oliberal
Belém, domingo, 9 DE março de 2014
magazine n 11
sim
vicente cecim
vicentefranzcecim@gmail.com
Literatura: A quem interessar possa A posição de um artista é humilde. Ele é essencialmente um canal. MONDRIAN
M
eu amigo Jan Oldenburg, holandês, trocou a Holanda pela Amazônia – o que eu também faria para estar mais próximo da verdade das coisas, na Natureza – mas, em consequência, também Amsterdã por Belém – o que eu não faria nem morto pela violência das nossas ruas, bem mais capaz de se impor do que a incapacidade dos nossos governantes de a eliminar. Assim, foi nestas ruas brutais que nos conhecemos. Mas na Serenidade da amizade. E Jan conheceu os livros de Andara. E se dispôs a traduzir o meu livro Ó Serdespanto e alguns cantos/poemas de Andara para a sua língua. Jan é um tradutor minucioso, exaustivo, que não se limita às palavras e seu significado imediato. A impressão que se tem é que ele tenta o impossível: fazer do texto traduzido um gêmeo do original. Se no meu caso vai conseguir, não sei – mas tenho a impressão que ele espera me fazer revelar algum segredo que lhe permita atingir seu objetivo. E assim vamos, através de uns diálogos entre Autor & Tradutor que parecem mais escavações de túneis descendo em minas profundas. Lembro aqui alguns desses diálogos, e passo a você. Se a Literatura, por acaso, lhe interessa.
I - Duchamp e o Sonhador Prático Jan, eu digo a ele: quando falo que sou um Sonhador Prático, como Marcel Duchamp, é para que se entenda que não secciono em um dualismo rígido a metade esquerda e a metade direita do meu cérebro – ou, mais precisamente: que não é por sonhar Andara que não mantenho um olho aberto sobre a estupidez do mundo ao meu redor - quer dizer, sonhar não é necessariamente se alienar, ao contrário: é um compromisso profundo, como em Dostoievski, um imergir no Subsolo Humano. Duchamp perturbou instalando pregos em um ferro de engomar. Mas em Andara, onde predomina a Natureza, não há nada da Civilização, nem suas cidades, nem seus valores, e muito menos sua Tecnologia: televisões, aviões, luz elétrica – tudo é substituído por Visões, asas de aves ou anjos e pela Claridade das estrelas, também pela que às vezes vejo no fundo dos olhos das pessoas ou emitida pelas coisas – que segundo a alquimia de Paracelso têm cada uma sua própria luz que a esmagadora luz do Sol oculta. Daí o culto ao Sol Negro dos alquimistas. Claro que eu também vou, como Duchamp, para o combate direto com a Civilização – mas não distorcendo como ele os utensílios que ela cultua. Meu sonho prático é fazer a Floresta voltar sobre a Civilização que tenta a expulsar e tomar o seu lugar sobre a Terra. Mas esse é um dos campos de batalha. Há outro, essencial na Literatura: a libertação da Linguagem, para permitir a emersão de outras realidades - mantidas submersas pela Civilização, que teme Freud e o converte em Terapia para não ver seus abismos obscuros: o chamado Inconsciente. Para mim, mais um dualismo do Medo, porque não me vejo separado em Consciência e Inconsciente: eu vivo é em uma Esfera que é toda Consciência com seus claros-escuros para ela poder se dar conta tanto dos claros quanto dos escuros da Vida, imerso em um Oceano único, esfera onde apenas se dá que quanto mais à tona, mais claro, e quanto mais no fundo, mais escuro. Por isso também Andara é obscura como as regiões visuais criadas por Hieronimus Bosch, que tu dizes ver nela mas sua demanda é a de uma Ascensão, indo para a Noite Estrelada de Van Gogh, meu mais amado desses que pintam. E são esses os meus caminhos, me-
lhor chamar minhas trans-mutações alquímicas pela Palavra: Natureza & Civilização - como confronto, mas Claro & Escuro como diálogo. Ah, é nesse território verbal que tu estás te metendo, Jan. É um percurso muito antigo. Mais Medieval do que Moderno. E até mais ancestral, se eu for levar em conta a percepção que outros têm tido dele. Como a de um crítico francês, do Le Monde, Jean de tal, não lembro o nome todo, que após passar por Belém e levar livros de Andara para Paris me mandando um e-mail dizendo: - Escreves como João Evangelista, o Discípulo Dileto. Mas eu não sou discípulo dileto nem detestado de ninguém: tenho é cúmplices que me precederam e que virão depois de mim como eu vim depois deles: Kafka, Beckett, Guimarães Rosa, Rulfo, Gombrowicz, Bruno Schulz, Krudy Gyula, Flann O’Brien, Céline, Giono, Melville, Hawthorne, Swift, Cervantes, Barthazar Gracián - digo com Alegria seus Nomes, e ainda: Vallejo, Lautréamont, Pessoa, Trakl, Celan, Rilke, Novalis, Hoelderling, Whitman, Emille Dickinson - e os conclamo para os nossos diálogos todos de uma vez. Então, não como discípulo - muito menos como alguém que sofre de uma ansiedade de influência e quer matar seus antecessores, ou mestres literários, como investiga esses impulsos obscuros Harold Bloom - me situo no que Shitao, o Monge Abóbara-Amarga, compreendeu: a Criação do artista como Pincelada Única: ato unido ao Cosmos todo, descendo, em um Único Gesto, pulsação liberta das obstruções mentais, pelo corpo humano até a mão, o pincel ou lápis, e a tela ou papel ou a mão virtual que escreve hoje em dia palavras e pinta imagens que não deixam rastros. Assim, sem seguir nada e ninguém, mas bem acompanhado por meus cúmplices, vou voando e tombando por mim mesmo - sempre lembrando o que Shitao disse: - Não sigo nenhum mestre, eles é que me seguem - o que nos leva a Borges sonhando Kafka como o criador de seus predecessores.
Esperando Godot
Pinturas: Piet Mondrian (Holanda, 1872/Estados Unidos da América, 1944) uma hipótese que exista um Sim - embora seja evidente quantos nãos há resistindo ao humano, por todos os lados, e em toda parte – estando o Antro mais oculto dessa resistência instalado, oh, justamente dentro de nós. Teria sido por isso que me dispus a erguer um Real Imaginal - em forma de Sim - com a matéria prima visível, a natural - para a depurar de si mesma, enquanto saltam sobre nós, de nós próprios, os nãos da vida. O que se sabe com clareza é que Viagem a Andara oO livro invisível se abre com um convite ao leitor:
Nós somos homens invisível Depois de nascidos, visíveis. Entre o início invisível e o invisível final, nós somos os homens visíveis. Aproveitemos para nos ver E também indica claramente onde o encontro do convite está marcado:
Esta viagem a Andara E aonde mais? Na vida. Andara é perto e longe. Andara está dentro de ti. E fora. E dentro de mim. Diz a voz Quanto ao João de Patmos do Apocalypse que Andara também te faz lembrar, se tiver sido o mesmo João lembrado pelo crítico francês a propósito de Andara, aquele que num dos Evangelhos escreveu: - No Princípio era o Verbo, e o Verbo se fez Carne - essa Carne que os pregos de Duchamp querem dilacerar - e eu gostaria era de Cicatrizar. Pela Cicatriz Perfeita - que existe antes da ferida surgir.
II - Andara: oO Jan, o que é fecundo nesses nossos diálogos é que fazemos muitas perguntas e damos poucas respostas. O que posso dizer dessa Literatura que faço, assim de visível e Invisível? Temos que voltar mais atrás:
atravessar o que nos nega, chegar ao Sim: e é assim que tu verás um S nestes dias cegos Por que essa frase quis surgir logo nos primeiros livros visíveis, como eu chamo os livros de Andara que escrevo, pois o livro invisível de Andara é um nãolivro, que não escrevo? Essa frase certeira para mim também é uma orientação incerta - pois é
III - No Lugar de Todos os Lugares Um dia, Jan me encurralou, deixando a pergunta fatal para o fim:
- O mundo já teve visionários - de novo me refiro a Hieronymus Bosch (e não somente o apocalytico), pensei numa Hildegard von Bingen - que nos ensinavam como sonhar desperto. E acho que realmente e verdadeiramente o que as religiões (originais) procuram é aquele desligamento do mundo visível, tangível. O que é rezar se não entrar no misticismo percebível? Já numa ocasião te referiste a Bach, no momento não acreditava numa ligação de Andara com as fugas, e nem agora acredito. Penso mais nas músicas pentatonais, estilo Gregoriano, por exemplo, ou nos mantras do Budismo. Mas, e isso me surpreendeu - escutando uma obra do Stockhausen (o primeiro compositor de música eletrônica) tive visões de Andara. Agora te pergunto: se isso é todo eletrônico (quer dizer a-natural), como manter a naturalidade dos teus Andares?
E também em Andara se anuncia:
Tu escreves um livro invisível. E com a mesma clareza é dito o que são os livros visíveis que escrevo:
Situação dos livros de Andara: condenados à visibilidade para que Viagem a Andara oO livro invisível possa existir como pura ilusão. Se essas declarações explícitas assim forem entendidas, então toda a Viagem se abre, para ser percorrida vivencialmente, reflexivamente, sobretudo contemplativamente: pois Andara nasce e se Nutre da relação de reflexos mútuos entre visível e Invisível, de um modo semelhante às emanações criativas do Uno – de que Plotino nos diz, nas Enéadas: - O Imanifesto manifesta o Manifesto e este, por contemplação do Manifesto - logo, curiosamente, voltado para trás - manifesta, por analogia com o processo original, o Espírito. Quem não entender pode traduzir Imanifesto por Deus, Manifesto por Mundo e Espírito por Ser. Não é o caso de Jan, para quem entender a literatura que eu faço é o mais fácil. Difícil é obter a tradução gêmea que ele busca.
Ah, mas eu já sabia as respostas antes de responder: Quanto a Bach ter contaminado a tessitura musical de Andara: sim: por isso Andara é fuga do manifesto através dos caminhos semicegos dos livros visíveis que escrevo, aliás, que se inscrevem em Mim. Quanto a Bosch ter contaminado a tessitura verbal de Andara, sim: por isso Andara sendo região intermediaria entre a Terra e o Céu, espelho de reflexos entre o visível e o Invisível que está por trás das estrelas. Quanto a Hildegard von Binger, veio depois, já durante a Viagem, como uma das confirmações doadas por outro a minha necessidade de sonhar desperto. Também se ouve Cantos Gregorianos em Andara? Sim E mantas do Budismo? Sim: mantras de todas as espécies, sobretudo os silenciosos: páginas em
branco cantam nos livros enquanto as palavras falam, mas às vezes rosnam, ainda o Animal em nós. E Stockhausen? Embora não seja um dos meus favoritos, quando ele captou, pelas ondas de rádio, a Música involuntária dos homens aqui na Terra ecoando no Cosmos, acho que buscava o que na Palavra busquei: trans-figurar a Literatura em Escritura – um mesmo buscar algo mais Primordial - retornar à Raiz de tudo. E como Andara se consente ser habitadas por tantos visitantes estrangeiros a ela? Assim: sendo Lugar Sem Lugar. Ou: Lugar de Nenhum Lugar. Para poder ser Lugar de Todos os Lugares, e tudo acolher em sua Unidade. Nela. Mas para isso o criador da obra deve ser o canal de que fala Piet Mondrian, holandês como Jan, no alto desta página.
IV - No Tempo da Hipótese E disso, digo a Jan, nasce uma delicada Teia de Espelhos e quase insuportável Tensão: Tensão que só pudesse ser manifestada se Andara se desse em um outro tempo que não mais o da Literatura instalada ora no Presente, ora no Passado, ora no Futuro, mesmo quando ela, a Literatura, mescla todos esses modos de tempo numa só Espessura de Tempo. Espessuras comunicantes? Não. Para Andara, nada disso resolvia mais: a sua exigência extrema, a exigência que me fazia e continua fazendo, do seu início até hoje, é a de uma Abolição de qualquer Espessura. Mais que uma região sonhada no Cosmos, essa Andara tem sido para mim uma estranha Residência, exposta a todos os Ventos, onde tenho habitado desde que iniciei a Viagem. Sob essa pressão, aonde ela me conduziu aos meus limites, junto com os sem-limites dela, os sem-limites em que queria se instaurar, explodi para fora e para dentro de mim num Tempo Verbal que fosse o Único em que Andara pudesse se dar não se dando entre o Invisível e o Visível, e falar não se falando: - o Tempo da Hipótese. Do fosse, houvesse. O tempo do - quem sabe? Sem habitar o Tempo da Hipótese, na Vida como na Arte, só se pode permanecer aqui. Fixo. Mas viajar não é preciso, Pessoa? Tentemos, pois, sim?