Tarás Bulba

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li, vire-se, meu filho! Que engraçado você está! E que levita de pope é essa que está usando? É assim

que todos andam na academia? - Foi com tais palavras que o velho Bulba recebeu seus dois filhos, que estudavam no seminário de Kiev e voltavam à casa do pai. Seus filhos tinham acabado de descer dos cavalos. Eram dois jovens robustos, que ainda olhavam de soslaio como alunos recém-saídos do seminário. Seus rostos firmes e saudáveis estavam cobertos pelo primeiro buço, ainda não tocado pela navalha. Eles estavam muito confusos por aquela recepção do pai e permaneciam imóveis, de olhos voltados para o chão.


- Parem, parem! Deixem-me olhá-los bem - continuou ele, fazendo-os virar. - Mas que cafetãs tão compridos! Que cafetãs! Nunca se viu uns cafetãs desses no mundo. Pois corra um de vocês! Quero ver se não leva um 10

tombo se enroscando nos panos. - Não ria, paizinho, não ria! - disse afinal o mais velho deles. - Ora, veja só que orgulhoso! E por que eu não riria? - Embora você seja meu pai, se continuar a rir, juro por Deus que lhe dou uma surra! - Ah, seu filho de uma qualquer! Bate no seu pai, é? - disse Tarás Bulba, recuando surpreso alguns passos. - É isso mesmo. Não levo desaforo de ninguém. - E como você quer lutar comigo? Com os punhos? - Do jeito que for. - Bem, vamos lá, com os punhos! - disse Tarás Bulba, arregaçando as mangas. - Veremos que tipo de homem você é com os punhos. E pai e filho, ao invés de saudações após a longa ausência, começaram a trocar socos nos francos, nas costas e no peito, ora recuando e olhando em volta, ora recomeçando novamente.

- Veia só, boa gente: um velho louco! Perdeu o juízo de vez! - disse a mãe

pálida, magrela e bondosa, que estava perto do umbral e ainda não conseguira abraçar seus filhos queridos - Os filhos vieram para casa, há mais de um ano que não os víamos, e ele pensou logo nisso: lutar com os punhos! - Sim, ele luta bem! - disse Bulba, detendo-se. - juro por Deus que é bom! - continuou ele, recompondo-se um pouco. - Nem é preciso experimentar. Será um bom cossaco! Bem, seja bem-vindo, filho! Dê um abraço! - E pai e filho começaram a se beijar. - Muito bem, filho! Bata em qualquer um assim, do jeito que você me socou, não se rebaixe diante de ninguém! Mas apesar disso, sua roupa é engraçada; que corda é essa aí pendurada? E você, rapaz, por que está aí parado de braços estirados? - disse ele, virando-se para o caçula. - Por que não bate em mim, filho de um cão?


- Ora, mas que idéia! - disse a mãe, que então abraçava o caçula. - De onde tirou a idéia de um filho legítimo bater no pai? E justamente agora: o menino é jovem, fez uma longa viagem, está cansado (esse menino tinha mais de vinte anos e exatamente dois metros de altura); agora ele precisa é dormir, comer alguma coisa, e você quer obrigá-lo a lutar! Ah, estou vendo que você é um mimadinho! - disse Bulba. - Não dê ouvidos a sua mãe, filho; ela é mulher, não sabe de nada. Do que é que vocês precisam? Precisam de campo aberto e um bom cavalo. Aí está do que precisam! E estão vendo este sabre? Isto é a mãe de vocês! É tudo besteira aquilo que meteram na cabeça de vocês: academia, todos aqueles livros, cartilhas, filosofia, e toda aquela sabença. Pois eu cuspo nisso tudo! - Aqui Bulba expressou literalmente uma palavra que nem mesmo se emprega numa publicação. - É melhor que eu mande vocês já na próxima semana para Zaporójle. É onde está a ciência de verdade! É lá que está a escola de que precisam; só lá vão criar juízo. - Mas então, eles só vão ficar em casa por uma semana? - disse num lamento a mãe velha e magrela, com lágrimas nos olhos. - Os pobrezinhos não poderão passear, não poderão conhecer a casa paterna, e eu nem poderei olhar direito para eles! - Chega, chega de uivar, velha! Um cossaco não é para viver com mulheres. Você iria escondê-los embaixo da saia e ficaria sentada em cima deles como uma galinha choca. Vamos, vamos, e coloque logo na mesa tudo o que houver aí. Não precisa de bolinhos, docinhos de mel, docinhos de papoula e outras guloseimas; traga-nos um carneiro, uma cabra e hidromel envelhecido! E bastante aguardente, mas não aquela de mentira, com passas e tudo quanto é bobageira, e sim a aguardente pura, bem forte, que borbulha e espuma feito louca. Bulba levou os filhos para a sala principal, de onde saíram correndo apressadas duas criadas jovens e bonitas usando colares vermelhos e que

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estavam arrumando a casa. Pelo visto, elas se assustaram com a chegada dos filhos do patrão, que não gostavam de perder oportunidades; ou então queriam simplesmente preservar um costume feminino: o de gritar e fugir 12

depressa ao ver um homem, para depois ficar por muito tempo cobrindo o rosto de tanta vergonha. A sala estava arrumada ao gosto daquela época cujas vivas alusões ficaram somente nas canções e no imaginário popular, já não mais cantadas na Ucrânia por velhos cegos e barbudos, com acompanhamento das cordas suaves de uma bandurra e o povo em volta; ao gosto daquela época difícil, de guerras, quando começavam a se desencadear na Ucrânia os combates e as batalhas pela União. Tudo estava limpo, revestido com argila colorida. Nas paredes havia sabres, chicotes, redes para pássaros, redes de pesca e espingardas, um chifre para pólvora habilmente trabalhado, uma brida dourada para cavalos e travas com chapas prateadas. As janelas da sala eram pequenas, com vidros redondos e opacos, tal como hoje em dia só se encontra nas igrejas antigas, e através dos quais não se pode enxergar, a menos que se levante o vidro móvel. Ao redor das janelas e portas havia adornos vermelhos. Nas prateleiras pelos cantos havia jarros, garrafões e frascos de vidro azul e verde, taças de prata lapidadas, cálices banhados a ouro e trabalhados em todo estilo - veneziana, turco, circassiano - e que entraram na casa de Bulba de diversas maneiras, por terceiras e quartas mãos, o que era bastante comum naqueles tempos de valentia. Os bancos de bétula ao redor de todo o cômodo, a mesa enorme sob os ícones no canto da entrada, o grande forno com saliências e reentrâncias e coberto com azulejos de variadas cores; tudo aquilo era bastante familiar aos nossos dois jovens, que todo ano vinham para casa na época das férias, e vinham a pé porque ainda não tinham cavalos e não era costume permitir que estudantes andassem montados. Tinham apenas um topete que qualquer cossaco que levasse uma espingarda podia puxar. Só por ocasião da saída definitiva do seminário é que Bulba lhes enviou dois jovens garanhões de sua própria tropa.


Por causa da chegada dos filhos, Bulba mandou chamar todos os sótnlks e oficiais do regimento que estivessem presentes; e quando chegaram dois deles e mais o essaúl Dmitro Tóvkatch, seu velho companheiro, ele apresentou imediatamente seus filhos, dizendo: “Vejam só que rapagões! Logo vou mandá-los para a Siétch”. Os visitantes parabenizaram Bulba e os dois jovens, dizendo que era uma boa coisa o que faziam e que não havia ciência melhor para um jovem do que aquela da Siétch de Zaporójie. - Bem, senhores e irmãos, sentem-se onde cada um achar melhor. Muito bem, filhos! Antes de mais nada, bebamos aguardente! - assim falava Bulba. - Deus nos abençoe! Saúde, meus filhos: você, Óstap, e você, Andríi! Queira Deus que na guerra sejam sempre bem-aventurados! Que matem os infiéis, os turcos e os tártaros; e quando os polacos começarem a fazer algo contra a nossa fé, que matem também a eles! Bem, aproxime seu copo. E então, é boa a aguardente? E como se diz aguardente em latim? Ora, ora, filho, eram burros os latinos: eles nem sabiam que no mundo existia aguardente. Como se chamava mesmo aquele que escrevia versos latinos? Não sou muito letrado, por isso não sei. É Horácio, não é? “Vejam só esse meu pai!”, pensava consigo o mais velho, Ostap. “Sabe tudo esse cão velho, mas fica aí fingindo.” - Acho que o arquimandrita não os deixava sequer cheirar aguardente - continuava Tarás. - Confessem, filhos: açoitavam vocês com varas de gingeiras nas costas e em tudo aquilo que tem um cossaco? Ou talvez, por terem se tornado logo bastante ajuizados, surravam vocês com chicotes, não? E decerto não só aos sábados, mas também às quartas e quintas? - Não há por que lembrar o que passou, paizinho respondeu com sangue frio Óstap. - O que passou, passou! - Pois que tentem agora! - disse Andríi. - Só quero ver alguém me ofender agora! E se um bando de tártaros aparecer, vão saber o que é o sabre de um cossaco!

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- Muito bem, filho! Por Deus, muito bem! E já que é assim, eu vou com vocês! juro por Deus que vou! Que diabo vou esperar aqui? Para eu me tornar um plantador de trigo sarraceno, um dono de casa, cuidar de ovelhas e por14

cos e molengar com a mulher? Maldita seja: eu sou um cossaco, nao quero isso! E daí que não estamos em guerra? Eu vou com vocês ao Zaporójie para passear, juro por Deus que vou! E o velho Bulba foi pouco a pouco se exaltando, se exaltando, e afinal se irritou de vez, levantou-se da mesa e, estufando o peito, bateu com o pé no chão. - Iremos amanhã! Para que adiar? Que inimigo podemos esperar aqui sentados? Para que precisamos desta kbata? Para que precisamos disso tudo? Para que esses potes? - Dito isto, ele começou a dar socos e arremessar potes e cantis. A pobre velhinha, já acostumada com esses procedimentos de seu marido, via tudo com tristeza sentada num banco. Não ousava dizer nada; mas, ao ouvir a decisão que para ela era tão terrível, não conseguiu conter as lágrimas; olhou para seus filhos, cuja separação tão breve a ameaçava - e nimguém poderia descrever toda a força silenciosa de sua aflição, que tremia em seus olhos e nos lábios convulsivamente comprimidos. Bulba era extremamente teimoso. Era um daqueles caracteres que podiam surgir somente no difícil século XV num canto seminômade da Europa, quando toda a primitiva Rússia do sul, abandonada por seus príncipes, estava devastada, reduzida a cinzas pelas indomáveis incursões dos saqueadores mongóis; quando o homem, depois de perder a casa e o teto, ali tornou-se intrépido; quando em meio aos restos do incêndio, à vista de vizinhos terríveis e da ameaça constante, ele se instalou e se acostumou a olhá-los diretamente nos olhos, tendo esquecido se no mundo existia algum perigo; quando o outrora pacífico espírito eslavo cobriu-se de uma chama guerreira e apareceram os cossacos - um vasto e desregrado proceder da natureza russa - e quando todos os caminhos marginais, vaus, margens de rios e lugares apropriados foram ocupados pelos cossacos, cuja quantidade ninguém sabia


dizer, e os valentes companheiros tinham razão ao responder para um sultão, que desejava saber quantos eram eles: “Quem é que sabe? Estamos espalhados por toda a estepe: cada morrinho é um cossaco” (quer dizer, onde há uma pequena colina, lá está um cossaco). Era exatamente um extraordinário fenômeno da força russa: fora expelido do seio do povo por um raio de desgraças. Em lugar dos antigos feudos, dos pequenos vilarejos repletos de cachorreiros e monteiros, em lugar dos pequenos principados com cidades que comercializavam e se hostilizavam mutuamente, apareceram aldeias ferozes, acampamentos e cercados unidos pelo perigo comum e pelo ódio aos saqueadores anticristãos. Pela História todos já sabiam como sua eterna batalha e sua vida turbulenta salvaram a Europa das incursões indomáveis que ameaçavam destruí-Ia. Os reis poloneses, que tinham se tornado senhores das terras mais extensas no lugar dos príncipes feudais, embora distantes e fracos, compreenderam o significado dos cossacos e as vantagens de uma vida tão guerreira e vigilante. Eles os incentivavam e bajulavam com toda disposição. Sob seu poder distante, os bétmanesii escolhidos entre os próprios cossacos transformaram os cercados e acampamentos em verdadeiros regimentos e distritos. Não era um exército alinhado e reunido, pois ninguém o via assim; mas em caso de guerra ou de um movimento geral, cada um aparecia num cavalo, com todo o seu equipamento, recebendo do rei apenas um ducado como pagamento, e em duas semanas organizava-se um exército como nem nas forças regulares se poderia recrutar. Terminada a campanha, o combatente saia para os prados e campos lavrados ou para os vaus do Dniepr, e então pescava, comercializava, fazia cerveja e tornava-se um cossaco livre. Os estrangeiros modernos se espantavam então justamente por suas extraordinárias virtudes. Não havia um ofício que o cossaco não conhecesse: destilar vinhos, equipar uma relega, fabricar pólvora, realizar trabalho de ferreiro e serralheiro e, somado a isso tudo, passear desvairadamente, beber e farrear como só um russo é capaz - tudo isso era muito fácil para ele. Além dos

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cossacos registrados, que consideravam um dever apresentar-se em tempos de guerra, podia-se a qualquer momento, e em caso de grande necessidade, reunir multidões inteiras de voluntários: bastava que os essaúls passassem 16

pelos mercados e praças de todas as aldeias e povoados e gritassem com toda força, de pé numa relega: “Ei, vocês, cervejeiros e toneleiros! Chega de fazer cerveja, de ficar molengando por cima dos fornos e alimentar as moscas com seus corpos gordurentos! Venham marchar em busca da honra e da glória dos cavaleiros! Vocês, lavradores, plantaores de trigo sarraceno, pastores de ovelhas e mulherengos! Chega de andar atrás do arado, de sujar na terra suas botas amarelas, de cortejar as esposas e destruir a força de cavaleiro! É hora de alcançar a glória cossaca!”. E essas palavras eram como faíscas que caíam numa árvore seca. O lavrador largava seu arado, os toneleiros e cervejeiros jogavam seus tonéis e despedaçavam os barris, o artesão e o comerciante mandavam ao diabo o ofício e a barraca, quebravam potes em casa. E todos, sem exceção, montavam num cavalo. Numa palavra: o caráter russo ganhou aqui uma poderosa e extensa ampliação, um aspecto vigoroso. Tarás era um dos velhos e radicais coronéis: todo ele fora criado para a ânsia guerreira e se distinguia pela sinceridade grosseira de seu temperamento. A influência da Polônia já começava então a se mostrar sobre a nobreza russa. Muitos já adotavam os costumes poloneses, adquiriam o luxo, a criadagem suntuosa, falcões, monteiros, banquetes e palácios. Isso não era do gosto de Tarás. Ele adorava a vida simples dos cossacos e rompeu com aqueles que, dentre os seus companheiros, estavam inclinados para o lado de Varsóvia, chamando-os de lacaios dos senhores poloneses. Eternamente inquieto, ele considerava a si próprio um legítimo defensor da ortodoxia grega. Entrava arbitrariamente nas aldeias onde houvesse queixas pela opressão dos arrendadores e do aumento excessivo dos novos impostos. Com seus cossacos, ele mesmo aplicava-lhes um castigo, e estabeleceu para si a regra de que se deveria usar o sabre em três casos: quando os comissários não res-


peitassem os chefes e ficassem de gorro diante destes, quando zombassem da ortodoxia grega e não respeitassem a lei dos antepassados e, finalmente, quando os inimigos fossem muçulmanos e turcos, contra os quais ele considerava que, em qualquer situação, era permitido levantar armas para glória da cristandade. Agora ele se entretinha com a idéia antecipada de aparecer com seus dois filhos na Siétch e dizer: “Vejam só que jovens eu trouxe a vocês!”, de apresentá-los a todos os velhos e aguerridos companheiros, de ver as primeiras façanhas de ambos na ciência bélica e na farra, que ele considerava também uma das qualidades importantes de um cavaleiro. Inicialmente ele queria enviá-los sozinhos. Mas, em vista da juventude, da estatura e da beleza vigorosa e corada de ambos, seu espírito se inflamou e já no outro dia decidiu ir com eles, embora a necessidade disso fosse apenas a sua vontade obstinada. E logo ele já estava gesticulando e dando ordens, escolhendo os arreios e os cavalos para seus jovens filhos, questionando ora na cavalariça, ora nos celeiros, e escolheu os criados que deveriam ir com eles no dia seguinte. Transferiu seu poder ao essaúl Tóvkatch junto com a ordem expressa de partir imediatamente com todo o seu regimento, se fosse recebida uma ordem da Siétch. Embora ele estivesse contente e a embriaguez ainda vagasse em sua cabeça, não havia se esquecido de nada. Ordenou inclusive que dessem água aos cavalos e colocassem para eles o trigo melhor e mais consistente, e voltou cansado de suas preocupações. - Bem, filhos, agora é preciso dormir, e amanhã faremos o que Deus quiser. E não arrume a cama para nós! Não precisamos de cama. Vamos dormir no pátio. A noite mal tinha abraçado o céu, mas Bulba sempre se deitava cedo. Ele se esparramou num tapete, cobriu-se com uma peliça de pele de carneiro, porque o ar da noite era bastante fresco e porque Bulba gostava de se abrigar e ficar bem aquecido quando estava em casa. Logo ele começou a roncar, e

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todo o pátio o seguiu; tudo que havia nos diferentes cantos do pátio começou a roncar e cantar; a sentinela adormeceu antes de todo mundo, pois tinha bebido mais do que todos pela chegada dos jovens patrões. 18

Sozinha, a pobre mãe não dormia. Ela estava apoiada à cabeceira da cama de seus queridos filhos, que estavam deitados um ao lado do outro; penteava-lhes os cabelos encaracolados, jovens e desgrenhados, umedecendo-os com lágrimas; ela olhava inteiramente para eles, olhava com todos os sentidos, transformou-se toda num olhar e não podia mais ver a si mesma. Ela os amamentara com seu próprio peito, ela os criou e educou - e os viu diante de si por um instante apenas. “Meus filhos, meus filhos queridos! O que será de vocês? O que os espera?” - dizia ela, e as lágrimas se detiveram nas rugas, que tinham transformado seu rosto outrora belo. Ela era realmente uma infeliz, como qualquer mulher daquele século intrépido. Viveu o amor por apenas um instante, apenas na primeira febre da paixão, na primeira febre da juventude, e logo seu rude sedutor a trocou pelo sabre, pelos companheiros e pela farra. Via o marido dois ou três dias por ano, e depois, durante alguns anos, não tinha nenhum sinal dele. E quando se encontravam, quando estavam jutitos, que tipo de vida ela tinha? Suportava ofensas e até surras; apenas por piedade recebia carícias ocasionais, ela era um ser estranho naquela turba de cavaleiros solteiros inveterados, sobre os quais o desregrado Zaporójie lançava seu áspero colorido. A juventude sem prazer

passou rapidamente diante dela, e os seios e as faces belas e frescas murcharam sem beijos e cobriram-se de rugas prematuras. Todo o amor, todo o

sentimento, tudo que há de carinhoso e apaixonado numa mulher, tudo nela voltou-se para um único sentimento de maternidade. Com ardor, paixão e lágrimas ela flutuava sobre seus filhos como uma gaivota das estepes. Seus

filhos, os seus queridos filhos estavam sendo tirados dela, estavam sendo tirados para não vê-los nunca mais! Quem sabe, talvez na primeira batalha

um tártaro lhes partisse as cabeças, e ela nem saberia onde jaziam os seus

corpos abandonados e sendo devorados por uma ave de rapina de beira de


estrada; por cada gota do sangue deles, ela daria tudo de si própria. Soluçando, ela os olhou bem, quando o todo-poderoso sono já começava a cerrar seus olhos: “Quiçá quando despertar, Bulba adie a partida por uns dois dias; talvez ele tenha planejado partir tão depressa por ter bebido muito”. Do alto do céu a lua há muito já iluminava todo o pátio repleto de adormecidos, o denso monte de salgueiros e o mato crescido, onde desaparecia a estacada que cercava o pátio. Ela permanecia sentada junto à cabeceira de seus queridos filhos, e nem por um minuto desviou deles os olhos e sequer pensava no sono. Sentindo o amanhecer, todos os cavalos se deitaram na relva e pararam de comer; as folhas mais altas dos salgueiros começaram a murmurar, e pouco a pouco um jorro sussurrante desceu por eles até embaixo. Ela permaneceu sentada até o amanhecer, não estava de nenhuma maneira fatigada, e no fundo desejava que a noite se estendesse o máximo possível. Da estepe chegou o sonoro relincho de um potro, e listras vermelhas apareceram no céu. Bulba despertou de repente e deu um salto. Ele se lembrava muito bem de tudo que ordenara na véspera. - Bem, rapazes, chega de dormir! É hora, é hora! Dêem água aos cavalos! Onde é que está a velha? (Era assim que ele habitualmente chamava sua esposa). Depressa, velha, prepare-nos algo para comer: o caminho é longo!

A pobre velhinha, despojada de sua derradeira esperança, caminhou

tristemente para a kbata. Enquanto ela preparava em meio às lágrimas tudo

que era preciso para o café da manhã, Bulba dava suas ordens, ia de um lado

para outro na cavalariça e escolhia ele mesmo os melhores equipamentos para seus filhos. Os seminaristas se transformaram de repente: em lugar das

botas sujas, eles apareceram de botas vermelhas de couro macio com ferra-

duras prateadas; bombachas da largura do Mar Negro com centenas de pregas e apetrechos, apertadas por um cinturão dourado; ao cinturão estavam

criganchadas longas correias com borlas e outros utensílios para cachimbo. O cafetã de cor vermelha, de um tecido brilhante como fogo, era cingido por um cinto bordado; pistolas turcas cinzeladas estavam metidas no cinto; o

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sabre ressoava batendo nas pernas. Seus rostos ainda pouco bronzeados pareciam mais belos e brancos; os bigodes negros agora realçavam mais clara-

mente a brancura de ambos e a cor saudável e vigorosa da juventude; eles 20

ficaram bem com aqueles gorros negros de pele de carneiro com a parte superior dourada. Ao vê-los, a pobre mãe não conseguiu proferir uma palavra, e as lágrimas detiveram-se em seus olhos.

- Bem, filhos, tudo pronto! Não há por que demorar! - afinal exclamou

Bulba. - Agora, de acordo com o costume cristão, é preciso que nos sentemos por um momento antes da partida.

Todos se sentaram, inclusive os rapazes que permaneciam respeitosa-

mente junto às portas.

- Agora abençoe seus filhos, mãe! - disse Bulba. Reze a Deus para que

eles lutem bravamente, que defendam sempre a honra de cavaleiro, que se

mantenham sempre na fé em Cristo, senão é melhor que desapareçam, para que seus súditos sumam do mundo! Aproximem-se de sua mãe, fia oração materna salva na água e na terra.

A mãe, fraca como uma mãe, abraçou-os; pegou dois pequenos ícones

e colocou-lhes no pescoço, soluçando. - Que a Mãe de Deus... os proteja... Não

se esqueçam sua mãe, meus filhos... mandem uma notícia pelo menos... Ela não conseguiu dizer mais nada.

- Bem, vamos, filhos! - disse Bulba. Junto à marquise estavam os cavalos selados. Bulba subiu em seu Diabo, que recuou com raiva ao sentir sobre si uma carga de vinte puds, porque Bulba era extraordinariamente pesado e gordo. Quando a mãe viu que seus filhos já tinham montado nos cavalos, ela se atirou ao mais novo, cujos traços do rosto expressavam uma ternura maior; agarrou-o pelo estribo, grudou-se em sua sela e com desespero nos olhos não o deixava sair de suas mãos. Dois cossacos robustos a pegaram com cuidado e levaram-na para a khata. Mas quando eles passaram pelo portão, ela saiu correndo com a agilidade de uma cabra montesa, algo incompatível com sua


idade, deteve o cavalo com uma força inacreditável e abraçou um de seus filhos com um ardor alucinado e inconsciente; e outra vez a levaram. Os jovens cossacos seguiam confusos, contendo as lágrimas, com medo do pai que, por sua vez, também estava um pouco inquieto, embora se esforçasse para não o demonstrar. O dia estava cinzento, a grama brilhava de modo intenso, as aves gorjeavam em desordem. Depois de avançarem um pouco, eles olharam para trás; a aldeia quase desaparecera na terra, via-se apenas as duas chaminés da casinha modesta e as copas das árvores, em cujos troncos eles subiam como esquilos; diante deles estendia-se apenas um prado distante - o prado pelo qual eles podiam recordar toda a história de suas vidas, desde os anos em que rolavam pela relva coberta de orvalho até os tempos em que esperavam passar uma jovem cossaca de sobrancelhas negras, que cruzava por ali temerosa e apressada com a ajuda de suas pernas robustas e ligeiras. E agora apenas o mastro acima do poço, com uma roda de relega atada no alto, aparecia solitário no horizonte; e logo a planície que eles haviam atravessado pareceu tomar a forma de uma montanha, e encobriu tudo. Adeus à infância, às brincadeiras, a tudo, tudo!

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O

s três cavaleiros seguiam em silêncio. O velho Bulba pensava no passado: diante dele passava sua mocidade, os

anos transcorridos, pelos quais um cossaco sempre chora, desejoso de que sua vida inteira fosse de juventude. Pensava em quais daqueles seus antigos companheiros ele encontraria na Siétch. Calculava quais tinham perecido, e quais ainda estavam vivos. Uma lágrima se arredondava silenciosamente em sua pupila, e sua cabeça grisalha inclinou-se com tristeza. Seus filhos estavam ocupados com outros pensamentos. Mas é preciso dizer algo mais sobre eles. Aos doze anos foram confiados à Academia de Kiev, porque todos os


dignitários de então consideravam indispensável dar educação a seus filhos, embora fizessem isso para depois esquecê-la por completo. Eram então como todos os que ingressavam no seminário, selvagens, criados em liberdade, e 24

que ali se tornavam habitualmente um pouco civilizados, recebendo uma educação em comum, que os fazia parecerem uns com os outros. Óstap, o mais velho, começou sua carreira fugindo já no primeiro ano. Levaram-no de volta, castigaram terrivelmente e o plantaram na frente dos livros. Ele enterrou quatro vezes sua cartilha na terra, e quatro vezes lhe compraram uma nova, depois de o açoitarem de forma desumana. Mas, sem dúvida, ele teria repetido isso pela quinta vez, se o pai não lhe tivesse feito a promessa solene de encerrá-lo nos serviços monásticos por vinte anos inteiros e não jurasse de antemão que, se ele não estudasse todas as ciências na academia, jamais veria Zaporójic. É curioso que isto tenha sido dito pelo próprio Tarás Bulha, que xingava todo saber científico e, como já vimos, aconselhava os filhos a não se ocuparem com ele. Desde então, Óstap passou a ficar sentado na frente dos livros enfadonhos com um ânimo extraordinário, e logo se igualou aos melhores. O tipo de ensino daquele tempo divergia terrivelmente do modo de vida: aquelas particularidades escolásticas, gramaticais, retóricas e lógicas definitivamente não combinavam com a época nunca se ajustavam e nem se aplicavam à vida. Os que aprendiam não podiam associar a nada os seus conhecimentos, e menos ainda os conhecimentos éscolásticos. Os próprios mestres de então eram mais ignorantes do que os outros, porque estavam totalmente afastados da prática. Ademais, a estrutura republicana do seminário, a horrível multidão de pessoas jovens, robustas e saudáveis, tudo isso devia infundir neles uma atividade completamente à margem de suas ocupações estudantis. Às vezes a má alimentação e o jejum frequentemente usado como castigo, outras vezes as muitas necessidades que se manifestam num jovem forte, saudável e viçoso - tudo isso junto produzia neles aquela intrepidez que depois se desenvolvia em Zaporójie.


Os seminaristas famintos percorriam as ruas de Kiev e obrigavam todos a ficarem atentos. As vendedores que estavam nos bazares, tão logo viam um seminarista passando, sempre cobriam com os braços as suas tortas, pães e sementes de abóbora, como as águias com seus filhotes. O cônsul, que por obrigação devia zelar pelos companheiros que estavam sob sua custódia, tinha os bolsos das bombachas tão grandes que podia meter ali toda a barraca de uma vendedora distraída. Esses seminaristas constituíam um mundo completamente à parte: eles não eram aceitos no círculo mais alto, formado por nobres poloneses e russos. O próprio voievoda, diante dele uns seios flamejantes e firmes, uns braços carinhosos, belos e nus; o próprio vestido que cobria seus membros fortes e virginais inspirava em seus sonhos uma volúpia indescritível. Ele escondia cuidadosamente de seus companheiros esses movimentos de uma alma juvenil apaixonada, porque naquele século era uma vergonha e uma infâmia que um cossaco pensasse em mulher e amor sem ter experimentado uma batalha. De modo geral, nos últimos anos ele muito raramente aparecia como líder de uma turma, mas vagava sozinho com mais freqüência em algum recanto isolado de Kiev, mergulhado em jardins de cerejeiras e entre casinhas baixas que olhavam sedutoramente para a rua. Às vezes se metia na rua dos aristocratas, na velha Kiev dos dias atuais, onde moravam nobres poloneses e ucranianos e onde as casas eram construídas com certo capricho. Uma vez, quando caminhava boquiaberto, quase foi atropelado pela carroça de um senhor polonês, e o cocheiro de bigodes enormes que estava sentado na boléia o fustigou bastante bem com o chicote. O jovem seminarista ficou furioso: com uma coragem louca, ele agarrou a roda traseira com sua mão poderosa e deteve a carroça. Mas o cocheiro, temendo a reação, deu um golpe nos cavalos; estes partiram, e Andríi, que felizmente conseguira tirar a mão da roda, se estatelou no chão com o rosto bem na lama. A mais sonora e harmoniosa gargalhada ressoou acima dele. Andríi ergueu os olhos e viu numa janela uma mulher linda como

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jamais tinha visto: de olhos negros e branca como a neve iluminada pela cor matutina do sol. Ela ria com toda a alma, e o riso acrescentava uma força brilhante a sua esplêndida beleza. Ele ficou pasmo. Olhou para ela totalmente 26

perdido, limpando de forma desatenta a lama do rosto que se sujava mais ainda. Quem seria aquela bela mulher? Foi saber junto à criadagem, que estava vestida de maneira luxuosa perto dos portões e aglomerada ao redor de um jovem que tocava bandurra. Mas a criadagem começou a rir quando viu sua pele suja e nem deu ouvidos à sua pergunta. Finalmente soube que ela era filha de um voievoda de Kovno que viera passar um tempo ali. Na noite seguinte, com a audácia típica de um seminarista, ele entrou no jardim através da paliçada e subiu numa árvore cujos ramos se estendiam até o telhado da casa; da árvore ele passou para o telhado e introduziu-se pela chaminé da lareira diretamente no quarto da bela mulher, que àquela hora estava sentada diante de uma vela tirando de suas orelhas os brincos valiosos. A bela polaquinha assustou-se tanto ao ver diante de si um homem desconhecido que não conseguiu pronunciar uma palavra; mas, quando ela percebeu que o seminarista estava parado, de olhos baixos e sem se atrever a mover a mão de tanta timidez, quando ela reconheceu aquele mesmo jovem que tinha se estatelado na rua bem na sua frente, o riso a dominou outra vez. Ademais, nos traços de Andríi não havia nada de terrível: ele era de muito boa aparência. Ela ria com sinceridade, e se divertiu bastante às custas dele. A bela jovem era leviana, como uma polaquinha, mas seus olhos maravilhosos, brilhantes e claros lançavam um olhar demorado, constante. O seminarista não conseguia mover a mão, como se estivesse amarrado dentro de um saco; foi quando a filha do vozevoda se aproximou dele sem hesitação, pôs em sua cabeça um diadema brilhante, pendurou-lhe os brincos nos lábios e lançou sobre ele uma blusinha de musselina transparente com ornatos bordados a ouro. Ela o arrumava e fazia com ele mil tolices diferentes com a desenvoltura infantil que é característica das polaquinhas levianas, o que deixou o pobre seminarista ainda mais embaraçado. Ele representava uma figura ridícula,


de boca aberta e olhando imóvel para os seus olhinhos deslumbrantes. Nessa hora, uma batida que ressoou na porta a assustou. Ela o fez esconderse debaixo da cama, e logo que o perigo passou, chamou sua aia, uma serva tártara, e deu-lhe a ordem de levá-lo com cuidado para o jardim e despachálo dali através da cerca. Mas desta vez o nosso seminarista não atravessou a cerca com tanta ventura: o vigia que despertava o agarrou firmemente pelas pernas, e a criadagem reunida o espancou bastante já na rua, até que suas pernas ligeiras o salvaram. Depois disso, ficou muito perigoso passar perto da casa, porque a criadagem do voievoda era muito numerosa. Ele a encontrou de novo numa igreja católica: ela o notou e sorriu com bastante prazer, como se fosse para um velho conhecido. Ele a viu de passagem ainda uma vez, e logo depois disso o voievoda de Kovno foi embora, e no lugar da bela polaquinha de olhos negros aparecia um rosto gordo nas janelas. Aí está no que pensava Andríi, com a cabeça inclinada e os olhos voltados para a crina de seu cavalo. Mas enquanto isso, a estepe há muito tempo já tinha tomado a todos eles em seus braços verdes, a relva alta que se acercava os encobriu, e entre suas espigas só apareciam os gorros negros dos cossacos. - Ora, ora, ora! Por que é que estão calados assim, rapazes? - disse afinal Bulba, despertando de sua meditação. - Parece até que são monges! Bem, de uma vez por todas, ao diabo com esses pensamentos! Segurem os cachimbos nos dentes e vamos fumar; vamos esporear os cavalos e voar de um jeito que nem uma ave nos alcance! E inclinados sobre os cavalos, os cossacos desapareceram na relva. já não se podia ver nem os gorros negros; só uma listra de relva amassada indicava o rastro de sua corrida ligeira. O sol aparecera há muito tempo no céu limpo e banhava a estepe com sua luz viva e calorosa. Tudo que havia de confuso e sonolento na alma dos cossacos sumiu num instante, e seus corações se agitaram como aves. Quanto mais avançavam, mais bela a estepe se tornava. Então todo

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o sul, toda aquela extensão que constitui a Nova Rússia de hoje, até o Mar Negro, era um deserto verde e virgem. Nunca o arado tinha passado pelas imensas ondas de vegetação selvagem. Eram pisoteadas apenas por uns 28

cavalos que se escondiam nelas como num bosque. Não podia haver nada melhor na natureza. Toda a superfície da terra apresentava-se como um oceano verde-cré, pelo qual brotavam milhões de flores diferentes. Através das hastes finas e longas da relva transparecia uma vegetação fechada, de cor azul-escura, azul-celeste e lilás, uma gesta amarela despontava com seu cume piramidal, o trevo branco de gorros em forma de guarda-chuva abundava na superfície; uma espiga de trigo trazida sabe Deus de onde amadurecia no mato cerrado. Sob suas raízes finas corriam perdizes com o pescoço esticado. O ar estava repleto de assobios de centenas de pássaros diferentes. No céu, abutres permaneciam imóveis com suas asas estiradas e os olhos fixos na relva. O grito de uma nuvem de gansos selvagens que se deslocava ressoou em algum lago distante. Da relva subiu uma gaivota em movimento cadenciado e banhou-se magnificamente nas ondas azuis do ar. Lá ela desapareceu nas alturas e apenas cintilava em forma de um ponto negro. Lá ela virou as asas e brilhou diante do sol... Que diabos! Como você é boa, estepe!... Nossos viajantes pararam apenas alguns minutos para o almoço, e o destacamento de dez cossacos que seguia com eles desceu dos cavalos e pegou os cantis de madeira com aguardente e as cuias que são utilizadas no lugar de vasilhas. Comeram apenas pão com toucinho ou panqueca e beberam só um cálice de aguardente, unicamente para reforço, porque Tarás Bulba nunca permitia que se embriagassem no caininho; e daí continuaram a viagem até o anoitecer. À noite, a estepe mudava completamente. Toda aquela extensão colorida era abraçada pelo último reflexo de sol e escurecia pouco a pouco, de modo que era possível ver a sombra avançando pela estepe que se tornava verde-escura; vapores se erguiam no mato cerrado, todas as


flores e ervas exalavam âmbar, e tudo ali fumegava perfume. No céu azulescuro havia largas faixas de ouro rosado, como se tivessem sido pintadas por um pincel gigantesco; de vez em quando branquejavam nuvens suaves e transparentes em forma de farrapos, e a brisa fresca e sedutora, semelhante a ondas do mar, quase nem balançava o topo da relva e tocava as faces apenas levemente. Toda a música ouvida durante o dia silenciara e fora substituída por outra. Marmotas de variadas cores saíam de suas tocas, detinham-se sobre as patas traseiras e enchiam a estepe de assobios. O cricrido dos grilos tornava-se mais audível. Às vezes ouvia-se de algum lago afastado o grito de um cisne ecoando no ar como metal. Detendo-se no meio do campo, os viajantes escolheram um lugar para o acampamento, armaram uma fogueira e puseram sobre ela um caldeirão, onde cozinharam uma papa; o vapor se desprendia e fumegava no ar. Depois do jantar, os cossacos se deitaram, deixando seus cavalos amarrados pela estepe. Eles se esparramaram sobre os cafetãs. As estrelas da noite olhavam diretamente para eles. Ouvia-se claramente o inumerável mundo de insetos que enchiam a relva, todo o seu crepitar, assobio, cricrido - tudo isso ressoava abertamente no meio da noite, purificava-se no ar fresco e embalava os ouvidos sonolentos. Se algum deles se erguesse e se levantasse nessa hora, a estepe se lhe apresentaria coberta pelas faíscas brilhantes dos vaga-lumes. Às vezes, o céu noturno era iluminado em alguns lugares pelo clarão distante de um canavial seco queimando pelos prados e margens de rios, e a fileira escura de cisnes que voavam para o norte foi de repente iluminada por uma luz rosa e prateada, então parecia que lenços vermelhos voavam pelo céu escuro. Os viajantes prosseguiam sem quaisquer incidentes. Não lhes aparecia sequer uma árvore; era tudo aquela mesma estepe infinita, livre e maravilhosa. De vez em quando divisava-se o cume de um bosque afastado, que se estendia pelas margens do Dniepr. Só uma vez Tarás mostrou aos filhos um pequeno ponto enegrecido na relva distante, dizendo: “Vejam, filhos, ali

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vai um tártaro!”. Uma pequena cabeça com bigodes fitava-os de longe com seus olhos oblíquos, farejando o ar como um cão galgo, e ao perceber que ali havia treze cossacos, desapareceu como um cabrito montês. “Pois bem, filhos, 30

tentem alcançar o tártaro!... Não, nem tentem,.nunca vão conseguir: ele tem um cavalo mais rápido que o meu Diabo.” Todavia Bulha tomou precauções, protegendo-se de alguma emboscada. Eles galoparam até um pequeno riacho denominado Tatarka, que desembocava no Dniepr; daí atiraram-se na água com seus cavalos e seguiram por ele para encobrir suas pegadas; depois, saindo para a margem, prosseguiram sua jornada. Três dias depois, já estavam perto do lugar que tinha sido a razão da partida. O ar em volta começou a ficar frio; eles sentiram a proximidade do Dniepr. E ali estava ele, brilhando ao longe e se apartando do horizonte numa faixa escura. Ele tremulava em ondas frias e se alargava mais e mais, até que finalmente abraçou metade da superfície da terra. Era nesse lugar que o Dniepr, até então infestado de pedras, rornava-se finalmente livre e rumorejava como o mar, derramando-se à vontade; era ali que as ilhas lançadas no centro desalojavam-no ainda mais das margens, e suas ondas estendiam-se amplamente pela terra, sem encontrar penhascos nem elevações. Os cossacos desceram de seus cavalos, subiram numa barca e, depois de três horas de navegação, já estavam junto às margens da ilha Khortítsa, onde ficava então a Siétch, que mudava de Iugar com bastante freqüência. Um bando de gente discutia na margem com os barqueiros. Os cossacos arrumaram os cavalos. Tarás assumiu uma postura de valentão, apertou mais o cinto e passou a mão altivamente pelo bigode. Seus jovens filhos também se examinaram dos pés à cabeça com certo temor e uma satisfação indefinida - e seguiram todos juntos para os arrabaldes, que ficavam a meia versta da Siétch. Ao chegarem, foram atordoados por cinqüenta martelos de ferreiros batendo nas vinte e cinco ferrarias, que eram cavadas no solo e cobertas de mato. Curtidores robustos, sentados sob o toldo dos terraços de entrada na rua,


amassavam peles bovinas com suas mãos vigorosas. Mercadores estavam sentados embaixo de tendas com montes de pederneiras, pólvora e fuzis. Um armênio pendurava lenços de tecido caro. Um tártaro girava espetos de carne ovina misturada com massa. Um judeu, com o pescoço esticado para frente, destilava aguardente de um barril. Mas o primeiro que eles encontraram foi um zaporogo que dormia bem no meio da estrada, com as pernas e os braços estirados. Tarás Bulba não podia deixar de parar e admirá-lo. - Que jeito de se apresentar, hein! Ora, mas que figura magnífica! - disse ele, detendo o cavalo. De fato, era um quadro bastante engraçado: o zaporogo estava estendido na estrada como um leão. Seu topete erguido altivamente ocupava meio archin do solo. As bombachas de tecido escarlate fino estavam sujas de breu, o que demonstrava um total desprezo para com elas. Passada a admiração, Bulba seguiu adiante por uma rua estreita e atravancada de artesãos ocupados com seu ofício e de gente de todas as nacionalidades que enchiam aquele arrabalde, o qual se assemelhava a uma feira que vestia e alimentava a Siétch; esta, por sua vez, só sabia passear e atirar com espingardas. Finalmente eles atravessaram o arrabalde e viram algumas casinhas separadas cobertas com palha ou, ao estilo tártaro, com feltro. Outras estavam equipadas com canhões. Em lugar algum se viam cercas ou aquelas casinhas baixas com toldos sobre colunas de madeira, como eram no arrabalde. Um pequeno aterro e uma paliçada, que não eram protegidos por absolutamente ninguém, mostravam uma incrível despreocupação. Alguns zaporogos corajosos, que estavam deitados bem no caminho com cachimbos nos lábios, olharam para os recém-chegados de forma bastante indiferente e não saíram do lugar. Tarás passou entre eles cuidadosamente com os filhos, dizendo: “ Olá, senhores! “ - “ Olá para vocês! “, responderam os zaporogos. Em toda parte, por todo o campo, aparecia gente em forma de montes pitorescos. Por causa de seus rostos queimados de sol, via-se que todos eles estavam

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endurecidos pelos combates e que tinham experimentado toda sorte de infortúnios. E isso era a Siétch! Esse era o ninho de onde voavam todos os que eram altivos e fortes como leões! Era dali que a determinação e os cossacos se 32

espalhavam por toda a Ucrânia! Os viajantes saíram para uma praça espaçosa, onde habitualmente o conselho se reunia. Sobre um grande barril tombado estava sentado um zaporogo sem camisa; ele a segurava nas mãos e costurava os buracos que havia nela. Novamente o caminho deles foi interrompido por um bando de músicos, no meio dos quais dançava entusiasmado um jovem zaporogo, que trazia o gorro de lado e agitava os braços. Ele gritava: “Toquem com mais energia, rapazes! Não tenha piedade, Fomá: aguardente para todos os cristãos ortodoxos!”. E Fomá, com um olho inchado enchia uma caneca imensa para cada um que se aproximava. Em volta do jovem zaporogo, um quarteto de velhos mexia as pernas com bastante habilidade; eles saltavam rodopiando como um redemoinho, quase sobre a cabeça dos músicos, e de repente, agachados, dançavam a prissíadka batendo no chão duro com os tacões prateados de forma severa e enérgica. O chão bramia de um modo surdo em toda parte, e no ar, mais ao longe, ressoavam gopákes e tropákes, sacudidas pelos sonoros tacões das botas. Mas havia um que gritava com mais vivacidade do que todos e atirou-se na dança seguindo os outros. Sua mecha de cabelos esvoaçava no vento, o peito robusto estava todo à mostra; vestia uma peliça grossa de inverno e o suor escorria em bicas. “Vamos, tire a peliça!” - disse afinal Tarás. “Você está cozinhando!” “Não posso!” - gritou o zaporogo. “Por quê?” “Não posso; tenho esse costume: tudo que tiro, eu troco por bebida.” O rapagão há muito tempo já estava sem gorro, sem cinto sobre o cafetã e sem lenço bordado; tudo tinha -voado para alguma direção. A multidão crescia e outros se juntaram aos dançarinos; era impossível assistir sem comoção àquela dança, a mais livre e mais furiosa que o mundo já viu e que, por causa de seus vigorosos inventores, era chamada de kazatchók. - Ah, se eu não estivesse a cavalo! - gritou Tarás. - Eu mesmo iria me atirar nessa dança!


Enquanto isso, começaram a chegar cossacos velhos e austeros, de topetes grisalhos, que eram respeitados pelos serviços prestados à Siétch e que por mais de uma vez tinham exercido a função de chefe. Tarás encontrou logo uma multidão de rostos conhecidos. Óstap e Andríi ouviam apenas os cumprimentos: “Ali, é você, Petchéritsa! Olá, Kozólup! “, “De onde Deus o trouxe, Tarás?”, “Como chegou até aqui, Dolóto?”, “Saudações, Kirdiága! Saudações, Gústi! Eu nem imaginava vê-lo, Remién!”. E os bravos guerreiros, oriundos de todo aquele mundo desregrado da Rússia Oriental, beijavam-se mutuamente; e daí propagaram-se perguntas: “E o que foi feito de Kassián? E Borodávka? E Kolópier? E Pidsichok?”. E como resposta, Tarás Bulba ouviu apenas que Borodávka fora enforcado em Tolopan, que Kolópier tinha sido esfolado nos arredores de Kizikírmien e que a cabeça de Pidsichok fora salgada num barril e enviada a Tsargrad. O velho Bulha baixou a cabeça e disse pensativo: “Foram bons cossacos!”

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J

á havia cerca de uma semana que Tarás Bulba estava com seus filhos na Siétch. Óstap e Andríi estudavam

pouco a arte militar. A Siétch não gostava de se estorvar com exercícios militares e nem de perder tempo; nele a juventude se instruía e se formava por uma única experiência: no próprio ardor das batalhas, as quais, justamente por isso, eram quase ininterruptas. Os cossacos consideravam tedioso ocupar-se durante os intervalos com o estudo de qualquer disciplina, exceto o tiro ao alvo e, de vez em quando, o salto a cavalo e a caça pelas estepes e prados; o tempo restante


era dedicado aos festins, sinal de um amplo desprendimento da vontade da alma. Toda a Siétch apresentava-se como um fenômeno extraordinário. Era um banquete incessante, um baile que já começava ruidoso e que não tinha 36

fim. Alguns se ocupavam com seu oficio, outros armavam suas barracas e se dedicavam ao comércio; mas a maior parte farreava de manhã até a noite, desde que nos bolsos ainda tilintasse algum recurso e os bens obtidos não tivessem passado para as mãos dos comerciantes e taberneiras. Esse banquete geral tinha algo que enfeitiçava. Não era um ajuntamento de bebuns, que se embriagavam de desgosto, mas simplesmente uma baderna furiosa de alegria. Qualquer um que chegava àquele lugar se esquecia e abandonava tudo a que se dedicara até então. Pode-se dizer que cuspia em seu passado e se entregava despreocupadamente à liberdade e à camaradagem daqueles que eram farristas como ele mesmo, que não tinham nem parentes, nem lar e nem família, mas apenas o céu livre e o festim eterno de sua alma. Isso produzia aquela alegria furiosa que não poderia nascer de nenhuma outra fonte. Todas as histórias e tagarelices no meio daquela turba reunida, e que descansava preguiçosamente no chão, eram sempre engraçadas e cheiravam a narrativas tão fortes e vivas que era preciso ter toda a aparente serenidade do zaporogo para manter a expressão impassível do rosto, sem ao menos mexer o bigode - o traço cortante pelo qual o russo do sul se distingue até hoje dos seus outros irmãos. Era uma alegria embriagada, barulhenta, mas não a de um botequim escurecido, onde um homem se esquece de si por causa de uma alegria sombria e deturpada; aquilo era um círculo estreito de colegas de escola. A diferença era que, em lugar de observar as ordens e as orientações vulgares de um professor, eles realizavam incursões montados em cinco mil cavalos; em lugar do prado onde se joga bola, eles tinham fronteiras despreocupadas e desguarnecidas, à vista das quais um tártaro mostrava sua cabeça ligeira e um turco olhava imóvel e severo sob seu turbante verde.


A diferença era que, em lugar de serem reunidos à força numa escola, eles próprios tinham abandonado os pais e as mães e fugiram de casa; ali estavam aqueles em cujos pescoços já tinha sido colocada uma corda e que, em lugar da morte pálida, tinham visto a vida - e uma vida de plena baderna; ali estavam aqueles que, por um hábito nobre, não conseguiam guardar um só copeque no bolso; ali estavam aqueles que até então consideravam que um ducado era uma riqueza, e cujos bolsos, graças à piedade dos arrendatários judeus, podiam ser arrancados sem qualquer receio de deixar cair alguma coisa. Ali estavam todos os seminaristas que não tinham suportado as vergastadas na academia e nem tinham aprendido uma só letra na escola; mas junto com eles estavam os que conheciam Horácio, Cícero e a República Romana. Ali estavam muitos daqueles oficiais que depois se destacaram nas tropas reais; ali estava uma multidão de guerrilheiros experientes e instruídos, que tinham a nobre convicção de que tanto faz lutar aqui ou acolá, pois, para um homem nobre, indecência era viver sem batalhas. E havia aqueles que ali chegavam apenas para, mais tarde, dizer que tinham estado na Siétch e que já eram cavaleiros calejados. Mas quem ali não era? Aquela estranha república era realmente uma necessidade daquele século. Os amantes da vida militar, das taças de ouro, dos ricos brocados, ducados e moedas podiam encontrar trabalho ali em qualquer época. Os únicos que não encontrariam nada ali eram aqueles que amavam as mulheres, pois estas nem ousavam aparecer nos arrabaldes da Siétch. A Óstap e Andríi parecia estranho demais que chegasse um semnúmero de pessoas à Siétch, e sem que ninguém sequer perguntasse: de onde vem essa gente, quem são e como se chamam? Chegavam ali como se voltassem para sua própria casa, da qual tivessem saído há apenas uma hora. O recém-chegado apresentava-se apenas ao kochevói, que habitualmente dizia:

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- Olá! E então, acredita em Cristo? - Acredito! - respondia o recém-chegado. - E crê na Santíssima Trindade? 38

- Creio! - E vai à igreja? - Vou! - Bem, faça o sinal da cruz! O recém-chegado fazia o sinal da cruz. - Muito bem! - respondia o kochevói. - Entre no batalhão que você já conhece. Com isso terminava toda a cerimônia. E toda a Slétch rezava numa só igreja e estava pronta para defendê-la até a última gota de sangue, embora não quisesse nem ouvir falar sobre jejum e abstinência. Apenas os judeus, armênios e tártaros, induzidos por uma forte cobiça, ousavam viver e comercializar nos arrabaldes, porque os zaporogos nunca gostaram de pechinchar e pagavam a quantia de dinheiro que a mão tirasse do bolso. Entretanto, o destino desses comerciantes gananciosos era lamentável. Eram parecidos com aqueles que moravam ao pé do Vesúvio, pois logo que acabava o dinheiro dos zaporogos, estes bravos destruíam suas barracas e tomavam tudo de graça. A Siétch era constituída de sessenta e poucos batalhões, que se assemelhavam a repúblicas separadas, independentes, ou mesmo a uma escola ou a um seminário de alunos internos. Ninguém acumulava nem guardava nada consigo. Tudo ficava nas mãos do atamã do batalhão, que era por isso chamado habitualmente de paizinho. Ele guardava dinheiro, roupas, víveres, farinha de aveia e de milho e até combustível; entregavam-lhe todo o dinheiro para que guardasse. Não raro, ocorriam disputas entre os batalhões. Nesses casos, a coisa descambava para brigas de verdade. Os batalhões cobriam a praça e trocavam socos entre si até que alguns não resistiam e


deixavam de avançar contra os outros; daí começava uma festança. Assim era a Siétch, que tinha tantos atrativos para os jovens. Óstap e Andríi atiraram-se com todo o ardor da juventude naquele mar de badernas e esqueceram de imediato a casa do pai, o seminário e tudo o que outrora lhes preocupava a alma; e daí se entregaram à nova vida. Tudo os atraía: os costumes baderneiros da Siétch, a administração descomplicada e as leis que, às vezes, lhes pareciam até bastante severas no interior de uma república tão indisciplinada. Se um cossaco cometesse um roubo, se furtasse uma bagatela qualquer, isso era considerado uma infâmia para todos os cossacos; então, o infame era amarrado ao pelourinho e a seu lado era colocado um porrete, com o qual todos que passassem por ali estavam obrigados a desfechar-lhe um golpe, até que morresse. O devedor que não pagava era acorrentado a um canhão, onde tinha de permanecer até que algum dos seus companheiros resolvesse resgatá-lo, pagando sua dívida. Porém, o que mais causou impressão a Andríi foi a pena estabelecida para assassinato. Nesse caso, abria-se uma cova na frente do assassino, colocavam-no vivo ali dentro e por cima dele o caixão que guardava o corpo de sua vítima; em seguida cobriam a ambos com terra. Muito tempo depois Andríi ainda tinha a visão daquele terrível ritual de suplício e daquele homem enterrado vivo junto com um caixão tenebroso. Em pouco tempo os dois jovens já eram bem vistos pelos outros cossacos. Freqüentemente eles saíam para a estepe com alguns companheiros, às vezes até com todo o batalhão e com seus vizinhos, para caçar um semnúmero de espécies de aves, cervos e cabritos; ou então iam para os lagos, rios e canais, que eram desviados para cada batalhão, e daí jogavam redes e levavam ricas pescarias para alimentar a todos. Embora nessas situações não houvesse ciência em que um cossaco pudesse ser colocado à prova, eles se destacavam entre os outros jovens pela audácia direta e pela sorte em

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tudo. Atiravam no alvo com desenvoltura e de modo certeiro, nadavam no Dniepr contra a correnteza, ato pelo qual um novato era aceito solenemente nos círculos de cossacos. 40

Mas o velho Tarás lhes preparava outra atividade. Não lhe agradava uma vida tão ociosa - ele queria ação de verdade. Ficava imaginando como levantar a Slétch para uma ação de valor, onde pudesse se divertir como cabe a um cavaleiro. Finalmente um dia ele foi até o kochevói e disse de forma direta: - E então, kochevói, não é hora dos zaporogos se divertirem? - Não há onde se divertir - respondeu o kochevói, tirando da boca um pequeno cachimbo e cuspindo para um lado. - Como não há? Podemos ir para Turléschina ou para a Tatarva. -.Não podemos ir nem para Turiéschina e nem para a Tatarva respondeu o kochevói, colocando tranqüilamente seu cachimbo na boca outra vez. - Como não podemos? - É isso mesmo. Nós prometemos paz ao sultão. - Mas ele é muçulmano; e Deus e as Sagradas Escrituras mandam combater os muçulmanos. - Não temos o direito. Se não tivéssemos jurado por nossa fé, então podia ser; mas não foi assim. Agora não podemos. - Como não podemos? Por que você diz: não temos o direito? Pois eu tenho dois filhos, ambos são jovens. Nem um nem outro estiveram sequer uma-vez numa guerra, e você diz que não temos o direito? Você diz que os zaporogos não podem ir? - Bem, as coisas não são mais desse jeito. - Pois então é assim: que a força dos cossacos desapareça em vão, que o homem pereça como um cachorro, sem ter feito uma obra boa, e para que


nem a pátria nem o Cristianismo tirem dele qualquer proveito? Então para que nós vivemos, para que diabo nós vivemos? Explique-me isso! Você é um homem inteligente, não foi em vão que o escolheram como kocbevói; explique-me: para que nós vivemos? O kochevói não deu resposta a essa pergunta. Era um cossaco teimoso. Ele ficou calado por um instante e depois disse: - Apesar de tudo, não vai haver guerra. - Então não vai haver guerra? - perguntou de novo Tarás. - Não. - Então não se deve nem pensar nisso? - Não se deve nem pensar nisso. “Espere só, seu filhote do Cão!” - disse Bulba para si mesmo. “Você vai ver só!” E decidiu se vingar do kochevói. Depois de conversar com uns e outros, ofereceu a todos uma bebedeira, e os cossacos embriagados, num certo número de homens, foram direto para a praça, onde estavam amarrados num poste os tambores em que batiam para reunir o conselho. Como não encontraram as baquetas, que eram sempre guardadas pelo tamboreiro, eles pegaram uma acha e começaram a bater nos tambores. O primeiro a correr para a pancadaria foi o tamboreiro, um homem alto, caolho, que apesar de tudo parecia terrivelmente sonolento. - Quem se atreve a bater nos tambores? - gritou ele. - Cale-se! Pegue suas baquetas e toque quando lhe mandarem! - responderam os comandantes que se aproximavam. O tamboreiro tirou imediatamente do bolso as baquetas que trazia consigo, pois conhecia muito bem o desfecho de semelhantes ocorrências. Os tambores troaram - e logo bandos negros de zaporogos se ajuntaram na praça como marimbondos. Todos se reuniram em pequenos círculos, e depois da terceira pancadaria, finalmente chegaram os comandantes: o

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kockevói com a maça na mão, sinal de sua autoridade, o juiz com o sinete do exército, o escrivão com o tinteiro e o essaúl com um cetro. O kochevói 42

e os comandantes tiraram os gorros e saudaram a todos os cossacos, que permaneciam de pé com as mãos na cintura. - O que significa essa reunião? O que desejam, senhores? - disse o

kochevói. Injúrias e gritos não o deixaram falar. - Largue a maça! Largue a maça agora mesmo, filho do Cão! Não queremos mais você! - gritavam da turba os cossacos. Parecia que alguns que estavam sóbrios queriam se opor; mas os batalhões, tanto os bêbados como os sóbrios, partiram para a briga. Foi uma gritaria e uma barulheira geral. O kochevói queria falar, mas, sabendo que a turba livre, uma vez furiosa, podia surrá-lo até a morte por causa disso, coisa que sempre acontecia em semelhantes situações; então ele fez uma profunda reverência, largou a maça e sumiu na multidão. - Senhores, desejam que nós também larguemos estas insígnias de autoridade? - disseram o juiz, o escrivão e o essaúl, já se preparando para largar o tinteiro, o sinete do exército e o cetro. - Não, vocês ficam! - gritaram da turba. - Precisávamos apenas expulsar o kochevói, porque ele é um marica; precisamos de um homem no comando. - E quem vocês vão escolher para kocbevól? - disseram os comandantes. - Escolhemos Kukubienko! - gritava uma parte. - Não queremos Kukublenko! - gritava outra parte. - É cedo para ele, ainda está cheirando a leite! - Que Chilo seja o atamã! - gritavam alguns. - Vamos colocar Chilo no comando!


- Uma sovelada na sua cabeça! - gritava a turba com uma injúria. - O que vale um cossaco assim, se esse filho de um cão rouba como um tártaro! O diabo que carregue num saco esse bêbado do Chilo! - Borodati, vamos pôr Borodati no comando! - Não queremos Borodati! Que Borodati vá pro inferno! - Gritem “Kirdiága”! - sussurrou Tarás Bulba para alguns. - Kirdiága! Kirdiága! - gritava a turba. - Borodati! Borodati! Kirdiága! Klrdiága! Chilo! Ao diabo com Chilo! Kirdlága! Quando ouviram seus nomes sendo pronunciados, todos os candidatos saíram imediatamente da turba, a fim de não dar nenhum pretexto para que pensassem que eles estavam contribuindo para sua própria eleição. - Kirdiága! Kirdiága! - ressoava mais forte que os demais. - Borodati! A questão foi resolvida pela contagem das mãos, e Kirdiága venceu. - Tragam Kirdiága! - começaram a gritar. Então uma dezena de cossacos se separou da multidão; alguns deles mal se mantinham em pé, de tanto que tinham bebido, e foram logo atrás de Kirdiága informá-lo sobre sua eleição. Kirdiága, embora velho, era um cossaco inteligente; já tinha se recolhido ao seu batalhão, fingindo não ter a mínima idéia do que estava se passando. - Pois não, senhores, o que desejam? - perguntou ele. - Venha, você foi escolhido como kochevói!... - Tenham dó, senhores! - disse Klrdiága. - Desde quando sou digno de tanta honra? Como posso ser kocbevól? Não tenho juízo bastante para o exercício dessa função. Será que não havia ninguém melhor em toda a tropa? - Vamos, estão chamando você! - gritaram os zaporogos. Dois deles pegaram-no pelo braço; embora tivesse resistido com unhas e dentes, ele foi finalmente arrastado para a praça, acompanhado de injúrias e impelido por

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exortações, socos e pontapés. - Não recue, filho do Cão! Aceite a honra que lhe deram, seu cachorro! Dessa forma é que Kirdiága foi levado ao círculo de cossacos. 44

- E então, senhores? - exclamaram aqueles que o tinham trazido. - Vocês estão de acordo que este cossaco seja o nosso kocbevói? - Todos de acordo! - começou a gritar a turba, e o grito ecoou por todo o campo. Um dos comandantes pegou a maça e a ofereceu para o recém-eleito

kochevói. Seguindo a tradição, Klrdiága a recusou..O comandante ofereceu outra vez. Kirdiága recusou de novo, e só na terceira vez a aceitou. Um grito encorajador ressoou por toda a multidão, e novamente começou a ecoar por todo o campo o grito dos cossacos. Então saiu do meio do povo o quarteto de cossacos mais velhos, de topetes e bigodes grisalhos (não havia homens muito velhos na Siétch, pois nenhum zaporogo morria de morte natural), e depois de cada um pegar um punhado de terra, que na ocasião tinha virado lama por causa de uma chuva recente, puseram-no na cabeça do kochevói. A terra molhada escorreu de sua cabeça, atingiu os bigodes e as faces e lambuzou todo o seu rosto. Mas Kirdlága permaneceu imóvel e agradeceu aos cossacos pela honra concedida. Assim terminou a barulhenta eleição, que não se sabe se tinha agradado aos outros tanto quanto a Bulba: dessa forma ele tinha se vingado do kochevói anterior e, além disso, Kirdiága era seu velho companheiro e tinha estado a seu lado em campanhas por terra e por mar, dividindo a dureza e as dificuldades da vida guerreira. A turba se dispersou para comemorar a eleição, e foi organizada uma farra como até então Óstap e Andríi nunca tinham visto. As tavernas foram arrebentadas; o hidromel, a aguardente e a cerveja foram simplesmente apanhados, sem pagamento; e os taverneiros ainda ficaram felizes por terem saído ilesos. A noite passou


inteira entre gritos e canções que celebravam proezas. A lua que surgia ainda contemplou por muito tempo os grupos de músicos que passavam pelas ruas com bandurras, pandeiros e balalaicas arredondadas, e de cantores de igreja, os quais eram mantidos na Siétch para os cantos religiosos e de louvores aos feitos dos zaporogos. Finalmente a embriaguez e o cansaço começaram a vencer aquelas cabeças duras. E via-se aqui e ali um cossaco caindo ao chão. Um companheiro abraçava o outro, comovido e até em prantos, e caía junto com ele. Aqui um bando se deitava formando um monte, ali um outro procurava o melhor lugar para se deitar, terminando por se encostar logo num tronco de árvore. O último, que era mais forte, ainda pronunciava umas palavras sem nexo; por fim, a força da embriaguez o abateu, e ele desabou - e toda a Siétch adormeceu.



N

o outro dia, Tarás Bulba já consultava o novo kochevói sobre como levantar os zaporogos para alguma ação. O

kochevói era um cossaco inteligente e astucioso, conhecia os zaporogos em todos os aspectos, e começou dizendo: “Não podemos quebrar o juramento, isso não podemos de jeito nenhum”. E depois de um silêncio, acrescentou: “Não faz mal,podemos fazer algo,sim;não vamos quebrar o juramento, mas imaginaremos alguma coisa. Só precisamos que o povo se reúna, mas não por minha ordem, e sim por vontade própria. Você já sabe como fazer isso. Depois eu irei imediatamente com os comandantes para a praça, como se não soubesse de nada”.


Não se passou nem uma hora depois dessa conversa, e os tambores já começaram a soar. Os cossacos apareceram de repente, bêbados e tresloucados. Um milhão de gorros surgiu subitamente na praça. Levantou48

se um murmúrio: “Quem?... Para quê?... Por que convocaram essa reunião?”. Ninguém respondia. Finalmente ouviu-se num canto e no outro: “A força cossaca está se perdendo em vão: não há mais guerra!... Os comandantes ficaram molengas de vez, estão até de olhos inchados!... Pelo jeito, não existe justiça nesse mundo!”. Os outros cossacos ouviram esse começo e depois eles mesmos puseram-se a falar: “Realmente não existe nenhuma justiça nesse mundo!”. Os comandantes pareciam assombrados com aquelas palavras. Finalmente o kochevói avançou e disse: - Permitam que eu lhes fale, senhores zaporogos! - Fale! - O que está em discussão, nobres senhores e talvez saibam disso melhor do que eu, é que muitos zaporogos estão devendo tanto nas tavernas dos judeus e para seus próprios irmãos que nem mesmo um diabo concederá mais crédito a eles. Além disso, o que também está em discussão é que há muitos rapazes que ainda nem sabem o que é uma guerra; e os senhores sabem muito bem que um jovem não pode ficar sem guerra. Que zaporogo vai ser ele, se nenhuma vez bateu num muçulmano? “Ele fala bem”, pensou Bulba. - Todavia, senhores, não pensem que eu digo isso para quebrar a paz, Deus me livre! Estou apenas falando. Além disso, temos um templo divino. É até pecado dizer, mas a Siétch existe há tantos anos, graças a Deus, e até hoje não há sequer um adorno nem do lado de fora e nem nas imagens! Quisera Deus que alguém se lembrasse de forjar uma moldura para elas! Elas só receberam o que foi deixado em testamento por alguns cossacos. E o donativo deles era pobre, porque tinham gastado quase tudo em bebidas. Assim, eu faço este discurso não para começar uma guerra com os


muçulmanos: prometemos paz ao sultão, e seria um grande pecado para nós, porque juramos por nossos mandamentos. “Que trama é essa que ele está armando?” - disse Tarás para si mesmo. - Então, como vêem, senhores, não podemos começar uma guerra. A honra de cavaleiro não permite. Mas, em meu pobre juízo, eu penso o seguinte: podemos permitir que alguns jovens, em canoas, vasculhem um pouco as costas da Anatólia. O que acham, senhores? - Mande todos, mande todos! - a multidão começou a gritar por toda parte. - Pela fé estamos prontos para arriscar nossas cabeças!

O kochevói se assustou; ele não queria de modo algum levantar o

Zaporójie inteiro: neste caso, romper a paz lhe parecia uma coisa incorreta. - Permitam-me, senhores, dizer mais uma coisa! - Basta! - gritaram os zaporogos. - É melhor não dizer mais nada!

- Então, que assim seja! Sou um servo da vontade de vocês. É sabido por todos, e sabe-se pelas Escrituras, que a voz do povo é a voz de Deus. É impossível imaginar algo mais inteligente do que aquilo que é imaginado por todo o povo. Mas há um porém: os senhores sabem que o sultão não deixará impune o deleite desses jovens. Mas nesse ínterim, nós já estaríamos preparados, nossas forças descansadas, e nao temeríamos a ninguém. E durante essa ausência, os tártaros podem atacar; os cães dos turcos não vão se atirar à nossa frente e nem ousarão invadir a casa na presença do dono: vão morder no calcanhar, e a mordida será dolorosa. E para dizer a verdade, nós nem temos canoas de reserva, e a pólvora moída não é suficiente para que todos possam partir. Mas sou feliz em ser um servo da vontade dos senhores.

O astucioso kochevói se calou. Os bandos começaram a conversar, os

atamanes dos batalhões deliberavam: os bêbados, felizmente, eram poucos, e foi decidido que seguiriam o conselho prudente. Na mesma hora alguns homens lançaram-se à margem oposta do Dniepr, ao depósito das tropas, onde, em esconderijos inacessíveis, sob a

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água e no meio de juncos, estavam escondidos os tesouros e parte das armas tomadas do inimigo. Todos os outros lançaram-se às canoas para examinálas e prepará-las para a viagem. Num instante a margem ficou cheia de 50

gente. Alguns carpinteiros apareceram com machados nas mãos. Velhos zaporogos queimados de sol, de ombros largos e pernas robustas, bigodes negros e meio grisalhos, com as bombachas arregaçadas, estavam na água até os joelhos e puxavam as canoas da margem com cabos resistentes. Outros carregavam troncos secos e todo tipo de madeira. Aqui revestiam uma canoa com tábuas; ali viravam-na de cabeça para baixo e a vedavam; acolá, seguindo um costume - O que foi? - exclamou um dos atamanes. - Como assim “o que foi?”! Pelo jeito, os tártaros taparam seus ouvidos com cola para que não ouvissem nada. - Fale logo: o que está acontecendo por lá? - O que está acontecendo nós nunca vimos desde que nascemos e fomos batizados. - Diga-nos logo o que está acontecendo, filho de um cão! - gritou alguém do meio do povo, pelo visto já sem paciência. - Chegou um tempo em que as santas igrejas não são mais nossas. - Como não são nossas? - Agora são arrendadas pelos judeus. E se.o pagamento não é feito com antecedência, então não se pode celebrar a missa. - O que você está dizendo? - E se o cão judeu não puser sinais com sua mão imunda na santa ceia pascal, então não se pode celebrar a Páscoa. - Ele está mentindo, irmãos, não é possível que um judeu imundo coloque sinais na santa ceia pascal! - Escutem!... ainda não terminei: agora os padres católicos andam de charrete por toda a Ucrânia. Mas a desgraça não é o fato de andarem nas


charretes, a desgraça é que eles atrelam não os cavalos, e sim os cristãos ortodoxos. Escutem só! Ainda não terminei: dizem que as judias estão fazendo saias com as casulas dos popes. Vejam só o que está acontecendo na Ucrânia! E os senhores ficam aí passeando em Zaporójie! Sim, pelo jeito os tártaros lhes botaram tanto medo que já não têm nem olhos e nem ouvidos; não têm mais nada, e não escutam o que está se passando no mundo. - Pare, pare! - interrompeu o kochevói, que até então estivera imóvel, de olhos voltados para o chão, como todos os zaporogos, que, nos assuntos importantes, nunca se deixavam levar pelo primeiro ímpeto, mas mantinham-se calados enquanto reuniam em silêncio uma terrível força de indignação. - Pare! Vou dizer algumas palavras. E vocês, que o diabo lhes carregue o pai!, o que vocês fizeram? Por acaso não tinham sabres, é? Como é que permitiram tamanha arbitrariedade? - Ora, como permitimos tamanha arbitrariedade!? Vocês tentariam algo contra cinqüenta mil polacos? Além disso, não há por que esconder o pecado - entre os nossos havia também uns cães que adotaram a fé alheia. - E o seu bétman, e os coronéis, o que fizeram? - Os coronéis fizeram umas coisas que Deus nos livre a todos.’ - O que foi? - Ora, o bétman jaz agora em Varsóvia, assado num touro de cobre; e as mãos e as cabeças dos coronéis foram conduzidas pelas feiras à vista de todo o povo. Aí está o que fizeram os coronéis! Toda a multidão ficou agitada. Primeiro transcorreu um silêncio por toda a margem, semelhante àquele que ocorre ante uma tempestade violenta; em seguida, palavras se elevaram de repente, e toda a margem começou a falar. - Como assim!? Os judeus arrendam igrejas cristãs? Os padres católicos atrelam cristãos ortodoxos a carruagens? Como assim? E tolerar na terra

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russa os suplícios desses malditos infiéis? Aqueles que procederam dessa forma com os coronéis e o atamã? Isso não vai ficar assim, não vai! Essas palavras voaram por todos os confins. Os zaporogos começaram 52

a fazer barulho e sentiram um fervor. Já não era a agitação de um povo leviano: agitava-se por completo uma natureza pesada e vigorosa, que não se incendiava rapidamente, mas, uma vez incendiada, conservava o ardor dentro de si de forma obstinada e duradoura. - Vamos enforcar todos os judeus! - ouviu-se do meio da turba. Que não façam mais salas para suas judias com as casulas dos popes! Que não ponham mais sinal nas ceias pascais! Vamos afogar todos no Dniepr, esses canalhas! Essas palavras, pronunciadas por alguém do meio da turba, passaram como um raio pela cabeça de todo mundo, e a multidão precipitou-se para o arrabalde com o desejo de degolar os judeus. Os pobres filhos de Israel, perdendo a coragem que já era pouca, esconderam-se nos barris vazios de aguardente e nas estufas, e se meteram até debaixo das salas de suas judias; mas os cossacos encontraram-nos em toda parte. - Ilustríssimos senhores! - gritava um judeu alto e comprido como uma vara, que do meio de um monte de companheiros seus mostrou sua cara deplorável, deformada pelo pavor. - Nobilíssimos senhores! Deixem-nos dizer ao menos uma palavra, só uma palavra! Vamos dizer algo que nunca ouviram, algo que nem podemos dizer o quanto é importante! - Pois que falem! - disse Bulba, que sempre gostava de ouvir um condenado. - Ilustres senhores! - exclamou o judeu. - Nunca se viu homens como os senhores! Juro por Deus que nunca se viu! Nunca existiu no mundo senhores tão bondosos e valentes!... - sua voz sumia e tremia de pavor. Como poderíamos pensar em algo de mal para os zaporogos? Aqueles que


estão fazendo arrendamentos na Ucrânia não são dos nossos! Juro por Deus, não são dos nossos! Não são judeus de forma alguma: o diabo é que sabe o que são eles! São de um jeito que devia-se apenas cuspir neles e jogá-los fora! E estes aqui dirão a mesma coisa. Não é verdade, Chlióma? Não é, Chmul? - Sim, por Deus, é verdade! - responderam do meio da multidão Chlióma e Chmul, ambos brancos como argila, vestindo levitas esfarrapadas. - Nunca tivemos relações com os inimigos - continuou o judeu comprido. - E dos católicos nós não queremos nem saber: eles que sonhem com o diabo! Nós e os zaporogos somos como irmãos de sangue... - Como?! Vocês e os zaporogos são irmãos? - exclamou alguém da multidão. - Nem pensem nisso, judeus malditos! Ao Dniepr com eles, senhores! Afoguem todos esses canalhas! Essas palavras foram um sinal. Eles agarraram os judeus pelos braços e começaram a jogá-los na água. Um grito doloroso ressoou de todos os lados, mas os severos zaporogos apenas riam, vendo os pés dos judeus calçados com botinas e meias se agitando no ar. O pobre orador, que tinha sido o causador de sua própria desgraça, soltou-se do cafetã pelo qual o seguravam, atirou-se aos pés de Bulba vestindo um camisão estreito e malhado e, com voz lastimosa, implorou: - Grande senhor, ilustríssimo senhor! Eu conheci o seu irmão, o falecido Doróche! Era um guerreiro para a glória de toda a cavalaria! Dei-lhe oitocentas moedas de ouro quando foi preciso resgatá-lo do cativeiro turco. - Você conheceu meu irmão? - perguntou Tarás. - Juro por Deus que o conheci! Era um magnífico senhor. - E como você se chama? - lánkel. - Está bem - disse Tarás; e depois de refletir um instante, virou-se para os cossacos e falou assim: - Sempre haverá tempo de enforcar um judeu quando for preciso, mas hoje entreguem este a mim. - Dito isso, Tarás o levou

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até o comboio onde estavam seus cossacos. - Bem, entre debaixo da relega, fique ali e não faça barulho; e vocês, irmãos, não deixem esse judeu escapar. Depois de dizer isso, ele se dirigiu à praça, onde a multidão estava 54

reunida há algum tempo. Num instante todos tinham abandonado a margem e o conserto das canoas, pois agora tinham pela frente uma jornada terrestre, e não marítima, e precisavam de relegas e cavalos, não de barcos e gaivotas cossacas. Agora todo mundo queria ir para a expedição, tanto os velhos quanto os jovens; por decisão dos comandantes, dos atamanes dos batalhões e do kochevói, e por vontade do exército zaporogo, todos resolveram ir direto para a Polônia, a fim de vingar a maldade e a humilhação da fé e da honra cossaca, e também para tomar os bens das cidades, incendiar aldeias e colheitas e espalhar sua glória pelas estepes. Todos estavam se reunindo e se preparando. O kochevói tinha crescido mais de meio metro. já não era mais o tímido executor dos desejos levianos de um povo teimoso, mas um senhor com plenos poderes. Era um déspota que sabia mandar muito bem. Enquanto o kochevói falava, aqueles cavaleiros insubordinados e farristas permaneciam alinhados, de cabeça baixa em sinal de respeito, sem ousar levantar os olhos; ele distribuía os afazeres com calma, sem gritar e sem se apressar, mas de modo ordenado, como um cossaco velho e experiente que não estava comandando pela primeira vez a execução de tarefas cuidadosamente planejadas. - Examinem bem tudo isso! - assim falava ele. - Reparem as carroças e as latas de graxa, testem as armas. Não levem muita roupa consigo: basta um camisão e duas bombachas, e também um pote de farinha de aveia e de milho moído. Que ninguém leve mais nada! Em caso de necessidade, nos potes haverá tudo de que precisam. Um par de cavalos para cada cossaco. Peguem duzentas parelhas de bois, porque precisaremos deles nos baixios e nos lugares lamacentos. Mas antes de tudo, senhores, mantenham a


ordem. Sei que entre vocês há aqueles que, tão logo tenham oportunidade, já vão logo agarrando os tecidos caros e brocados. Larguem esse costume do diabo, joguem fora todas as saias; peguem somente uma arma que estiver em bom estado, e também as moedas de ouro ou prata, pois elas são de ampla utilidade e vão servir em qualquer situação. E lhes aviso de antemão, senhores: se alguém se embriagar durante a marcha, não haverá nenhum julgamento para ele. Mandarei amarrá-lo no comboio pelo pescoço como um cachorro, quem quer que seja ele, mesmo que seja o mais bravo cossaco de toda a tropa será fuzilado como um cachorro no mesmo lugar e abandonado sem sepultura, para servir de comida para as aves, pois quem se embriaga durante uma marcha é indigno de um sepultamento cristão. Jovens, escutem os velhos! Se levarem um tiro ou forem feridos por um sabre na cabeça ou em qualquer outra parte, não dêem grande importância a isso. Misturem uma carga de pólvora num cálice de aguardente, bebam de uma só vez, e tudo vai passar. Não terão nem febre; e se o ferimento não for grande, coloquem bastante terra, amassando-a antes com saliva, e daí ele vai cicatrizar. E agora, rapazes, ao trabalho, ao trabalho; mas sem pressa, preparem-se bem! Assim falou o kochevói, e logo que terminou seu discurso, todos os cossacos começaram imediatamente a trabalhar. Toda a Siétch voltou a si, e era impossível encontrar bêbados onde quer que fosse; era como se eles nunca tivessem existido entre os cossacos... Uns consertavam os aros das rodas e trocavam os eixos das telegas, outros carregavam sacos de víveres e armas para as carroças; havia ainda outros que conduziam cavalos e bois. De todos os lados ressoavam o tropel dos cavalos, os disparos de espingardas sendo testadas, o tilintar dos sabres, o mugido dos bois, o rangido das carroças que se movimentavam, o ruído das vozes e os gritos fortes de incitação - e logo a coluna cossaca se estendeu ao longe, por todo o campo. E quem quisesse percorrê-la de um extremo ao outro teria de se esforçar muito. Na pequena

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igreja de madeira o sacerdote celebrou um Te-Deum e aspergiu água benta nos cossacos; estes beijaram uma cruz. Quando a coluna se pôs em marcha e se arrastou para fora da Siétch, os zaporogos olharam para trás. 56

- Adeus, nossa mãe! - disseram eles quase a uma só voz. - Que Deus a proteja de toda desgraça! Ao passar pelo arrabalde, Tarás Bulba viu que seu judeu, lánkel, já tinha armado uma barraca com um toldo e vendia pederneiras, pólvora e todo tipo de apetrechos militares que são necessários para a jornada, inclusive rosquilhas e pães. “Mas que diabo de judeu!” - pensou Tarás consigo mesmo, depois aproximou-se dele e disse: - Imbecil, o que você está fazendo? Por acaso quer que o fuzilem como um pardal? Em resposta a isso, lánkel chegou bem perto de Tarás e, depois de fazer um sinal com ambas as mãos como se quisesse comunicar algum segredo, disse: - O senhor fique calado e não diga nada a ninguém: entre as carroças cossacas há uma carroça que é minha; carrego todo o estoque necessário para os cossacos e, durante a marcha, vou fornecer todo tipo de víveres por um preço tão baixo como nenhum judeu nunca vendeu. É isso, juro por Deus que é isso. Tarás Bulba encolheu os ombros, impressionado com a sagacidade da natureza judaica, e se dirigiu à coluna.




L

ogo todo o sudoeste polonês foi tomado pelo terror. Os rumores correram

por

toda

parte:

“Os

zaporogos!... Os zaporogos chegaram!...”. Os que podiam, fugiram. Todos se preparavam e fugiam, como era costume naquele século desregrado e desordenado, no qual não se construíam nem fortalezas, nem castelos; o homem erguia sua habitação de palha de qualquer maneira, e apenas por certo tempo. Ele pensava: “Não vale a pena gastar dinheiro e trabalho numa isbá, já que ela vai mesmo ser destruída por incursões tártaras!”. Todo mundo estava agitado: uns trocavam bois e arados por cavalos e espingardas e ingressavam num


regimento; outros se escondiam, levando gado e carregando tudo o que era possível. Havia também aqueles que iam de armas em punho de encontro aos visitantes, mas a maioria deles fugia antecipadamente. Todos sabiam 60

que era difícil lidar com a multidão guerreira e violenta conhecida pelo nome de exército zaporogo, o qual, em sua aparente desordem, encerrava uma organização bem preparada para os tempos de batalha. Os cavaleiros seguiam sem fustigar nem irritar os cavalos, os infantes iam prudentemente atrás dos bois, e toda a coluna se deslocava apenas à noite, descansando durante o dia e escolhendo para isso os descampados, os lugares desabitados e os bosques, que então ainda existiam em abundância. Batedores e espiões eram enviados na frente para fazerem um reconhecimento do terreno e averiguarem o que estava se passando. E era sempre nos lugares onde menos se podia esperá-los que eles apareciam de repente; então ali todo mundo ia se despedindo da vida. Incêndios envolviam os povoados; o gado e os cavalos que a tropa não levava eram abatidos ali mesmo. Parecia até que eles faziam banquetes, e não uma campanha. Hoje ficaríamos de cabelo em pé por aqueles terríveis sinais de crueldade, daquele século semi-selvagem, e que foram levados a toda parte pelos zaporogos. Crianças foram mortas, mulheres tiveram os seios cortados, os que eram deixados em liberdade tinham as pernas esfoladas até os joelhos - numa palavra: os cossacos pagavam com juros as dívidas contraídas. O prelado de um mosteiro, quando soube da aproximação dos cossacos, enviou dois monges para dizer que não fizessem com ele aquilo que costumavam fazer, que havia um acordo entre os zaporogos e o governo, que eles estavam violando seu dever para com o rei e, ao mesmo tempo, o direito do povo inteiro. - Diga ao bispo, de minha parte e da parte de todos os zaporogos - disse o kockevói -, para que ele não tema nada. Estes cossacos ainda estão apenas acendendo e fumando seus cachimbos. E logo a majestosa abadia foi envolvida por chamas destruidoras, com suas colossais janelas góticas se mostrando, severas, por entre as labaredas.


As multidões que fugiam, formadas por monges, judeus e mulheres, encheram de repente as cidades onde havia alguma esperança na guarnição e na força policial. A demorada ajuda enviada pelo governo, e constituída por pequenos regimentos, não conseguia encontrá-los ou então se acovardava, recuando ao primeiro encontro e fugindo em seus cavalos afoitos. Por vezes, muitos chefes do exército real, que tinham triunfado em batalhas anteriores, decidiam reunir suas forças para se levantar contra os zaporogos. E foi Justamente isso que experimentaram os nossos jovens cossacos, que não estavam interessados em pilhar e tirar proveito de um inimigo indefeso; eles estavam loucos para se mostrar perante os velhos, para se testarem frente a frente com um polaco desenvolto e fanfarrão, que brilhava sobre um cavalo altivo e com as mangas da capa dobradas flutuando no vento. Era uma ciência divertida. Eles já haviam conseguido muitos arreios de cavalo, sabres valiosos e espingardas. Em um mês, os frangotes que tinham acabado de emplumar se transformaram por completo, ficaram robustos e tornaram-se homens. Os traços de seus rostos, nos quais até pouco tempo se via uma certa ternura de juventude, eram agora firmes e terríveis. Para o velho Tarás era um prazer ver que ambos os seus filhos estavam entre os primeiros. Óstap parecia destinado à carreira militar e à difícil arte de conduzir os negócios da guerra. Nem uma única vez ficou desorientado ou confuso com qualquer situação; com um sangue frio quase sobrenatural para alguém de vinte e dois anos, ele podia avaliar num instante todo o perigo e o estado das coisas e encontrar imediatamente uma forma de escapar, mas escapar para depois vencer com mais certeza. Seus movimentos já tinham começado a expressar uma confiança experimentada, e neles era impossível não perceber o talento de um futuro chefe. Seu corpo inspirava firmeza, e suas qualidades de cavaleiro já tinham adquirido a enorme força de um leão. - Oh! Com o tempo, esse será um bom coronel! - dizia o velho Tarás. Realmente vai ser um bom coronel, tanto que vai superar até o pai!

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Andríi tinha mergulhado inteiramente na encantadora música das balas e das espadas. Ele não sabia o que significava pensar, calcular ou mesmo avaliar com antecedência a força dos outros e a sua própria. Ele via 62

na batalha um êxtase e uma volúpia raivosa: parecia-lhe algo como uma festança naqueles momentos em que a cabeça de um homem começa a se inflamar, quando nos olhos tudo aparece e se mistura, cabeças voam e cavalos desabam no chão com estrondo; e ele se atirava como um ébrio em meio ao silvo das balas e do brilho dos sabres, assestando golpes em todos e sem perceber os que recebia. Mais de uma vez o pai também ficou admirado com Andríi, ao ver como ele, instigado apenas por uma paixão violenta, precipitava-se contra aquilo que alguém ajuizado e de sangue frio jamais se atreveria, e também por ter realizado, graças a seu impulso raivoso, proezas tais que nem os veteranos de batalha podiam deixar de ficar assombrados. Admirado, o velho Tarás dizia: - Esse também é bom; que o inimigo jamais o pegue! É valente. Não é como Óstap, mas é muito bom e valente! O exército decidiu ir direto para a cidade de Dúbno, onde, segundo rumores, havia moradores ricos e muitos tesouros. A marcha foi realizada em um dia e meio, e os zaporogos apareceram diante da cidade. Os habitantes decidiram se defender até suas últimas forças e limites, considerando que era melhor morrer nas praças e nas ruas, em frente às soleiras de suas casas, do que permitir que o inimigo entrasse nelas. Uma grande trincheira de terra circundava a cidade; onde a trincheira era baixa, despontava um muro de pedra ou uma casa que servia de bateria, ou mesmo uma paliçada de carvalho. A guarnição era poderosa e sentia a importância de sua função. Os zaporogos começaram a subir com ímpeto na trincheira, mas foram recebidos por uma forte rajada de tiros. Pelo visto, a pequena burguesia e os habitantes da cidade não queriam permanecer ociosos, e então se colocaram aos montes na trincheira da cidade. Em seus olhos podia-se ler uma


resistência desesperada; também as mulheres tinham resolvido participar: sobre as cabeças dos zaporogos voaram pedras, barris, vasos de barro, piche fervente e até sacos de areia que lhes cegaram os olhos. Os zaporogos não gostavam de enfrentar fortalezas; promover cercos não era com eles. O kockevói ordenou que recuassem, dizendo: - Não faz mal, senhores irmãos, vamos recuar. Mas que eu seja um tártaro asqueroso e não um cristão se deixarmos escapar um só deles! Que morram de fome esses cães! Depois de recuar, o exército sitiou a cidade, e por não ter nada para fazer, ocupava-se com a devastação dos arredores, queimando as aldeias próximas, os montes de cereais desordenados e lançando tropas de cavalos sobre os campos de trigo ainda não ceifados, onde, como se fosse de brincadeira, balançavam-se espigas grossas, fruto de uma safra excepcional que naquela época recompensava generosamente os lavradores. Os habitantes viam com horror os seus meios de subsistência sendo destruidos. Enquanto isso, tendo já estendido suas relegas em duas fileiras ao redor de toda a cidade, os zaporogos se instalavam em acampamentos - como na Siétch, fumavam cachimbos, trocavam entre si as armas apanhadas, brincavam de pula-sela, de par ou ímpar, e ainda vigiavam a cidade com o sangue-frio de um assassino. À noite acendiam fogueiras. Os cozinheiros preparavam papas para todos os batalhões em enormes caldeirões de cobre. Perto das fogueiras ardentes permaneciam sentinelas acordadas durante toda a noite. Mas pouco a pouco os zaporogos começaram a se aborrecer com a falta de atividade e a prolongada moderação que não estava relacionada a coisa alguma. O kochevói mandou até duplicar a porção de vinho, o que era costume no exército quando não havia manobras e operações difíceis. Os jovens, principalmente os filhos de Tarás Bulha, não gostavam de uma vida assim. Andríi estava visivelmente aborrecido. - Você é um cabeça-dura - dizia-lhe Tarás. - Tenha paciência, cossaco, e será um atamã! Um bom guerreiro não é apenas aquele que

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não perdeu a coragem numa operação importante, mas também aquele que não se aborrece no ócio, que suporta tudo e que, haja o que houver, consegue prevalecer. 64

Mas um jovem impetuoso não combina com um velho. Ambos têm uma natureza distinta e vêem a mesma coisa com olhos diferentes. Enquanto isso, o regimento de Tarás se aproximou sob o comando de Tóvkatch; com ele estavam dois essaú , um escrivão e outros oficiais; reuniram-se ao todo mais de quatro mil cossacos. Havia entre eles uns poucos voluntários que, tão logo souberam do que se tratava, levantaram-se por sua própria vontade, sem precisar de uma convocação. Os essaúles trouxeram para os filhos de Tarás a bênção da velha mãe e um ícone de cipreste do mosteiro klevano de Mejlgórie para cada um deles. Os dois irmãos colocaram as santas imagens no pescoço e involuntariamente começaram a refletir, tão logo se lembraram da velha mãe. Aquela bênção prenunciava alguma coisa? Seria uma bênção de vitória sobre o inimigo, seguida de um feliz retorno à pátria com despojos e a glória que serviria para as eternas canções dos bandurristas? Ou será que... Mas o futuro é desconhecido; ele fica diante do homem semelhante à névoa de outono que se levanta dos pântanos. Nele as aves voam loucamente, para cima e para baixo, rasando com as asas e sem que umas percebam as outras - a pomba não vê o gavião, o gavião não vê a pomba - e ninguém sabe a que distância está voando de sua perdição... Óstap já estava ocupado com suas coisas e há tempos havia se dirigido aos acampamentos. Andríi, embora não soubesse por quê, sentia um aperto no coração. Os cossacos tinham terminado sua ceia, a tarde já havia desaparecido e uma maravilhosa noite de julho abraçara o ar; mas Andríi não se dirigiu aos acampamentos e nem foi se deitar; ficou olhando involuntariamente para o quadro que se apresentava diante de si. Uma infinidade de estrelas aparecia no céu com um brilho vivo e suave. O campo estava repleto de carroças que traziam latas de graxa penduradas e sujas de breu e toda sorte de bens e


provisões tomadas do inimigo. Em toda parte se viam zaporogos espalhados na relva - ao lado, embaixo e até distante das telegas. Todos eles dormiam em posições pitorescas: uns tinham colocado um saco embaixo da cabeça, outros um gorro, e outros empregavam simplesmente o flanco de seus companheiros. O sabre, o mosquete, o cachimbo de cano curto com chapa de cobre e o fuzil de pederneira estavam sempre ao lado de cada cossaco. Os bois pesados estavam deitados com as pernas dobradas, em forma de grandes massas esbranquiçadas que, de longe, pareciam pedras cinzentas espalhadas pelo declive do campo. De todos os lados já tinha começado a se levantar o ronco grosso do exército adormecido, ao qual respondiam com um relincho sonoro os garanhões que estavam revoltados por terem as pernas amarradas. Enquanto isso, algo majestoso e terrível se misturava com a beleza da noite de julho. Eram os clarões longínquos dos arredores em chamas que iam se -extinguindo. De um lado as labaredas se estendiam calma e majestosamente pelo céu; de outro, quando encontravam alguma coisa quente, elas subiam de imediato em turbilhão, silvando e voando para o céu, bem abaixo das estrelas, e as mechas que lhes eram arrancadas iam desaparecendo nos pontos mais distantes da abóbada celeste. Num ponto, um mosteiro negro e queimado permanecia rígido, como um severo monge cartusiano, mostrando a cada clarão a sua grandeza sombria. Noutro ponto, ardia o jardim do mosteiro. Parecia que se estava ouvindo as árvores sibilando enquanto se enroscavam com a fumaça, e quando o fogo aparecia, ele subitamente clareava com uma luz púrpura e fosfórica os cachos maduros de ameixas, ou então transformava aqui e ali as pêras amareladas em ouro fino; e daí, pendurado num galho ou numa parede do prédio, negrejava em meio às árvores o corpo de um monge ou de um pobre judeu, que perecera junto com o edifício em chamas. Acima do fogo voavam pássaros, que se assemelhavam a um monte de cruzes pequenas e escuras num campo chamejante. A cidade sitiada parecia ter adormecido. As torres,

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os telhados, a paliçada e as paredes estavam avermelhadas por causa do reflexo dos incêndios distantes. Andríi deu uma volta pelas fileiras cossacas. As fogueiras estavam prestes a se apagar, e junto a elas dormiam os próprios 66

vigias, depois de terem saciado seu apetite cossaco com farinha de aveia e galúchki. Ele ficou um pouco admirado com tanto desleixo, e pensou: “Ainda bem que não há nenhum inimigo forte por perto e nem nada para temer”. Finalmente ele se aproximou de uma das relegas, subiu nela e se deitou de costas, colocando as mãos cruzadas sob a cabeça; mas não conseguiu adormecer e ficou muito tempo olhando para o céu. O ar estava claro e limpo, e o céu todo aberto à sua frente. O borrão de estrelas que constituía a Via Láctea, em forma de uma faixa cruzando o céu, estava inundada de luz. De vez em quando Andríi cochilava, e uma suave névoa de sonolência encobria o céu, que depois se desvencilhava dela e se tornava visível de novo. Nesse momento, teve a impressão de que uma estranha imagem, de um rosto humano, havia aparecido à sua frente. Pensando que era uma simples imagem criada pelo sono e que logo se dissiparia, Andríi abriu bem os olhos e viu que, de fato, um rosto pálido e seco estava inclinado sobre ele, olhando-o diretamente nos olhos. Os cabelos compridos e negros como carvão, desalinhados e despenteados, saíam de sob um véu escuro jogado sobre a cabeça. O brilho estranho do olhar e a palidez cadavérica do rosto, que era coberto de traços bem salientes, faziam pensar de imediato que se tratava de um fantasma. Ele agarrou de forma involuntária o mosquete e exclamou quase convulsivamente: - Quem é você? Se é um espírito imundo, suma da minha frente! Se é um ser vivo, isso não é hora de brincadeira: vou matá-lo no primeiro tiro! Em resposta a isso, a aparição levou um dedo aos lábios, parecendo implorar por silêncio. Ele abaixou a mão e começou a olhá-la mais atentamente. Pelos cabelos compridos, o pescoço e o busto moreno e seminu, ele reconheceu uma mulher. Mas ela não era natural dali. O rosto era moreno,


extenuado por alguma enfermidade; os pômulos se sobressaíam nas faces emagrecidas; os olhos estreitos subiam num risco em forma de arco; quanto mais Andríi examinava os traços dela, mais encontrava neles algo familiar. Finalmente ele perdeu a paciência e perguntou: - Diga, quem é você? Parece-me que já a conheço, ou já a vi em algum lugar. - Dois anos atrás, em Kiev. - Dois anos atrás... em Kiev... - repetiu Andríi, esforçando-se para recordar tudo que sobrevivera em sua memória sobre a vida de seminarista de outrora. Ele olhou fixamente para ela mais uma vez e, de repente, deu um grito com toda força: - Você é tártara! É a criada da filha do voievoda!... - Psiu! - exclamou a tártara, depois de juntar as mãos com uma aparência suplicante, toda trêmula e virando ao mesmo tempo a cabeça para trás, a fim de ver se alguém havia acordado por causa do forte grito dado por Andríi. - Diga, diga: por que está aqui? - dizia Andríi quase sufocado, num sussurro, interrompendo-se a cada instante por causa da emoção. - Onde está sua senhorinha? Ainda está viva? - Está aqui, na cidade. - Na cidade?! - exclamou ele, quase gritando outra vez, e sentiu que todo seu sangue afluíra ao coração. - Mas por que ela está na cidade? - Porque o pai dela está aqui. já faz um ano e meio que ele é o voievoda de Dúbno. - Pois bem, e ela se casou? Vamos, diga; como você está estranha! Como ela está? - Há dois dias que não come nada. - Como?... - Há tempos que nenhum dos habitantes da cidade tem sequer um pedaço de pão, faz tempo que todos comem só terra. Andríi ficou petrificado.

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- A senhorinha o viu do muro da cidade entre os zaporogos. Ela me disse: “Vai, diga isso ao cavaleiro: se ele lembra de mim, que venha até aqui; mas se não lembra, que dê um pedaço de pão para uma velha, para minha 68

mãe, pois eu não quero vê-Ia morrer em meus braços. É melhor que eu morra primeiro, e ela, depois de mim. Peça-lhe, fique de joelhos. Ele também tem uma velha mãe. Que dê o pão em nome dela!”. Diversos sentimentos despertaram e se inflamaram no peito do jovem cossaco. - Mas como você está aqui? Como chegou? - Por uma passagem subterrânea. - E há uma passagem subterrânea? - Há. - Aqui? - Você não vai denunciar, não é, cavaleiro? - Juro pela santa cruz! - Descendo pela encosta e cruzando o regato, ali, onde está o canavial. - E sal na cidade? - Direto no mosteiro da cidade. - Vamos, vamos agora! - Mas, pelo amor de Deus e de Santa Maria, um pedaço de pão! - Está bem, darei. Fique aqui, perto da carroça, ou melhor, deite-se nela; ninguém a verá, todos estão dormindo. Voltarei logo. Ele se dirigiu às carroças onde estava guardado o estoque pertencente ao batalhão. Seu coração palpitava. Tudo que era passado, tudo que estava sufocado pelos acampamentos cossacos do momento, pela severa vida de guerreiro, veio à tona de uma vez, afogando, por seu turno, o presente. De novo emergiu diante dele uma mulher soberba, como se fosse de um tenebroso turbilhão marinho. Novamente cintilaram em sua memória os braços formosos, os olhos, a boca sorridente, os densos cabelos cor de noz


que caíam em cachos sobre o busto e todos os membros firmes de um corpo de donzela, criados numa harmoniosa combinação. Não, eles não tinham se apagado, não tinham desaparecido em seu peito; foram apenas colocados de lado para dar vazão, por certo tempo, a outros impulsos vigorosos, mas sempre perturbavam o sono profundo do jovem cossaco, e este, após despertar, ficava deitado no leito, insone, sem atinar com a razão de tudo isso. Ele seguia, e as batidas do coração tornavam-se ainda mais fortes ante a idéia de que a veria de novo; as pernas do jovem tremiam. Ao se aproximar das carroças, ele já se esquecera completamente do que tinha ido fazer ali: levou a mão à testa e a esfregou por bastante tempo, tentando recordar o que precisava fazer. Finalmente estremeceu, ficou todo assustado: lembrou-se de repente que ela estava morrendo de fome. Ele se lançou na carroça e agarrou alguns pães pretos; mas logo ficou pensando se aquela comida, adequada para um zaporogo robusto e modesto, não seria grosseira e inconveniente para a compleição delicada da jovem. Então se lembrou de que, na véspera, o kocbevói havia repreendido os cozinheiros por terem gastado de uma só vez uma quantidade de farinha de trigo suficiente para três refeições. Com plena certeza de que encontraria bastante papa nos caldeirões, apanhou a marmita de campanha do pai e se dirigiu ao cozinheiro do acampamento, que estava dormindo ao lado de dois caldeirões de dez litros, sob os quais ainda brilhavam fracamente algumas brasas. Depois de olhar nos caldeirões, ele ficou pasmo ao ver que ambos estavam vazios. Era preciso uma força sobre-humana para comer tudo aquilo, principalmente porque naquele batalhão havia menos homens do que nos outros. Olhou nos caldeirões dos demais batalhões: não havia nada em lugar nenhum. Veio-lhe à mente, a contragosto, um provérbio: “Os zaporogos são como crianças: se há pouco, comem tudo; se há muito, não deixam nada”. O que fazer? Contudo, parece que em algum lugar na carroça de seu pai havia um saco de pão branco, que tinham encontrado durante o assalto à padaria do mosteiro. Ele foi direto para a carroça do pai, mas o saco

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não estava lá: Óstap o havia colocado sob a cabeça, e agora dormia esticado no chão, roncando para todo o campo. Andríi segurou o saco e deu um puxão tão brusco que fez bater no chão a cabeça de Óstap, que se levantou dormindo 70

e, sentado, de olhos fechados, começou a gritar com força: “Peguem, peguem esse polaco dos diabos! Segurem o cavalo, segurem o cavalo!”. “Cale-se, ou vou matá-lo! gritou Andríi assustado, ameaçando bater nele com o saco. Mas Óstap já tinha parado de falar, acalmara-se, e roncava tanto que sua respiração fazia balançar a relva onde estava deitado. Andríi olhou timidamente para todos os lados, para saber se algum dos cossacos tinha despertado por causa do pesadelo de Óstap. De fato, num acampamento próximo, uma cabeça com topete se ergueu, revirou os olhos e caiu no chão outra vez. Depois de aguardar dois minutos, ele finalmente prosseguiu com seu fardo. A tártara estava deitada, quase sem respirar. - Levante-se, vamos! Todos estão dormindo, não tenha medo! Pode levar pelo menos um destes pães, caso eu não consiga carregar tudo? Dito isso, ele jogou o saco nas costas; ao passar perto de uma carroça, furtou ainda mais um saco de painço, pegou também os pães que queria que a tártara carregasse e, curvado por causa do peso, seguiu intrépido por entre as filas de zaporogos adormecidos. - Andríi! - disse o velho Bulba no momento em que o filho passava por ele. Seu coração parou. Ele se deteve, todo trêmulo, e exclamou baixinho: - O que foi? - Vócê está com uma mulher! juro que se eu me levantar daqui, lhe darei uma surra. As mulheres não vão levá-lo a nada que preste! - Dito isso, ele se apoiou num cotovelo e começou a examinar com atenção a tártara envolta num manto. Andríi ficou parado, mais morto do que vivo, sem ter coragem de olhar no rosto do pai. Depois, quando ergueu os olhos e olhou para ele, viu que o


velho Bulba estava dormindo com a cabeça apoiada na mão. Ele se benzeu. O susto desapareceu subitamente de seu coração, mais rápido do que tinha vindo. Quando se virou para olhar a tártara, esta permanecia diante dele, semelhante a uma estátua de granito escura, coberta com o manto, e o reflexo de um clarão distante que se acendera iluminou apenas um de seus olhos, que estavam turvos como os de um defunto. Ele a puxou pela manga e ambos prosseguiram, sempre olhando para trás; finalmente desceram até uma baixada em declive - era quase uma encosta, ou barranco, como é chamada em alguns lugares -, aos pés da qual rastejava de forma negligente um regato encoberto por espadanas e montículos de terra. Quando desceram toda a baixada, eles ficaram completamente fora da vista do acampamento zaporogo. Pelo menos, quando Andríi olhou para trás, ele viu erguer-se apenas uma inclinação semelhante a uma muralha ingreme, mais alta do que um homem. No topo dela balançavam-se alguns caules de relva do campo, e acima deles a lua se levantava no céu em forma de uma foice de ouro brilhante e avermelhada. A brisa que se desprendia da estepe anunciava que já restava pouco tempo para o amanhecer. Mas em lugar nenhum se ouviam gritos de galos distantes: nem na cidade e nem nas cercanias devastadas tinha sobrado um galo sequer. Eles atravessaram o regato por um pequeno tronco; do outro lado erguia-se a margem oposta, que parecia mais alta do que a outra, formando um verdadeiro precipício. Parecia que naquele lugar estava o ponto mais forte e seguro da fortaleza da cidade; pelo menos a trincheira era mais baixa, e não se via nenhuma guarnição por trás dela. Todavia, mais adiante erguia-se o muro compacto de um mosteiro. A margem escarpada era coberta de ervas daninhas, e na pequena baixada entre ela e o regato havia um canavial, quase da altura de um homem. No topo do precipício viam-se os restos de uma cerca de ramos, que revelavam uma antiga horta. Na frente havia folhas largas de bardana; por trás apareciam um quenopódio, um espinheiro silvestre e um

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girassol, que erguia sua cabeça mais alto do que todos. Aqui a tártara tirou as sandálias e entrou descalça, arregaçando cuidadosamente o vestido, porque aquele lugar era lamacento e cheio de água. Ao adentrar no canavial, eles 72

pararam diante de um amontoado de ramos secos e gravetos. Depois de removê-los, encontraram uma espécie de abóbada de terra - uma abertura um pouco maior que a boca de um forno. A tártara entrou primeiro, com a cabeça inclinada; atrás dela seguiu Andríi, inclinando-se o máximo possível para que pudesse passar com os sacos, e logo ambos se encontraram numa completa escuridão.




a

ndríi mal conseguia se mover no escuro e estreito corredor de terra, seguindo a tártara e carregando os

sacos de pães nas costas.

- Logo

poderemos ver - disse a guia. - já estamos perto do lugar onde deixei o lampião. E de fato, as paredes escuras de terra começaram a se iluminar pouco a pouco. Eles chegaram a um lugar onde parecia ter existido uma capela; pelo menos havia uma mesinha estreita servindo como mesa de altar, e acima dela via-se uma imagem católica de Nossa Senhora, desbotada e quase apagada. A imagem era iluminada de forma tênue por uma pequena lamparina prateada que


pendia diante dela. A tártara se inclinou e apanhou no chão um lampião de cobre com pé fino e alto, ao redor do qual, pendurados em correntes, havia pinças, um aparador de pavio e um apagador de chama. Depois de apanhá-lo, 76

ela o acendeu com o fogo da lamparina. A luz ficou mais forte, e eles, enquanto seguiam juntos, ora iluminados com mais intensidade, ora engolidos por uma sombra escura como carvão, lembravam os quadros de Gerardo della Notte. O rosto do cavaleiro, fresco e cheio de saúde e juventude, contrastava fortemente com o rosto exausto e pálido de sua companheira de jornada. A passagem ficou um pouco mais larga, de forma que Andríi pôde se endireitar. Ele fitava com curiosidade aquelas paredes de terra, que o faziam lembrar-se das cavernas de Kiev. Tal como nas cavernas de Kiev, viam-se nichos nas paredes e caixões aqui e acolá; em alguns lugares deparavam-se até com ossos humanos que, por causa da umidade, tinham amolecido e se desfaziam em pó. Via-se que ali também havia homens santos, que se escondiam das tormentas, amarguras e tentações do mundo. A umidade em alguns lugares era muito intensa: sob seus pés havia por vezes água de verdade. Andríi tinha de parar a todo instante, a fim de deixar descansar a sua companheira, cuja fadiga retomava continuamente. Um pequeno pedaço de pão que a mulher havia engolido provocou-lhe apenas dor no estômago, devido ao fato de estar desacostumada à comida, e a todo instante ela ficava imóvel por alguns minutos no mesmo lugar. Finalmente apareceu diante deles uma pequena porta de ferro. “Bem, graças a Deus, chegamos” - disse a tártara com voz fraca; ela ergueu a mão para bater na porta, mas não teve forças. Andríi bateu em seu lugar; ressoou um ruído surdo, como se atrás da porta houvesse uma imensa vastidão. Esse ruído mudou, ao que parece, por ter se encontrado com abóbadas altas. Daí a uns dois minutos, chaves começaram a tilintar, e parecia que alguém vinha descendo uma escadaria. Afinal a porta se abriu; eles foram recebidos por um monge, que estava de pé numa escada estreita, com chaves e uma vela nas


mãos. Involuntariamente, Andríi deteve-se ao ver um monge católico, o qual suscitava um desprezo cheio de ódio nos cossacos e era tratado por estes de maneira ainda mais desumana do que um judeu. O monge também recuou um pouco ao ver o cossaco zaporogo, mas uma palavra dita de forma desarticulada pela tártara tranqüilizou-o. Ele alumiou-lhes o caminho, trancou a porta e os conduziu pela escada; eles pararam sob as abóbadas altas e sombrias da igreja de um mosteiro. junto a um altar repleto de castiçais e velas, um sacerdote ajoelhado rezava em silêncio. Perto dele, de ambos os lados, estavam também de joelhos dois jovens coristas com mantos lilases, sobrepelizes brancas e rendadas e incensórios nas mãos. O sacerdote rezava pela concessão de um milagre: que a cidade se salvasse, que fosse revitalizado o espírito que sucumbia, que fosse concedida a paciência e que fosse repelido o tentador, aquele que inspira lamentos e prantos temerosos e covardes diante das desgraças terrenas. Algumas mulheres, parecidas com fantasmas, estavam de joelhos, tendo as cabeças desfalecidas totalmente apoiadas nas costas de cadeiras e bancos de madeira escura; alguns homens, encostados nas colunas e pilastras que sustentavam as abóbadas laterais, permaneciam tristes e também de joelhos. Uma janela de vidros coloridos, a mais alta acima do altar, foi iluminada pelo rubor rosado do amanhecer, e dela caíram círculos de luz azul, amarela e de outras cores, iluminando subitamente a igreja escura. Todo o altar, em seu recôncavo, apareceu de repente cheio de esplendor; a fumaça dos incensórios permanecia no ar em forma de uma nuvem irisada. De seu canto escuro, Andríi observava com surpresa a maravilha produzida pela luz. Nessa hora, o ronco majestoso do órgão encheu toda a igreja. Ele foi se tornando mais e mais denso, aumentando, e transformouse no estrondo pesado de um trovão; depois, subitamente, tornou-se uma música celestial, propagando-se bem alto sob as abóbadas na forma de sons cantados, que lembravam suaves vozes femininas, e depois se transformou de novo num ronco denso, num trovão, e por fim cessou. Os estrondos de tro-

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vões ainda permaneceram muito tempo vibrando sob as abóbadas; Andríi ficou boquiaberto, admirado por aquela música majestosa. Nesse momento, ele sentiu que alguém o puxara pela aba do cafetã. 78

“Está na hora!” - disse a tártara. Eles cruzaram a igreja sem que fossem notados por ninguém e daí saíram numa praça que ficava diante dela. A aurora já roseava no céu há muito tempo: tudo anunciava o nascer do sol. A praça, que tinha um formato quadrangular, estava completamente deserta; no meio dela restavam ainda umas mesinhas de madeira, mostrando que ali, talvez apenas uma semana antes, havia uma mercearia. A rua, que então não era pavimentada, tinha se transformado num monte de lama seca. A praça era rodeada por pequenas casas de um só andar, feitas de pedra e de barro, com estacas e colunas de madeira bem visíveis e também com vigas trançadas, tal como os habitantes costumavam construir naquela época e que até hoje ainda se pode ver em alguns lugares na Lituânia e na Polônia. Todas eram cobertas por telhados bem altos com frestas e clarabóias. De um lado, quase junto à igreja, erguia-se um prédio mais alto e completamente diferente dos demais, decerto o conselho municipal ou qualquer outro órgão do governo. Era de dois andares e encimado por um belvedere em dois arcos, onde havia uma sentinela; um grande relógio estava cravado no telhado. A praça parecia morta, mas Andríi teve a impressão de ouvir um gemido fraco. Olhando atentamente, percebeu no outro lado um grupo de duas ou três pessoas deitadas no chão e quase imóveis. Ele fixou o olhar com mais atenção para ver se elas estavam adormecidas ou mortas, e nesse momento tropeçou em algo que estava junto a seus pés. Era o cadáver de uma mulher, pelo visto judia. Parecia ser jovem, embora seus traços macilentos e deformados não permitissem determinar sua idade. Tinha na cabeça um lenço de seda vermelho; dois colares de pérolas ou de contas adornavam-lhe as orelhas; duas ou três madeixas encaracoladas e compridas caíam em seu mirrado pescoço de veias retesadas. A seu lado jazia uma criança, convulsivamente


agarrada ao seio magro da mulher e apertando-o com os dedos numa fúria involuntária sem ter encontrado o leite; ela já nem chorava, e apenas pelo movimento de seu ventre deduzia-se que ainda não tinha morrido, ou que ainda se preparava para exalar seu último suspiro. Eles viraram para a rua e foram de repente detidos por um homem enfurecido que, ao ver Andríi com o precioso fardo, atirou-se sobre ele como um tigre e o agarrou gritando: “Pão!”. Mas suas forças não eram como sua raiva; Andríi o empurrou e ele desabou no solo. Movido pela piedade, Andríi jogou-lhe um pão, sobre o qual ele se atirou feito um cão raivoso, roendo e mordendo, e ali mesmo na rua expirou em terríveis convulsões provocadas pelo longo período sem ingerir alimento. Praticamente a cada passo eles eram surpreendidos pelas terríveis vítimas da fome. Parecia que muitos já não suportavam os martírios dentro de casa, e então corriam de propósito para a rua, na esperança de que caísse algum alimento do céu. Junto ao portão de uma casa, estava sentada uma velha; era impossível dizer se estava adormecida, morta ou apenas distraída: pelo menos ela não via nem ouvia nada; com a cabeça inclinada sobre o peito, permanecia sentada, imóvel, no mesmo lugar. Do telhado de outra casa, um corpo esticado e seco pendia numa corda. O coitado não pôde suportar o martírio da fome e quis antecipar o seu fim com o suicídio. Ao ver aqueles fulminantes testemunhos da fome, Andríi não conseguiu deixar de perguntar à tártara: - Mas será que eles não encontraram nada com que pudessem prorrogar a vida? Se um homem chega ao último extremo, então não há nada a fazer: vai ter de comer aquilo que antes lhe dava nojo. Ele pode se alimentar com as criaturas proibidas pelos mandamentos; tudo pode virar comida. - Já comemos tudo - disse a tártara -, todos os rebanhos. Em toda a cidade você não achará nem cavalo, nem cachorro e nem mesmo um rato. Nós nunca tivemos reservas na cidade, tudo era trazido dos campos. - Mas padecendo de uma morte tão cruel, como é que ainda pensam em defender a cidade?

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- Sim, talvez o voievoda já tivesse se rendido, mas ontem de manhã, um coronel que está em Budjaki enviou um falcão com uma mensagem para que não entregasse a cidade; ele está vindo em socorro com um regimento e 80

apenas espera um outro coronel para que venham juntos. E agora esperamos por eles a qualquer momento... Bem, chegamos à casa. Já de longe Andríi avistou uma casa diferente das outras e que parecia construída por um arquiteto italiano. Era de dois andares e composta de belos tijolos finos. As janelas do andar de baixo eram cercadas por cornijas de granito que se destacavam; o andar de cima era todo constituído de pequenos arcos que formavam uma galeria; entre eles havia grades com brasões. Também havia brasões nos cantos da casa. Uma ampla escada exterior, feita de tijolos pintados, dava direto na praça. Embaixo, de cada lado das escadas, havia sentinelas, que, com uma das mãos, seguravam as alabardas junto ao corpo de forma simétrica e pitoresca, e com a outra, apoiavam suas cabeças inclinadas; desse modo, assemelhavam-se mais a estátuas do que a seres vivos. Não estavam dormindo nem cochilando, mas pareciam indiferentes a tudo: eles não prestaram atenção nem mesmo em quem estava subindo a escada. No alto, encontraram um guerreiro ricamente adornado, armado dos pés às cabeça e segurando na mão um livro de orações. Ele tinha erguido seus olhos fatigados, mas a tártara lhe disse uma palavra e ele tornou a baixá-los para as páginas abertas de seu livro. Eles entraram no primeiro cômodo, que era bastante espaçoso e servia como sala de visita ou simplesmente ante-sala. Estava cheia de guardas sentados em diferentes posições perto das paredes, além de criados, cachorreiros, copeiros e outros serviçais indispensáveis para indicar a dignidade de um grão-senhor polonês, tanto como militar quanto como proprietário de latifúndios. Sentia-se o cheiro das velas que tinham se apagado. Outras duas ainda ardiam em castiçais enormes, que eram quase da altura de um homem e estavam colocados bem no meio, embora há muito tempo a manhã já aparecesse na ampla janela gra-


deada. Andríi queria ir direto para uma grande porta de carvalho adornada por um brasão e muitos outros ornamentos entalhados, mas a tátara o segurou pela manga a apontou para uma pequena porta na parede lateral. Por ali eles entraram num corredor e depois num cômodo que Andríi começou a examinar atentamente. A luz que passava pela fresta da persiana tocou em algumas coisas: uma cortina carmim, uma cornija dourada e uma pintura na parede. A tártara fez sinal para que Andríi ficasse ali e abriu a porta de outro cômodo, do qual brilhou a luz de uma chama. Ele ouviu um sussurro e uma voz baixa que o fez estremecer. Através da porta semi-aberta ele viu passar rapidamente uma esbelta figura feminina com uma trança comprida e exuberante, que caía sobre um braço esticado para cima. A tártara retornou e disse-lhe que entrasse. Ele não se deu conta de como tinha entrado e nem de como a porta se fechara atrás de si. No cômodo ardiam duas velas; uma lamparina brilhava de forma débil diante de uma imagem; sob ela havia uma mesinha alta que, seguindo um costume católico, possuía degraus para que se pudesse ajoelhar na hora da oração. Mas não era isso que seus olhos procuravam. Ele se virou para outro lado e viu uma mulher, que parecia gelada e petrificada num movimento rápido. Era como se aquela figura tivesse tentado se atirar para ele e de repente se detivesse. E ele também ficou pasmo diante dela. Não imaginava vê-Ia assim: não era ela, não era aquela que ele conhecera anteriormente; em nada se parecia com a outra, porém agora estava duas vezes mais bela e admirável do que antes. Naquela ocasião, ela tinha algo de inacabado, incompleto, mas agora era uma obra na qual o artista havia dado o último toque de pincel. Aquela era uma moça encantadora e fútil; esta era uma beldade, uma mulher que tinha se desenvolvido em todo seu encanto. No olhar que lançava expressava-se um sentimento completo, não fragmentos e indícios de um sentimento, mas um sentimento inteiro. As lágrimas ainda não tinham secado e anuviavam seus olhos na forma de um líquido brilhante que atravessava a alma. O busto, o pescoço e os ombros se

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encerravam dentro daqueles maravilhosos limites estabelecidos para a beleza; os cabelos, que antes se espalhavam em suaves madeixas pelo seu rosto, agora haviam se transformado numa trança densa e magnífica, que tinha 82

uma parte presa e outra esparramada em toda a extensão do braço, caindo sobre o peito em fios compridos, finos e maravilhosamente tortuosos. Parecia que todos os seus traços haviam mudado. Em vão ele se esforçava para encontrar neles ao menos um daqueles traços que guardava na memória mas não havia um sequer! Era grande a sua palidez, mas esta não ofuscava os seus magníficos encantos; ao contrário, parecia acrescentar-lhe algo de impetuoso, de irresistivelmente triunfante. Andríi sentiu na alma um temor reverente e ficou imóvel diante dela. E parecia que também ela estava admirada com a aparência do cossaco, que se apresentava com todo o encanto e o vigor da coragem juvenil e que, mesmo imóvel, já revelava uma agilidade desenvolta; os olhos dele brilhavam com nítida firmeza, suas sobrancelhas aveludadas se arqueavam de forma intrépida, as faces queimadas pelo sol brilhavam com todo o esplendor de uma chama virginal, e o bigode negro e jovem reluzia como a seda. - Não, eu não tenho como lhe agradecer, generoso cavaleiro - disse ela, e vibrou todo o som prateado de sua voz. - Só Deus pode lhe agradecer; não eu, uma frágil mulher... Ela baixou os olhos; desceram sobre eles, em forma de belos semicírculos de neve, as pálpebras ornadas por longos cílios parecidos com flechas. Seu rosto magnífico se inclinou e foi coberto por um delicado rubor. Andríi não sabia o que dizer. Ele queria exprimir tudo o que tinha na alma, queria exprimir tudo com o mesmo ardor que tinha na alma, porém não conseguia. Sentiu que algo lhe tapava os lábios: o som das palavras estava paralisado; sentiu que ele, educado no seminário e na vida nômade de guerreiro, não podia responder àquelas palavras, e daí se revoltou contra sua natureza cossaca.


Nesse momento, a tártara entrou no quarto. Ela já tinha cortado em pedacinhos o pão trazido pelo cavaleiro e o colocou diante de sua senhora numa bandeja de ouro. A bela moça olhou para a tártara, para o pão e para Andríi - havia muita coisa naqueles olhos. Aquele olhar comovido, que manifestava impotência e fraqueza para expressar os sentimentos que a envolviam, era mais acessível a Andríi do que todas as palavras. De repente sua alma ficou leve; parecia que tudo tinha se separado dele. Os movimentos da alma e os sentimentos que até então pareciam presos por um freio duro agora se sentiam livres, à vontade, e já queriam se expandir em torrentes indomáveis de palavras, quando a bela moça virou-se para a tártara e perguntou preocupada: - E minha mãe? já levou para ela? - Ela está dormindo. - E para o meu pai? - Levei. Ele disse que virá agradecer ao cavaleiro. Ela pegou o pão e o levou à boca. Andríi olhava com indizível deleite a moça quebrando o pão com seus dedos brilhantes e comendo-o; e de repente lembrou-se do homem enlouquecido de fome, que tinha morrido diante de seus olhos após engolir um pedaço de pão. Ele ficou pálido, e depois de segurá-la pela mão, disse: - Chega! Não coma mais! Faz tanto tempo que não come que agora o pão vai ser um veneno para você. Ela soltou a mão, colocou o pão na bandeja e, como uma criança obediente, olhou bem nos olhos dele. Se uma palavra pudesse expressar aquilo... mas nem o cinzel, nem o pincel e nem a palavra de alto vigor são capazes de expressar aquilo que às vezes se vê no olhar de uma donzela, ou sequer aquele sentimento enternecido que envolve a pessoa que estiver mirando esse olhar. - Minha rainha! - gritou Andríi com todos os excessos da alma e do coração. - Do que você precisa? O que você quer? Ordene! Dê-me a tarefa mais

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impossível que houver no mundo, e eu vou realizá-la! Diga-me para fazer aquilo que nenhum homem é capaz de executar, e eu farei, eu me sacrificarei. Vou me sacrificar! Vou me sacrificar por você, juro pela Sagrada Cruz, para 84

mim será um prazer... mas não, eu não sei como dizer isso! Tenho três sítios; metade dos rebanhos de meu pai me pertence; tudo que minha mãe deu em dote para meu pai, e mesmo o que ela escondeu dele, tudo isso é meu. Hoje nenhum cossaco tem uma arma como a minha: só pela empunhadura do meu sabre me dariam a melhor tropa de cavalos e três mil ovelhas. Mas renunciarei a tudo isso, vou largar, jogar fora, quebrar, tocar fogo em tudo; basta que você pronuncie uma palavra, ou simplesmente mova sua sobrancelha negra e fina! Mas sei que, talvez, eu esteja dizendo palavras tolas e fora de propósito e que não se deva tratar disso aqui; talvez, por ter passado a vida no seminário e em Zaporójle, eu não saiba falar como geralmente se fala nos lugares freqüentados por reis, príncipes e pelo que há de melhor numa cavalaria nobre. Vejo que você é uma criação de Deus melhor do que todos nós, e que está à frente de todas as outras filhas e esposas dos boiardos. Não servimos nem como seus escravos; somente os anjos do céu podem servi-Ia. Com um assombro crescente, prestando muita atenção e sem perder uma palavra, a moça escutava aquele discurso sincero e afetuoso, no qual, como num espelho, refletia-se uma alma jovem e cheia de forças. E cada uma daquelas palavras simples, pronunciadas por uma voz que brotava do fundo do coração, estava revestida de vigor. Então ela inclinou seu belo rosto para frente, jogou os cabelos para trás com impaciência, abriu os lábios e ficou olhando assim durante um longo tempo. Depois quis dizer algo, mas de repente se deteve e lembrou-se que o cavaleiro tinha outro destino, que o pai, os irmãos e toda sua pátria estavam por trás dele como vingadores implacáveis, que os terríveis zaporogos sitiavam a cidade, e que esta, juntamente com seus habitantes, estava condenada a uma morte cruel... De repente seus olhos se encheram de lágrimas; ela tirou rapidamente o lenço de seda


bordado, colocou-o sobre o rosto, e num instante ele ficou todo molhado; a polonesa permaneceu sentada algum tempo, com sua bela cabeça inclinada para trás, apertando com os dentes o lábio inferior, como se, de súbito, tivesse sentido a picada de um réptil venenoso, mas sem tirar o lenço do rosto, para que Andríi não visse a sua tristeza demolidora. - Diga-me uma palavra! - disse Andríi e tomou sua mão macia. Um fogo cintilante percorreu suas veias por causa daquele contato, e ele apertou a mão que jazia insensível entre as suas. Mas ela ficou calada, imóvel e sem tirar o lenço do rosto. - Por que está tão triste? Diga-me, por que está tão triste? Ela jogou o lenço, afastou os longos cabelos de sua trança que lhe caíam sobre os olhos e se desmanchou em palavras de lamento, falando com uma voz bem baixa, igual à brisa que se levanta num lindo anoitecer e corre de repente por um denso caniçal: sons finos e desolados começam a murmurar e vão ressoando e se propagando, e então um viandante pára e apanha-os com uma tristeza incompreensível, sem sequer perceber a tarde que vai sumindo, as alegres canções entoadas pelo povo que volta da ceifa e do trabalho no campo, ou mesmo o ruído distante de alguma relega que vai passando. - Será que não mereço esse eterno pesar? Não será desgraçada a mãe que me trouxe ao mundo? Não será bem amarga a minha sina? Não será você, cruel destino, o meu carrasco feroz? Você trouxe todos aos meus pés: os melhores fidalgos de toda a nobreza, os mais ricos proprietários, condes e barões estrangeiros e a mais fina flor da nossa cavalaria. Todos eles me amariam de boa vontade, qualquer um consideraria uma honra ter o meu amor. Bastaria que eu movesse a mão, e qualquer um deles, o mais formoso e de mais bela linhagem, se tornaria meu esposo. E você, cruel destino, não permitiu que nenhum deles cativasse meu coração, mas o consentiu, perante os nossos melhores guerreiros, a um estranho, a um inimigo nosso. Por que, Imaculada Mãe de Deus, por quais pecados e crimes graves você me castiga de forma tão implacável e impiedosa? Meus dias se passaram na fartura e na

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abundância luxuosa; os melhores e mais caros pratos e os vinhos mais doces eram meu alimento. E tudo isso para quê? Para que tudo isso? Para no final padecer uma morte cruel, como não padece nem mesmo o último miserável 86

do reino? Não basta que eu esteja condenada a uma sorte tão terrível; não basta que antes do meu fim tenha de ver morrer em meio a insuportáveis

tormentos o meu pai e a minha mãe, por cuja salvação eu estaria pronta a

entregar vinte vezes a própria vida; tudo isso é pouco: é preciso que antes do meu fim eu possa ver e sentir as palavras e o amor que nunca vi. É preciso

que esse homem parta meu coração com suas palavras, que minha sina seja

ainda mais amarga, que me seja ainda mais lastimável a perda de minha

jovem vida, que minha morte pareça ainda mais terrível e que, ao morrer, eu

acuse ainda mais a você, meu destino cruel, e a você - perdoe meu pecado -, Santa Mãe de Deus! E quando ela se calou, um sentimento de total desespero se revelou em seu rosto; todos os seus traços falavam com uma tristeza surda e dolorosa, e tudo, desde sua fronte melancolicamente inclinada e seus olhos baixos, até as lágrimas que secavam e se enrijeciam em suas faces ardentes, tudo, tudo parecia dizer: “Não existe mais felicidade neste rosto!”. - Nunca se viu algo assim! - disse Andríi. - Não pode ser, não é possível que a melhor e mais bela das mulheres carregue uma sina tão amarga, quando na verdade ela nasceu para que, como uma santa, fosse reverenciada por tudo o que há de melhor no mundo. Não, você não vai morrer! Você não pode morrer! Juro por minha vida, e por tudo que mais prezo neste mundo, que você não vai morrer! Se chegarmos a um ponto em que nada - nem a força, nem a oração e nem a coragem - possa rechaçar esse destino amargo, então nós morreremos juntos; e antes que eu morra, vou morrer à sua frente, junto aos seus magníficos pés, e aí sim, morto, é que me separarão de voce. - Cavaleiro, não engane a mim e nem a si mesmo disse ela, balançando em silêncio a sua bela cabeça. - Eu sei, e para minha grande agonia, eu sei muito bem que você não pode me amar; conheço seus deveres e manda-


mentos: seu pai, seus companheiros e sua pátria o chamam, e nós somos os seus inimigos. - E o que me importam o pai, os companheiros e a pátria? - disse Andríi, depois de sacudir rapidamente a cabeça e endireitar o corpo como um álamo negro. - Mas se tem de ser assim, então que seja: não tenho mais ninguém! Ninguém, ninguém! - Ele repetiu isso com a mesma voz, e acompanhado dos mesmos gestos com que um cossaco forte e invencível expressa sua decisão de partir para uma aventura inaudita e impossível a qualquer outro homem. - Quem disse que minha pátria é a Ucrânia? Quem me deu a Ucrânia como pátria? A pátria é aquilo que busca a nossa alma, aquilo que é mais caro para ela. Minha pátria é você! Aí está a minha pátria! E levarei esta pátria em meu coração enquanto eu tiver vida, e veremos se algum cossaco vai tirá-la daqui! Por esta pátria eu vou vender, entregar e destruir tudo que tenho! Depois de ficar petrificada por um instante, tal como uma estátua magnífica, ela o olhou nos olhos e de repente se desmanchou em prantos; e com o admirável ímpeto feminino, do qual só é capaz uma mulher de alma elevada e feita para os gestos afetuosos e belos, a polonesa se atirou em seu pescoço soluçando, envolvendo-o com seus braços alvos e bonitos. Nesse momento ressoaram gritos incompreensíveis na rua, acompanhados do som de tambores e corneta. Mas Andríi não os ouvia. Ele sentia apenas os lábios magníficos cobrindo-o com um calor perfumado, as lágrimas da moça que escorriam em forma de regato pelo rosto e os cabelos perfumados que iam deslizando e envolvendo-o como se fossem uma seda escura e brilhante. Nessa hora, a tártara entrou correndo com um grito de alegria: - Estamos salvos, estamos salvos! - gritava ela fora de si. - Os nossos entraram na cidade, trouxeram pães, trigo, farinha e zaporogos amarrados. Mas nenhum deles entendeu quem eram os “nossos” que tinham entrado na cidade, o que tinham trazido consigo e que zaporogos eles tinham apanhado. Cheio de sentimentos jamais experimentados neste mundo, An-

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dríi beijou os lábios perfumados que se aconchegavam em sua face e que não permaneceram calados. Aqueles lábios responderam, e num beijo molhado e recíproco, os jovens experimentaram algo que ao ser humano é permitido sentir apenas uma vez na vida. E o cossaco estava morto! Perdeu-se definitivamente da cavalaria cossaca! Ele não mais veria o Zaporójie, nem os sítios do pai e nem a Santa Igreja! Também a Ucrânia não tornaria a ver um dos mais corajosos filhos que se empenharam em defendê-la. E o velho Tarás arrancaria um tufo de cabelos grisalhos de seu topete e amaldiçoaria o dia e a hora em que, para sua vergonha, gerou um filho assim.




N

o acampamento dos zaporogos havia barulho e agitação. Inicialmente ninguém sabia explicar com exati-

dão como o exército tinha entrado na cidade. Depois, soube-se que todo o batalhão de Pereiaslav, que estava colocado em frente aos portões laterais da cidade, tinha bebido até cair; então, não é de se admirar que metade estivesse morta e a outra metade amarrada, antes mesmo que pudessem descobrir o que estava acontecendo. Até que os batalhões próximos, despertados pelo barulho, conseguissem pegar as armas, o exército já estava cruzando os portões; as últimas fileiras ainda se defenderam atirando nos zaporogos sono-


lentos e meio embriagados que se precipitavam de forma desordenada. O kocbevói deu ordens para que se reunissem; e quando todos estavam em círculo, calados e de gorro na mão, ele disse: 92

- Aí está, senhores irmãos, o que aconteceu esta noite. Vejam até onde chegou a embriaguez! Vejam a que vexame o inimigo nos submeteu! Pelo visto, vocês têm esse costume: se recebem permissão para dobrar a dose, ficam tão bêbados que o inimigo do exército de Cristo não só lhes tira as bombachas, mas também lhes cospe na cara sem que vocês percebam. Todos os cossacos ficaram de cabeça baixa, reconhecendo a culpa; apenas Kukubienko, o atamã do batalhão de Niezamáikov, respondeu: - Espere, paizinho! - disse ele. - Embora esteja na lei que não se pode fazer- objeção quando o kockevói está falando diante de toda a tropa, as coisas não sucederam bem assim, e é preciso que se fale. Você não foi totalmente justo ao repreender todo o exército cristão. Os cossacos seriam culpados e mereceriam a morte se tivessem se embriagado durante a marcha, na guerra ou num trabalho duro e pesado. Mas nós não tínhamos nada para fazer, estávamos à toa diante da cidade. Não era tempo de jejum, nem de qualquer outra abstinência cristã: como é que um homem no ócio pode ficar sem beber? Não existe nenhum pecado aqui. O melhor a fazer é mostrar a eles o que significa atacar homens indefesos. Até agora fomos bonzinhos, mas daqui para frente vamos bater de um jeito que não sobrará nem meia dúzia deles. Os. cossacos gostaram do discurso do atamã do batalhão. Eles ergueram as cabeças que tinham mantido abaixadas, e muitos acenavam concordando e exclamavam: “Kukubienko falou bem!”. Tarás, que estava perto do

kochevói, disse: - E então, kockevói? Pelo visto Kukubienko falou a verdade. O que vai dizer a respeito? - O que vou dizer? Eu vou dizer isto: bem-aventurado o pai que gerou um filho assim! Não é muita sabedoria dizer palavras de censura; a grande


sabedoria é dizer palavras que, sem tocar na desgraça do homem, incentivamno e dão ânimo a seu espírito, tal como as esporas animam o espírito de um cavalo que se refrescou numa fonte. Eu mesmo queria dizer depois umas palavras de conforto, mas Kukublenko adivinhou antes. “Também o kocbevói falou bem!” - responderam as fileiras de zaporogos. “Boas palavras!” - repetiram outros. E também os mais velhos, que estavam de pé como pombos, balançavam a cabeça em sinal de aprovação e diziam, movendo os bigodes grisalhos: “Foram ditas boas palavras!”.

- Escutem, senhores! - continuou o kochevói. - Tomar fortalezas escalan-

do muralhas ou escavando, como fazem os mestres alemães e estrangeiros, é uma indecência. Os inimigos que o façam! Isso não é coisa de cossaco. Mas a julgar pelo modo como tudo se deu, o inimigo não entrou na cidade com muitas provisões; ele devia ter poucas carroças. O povo na cidade está faminto, isto quer dizer que comerão tudo de uma só vez; e os cavalos também precisam de feno... Não sei se algum santo vai lhes atirar alguma coisa lá do céu... isso só Deus sabe; e quanto aos padres, esses são bons apenas com as palavras. Por essas e outras, eles logo terão de sair da cidade. Separem-se em três grupos e fiquem nos três caminhos de acesso aos portões. Ficarão cinco batalhões no portão principal, e três nos demais. Os batalhões de Diádkiv e Korsun vão ficar de tocaia! O coronel Tarás com seu regimento também! Os batalhões de Titariev e Timochev ficarão de reserva, à direita do comboio! Os de Scherbínov e Stléblikiv, à esquerda! Os jovens de língua afiada devem sair das fileiras para provocar o inimigo! Os polacos têm a cabeça oca: não suportam ser xingados; por isso, talvez hoje mesmo todos saiam da cidade. Comandantes, passem seus batalhões em revista; se faltar alguém, completem com o que sobrou do de Pereiaslav. Confiram tudo novamente! Permitam que cada cossaco coma um pão e tome um cálice de vinho! Apesar que todos ainda devem estar fartos pela refeição de ontem, pois, a bem da verdade, se empanturraram tanto que é de admirar que ninguém tenha explodido durante a noite. E mais uma recomendação: se alguém, um taverneiro ou um judeu, vender uma dose que

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seja de aguardente a um cossaco, eu vou pregar uma orelha de porco bem na testa desse cachorro e pendurá-lo de pernas para cima! E agora, ao trabalho, irmãos! Ao trabalho! 94

Assim ordenou o kochevói; todos lhe fizeram reverência e, sem colocar os gorros, voltaram para suas carroças e acampamentos; e só cobriram a cabeça quando já estavam bem longe. Eles começaram a se preparar: testavam os sabres e as espadas longas, enchiam os polvorinhos, faziam as carroças andarem e separavam os cavalos. Enquanto se dirigia ao seu regimento, Tarás pensava e não conseguia imaginar aonde Andríi teria se metido: será que havia sido capturado e amarrado junto com os outros enquanto dormia? Isso não; Andríi não era desses que se entregam vivos. Também não fora visto entre os cossacos mortos. Tarás seguia pensativo diante do regimento, sem perceber que há tempos alguém o chamava pelo nome: - Quem está precisando de mim? - disse ele, que finalmente despertara. Diante dele estava o judeu Iánkel. - Senhor coronel, senhor coronel! - disse o judeu com voz afoita e entrecortada, como se quisesse dizer alguma coisa de grande importância. - Eu estive na cidade, senhor coronel! Tarás olhou para o judeu e ficou admirado por ele ter conseguido entrar na cidade. - Qual foi o inimigo que o levou para lá? - Já vou contar - disse lánkel. - Ao amanhecer, logo que ouvi um barulho e os cossacos começaram a atirar, eu peguei meu cafetã e corri para lá sem tê-lo vestido; já no caminho é que o vesti, pois queria logo saber que barulho era aquele e por que os cossacos estavam atirando tão cedo. Daí cheguei correndo aos portões bem na hora em que a última tropa estava entrando na cidade. À frente de um destacamento estava o alferes Galiándovitch. É meu conhecido: já faz três anos me deve cem ducados. Fui atrás dele, fingindo que


queria cobrar a dívida, e entrei na cidade junto com os outros. - Como é? Entrou na cidade e ainda queria cobrar uma dívida? - disse Bulba. - E ele não mandou enforcar você como um cachorro? - Por Deus, queria enforcar, sim - respondeu o judeu. - Seus criados já tinham me agarrado e passado uma corda em meu pescoço, mas eu implorei, disse que esperaria por quanto tempo ele quisesse e ainda prometi lhe fazer empréstimos se me ajudasse a receber as dívidas dos outros cavaleiros; pois o alferes, vou dizer tudo ao senhor, não tem um ducado no bolso. Embora seja dono de sítios, plantações, quatro castelos e terras de planícies que vão até Chklov, ele tem tanto dinheiro quanto um cachorro - não tem absolutamente nada. Agora mesmo, se os judeus de Breslau não o tivessem equipado, ele não teria com o que sair para a guerra. Por isso ele nunca integrou o Parlamento... - Mas o que você fez na cidade? Você viu os nossos por lá? - Ora, se vi! Lá estão muitos dos nossos: Ítska, Rakhum, Samúilo, o arrendatário Khaivalokh... - Que se danem esses cães! - gritou Tarás, irritado. Por que fica aí falando dessa sua raça judaica? Eu estou perguntando dos nossos zaporogos. - Os nossos zaporogos eu não vi. O único que vi por lá foi o senhor Andríi.

- Você viu Andríi? - gritou Bulba. - Como assim, onde você o viu? Num

porão? Num calabouço? Desonrado? Amarrado?

- E quem se atreveria a amarrar o senhor Andríi?! Agora ele é um cava-

leiro tão importante... juro que nem o reconheci! Dragonas de ouro, mangui-

tos de ouro, armadura de ouro, gorro de ouro, e ouro pelo cinturão; é ouro em todo lugar, tudo de ouro. Tal como o sol despontando na primavera, quando

os passarinhos piam e cantam nas hortas e as plantas exalam perfume, assim está ele brilhando, vestido de ouro. E o voievoda lhe deu o melhor cavalo para montaria; um cavalo de duzentos ducados. Bulba ficou petrificado.

- Mas por que ele vestiu roupas estrangeiras?

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- Vestiu porque são melhores... Ele vai para lá e para cá, e os outros também; ele ensina aos outros, e estes também o ensinam. Está igual a um riquíssimo senhor polonês! 96

- E quem o forçou a isso? - Mas eu não disse que alguém o forçou. Acaso o senhor não sabe que passou para o lado deles por vontade própria? - Quem passou? - Ora, o senhor Andríi. - Passou para onde? - Para o outro lado; agora o senhor Andríi já é um deles. - Está mentindo, seu orelha de porco! - Como poderia mentir? E eu seria besta de mentir? Arriscaria minha cabeça mentindo? Acaso não sei que, se um judeu mentir ao seu senhor, vão enforcá-lo como um cachorro? - Quer dizer então que ele traiu sua pátria e sua fé? - Mas eu não disse que ele traiu; eu disse apenas que ele tinha passado para o outro lado. - Está mentindo, judeu dos diabos! Nunca houve uma coisa dessas em terra cristã! Você está me enganando, seu cachorro! - Que o mato cresça na entrada da minha casa, se eu o estiver enganando! Que todo mundo cuspa no túmulo do meu pai, da minha mãe, do meu sogro, do pai do meu pai e do pai da minha mãe, se eu o estiver enganando! Se o senhor quiser, direi até por que ele passou para o outro lado. - E foi por quê? - O voievoda tem uma bela filha. Santo Deus, como é bela! Aqui o judeu se esforçou o quanto pôde para expressar, em seu rosto, a beleza da moça: abriu os braços, apertou os olhos e torceu a boca para um lado como se tivesse experimentado alguma coisa.


- Ora, e o que tem isso? - Foi por ela que ele fez tudo isso. Quando um homem se apaixona, ele fica igual à sola molhada: pode-se dobrá-la como quiser. Bulba ficou profundamente pensativo. Lembrou que é grande o poder de uma frágil mulher, que ele ja arruinou muitos homens fartes e que a natureza de Andríi é vulnerável por esse lado; e então ele permaneceu ali pregado no mesmo lugar durante algum tempo. - Escute, senhor, eu vou lhe contar tudo - disse o judeu. - Logo que ouvi o barulho e vi que estavam cruzando os portões da cidade, eu apanhei, em todo caso, um colar de pérolas, pois ali há moças nobres e belas; e onde há moças nobres e belas, eu disse a mim mesmo, talvez não tenham nada para comer, mas comprarão as pérolas de qualquer jeito. E assim que os criados do alferes me soltaram, eu corri ao palácio do voievoda para vender as pérolas e perguntei tudo às servas tártaras. “O casamento será logo, assim que expulsarem os zaporogos. O senhor Andríi prometeu expulsá-los.” - E você não o matou ali mesmo, aquele filho do Cão?! - gritou Bulba. - Mas matar para quê? Ele foi de boa vontade. O homem é culpado de quê? Ele acha que lá é melhor, então foi embora. - E você o viu frente a frente? - Juro por Deus, frente a frente! Que guerreiro extraordinário! O mais formidável de todos! Que Deus lhe dê saúde; reconheceu-me imediatamente, e quando me aproximei, foi logo dizendo... - O que foi que ele disse? - Ele disse... antes me chamou com um gesto, e então disse: “ lánkel!”. E eu: “Senhor Andríi!”. “ Iánkel, diga a meu pai, ao meu irmão, aos cossacos, aos zaporogos. Diga a todos que agora meu pai não é mais meu pai, que meu irmão não é meu irmão, que meu companheiro não é meu companheiro, e que eu vou lutar contra todos eles. Vou lutar contra todos!”

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- Está mentindo, judas do Diabo! - gritou Tarás, fora de si. - Está mentindo, cachorro! Você crucificou Cristo, maldito! Eu vou matá-lo, Satanás! Suma daqui ou vou matá-lo agora mesmo! - E ao dizer isso, Tarás puxou o sabre. 98

O assustado judeu fugiu com toda pressa, o mais rápido que podiam suas canelas finas e secas. Ele correu muito tempo entre os acampamentos cossacos, sem olhar para trás, e continuou correndo ainda bem ao longe, por todo o campo aberto, embora Tarás não o tivesse perseguido, achando que seria uma insensatez descarregar a raiva sobre o primeiro que aparecesse. Então Bulba se lembrou de que, na noite anterior, vira Andríi atravessando o acampamento com uma mulher; ele baixou sua cabeça grisalha, mas ainda sem querer acreditar que pudesse ter acontecido uma coisa tão vergonhosa e que seu próprio filho tivesse traído a fé e a alma. Finalmente, Tarás levou seu regimento para preparar a emboscada e se escondeu com ele num bosque, o único que não fora queimado pelos cossacos. Os zaporogos, a pé e a cavalo, dirigiam-se para os três caminhos de acesso aos portões. Os batalhões seguiam uns atrás dos outros: os de Úman, Popóvitch, Kánlev, Stiéblikiv, Niezamáikov, Gurgúziv, Titariev e Timochev. Faltava apenas o batalhão de Perelaslav. Seus cossacos haviam se descuidado e tiveram de enfrentar sua sina. Uns acordaram amarrados nas mãos do inimigo; outros, sem sequer despertar, passaram para o outro mundo, e o próprio atamã Khilb viu-se no acampamento polaco sem bombachas e sem as roupas de cima. A movimentação dos cossacos foi percebida na cidade. Todos se precipitaram até o baluarte, e diante dos cossacos apareceu um quadro vivo: ali haviam se colocado os valentes guerreiros poloneses, um mais belo que o outro. Elmos de cobre, encimados por plumas brancas como cisnes, brilhavam como o sol. Outros traziam gorrinhos leves, rosados e azuis, com a parte de cima inclinada para um lado; vestiam cafetãs com as mangas dobradas, bordados a ouro e ornados com cordões; tinham espingardas e sabres com guarnições


valiosas, que deviam ter custado muito caro, e diversos outros tipos de adornos. No meio estava um coronel de Budjak, usando um gorro vermelho com adornos de ouro. Esse coronel era pesado, mais alto e mais gordo do que todos, e a custo conseguia vestir um cafetã largo e valioso. No outro lado, quase nos portões laterais, estava um outro coronel, um homem pequeno e bastante mirrado; porém seus olhos miúdos e perspicazes olhavam vivamente por baixo das sobrancelhas grossas, e ele ia com rapidez de um lado para outro, apontando de forma habilidosa com sua mão fina e seca e dando ordens; viase que, apesar de seu corpo pequeno, ele conhecia bem a arte da guerra. Perto dele estava o alferes, bem comprido, com bigode grosso e, ao que parecia, sem nenhum defeito no rosto corado: esse senhor gostava de hidromel forte e de uma boa farra. E atrás deles havia muitos polacos, uns armados por seus próprios recursos, outros pelo tesouro real, e outros ainda pelo dinheiro dos judeus, a quem tinham empenhado tudo que havia nos castelos de seus avós. Havia também um bocado de parasitas, que os senadores levavam consigo aos banquetes a fim de realçar sua pompa e que roubavam taças de prata das mesas e dos bufês; depois, no dia seguinte, sentavam-se nas boléias para conduzir os cavalos de algum senhor. Havia todo tipo de gente ali. Às vezes não tinham nem o que beber, mas para a guerra todo mundo se ajeitava. As fileiras cossacas permaneciam em silêncio diante dos muros. Não traziam nada de ouro consigo, e só às vezes o metal brilhava aqui e ali nas empunhaduras dos sabres e nas guarnições das espingardas. Os cossacos não gostavam de se enfeitar para as batalhas; vestiam cotas de malha e cafetãs simples; e ao longe, apenas seus gorros negros com topo rubro escureciam e se avermelhavam. Dois cossacos avançaram das fileiras de zaporogos. Um deles era bem jovem, o outro mais velho; ambos tinham língua afiada, e na batalha também eram bons cossacos; chamavam-se Okhrim Nach e Mikita Golokopitienko. Atrás deles saiu também Demid Popóvitch, um cossaco atarracado, que tinha

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aparecido na Siétch há bastante tempo e passara por maus bocados perto de Adrianopol: quando já estava sendo queimado, ele escapou para a Siétch com o bigode sapecado e a cabeça enegrecida e chamuscada. Mas Popóvitch 100

se restabeleceu outra vez; deixou então crescer um tufo de cabelos que se enrolava atrás da orelha e também o bigode espesso e negro como azeviche. Esse Popóvitch era terrível com as palavras mordazes. - Ah, que belas casacas tem a tropa! Mas gostaria de saber se a força da tropa também é assim! - Vocês vão ver! - gritou lá de cima o coronel troncudo. - Vou amarrar todos vocês! Devolvam os cavalos e as espingardas, seus lacaios! Viram como já amarrei seus companheiros? Tragam os zaporogos até o baluarte! E os zaporogos amarrados foram levados até o baluarte. À frente deles estava Khilb, o atamã do batalhão, sem as bombachas e sem as roupas de cima, tal como o haviam apanhado quando estava bêbado. O atamã baixou a cabeça, envergonhado de sua nudez perante seus próprios cossacos e de ter caído prisioneiro como um cão enquanto dormia. Em uma noite, sua cabeça tinha ficado grisalha. - Não se aflija, Khilb! Vamos salvá-lo! - gritavam-lhe os cossacos. - Não se aflija, amigo! - gritou o atamã Borodati. Não é sua culpa que o tenham apanhado nu. A desgraça pode acontecer com qualquer um; eles é que deviam se envergonhar de o exporem a esse vexame, sem cobrir a sua nudez. - Pelo jeito, vocês são valentes apenas com homens adormecidos! - disse Golokopitienko, olhando para o baluarte. - Pois esperem só! Nós vamos cortar seus topetes! - gritaram lá de cima. - Ah, eu gostaria de ver como vão cortar nossos topetes! - disse Popóvitchg virando-se para eles em seu cavalo. E depois de olhá-los, disse: - E então? Talvez os polacos digam a verdade. Se é aquele pançudo ali que os comanda, então eles têm uma boa defesa.


- Por que você acha que eles têm uma boa defesa? disseram os cossacos, sabendo que Popóvitch já se preparava para acrescentar alguma coisa. - Ora, porque atrás dele pode se esconder a tropa inteira, e daí uma ova que vamos acertar alguém atrás daquela pança! Os cossacos começaram a rir. E muitos deles ainda permaneceram algum tempo balançando a cabeça e dizendo: “Esse Popóvitch! Se dispara uma palavra contra alguém, aí...”. Mas os cossacos não chegaram a dizer o que era esse aí. - Afastem-se das muralhas, afastem-se, rápido! - gritou o kochevói, pois parecia que os polacos já não suportavam mais nenhuma palavra, e o coronel fez um sinal com o braço. Mal se afastaram os cossacos, e uma rajada de tiros ressoou. Houve uma correria no baluarte, e o próprio voievoda, grisalho, apareceu num cavalo. Os portões se abriram e o exército avançou. À frente saíram hussardos numa formação regular de cavalaria. Atrás deles, soldados vestindo cotas de malha; depois, soldados com armaduras e lanças, que eram seguidos por outros com elmos de cobre; atrás de todos, isolados, iam os fidalgos poloneses, cada um vestido a seu modo. Esses orgulhosos fidalgos não queriam se misturar com os outros nas fileiras, e não tinham comando; cada um ia sozinho com seus criados. Em seguida vinham outras fileiras, e atrás destas apareceu o alferes; e depois mais fileiras e o coronel troncudo; e finalmente, por trás de todo o exército, vinha o coronel mirrado. - Não deixem que eles entrem em formação, não deixem! - gritava o

kochevói. - Que todos os batalhões avancem ao mesmo tempo sobre eles! Deixem os outros portões! O batalhão de Titariev atacará por um flanco! O de Diádkiv, pelo outro! Kukubienko e Palivoda, avancem sobre a retaguarda! Vamos confundi-los, vamos separá-los! E os cossacos atacaram por todos os lados, confundindo e atrapalhando os poloneses, e eles próprios acabaram se misturando. Não os deixaram se-

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quer atirar; a luta se deu com espadas e lanças. Todos se amontoaram numa turba, e cada um teve oportunidade de mostrar seu valor. Demid Popóvitch matou três polacos e derrubou dois nobres de seus cavalos, dizendo: “Que be102

los cavalos! Há tempos eu queria ter cavalos assim!”. E espantou os animais para bem longe, gritando aos cossacos que estavam na retaguarda para que os amarrassem. Depois mergulhou de novo naquela turba, avançou contra os polacos que tinha derrubado dos cavalos e matou um deles; o outro foi laçado pelo pescoço, amarrado à sela e arrastado por todo o campo, depois que lhe fora tirado o sabre com valiosa empunhadura e um saco de ducados que trazia no cinturão. Kobita, um cossaco bom e ainda jovem, atracou-se com um dos mais valentes do exército polonês; e os dois ficaram lutando por muito tempo. Travavam um corpo-a-corpo. O cossaco venceu, e depois de derrubar o adversário, desfechou-lhe um golpe no peito com um afiado punhal turco. Porém ele se descuidou, e um tiro certeiro arrebentou sua têmpora. Quem o abateu foi um dos mais ilustres senhores poloneses, um formoso cavaleiro de uma antiga linhagem de príncipes. Ele galopava em seu cavalo pardo como um álamo esbelto. E já havia demonstrado muito da sua coragem épica de bolardo: partiu dois zaporogos ao meio, derrubou Fiódor Korj, um bravo cossaco, juntamente com sua montaria, atirando no cavalo e atingindo com a lança o guerreiro que estava por trás do animal; arrancou a cabeça de muitos outros e abateu o cossaco Kobita, cravando-lhe uma bala na têmpora. - Aí está um homem com quem eu queria medir forças! - gritou Kukubienko, o atamã do batalhão de Niezamálkov. Ele esporeou o cavalo e avançou direto para a retaguarda do polonês, gritando com tanta força que todos os que estavam próximos estremeceram por causa daquele grito desumano. O polaco quis virar logo o seu cavalo a fim de ficar de frente para ele, mas o animal não obedeceu: assustado com aquele grito horrível, ele saltou para um lado, e Kukubienko atingiu o cavaleiro com um tiro de espingarda. O tiro certeiro entrou na espádua, e ele caiu do cavalo. Porém, mesmo as-


sim o polaco não se entregou; tentou ainda desfechar um golpe no inimigo, mas seu braço fraquejou e caiu junto com o sabre. Kukubienko apanhou com ambas as mãos a sua espada pesada e enterrou-a bem na boca pálida do polonês. A espada arrancou dois dentes alvos, cortou a língua ao meio, partiu a vértebra do pescoço e penetrou bem fundo na terra. E assim ele a deixou, cravada ali na terra úmida para sempre. O sangue nobre e vermelho como os frutos de um viburno esguichou em forma de uma fonte, tingindo todo o cafetã amarelo e ornado em ouro do polonês. Kukubienko o abandonou e abriu caminho com seus cossacos em outra turba. - Ei, deixaram abandonado um traje tão valioso! disse Borodati, atamã do batalhão de Úman, afastando-se dos seus e chegando ao lugar onde jazia o polaco morto por Kukubienko. - Eu já matei sete polacos com minhas mãos, e não vi um traje assim com nenhum deles. E Borodati se deixou tentar pela ganância: inclinou-se para tirar aquela valiosa armadura, pegando logo a faca turca com cabo adornado de pedras preciosas; em seguida desatou o saco de ducados preso ao cinturão e apanhou um alforje que continha prata, roupa branca fina e um cacho de cabelos femininos, guardado cuidadosamente como recordação. Porém, Borodati não percebeu que, às suas costas, avançava o alferes com o nariz vermelho, que já havia sido derrubado da sela por ele mesmo e levara uma boa mossa como lembrança. O alferes ergueu os braços e desfechou um golpe de sabre no pescoço inclinado. A ganância do cossaco não lhe trouxe o bem: a cabeça robusta saltou, e o corpo degolado caiu encharcando de sangue a terra em redor. A rude alma cossaca foi para as alturas, carrancuda, indignada e, ao mesmo tempo, espantada por ter se desprendido tão cedo daquele corpo forte. Mas o alferes nem chegou a agarrar a cabeça do atamã pelo topete para amarrá-la na sela: seu feroz vingador já estava bem ali. Como um abutre que flutua no céu dando muitas voltas com suas asas poderosas, e de repente se detém estirado no mesmo lugar e parte

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como uma flecha sobre a codorniz que grita perto da estrada, Óstap, o filho de Táras, avançou contra o alferes e o laçou pelo pescoço com uma corda. O rosto vermelho do alferes ficou ainda mais rubro quando um violento nó 104

apertou sua garganta; ele agarrou a pistola, mas a mão contraída de forma convulsiva não conseguiu dirigir o tiro, e a bala voou inutilmente para o campo. Óstap desatou um cordão de seda da própria sela do polonês, que o levava consigo para amarrar os prisioneiros, e atou-lhe as mãos e os pés; depois prendeu a corda na sela e o arrastou pelo campo, gritando a todos os cossacos do batalhão de Úman para que prestassem uma derradeira homenagem a Borodati. Quando os cossacos de Úman perceberam que seu atamã já não estava entre os vivos, abandonaram o campo de batalha e correram para recolher seu corpo; ali mesmo deliberaram sobre a escolha do novo comandante. Finalmente disseram: - Para que deliberar? Não se pode escolher um comandante melhor do que Óstap, o filho de Bulba. É verdade que ele é mais jovem do que todos nós, mas tem o juízo de um velho. Depois de tirar o gorro, Óstap agradeceu a seus companheiros pela honra e nem tentou se esquivar alegando ser jovem e de pouco juízo, pois sabia que aquele momento de guerra não era para isso; conduziu-os diretamente para a turba e mostrou a todos que não fora em vão que o elegeram atamã. Os polacos sentiram que a coisa já tinha ficado bastante quente e recuaram, atravessando o campo para se reunir mais ao longe. O coronel baixinho acenou para o quarteto de esquadrões reservas que permaneciam separados, junto aos portões, e eles dispararam uma rajada de tiros no bando de cossacos. Porém, atingiram poucos: as balas acertaram os bois dos cossacos que olhavam espantados para a batalha. Os animais assustados mugiram, viraram-se para os acampamentos, derrubaram carroças e pisaram em


muitos cossacos. Mas nessa hora, Tarás saiu da tocaia com seu regimento e avançou gritando. O rebanho enlouquecido voltou para trás, assustado com os gritos, e se lançou contra os regimentos polacos, afugentando a cavalaria e esmagando os que eram derrubados. - Oh, obrigado, boiada! - gritaram os zaporogos. já tinha nos servido durante a marcha e agora ajudou na guerra! - E os cossacos atacaram com força renovada. Mataram muitos inimigos. E muitos cossacos mostraram do que são capazes: Metiélitsia, Chilo, ambos os Pissarienko, Vovtuzienko e tantos outros. Os polacos viram afinal que a situação piorava, levantaram seu estandarte e gritaram para que fossem abertos os portões da cidade. Os portões se abriram com um rangido de ferro e receberam os cavaleiros exaustos e cobertos de poeira, que voltavam em tropel como ovelhas indo para o redil. Muitos zaporogos correram atrás deles, mas Óstap deteve seus comandados, dizendo: “Afastem-se dos muros, senhores irmãos, afastem-se! Não devemos nos aproximar deles”. E disse a verdade, pois de cima dos muros ressoavam estrondos e caía de tudo, e muitos cossacos foram atingidos. Nesse momento, o kockevói se aproximou e elogiou Óstap, dizendo: “Aí está o novo atamã, e já conduz a tropa como um veterano!”. O velho Bulba olhou em volta para ver quem era o novo atamã; então viu Óstap em seu cavalo à frente dos cossacos de Úman, com o gorro de lado e segurando a maça de comandante. “Ora, vejam só!” disse Bulba olhando para ele; o velho ficou feliz e começou a agradecer aos cossacos de Úman pela honra oferecida a seu filho. Os cossacos recuaram de novo, preparando-se para voltar aos acampamentos, mas os polacos apareceram mais uma vez no baluarte da cidade, com as capas já rasgadas. O sangue tinha secado nos ricos cafetãs, e os belos elmos de cobre estavam cobertos de poeira. - E então, já nos amarraram? - gritaram os zaporogos lá de baixo.

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- Vocês vão ver só! - gritou do alto o coronel gordo, mostrando uma corda. E os guerreiros exaustos e empoeirados não paravam de fazer ameaças, e aqueles que eram mais atrevidos trocavam palavras afiadas. 106

Por fim se dispersaram. Uns esgotados pelo combate ajeitaram-se para descansar; outros passavam terra em seus ferimentos e faziam curativos com lenços e roupas caras tomadas de inimigos mortos. E havia ainda outros que, por estarem menos fatigados, começaram a recolher os corpos para prestar as derradeiras homenagens. Cavaram as sepulturas com espadas e lanças; limparam a terra com abas e gorros; arrumaram os corpos dos cossacos de maneira respeitosa e cobriram-nos com terra fresca, para que os corvos e as águias carniceiras não conseguissem arrancar seus olhos. Já os corpos dos polacos foram amarrados às dúzias nas caudas de cavalos selvagens, os quais foram soltos e depois perseguidos e açoitados por longo tempo. Os cavalos furiosos voaram por valas, morros, riachos e valetas, batendo no chão os cadáveres polacos despedaçados e cobertos de sangue. Depois, os cossacos se sentaram em círculos para cear; ficaram conversando por muito tempo sobre as ações e proezas que cada um realizou e que se tornariam um conto eterno para os forasteiros e a posteridade. Eles demoraram a se deitar. O velho Bulba demorou mais do que todos; meditava profundamente sobre o fato de Andríi não estar entre os guerreiros inimigos. Aquele judas teria se envergonhado de sair contra os seus, ou será que o judeu o enganara, e Andríi tivesse sido apenas capturado? Mas daí ele se lembrou de que o coração de Andríi tinha uma inclinação desmedida para o discurso feminino; então ficou angustiado e prometeu vingança contra a polaca que havia enfeitiçado seu filho. E ele haveria de cumprir sua promessa: nem olharia para sua beleza, iria apenas agarrá-la pela trança grossa e exuberante e a arrastaria por todo o campo entre os cossacos. Ensangüentados e cobertos de poeira, seus belos seios e seus ombros parecidos com a neve


eterna que encobre o pico das montanhas se chocariam contra o chão; seu corpo maravilhoso e exuberante seria despedaçado. Mas Bulba não sabia o que Deus preparava para o dia seguinte, e foi se deixando levar pelo sono até que adormeceu. Os cossacos ainda ficaram conversando entre si, e o sentinela permaneceu a noite toda perto do fogo, olhando atentamente para todas as direções, sóbrio e sem pregar os olhos.



O

sol ainda não tinha chegado ao centro do céu quando os zaporogos se reuniram em círculos. Da Siétch

chegara a notícia de que, durante a ausência dos cossacos, os tártaros saquearam tudo, desenterraram

as

coisas

que

estavam

escondidas, surraram e prenderam todos os que haviam permanecido lá e se encaminharam diretamente para Periekop, levando todas as manadas e rebanhos apanhados. Apenas um cossaco, Maksim Golodukha, escapou das mãos dos tártaros no caminho; depois de apunhalar um escriba, ele desatou-lhe uma sacola com moedas de ouro e, usando o cavalo e as roupas do tártaro, fugiu


da perseguição durante um dia e meio e mais duas noites; fatigou o animal até a morte e na estrada passou para outro, que também ficou extenuado; por fim, montado num terceiro cavalo, chegou ao acampamento dos zaporogos, 110

depois de saber que estes se encontravam nos arredores de Dubno. Ele conseguiu dizer apenas que essa desgraça tinha acontecido; porém, como ela sucedera, se os zaporogos, como é costume entre os cossacos, haviam se embriagado e foram aprisionados enquanto estavam bêbados, e como os tártaros descobriram o lugar onde estava guardado o espólio de guerra nada disso ele contou. O cossaco estava fatigado demais, todo inchado, com o rosto ardendo e queimado pelo vento; ele caiu ali mesmo e adormeceu num sono profundo. Em semelhantes situações, os zaporogos se lançariam atrás dos raptores no mesmo instante, tentando alcançá-los no caminho, pois os prisioneiros poderiam acabar nos mercados da Ásia Menor, de Smirna, da Ilha de Creta, e sabe Deus onde mais os topetes cossacos seriam vistos. Foi por isso que os zaporogos se reuniram. Todos permaneciam de pé com o gorro na cabeça, porque tinham vindo até ali não para ouvir uma ordem do atamã, mas para deliberar entre si como iguais. - Que os mais velhos falem primeiro! - disseram na multidão. - Que fale o kochevói! - disseram outros.

E o kochevói tirou o gorro, não como chefe, mas sim como companhei-

ro; agradeceu a todos os cossacos pela honra e disse:

- Entre nós há muita gente mais velha e de opinião mais sensata mas já que me deram esta honra, eis a minha opinião: não percamos tempo, companheiros, e vamos atrás dos tártaros. Vocês mesmos sabem que tipo de gente é essa. Eles não vão ficar com os bens roubados esperando a nossa chegada; vão fazê-los desaparecer num instante, e não acharemos nem sinal deles. Esta é minha opinião: vamos partir. Já nos divertimos por aqui. Os polacos sabem quem são os cossacos; vingamos a nossa fé com toda a força; já não há muito o que tirar dessa cidade faminta. Assim, é esta a minha opinião: vamos partir.


- Vamos partir! - ressoou nos batalhões de zaporogos. Mas essas palavras não agradaram a Tarás Bulba, e ele franziu ainda mais as suas sobrancelhas carregadas e grisalhas, que se pareciam com moitas crescidas no alto de montanhas escuras, cujo topo fora coberto pela geada cortante do norte. - Não, kochevói, sua opinião não está correta! - disse ele. - Você não deve falar assim. Pelo jeito você se esqueceu de que muitos dos nossos permanecem na prisão, capturados por poloneses. Pelo jeito você quer que desrespeitemos o primeiro e sagrado mandamento do companheirismo: será que vamos abandonar nossos colegas para que sejam esfolados vivos, ou para que seus corpos cossacos sejam esquartejados e depois espalhados por cidades e aldeias, como fizeram com o bétman e os melhores guerreiros russos na Ucrânia? Será que os poloneses ofenderam pouco as nossas coisas sagradas? O que somos nós, então? Eu pergunto a todos vocês. O que vale um cossaco que abandona um companheiro na desgraça, que o abandona como um cachorro para morrer em terra estrangeira? Se chegamos ao ponto de qualquer um manchar a honra cossaca sem mais nem menos, permitindo que cuspam em nossos bigodes grisalhos e nos dirijam palavras ofensivas, então ninguém vai me censurar. Eu ficarei sozinho! Os zaporogos hesitaram. - E você por acaso se esqueceu, bravo coronel - disse então o kochevói -, de que os nossos companheiros também estão nas mãos dos tártaros e que, se não os salvarmos agora, serão vendidos aos pagãos para um cativeiro eterno, pior do que a morte mais cruel? Será que se esqueceu de que eles estão agora com todo o nosso tesouro, obtido à custa de sangue cristão? Todos os cossacos ficaram pensativos e não sabiam o que dizer. Nenhum deles queria ganhar má fama. Então avançou Kassián Bovdiúg, o mais velho de todos no exército zaporogo. Ele era respeitado por todos os cossacos; fora escolhido duas vezes como kochevói, e nas guerras também havia sido

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um cossaco muito bom, mas já tinha idade avançada e não participava mais das campanhas; também não gostava de dar conselhos a ninguém; esse velho valentão preferia ficar de lado nas rodas de cossacos, ouvindo histórias 112

sobre campanhas e acontecimentos passados. jamais se metia em suas conversas; ficava apenas ouvindo enquanto apertava com o dedo a cinza em seu cachimbo de cano curto, o qual nunca tirava da boca; depois permanecia sentado por longo tempo, de olhos semicerrados, e então os cossacos não sabiam se ele estava dormindo ou se ainda escutava tudo. Nas outras campanhas tinha ficado em casa, mas desta vez algo despertou dentro do velho. Ele fez um gesto ao estilo cossaco e disse: “Ah, que se dane! Eu também vou; talvez ainda seja útil aos cossacos! - Chegou a minha vez de tomar a palavra, senhores irmãos! - começou ele. - Escutem este velho, meus filhos. O kockevói falou sabiamente, e como chefe do exército cossaco, está obrigado a preservá-lo e também a cuidar de suas coisas; ele não poderia dizer nada mais sensato. É isso! Esta é a primeira parte da minha fala! E agora escutem a segunda. Aqui vai ela: também o coronel Tarás disse uma grande verdade; que Deus lhe permita viver mais de um século, e que na Ucrânia haja mais coronéis assim! Preservar o companheirismo é o primeiro dever e a maior honra de um cossaco. Vivo neste mundo há bastante tempo, e nunca ouvi que um cossaco tenha abandonado ou traído seu companheiro de alguma forma. Tanto estes como aqueles são nossos companheiros; haja poucos ou muitos deles, é tudo a mesma coisa; todos são companheiros, todos são caros para nós. Eis o que tenho a dizer: aqueles que têm amigos aprisionados pelos tártaros, que partam atrás destes; e os que têm amigos capturados por polacos e não querem largar uma causa justa, devem permanecer. O kochevói tem o dever de ir com metade do exército atrás dos tártaros; a outra metade escolherá um atamã interino. E se quiserem ouvir este cabeça branca, não há outro mais apto para ser um atamã interino do que Tarás Bulba. Nenhum de nós se compara a ele em bravura.


Assim falou Bovdiúg, e depois se calou; e os cossacos ficaram felizes pelo velho ter lhes dado juízo. Todos jogaram os gorros para cima e começaram a gritar: - Obrigado, paizinho! Ficou calado por muito, muito tempo, mas falou afinal. Não foi por acaso que, quando se preparava para a campanha, disse que seria útil aos cossacos: foi dito e feito. - E então, todos estão de acordo? - perguntou o kochevói. - Todos de acordo! - gritaram os cossacos. - Quer dizer que a reunião acabou? - Sim, acabou! - gritaram eles. - Então agora escutem estas ordens, meus filhos! disse o kochevói, avançando e colocando o gorro, e os zaporogos tiraram os seus e permaneceram com a cabeça descoberta, de olhos voltados para o chão, como sempre acontecia entre os cossacos quando o superior ia falar. - Agora separem-se, senhores irmãos! Quem quiser partir, ponha-se à direita; quem quiser ficar, à esquerda! Para onde for a maior parte do batalhão, para lá irá também o atamã; a parte menor se juntará a outras unidades. E todos começaram a se mexer: uns para a direita, outros para a esquerda. Para onde ia a parte maior do batalhão, lá ia também o seu atamã; a parte menor se juntava a outras unidades; e por pouco não se dividiram em partes iguais. Assim, decidiram ficar: quase todo o batalhão de Niezamáikov, mais da metade do de Popóvitchev, todo o de Úman, todo o de Kániev e a maioria dos de Stiéblikiv e de Timochev. Os demais se apresentaram para ir no encalço dos tártaros. De ambos os lados havia cossacos valentes e robustos. Entre aqueles que decidiram partir atrás dos tártaros estavam Tcherievati, um bom e velho cossaco, Pokotipolie, Liemich e Khomá Prokopóvitch; Demíd Popóvitch também estava ali, pois era um cossaco de caráter entusiasmado demais e não conseguia permanecer por muito tempo no mesmo lugar; ele já tinha experimentado a luta com os polacos, e agora queria experimentar com os

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tártaros. Estavam ali os atamanes Nostiugan, Pokrichka e Nievilitchki; e muitos outros cossacos valentes e famosos quiseram testar a espada e o braço forte num combate contra os tártaros. Também eram muitos, e igualmen114

te fortes, os cossacos que quiseram ficar: os atamanes Demitróvitch, Kukubienko, Viertikhvist, Balaban e Óstap Bulba. E ainda ficaram muitos outros cossacos famosos e robustos: Vovtuzienko, Tcherievitchenko, Stiepán Guska, Okhrim Guska, Mlkola Gústi, Zadórojnl, Metiélitsla, Ivan Zakrutigubá, Mossi Chilo, Diogtiarienko, Sidorienko, Pissarienko, um outro Pissarienko, e ainda outro Pissarienko, e tantos outros bons cossacos. Todos eram muito viajados: tinham andado pelo litoral da Anatólia, pelas salinas e estepes da Criméia, por todos os pequenos e grandes riachos que deságuam no Dniepr e por todos os seus embarcadouros e ilhas; estiveram nas terras da Moldávia, da Valáquia e da Turquia; percorreram todo o Mar Negro com suas embarcações de leme duplo; lançaram-se numa frota de cinqüenta barcos contra navios enormes e luxuosos, afundaram várias galeras turcas e gastaram muita pólvora nessa vida. Mais de uma vez eles rasgaram veludos e tecidos de valor para usar como calçados. Diversas outra s vezes encheram as calças com moedas de ouro brilhantes. Não é possível calcular o que cada um deles tinha gastado com farras e bebedeiras; era um montante que, se fora com outro, duraria a vida toda. Gastaram tudo ao estilo cossaco, chamando a todos e contratando músicos para que se alegrassem como em nenhum outro lugar do mundo. Mesmo agora, era raro que um deles não tivesse bens enterrados: jarros, canecas de prata e pulseiras, tudo embaixo dos juncos nas ilhas do Dniepr, para que os tártaros não pudessem achá-los se, por desgraça, atacassem a Siétch de surpresa; mas seria difícil um tártaro encontrar esses bens, pois o próprio dono logo esquecia o lugar onde os havia enterrado. Assim eram os cossacos que quiseram ficar e se vingar dos poloneses pelos companheiros leais e pela fé cristã! O velho cossaco Bovdlúg também quis ficar com eles, dizendo: “Hoje não tenho mais idade para perseguir os tártaros, mas aqui é o lugar de um


cossaco padecer uma boa morte. Há muito pedi a Deus que, se minha vida tivesse de terminar, que fosse numa guerra pela santa causa cristã. E assim foi. Não haverá em outro lugar um final mais glorioso para um velho cossaco”. Quando todos se separaram e se posicionaram dos dois lados, em duas fileiras, o kochevói passou entre eles e disse: - E então, senhores irmãos, estão satisfeitos uns com os outros? Todos satisfeitos, paizinho! - responderam os cossacos. - Então, beijem-se e se despeçam uns dos outros, pois só Deus sabe se teremos a sorte de nos encontrar de novo nesta vida. Obedeçam ao seu atamã, mas façam o que vocês mesmos sabem: vocês sabem o que a honra cossaca determina. E todos os cossacos que ali estavam começaram a se beijar. Os atamanes foram os primeiros; depois de passar a mão nos bigodes grisalhos, eles se beijaram e trocaram fortes apertos de mão. Um queria perguntar ao outro: “Bem, será que ainda nos veremos, meu irmão?”. Mas não perguntaram, permaneceram calados, e suas cabeças grisalhas ficaram pensativas. Todos os cossacos se despediram, sabendo que tanto uns como outros teriam muito trabalho; no entanto, decidiram não se separar imediatamente, e sim esperar pelo anoitecer, a fim de não permitir que o inimigo visse a diminuição do exército cossaco. Depois todos se dirigiram às suas unidades para almoçar. Após o almoço, os que tinham a estrada pela frente se deitaram para descansar e dormir um sono longo e profundo, como se pressentissem que, talvez, esse fosse o último sono que desfrutariam com tanta liberdade. Dormiram até o crepúsculo; e logo que o sol se pôs, quando escureceu um pouco, começaram a engraxar as relegas. Quando se prepararam, puseram as carroças em movimento; e depois de se despedirem dos companheiros mais uma vez, seguiram eles mesmos atrás das carroças. A cavalaria seguia de modo solene, sem gritos nem assobios, troteando suavemente atrás da infantaria; e logo desapareceram todos na escuridão. Ressoavam apenas o trote surdo

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dos cavalos e o rangido de uma roda desconjuntada, ou que não fora bem engraxada por causa da escuridão da noite. Os companheiros que tinham ficado ainda continuaram acenando para eles durante muito tempo, de lon116

ge, embora nada mais fosse visto. Mas quando pararam e voltaram a seus lugares, quando viram, sob as estrelas que brilhavam intensamente, que metade das telegas não estava mais ali, e que muitos e muitos deles também não, surgiu uma tristeza no coração de cada um, e todos, involuntariamente, ficaram pensativos, com suas cabeças voltadas para o chão. Tarás viu como as tropas tinham ficado angustiadas, e também como o desânimo, que é incomum a um bravo, ia envolvendo silenciosamente a cabeça dos cossacos; porém ele ficou calado: queria dar tempo para que se acostumassem ao desânimo trazido pela despedida dos companheiros; enquanto isso, preparava-se em silêncio para despertá-los de forma súbita e definitiva, dando um grito ao estilo cossaco, a fim de que o ânimo retomasse à alma de cada um com uma força maior do que antes, algo de que só a raça eslava é capaz, uma raça enorme e poderosa que, perante as outras, é como o mar diante de pequenos rios. Se o tempo está agitado, ele se transforma em rugidos e trovões, erguendo e quebrando as ondas como os rios fracos não podem fazer; mas se o tempo está calmo e silencioso, ele estende sua superfície infinita e cristalina com mais clareza do que todos os rios, num eterno deleite para os olhos. Tarás mandou que seus criados descobrissem uma carroça que estava isolada. Era a maior e mais forte de todas no comboio cossaco: suas rodas pesadas eram revestidas com aro duplo e resistente; estava bastante carregada, coberta com xairéis e peles bovinas e bem amarrada com cordas embebidas em pez. A carroça estava cheia de cantis e barris de um velho e bom vinho, que tinha permanecido longo tempo nas adegas de Tarás. Ele o havia reservado para uma ocasião solene, quando surgisse um grande momento e todos tivessem pela frente uma tarefa digna de ser transmitida aos des-


cendentes; cada cossaco deveria então tomar desse valioso vinho para que, nessa ocasião, o homem fosse dominado por um sentimento de - grandeza. Ao ouvir a ordem do coronel, os criados lançaram-se às carroças, cortaram as cordas resistentes com as espadas, tiraram os xairéis e as pesadas peles bovinas e pegaram os cantis e barris. - Tragam tudo - disse Bulba -, tudo que houver por aí. Tragam o que cada um tiver: uma caneca, um caldeirão de dar água aos cavalos, uma luva, um gorro, ou simplesmente juntem as mãos fazendo uma cuia. E todos os cossacos foram com o que tinham: uns com canecas, outros com caldeirões de dar água aos cavalos, outros com luvas, outros com gorros, e outros ainda com as mãos em forma de cuia. Passando entre as fileiras, os criados de Tarás iam enchendo tudo com os cantis e barris. Mas Tarás não os deixou beber antes de seu sinal, a fim de que todos bebessem de uma só vez. Pelo visto, ele queria dizer algo. Tarás sabia que o bom e velho vinho, por mais forte que fosse, não seria capaz de fortalecer o espírito de um homem; mas se a ele fosse acrescentada a palavra certa, então seria duas vezes maior a força do vinho e do espírito. - Eu os convidei, senhores irmãos - disse Bulba - não pela honra de terem feito de mim o seu atamã, embora seja essa uma grande honra; também não foi pela despedida de nossos companheiros; não, em outra época as duas coisas seriam oportunas, mas não é esse o momento que temos diante de nós. O trabalho à nossa frente exige um grande esforço e a grande bravura dos cossacos! Assim, bebamos, companheiros, bebamos todos juntos, e antes de mais nada, pela santa fé ortodoxa: que chegue afinal aquele momento em que ela se espalhará por todo o mundo e será a fé sagrada e única em todo lugar, e todos os muçulmanos que existirem se tornarão cristãos! Bebamos também pela Siétch: que ela seja a perdição de todo o Islamismo, e que a cada ano, dela saiam jovens mais belos e melhores. E bebamos igualmente por nossa própria glória: que nossos netos e os filhos de nossos netos digam que, um dia, existiram aqueles que nunca envergonharam os companheiros

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e nem traíram os seus. Pela fé, senhores irmãos, pela fé! - Pela fé! - com voz grossa começaram a bradar os que estavam nas fileiras mais próximas. 118

- Pela fé! - continuaram os que estavam distantes; e todos ali presentes, os velhos e os jovens, beberam pela fé. - Pela Siétch! - disse Tarás, e ergueu o braço bem alto. - Pela Siétch! ecoou densamente nas primeiras fileiras. “Pela Siétch! “, disseram os velhos num tom baixo, movendo os bigodes grisalhos; e os moços, estremecendo como jovens falcões, repetiram: “Pela Siétch!”. E o campo longínquo ouviu os cossacos celebrando a sua Siétch. - Agora um último gole, companheiros, pela glória e por todos os cristãos que vivem no mundo! E todos os cossacos, até o que estava mais distante no campo, tomaram uma última caneca pela glória e por todos os cristãos que existissem no mundo. E em todas as fileiras, por todos os batalhões, ainda se repetiu durante longo tempo: - Por todos os cristãos que existirem no mundo! As canecas já estavam vazias, mas os cossacos ainda continuavam com os braços erguidos. Embora os olhos de todos brilhassem radiantes pelo vinho, eles estavam bastante pensativos. Não era em ganância e nem no espólio de guerra que eles pensavam agora; tampouco em quem teria a sorte de apanhar ducados, armas valiosas, cafetãs bordados e cavalos circassianos; estavam pensativos como águias sentadas no pico de montanhas altas e escarpadas, de onde se vê ao longe o mar se estendendo infinitamente, repleto de galeras, navios e barcos semelhantes a pequenas aves, e cercado nos flancos pela costa delicada e quase invisível com suas cidades litorâneas parecendo mosquitos e os bosques inclinados como capim fino. Como as águias, eles olhavam para o campo em redor e para o destino que se enegrecia bem adiante. Todo aquele campo com estradas e terras incultas seria coberto por


seus ossos brancos e salientes, depois de banhar-se fartamente com o sangue cossaco e encobrir-se de carroças despedaçadas, lanças e sabres partidos. As suas cabeças com bigodes desgrenhados e topetes torcidos e cheios de sangue ressecado se espalhariam ao longe. As águias avançariam para tirar, para arrancar seus olhos cossacos. Mas há um grande bem nessa pousada de morte que se esparrama com tanta amplitude e liberdade! Uma ação magnânima jamais vai perecer, e a glória cossaca não desaparecerá como o pequeno grão de pólvora do cano de uma espingarda. Haverá um bandurrista de barba grisalha sobre o peito, ou talvez um velho de cabeça branca, mas ainda cheio de coragem madura e sábio de espírito, que dirá sobre eles palavras densas e vigorosas. E sua glória seguirá por todo o mundo, e depois, tudo que nascer falará deles. Pois as palavras vigorosas ressoarão bem longe, como o cobre de um sino a badalar, no qual um artífice tenha lançado bastante prata pura e valiosa, para que seu belo retinir se propague por cidades, casebres, palácios e aldeias, convocando a todos igualmente para uma oração sagrada.

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N

a cidade ninguém soube que metade dos zaporogos tinha saído em perseguição aos tártaros. Da torre

do conselho municipal, as sentinelas notaram apenas que parte das carroças havia se arrastado para o bosque; mas pensaram que os cossacos se preparavam para fazer uma emboscada; o mesmo pensava um engenheiro francês. Entretanto, não foram vãs as pala-

vras do kochevói, pois na cidade houve falta

de alimentos. Como era costume de séculos, as tropas não tinham feito o cálculo de quanto precisavam. Tentaram fazer um ataque surpresa, mas metade dos bravos foi exterminada pelos cossacos ali mesmo, e a outra foi


enxotada de volta para a cidade sem nada. Porém, os judeus se aproveitaram do ataque e apuraram tudo: para onde os zaporogos haviam se dirigido e por quê, com quais comandantes, quais batalhões, quantos tinham ido, quantos 122

ficaram e o que pensavam fazer; numa palavra: em alguns minutos, já se sabia de tudo na cidade. Os coronéis se animaram e se prepararam para travar o combate. Tarás logo percebeu isso pela movimentação e pelo barulho na cidade; então tomou providências com desenvoltura, pondo as tropas em formação e dando ordens e instruções; colocou os batalhões em três acampamentos, cercando-os com carroças em forma de fortalezas, um tipo de combate em que os zaporogos eram invencíveis; ordenou que dois batalhões ficassem de tocaia, fincou estacas pontiagudas, armas quebradas e pedaços de lanças numa parte do campo, para o caso de a cavalaria inimiga avançar para lá. E quando tudo estava feito como é necessário, Tarás fez um discurso aos cossacos, mas não para incentivá-los e reavivá-los, pois sabia que, mesmo sem isso, já eram fortes de espírito; ele queria simplesmente expressar o que tinha no coração. - Quero lhes dizer, senhores, o que é o nosso companheirismo. Vocês ouviram dos pais e avós a consideração que todos tinham por nossa terra: ela mostrou aos gregos do que era capaz e tomou ducados de Constantinopla; suas cidades eram magníficas, e também os templos; e seus príncipes eram russos de nascimento, e não infiéis católicos. Tudo foi tomado pelos muçulmanos, tudo se perdeu. Só restamos nós, órfãos; e como a viúva que perdeu o marido vigoroso, está órfã a nossa terra, tal como nós! Aí está, companheiros, em que época estendemos as mãos em fraternidade! É aí que está o nosso companheirismo! Não há laços mais sagrados que os do companheirismo! O pai ama seu filho, a mãe ama seu filho, e o filho ama o pai e a mãe. Mas não é a mesma coisa, irmãos: também uma fera ama seu filho. Porém, estabelecer parentesco pela alma, e não pelo sangue, é algo de que só o homem é capaz. Em outras terras também havia companheiros, mas não como na


Terra Russa; lá não existiram companheiros assim. já aconteceu a muitos de vocês de se aventurarem no exterior; e viram que lá também há gente! Também são filhos de Deus, e vocês conversam com eles como se fossem dos nossos; mas quando chegam a dizer uma palavra sincera, vejam só: são pessoas sensíveis, mas não, não é a mesma coisa; são pessoas também, mas não é a mesma coisa! Não, irmãos; amar desse jeito, como a alma russa, é amar não só com a razão ou com qualquer outra coisa, mas com tudo que Deus ofereceu, com o que existe dentro de cada um! Ah... - disse Tarás; depois agitou a mão, balançou a cabeça grisalha, mexeu o bigode e continuou. - Não ninguém pode amar assim! Sei que a infâmia já apareceu em nossa terra; há os que pensam apenas em ter montes e montes de cereais, tropas de cavalos e hidromel lacrado em suas adegas. O diabo é que sabe quais costumes muçulmanos eles imitam; desdenham sua língua, não querem falar com sua própria gente; vendem os da própria raça como se vendessem uma criatura sem alma no mercado. Para qualquer um deles, a benevolência de um rei estrangeiro, que nem é a de um rei, mas sim a benevolência miserável de um magnata polonês que lhes chuta a cara com suas botas amarelas, vale mais do que a fraternidade. Mas até o último dos canalhas, ainda que tenha se emporcalhado na fuligem e na bajulação, mesmo esse, irmãos, tem um grãozinho de sentimento russo. E um dia esse sentimento vai despertar, e então o desgraçado esmurrará o próprio peito, agarrará a cabeça amaldiçoando sua vida infame, pronto para redimir sua ação vergonhosa através de martírios. Que todos eles saibam o que significa na Terra Russa o companheirismo! E se for para morrer, então que nenhum deles possa morrer assim!... Nenhum, nenhum!... Sua natureza de rato não lhes permitirá isso! Assim falou o atamã; e quando ele terminou o discurso, ainda continuou balançando a cabeça, que ficara prateada em suas atividades cossacas. Aquele discurso atingiu a todos que ali estavam, tocou no fundo, no próprio coração. Os mais velhos nas fileiras permaneceram imóveis, com as cabeças

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grisalhas voltadas para o chão; uma lágrima rolava em silêncio nos olhos envelhecidos, e eles a secaram lentamente com a manga. Depois, como se tivessem combinado, agitaram as mãos ao mesmo tempo e balançaram as 124

cabeças veteranas. Pelo visto, o velho Tarás os fizera lembrar muito do que há de melhor e conhecido no coração de um homem instruído por infortúnios, trabalho, audácia e toda sorte de percalços da vida, ou mesmo no daquele que não os conhecia, mas que podia sentir tudo com sua alma jovem e pura, para eterna alegria dos pais que o geraram. No entanto, o exército inimigo já saía da cidade tocando tambores e cornetas; saíam também os fidalgos, com as mãos na cintura e rodeados por incontáveis serviçais. O coronel gordo dava ordens. Eles começaram a avançar contra os acampamentos cossacos, ameaçando, apontando canhões, com os olhos faiscantes e brilhando em suas armaduras de cobre. Logo que os cossacos viram que eles estavam ao alcance dos tiros, fizeram retumbar os canhões de sete polegadas de uma só vez e continuaram disparando sem dar trégua. Um forte estrondo se propagou bem longe, pelos campos e trigais das redondezas, misturando-se num ronco surdo e incessante; o campo foi tomado pela fumaça, e os zaporogos atiravam sem cessar: os que estavam atrás apenas carregavam as armas e passavam para quem estava na frente, causando assombro no inimigo, que não conseguia entender como os cossacos atiravam sem carregar as espingardas. Por trás da enorme fumaça que cobria os dois exércitos não se viam as baixas que ocorriam nas fileiras de um lado e de outro; mas os polacos sentiam que as balas voavam em abundância e que a coisa estava ficando quente, e quando recuaram para se afastar da fumaça e se orientar, faltavam muitos deles em suas fileiras. Entre os cossacos, talvez dois ou três tinham sido mortos em cada esquadrão. E continuavam atirando com os canhões, sem dar um minuto de trégua. O próprio engenheiro estrangeiro ficou muito impressionado com aquela tática que jamais tinha visto,


e disse: “Vejam que bravos zaporogos! É assim que se deve lutar nas outras terras!”. Depois aconselhou que virassem os canhões para o acampamento. Os canhões de ferro rugiram com suas bocas largas; a terra estremeceu zunindo bem longe, e o campo foi tomado por uma fumaça duas vezes mais densa. Sentia-se o cheiro de pólvora no meio das praças e ruas das cidades próximas e distantes. Mas os artilheiros tinham apontado muito para cima: as balas incandescentes descreveram uma curva alta demais. E depois de rugirem no ar, elas passaram por sobre as cabeças de todo o acampamento e afundaram no chão, bem longe, explodindo e jogando terra preta para cima. O engenheiro francês agarrou os cabelos ao ver tamanha falta de habilidade, então ele mesmo foi apontar os canhões, sem ligar para o fato de os cossacos continuarem a sua saraivada de balas sem interrupção. Tarás viu de longe que a desgraça ameaçava os batalhões de Niezamáikov e Stiéblikiv, e então gritou com força: “Saiam de trás das carroças, rápido, e montem nos cavalos!”. Mas os cossacos não teriam conseguido fazer nem uma coisa nem outra, se Óstap não tivesse atacado bem pelo meio; ele arrancou os pavios de seis artilheiros e quase pegou os de outros quatro, mas os polacos o repeliram. Enquanto isso, o próprio capitão estrangeiro agarrou um pavio para disparar um canhão maior, que nenhum dos cossacos tinha visto até então. O canhão olhava de modo terrível com sua boca enorme, e dela espiavam centenas de mortes. E logo que ele troou, foi seguido por outros três, fazendo a terra estremecer quatro vezes numa resposta surda - e quanta desgraça eles trouxeram! Haveria mais de uma velha mãe a chorar por um cossaco, batendo no peito decrépito com suas mãos ossudas. Haveria mais de uma viúva em Glukhov, Nemirov, Tchernigov e em outras cidades. As pobrezinhas haveriam de correr todo dia até a feira, agarrando-se aos que passavam, examinando bem a todos para ver se entre eles não estaria um que era o mais amado. Mas muitas tropas cruzariam a cidade sem que jamais no meio delas estivesse aquele ser amado.

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Foi como se metade do batalhão de Niezamáikov não tivesse existido! Como uma chuva de granizo derruba de repente todo o trigal onde cada espiga brilhava semelhante a uma pesada moeda de ouro, assim foram derru126

bados os cossacos. Mas como os cossacos reagiram! Como se engalfinharam! Como se enfureceu o atamã Kukubienko, ao ver que a melhor parte de seu batalhão já não existia mais! Ele se enfiou bem no meio da batalha com o restante de seus homens. Furioso, cortou em pedacinhos o primeiro que apareceu, derrubou muitos poloneses de suas montarias, varando com a lança tanto o cavaleiro quanto o cavalo, avançou contra os artilheiros e destruiu um canhão. Então viu que logo adiante estava lutando o atamã do batalhão de Úman, e que Stiepán Guska já estava destruindo o canhão principal. Ele deixou os outros cossacos e virou-se com os seus para o centro das tropas inimigas. Por onde passavam seus homens, era aberta uma estrada; para onde se viravam, abriam uma viela! As fileiras iam ficando ralas, e os polacos caíam em feixes! Bem perto das carroças estava Vovtuzienko, e à frente, Tcherievitchenko; junto às carroças mais distantes estava Diogtiarienko, e atrás dele, o atamã Viertikhvist. Diogtiarienko ergueu dois polacos em sua lança, e em seguida atacou um terceiro, bem robusto. Esse polaco era forte e ágil, usava um adorno magnífico e trazia uns cinqüenta criados. O polonês fez Diogtiarienko se curvar, jogou-o no chão e brandiu o sabre contra ele, gritando: - Entre vocês, cães cossacos, não há ninguém que se atreva a me enfrentar! - Pois há, sim! - disse Mossi Chilo, avançando. Chilo era um cossaco forte, que mais de uma vez tinha sido atamã em missões no mar e passara por todo tipo de desgraça. Certa vez, os turcos capturaram os cossacos bem perto de Trebizonda e levaram todos como cativos para as galeras; prenderam-nos com correntes nos pés e nas mãos, sem lhes dar comida durante semanas inteiras e obrigando-os a beber a água nojenta do mar. Os pobres cativos supor-


taram tudo apenas para não renegar a fé ortodoxa. Mas o atamã Mossi Chilo não suportou: acabou pisando no sagrado mandamento, enrolou sua cabeça pecadora com um turbante asqueroso, conquistou a confiança do paxá e tornou-se o carcereiro do navio, sendo responsável por todos os prisioneiros. Os pobres cativos ficaram bastante aflitos por causa disso, pois sabiam que, se um dos seus trair a fé e se juntar ao opressor, então a mão dele será mais pesada e dolorosa do que a de qualquer outro infiel. E assim foi. Mossi Chilo pôs os cossacos em correntes novas, em filas de três; amarrava-os com tanta crueldade que lhes cortava até os ossos brancos, e ainda lhes dava pancadas na nuca. Um dia, felizes por terem conseguido um criado como aquele, os turcos fizeram um banquete e se embriagaram, esquecendo-se de seu mandamento; então ele levou todas as sessenta e quatro chaves e distribuiu aos cativos para que se libertassem e jogassem as correntes e os grilhões ao mar, e também para que pegassem os sabres e degolassem os turcos. Os cossacos recolheram então um grande espólio e retomaram gloriosos à pátria; e durante muito tempo os bandurristas enalteceram Mossi Chilo. Teriam-no escolhido para kochevói, mas ele era um cossaco muito esquisito. Às vezes

realizava ações que nem o mais sábio dos homens poderia imaginar; outras vezes era tomado pela doidice. Gastava tudo com bebedeiras e farras, tinha dívidas com todos na Siétch, e além disso, entregava-se ao roubo como um ladrão de rua: certa noite, furtou os arreios cossacos de um outro batalhão e os empenhou com um taverneiro. Por essa ação vergonhosa, amarraram-no em um poste na feira e deixaram ao lado um porrete, para que todos lhe desfechassem um golpe tão forte quanto pudessem. Mas entre todos os zaporogos não houve nenhum que levantasse o porrete contra ele, por se lembrarem de seus méritos passados. Assim era o cossaco Mossi Chilo. - Existe, sim, alguém para combatê-lo, seu cachorro! disse ele, atirando-se contra o polonês. E como se atracaram! As ombreiras e armaduras de ambos se dobravam, de tantos golpes. O inimigo polaco cortou-lhe a cota de malha, chegando a tocar seu corpo com a lâmina. Mas Chilo não se im-

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portou com isso; brandiu seu musculoso braço (e era pesado aquele braço vigoroso) e deixou o adversário atordoado com um golpe na cabeça. O elmo de cobre voou em pedaços; o polaco cambaleou e desabou; mas Chilo ainda 128

quis cortar e esquartejar aquele homem caído. Cossaco, não acabe logo com o inimigo; -é melhor olhar para trás! Mas esse cossaco não olhou para trás, e então um dos criados do morto deu-lhe uma facada no pescoço. Chilo virouse e quase atingiu aquele atrevido, mas ele desapareceu na fumaça de pólvora. De todos os lados ressoou o estrondo de mosquetes. Chilo cambaleou e sentiu que o ferimento era mortal. Ele caiu, pôs a mão sobre o ferimento e disse, virando-se para seus companheiros: “Adeus, senhores irmãos, companheiros! Que a Rússia Ortodoxa se perpetue, e seja eterna a sua glória!”. Ele semicerrou seus olhos debilitados, e a alma cossaca saiu daquele corpo rude. Logo adiante, Zadorójni prosseguia com seus homens, o atamã Viertikhvist destruía as fileiras inimigas e Balaban avançava. - E então, senhores? - disse Tarás, dirigindo aos atamanes dos batalhões. - Vocês ainda têm pólvora? Nossa força não está debilitada? Os cossacos não estão se curvando? - Ainda temos pólvora, paizinho. A força cossaca não está debilitada; os cossacos não estão se curvando! E os cossacos atacaram com mais força: desarrumaram completamente as fileiras inimigas. O coronel baixinho deu um sinal e mandou erguer oito bandeiras manchadas, a fim de reunir os homens espalhados por todo o campo. Os polacos correram para as bandeiras, mas não conseguiram se alinhar, pois logo o atamã Kukubienko investiu de novo com seus guerreiros e avançou direto para o coronel barrigudo. Este não suportou, virou o cavalo e fugiu a galope; mas Kukubienko o perseguiu através do campo todo, sem permitir que ele se juntasse ao regimento. Ao ver isso de um batalhão que estava num flanco, Stiepán Guska partiu para interceptá-lo, com um laço na mão e a cabeça inclinada perto da crina do cavalo; aproveitando o momento,


ele laçou o pescoço do polonês na primeira tentativa. O coronel ficou todo vermelho, agarrando a corda com ambas as mãos e tentando quebrá-la; mas um movimento enérgico enfiou-lhe uma lança desastrosa bem no estômago. E ali ficou ele, cravado no chão. Mas Guska também acabou mal! Os cossacos não tiveram nem tempo de piscar, e logo viram Stiepán Guska levantado por quatro lanças. O infeliz conseguiu apenas dizer: “Que morram todos os inimigos, e que a Terra Russa se rejubile eternamente!”. Os cossacos olharam ao redor; e logo adiante, num flanco, Metiélitsla dava o troco nos polacos, golpeando uns e outros; em outro flanco, o atamã Nievilitchki avançava com seus homens; perto das carroças, Zakrutigubá lutava e rechaçava o inimigo; e ao lado das carroças mais distantes, um terceiro, Pissarienko, afugentava uma tropa inteira. E mais adiante, outros lutavam e se atracavam em cima das próprias carroças. - E então, senhores? - perguntou o atamã Tarás, passando à frente de todos. - Vocês ainda têm pólvora? Nossa força continua vigorosa? Os cossacos ainda não estão se curvando? - Ainda temos pólvora, paizinho; nossa força continua vigorosa e os cossacos ainda não estão se curvando! Então Bovdiúg caiu de uma carroça. Uma bala o atingiu diretamente no peito, mas o velho reuniu toda sua força e disse: “Não lamento abandonar este mundo. Que Deus conceda um fim como esse a todos! Que a Terra Russa seja gloriosa até o fim dos séculos!”. E a alma de Bovdiúg subiu às alturas, para contar aos velhos que já tinham partido há muito tempo como eles sabiam morrer na Terra Russa e, o melhor de tudo, como sabiam morrer nela pela fé sagrada. Logo depois dele, o atamã Balaban também desabou no chão. Ele sofreu três ferimentos mortais: de lança, de bala e de uma espada pesada. Era um dos cossacos mais valentes; realizou muitos feitos quando era atamã de expedições marítimas, porém a mais célebre de todas foi uma expedição à

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costa da Anatólia. Na ocasião, tinham juntado multas moedas de ouro, tecidos, valiosos objetos turcos e todo tipo de adornos; mas sofreram uni infortúnio no caminho de volta: os pobrezinhos caíram sob os canhões turcos. 130

Bastou um disparo do navio, e metade dos barcos rodopiou e virou, e muitos deles ficaram cheios de água; porém os juncos presos às bordas evitaram que afundassem. Balaban se afastou com remadas fortes, seguindo na direção do sol, a fim de não ser visto pelo navio turco. Os cossacos passaram a noite retirando a água com caldeirões e gorros e remendando os lugares perfurados; depois fizeram velas de suas calças e fugiram apressados do navio turco, que era muito veloz. E não bastasse terem chegado sãos e salvos à Siétch, ainda trouxeram uma casula com adornos de ouro para o arquimandrita do mosteiro de Mejigórie, em Kiev, e um ornamento de prata para a igreja da Intercessão de Nossa Senhora, que ficava em Zaporójle. Agora, Balaban tinha inclinado a cabeça, sentindo os tormentos que antecedem a morte, e disse baixinho: “Eu me rendo, senhores irmãos, padecendo uma boa morte: matei sete com a espada e furei outros nove com a lança. Esmaguei muitos com meu cavalo; mas não vou me lembrar de quantos acertei com balas. Que a Terra Russa floresça eternamente!”. E sua alma partiu. Cossacos, cossacos! Não entreguem a fina flor do seu exército! Kukubienko já estava cercado; restavam apenas sete homens do batalhão de Niezamáikov, que se defendiam a muito custo, com as roupas cobertas de sangue. Ao ver aquela desgraça, o próprio Tarás partiu em seu socorro. Mas os cossacos chegaram tarde: uma lança foi cravada em seu coração antes que fossem afugentados os inimigos que o cercavam. Ele tombou silenciosamente nos braços de seus comandados; o sangue jovem escorreu em torrentes, semelhante a um vinho caro trazido da adega por criados descuidados, que escorregam na estrada e quebram a valiosa garrafa: o vinho todo se derrama no chão, e o patrão que chega correndo se desespera, pois o tinha guardado para a melhor ocasião de sua vida, para que, se Deus lhe concedesse encon-


trar na velhice um companheiro de juventude, pudesse recordar com ele os tempos idos, quando o homem se divertia mais e melhor... Kukubienko passou os olhos em redor e exclamou: “Agradeço a Deus por me deixar morrer perante os seus olhos, companheiros! Que depois de nós se possa viver ainda melhor, e que a Terra Russa, amada por Cristo, brilhe eternamente!”. E sua jovem alma partiu. Os anjos a tomaram nos braços e a levaram às alturas. Lá ele ficará bem. “Sente-se à minha direita, Kukubienko!” - dirá Jesus Cristo “Você não traiu seus companheiros, não fez nada desonesto, não abandonou o seu próximo na desgraça, guardou e protegeu a minha igreja”. A morte de Kukubienko entristeceu a todos. As fileiras cossacas já estavam bastante ralas, faltavam muitos e muitos bravos, mas ainda continuavam firmes. - E então, senhores? - perguntou Tarás aos batalhões restantes. - Vocês ainda têm pólvora? Os sabres ainda estão afiados? Nossa força não diminuiu? Os cossacos não estão cedendo? - A pólvora ainda é suficiente, paizinho! Os sabres ainda estão bons! Nossa força não diminuiu! Os cossacos não estão cedendo!

E eles avançaram novamente, como se não tivessem sofrido nenhuma

baixa. Restavam somente três atamanes ainda vivos. jorravam rios verme-

lhos por toda parte; formavam-se pontes altas com corpos de cossacos e de

inimigos. Tarás olhou para o céu; lá já tinha se formado um bando de abutres. Bem, alguém vai lucrar com tudo isso! Então Metiélitsia foi erguido numa lança. A cabeça do outro Pissarienko rodopiou e cerrou os olhos. Okhrim

Guska caiu dilacerado no chão. “Agora!” - disse Tarás, e acenou com um lenço. Óstap entendeu aquele sinal e saiu da tocaia, investindo violentamente

contra a cavalaria. Os polacos não suportaram tamanha pressão, e Óstap os perseguiu até o lugar onde havia estacas e pedaços de lanças fincados na

terra. Os cavalos começaram a tropeçar e cair, e os polacos voaram por cima

da cabeça dos animais. Nesse momento, os homens do batalhão de Korsun, que foram os últimos por trás das carroças, viram os inimigos ao alcance dos tiros e dispararam seus mosquetes.

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Os poloneses ficaram perdidos, desnorteados, ao passo que os cossacos se animaram.”A vitória é nossa!” - ressoaram de todos os lados as vozes dos zaporogos, que tocavam cornetas e hasteavam a bandeira da vitória. Os po132

lacos derrotados corriam e se escondiam em qualquer lugar. “Não, esta ainda não é a vitória definitiva! disse Tarás, olhando para os portões da cidade; e era verdade o que dizia. Os portões se abriram, e de lá saiu um regimento de hussardos, a fina flor de todos os regimentos de cavalaria. Os cavaleiros montavam alazões, muito parecidos entre si. À frente vinha um paladino, mais animado e mais belo do que todos. Os cabelos negros voavam sob o elmo de cobre; em seu braço ondulava uma valiosa echarpe, bordada pelas mãos da mais bela moça da cidade. Tarás ficou pasmo quando percebeu que era Andríi. Mas este, tomado pelo ímpeto e pelo calor da batalha, ávido por merecer o presente atado a seu braço, avançava como um jovem cão galgo, o mais belo, mais veloz e mais vigoroso de todos no bando. Basta que um experiente caçador o atice, e ele avança com as pernas jogadas no ar em linha reta e o corpo inclinado, revolvendo a neve e ultrapassando dez vezes a própria lebre no ardor de sua corrida. O velho Tarás deteve-se e ficou olhando como ele limpava o caminho à sua frente, destruindo, massacrando e desfechando golpes à direita e à esquerda. Tarás não suportou e gritou: “Como?... Contra os seus?... Filho do Cão, você está lutando contra os seus?... Mas Andríi não reconhecia quem estava à sua frente, se eram os seus ou se eram outros; ele não via nada. Madeixas e mais madeixas: era só isso que ele via; só madeixas bem compridas, um peito alvo como um cisne no lago, um pescoço branco, uns ombros e tudo mais que havia sido criado para os beijos apaixonados. “Ei, rapazes! Atraiam-no sozinho para o bosque, atraiam-no sozinho!” - gritou Tarás. Imediatamente, os trinta cossacos mais velozes se ofereceram para atraí-lo. Depois de corrigirem os gorros altos, eles avançaram em seus cavalos cortando o caminho dos hussardos. Investiram contra o flanco dos


que estavam na frente, confundiram-nos, fizeram-nos separar-se dos demais atacando uns e outros; Golokopitienko deu uma pancada nas costas de Andríi, e no mesmo instante todos fugiram dali o mais rápido possível. Como Andríi se enfureceu! Como seu sangue jovem começou a ferver nas velas! Dando um golpe no cavalo com as esporas afiadas, ele partiu velozmente atrás dos cossacos, sem olhar para trás e sem perceber que apenas vinte homens tinham conseguido acompanhá-lo. Os cossacos iam a toda velocidade em seus cavalos e viraram diretamente para o bosque. Andríi embalou e já estava quase alcançando Golokopitienko, quando de repente a mão poderosa de alguém segurou a rédea de seu cavalo. Andríi virou-se: diante dele estava Tarás! Seu corpo estremeceu, e ele ficou pálido. Um aluno que machuca outro sem querer, e recebe deste último uma reguada na face por causa disso, fica ardendo como fogo e salta enfurecido da carteira para perseguir o seu colega assustado, pronto para fazê-lo em pedaços; mas de repente ele esbarra no professor que entrava na classe: num instante o ímpeto de fúria se abranda e a raiva impotente diminui. Da mesma forma, a ira de Andríi desapareceu como se nunca tivesse existido. Agora, ele via diante de si apenas o seu terrível pai. - Bem, o que vamos fazer agora? - disse Tarás, olhando-o bem nos olhos. Mas Andríi não sabia o que dizer, e ficou imóvel, de olhos voltados para o chão. - E então, filho, seus polacos o ajudaram? Andríi permanecia calado. - Então você traiu? Traiu a fé? Traiu os seus? Vamos, desça do cavalo! Docilmente como uma criança, ele desceu do cavalo e ficou na frente de Tarás, mais vivo do que morto. - Fique aqui e não se mova! Fui eu que o gerei, e sou eu quem vai matá-lo! - disse Tarás; em seguida recuou um passo e tirou a espingarda do ombro.

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Andríi estava pálido como uma tela; notava-se que seu bigode se movia em silêncio e que ele pronunciava o nome de alguém, mas não era o nome da pátria, da mãe ou dos irmãos - era o nome da bela polaca. Tarás atirou. 134

Como uma espiga de trigo cortada pela foice, como um carneirinho que sentiu no coração a lâmina mortal, assim ele inclinou a cabeça e desabou sobre a relva, sem ter dito uma palavra. O filicida permaneceu longo tempo olhando para aquele corpo inanimado. Mesmo morto, ele ainda era belo: seu rosto enérgico, até pouco tempo cheio de força e de encanto irresistível para as mulheres, ainda expressava uma beleza original; as sobrancelhas negras como veludo fúnebre acentuavam suas feições pálidas. - O que faltava para ser um cossaco? - disse Tarás. Era alto, de sobrancelhas negras, rosto de fidalgo e braço forte na batalha! E caiu sem glória, como um cão miserável! - Paizinho, o que você fez? Foi você que o matou? disse Óstap, que chegava naquele momento. Tarás confirmou com a cabeça. Óstap olhou fixamente para os olhos do morto. Teve pena do irmão, e exclamou: - Vamos sepultá-lo de forma digna, paizinho, para que os inimigos não possam ultrajá-lo e nem as aves carniceiras o devorem. - Eles que o enterrem! - disse Tarás. - Não faltará quem chore e se lamente por ele! Bulba ficou pensando durante alguns minutos se devia abandoná-lo à voracidade dos lobos ou reverenciar sua coragem de cavaleiro, a qual um bravo deve respeitar em quem quer que seja. Então ele percebeu Golokopitienko vindo a galope em sua direção: Uma desgraça, atamã! Os polacos ganharam reforços; chegaram novas forças para ajudá-los!... Golokopitienko nem acabou de falar e Vovtuzienko chegou a galope:


- Uma desgraça, atamã! As novas forças estão vindo em bandos!... Vovtuzienko nem conseguiu terminar e Pissarienko chegou correndo, sem cavalo: - Onde você estava paizinho? Os cossacos estão à sua procura. Os atamanes Nievilitchki, Zadórojnl e Tcherievitchenko já estão mortos. Mas os cossacos continuam de pé, não querem morrer sem vê-lo; querem que você olhe para eles quando estiverem morrendo. - A cavalo, Óstap! - disse Tarás, e saiu apressado para encontrar os cossacos, a fim de olhá-los e também permitir que, na hora da morte, pudessem ver o seu atamã. Mas nem chegaram a sair do bosque; as forças inimigas já haviam cercado por todos os lados, e entre as árvores apareceram cavaleiros com sabres e lanças. “Óstap!... Coragem, Óstap!...” - gritava Tarás, e ele próprio desembainhou o sabre e começou a atacar os primeiros que apareceram. Seis deles lançaramse de repente contra Óstap; mas, pelo visto, atacaram na hora errada: a cabeça de um saiu voando; outro deu meia-volta e recuou; o terceiro foi atingido na costela por uma lança; o quarto era mais ágil e desviou a cabeça de um tiro, mas a bala atingiu o peito do cavalo, e o animal furioso empinou, desabou no chão e esmagou o cavaleiro. “Muito bem, filho!... Muito bem, Óstap!...” - gritou Tarás. - “Estou logo atrás de você!...” E continuava rechaçando os que atacavam. Tarás lutava, desfechava golpes de sabre, atingia a cabeça de uns e de outros, mas não deixava de olhar para Óstap à sua frente; e viu que agora ele enfrentava oito de uma só vez. “Óstap!... Óstap, não se entregue!...” Mas Óstap foi vencido; jogaram um laço em seu pescoço, amarraram-no e o levaram. “Óstap, Óstap!...” - gritava Tarás, abrindo caminho na direção do filho e ceifando todos que encontrava. - “ Óstap, Óstap!... “ Mas naquele exato momento foi atingido por uma pedrada. Tudo à sua frente começou a girar e girar. Por um segundo, de maneira muito confusa, apareceram diante de seus olhos cabeças, lanças, fumaça, brilho de disparos e ramos com folhas de árvores. Ele desabou no chão como um carvalho cortado. E um nevoeiro cobriu seus olhos.

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-E

u dormi demais! - disse Tarás, despertando como se fosse de uma forte ressaca e tentando reconhe-

cer os objetos que o rodeavam. Uma fraqueza terrível se apoderava de seus membros. As paredes e os cantos de uma sala desconhecida praticamente se moviam diante dele. Por fim percebeu que à sua frente estava sentado Tóvkatch, que parecia escutar atentamente a sua respiração. “Sim” - pensou Tóvkatch consigo mesmo -, “quase que você adormece para sempre!” Mas não disse nada e fez um sinal com o dedo para que ficasse calado.


- Mas, diga-me, onde estou? - perguntou Tarás, forçando a memória para tentar lembrar o que tinha acontecido. - Cale-se! - gritou seu companheiro em tom severo. O que mais você 138

quer saber? Não vê que está todo cortado? Já faz duas semanas que estamos cavalgando sem descanso, e você delirando, com febre e dizendo tolices. Esta foi a primeira vez que dormiu tranqüilo. Cale-se, se não quiser fazer o mal a si mesmo. Mas Tarás continuava tentando organizar seus pensamentos e lembrar o que tinha acontecido. - Mas eu não fui cercado e agarrado pelos polacos? Eu não tinha nenhuma chance de escapar daquele bando, não é? - Cale-se, já disse, filho do Cão! - gritou Tóvkatch, irritado como a ama que perdeu a paciência com uma criança levada. - O que adianta saber como escapou? O importante é que escapou. Apareceram pessoas que não o traíram - e é só isso! Ainda temos muitas noites para cavalgarmos juntos. Você acha que passou por um cossaco qualquer? Não, ofereceram dois mil ducados por sua cabeça. - E Óstap? - gritou Tarás, esforçando-se para se erguer um pouco mais, e de repente lembrou que Óstap fora preso e amarrado diante de seus olhos e que agora estava nas mãos dos polacos. E a angústia tomou conta daquela cabeça velha. Ele rasgou e arrancou todos os curativos de seus ferimentos, atirou-os longe, queria dizer algo bem alto, mas em vez disso pronunciou apenas tolices; a febre e o delírio se apoderaram dele novamente, e ressoaram palavras desconexas e sem sentido. Enquanto isso, seu fiel companheiro permanecia à sua frente, xingando e descarregando um sem-número de censuras e palavras violentas. Por fim ele o agarrou pelas pernas e braços, enfaixou-o como se fosse uma criança, arrumou os curativos, enrolou-o numa pele de boi, amarrou numa tala e, depois de prendê-lo à sela com uma corda, continuou o caminho a galope outra vez.


- Nem que seja morto, hei de levá-lo! Não vou permitir que os polacos zombem de sua linhagem cossaca, cortando seu corpo em pedaços para depois jogá-lo na água. E se seus olhos tiverem de ser arrancados, que seja por uma águia da nossa estepe, e não da polaca, não uma que tenha voado das terras polonesas. Nem que seja morto, hei de levar você até a Ucrânia! Assim falava o companheiro fiel. Ele cavalgou dias e noites sem descanso e o levou inconsciente à Siétch de Zaporójie. Ali começou a tratá-lo incansavelmente com ervas e compressas; encontrou uma sábia judia que preparou diferentes remédios durante um mês; e afinal Tarás ficou melhor. Fossem os medicamentos ou seu vigor férreo, o fato é que dentro de um mês e meio ele estava de pé; as feridas tinham se fechado, e apenas umas cicatrizes de sabre revelavam que um dia o velho cossaco havia sofrido cortes profundos. Todavia, ele estava visivelmente sombrio e abatido. Três rugas profundas cravaram-se em sua testa e nunca mais saíram dali. Ele olhou ao redor: tudo era novo na Siétch, e todos os velhos companheiros tinham morrido. Não havia mais nenhum daqueles que defendiam a justiça, a fé e a fraternidade. Também aqueles que partiram com o kochevói atrás dos tártaros já tinham desaparecido há tempos: todos perderam a vida, todos pereceram: uns caíram gloriosamente em combate; outros morreram de sede e de fome no meio das salinas da Criméia, e outros por não suportarem a vergonha do cativeiro; o próprio kochevói também já havia deixado este mundo, assim como todos os seus velhos companheiros; e aquilo que fora um dia a ardorosa força cossaca estava agora coberta de mato. A sensação era a de que tinha havido um banquete, um grande e ruidoso banquete; e agora a louça estava toda em pedaços, não restava uma só gota de vinho em lugar nenhum e as taças valiosas e outros recipientes haviam sido dilapidados por convidados e criados, enquanto o dono da casa, aflito, pensava: “Antes não tivesse havido banquete!”. Em vão tentavam entreter e animar Tarás; em vão os bandur-

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ristas barbudos e grisalhos, que passavam em duplas ou trios, divulgavam as façanhas daquele cossaco. Ele olhava tudo de forma severa e indiferente, em seu rosto imóvel transparecia uma amargura inextinguível, e cabisbaixo, 140

ficava murmurando: “Meu filho! Meu Óstap!”. Os zaporogos se prepararam para uma expedição marítima. Duzentos barcos foram lançados no Dniepr, e então a Ásia Menor viu os cossacos de cabeças raspadas e topetes longos passarem seu próspero litoral a ferro e fogo; viu os turbantes de seus moradores maometanos espalhados como suas inúmeras flores pelos campos ensangüentados ou boiando perto da costa. Viu muitas bombachas de zaporogos manchadas de breu, muitos braços musculosos com velas negras. Os zaporogos devoraram as uvas e destruíram todas as videiras, deixaram montes de estrume nas mesquitas e usaram os valiosos xales da Pérsia como cinturão, passando-os em volta de seus cafetãs manchados. Muito tempo depois disso, ainda se encontravam cachimbos cossacos naqueles lugares. Quando retomavam alegremente, foram perseguidos por um navio turco com dez canhões; uma descarga simultânea dessas armas dispersou as frágeis embarcações cossacas como aves. Um terço delas foi para o fundo do mar, porém as outras se reuniram de novo e chegaram à foz do Dniepr com uma dúzia de barris cheios de moedas de ouro. No entanto, nada disso animava Tarás. Ele saía para os prados e estepes como se fosse caçar, mas sua munição permanecia intacta. Então largava a espingarda e sentava-se na beira do mar, cheio de tristeza. Ali permanecia por longo tempo, cabisbaixo, e sempre dizendo: “Meu Óstap! Meu Óstap!”. À sua frente se estendia o brilhante Mar Negro; uma gaivota gritava num canavial distante; seu bigode branco tornava-se prateado, e as lágrimas escorriam uma atrás da outra. E finalmente Tarás não suportou mais. “Aconteça o que acontecer, eu vou descobrir o que houve com ele. Estará vivo? Sepultado? Ou nem sepultu-


ra ele teve? Custe o que custar, eu vou descobrir!” Uma semana depois, Tarás apareceu na cidade de Úman; ele estava armado, a cavalo, com lança, sabre, cantil de viagem na sela, potes de campanha com farinha de aveia, cartuchos de pólvora, correias para montaria e outros equipamentos. Ele foi direto para uma casinha suja e manchada, que tinha janelas pequenas, quase invisíveis e enegrecidas por alguma coisa; a chaminé estava tapada com um trapo, e o telhado esburacado coberto de pardais. Havia um monte de lixo bem na frente da porta. Na janela apareceu a cabeça de uma judia, que usava uma touca com pérolas negras. - Seu marido está? - disse Bulba, descendo do cavalo e prendendo a rédea num gancho de ferro que ficava próximo à porta. - Está - disse a judia, que saiu imediatamente com uma tigela de trigo para o cavalo e um copo de cerveja para o cavaleiro. - Onde está ele? - Está na outra sala, rezando - exclamou a judia, fazendo uma saudação e desejando saúde no momento em que Bulba levou o copo aos lábios. - Fique aqui e dê água e comida ao meu cavalo; eu vou conversar com ele sozinho. Tenho um negócio a propor. Esse judeu era o conhecido Iánkel. Ele já tinha se tornado arrendatário e estalajadeiro; pouco a pouco, estendera suas garras sobre todos os proprietários e fidalgos poloneses dos arredores, sugando completamente o dinheiro deles e deixando sua forte marca judaica naquele país. Num raio de três milhas, não restava nenhuma isbá inteira: tudo estava desabando e se deteriorando, tudo era consumido na bebida, restando apenas miséria e farrapos; como depois de um incêndio ou de uma peste, a região inteira tinha desaparecido. E se Iánkel tivesse permanecido ali por mais dez anos, certamente teria feito desaparecer aquele território todo. Tarás entrou na sala. O judeu estava rezando, coberto por um sudário bastante sujo, e virou-se para cuspir

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pela última vez, seguindo um costume de sua fé; então, de repente seus olhos encontraram Tarás, que estava de pé atrás dele. Aos olhos de Iánkel, antes de mais nada, apareceram os dois mil ducados oferecidos pela cabeça do cos142

saco; mas ele se envergonhou de sua ganância e se esforçou para reprimir aquela idéia fixa de riqueza que, como um verme, corrói a alma do judeu. - Ouça, Iánkel! - disse Tarás ao judeu, que o saudou com uma reverência e trancou a porta cuidadosamente para que não os vissem. - Eu salvei a sua vida; os zaporogos o teriam feito em pedaços como um cachorro. Agora é sua vez; agora me faça um favor! O rosto do judeu ficou meio franzido. - Que favor? Se for algo que eu possa fazer, por que não? - Não diga nada. Leve-me a Varsóvia. - A Varsóvia? Como a Varsóvia? - disse Iánkel, erguendo as sobrancelhas e os ombros de espanto. - Não me diga nada. Leve-me a Varsóvia. Aconteça o que acontecer, eu quero vê-lo mais uma vez e lhe dizer ao menos uma palavra. - Dizer uma palavra a quem? - A ele, a Óstap, o meu filho. - Mas o senhor não soube que... - Sei, sei de tudo: ofereceram dois mil ducados por minha cabeça. Aqueles idiotas sabem o quanto ela vale! Eu lhe darei cinco mil ducados. Tome, aqui estão dois mil - Bulba despejou dois mil ducados de uma bolsa de couro. - Darei o restante assim que eu voltar. O judeu agarrou logo uma toalha e cobriu os ducados com ela. - Ai, que moeda maravilhosa! Ai, que moeda boa! dizia ele, girando um ducado entre os dedos e mordendo-o. - Eu acho que o homem de quem o senhor tirou estes ducados não sobreviveu nem uma hora: deve ter ido imediatamente até o rio e se atirou lá dentro.


- Eu não queria lhe pedir isso. Talvez eu mesmo pudesse encontrar o caminho para Varsóvia, mas os malditos polacos poderiam me reconhecer de algum modo e me prender, pois não tenho multa criatividade. Mas vocês, judeus, nasceram para isso. Vocês enganam até o diabo, conhecem todo tipo de truques; foi por isso que vim até aqui! Além disso, sozinho eu não conseguiria nada em Varsóvia. Agora atrele a carroça e me leve para lá! - O senhor está pensando que é só pegar a égua, o engate e dizer: “Eia, vamos lá, rucilha!”. Acha que é possível levar o senhor assim, sem tê-lo escondido? - Bem, então me esconda como quiser. Que tal num barril vazio? - Ai, ai! O senhor acha mesmo que é possível escondê-lo num barril? O senhor não sabe que qualquer um vai pensar que o barril tem aguardente? - Ora, deixe que pensem. Como? Deixar que pensem que é aguardente? - disse o judeu, que agarrou os cabelos e depois jogou as mãos para o alto. - Ora, por que ficou tão espantado? - O senhor não sabe que Deus criou a aguardente para que todo mundo experimentasse? Ali são todos gulosos, glutões: um fidalgo polaco correria umas cinco verstas atrás do barril, faria um buraquinho e veria logo que dali não escorre nada; e então diria: “Um judeu não carregaria um barril vazio; há alguma coisa ali, sem dúvida. Agarrem o judeu, prendam o judeu, peguem todo o dinheiro do judeu, coloquem o judeu na cadeia!”. Pois tudo que acontece de ruim sempre cai em cima do judeu; todo judeu é tomado por um cachorro; todo mundo pensa que, se é judeu, então não é gente. - Bem, então me coloque numa carroça de peixes! - Não pode ser, senhor, juro por Deus que não pode ser. Agora, em toda a Polônia, as pessoas estão famintas como cães: vão roubar o peixe e descobrir o senhor. - Então me leve em cima do diabo, mas me leve!

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- Escute, escute, senhor! - disse o judeu, arregaçando as mangas e aproximando-se de Bulba com os braços abertos. - Eis o que faremos. Agora estão construindo fortalezas e castelos em todo lugar; da Alemanha chegaram 144

engenheiros franceses, e por isso estão carregando muitas pedras e tijolos pelas estradas. O senhor se deitará no fundo de uma carroça, e eu colocarei tijolos por cima. O senhor é forte e saudável, então não faz mal se a carga ficar um pouco pesada; eu farei um buraquinho embaixo da carroça para alimentá-lo. - Faça o que quiser, mas me leve! Uma hora depois, a carroça com tijolos saiu de Úman atrelada a dois cavalos magros. O comprido Iánkel montava um deles; suas madeixas longas e encaracoladas balançavam embaixo do solidéu judaico à medida que ele, alto como um poste colocado na estrada, sacolejava em cima do cavalo.




N

a época em que sucederam os acontecimentos aqui contados, nas fronteiras ainda não havia fiscais e

guardas, o terror dos empreendedores, por isso qualquer um podia transportar o que lhe desse na telha. Se alguém fazia uma busca ou uma revista, isto se dava, em larga medida, para sua própria satisfação, principalmente se na carroça houvesse objetos atraentes e se ele tivesse poder e força para isso. Mas os tijolos não tinham pretendentes e chegaram sem nenhum obstáculo até os portões principais da cidade. Em sua jaula apertada, Bulba só conseguia ouvir barulho, gritos de carroceiros e mais nada. Saltitando em seu trotador


pequeno e coberto de poeira, Iánkel deu algumas voltas e virou para uma rua escura e estreita, que era chamada de Rua Suja ou Rua dos judeus, pois ali realmente encontravam-se os judeus de quase toda Varsóvia. Essa rua 148

era extraordinariamente parecida com o interior de um pátio dos fundos. Parecia que o sol nunca chegava ali. As casas de madeira pretejadas, com janelas cheias de varas estendidas, aumentavam ainda mais a escuridão. De vez em quando se avermelhava entre elas um muro de tijolos, mas, em muitos lugares, também este ficava completamente negro. Às vezes, apenas o alto de algum pedaço rebocado do muro era tocado pelo sol, e então brilhava com uma brancura que encandeava os olhos. Tudo ali era muito grosseiro: tubos, trapos, cascas de frutas e tinas quebradas. Qualquer coisa que não prestava era jogada na rua, deixando aos transeuntes o prazer de experimentar todo tipo e sentimentos por aquele monturo. Um cavaleiro em sua montaria quase alcançava com a mão as varas estendidas por cima da rua, entre as casas, e que serviam para pendurar meias judaicas, calças curtas e até ganso defumado. Às vezes, aparecia numa janela decrépita a carinha bem bonita de uma judia, adornada por um colar de contas escuras. Um bando de crianças judias, sujas, maltrapilhas e de cabelos encaracolados, gritava e rolava na imundície. Um judeu ruivo, com o rosto cheio de sardas que o faziam parecer um ovo de pardal, espiou de uma janela e começou a falar com Iánkel na sua língua indecifrável. Iánkel entrou num pátio. Pela rua passava um outro judeu, que parou e também entrou na conversa; quando Bulba finalmente saiu debaixo dos tijolos, ele viu três judeus conversando acaloradamente. Iánkel virou-se para Tarás e disse que tudo seria feito, que seu Óstap estava numa prisão da cidade e que, embora fosse difícil persuadir os guardas, ele daria um jeito de conseguir uma visita. Bulba entrou numa casa com os três judeus. Os judeus começaram outra vez a conversar entre si naquela língua incompreensível. Tarás olhou para cada um deles. Parecia que algo o deixara


muito comovido: em seu rosto rude e indiferente inflamou-se a chama demolidora da esperança, aquela esperança que às vezes visita uma pessoa no último grau do desespero, e seu velho coração começou a bater como se fosse o de um jovem. - Escutem, judeus! - disse ele, e em suas palavras havia alguma coisa exaltada. - Vocês são capazes de fazer tudo neste mundo, mesmo que tenham de escavar o fundo do mar; um antigo provérbio já diz que, se um judeu quiser roubar, ele roubará até a si mesmo. Libertem meu filho Óstap! Permitam que ele escape das mãos do diabo. Eu já prometi doze mil ducados a este homem; pois vou acrescentar mais doze. Venderei tudo que tenho - taças valiosas, o ouro enterrado, a casa e até a última peça de roupa - e firmarei um contrato vitalício, pelo qual tudo que eu conseguir numa guerra será dividido com vocês. - Oh, é impossível, caro senhor, é impossível! - disse Iánkel, num suspiro. - Não, é impossível! - disse outro judeu. Os três judeus olharam uns para os outros. - E se tentássemos? - disse o terceiro, olhando timidamente para os outros dois. - Talvez, Deus permita.

Os três judeus começaram a falar em alemão. Embora Bulba tivesse

apurado o ouvido, não conseguia compreender coisa alguma; ele entendeu apenas a palavra “Mardoqueu”, que era sempre repetida, e mais nada.

- Escute, senhor! - disse Iánkel. - Precisamos do conselho de um homem

sem igual neste mundo. Ui, ui! É tão sábio quanto Salomão, e se ele não puder fazer uma coisa, então ninguém no mundo pode! Fique aqui, tome a chave, e não deixe ninguém entrar!

Os judeus saíram para a rua.

Tarás trancou a porta e, através de uma janelinha, espiou aquela

avenida judaica imunda. Os três judeus pararam no meio da rua e começaram a conversar de maneira acalorada; a eles juntou-se um quarto, e afinal, um

quinto. Ele ouviu repetirem outra vez: “Mardoqueu, Mardoqueu”. Os judeus

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olhavam constantemente para um lado da rua; por fim, uma perna usando

sapato judaico saiu detrás de uma casa deplorável e apareceram as abas de um

cafetã curto. “Ah, Mardoqueu, Mardoqueu!” - gritaram os judeus a uma só voz. 150

Um judeu magro, um pouco mais alto que Iánkel, porém muito mais enrugado, com o lábio superior enorme, aproximou-se daquele grupo impaciente; todos

se apressaram a lhe contar o que se passava, interrompendo uns aos outros, enquanto Mardoqueu olhava de vez em quando para a pequena janela; então

Tarás adivinhou que a conversa era sobre ele. Mardoqueu agitava os braços, ouvia, interrompia a conversa, cuspia de lado a todo instante e, arregaçando

as abas do cafetã curto, enfiou a mão no bolso e tirou algumas bugigangas, mostrando ainda suas calças esfarrapadas. Por fim, fizeram tanta balbúrdia que um deles, que estava vigiando, teve de fazer um sinal de silêncio; Tarás começou a temer por sua segurança, mas depois se acalmou, ao lembrar-se de

que os judeus não podem discutir senão na rua, e que nem mesmo o demônio entende a língua deles.

Passados uns dois minutos, os judeus entraram juntos na casa.

Mardoqueu aproximou-se de Tarás, deu um tapinha em suas costas e disse: “Quando Deus e nós queremos fazer algo, tudo dá certo”.

Tarás olhou para aquele Salomão sem igual neste mundo e obteve alguma esperança. De fato, sua aparência podia incutir alguma confiança: seu lábio superior era simplesmente monstruoso; a espessura dele, sem dúvida, fora aumentada por razões desconhecidas. Na barba daquele Salomão havia apenas quinze fios, e todos do lado esquerdo. Seu rosto tinha tantas marcas de surras recebidas por causa de sua audácia que, certamente, ele perdera a conta e passou a considerá-las como sinais de nascença. Mardoqueu saiu junto com os companheiros cheios de admiração por sua sabedoria. Bulba ficou sozinho. Ele estava numa condição estranha, incomum: pela primeira vez na vida, sentia-se apreensivo. Sua alma entrara num estado febril. Ele não era o mesmo de antes, inflexível, rígido e forte como um carvalho; agora era um fraco, sem ânimo. Ele estremecia a cada


ruído, a cada vulto judaico que aparecia no fim da rua. E foi nesse estado que Tarás passou o dia todo: não comeu nem bebeu, e seus olhos não se despregaram da janelinha nem por um instante. Finalmente, tarde da noite apareceram Mardoqueu e Iánkel. O coração de Tarás parou. - E então? Tudo certo? - perguntou ele, com a impaciência de um cavalo selvagem. Mas antes mesmo que os judeus tomassem coragem para responder, Tarás percebeu que Mardoqueu já não tinha aquelas últimas madeixas que, embora bastante desagradáveis, enrolavam-se em forma de anéis por baixo do solidéu. Notava-se que ele queria dizer algo, mas falou tanta coisa absurda que Tarás não entendeu nada. O próprio Iánkel levava constantemente a mão à boca como se estivesse sofrendo de um resfriado. - Oh, caro senhor! - disse Iánkel. - Agora é completamente impossível! Por Deus, é impossível! Essa gente é tão ruim que merece levar uma cuspida na cara. Mardoqueu dirá isso também. Mardoqueu fez o que nenhum homem no mundo faria, mas Deus não quis que fosse assim. Há três mil soldados, e amanhã vão executar todos os prisioneiros. Tarás olhou nos olhos dos judeus, com paciência e sem cólera. - Mas se o senhor quiser vê-lo, é preciso que seja amanhã bem cedo, antes do sol nascer. As sentinelas concordaram, e o chefe da guarda prometeu. Mas que eles não alcancem a graça no outro mundo! Meu Deus! Que gente gananciosa! Nem entre nós existe gente assim: dei cinqüenta ducados a cada um, e ao chefe... - Está bem. Leve-me até ele! - exclamou Tarás, decidido, e toda a firmeza retornou à sua alma. Ele concordou com a proposta de Iánkel de se disfarçar de conde estrangeiro que chegava da Alemanha, usando um traje previamente arrumado por aquele judeu perspicaz. Já era noite. O dono da casa, o conhecido judeu ruivo e sardento, pegou um colchão surrado coberto por uma esteira

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e o colocou sobre um banco para Bulba. Iánkel se deitou no chão, sobre um colchão idêntico. O judeu ruivo tomou uma pequena dose de licor, tirou seu cafetã curto e ficou de meias e sapatos, parecendo um frango; depois meteu152

se com sua esposa numa espécie de armário. Duas crianças judias, iguais a dois cachorrinhos domésticos, deitaram-se ao lado do armário, no chão. Mas Tarás não dormiu; permaneceu sentado e imóvel, tamborilando suavemente na mesa; mantinha o cachimbo na boca e soltava fumaça, em razão da qual o judeu espirrava meio acordado e cobria o nariz com o cobertor. O céu mal tinha sido tocado pelo anúncio pálido da aurora, e Tarás já cutucou Iánkel com o pé. - Levante-se, judeu, e me dê a roupa de conde. Ele se vestiu num instante; tingiu de negro o bigode e as sobrancelhas e pôs um pequeno gorro escuro no alto da cabeça; nenhum dos cossacos mais próximos poderia reconhecê-lo. Ele parecia não ter mais do que trinta e cinco anos. Uma cor saudável tocava suas faces, e até as cicatrizes lhe conferiam um certo ar soberano. A roupa, decorada a ouro, caía-lhe muito bem. As ruas ainda dormiam. Nenhum comerciante ainda havia aparecido na cidade com uma caixa de mercadorias nas mãos. Bulba e Iánkel chegaram a um edifício que tinha o aspecto de uma garça sentada. Era baixo, largo,

enorme e escuro, e de um lado, semelhante ao pescoço de uma cegonha, precipitava-se uma torre estreita, no alto da qual despontava um pedaço do

telhado. Esse edifício se prestava a uma variedade de funções: servia como

quartel, prisão e até tribunal penal. Os nossos viandantes entraram pelo

portão e viram-se no meio de uma sala espaçosa ou de um pátio coberto. Cerca de mil homens dormiam juntos. À frente havia uma porta baixa, e ao

lado dela estavam sentados dois sentinelas disputando um jogo qualquer, que consistia em bater um na mão do outro com dois dedos. Eles prestaram

pouca atenção aos visitantes, e só viraram as cabeças quando Iánkel disse: Somos nós. Estão ouvindo, senhores? Somos nós.

- Entrem! - disse um deles, abrindo a porta com uma mão e oferecendo

a outra ao companheiro para receber os golpes.


Eles entraram num corredor estreito e escuro, que os levou de novo a uma sala igual à anterior, com janelinhas pequenas no alto. - Quem vem lá? - gritaram algumas vozes; e Tarás viu uma considerável quantidade de heiduques bem armados. Não podemos deixar ninguém entrar. - Somos nós! - gritou Iánkel. - Por Deus, somos nós, ilustres senhores. Mas ninguém lhe deu ouvido. Felizmente, nessa hora aproximou-se um gordão, que dava indícios de ser o chefe, pois xingava com mais força do que os outros. - Somos nós, o senhor já nos conhece. E o senhor conde vai agradecer ainda mais. - Com mil demônios, deixem-nos passar! E mais ninguém!

que

ninguém tire o sabre nem fique brigando pelo chão como cachorro!... Nossos viandantes já não ouviram a continuação daquela ordem eloqüente. - Somos nós... sou eu... somos dos seus! - dizia Iánkel a qualquer um que encontravam. - E então, podemos entrar agora? - perguntou ele a um dos guardas, quando finalmente chegaram ao final do corredor. - Podem, só não sei se deixarão vocês entrarem na prisão. Ian não está mais lá; há um outro no lugar dele - respondeu o sentinela. - Ai, ai, ai! - exclamou baixinho o judeu. - Isso é mau, caro senhor! - Vamos! - exclamou Tarás obstinadamente. O judeu obedeceu. Ao lado das portas do subsolo, que terminavam em forma de uma ponta para o alto, havia um heiduque com bigode dividido em três partes: a de cima ia para o alto, a segunda para frente e a terceira para baixo, o que o deixava bastante parecido com um gato. O judeu encolheu-se todo e chegou bem perto do guarda: - Vossa Excelência! Ilustríssimo Senhor! - Está falando comigo, judeu? - Sim, Ilustríssimo Senhor!

153


- Hum... Mas sou apenas um heiduque - disse o bigodudo, com os olhos mais animados. - Pois juro por Deus que eu pensava que era o próprio voievoda. 154

Ai, ai, ai!... - nisso o judeu virou a cabeça e esticou os dedos. - Ai, que aparência imponente! É um coronel, juro por Deus, um perfeito coronel! Bastava mais uma ou outra coisinha e seria um coronel! Seria preciso apenas que o senhor montasse numa égua veloz como uma mosca e saísse comandando regimentos! O heiduque corrigiu a parte inferior do bigode, enquanto seus olhos ficavam bem alegres. - Que gente são os militares! - continuou o judeu. Oh, Deus, que gente boa! Alamares, insígnias... Eles brilham como o sol! E quando as moças vêem os militares... ai, ai, ai!... O judeu balançou a cabeça de novo. O heiduque alisou a parte superior do bigode e emitiu por entre os dentes um som meio parecido com o relincho de um cavalo. - Peço que o senhor me faça um obséquio! - continuou o judeu. - Este príncipe chegou do exterior e deseja ver os cossacos. Ele nunca viu que tipo de gente é essa. A presença de barões e condes estrangeiros era bastante comum na Polônia; não raro, eram atraídos unicamente pelo desejo de ver aquele recanto semi-asiático da Europa, pois consideravam que a Moscóvia e a Ucrânia estavam localizadas na Ásia. Por isso, depois de fazer uma profunda reverência, o heiduque achou conveniente acrescentar algumas palavras: - Não sei por que Vossa Excelência deseja vê-los disse ele. - Os cossacos são cães, e não gente. E eles têm uma religião que ninguém respeita. - Está mentindo, seu filho do Cão! - disse Bulba. Você, sim, é um cachorro! Como se atreve a dizer que não respeitam nossa fé? É a sua fé herege que não respeitam!


Eh, eh! - disse o heiduque. - já sei quem é você, amigo: você é um daqueles que estão presos aqui. Espere aí, que eu vou chamar os guardas. Tarás percebeu sua imprudência, mas a irritação e a teimosia o impediam de pensar num modo de corrigi-la. Felizmente, Iánkel interveio naquele exato momento. - Ilustríssimo senhor! Como é possível que um conde seja um cossaco? Se ele fosse um cossaco, onde arranjaria esse traje e essa aparência de conde? - Deixe de histórias!... - e o heiduque já tinha aberto a boca para gritar. - Cale-se, Vossa Real Majestade! Cale-se, pela graça de Deus! - gritou Iánkel. - Cale-se! Nós lhe pagaremos de um jeito que o senhor nunca viu: vamos lhe dar dois ducados de ouro. - Ora essa! Dois ducados?! Dois ducados não servem para nada: isso eu dou ao barbeiro para fazer apenas metade da minha barba. Dê aqui cem ducados, judeu! - Então o heiduque torceu a parte superior do bigode. - Se não me der cem ducados, vou gritar agora mesmo! - Mas tanto assim?! - disse o judeu pálido e angustiado, desamarrando sua sacola de couro. Contudo, ele ficou feliz por não trazer um valor maior na sacolinha e pelo heiduque não saber contar acima de cem. - Senhor, senhor! Vamos embora! Está vendo como essa gente é ruim? - disse Iánkel ao perceber que o heiduque examinava o dinheiro na mão como se lamentasse não ter pedido mais. - E então, heiduque dos diabos? - disse Bulba. - Pegou o dinheiro e não vai nos deixar passar? Não, você tem de deixar. Se já aceitou o dinheiro, então não pode nos impedir. - Ora, vão para o diabo! Senão vou denunciá-los agora mesmo, e aí vocês vão ver... Vão embora, eu já disse, rápido! - Senhor, senhor! Vamos! Por Deus, vamos! Que o diabo o carregue! Tomara que tenha um sonho que lhe dê vontade de cuspir! - gritou o pobre Iánkel.

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Lentamente, de cabeça baixa, Bulha virou-se e foi andando, seguido pelas broncas de lánkel, que era devorado pelo desgosto ao pensar nos ducados perdidos. 156

- Por que foi ofendê-lo? Deixe aquele cachorro xingar! Essa gente é assim mesmo, não consegue viver sem xingar! Oh, diacho, quanta felicidade Deus dá aos homens! Cem ducados só para nos enxotar! Mas de um judeu arrancam até as madeixas, socam-lhe tanto a cara que dá pena de ver, mas ninguém vai lhe dar cem ducados. Oh, meu Deus! Senhor misericordioso! Mas aquele revés teve muita influência sobre Bulba, e foi expresso numa chama devoradora em seus olhos. - Vamos! - disse ele de repente, como se tivesse se animado. - Vamos para a praça. Quero ver como vão torturá-lo. - Ai, senhor! Para que ir até lá! Já não podemos ajudá-lo. - Vamos! - disse Bulba, obstinado; e o judeu, como uma ama, seguiu atrás dele. Não foi difícil encontrar a praça onde deveria ser realizada a execução: o povo ia em massa para lá. Naquele século rude, as execuções constituíam um dos mais notáveis espetáculos, e não apenas para a ralé, mas também para as classes mais elevadas. Uma multidão de velhas, das mais devotas, e um sem-número de moças jovens e mulheres, daquelas mais medrosas, que depois ficam sonhando a noite inteira com cadáveres ensangüentados e gritando durante o sono como um hussardo bêbado, não deixavam de espiar esses acontecimentos. “Ai, que suplício!” - gritavam muitas delas com uma febre histérica, cobrindo os olhos e virando o rosto, embora às vezes ficassem olhando bastante tempo. Havia aquelas pessoas que, de boca aberta e de braços estendidos para frente, desejavam se jogar por cima da cabeça dos outros para ver melhor. Naquela multidão de cabeças estreitas, pequenas e ordinárias, sobressaía o rosto gordo de um açougueiro, que observava todo o processo com ar de um perito no assunto e conversava em monossílabos


com um mestre-de-armas, a quem chamava de compadre, pois, nos dias de festa, embriagava-se com ele na mesma taverna. Algumas pessoas discutiam acaloradamente, outras até faziam apostas; mas a maior parte era daqueles que olham para o mundo e seus acontecimentos cutucando o nariz com o dedo. No primeiro plano, ao lado dos mais bigodudos, que formavam a guarda municipal, estava um jovem fidalgo polaco, ou pelo menos assim parecia; usava um traje militar e decerto trazia sobre si tudo que possuía, a ponto de em sua casa restarem apenas uma camisa esfarrapada e umas botas velhas. Em seu pescoço, uma sobre a outra, pendiam duas correntes com moedas. Ele estava com sua amada, Iuzissia, e olhava em volta o tempo todo para que ninguém sujasse o seu vestido de seda. O jovem lhe explicava tudo tão bem que não seria possível acrescentar mais nada. “Essa gente que você está vendo, querida Iuzissia” - dizia ele -, “veio para ver como os criminosos são executados. Aquele que você vê ali, querida, segurando um machado e outros instrumentos, é o carrasco; é ele quem vai executar. Quando começar o suplício da roda e outras torturas, o criminoso ainda estará vivo; mas quando for decapitado, querida, ele morrerá na hora. Antes ele vai gritar e se debater, mas logo que o decapitarem, não poderá gritar, nem comer e nem beber, querida, pois não terá mais a cabeça.” E Iuzissia ouvia tudo com

pavor e curiosidade. Os telhados das casas estavam cobertos de gente. Umas

caras estranhas, usando bigode e algo parecido com toquinhas, espiavam das clarabóias. Nas sacadas, embaixo dos baldaquinos, estavam sentados os aristocratas. A bela mão de uma senhorinha risonha e brilhante como

açúcar repousava no peitoril. Os senhores ilustres, bastante encorpados, olhavam com ar de importância. Um lacaio, vestindo um traje brilhante com

as mangas dobradas, servia diferentes bebidas e iguarias. A todo momento, uma menina travessa agarrava doces e frutos e os atirava no povo. Uma multidão de cavaleiros famintos se aproximava estendendo seus gorros, e

um fidalgo comprido, cuja cabeça despontava acima dos demais, usando um cafetã vermelho e desbotado com cordões dourados e enegrecidos, agarrava

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a iguaria antes de todos, graças à ajuda de seus braços longos; depois ele beijava a presa obtida, apertava-a contra o coração e a colocava na boca. Um falcão, preso numa gaiola dourada que pendia sob a sacada, também era um 158

espectador: com o bico inclinado e uma pata recolhida, ele examinava o povo com atenção. Mas de repente, a multidão começou a murmurar, e ressoaram vozes de todos os lados: “Estão trazendo... estão trazendo! São os cossacos!... Eles vinham com as cabeças descobertas, ostentando seus topetes longos, e com a barba crescida. Vinham sem medo, sem tristeza, mas com uma altivez silenciosa; suas roupas tinham se desgastado e balançavam em forma de trapos velhos; eles não olharam e nem saudaram o povo. À frente de todos estava Óstap. O que sentiu o velho Tarás quando viu o seu Óstap? O que teria se passado em seu coração? Do meio da multidão, ele olhava para o filho e não perdia um movimento seu. Eles se aproximaram do local da execução. Óstap deteve-se. A ele cabia ser o primeiro a beber daquele cálice amargo. Ele olhou para os companheiros, ergueu os braços e exclamou bem alto: - Conceda, oh Deus, que nenhum desses hereges desonrados possam ouvir um cristão se queixar! Que nenhum de nós pronuncie uma só palavra! Depois disso, ele se aproximou do cadafalso. - Muito bem, filho, muito bem! - disse Bulba silenciosamente, e baixou sua cabeça grisalha. O carrasco arrancou as roupas de Óstap; suas mãos e pernas foram amarradas nas máquinas especialmente preparadas e... Não vamos perturbar os leitores com esse quadro de suplícios infernais que os deixariam de cabelos em pé. Eles eram frutos daquele século rude e cruel, quando o homem levava a vicia sangrenta das aventuras bélicas e nela fortalecia a alma sem nenhum sentimento de humanidade. Alguns poucos, que eram exceção naquele século, opuseram-se inutilmente a esses procedimentos terríveis. Em vão o rei e muitos cavaleiros, iluminados pela razão e a sensibilidade, demonstraram que o rigor daqueles castigos poderia atiçar a vingança da nação cossaca. Mas


o poder do rei e das opiniões sensatas não era nada perante o desregramento e a vontade insolente dos magnatas do Estado, que com sua insensatez, sua

incompreensível falta de perspicácia, seu pueril amor-próprio e seu orgulho

fútil, haviam transformado o Parlamento numa caricatura do governo. Óstap suportava as torturas e suplícios como um gigante. Não se ouviu nenhum

grito, nenhum gemido, mesmo quando começaram a quebrar seus braços e

pernas, quando o terrível rangido de ossos que se partiam foi percebido pelos espectadores mais distantes daquela multidão atônita e as senhorinhas

viraram o rosto; de sua boca não escapou nada parecido com um gemido,

tampouco seu rosto se contraiu. Tarás permanecia no meio da multidão, de cabeça baixa e, ao mesmo tempo, erguendo os olhos com orgulho e aprovando em voz baixa, dizendo: “Muito bem, filho, muito bem!”.

Porém, quando foi levado para o suplício final, parecia que suas forças

o abandonavam. Ele passou os olhos ao redor: Deus, todos são desconhecidos, todos são estranhos! Se ao menos um dos seus presenciasse a sua morte! Ele não queria ouvir os soluços e a aflição de uma pobre mãe, nem os berros

enlouquecidos de uma esposa arrancando os cabelos e esmurrando o peito

alvo; queria ver agora um homem firme, que o animasse com palavras sensatas e o confortasse no momento final. Então ele perdeu as forças, e num momento de fraqueza, exclamou:

- Paizinho! Onde está você? Esta me ouvindo?

- Estou ouvindo! - ressoou em meio ao silêncio geral, e milhares de

pessoas estremeceram ao mesmo tempo.

Uma parte dos cavaleiros da guarda correu para examinar

cuidadosamente a multidão. Iánkel ficou pálido como a morte, e quando os

cavaleiros se afastaram um pouco, ele se virou aterrorizado para ver Tarás; mas este já não estava ao seu lado: tinha sumido sem deixar rastro.

159



P

or fim, o rastro de Tarás apareceu. Um exército de cento e vinte mil cossacos apareceu nas fronteiras da Ucrânia. Já não era uma peque-

na unidade ou um destacamento saindo para uma pilhagem ou para uma perseguição aos tártaros. Não, a paciência do povo tinha se esgotado, e uma nação inteira se levantou para vingar o desrespeito aos seus direitos, a humilhação vergonhosa de seus costumes, a ofensa à fé dos antepassados e dos hábitos sagrados, a profanação das igrejas, os desmandos de senhores estrangeiros, a opressão, a União, o domínio vergonhoso do judaísmo numa terra cristã e tudo que desde há muito tempo alimentava e exacerbava o ódio feroz dos cossacos. O jovem e corajoso bétman Ostránitsa comandava aquela inumerável tropa cossaca. Ao lado dele, estava o velho Gúnia, seu experiente camarada e conselheiro. Oito coronéis comandavam regimentos


de doze mil homens. Dois essaúles e o porta-maça principal iam logo atrás do bétman. Um suboficial conduzia o pendão do exército; ao longe, tremulavam muitas outras bandeiras e estandartes; e seguiam também os demais 162

porta-maças. Havia ainda muitos outros oficiais superiores: chefes de comboio, comandantes de tropa e escrivães, e com eles, destacamentos de infantaria e cavalaria. Estavam reunidos tanto os cossacos registrados quanto os voluntários. Eles haviam se levantado de toda parte: de Tchiguírin, Pereiaslav, Baturin, Glúkhov, da região do baixo Dniepr e de todas as suas nascentes e ilhas. Um sem número de cavalos e telegas se estendeu pelos campos. E entre os oito regimentos cossacos, havia um que era o mais seleto de todos: aquele que era comandado por Tarás Bulba. Tudo lhe dava vantagem sobre os demais: a idade avançada, a experiência, a habilidade para manobrar sua tropa e um ódio aos inimigos mais intenso que o dos outros. A sua rigidez e fúria implacável pareciam excessivas até para os cossacos. Sua cabeça grisalha determinava apenas o fogo e a forca, e nas reuniões de guerra, seu conselho respirava sempre destruição. Não é preciso descrever as batalhas em que os cossacos mostraram do que são capazes, nem a marcha gradual da campanha: tudo isso está nas páginas dos cronistas. Todos sabem como é uma guerra santa em território russo: não existe força maior do que a fé. Ela é terrível e inabalável como um rochedo no meio do mar tempestuoso e sempre inconstante, de cujas profundezas ele, que fora criado de uma só rocha inteiriça, ergue até as alturas os seus muros inexpugnáveis. É visto de todas as partes, e olha diretamente para as ondas que o cercam. Ai do navio que se chocar contra ele! Seus frágeis equipamentos voarão em cacos, e tudo que nele houver irá se despedaçar e afundar; e o ar atônito se encherá com os gritos lastimáveis dos náufragos. Nas páginas dos cronistas foi retratado em detalhes como as guarnições polonesas fugiram das cidades reconquistadas; como eram enforcados os judeus arrendatários desonestos; como o bétman real, Nikolai Potótski,


junto com seu numeroso exército, era impotente contra aquelas forças imbatíveis; como ele, derrotado e perseguido, afogou num pequeno riacho a melhor parte de sua tropa; como foi cercado no pequeno povoado de Polónnoie pelos terríveis regimentos cossacos; e como, levado ao extremo, o polonês jurou total reparação da parte do rei e das autoridades do Estado, bem como o restabelecimento de todos os direitos e privilégios anteriores. Mas os cossacos não eram desses que se deixam enganar: eles já sabiam o quanto valia um juramento polonês. Potótski não brilharia mais em seu alazão de seis mil ducados, atraindo o olhar das senhorinhas nobres e a inveja da nobreza, nem faria mais alvoroço no Parlamento, organizando banquetes luxuosos para os senadores, se não tivesse sido salvo pelo clero russo que se encontrava no povoado. Quando os popes saíram ao encontro dos cossacos com suas casulas brilhantes e bordadas a ouro, levando ícones e cruzes, e tendo a frente o próprio prelado com o báculo e a mitra sacerdotal, eles inclinaram a cabeça e tiraram os gorros. Naquela época, os cossacos não se curvavam a ninguém, nem mesmo ao rei, mas jamais atentavam contra sua igreja cristã e tinham respeito pelo seu clero. O bétman e os coronéis concordaram em libertar Potótski, após receberem dele a promessa solene de dar liberdade a todas as igrejas cristãs, esquecer a antiga inimizade e não dirigir mais nenhuma ofensa ao exército cossaco. Apenas um coronel não concordou com a paz: Tarás Bulba. Ele arrancou um tufo de cabelos de sua cabeça e gritou: - Hétman e coronéis! Não cometam esse ato de maricas! Não confiem nos polacos: esses cães vão nos trair! Quando o escrivão do regimento apresentou as condições e o bétman assinou com sua mão poderosa, Bulba sacou sua espada bem feita - um valioso sabre turco de ferro de primeiríssima qualidade - e a partiu ao meio; depois atirou longe ambos os pedaços, em direções diferentes, e disse: - Então, adeus! Assim como os dois pedaços daquela espada não mais se juntarão e nem formarão um único sabre, assim também, companheiros,

163


não tornaremos a nos ver neste mundo. Guardem minhas palavras de despedida (então a sua voz cresceu, subiu bem alto, tomou uma força desconhecida; e todos ficaram impressionados por aquelas palavras proféticas): 164

na hora da morte, vocês se lembrarão de mim! Pensam que compraram a paz e a tranqüilidade? Pensam que se tornarão senhores? Pois vão se tornar senhores de outro tipo: eles arrancarão o couro da sua cabeça, bétman, e a encherão com farelo de trigo; e ela será exibida por muito tempo em todas as feiras! E vocês também não conservarão suas cabeças, senhores! Vão morrer em porões úmidos, enclausurados em paredes de pedra, isto se não os cozinharem vivos em caldeirões como carneiros! - E vocês, rapazes? - continuava ele, virando-se para seus comandados. - Algum de vocês deseja padecer honradamente, e não em cima de fornos e estrados de mulheres, nem bêbados junto à cerca de uma taverna, como um animal qualquer, mas sim ter uma morte digna de um cossaco, todos no mesmo leito, como casais de noivos? Ou, talvez, queiram voltar para casa, tornar-se incrédulos e carregar nas costas os padres poloneses? - Iremos com o senhor, coronel! - gritaram todos no regimento de Tarás, e a eles se juntaram alguns outros. - Pois se querem vir comigo, sigam-me! - disse Tarás. Daí enterrou bem o gorro na cabeça, lançou um olhar terrível sobre os que ficavam, endireitouse no cavalo e gritou para os seus: - Ninguém poderá nos censurar! E agora, rapazes, vamos fazer uma visita aos católicos! Então Bulba fustigou seu cavalo, e atrás dele estendeu-se um comboio de cem telegas, acompanhado de muitos cavaleiros e infantes; depois ele se virou e, com um olhar cheio de ira, ameaçou os que tinham ficado. Ninguém ousou detê-los. O regimento partia diante de todo o exército, e Tarás continuou se virando em tom de ameaça. O bétman e os coronéis estavam confusos; permaneceram calados por longo tempo, refletindo, como se um grave presságio os oprimisse. Tarás não


havia profetizado em vão: tudo aconteceu tal como predissera. Pouco tempo depois de uma ação traiçoeira nos arredores de Kániev, a cabeça do bétman foi erguida numa estaca junto com muitos dos mais altos dignitários. E quanto a Tarás? Percorria toda a Polônia com seu regimento, incendiou dezoito povoados e cerca de quarenta igrejas católicas, e já se aproximava da Cracóvia. Ele matou muitos fidalgos e saqueou os melhores e mais ricos castelos; os cossacos abriram e derramaram pelo chão o hidromel e o vinho que eram guardados cuidadosamente nas adegas dos nobres poloneses, rasgaram e queimaram valiosos tecidos, roupas e objetos encontrados nos depósitos. “Não tenham piedade de nada!” - repetia Tarás. E os cossacos não respeitaram nem as senhorinhas de sobrancelhas negras, as moças de rosto pálido e seios brancos; nem nos altares elas conseguiram se salvar: foram queimadas ali mesmo por Tarás. Muitos braços alvos como a neve se ergueram das chamas em direção aos céus, acompanhados por gritos lastimáveis que comoveriam até mesmo a terra úmida e fariam cair de pena o mato das estepes. Mas os cossacos cruéis não ouviam nada; eles erguiam as crianças nas ruas com suas lanças e atiravam-nas para as mães no meio das chamas. “Isto é para vocês, polacos malditos, em memória de Óstap!” - dizia Tarás. E ele assim celebrou a memória de Óstap em cada localidade, até que o governo polonês percebeu que as ações de Tarás eram bem mais do que uma pilhagem comum; e o próprio Potótski, com cinco regimentos, foi encarregado de capturar Tarás. Durante seis dias os cossacos fugiram de seus perseguidores pelas estradas vicinais; os cavalos mal agüentavam aquela fuga extraordinária, mas iam salvando os cossacos. No entanto, desta vez Potótski foi digno da missão que recebera: ele os perseguiu incansavelmente e os alcançou na margem do Dniestr, onde Bulba ocupou uma fortaleza deixada em ruínas para fazer um breve descanso. A fortaleza aparecia nas escarpas do rio Dniestr com seu baluarte esfrangalhado e os restos despedaçados de suas muralhas. O topo do penhasco

165


estava coberto de britas e tijolos partidos, pronto para despencar a qualquer momento. Então Bulba foi cercado por Potótski, o bétman real, pelos dois lados que davam para o campo. Durante quatro dias, os cossacos lutaram e 166

combateram, defendendo-se com tijolos e pedras. Mas esgotaram-se as munições e as forças, e Tarás decidiu atravessar as fileiras inimigas. Os cossacos já tinham atravessado e, talvez, fossem salvos novamente por seus cavalos velozes, quando de repente, Tarás deteve-se bem no meio da corrida e gritou: “Alto! Meu cachimbo com o tabaco caiu; não quero deixá-lo para os malditos polacos!”. E o velho atamã inclinou-se e começou a procurar na relva o cachimbo com tabaco, seu inseparável companheiro de viagem por mares e terras, nas campanhas e no lar. Nessa hora, um bando apareceu de repente e o agarrou pelos ombros fortes. Ele sacudiu todos os seus membros, mas agora os heiduques que o agarraram não caíram no chão como antes. “Ah, velhice, velhice!” - disse Bulba; e aquele cossaco velho e corpulento começou a chorar. Mas a velhice não era a culpada: sua força era vencida por outra. Não menos que trinta homens estavam agarrados aos seus braços e pernas. “O corvo foi apanhado!” - gritaram os polacos. - “Agora só precisamos imaginar qual é melhor honra a se prestar a esse cachorro!” E com a permissão do hétman, condenaram-no a ser queimado vivo diante de todos. Ali mesmo havia uma árvore seca, cuja copa fora partida por um raio. Eles o prenderam com correntes de ferro, pregaram suas mãos e, depois de erguê-lo bem alto para que fosse visto de todas as partes, começaram a armar uma fogueira ao pé da árvore. Mas Tarás não olhava para a fogueira, nem pensava no fogo que preparavam para queimá-lo; ele olhava ansioso na direção em que os cossacos se defendiam atirando; do alto, podia ver tudo como na palma de sua mão. - Rapazes, rapazes - gritava ele -, ocupem logo o morrinho atrás do bosque; eles não vão subir até lá! Mas o vento não levou suas palavras até eles. - Eles vão morrer, vão morrer a troco de nada! - dizia ele desesperado, e olhou para baixo, onde reluzia o Dniestr. A alegria brilhou em seus olhos. Ele


viu quatro popas de barcos aparecendo por trás do matorral; então juntou toda a força de sua voz e gritou de forma retumbante: - Para a margem! Para a margem, rapazes! Desçam pelo caminho da encosta que fica à esquerda. Há barcos perto da margem; peguem todos para que não os persigam! Desta vez o vento soprou do outro lado, e suas palavras foram ouvidas pelos cossacos. Mas por causa desse conselho, ele recebeu na cabeça um golpe com as costas do machado, o que o fez perder os sentidos. Os cossacos desceram o caminho da encosta em grande velocidade, com os perseguidores já no seu encalço. Eles viram que o caminho ia se emaranhando e se dobrando de modo bastante sinuoso. “Companheiros! Não temos saída!” disseram todos. Eles detiveram-se por um instante, ergueram seus chicotes e assobiaram; então seus cavalos tártaros se apartaram do chão, esticaram-se no ar como cobras e voaram através do precipício, caindo diretamente no Dniestr. Apenas dois deles não alcançaram o rio e desabaram sobre as pedras, perdendo-se para sempre com seus cavalos, sem sequer emitir um grito. Os cossacos já iam montados pelo rio e desamarravam os barcos. Os polacos haviam se detido à beira do precipício, admirados com aquela façanha sem precedentes dos cossacos e pensando se deviam pular ou não. Um jovem coronel, de sangue vivo e ardente, irmão da bela polaquinha que havia cativado o pobre Andríi, não pensou muito e atirou-se com todas as forças em seu cavalo atrás dos cossacos: ele rodou três vezes no ar com sua montaria e desabou sobre as rochas pontiagudas. O jovem foi despedaçado pelas rochas e desapareceu no meio do precipício, e seu cérebro, misturado com sangue, salpicou os arbustos que cresciam pelas paredes do fosso. Quando Tarás Bulba se recobrou do golpe e olhou para o Dniestr, os cossacos já estavam nos barcos e seguiam remando; choviam balas sobre eles, mas não os atingiam. E os olhos do velho atamã se acenderam de alegria. - Adeus, companheiros! - gritava-lhes lá de cima. Lembrem-se de mim, e na próxima primavera apareçam aqui de novo para um bom passeio! En-

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tão vocês me pegaram, seus polacos do diabo? Pensam que um cossaco tem medo de alguma coisa no mundo? Esperem só! Virá o dia em que vocês vão saber o que é a fé ortodoxa russa! Agora mesmo, os povos distantes e próxi168

mos já estão pressentindo: da Terra Russa está se levantando o seu tzar, e no mundo não haverá força que não se submeta a ele!... E o fogo já se levantava acima da fogueira, envolvia suas pernas e estendia as chamas pela árvore... Mas haverá no mundo algum fogo, martírio ou poder que possa vencer a força russa? É pequeno o rio Dniestr, e possui muitas enseadas, juncos espessos, baixios e lugares profundos; esse espelho fluvial brilha envolto pelo grito sonoro de cisnes; o mergulhão soberbo desliza rapidamente por ele, e há muitas aves brejeiras, galinhas d’água e tantos outros pássaros em seus canaviais e margens. Os cossacos navegavam depressa em seus barcos de leme duplo, remavam com força, desviando-se cuidadosamente dos baixios e espantando as aves, enquanto falavam de seu atamã.



EDITORA RECORD Copyright © Editora Record Ltda., 2009 Tradução © Nivaldo dos Santos, 2009 TíTulo original Tarás Bulba Coordenação ediTorial Joana Alves

Capa, projeTo gráfiCo e ediToração eleTrôniCa Cláudio Diniz Alves revisão Cláudio Diniz Alves 1a Edição — 2009

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) [Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil] Gógol, Nikolai, 1809-1852 Tarás Bulba / Nikolai Gógol; tradução, de Nivaldo dos Santos Belo Horizonte: Record 172 p. ISBN 978-85-7326-386-2 Tradução de: Tarás Bulba 1. Literatura russa. I. Santos, Nivaldo dos. II. Título. III. Série CDD - 891.73 Editora Record Av. Abílio Machado, 3985 Jd. Inconfidência 30830-000 Belo Horizonte - MG Tel/Fax [55 31] 9771-8053 http://sites.google.com/site/cdinizalves/


O projeto deste livro foi realizado utilizando-se as famテュlias tipogrテ。ficas The Serif, Csar e Gagarin. A impressテ」o digital ficou a cargo da テ《ter Graf, que utilizou papel Old Natural 89 e 176 g/m2 fabricado pela Finepapers.


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