BELÉM, DOMINGO, 12 DE OUTUBRO DE 2014
OLIBERAL
MAGAZINE 11
sim
VICENTE CECIM
vicentefranzcecim@gmail.com
Sobre tempos sem luz
Eles lamentam-se (...) Esperarão bem dispostos que outros remedeiem o mal para que não mais tenham que se lamentar. THOREAU/A Desobediência Civil
H
oje, 50 anos após o início da Ditadura de 1964, que impôs a submissão ao povo brasileiro, e época de eleições gerais no país - por obediência civil à Democracia - é um bom tempo para não esquecer aquele outro tempo em que havia se tornado essencial a prática inversa: a desobediência civil. Cada um que não se deixou intimidar, silenciar, curvar, ajoelhar – reagiu com as armas que tinha a um regime fechado ao diálogo. Guerrilha urbana, guerrilha do Araguaia – de um lado – enquanto o outro lado praticava a repressão, a tortura, os desaparecimentos e o assassinato impune. Os tempos ainda estavam obscuros, em 1979, quando lancei A asa e a serpente, meu primeiro livro visível de Viagem a Andara oO livro invisível. Era a arma que eu sabia manejar melhor: a Literatura. E usei. Não quis, porém, atingir apenas a supressão da liberdade que acontecia no Brasil – mas abalar todas as supressões da Liberdade – presentes, passadas e futuras - sob todas as suas formas. Mas foi assim que nosso filósofo e crítico literário Benedito Nunes leu A asa e a serpente: como uma fábula exemplar confrontando frontalmente a Ditadura de 64. Ele escreveu na apresentação do livro: Foi como poesia que li A asa e a serpente: um poema lírico-narrativo talvez, ou um poema dramático na terminologia de Fernando Pessoa, para dar nome a esse texto revolto, que se desdobra com seu autor - misto de sonho e alegoria, fábula do sacrifício do algoz impessoal, morrendo e renascendo, como num ato de expiação infindável, dos míticos desvãos do inconsciente individual e coletivo. Mas toda fábula é o contorno imaginário exemplar de uma realidade possível que se intemporaliza. Esta de Cecim alude, parece-me, a uma realidade muito próxima que traumatizou sua geração: a época do grande medo, que se tornou assombração política e fantasma histórico na cidade do Grão ou em qualquer outra parte do Brasil após 64. Mais firmeza ganharia a fábula se maior contraste houvesse entre o plano prosaico da narração e o plano lírico da expressão poética, conciliando o sonho e a alegoria. Com a dominância do lado onírico, ganhou por certo o lirismo, que transforma a narrativa numa assombração literária impetuosa. Sujeito e objeto de metamorfose, o texto se interioriza, e o fantasma da História tende à história fantástica. Agora, enquanto o povo brasileiro vota – apesar da corrupção política e, esperemos, contra ela, repito: é um bom tempo para lembrar de não esquecer aqueles tempos sem luz, para que esses tempos não se repitam. E aqui, lembro – e mostro - fragmentos da abertura de A asa e a serpente - a arma que naquela época usei.
Eu e os infelizes havíamos enterrado o seu corpo, depois que eu o matei, num caixão capaz de resistir ao ódio de um morto à traição. Mas a sua volta era a evidência, em pleno ar daquela tarde, de que nem a madeira mais dura pode resistir à outra intenção com que eu conto esta história. O Nazareno voltava. E carregava seu caixão na cabeça. Ia entrando, com passos exaustos, pela rua que o levaria à sombra dos monumentos irônicos que espiam a vida na praça de Santa Maria do Grão enquanto olhos ocultos o viam chegar. E não respire, não viva. Ninguém quis acreditar no que viu Ele estava acabado como um morto que segue em busca de uma estrela, naquele fim de tarde de resto igual aos outros, lento, parando para se deixar engolir pela noite. Quando parou, espanto e medo. Estava onde eu temia. Vi que era o mesmo lugar onde eu havia espetado o seu corpo com a faca, uma emoção do rancor. Uma sombra de homem com uma faca por trás de um homem adormecido. Digo tudo o que vi no meu sono. Sem pudor. Ele sentou. E era o chão onde eu fiz correr um mar vermelho, o sangue apagado pela memória das testemunhas e, também, pelos pés do acaso fazendo a sua passagem por ali Pôs o caixão do seu lado. Apoiou a costa na parede de uma casa. A costa onde haveria uma cicatriz azul, ao redor da ferida, ou nada. Tudo podia ter sido apagado pela morte. E sua cabeça caiu da altura de um abismo para a paz do seu peito, um jardim sem piedade. Afundando assim, ele dormiu. E esqueceu que havia voltado. E veio a noite com um vento negro, que deu fim em alguns homens, espetáculo rodopiante de desesperos e gritos. As mulheres e as crianças, porém, ousaram sair para as ruas e não foram molestadas por estranhos. É assim a vida. Quem inventou esse vento? O medo, que voltava, como antes, junto com o morto. Ou ele é apenas o efeito artificioso com que quero instalar, assim logo de início, uma atmosfera ainda mais suspeita para fortalecer este meu relato suspeito e destroçar todo o poder infantil que vocês têm de aplacar as tempestades. Escolham
A asa e a serpente (...) - Tu és pó e do pó retornarás. Esta é a operação revoltada que alterará o passado e a tradição dos circos ambulantes, pela substituição de uma única letra numa voz que fala de fatalidade E assim caímos, ou volta à tona o texto, no momento exato em que o Nazareno está regressando para começar a sua segunda vida, na qual ele recusará todo o horror e as cruzes de vidro que o dia de ontem alimentou no seu ventre com rações de violência. Não teremos mais seus dentes à mostra. Eu falo de um homem que dirá adeus às cidades e penetrará num rio com vegetais vermelhos, em busca da felicidade, com uma provisão de mistérios em cada lábio.
Tenho pressa de relatar o que não sei Por isso narro logo o que sei, sem escolher as palavras. Então, agora depressa. O primeiro reencontro do Nazareno, regressando à vida, com um animal Meus sonhos literários têm sempre
dentes de cachorros. Não sei a razão. Essa será, de todos os modos, a razão escura do animal desse reencontro do morto com a vida latir, ganir chorando e morrer sem qualquer importância como fazem há séculos todos esses rabos felizes. Os dias passavam. Tínhamos o fantasma adormecido na praça, nossa inquietação entrava em repouso e a rotina começava a deitar seu corpo branco sobre nós outra vez. Sombras longas, que vinham ao meio-dia, se prolongavam pela noite adentro e só com as primeiras luzes da manhã elas partiam Os dias. E depois outros Íamos passar pela praça, esperando que alguma coisa acontecesse Foi o cachorro que abreviou essa espera, à custa da sua morte, antecipo, honestamente narrando, quando ficou olhando o morto de uma distância que não se podia medir, depois avançou para ele, lambeu sua mão esquerda e fugiu dessa mão sem gosto, correndo, o pescoço impossível torto de olhar para trás. Ficou de longe, sentado sobre as patas traseiras, espiando. Vocês sabem como eles fazem. Espiam com inteira atenção. E logo já estão distraídos, caçando uma pulga, para depois olharem outra vez, o corpo todo concentrado no tema dos olhos Passa pela cena uma eternidade. Os dias passavam Algumas velhas se desinteressavam e iam para as suas casas, jantar, dormir. Talvez sonhassem. Isso veremos depois A noite se retardava para que houvesse luz suficiente sobre o que vai se passar. Embora o espetáculo das metamorfoses noturnas seja mais belo. Agora o cachorro se ergue, avança devagar para o morto adormecido. Ou, apenas, para o adormecido, se vocês preferem ignorar o prazer que faz os gêmeos nascerem em toda parte, onde quer que se encontre a razão. O rabo dança no ar uma música que só o cachorro escuta. Ele lambe a mão direita do Nazareno. Mas essa mão está viva. Não é como a outra. Ela o agarra para não largar mais. Está chorando Como está olhando para nós Como seus olhos dizem que está precisando de ajuda A mão direita do morto conserva toda a crueldade do Nazareno vivo, aquela mesma que me cegou, que humilhou e espancou. E atirou balas de fogo sobre todos nós, antes da sua pri-
meira morte, muito antes da segunda. Eu devo matá-lo outra vez. Quem grita com a minha voz? Um único grito que vem da dor causada ao animal, impossível escapar. A um passo dela, que é um macho, o fim. Sob um céu que não se contorcerá, também, como um espelho vivo. Ao grito, segue-se o abrir da mão. O cachorro caiu no chão e se transformou em terra. Ouvi o corte de uma faca enferrujada rasgando as nuvens, por cima das cabeças dos que estavam na praça. Cabeças tristes. Caiu um pássaro e também virou terra. E começou uma ronda de noites que, a princípio, não tiveram os desmoronamentos e os rumores que vieram depois Mais tarde, vimos no ar várias formas. A mais bela delas, a de uma asa de fogo que iluminou a cidade durante muitas noites, até que uma madrugada raivosa a engoliu. Onde vamos emergir depois disso eu só saberei quando o texto voltar de um intervalo breve, branco, a sua morte também Quanto ao morto, com o passar dos dias vi que ia rapidamente se tornando um homem outra vez Um novo dia correu latindo atrás da noite. (...) após os fogos e os crimes da sua primeira vida, há indícios de que o Nazareno quer agora uma segunda vida toda branca. Começam os seus delírios por uma pureza Ele acaba de despertar por um momento para dizer - Venham beijar a minha mão esquerda, a que não mata Nenhum dos que se encontram a essa hora na praça se atreve a ser o primeiro, é a suspeita pela sombra que desceu sobre os dias luminosos do homem e disse - Venham beijar a minha mão esquerda, a que não mata Depois, adormeceu novamente. Nenhum se atreve a ser o primeiro. Ó infelizes, ó miseráveis O tempo vai passando, os dias, e cresce o medo de que Ele se impaciente com a demora. Mas os pés de movem apenas para
os lados, ficam nessa dança, tum tum no mesmo lugar. E há até aqueles que recuam devagarinho para que os outros não percebam O morto abre um olho. Aquele do recém-nascido ofuscado pela luz do mundo querendo ver se nas imediações da sua vida está a mãe. Estremecimentos infelizes, palidez de miseráveis De longe, é uma comédia escandalosamente bela tudo isso. Alguém agora se lembra da loucura. Mas só em um de nós ela é real. E quem irá buscar o único louco de Santa Maria do Grão, aquele que dirige seus passos pelo vento e fala com os pássaros durante toda a noite, que penteia seus cabelos com as mãos e teme os pentes feitos com os ossos dos animais, sem que o fantasma, que agora fechou outra vez aquele olho sonolento, inquiridor, pense que se trata de uma tentativa de fuga? Eles mandam um menino, na esperança de que a inocência seja uma defesa contra todo mal. Talvez porque o Nazareno havia desaparecido sua morte adentro um instante, o menino pode ir e voltou com o louco pela mão. Uma outra criança que avançava sonhando em nossa direção Disseram: - Vai e beija a mão esquerda dele. Foi. Mas se inclinou sobre a mão direita. Sobressaltos, desobediência, correram para agarrá-lo. Vi seus dentes que queriam morder aquela mão de um deus cheia de morte. Tomei o louco pela cintura e salvei sua vida afastando ele dali. O medo não contagiou com sua paralisia a minha curiosidade, porém. Cicatriz, ainda um ferida, ou nada, quis saber o que restava da passagem da faca pela costa do morto. E tirei proveito da oportunidade. Mas nada consegui saber, pois ele abriu de novo aquele olho e espiou para mim, estremeci, mijei, beijei depressa aquela mão sem gosto e recuei com uma reverência hipócrita. Não nascerá um novo deus sem luz. Encorajados, os outros foram fazer sua parte. Esses que voltam com um riso estúpido pendurado na boca. Onde iam buscar aquela felicidade, me pergunto como os que sabem, embora soubesse apenas o que podia ver: os seus risos parados, sem som, sem gosto como a mão que o morto deixava beijar com benevolência (...)