Cinema e Multiculturalismo
Multiculturalismo se opõe ao monoculturalismo (que historicamente esteve relacionado ao eurocentrismo); EUROCENTRISMO = pensamento residual que naturaliza a ideia de que a Europa é a origem única dos significados, como o centro de gravidade econômico e cultural do mundo, mesmo depois do fim da colonização; uma forma de dominação enraizada, que se estabelece por meio de imaginários e construções culturais naturalizadas; O cinema e os outros meios de comunicação atuam como agentes responsáveis pela veiculação e normalização do eurocentrismo;
Os estudos multiculturalistas do cinema se encaixam dentro de uma corrente teórica, que compreende a cultura e as identidades culturais como construção social; Como ressalta o teórico Stuart Hall “a identidade cultural não é uma questão de ser, mas de tornar-se”;
As identidades culturais que nos compõem são múltiplas e variadas, não são excludentes, se intercalam e negociam. Por serem atravessadas pelos conteúdos difundidos pela mídia e no cinema, é de extrema importância investigar de qual forma tais representações são construídas = o lado menos visível da história;
O eurocentrismo não diz respeito aos indivíduos ou continente, mas a uma visão de mundo, uma relação dominante historicamente opressora com seus “outros” internos e externos.
Cinema = nos estudos multiculturais se destaca também os Estados Unidos como reprodutores de um pensamento “neo-europeu”; Cinema hollywoodiano = padrão de entretenimento Cinema europeu = padrão de cinema de arte O Multiculturalismo descoloniza as representações, não só tem termos de artefatos culturais, mas também em termos de relações de poder entre as comunidades Propósito: revisitar a forma dominante europeia-americana de cinema e as distorções da representação.
Algumas observações:
A primeira vez que o debate deixa de lado a técnica e se foca na construção do discurso = é a primeira teoria que ressalta o caráter altamente prejudicial de “O nascimento de uma nação” (David Griffith), por sua abordagem explicitamente racista;
Também sobre as distorções, é a primeira teoria que busca investigar os cinemas periféricos, dos países do “Terceiro Mundo”, que juntos constituem a maior parte dos filmes produzidos, mas não conseguem concorrer com o cinema dominante;
A reprodução incessante de estereótipos, que veiculados e naturalizados passam a ser internalizados = necessidade de multiplicar os olhares;
Lançar um olhar crítico sobre o “politicamente correto” ou o chamado cinema de “imagens positivas”, que na maioria dos casos contempla a diferença apenas para amenizar o debate;
O Multiculturalismo não propõe uma ruptura com a Europa, mas uma visão não-hierarquizada. Necessidade de investigar as culturas de forma respeitosa e igualitária, possibilitando múltiplos olhares, diferente do olhar do dominador sobre o dominado = exótico/estranho; Estudos multicuturalistas negam de certa forma a expressão pós-colonialismo, a qual traz implícita o fim da colonização. Mas, esta se manifesta de formas diversas na mídia. Por isso, a preferência por utilizar o termo neocolonialismo.
NEOCOLONIALISMO – indica uma passagem, enfatiza a repetição com diferença, um ressurgimento do colonialismo sob outros disfarces. O termo designa uma hegemonia geoeconômica, enquanto o pós-colonial sutilmente desvia o foco de qualquer ideia de dominação contemporânea. ESTUDOS MULTICULTURALISTAS • Denunciar as estruturas de controle e poder; • Evidenciar e celebrar a diferença pela multiplicidade e igualdade de valores; • Atenção crítica para perceber hierarquias; • Auto representação? • Necessidade= deslocamento dos estereótipos, buscando observar e retratar a complexidade dos hábitos, costumes, tradições e culturas.
“Todos os sistemas de dominação tem “vazamentos”; a responsabilidade dos estudos multiculturalistas é transformar
esses vazamentos em inundação. Ao desfamiliarizar e reacentuar materiais preexistentes, canalizam as energias em novas direções, gerando um espaço de negociação fora do eixo de dominação e subordinação, um espaço de formas transmissoras de inflexões culturais específicas”. Robert Stam
Texto: Cinema e Multiculturalismo
Estereótipo Termo que deriva do grego stereós (“sólido”) + týpos (“molde”, “marca”, “sinal”). Inicialmente, restrito ao jargão da imprensa e da tipografia, o vocábulo ingressou metaforicamente no campo das ciências sociais nos anos de 1920, com a publicação de Public opinion ([1922] 1965), “o livro fundador dos estudos midiáticos americanos”, do escritor e colunista político estadunidense Walter Lippmann, que oscila entre duas noções distintas de estereótipo: (a) uma de base psicológica, que descreve o estereótipo como uma forma de criar uma sensação de ordem, em meio ao frenesi da vida social e das cidades modernas; (b) e outra, de índole ostensivamente política, apresenta os estereótipos como construções simbólicas enviesadas, infensas à ponderação racional e resistentes à mudança social. Dessa forma, embora possa atuar como uma forma de impor um sentido de organização ao mundo social, o estereótipo impede qualquer flexibilidade de pensamento, buscando a manutenção e a reprodução das relações de poder, desigualdade e exploração, assim como a justificação de comportamentos hostis.
“Força de expressão: construção, consumo e contestação das representações midiáticas das minorias”, de João Freire Filho
Estereótipo, realismo e luta por representação Ella Shohat e Robert Stam
• Estudos sobre a representação étnica/racial e a estética da verossimilhança; • O fato de que filmes são representações não os impede de ter efeitos reais sobre o mundo = batalha sobre o significado • Mikhail Bakhtin = noção de representação Para ele, todas representações artísticas são sociais, porque os discursos que a arte representa são eles próprios sociais e históricos. “Não basta dizer que a arte é construída. Temos de perguntar: Construída para quem e em conjunção com quais ideologias e discursos? Nesse sentido, a arte é uma representação não tanto em um sentido mimético quanto político, de delegação da voz.” (p.265.)
• Os estereótipos veiculados por Hollywood não passaram despercebidos por várias comunidades retratadas • O fardo da representação: origem da hipersensibilidade associada aos estereótipos (tradição judaico-cristão / Islã) = as dimensões da representação • Nas representações, os povos ex-colonizados são “todos iguais” = generalização (um subalterno torna-se alegoria do grupo social como um todo), enquanto as representações dos grupos dominantes são “naturalmente” diversas; • Os estereótipos e generalizações simplistas não atingem as comunidades de forma homogênea • Indústria do entretenimento: negros em desvantagem = sistema de Hollywood = classista, e eurocêntrico = Neocolonialismo cinematográfico
• Em sociedades multiétnicas, mas dominados por uma elite branca, os negros aparecem mais como atores do que como produtores, diretores ou escritores. Os negros apareciam nos filmes, assim como as mulheres ainda aparecem em Hollywood: como imagens, em espetáculos cujo conteúdo social é essencialmente controlado pelos outros: “A alma negra como artefato branco” (Frantz Fanon) – p. 275
• Para quem vão os lucros? Filme e seus próprios processos de produção = processos sociais mais amplos = relações de poder/ dominação. • A política racial da escolha do elenco Delegação de voz com tons políticos = tradição do ator pintado de negro ou atores euro-americanos interpretavam índios, latinos e de diversas nacionalidades.
• O direito à representação própria não garante uma representação não-eurocêntrica • Abordagens alternativas – escolha do elenco: Orson Welles (escolha de atores negros para papeis de destaque)/ Glauber Rocha (inversão de sotaques) [Gostaríamos de argumentar que a escolha de elenco deve ser vista em termos contingentes, em relação ao papel, à intenção política e estética e ao momento histórico] p.281 A linguística da dominação Língua: símbolo importante da identidade coletiva = no centro das hierarquias culturais do eurocentrismo = hegemonia do inglês, a “palavra do outro” é apagada, distorcida ou caricaturada.
Hollywood e raça David Bogle – levantamento das representações de negros no cinema de Hollywood. Mas vai além dos estereótipos, analisa as estratégias de subversão, por meio das quais os atores transformaram papéis humilhantes em exercícios de resistência; Análise dos estereótipos • Contribuições: a) revelar padrões opressivos de preconceito, b) enfatizar a devastação psíquica/efeitos negativos sobre suas vítimas e c) assinalar a funcionalidade social dos estereótipos, não são erros de percepção, mas uma forma de controle social. • Risco: Pode levar a um tipo de essencialismo racial que deveria ser combatido;
Limites da abordagem (foco: estereótipo) 1.
Tende a ser estática e ignora a instabilidade histórica dos estereótipos = as imagens podem mudar;
2.
Ênfase nos personagens “bons” e “maus” = a moralidade individual recebe mais atenção do que as relações de poder;
3.
Evita o questionamento sobre a natureza relativa da “moralidade”, esquecendo a pergunta: positiva para quem?
4.
A análise de imagens muitas vezes ignora a questão da função = muda-se os “sujeitos”, mantém-se os moldes;
5.
Ignora a questão da perspectiva e do posicionamento social do cineasta e da plateia;
6.
Passa por cima de questões de ponto de vista (“focalização”) = personagem mediador que guia o espectador na comunidade do outro.
As mediações cinematográficas e culturais = indicações de análise (metodologia) 1) Uma análise abrangente deve dar atenção às “mediações”;
O cinema traduz relações de poder em registros de primeiro plano e plano de fundo, elementos de dentro e fora da tela, fala e silêncio. 2) Para falar da “imagem” de um grupo social, é preciso formular perguntas específicas sobre as imagens: = Tais questionamentos podem evidenciar as práticas de exclusão que permeiam relações de poder, implícitas nas ficções cinematográficas. 3) Uma análise crítica deve observar também o som e a música;
4) A música é crucial para o funcionamento dos mecanismos de identificação do espectador. Em conjunção com a imagem, ela prepara a psique da plateia e azeita as rodas da continuidade narrativa, “conduzindo” nossas reações. [Em favor de quem esses processos operam?] 5) Outra mediação chave tem a ver com as questões de gênero = as atitudes raciais são mediadas pela escolha dos gêneros 6) Os personagens nunca são inteiramente positivos ou negativos, mas feitos de contradições = atentar-se para o direcionamento da sátira. 7) A especificidade cultural revela diferenças entre estereótipos = EUA x Brasil (distinção racial brasileira não é binária = todos “tem um pé na cozinha”) e a construção social da raça e da cor é distinta. Ex: Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade).
8) A orquestração dos discursos = voz = pluralidade Se a palavra “imagem” remete à questão do realismo mimético, “voz” invoca um realismo de delegação e interlocução, uma fala situada entre o “quem fala” e o “para quem fala.[...] ( p.310) = uma voz nunca é somente uma voz, mesmo uma voz individual é uma soma de discursos, uma polifonia de vozes, que consiste na criação de um arranjo textual onde a voz daquele grupo pode ser ouvida com força e ressonância. A questão não se resume ao pluralismo, mas ao conjunto múltiplo de vozes, em uma abordagem que procura cultivar e frisar as diferenças culturais enquanto suprime as desigualdades sociais. (p.312)
REFERÊNCIAS: CINEMA E MULTICULTURALISMO. Robert Stam ESTEREÓTIPO, REALISMO E LUTA POR REPRESENTAÇÃO.
Ella Shohat; Robert Stam