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Legislação

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SAM BU RÁ

SAM BU RÁ

Ao completar 25 anos, a Lei no 9.433/1997, considerada uma das mais completas do mundo em termos de gestão hídrica, corre o risco de ser suplantada por um projeto do governo federal, em tramitação no Congresso, que ameaça as conquistas sociais obtidas ao longo de um quarto de século.

Por Hylda Cavalcante Ilustração: Clermont Cintra

Há exatos 25 anos era sancionada a Lei das Águas, como ficaria conhecida a Lei nº 9.433/97. Fruto de muita mobilização social, a nova legislação chegara representando uma verdadeira revolução, sendo considerada uma das mais completas do mundo em termos de gestão hídrica. Entre outros avanços, instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), estabeleceu instrumentos para a gestão dos recursos hídricos de domínio federal (rios que passam por mais de um estado ou fazem fronteira) e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Singreh). Agora, no entanto, essa lei tão vital está correndo o risco de virar lenda, com a tramitação, no Congresso Nacional, de um projeto do governo federal propondo um marco hídrico para o Brasil. Segundo especialistas, o projeto aponta na contramão da Lei das Águas.

“Foi uma legislação que teve como objetivo geral estabelecer um pacto nacional”, explicou o ambientalista Samuel Barreto, gerente nacional de água da The Nature Conservancy (TNC) Brasil e integrante de um grupo de trabalho dedicado à água da Organização das Nações Unidas (ONU). “Esse pacto fora estabelecido a partir da definição de diretrizes e políticas públicas voltadas para a melhoria da oferta de água, em qualidade e quantidade, gerenciando as demandas e considerando a água um elemento estruturante para a implantação das políticas setoriais, sob a ótica do desenvolvimento sustentável e da inclusão social”.

A opinião é unânime: qualquer proposta para atualizar a legislação vigente deveria passar por um processo de consulta à população, a exemplo do que acontecera nos anos que antecederam a sanção da Lei das Águas. O Brasil encontra-se no Olimpo, privilegiado com 13% da água doce disponível no planeta. Uma riqueza imensurável, quando os cientistas já alertam para o escasseamento preocupante dos recursos hídricos no mundo. De acordo com Barreto, a PNRH instituiu uma gestão descentralizada das bacias hidrográficas, além da participação da sociedade por meio dos Comitês de Bacias. “Mais do que isso, trouxe fundamentos importantes como o entendimento de que a água é um bem de domínio público dotado de valor econômico”, ressaltou.

A partir da Lei das Águas, estabeleceu-se uma engrenagem. As bacias hidrográficas se tornaram unidades de planejamento, com gestão voltada para a promoção da conservação da água e os usos múltiplos. Estabeleceu-se ainda a participação integrada do poder público, dos usuários e da sociedade nas tomadas de decisão. E, para completar esse sistema, foi criada, em 2000, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). Hoje, existem no país mais de 230 Comitês de Bacias Hidrográficas, que reúnem interesses setoriais das grandes bacias nacionais, das bacias transfronteiriças e de microbacias. “A Lei das Águas consistiu em uma mudança conceitual para o setor no país”, destacou Barreto.

Ele aponta exemplos diversos de que tanto a lei nacional quanto as leis estaduais de água, com os seus órgãos gestores, conselhos, comitês e agências de bacias hidrográficas, promoveram conquistas em relação à redução e ao gerenciamento de conflitos pelo uso da água. Uma delas diz respeito ao Nordeste e se traduz pelos mecanismos de alocação negociada de água na região. Outro exemplo aconteceu em São Paulo, durante a pior seca do estado, nos anos de 2014 e 2015. Após estudos e debates com a população, chegou-se ao entendimento de que era preciso aplicar os recursos disponíveis em ações de saneamento para a melhoria da qualidade dos rios. O Rio Jundiaí passou de um rio de classe de água 4 (considerado um rio morto) para um rio de classe 3, ajudando a promover o abastecimento da população.

“Também tivemos importantes diretrizes para melhoria da qualidade da água na zona rural, com investimentos em sistemas de saneamento e a incorporação na recuperação e conservação das bacias, de soluções baseadas na natureza (SbN), como restauração florestal, por exemplo”, disse o ambientalista.

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A consequência desse processo de consolidação do uso das águas no Brasil foi a criação, em 2017, do Observatório de Governança das Águas (OGA) - um movimento multisetorial com cerca de 60 instituições e 17 pesquisadores, que acompanha a governança das águas e sugere melhorias. Para o coordenador da Câmara Consultiva Regional (CCR) Baixo São Francisco do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), Anivaldo Miranda, esses 25 anos da Lei deveriam ser comemorados. “Passado um quarto de século dessa conquista que foi a Lei Nacional das Águas, que considero a melhor lei que já existiu por sua visão estratégica de futuro, infelizmente vamos comemorar sob um cenário de nuvens muito carregadas, um cenário de grandes ameaças à continuidade dessa lei”, afirmou.

Segundo Anivaldo Miranda, o Projeto de Lei de nº 4.546/21, elaborado pelo Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), que tramita no Congresso desde janeiro, “configura um verdadeiro golpe contra aquilo que foi construído nos últimos 25 anos em termos de gestão pública das águas e o alvo central é o coração da Lei das Águas”.

A promotora de Justiça do Ministério Público Estadual da Bahia, Luciana Khoury, também defende a legislação em vigor. Na sua opinião, “não existe gestão ambiental e nem gestão das águas sem controle social e sem participação”. Para a promotora, é importante dizer que a Lei Nacional das Águas se pauta por orientar a todos no sentido de ter diretrizes e princípios que falam da descentralização, da gestão a partir da lógica de bacia, pautada pelo planejamento. “Nossa interpretação da legislação precisa ter esse olhar sistêmico”, alertou.

Os especialistas não descartam pontos frágeis da legislação. “É verdade que a Lei das Águas não é perfeita e que precisa de aprimoramentos. Mas as lições aprendidas na mitigação do risco hídrico mostram que os bons resultados se deram com liderança, ação coletiva, pragmatismo e boa governança das águas com base nos princípios, fundamentos e instrumentos dessa Lei. Por isso, é tão importante que a lei atual seja aprimorada, fortalecida e não fragilizada”, afirmou Samuel Barreto.

Ele defende o fortalecimento da lei “por meio da adequação das estruturas oficiais de funcionamento dos Sistemas de Recursos Hídricos; da ampliação da capacidade dos órgãos gestores; da disponibilização de uma estrutura mínima para o funcionamento dos Comitês de Bacia, com seus representantes bem-preparados; do aprimoramento na produção e sistematização de informações técnicas que subsidiam melhores decisões entre os diferentes entes que compõem o sistema”.

Também cita, entre suas sugestões a implementação de instrumentos de gestão dos recursos hídricos, o estímulo à participação dos municípios e uma sociedade “amplamente informada e mobilizada”.

“A gestão da água representa uma grande oportunidade pelo seu poder de integração e por afetar todos os segmentos da sociedade. O Brasil ainda tem uma boa Lei das Águas, que precisa ser compreendida e defendida perante a opinião pública e o Congresso Nacional”, acentuou Barreto.

Poder econômico

Para Anivaldo Miranda o principal problema para a aplicação da lei tem sido a resistência feita pelo poder econômico ao longo desse tempo. “A Lei nº 9.433/1997 foi um avanço muito grande, mas o poder econômico resiste à aplicação da legislação, sem contar a burocracia do Estado. O principal aspecto para demonstrar isso é o instrumento de gestão das águas. Infelizmente os planos de bacias hidrográficas não saem do papel, o sistema de outorgas não está estabelecido e reduzidamente implantado no país. A cobrança pelo uso da água bruta não está equiparada à cobrança pelo uso da água tratada, há uma diferença enorme”, reclamou.

A promotora Luciana Khoury, por sua vez, destacou, entre as fragilidades da atual legislação, a necessidade da participação maior das comunidades tradicionais. “A expulsão dos povos e das comunidades tradicionais dos seus locais de origem trouxe ainda mais impactos no meio ambiente. Não tem como a gente tratar de gestão das águas sem tratar de garantia de povos tradicionais em seus territórios”, comentou. “Quanto mais tivermos a presença e o respeito aos nossos povos e seus territórios, mais teremos a garantia de proteção dos recursos hídricos, e para isso é necessário repensar os instrumentos de gestão das águas”.

Para a promotora, “é extremamente necessário que estejamos protegidos pela segurança jurídica, e para isso precisamos respeitar o que manda a legislação. Todos nós temos que assegurar isso como cidadãos”.

Quando se fala em incrementar a participação social, de acordo com Anivaldo Miranda, há uma questão fundamental: o fortalecimento dos Comitês de Bacia, com a implantação de cobrança pelo uso da água bruta. Sem dinheiro em caixa, esses Comitês não conseguem ampliar suas atividades. Se é para mudar a legislação, que seja na direção da melhoria dos instrumentos de gestão. E não de uma proposta que ponha abaixo tudo que foi construído com tanta luta social.

“Existe uma luta para estabelecer a cobrança pelo uso da água bruta em todo território nacional. Isto é primordial”, afirmou Anivaldo Miranda. “Que o dinheiro seja entregue aos Comitês de Bacias que representam usuários, sociedade civil e poder público. A intenção disso é a de realizar o mínimo de trabalho porque os nossos rios estão abandonados e a nossa terra, que equivale ao nosso corpo, está sendo pisoteada por falta de governança”.

O que é a Lei das Águas:

É a Lei nº 9.433, sancionada em 8 de janeiro de 1997. Instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

Como era antes da sua existência:

Até então, a proteção legal das águas brasileiras seguiu um caminho semelhante ao da proteção ao meio ambiente: acontecia de forma indireta. A água era acessória a outros interesses, assim seu uso era determinado por normas de caráter econômico e sanitário, ou relativas ao direito de propriedade.

Lei anterior a essa legislação:

O Brasil tinha a água ainda tratada como um bem quando foi alvo de legislação própria, o Código das Águas de 1934. Foi a partir da Constituição de 1988 e, mais tarde a lei de 1997, que houve o reconhecimento no país da necessidade de proteger as águas dentro da estrutura global ambiental, com uma gestão que se preocupa em integrar os recursos hídricos ao meio ambiente para garantir o desenvolvimento sustentável e a manutenção do meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Política nacional:

A lei, em seu artigo 1º, elenca os principais fundamentos da Política Nacional. Ali há a compreensão de que a água é um bem público (não pode ser controlada por particulares) e recurso natural limitado, dotado de valor econômico, mas que deve priorizar o consumo humano e de animais, em especial em situações de escassez.

Usos múltiplos:

A legislação estabelece que a água deve ser gerida de forma a proporcionar usos múltiplos (abastecimento, energia, irrigação, indústria) e sustentáveis, e esta gestão deve se dar de forma descentralizada, com participação de usuários, da sociedade civil e do governo.

Papel do Estado:

De acordo com a lei, o Estado compartilha com os diversos segmentos da sociedade uma participação ativa nas decisões. Cabe à União e aos estados, cada um em suas respectivas esferas, implementar o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Singreh), legislar sobre as águas e organizar, a partir das bacias hidrográficas, um sistema de administração de recursos hídricos que atenda às necessidades regionais.

Os Comitês

Dentro do Singreh, o poder público, a sociedade civil organizada e os usuários da água integram os Comitês de Bacias Hidrográficas (CBH) e atuam, em conjunto, na definição e aprovação das políticas acerca dos recursos hídricos de cada bacia hidrográfica. Também fazem parte do Sistema, o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, a Agência Nacional de Águas (ANA), os Conselhos de Recursos Hídricos dos Estados e do Distrito Federal; os órgãos dos poderes públicos federal, estaduais, do Distrito Federal e municipais cujas competências se relacionem com a gestão de recursos hídricos, e as Agências de Água, órgãos assessores dos CBHs.

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