uso múltiplo das águas. Obviamente, a ANA não poderia ser subordinada a um campo de poder que prioriza um único uso. E o Ministério do Desenvolvimento Regional atua em políticas de irrigação.

Quando a ANA foi criada, o senhor era ministro do Meio Ambiente, correto? Sim. A criação da ANA não foi uma tarefa fácil no Congresso Nacional. Ela substituiu o antigo Departamento Nacional de Águas e Energia (Denae). Portanto, um modelo de gestão das águas subordinado à política energética acabara substituído por uma entidade que se colocaria num espaço político neutro. O governo Bolsonaro atropelou esse princípio básico. Da mesma forma, o serviço florestal brasileiro fora transferido do Ministério do Meio Ambiente para o Ministério da Agricultura.

Um contrassenso, em tese.

Faço parte de uma corrente de pensamento que defende a participação do Ministério da Agricultura nas questões ambientais, mas não dessa forma. Outro ponto basilar da nossa política ambiental desbaratada pelo governo Bolsonaro fora a gestão colegiada e participativa. Surpreendentemente, este modelo contemporâneo começara a ser implantado ainda na ditadura militar, graças à liderança do professor Paulo Nogueira Neto, da Universidade de São Paulo (USP). Os militares da época tiveram uma visão mais moderna de gestão do patrimônio ambiental do que o capitão Bolsonaro.

Como o senhor traduziria uma gestão colegiada e participativa para leigos?

Quando se fala de patrimônio ambiental, está se tratando de direitos difusos, os chamados direitos de última geração, que são direitos coletivos. A fruição desses direitos pressupõe uma governança colegiada e participativa para que a comunidade, a população possa participar da formulação e implementação de políticas públicas. Isto caiu por terra com a decisão do ex-ministro Ricardo Salles de reestruturar o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), retirando metade da representação. E fez pior: o Conama também era o espaço da federação. Todos os estados tinham assento. Esse espaço foi reduzido de 27 para cinco estados. O órgão, em suma, deixou de ser um conselho nacional para se tornar um conselho federal, onde o governo passou a deter o monopólio das decisões.

Em linhas gerais, qual o caminho que vínhamos traçando desde a redemocratização até 2018, quando Bolsonaro assumiu o governo?

Um processo de evolução contínuo e crescente, positivamente crescente, que começara em 1973, logo depois da primeira conferencial ambiental organizada pela Organização das Nações Unidas (ONU), na Suécia. No governo Médici, auge da ditadura, nascia a Secretaria Especial de Meio Ambiente (Sema). Em 1981, governo Figueiredo, editou-se a Política Nacional de Meio Ambiente, a Lei nº 6.938, que resiste como uma lei moderna. A partir dela, viera o Conama, uma conquista absolutamente inovadora. Depois, em 1988, tivemos a Constituinte, momento extraordinário, de solidificação da Lei nº 6.938/1981, instituindo o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, posteriormente regulamentado pela Lei nº 9.433, de 1997. Na minha opinião, a Lei nº 9.433 é a mais moderna política pública estabelecida no país até hoje. Por sinal, a apelidada “Lei das Águas” está completando um quarto de século. O que o senhor diria sobre o projeto do novo marco hídrico, em tramitação no Congresso?

Um mecanismo precioso da Lei nº 9.433/1997, que o Brasil ainda não soube usar, é possibilitar o estabelecimento da bacia hidrográfica como o espaço para o planejamento territorial e das políticas públicas. Estabelecer as bacias hidrográficas como unidade de planejamento permite um ganho na integração do sistema federativo brasileiro. Sempre tivemos um federalismo verticalizado, de decisões monocráticas e monolíticas. A revolução seria compartilhar o processo decisório. Nos Comitês de Bacia, já se aponta para o modelo horizontal, criando mecanismos de cooperação multilateral entre os entes federados para realização de políticas públicas de interesse coletivo.

Após a confirmação do resultado das eleições, líderes mundiais celebraram a vitória do meio ambiente. Qual era a expectativa em caso de reeleição de Bolsonaro?

Não havia expectativa, havia pânico. O mundo, representado pelas nações mais progressistas, estava em pânico com o Bolsonaro. Desde 1973, como já disse, vínhamos avançando, independente das colorações ideológicas. Cada governo foi colocando tijolos na construção. O que o Bolsonaro fez foi retirar os tijolos. Além dos retrocessos que já citamos, tivemos outros: o enfraquecimento deliberado do IBAMA, do Instituto Chico Mendes, a proibição de multas, a facilitação do garimpo ilegal. O que coloca o Brasil hoje no mundo é a Amazônia. Na medida em que o governo demonstrava lá fora as políticas permissivas para a devastação da floresta, isso foi causando um imenso mal-estar.

Por onde começar a retomada de uma agenda ambiental positiva? O que o senhor diria para o próximo ministro do Meio Ambiente?

Vamos falar de perfil. Eu acho que tem que ser uma pessoa com perfil aberto. O momento exige muito diálogo. O governo Bolsonaro estressou. O governo Lula tem que desestressar. Inclusive com os adversários do meio ambiente. A área de meio ambiente tem a missão de refazer as políticas desfeitas e dialogar. Todo mundo critica o agronegócio. Mas os ruralistas que estão no Congresso são os atrasados, os retrógados. Por outro lado, temos o agronegócio exportador que é moderno, ao qual não interessa essa política de terra arrasada, isto cria restrições do mercado externo. A pessoa que for dirigir o ministério tem que estender a mão para estes e isolar o atraso. A humanidade está enfrentando o maior de todos os desafios: a sobrevivência. Mesmo assim não assistimos a uma força-tarefa na profundidade que a ciência aponta. Em vez disto, negacionistas do clima ganham protagonismo. Por quê? Estamos em negação?

Na minha visão, o que está acontecendo é uma grande crise civilizatória. Uma crise de valores, valores que dão dimensão humanística à vida. Um extremo individualismo da sociedade contemporânea. Estamos vivendo sobre três paradigmas muito perigosos: o consumismo desenfreado, hedonismo sem precedentes, sem levar em conta interesses coletivos, e o individualismo. Obviamente tudo isto reflete nas políticas públicas e fortalece as ideologias de direita. Embora a classe média brasileira goste de maldizer a política, nunca a política foi tão necessária.

Como o senhor traduziria o que podemos esperar para as próximas décadas caso medidas drásticas não sejam tomadas? Quais as previsões mais pessimistas e otimistas?

Não acredito no fim do mundo. Mas acredito piamente que um mundo é substituído por outro. Nós nos esquecemos que no curso da história nós já tivemos cinco grandes extinções. A civilização atual age como se estivéssemos na última etapa evolutiva. O que é a mudança climática? É o sinal de um processo de evolução, que vai transformar a Terra. Somos tão antropocêntricos que dizemos que o planeta está em perigo. Ora, o planeta não está em perigo, já teve várias feições, quem está em perigo é a humanidade. O planeta vai continuar existindo, provavelmente com outros seres substituindo o homo sapiens . Essa visão individualista que já falamos é muito alimentada pelo antropocentrismo, o mais visceral que já tivemos. O que está em risco é a humanidade e não planeta.

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