SIM 119 VICENTE CECIM O que revelam as cartas? (III)

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O que revelam as cartas (III)

LEGENDA Cartas míticas de Santa Teresa de Jesus (1678)

Eu vivo e morro por ti MACHADO DE ASSIS Meu bebezinho querido FERNANDO PESSOA Você leu as duas últimas Sim em que iniciamos esta série que hoje termina, sobre o que as Cartas revelam?


Nelas vimos exemplos de como as Cartas mostram a vida oculta, subterrânea, e os sentimentos de pessoas que o mundo só conhece por fora, por aquilo que elas publicamente revelam. E vimos, também, que - embora as incontáveis cartas de pessoas célebres, ou que se tornaram célebres e por isso sobreviveram até nós, sejam de todos os tipos e sobre todos os assuntos - as Cartas de Amor são predominantes e as mais reveladoras. Nem todas são as cartas de amor terrestre, digamos assim. Há também as cartas de amor celeste, como as de Santa Teresa de Jesus, reunidas em livro no século XVII. E tanto dirigidas ao Além quanto a este Aquém, e tanto no alémmar quanto neste aquém-mar, as Cartas de Amor predominaram, atravessando mares do coração nunca dantes navegados - levando a palavra ardente e apaixonada. Como as que você pode ler nesta Sim - do escritor brasileiro Machado de Assis a sua mulher Carolina de Novais e do poeta português Fernando Pessoa a Ofélia Queiroz. Ei-las. Na grafia da época.

Carta de Machado de Assis a Carolina de Novais Diz a Madame de Stael que os primeiros amores não são os mais fortes porque nascem simplesmente da necessidade de amar. Assim é comigo; mas, além dessa, há uma razão capital, e é que tu não te pareces nada com as mulheres vulgares que tenho conhecido. Espírito e coração como o teu são prendas raras; alma tão boa e tão elevada, sensibilidade tão melindrosa, razão tão recta não são bens que a natureza espalhasse às mãos cheias (…). Tu pertences ao pequeno número de mulheres que ainda sabem amar, sentir, e pensar. Como te não amaria eu? Além disso tens para mim um dote que realça os mais: sofreste. É minha ambição dizer à tua grande alma desanimada: «levanta-te, crê e ama: aqui está uma alma que te compreende e te ama também». A responsabilidade de fazer-te feliz é decerto melindrosa; mas eu aceito-a com alegria, e estou certo que saberei desempenhar este agradável encargo. Olha, querida; também eu tenho pressentimento acerca da minha felicidade; mas que é isto senão o justo receio de quem não foi ainda completamente feliz? Obrigado pela flor que mandaste; dei-lhe dois beijos como se fosse a ti mesma, pois que apesar de seca e sem perfume, trouxe-me ela um pouco de tua alma. Sábado é o dia da minha ida; faltam poucos dias e está tão longe! Mas que fazer? A resignação é necessária para quem está à porta do paraíso; não afrontemos o destino que é tão bom connosco. (…) Depois… depois querida, queimaremos o Mundo, porque só é verdadeiramente senhor do Mundo quem está acima das suas glórias fofas e das suas ambições estéreis. Estamos ambos neste caso; amamo-nos; e eu vivo e morro por ti.

Carta de Fernando Pessoa a Ofélia Queiroz Meu Bebé, meu Bebezinho querido: Sem saber quando te entregarei esta carta, estou escrevendo em casa, hoje, domingo, depois de acabar de arrumar as coisas para a mudança de amanhã de manhã. Estou outra vez mal da garganta; está um dia de chuva; estou longe de ti — e é isto tudo o que tenho para me entreter hoje, com a perspectiva da maçada da mudança amanhã, com chuva talvez e comigo doente, para uma casa onde não está absolutamente ninguém. Não imaginas as saudades de ti que sinto nestas ocasiões de doença, de abatimento e de tristeza. O outro dia, quando falei contigo a propósito de eu estar doente, pareceu-me (e creio que com razão) que o


assunto te aborrecia, que pouco te importavas com isso. Eu compreendo bem que, estando tu de saúde, pouco te rales com o que os outros sofrem, mesmo quando esses «outros» são, por exemplo, eu, a quem tu dizes amar. Compreendo que uma pessoa doente é maçadora, e que é difícil ter carinhos para ela. Mas eu pedia-te apenas que «fingisses» esses carinhos, que «simulasses» algum interesse por mim. Isso, ao menos, não me magoaria tanto como a mistura do teu interesse por mim e da tua indiferença pelo meu bem-estar. Amanhã e depois, com as duas mudanças e a minha doença, não sei quando te verei. Conto ver-te à hora indicada amanhã - às 8 da noite ou de aí em diante. Quero ver, porém, se consigo ver-te ao meio-dia (embora isso me pareça difícil), pois às 8 horas quem está como eu deve estar deitado. Adeus, amorzinho, faz o possível por gostares de mim a valer, por sentires os meus sofrimentos, por desejares o meu bem-estar; faz, ao menos, por o fingires bem. Muitos, muitos beijos, do teu, sempre teu, mas muito abandonado e desolado. André Gide escreveu em 1925 um romance – Os moedeiros falsos/Les fauxmonnayeurs – em que alguém goteja uma lágrima em uma carta de amor escrita à mão, como prova inegável, muito além da suspeita das palavras, de seus sentimentos. Experimente fazer isso sobre o papel virtual de um e-mail. De lá para cá, o mundo se tornou mais frio? Sim, mas não porque nestes tempos virtuais os amantes choram menos.

EPORQUENÃO?


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